revista subversa vol 3 nº9 dez2015
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Subversa dedicada ao reconhecimento das editoras independentes!TRANSCRIPT
NILCÉIA KREMER JOÃO ROCHA LUCAS GROSSO
MAURÍCIO BORBA FILHO LARISSA VAHIA
A MIYAJIMA EDUARDO VALMOBIDA MARCIO DAL RIO
DANIEL PERRONI RATTO CACO BELMONTE
SUBVERSA Vol. 3 | n.º 9 | Dezembro de 2015 ISSN 2359-5817
Ilustração REIDER PEREIRA
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WWW.FACEBOOK.COM/CANALSUBVERSA
@CANALSUBVERSA
Subversa | literatura luso-brasileira |
V. 3 | n.º 09
© originalmente publicado em 01 de dezembro de 2015 sob o título de
Subversa ©
Edição e Revisão:
Morgana Rech e Tânia Ardito
Ilustrações
REIDER PEREIRA
Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados
como autores desta obra.
Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos
textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem
com a realida
3
NILCÉIA KREMER | DE PLACA | 6
A MIYAJIMA | BUCÉFALO | 8
MARCIO DAL RIO | LAVOURA | 10
CACO BELMONTE | O COELHO É MAU | 12
LARISSA VAHIA | DIA DE PRAIA | 14
JOÃO ROCHA | A VERDADE DE GOUNOD | 17
MAURÍCIO BORBA FILHO | CIACCONA | 23
EDUARDO VALMOBIDA | ECOLALIA | 25
DANIEL PERRONI RATTO | LISERGIA MARSUPIAL | 28
LUCAS GROSSO | TRANSFIGURAÇÕES DO SER | 30
SOBRE REIDER PEREIRA |32
SUBVERSA
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EDITORIAL
Esté é o penúltimo número do Volume 3, ilustrado por Reider
Pereira, de São Paulo. Três criaturas estranhas observam o leitor, na
capa. Hoje, temos motivos suficientes para pensar que esse olhar de
estranheza é o próprio olhar da função maior da literatura, o de colocar
diante do espelho tudo aquilo que é estranho à sociedade, ao senso
comum e à lógica vigente.
Basta acompanhar os últimos acontecimentos literários, para
notar o papel que as editoras independentes têm cumprido nessa
missão, estando fortemente inseridas numa verdadeira comunidade de
autores que têm se arriscado (e levado para casa!) prêmios de relevo
na área. Assim, registramos a nossa admiração e apoio a todos os
editores e autores que tem conquistado o reconhecimento que
genuinamente lhes cabe, pela coragem em partir em uma quase
insana jornada pela busca de um lugar ao Sol.
Desejamos uma excelente leitura a todos.
As editoras.
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SUBVERSA # 1 – Versão Impressa | Volume 1 (2014)
Adquira e apoie o crescimento da revista.
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NILCÉIA KREMER | Passo Fundo, RS.
Conheço o medo que você guarda
embaixo da sobrancelha
o medo telha furada
das goteiras esmagadoras
Sei do armário e suas gavetas
das tretas berçários
em que nina tuas máscaras
Sei do estrago de memórias hostis
das pragas
DE PLACA
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vis palavras que mandas ao céu
do pastel teu preferido
dos teus idos grudados na epiderme
do inerte no teu peito
Sei do parapeito em que me transformei
pra represar tuas barbáries
daquela cárie que você esconde
na cova rasa do dente
Sei quando uma meia
verdade fede
e antes que você entregue
roubei a bola
marquei o gol
NILCÉIA KREMER é gaúcha, ariana nascida em 80, conjuradora de
palavras. Inquieta, já provou um pouquinho de várias linguagens
artísticas e descobriu que o melhor sabor se dá no encontro entre elas.
Crê na arte comunhão. Participou da coletânea Sobre Lagartas e
Borboletas publicado eletronicamente pela TUBAP e tem poemas
publicados nas revistas Plural (Scenarium), Mallarmargens, Limbo, O
Emplasto, DiversosAfins, Revista Gente de Palavra e outros blogs e sites.
Mantém o blog In Process
8
A Miyajima
Narciso era um respeitável idiota de cinquenta e nove anos de
constituição robusta, com amplo torso de marinheiro, e íntimo amigo de
Sancho; vestia quase exclusivamente um casaco e um chapéu de
cowboy pretos, tinha rugas marcadas nos cantos dos olhos, orelhas
compridas e um brilho perfumado no olhar, que lhe dava um ar
selvagem e interessante, sendo que, no fundo, o astrolábio da sua
personalidade tinha um único azimute definido: a sua pessoa; e o que
se vislumbrava num primeiro momento como algo de selvagem e
fascinante na sua personalidade era simples e profundo desinteresse
sobre o outro e centração em si. Sancho era a maré vaza num atol de
tédio de fim de tarde onde este largava ferro para manutenção e lustro
BUCÉFALO
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do cargueiro da sua personalidade. E discursava Narciso , enquanto
Sancho lhe servia um café turco que prepara com as triviais
capacidades que dispunha, sobre os feitos de coragem e sedução seus
a cada noite anterior, mas com pequenas nuances e falhas visíveis
repetindo-se idênticos e irrelevantes, serão após serão; algo que não
tomava Sancho em consideração e interessado e atento permanecia,
com o olhar ridículo dos cândidos, nas viagens e feitos maravilhosos e
inverossímeis, que este homem, múltiplo, todas as noites realizava.
Narciso quando da alma repleta da atenção microcéfala de Sancho
colocava o chapéu de cowboy cambado para a frente sobre as
longas orelhas, acendia um cigarro, colocava as pernas esticadas, uma
sobre a outra, e adormecia, no conforto da poltrona do seu ego
anasarcado e polido; seguidamente, Sancho tapava-lhe as pernas
esguias com uma coberta e apaixonado com olhar reluzente,
mencionava, em voz alta, mas doce para que Narciso o ouvisse
claramente: este Narciso tem o olhar de um artista, o discernimento de
um filósofo e a candura de um poeta!
A. MIYAJIMA | Uma vez que as biografias mentem desagradavelmente;
sendo bastante mais interessante dizer mais com menos. Contemplei
com simpatia, admiração e algum temor o homem, que apenas
desembarcado de perigosa viagem, se alistou imediatamente numa
outra, como se a terra lhe queimasse os pés ou como se o coração seu
procurasse quietude para a uma paixão violenta e terminada de forma
abrupta, num qualquer porto, numa qualquer costa distante, num
qualquer outro amor, num qualquer outro exílio, assim me foi
apresentado o escritor, Monsieur, A. Miyajima.
http://livrosdeontem.pt/category/escritores/a-miyajima-escritores/
10
MARCIO DAL RIO | São Paulo, SP.
Trabalharei na lavoura até a noite inundar minhas roupas
Os olhos marejados de mariposas, as mãos sujas de glória, o corpo
tomado de terra.
Chegarei em casa somente o branco dos olhos, o corpo que sobra
debaixo da água fria, água vermelha que some no buraco.
As mãos latejando das pragas arrancadas, o peito arfante, o pouco
feijão, memória de uma amor distante, lá no meio daquele
emaranhado de fios e prédios.
No peito tocará uma música pequena, súplica de homem no mundo,
andarei pela varanda, verei o milharal como um poema que dança, a
noite estalada, a música pequena, no peito das horas que ardem.
LAVOURA
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Ficarei assim até a madrugada, para logo colocar minha roupa de
poeira, novamente as mãos na lida, espiga por espiga, para se
completar uma existência.
De noite a música pequena, o isolamento do homem, o milharal
dançante, poderá haver algum barulho, mas o silêncio impera, a
música distante, no peito de homem no mundo, das horas que ardem.
MARCIO DAL RIO nasceu em Mococa, SP, em 1973, e vive na capital
paulista desde 1991. No meio de caminho entre um trabalho de
comunicação corporativa e outro, escreve o blogue Bloganvile
(www.bloganvile.zip.net) desde 2006, cidade virtual da qual é prefeito.
Participou, em 1994 e 1995, das coletâneas Palavras de Poetas 1 e 2,
publicada pela editora alternativa Physis, e, em 2011, do coletivo
Transitivos (Off Produções Culturais) com apoio do PROAC-SP. |
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CACO BELMONTE | Porto Alegre, RS.
João Emilio surpreendeu a todos. Aconteceu num descuido da
babá, que teria ido fazer não sei o quê no banheiro. Momentos antes
ela o deixara ali, quietinho, brincando no tapete. Na mesma sala, em
outro ambiente, papai, mamãe e vovô conversavam. Coisa muito séria.
Ninguém atinou. Supostamente tranquilo, mas também muito
atento ao que acontecia na volta, João Emilio montava tijolinhos Lego.
Vovô geralmente aparecia aos sábados ou domingos, com a vovó.
O COELHO É MAU
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Naquela manhã de terça-feira chegou sem avisar, sozinho, pouco antes
do almoço.
Veio contar ao papai que lhe roubaram dinheiro. Dólares.
Culpava o sócio, esse tal de Coelho. Vovô o xingava aos berros. Ladrão,
canalha, sem-vergonha. Do alto de seus dois anos e meio, não
conseguiu entender que tipo de negócio vovô poderia ter com o
Coelho, mas compreendeu que o bicho era malvado.
O velho chutou cadeiras e até esmurrou uma parede. Tirou
sangue da mão. Os adultos acudiram. Papai correu e trouxe o kit de
primeiros socorros. Mamãe lavou a ferida, desinfetou com spray, cobriu
de gaze e colou esparadrapo. Enquanto atendiam ao vovô, João Emilio
fez o que fez.
Por coincidência, naquela manhã, mamãe concordara em
prestar um favor à vizinha de porta. A moça viajara às pressas, por
causa de um problema de saúde na família. Durante dois dias, numa
gaiola instalada na área de serviço do apartamento, dariam acolhida e
abrigo a um simpático animalzinho de olhos vermelhos.
Tratava-se de um coelho anão. Oryctolagus cuniculus. Pesando
pouco mais de 630 gramas, o pet da vizinha era premiado em
competições internacionais. Vinha de uma linhagem importante,
aprimorada ao longo de décadas, misturando cruzas com exemplares
do Mediterrâneo oriental e norte da África.
CACO BELMONTE é jornalista e escritor, natural de Porto Alegre (1972).
Frequentou a Oficina de Criação Literária da PUCRS, onde publicou na
coletânea de autores organizada por Luiz Antonio de Assis Brasil (Contos
de Oficina 10; Edipucrs). Em 2004, na FLIP, participou como autor
convidado na oficina Veredas da Literatura, ministrada por Milton
Hatoum. Lá, lançou a obra independente “Contos para Ler Cagando”.
Em 2005, passou a integrar o grupo de autores da Editora Casa Verde.
Em 2006, lançou o livro de contos “No Orkut dos outros é colírio”. Na
editora, participou de diversas coletâneas. Também é coautor do livro
“Farofa com pimentão – Histórias de Praia”, organizado em 2009 pelo
jornalista José Luiz Prévidi. | [email protected]
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LARISSA VAHIA | Rio de Janeiro, RJ.
Meus pés agasalhados pela areia
procuram uma sombra turva
um silêncio opaco
desarmado pela balbúrdia
da juventude feérica
brincando de mergulho com
o empuxo
das águas salgadas
Ouço a afetuosa sonoridade
quebra das ondas
que tropeçam
DIA DE PRAIA
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nos bancos de areia
molhando o seco e produzindo
sonância que propaga
dentro das conchas
emolduram os castelos de areia
no
Rio
40 graus
Pré-adolescentes substituem a fome
de carinhos com picolé gelado,
sede de beijinhos
com matte leão
sem gelo
me arrepio, con(gelo)
com a frieza dos corações
humanos que aguardam
o pôr do sol
com olhares imóveis
à espera da imagem
refletida na retina
chegando ao córtex primário
liberando neurotransmissores
que propiciam
euforia
Enquanto a brisa marítima
percorre, entre seus rostos, carregando
sorrisos, suspiros, olhares
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guiando a noite
e compelindo o
pôr do sol
enaltecendo o mar
LARISSA VAHIA é estudante de Medicina Veterinária da UFF,
apaixonada pela escrita e pelo reino animal. Observa a vida biológica,
as relações interpessoais e o cotidiano em vários ângulos que anseiam
versificação. Escreve no blog euphoniaviolacea.wordpress.com |
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JOÃO ROCHA | Belém, PA.
Os amigos queriam uma prova irrefutável para acreditar nos
relatos cósmicos de Seiva Gounod. Não obstante, estava difícil
acreditar na moça. Viajar para outro planeta, nem que seja aqui perto
ou talvez para a Lua, era de certa forma banal, Marte? Bah! Mas dizer
que visitou a galáxia NGC 6503 em um verdadeiro lapso temporal
inconsciente e esteve em contatos com planetas de beleza indescritível
era de uma falácia astronômica. Pobre Gounod, seu semblante era
evidentemente de alguém que dizia a mais tenra verdade. Olhos que
mantinham intacto os movimentos, pálpebras articuladas em profunda
concentração e mãos que apenas descansavam independentes e
A VERDADE DE GOUNOD
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impediam qualquer julgamento precipitado sobre a conduta da moça.
Devemos ressaltar que Gounod tinha uma reputação mais branca que
as nuvens na aurora. Tinha fama que revelar segredos ocultos de
amigas apenas para não ter que mentir. Talvez fosse sua criação
religiosa. Foi adotada ainda recém-nascida, tinha duas mães, Dona
Querina era a mais severa, casta, incorruptível, desde cedo ensinou a
menina que contar estórias poderia revelar um profundo destino
obscuro nas fogueiras infernais. Catarina era mais liberal, até deixou
Gounod comprar um telescópio sob o argumento de que ela se tornaria
– no futuro – um prêmio Nobel de astronomia.
Com doze anos já conhecia mais galáxias que os cientistas mais
experientes do Ocidente. Pois bem, como provaria que esteve - de fato
- na solitária NGC 6503? Seus amigos apenas riam quase abertamente.
Alguns diziam que ela era mais habilidosa no preparo do café ou que
deveria contar estórias para as crianças no pátio da escola, mas
Gounod não se contentava. – Ainda não há provas físicas, no entanto,
não foram as minhas imaginações nobres camaradas. Dizia,
desdenhando os incrédulos.
– Tudo bem Gou, mas, digamos que você esteja por um golpe
impossível do tempo, certa, mostre-me algum artefato daquele planeta
visitado. – Mostro, entretanto, não agora, infelizmente não tive a ideia
de trazer nem que sejam mostras do solo. Não tive também tempo de
buscar minha Leica. “Claro, claro” dizem os companheiros de outrora,
agora, intrépidos juízes do cosmo. – Mostro mais! Vou simplesmente
trazer pequenos organismos vivos que nadavam sobre os litorais do mar.
– Ah! Boa, havia água? – claro, um oceano magnífico, gigante, este se
chocava às rochas e estas tremiam causando oscilações no solo. Era
assustadoramente belo. No entanto, era uma água escura, não
convidava ao penetrável. Densa, pastosa talvez. A própria areia no
qual pisava nem poderia ser chamada assim. Era uma espécie de lama
amarelada, como um caldo engrossado, pegajoso, meus pés
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demoravam alguns segundos para se despregar causando muitas
dificuldades para eu caminhar e explorar mais o lugar. Nuvens? – não,
não vi, o céu era avermelhado. Um horizonte sem fim. Como se um
oceano houvesse brotado no meio do Saara. – Quente? Não, era seco
o ar, mas, respirável, no começo, quando me recobrei e emergi em
minha consciência - em pontiagudas dores de cabeça bem finas
mesmo - logo tive um surto de tosse que parecia não ter fim. – Então
sabes como chegou lá? – Na verdade, sentia a viagem.
Tremia meu corpo por alguns instantes, entretanto, como que por
uma força, eu não conseguia abrir os olhos. Talvez por pânico. Um
medo religioso quem sabe da morte. E se esta fosse à sensação da
queda nos abismos finais? Não tinha certeza, preferi acreditar que tudo
era apenas uma alucinação sonolenta. Sei que depois, uma sensação
de flutuação, uma paz orbitava meus poros, uma angústia indefinível
me embebia. Naturalmente ainda não conseguia abrir e ver qualquer
tipo de espaço onde me encontrava. De fato era lamentável meus
amigos, irônico até, sei, mas acreditem, penso que vagava no espaço.
– Vagava? Você teria morrido Gou, não acha? – claro que acho, tenho
certeza, não sou indestrutível, seria uma anomalia física. No entanto, sei
que vagava em direção a lugares que julgava serem mágicos. Daremos
um desconto amigos, neste instante eu tinha certeza que tudo não
passava de um sonho então, porque não se entregar ao fulgás destino
que me foi revelado por meu cérebro? – Verdade. Continue. Disse Ivan,
o mais inquieto e que se irritava com os cochichos inevitáveis ao redor.
– Gou, como sabe que era um planeta da constelação NGC
6503? – Alguém sussurrou nos meus ouvidos logo que cheguei. –
Sussurrou? – Sim, não sei, era uma voz de homem, talvez quarenta,
quarenta e cinco anos, não posso precisar, não obstante, ele chegou
próximo a mim e disse algo que remetia a este solitário aglomerado,
neste momento, como disse anteriormente, voltei à consciência bem
lentamente e quase desmaiei de tanta tosse, rouquidão, garganta
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seca, precisava de água. – O viu? – Não, não o vi. Nem sua sombra.
Mas tenho certeza que foi o responsável por minha viagem. Além do
mais, quando voltei da fatídica viagem, estava coberta por alguma
poeira, demorei horas para tirar uma espécie de crosta escura que
impregnava minha pele. Infelizmente, não lembro como voltei ao nosso
planeta. – Gounod, precisas procurar um médico. Psiquiatra se for
possível!
- Calma, sabendo que vocês jovens tão jovens e tão
conservadores como são, não iriam me dar crédito, preparei uma
segunda ida à NGC e da lá transmitirei um sinal pela internet. – Como? –
Por streaming. – Acessem o endereço que vou indicar a vocês e terão a
prova indelineável das minhas palavras. Então sabes como voltar? – Sei,
mas não revelarei até ter certeza – Que horas? – Amanhã pela
madrugada.
O início do dia foi perturbador e desafiador para os amigos de
Gounod depois que receberam as instruções ainda pelo início da
manhã. Um deles, Arsênio, dormiu a tarde inteira a fim de se manter
acordado para o grande evento, porém, se matinha disfarçadamente
descrente, mas por dentro, ansiava pela verdade de Gounod. O outro,
o desconfiado Hogo, tinha a certeza rígida e ostentadora que Gounod
era uma farsa. No máximo havia tomado alguns ácidos na noite
passada. Mesmo assim, formulou umas desculpas para a namorada nos
planos de saírem a fim de esperar o grande evento. Ivan, bom, este
comprou pipocas, refrigerantes, preparou o computador para
downloads intermináveis e trancou a porta do quarto para o irmão
caçula não estragar a madrugada. Ironicamente perto da meia-noite,
ninguém conseguia encontrar o paradeiro de Gounod. Ligaram para
sua casa, mas esta ainda não havia voltado. Pode ter ido dormir na
casa de Draco, já desconfiavam deste oculto romance há tempos, mas
Draco negou e ficou preocupado.
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As angústias cresciam em pressões arteriais medonhas, eclodindo
em idas e vindas pelos solavancos dos quartos, F5 mágicos que se
revelavam frustrantes. Gounod teria enganado a todos?
Porém…
Na tela escura, pequenos movimentos embaçados. Tons sépias
como que distorcidos por sinais de satélites decadentes. Pouca
visibilidade, movimentos turvos mais em progressão, era Gounod? Todos
se perguntavam. – Pessoal, sou… Camaradas, aqu… Noud… (Em cada
casa, subir pelas paredes era um ato absolutamente necessário). –
Gounod, você podes nos ouvir? – Pess… Estou em… 03… (Muitos ruídos,
sons ensurdecedores que rompiam as capacidades do computador)
Hogo procura o telefone, tropeçava em roupas arremessas pelo chão,
mãos trêmulas sobre os teclados. – Estais vendo…? – Ivan recebe
mensagem de Draco. Este desesperado por notícia. Gounod continua –
Pessoal, infelizmente o sin… ruim… Talvez… não… Mais… vol…te..m...
Fim do sinal.
Tela azul de angústias. Febre de ânsia inigualável. Onde estava
Gounod? – diziam todos. – Vocês a ouviram falar? – sim, entretanto, que
insânia. Encenou bem, a Gounod. Disse Hogo ainda excitado pelo
ocorrido, mas tentando manter algum lado sóbrio a se apoiar.
Os dias foram angustiantes. A procura por Gounod chegara há
duas semanas. Draco acusava os rapazes, estes acusavam o
desconhecido. – Talvez tenha fugido com o Outro. – Era louca. Mas
ninguém relevou para ele o acontecido. Foi rápido. Medonho.
Assustador. A sensação de que talvez realmente ela não voltasse
sobejava-os. Ivan sentia culpa. Depois de um mês, saiu da cidade.
Dizem que pegou uma bicicleta em um final de tarde e foi visto pelos
arredores de uma rodovia federal. Alucinado. Draco entrou em uma
depressão que permaneceu por décadas, jamais foi o mesmo jovem
impetuoso de antes. Souberam que ele havia falado algumas palavras
duras para Gounod na véspera. Jamais se perdoaria. Hogo e Arsênio
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ainda se falavam. Tentavam acessar o site milhões de vezes ao dia e
nada de encontrar alguma resposta.
A polícia os interrogou. Confessaram que havia conversado com
ela. Seria estranho. Seria comprometedor talvez. Não sabiam. Eram
jovens, nervosos e imaturos para lidar com as questões da lei. – Então
ela foi para outro planeta? Disse o delegado enquanto digitava
mensagem no celular de forma frenética. – Bom, ela que disse senhor. -
Sei... Vão embora e parem de beber essas vodcas piratas.
E Gounod? – Não sabemos. Ninguém sabe.
Quando anos depois o poderoso telescópio Hubble revelou fotos
nítidas da galáxia de NGC 6503. Os amigos que ainda restavam de
Gounod lagrimaram sua falta. NGC 6503 era um ponto vazio no espaço.
Uma galáxia solitária. No entanto, ficaram abalados com a notícia de
um estranho sinal vindo daquela região. Hogo e Arsênio, já
envelhecidos, entreolharam-se. Um súbito silêncio rompeu como uma
barragem em câmera lenta. Olharam-se e se puseram a rir. Riram o
resto dos anos. Contaram para os netos. Estes, incrédulos. Riram
copiosamente. Levaram para o túmulo a verdade de Gounod? A
mulher solitária da galáxia NGC 6503.
JOÃO ROCHA é poeta e contista da pequena cidade de Marituba,
região metropolitana de Belém/PA. Já participou de uma coletânea de
poetas chamada “Frutos Colhidos com mãos de Chuva” em 2011 e está
na antologia de contistas "A Mulher de Branco, e outras mentiras
verdadeiras” da Fundação Câmara Brasileiras dos Jovens Escritores.
Escreve contos e artigos para o site português Obvious desde 2012 e
mantem o blog “Outrotexto”. | [email protected]
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MAURÍCIO BORBA FILHO | Belém, PA.
e não saberemos
cruzar as pernas
dentro das horas
longas
das horas longuíssimas -
destas em que ficamos
a esperar a secagem
do rio de pedra azul
da nossa idade:
quando enfim restar
CIACCONA
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exposto o nosso abecedário
entre os peixes – enfim –
revelado:
não saberemos
cruzar as pernas
dentro destas horas
longas
nem fazer a figueta
do alaúde com a língua
enquanto ouvimos a ciaccona -
para acompanhá-la -
a ciaccona de uma anã branca
indiferente ao telescópio
não saberemos
não saberemos
mas observamos
e guardamos desde já
o vestígio dos humores
da noite
numa velocidade – baixíssima -
acompanhando a ciaccona da anã branca
que foi dormir na tua língua
MAURÍCIO BORBA FILHO (1992), publicou seu primeiro livro, "modos", que
ficou em terceiro lugar no Prêmio de Poesia Belém do Grão Pará,
edição 2014. | [email protected]
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EDUARDO H VALMOBIDA | São Paulo, SP.
Esboça um sorriso. Mas é só um esboço porque ela não está com
vontade de sorrir, mas a situação a obriga a, então os músculos da face
se contraem, se movem, como vermes sob a pele. Esteticamente
ECOLALIA
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falando se poderia dizer que era um belo sorriso, mas como não era
realmente um sorriso, então também não se pode falar de estética. Não
que estética trate apenas do que é todo formado, completo. Ela era
estética. Chamaria a atenção se o quisesse, mas sempre se vestia de
cores pastel e aquele momento não era exceção, mesmo que elas
existissem. Azul pastel, céu esmaecido, e olhos castanhoscuros, cor de
vácuo, dois pontinhos amarelados em cada íris, como reparara um dia
desses frente ao espelho, com os músculos do rosto como vermes sob a
pele do rosto. No fundo, um piano tocando leve. Mas no fundo da
mente, porque na sala de aula, frente ao professor, ninguém dizia nada.
Ela pigarreou, como pura vingança de não poder dizer, e o professor se
atrapalhou por um milésimo de segundo, o suficiente para soltar um é
prolongado, como se tivesse esquecido o que iria dizer, e o esquecera,
mas por um milésimo de segundo apenas. O piano sutil e o corpo dela
acompanhando as ondas sonoras do piano que ecoava por dentro,
meio dançando sobre a cadeira da sala de aula. As palavras que o
professor colocava no quadro eram quase incompreensíveis, se não
pela parte inconsciente dela que ainda acompanhava a aula,
enquanto ela se perdia cada vez mais. Mais tarde se lembraria disso
tudo, menos do piano.
Ela andava sob a chuva fina que caia e fumava um cigarro que
ia ficando cada vez mais úmido porque o guarda-chuva só lhe protegia
a cabeça, e ao cigarro apenas quando o levava à boca. Fumaça
furada pelas gotículas e ela andando meio distante de um grupo de
garotos que riam e se empurravam, como se tivessem oito anos, mas
tinham vinte e um. Não sei como o sei. Sei. Fim. Continuando. Ela
continuava andando e fumando e escutando, as risadas e o piano. O
piano quase retumbando, mas pianíssimo. E os passos dela começaram
a se enquadrar no ritmo da música, mas não sabia se era música
mesmo, talvez uma ecolalia da pulsação do mundo. Mundo que ela
mal conhecia, porque olhava demais para baixo, para o chão, e
27
pensava enquanto vivia que era rés-do-chão com corpo de garota,
mas mundo que existia, que era tátil, e disso ela tinha certeza porque
acontecia que ela vivia aos encontrões com pessoas, postes ou muros.
Ela queria um muro para seguir apoiada nele, quase na diagonal, mas
isso era impossível, porque seu corpo fremia e pulsava, e destoaria,
então, do muro gélido e estático. O muro na mente dela era estático,
mas não estético. Muro não é estético porque só serve para impedir, e
impedir não é exatamente o propósito da estética, mas formar. Muro
não forma nada, apesar de que restringir por vezes é formar, mas não é
criar, então não pode ser estético. O muro encerra aquilo que já foi
criado. Então o corpo dela era como um muro que encerrava o piano
que tocava lá no fundo e ela fingia que não, mas sim, e pensariam que
ela estava louca se contasse a alguém que dentro de sua cabeça, lá
no fundinho, sobre o teclado de um piano escorregavam mãos, ela
sabia, já tentara, e nunca mais voltara a ver sua melhor amiga de
infância que morrera alguns anos atrás de câncer nos ossos. Se ela
encerrava a música dentro de si, então não era tão diferente do muro,
e talvez pudesse criar um em que se escorar ao longo do caminho,
porque seria mais fácil ter suas mãos frias deslizando sobre a frieza das
pedras. Queria um muro de pedras velhas com musgo nas brechas.
A essa ideia, do musgo escorrendo lentamente como veneno ou
saliva ou sêmen verde dos entre-pedras do muro, veio-lhe o sorriso. E o
piano pianando no fundo. A loucura. E lá fora a solidão. E a força para
não sorrir por não querer.
EDUARDO HENRIQUE VALMOBIDA nasceu em Jundiaí, interior do Estado
de São Paulo, e atualmente é refugiado na capital, onde cursa Letras
na Universidade de São Paulo. Aos vinte anos, ainda se prende à cor
azul, resquício da infância, assim como à figura do mar, que reverbera
tanto em sua escrita como no cotidiano banal. |
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DANIEL PERRONI RATTO | São Paulo, SP.
Os muros querem reviver
as sensações maniqueístas
Os tempos mudam a correr
nas campinas surrealistas.
O pró-labore assenta
manifestações teatrais
Do imposto que isenta
LISERGIA MARSUPIAL
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é a falta de algo mais.
A ideologia deixou
de consumir corações
O balcão de negócios
está cheio de traições.
Nas cataratas do mercado
ações ininterruptas
nos quadros digitais
Os bolsos do povo
são a esperança
dos velhos marsupiais.
DANIEL PERRONI RATTO é poeta, jornalista, pós-graduado em Mídia,
Informação e Cultura pela ECA/USP. Autor dos livros Urbanas Poesias
(Fiúza Editores, 2000), Marte mora em São Paulo (A Girafa, 2012) e
Marmotas, amores e dois drinks flamejantes (Patuá, 2014), Daniel
também foi letrista e vocalista das bandas Loco Sapiens, Criolo Branco e
Luz de Caroline. Colabora como cronista do UOL Música, do jornal
Diário do Nordeste e portal culture-se.com. Tem poemas publicados em
diversas revistas, tais como: Revista Gente de Palavra (RS),
Mallarmargens revista de poesia & arte contemporânea (PR) e Revista
Quincas (SP), entre outras. Em 2015, foi um dos poetas selecionados
para participar da Exposição Poesia Agora, no Museu da Língua
Portuguesa. | [email protected]
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LUCAS GROSSO | São Paulo, SP.
Em um primeiro instante – um rosto, uma personalidade
por toda uma constante existência
TRANSFIGURAÇÕES DO SER
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-tu foste alteridade!
Em uma segunda instância – memórias e reminiscências;
a tessitura de uma lembrança
-tu foste minhas vivências.
O terceiro momento – breve sugestão de um episódio,
apenas um fugidio acontecimento.
-tu tornas-te um espólio.
Como espólio – agora perco-te de todo,
não mais existência ou lembrança ou acontecimento:
lembro-te e penso – como fui tolo!
LUCAS GROSSO é professor, escritor e pesquisador em início de carreira.
É formado em Letras e defendeu seu mestrado em literatura
comparada em 2014, estudando Ivan Angelo e Milan Kundera. Já
publicou em algumas revistas e, regularmente, publica seus poemas e
prosas no blog Lucas Grosso, Destruidor de Cenários
(http://lucasgrosso.blogspot.com.br/) | [email protected]
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Monte Aprazível, SP.
FACEBOOK | BEHANCE | [email protected]
Reider Pereira é ilustrador profissional e procura investigar a
relação da arte literária com a arte pictórica, considerando que há um
forte aprendizado sobre pintura a ser explorado na literatura. Não possui
uma referência única, mas atualmente vê-se bastante inspirado pelos
artistas pré-rafaelitas e pela autora Virgínia Woolf. Suas técnicas
abrangem o uso do lápis de cor e tinta acrílica, além de aquarela e grafite.
“Gosto principalmente de materiais que fluem no papel, dos que
evanescem”, afirma Reider, que também gosta de explorar o papel
psicológico envolvido na arte, o “envolvimento espiritual com esse
estado de consciência criativa”.
Após ter largado um trabalho de carteira assinada para se
dedicar integralmente à ilustração, o artista prevê a dificuldade de
reconhecimento da área e, principalmente, da atividade do ilustrador
que, muitas vezes, é vista como passatempo, pelo senso comum. Reider
ilustrou o livro infanto-juvenil Little Purple Rains: “A historinha da mulher-
menino” e se prepara para ilustrar o próximo da coleção, além de
trabalhar em outros projetos de moda e aceitar novos desafios.
SOBRE REIDER PEREIRA
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PARCEIROS:
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Edição e Revisão:
Morgana Rech e Tânia Ardito
Recepção de originais: