revista subversa volume 1 | n.º 8 | dez 2014

27
SAMUEL H DIAS | GABRIELA RUGGIERO NOR EVANDRO DO CARMO CAMARGO| TÂNIA ARDITO CATIA PENALVA| BRENO RICARDO MORGANA RECH | LUIZA FERREIRA 8ª Edição | DEZ /2 2014

Upload: revista-subversa

Post on 06-Apr-2016

228 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

|literatura luso-brasileira| www.canalsubversa.com [email protected]

TRANSCRIPT

SAMUEL H DIAS | GABRIELA RUGGIERO NOR

EVANDRO DO CARMO CAMARGO| TÂNIA ARDITO

CATIA PENALVA| BRENO RICARDO

MORGANA RECH | LUIZA FERREIRA

8ª Edição | DEZ /2 2014

WWW.FACEBOOK.COM/CANALSUBVERSA

[email protected]

@CANALSUBVERSA

SubVersa | literatura luso-brasileira |

8ª Edição

© originalmente publicado em 15 de Dezembro de 2014 sob o título de

SubVersa ©

Edição e Revisão:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Fotografias:

©Luciana Belinazo: Das Imagens |Pensamentos Mortos | Ser poesia é habitar a

música | O ONS do RU | Mas tu sabias, pai | Jeci

© Tânia Ardito: Lírica Grega

© Morgana Rech: Siri morrendo

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como

autores desta obra.

Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos

ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.

CANALSUBVERSA.com

3

8ª Edição

Dezembro de 2014

GABRIELA RUGGIERO NOR | © DAS IMAGENS | 5

EVANDRO DO CARMO CAMARGO | © SIRI MORRENDO|9

SAMUEL H DIAS | © PENSAMENTOS MORTOS | 13

LUIZA FERREIRA | © SER POESIA É HABITAR A MÚSICA | 16

BRENO RICARDO | © O ONS DO RU | 19

CATIA PENALVA | © MAS TU SABIAS, PAI | 21

TÂNIA ARDITO |© LÍRICA GREGA| 22

MORGANA RECH | © JECI | 25

Apresentamos a 8ª edição da SubVersa,

a última do ano que representa o

encerramento de um ciclo. Com certeza,

daqui a um tempo, nós editoras sentiremos

saudades boas e orgulho desses seis meses de

acertos, muitos erros, ideias entusiasmantes,

experiências, risadas e aprendizagem. Já na

nossa chamada para a oitava edição,

apresentamos o 8 como o símbolo do infinito,

sendo o nosso maior desejo para o ano que se

aproxima e para o novo começo da

SubVersa, que possa ser um novo ciclo infinito

de ideias, textos, colaboradores e parceiros

deste projeto.

Sim, a Sub, como carinhosamente

chamamos, está em fase de remodelação. O

nosso trabalho visa ser, cada vez mais, uma

ponte luso-brasileira da literatura

contemporânea, sem nos esquecermos do

nosso conceito inicial, o desejo de ser uma

mais-valia a quem procura espaço dentro do

difícil mundo literário. Estamos de volta ao

começo, não num retrocesso, mas num

processo de evolução. Voltar às origens será

sempre necessário para evoluir e ultrapassar

os desafios do caminho. O mesmo que

esperamos aos autores e leitores. Desejamos a

todos um 2015 repleto de energia, entusiasmo

e inspiração. É o que nos move!

EDITORIAL

CANALSUBVERSA.com

5

GABRIELA RUGGIERO NOR

SÃO PAULO, SÃO PAULO, BRASIL

Labirintos e a perseguição sem trégua, fugindo – depois de correr até o

coração parar, termino num grito abafado, lençóis que mudaram de

lugar sem que eu visse.

(como queria puxar sua mão junto comigo, para o fundo fundo fundo)

meu corpo como o de um pássaro; leve, frágil, as asas cortadas de

Frida – alas rotas y ganas de volar – recosida mi espalda por la mañana,

el dolor solo en el punto más central de la lumbar – uma estrella y todos

los amores vividos y frustrados en mis riñones – pero me muevo como los

gatos y ¡de pie estoy! Antes que lo sepas ya me fui

era um cachorro morto, pendurado pela pele solta, com o focinho

humilde despencado – era a dor de novo, mais minha porque não em

minha pele, mais minha porque causada por nós

DAS

IMAGENS

CANALSUBVERSA.com

6

ela, por quem eu quase desisti de tudo, tinha um perfume forte de

invadir as narinas e ficar o dia inteiro amortecendo os poros – ela, cujo

perfume sinto às vezes inesperadamente, carregado no vento, sem sinal

da íris violeta e das pupilas de gato, deixando-me na confiança esquiva

do faro humano – era uma bruxa.

eram as sobrancelhas doces, doces, claras, loiras, que se tornavam

cruéis, a lua pesada em cima de todos, a lua pesada e o carro azul;

azul-escuro, profundo, de se ir pra dentro e não sair – até o penhasco

ele dirigiu e de lá seus olhos se avermelharam para sempre, nunca mais

suas sobrancelhas claras claras de sol, nunca mais seus olhos azuis,

agora, porém – un coup de dés jamais n'abolira le hasard – as cartas

que ela (Madame Pequenina) consultou disseram que seríamos

abençoados, que eu tinha uma inclinação espiritual – revelação? -

inclinação espiritual -

(da qual me livro com álcool que retorna em pesadelos e sede em

madrugada verde. Da qual me livro com o embotamento de todo e

qualquer sentido – extrasentido – paranormalidade – le hasard, la

femme-oiseau, moi, celle qui va mourir seule sans chats et sans savoir

coudre les chaussettes de mon fils imaginaire – une bouteille de vin à

côté de mon livre favori, jamais écrit mais bien chéri)

era o corpo amado festejando em suor alheio, era a garganta

amada gritando nomes outros que não o meu, eram os olhos

amados denunciando a falta grave, e o desprezo que acompanha

as traições sofridas e a culpa que acompanha aquelas praticadas.

era a sombra que se instalava sem permissão e não ia embora

nunca, eram as marcas debaixo dos olhos que retornavam mais

vívidas;

CANALSUBVERSA.com

7

a carne saliente cada vez mais apodrecida, cada dia 22 do mês em

que os cachorros mordem mais, era o signo canhoto registrando cada

visão de morte, eram as mãos dele nos quadris perfurados de desejo

que não saciava nunca, era a frigidez que chegava após o gozo e a

tormenta de novamente submeter o corpo às alucinações do quarto

escuro

e frio

bones that crackled in the bed, legs wrapped in nightmares

[I had a rented skull and borrowed brains to be able to go to college in

the morning: stealing everyone else's souls with a fake bright smile there I

went – will you sing along my dear, sing along, sing along, will you sing

along when my wings get loose? when my arms are released from the

smothering confinement of his lips, will you sing along? when my

deprived body comes to light again? will you blow the ashes off my pale

skin when I'm finished burning every bit of this rock this marble this thick

silver layer that encloses my teeth? Let's make a promise an agreement

an art to live by and through – let's hold hands till our hands vanish]

à noite toquei profundamente em suas mãos e soprei na ponta de seu

queixo; beijei suas pálpebras doces, escovei com as pontas dos dedos

os seus cílios, abençoei seu corpo nu, pedi aos anjos que não te

deixassem nunca, rezei para que sempre fosse feliz, e tranquilo, e que a

vida fosse boa com você, e que você fosse bom com as pessoas, que

seus filhos fossem fortes e te suportassem o peso na velhice, que sua

esposa tivesse olhos de lua e sorriso de cristal, murmurei repetidamente

que Deus respeitasse a ingenuidade de minha prece, que eu queria

você sempre feliz e alheio à dor e ao medo, que eu queria que você

CANALSUBVERSA.com

8

tivesse sempre onde descansar suas costas, que tivesse sempre um

prato cheio de comida, que nunca passasse frio, que não se deixasse

consumir pelo desejo ou pelo dinheiro, que você continuasse forte e

bom, com os braços fortes e bons de quem se levanta repetidamente

para acompanhar a doente até o leito, braços fortes e bons de quem

carrega a bondade maior, mais elevada, mais firme, eu rezei pra que a

pureza que conserva nos olhos passasse adiante numa geração

dourada, altiva, contente

que nunca ninguém te abandone

que me seque o veneno dos lábios

que me faça uma prece por hoje.

GABRIELA RUGGIERO NOR é professora de línguas e doutoranda em

literatura brasileira. Escreve também sobre maternidade consciente e

humanização no atendimento da mulher.

CANALSUBVERSA.com

9

EVANDRO DO CARMO CAMARGO

ILHABELA, SÃO PAULO, BRASIL

Tem um siri muito sério

Na areia da praia, olhando triste

Seus dois bracinhos,

Com suas garrinhas,

Caídos na areia,

Separados do corpo.

Coitadinho do siri.

Pego ele na mão e reparo:

Falta ainda a última perninha de trás, do lado esquerdo.

Mas ele está vivo. Com medo,

Recolhe os olhinhos retráteis quando o apanho.

SIRI

MORRENDO

CANALSUBVERSA.com

10

Tento grudar suas perninhas,

Não colam mais.

Penso em colocá-lo na água,

Mas acho que seria comido, ou morreria afogado.

Tento fazê-lo andar,

Andar já não pode.

Está quebrantado,

Imóvel.

Uma mosca percorre seu casco.

Siri morrendo II

Sento-me em um balanço embaixo de um chapéu-de-sol,

E fico imaginando na situação do siri,

Reflexivo.

A mosca não o deixa mesmo em paz.

Muito de vez em quando, o siri faz que vai andar.

Cansadamente, flexiona lento as perninhas que restaram.

Mas não sai do lugar,

Resignado.

Penso de novo em colocá-lo na água.

É um animal marinho.

CANALSUBVERSA.com

11

Deve preferir morrer na água salgada.

Pelo menos não tem moscas.

E vai que no mar as perninhas restantes não ficam mais espertinhas?

Talvez nadar ele ainda consiga.

É isso mesmo!

Vou salvar o bichinho.

Pra ele não ficar assustado,

Coloco-o na areia, em um lugar onde uma ondona acabou de bater,

mas que agora está seco.

Fico à espera de outra onda daquelas, mas nada.

Eu esperando e ele lá, paradão.

O chato é que não dá pra saber o que ele prefere.

Às vezes tem de novo aquele espasmo.

Mas não sei se quer ir logo pra água ou fugir dela.

E essa onda que não vem...

Chega a vinte centímetros dele e nada mais.

Impaciente, coloco o bicho mais adiante,

Onde, sem mais tardar, se banhará talvez pela última vez nas águas frias

do Atlântico sul.

Uma onda termina a cinco centímetros dele.

Está com os olhinhos arregalados, acho.

A outra que vem, vem forte, e derruba nosso herói,

Que agora está de ponta-cabeça, mexendo as perninhas.

CANALSUBVERSA.com

12

Não esperava esse acidente.

Não esperava.

Mesmo.

Meio zonzo, me afasto rápido, olhando pra trás,

Preocupado.

Minha súbita retirada o coloca em desespero.

As perninhas frenéticas e os olhinhos estalados parecem querer dizer

algo.

EVANDRO DO CARMO CAMARGO

CANALSUBVERSA.com

13

SAMUEL H DIAS

MUZAMBINHO, MINAS GERAIS, BRASIL

- Um corte um pouco acima do pescoço, às nove horas da manhã de

um sábado bem enjoativo, o café frio espalhado pelo chão e meu

assassino sentado em meu sofá comendo um sanduíche de presunto e

tomate, a TV estava ligada, ele tinha quase dois metros de altura e

vestia um sobretudo preto e até tendo certeza que eu já estava morto

era cuidadoso e não retirava o capuz, era muito cedo para ser morto e

estava muito cansado para ser morto.

" Suspiros"

- Minha visão já não está tão clara como a de alguns segundos atrás,

estou me curvando para o lado, estava até agora pouco encostado no

PENSAMENTOS MORTOS

CANALSUBVERSA.com

14

armário embaixo da pia da cozinha, lembro-me de ter deixado a ração

do Bob ali dentro, lembro-me também de ter comprado a ração

errada, maldita promoção e maldito salário mínimo que não paga nem

mesmo meus impostos.

" Queda"

- Meu corpo encontra o chão gelado de meu apartamento, agora

não consigo ver o assassino, tudo que vejo é o balcão de mármore no

qual há alguns minutos atrás estava sentado tomando meu café e

comendo aquele sanduíche, mal consegui dar duas mordidas e tão

repentinamente quase não pude ver ele surgindo das sombras.

" Dor"

- Não era humano, eu vi com meus próprios olhos as sombras saírem

pelas paredes e por entre elas este estranho homem encapuzado,

arrisco dizer que era a morte, mas se for, não é muito simpática e como

dizem: vem sem avisar.

" Sangue"

- Minha visão some, estou no escuro e o único sentimento vivo dentro

de mim é o medo, meu coração já está desacelerando como um trem

chegando na estação, nunca mais verei este mundo nojento ao menos

é isto que penso, já que nenhuma lembrança minha ficará para

alguém, se existe algo pior do que morrer, talvez seja não ser lembrado.

"Lágrimas"

CANALSUBVERSA.com

15

- Já não me restam mais forças...

" Sorriso"

- Ao menos foi rápido, pois não sinto dor.

"Morte"

SAMUEL H DIAS

CANALSUBVERSA.com

16

LUIZA FERREIRA

RIO DE JANEIRO, RIO DE JANEIRO, BRASIL

Viveu no esquecimento de sabores, dos cheiros, do sentir e da

companhia de si mesma. Perdeu sua aura colorida, seus indecifráveis

mistérios que tornava-na única. Desfez-se da natureza, perdeu o olfato

ao cheirar uma rosa e o paladar ao saborear as frutas de outono.

Buscou os caminhos das ideias perfeitas, dos ideais e do que está acima

de todas as suas experiências, sentidos e paixões. Foi acompanhada

pelo falso e, em suas trilhas imaginárias, segurou infinitos que foram

quebrados meio a palavras de ferro e sem a menor chance tentar

reconstruir os cacos deixados pelo chão. Fez-se só. Acolheu-se nos

braços de sua alma, segurou o abismo na mão esquerda e, com a

direita, ainda procurava um resquício de equilíbrio. A chuva a derrubou

e a tempestade a fez desistir. Desfez-se nos mares das lembranças,

afogou-se em melancolias resguardadas de um verão em vão, e

cobriu-se de silêncio da cabeça aos pés.

Era como um choque. Uma canseira que lhe tirava o sono, um

SER POESIA É HABITAR A MÚSICA

CANALSUBVERSA.com

17

silêncio barulhento, uma linguagem travada e suas rimas que não

rimavam mais. Começava pelas suas pernas, tomava conta de suas

costas e chegava até os seus braços. Eram ventanias trazidas de um

mar remoto, nostálgico, breve e antes leve. Era o barulho das ondas

quebrando nos seus ouvidos através de estalos, de pânico, de um ser,

mas não ser. Antes, com seus pés descalços e suas mãos sobre a areia,

conseguia contemplar toda a vista daquele mar, que a acariciava

gentil e sereno. Filha das conchas e dos oceanos, foi invadida nas

profundezas de toda sua alma e, aquelas águas, antes amigas,

tornaram-se caminho para a queda. Foi imobilizada pelos seus sentidos

e desprendeu-se de seus quereres remotos quaisquer. Assim que

chegou aos seus ouvidos, o movimento que lhe revestia, foi interrompido

e seguiu outra direção.

As janelas tremeram. Algo mudou. Ouviu, pelos vidros

empoeirados antigos, e pela transparência de uma noite escura e

inesperada, uma distante melodia. Uma melodia que a lembrava o

canto de sereias e que a chamava para se levantar e procurar de onde

vinha o que seduzia seus ouvidos. Era a melodia das estrelas. Correu até

onde pudesse estar mais próxima àquele som que, com cheiro de flor e

que alivia a dor, se apresentava como uma espécie de mudança.

Cantarolando meio a nuvens perturbadas e meio ao resmungo da Lua,

insistiram em notas, em canto e em movimentos circulares e paralelos.

Entrelaçaram seus corações e fizeram de várias, um só ponto brilhante.

Ao cantar naquela noite solitária, vazia de tudo e conturbada por ruídos

de uma multidão silenciosa, tornou-se o centro das atenções e,

principalmente, das atenções de uma mulher. Tudo ia se refazendo.

Como se os dias perdidos fossem iluminados por uma espécie de

sensibilidade incansável. Estava tudo tão longe e tão perto! Era como se

aquela noite tivesse acenado para uma espécie de passado não-vivido

e apresentasse uma aventura: aquela colorida e que aliviava o cinza,

CANALSUBVERSA.com

18

de cheirar flores, brincar com a lua, beber gotas de chuva. Sair do que

tem cheiro de bomba e gosto de solidão, pra fazer abraçar a alma e

rejuvenescer a aura. A partir daquela pequenina cantora de danças

serenas, pôde sentir e habitar, pelos seus ouvidos, as profundezas de

todo seu espírito. Assim como passava horas em sua mistura de canto

interior com exterior, imaginando além do que sê vê e toca, juntando

devaneios e colocando em papéis brancos e amarelos, e em

mergulhos em letras embaralhadas e rabiscadas, encontrou, no canto,

na música, a poesia que acalentava o seu rosto, rejuvenescia sua alma

perdida e mostrava-lhe as flores de um passado bom. Já não era mais

um rabisco derrubado inacabado. Era um desenho completo, de

rabiscos que se completavam, pintados por cores coloridas e escuras.

Trouxeram-lhe de volta às dimensões prediletas, aquelas de quando

ainda podia dialogar com as plantas, voar com os passarinhos e nadar

naquele mar das sereias, de ondas aventurosas e não agressivas. Era

como enxergar a si mesma.

É indescritível como uma canção, um só som, uma melodia

contínua pode fazer com que saiamos de nossa dimensão comum e

contemplemos os nossos mais distantes encontros com nós mesmos. É

fascinante como se consegue alcançar o próprio eu, reconhecer os

nossos próprios estados, através da musicalidade de algo – o que quer

que seja – que exista a música.

A poesia está nos mares, nos ventos, nos dias difíceis. Ela ilumina,

abre caminhos e abriga o coração na palma de uma mão.

A música é amiga da poesia. E ser poesia é habitar a música.

LUIZA FERREIRA é estudante de Português-Inglês da Universidade

Federal do Rio de Janeiro.

CANALSUBVERSA.com

19

BRENO RICARDO

JUIZ DE FORA, MINAS GERAIS, BRASIL

“Invém o ons do RU!”

Sob a propagação de tais palavras, o espírito do aluno da UFJF se

exalta, o sangue lhe ferve e corre veloz pelas veias dilatadas. A

empolgação se lhe instala e a expressão desta são as correrias – sim,

um punhado de jovens correndo felizes como crianças premiadas com

um doce, até que ocorra a reunião de todos em torno do ons cinza, de

sua estreita porta traseira que se abre, refrescando-nos a alma pelos

seus característicos sons.

Adentram os estudantes, sorridentes. Conversam alto, como

bêbados num bar. Uns têm onde sentar, outros – não. Ao chegar no ICB,

mal se tem como subir, todavia sempre é possível, menos devido ao ons

ser um coração de mãe, que pela necessidade que nos rege e a

solidariedade que nos faz dizer: “Vai ter que caber!”. Amontoamo-nos

partilhando de um calor humano, no frio juiz-forano, urgente; em seu

calor, sofrível. Seguimos pelos morros, entre belas sequências de

pinheiros. Passamos pelas Artes e pelos artistas; pela Engenharia e

Arquitetura – paramos, chegamos. Para descer, paciência. Depois,

O ONS DO RU

CANALSUBVERSA.com

20

tickets e filas, assinaturas – e mais filas: paciência!

As revoltas estomacais trazem-nos à memória aquilo que nos dá

esperança: o Restaurante Universitário. Um estudante da UFJF que passa

toda a sua graduação sem prover-se de ao menos um almoço no RU,

em verdade em verdade vos digo – não teve uma graduação

completa. Ele é de tão sumo valor que deveria ter sido construído no

centro do campus. Apesar de esse local de honra estar ocupado pela

Reitoria, porque é de praxe a inversão de valores no Brasil, no nosso

coração reina o RU e o seu ons, que são a magia dessa mágica

universidade.

A realidade que, em oposição à magia, é triste, é que somos 1500

cabeças necessitadas. Afinal, o sobrenome do RU é Necessidade. A

comida às vezes é boa, contudo, o suceder de tal fato é tão raro que

nos surpreende e, abismados, perguntamo-nos se o nosso paladar já

não está perdido, desprovido de bons valores morais, e já julga

comestível, a comida duvidosa. O suco, contudo, mantém-se intacto:

com gosto, sem ele, doce ou amargo, o seu sabor ruim é imperturbável.

A despeito disso, como mulher de malandro, recusamo-nos a trocá-lo

pela água, que se supõe mais saudável – todavia, pouco se sabe sobre

ela.

Reclamamos, mas almoçamos. A antítese do amor e do ódio é o

tema de nossas conversas. E isso só finda, temporariamente, no advento

do ons do RU, quando o vemos dobrar a esquina da Engenharia, em

toda sua simplicidade e esplendor. Reduz distâncias, economiza

energias, mantendo-nos descansados. Sinceramente, mesmo a ojeriza

que por vezes nos provoca, é como a da mãe quando vê o filho em

ruínas: deve prover do amor!

BRENO RICARDO escreve poemas, peças teatrais e crônicas. Já foi

diretor de um grupo de teatro amador; possui três livros publicados on-

line e, atualmente, publica crônicas no blog da Capela Anglicana do

Bom Samaritano.

CANALSUBVERSA.com

21

CATIA PENALVA

VIANA DO CASTELO, PORTUGAL

O Alzheimer conduzia-te de volta à África, à tua oficina, às

ferramentas que me pedias no quarto do hospital com o olhar

desaparecido, circular. Mas tu sabias, pai, sabias que eu estava grávida

e eu julgava-te louco. Mas tu sabias, pai! Dois meses depois, o teste deu

positivo. Atónita, corri ao hospital e lá estavas tu outra vez em Malange.

Segurei-te a mão e sorriste-me " já não vou conhecer a minha neta." Eu

não quis acreditar, pai, mas tu sabias!

CÁTIA PENALVA já foi professora do 1º ciclo do ensino Básico e agora é

Mestre em Educação Artística e dá formações de escrita criativa na sua

cidade.

MAS TU SABIAS, PAI.

CANALSUBVERSA.com

22

TÂNIA ARDITO

SÃO PAULO – PORTO

Agora estou neste quarto… com as paredes todas pintadas de

branco, tão impessoal, sem nenhuma marca das histórias que passaram

por aqui. Começo a pensar como eu as preencheria, como escreveria

nestas paredes com as minhas canetas multicoloridas; escreveria

minhas histórias, versos, meus e dela e penso nela…só consigo pensar

nela. Saudades? Será mesmo que tenho saudades dela? Aqui me sinto

tão só, precisando de alguém para segurar a minha mão, confortando,

dizendo “tudo vai ficar bem” “logo você estará em casa”. Casa. Sinto

saudades de um lar também, mas não da casa que dividi com ela, mas

o lar dos meus pais, que abandonei batendo a porta após uma briga.

Sinto falta da minha mãe, como sinto a sua falta, mesmo com todas as

nossas diferenças, mesmo ela nunca tendo se conformado e das nossas

discussões. As brigas dela com o meu pai porque não queria que ele

apoiasse a minha opção… que falta me faz agora o meu pai, vejo

aquele rosto bondoso piscando o olho para mim e dizendo: “deixa, logo

LÍRICA GREGA

CANALSUBVERSA.com

23

ela se acalma”. Lembro o escândalo que a minha mãe fez quando

levei minha namorada para um almoço de família, coitada tinha

vergonha. Hoje eu entendo, na época só achava que ela tinha de

aceitar e ponto. Agora até consigo compreender, era mesmo difícil, os

comentários, as tias olhando com aquela cara de reprovação,

reprovando mais a minha mãe do que a mim, pois afinal culpavam-na

e diziam que ela não soube me criar.

Será que demoram ainda muito? Engraçado eu estar ansiosa

para passar por isso… eu não quero ficar sem meu…nem consigo ainda

pensar direito nisso, definitivamente não quero passar por isso, mas qual

a alternativa? Deixar que tome conta do meu corpo? O doutor disse

que hoje há implantes muito bons, fica igualzinho… de repente,

aumentar a autoestima, me sentir mais mulher…está aí, eles nunca

entenderam que eu era ainda uma mulher, com toda a minha

feminilidade, será que agora vou mesmo me sentir menos feminina,

menos mulher? Será mesmo isso um castigo? Eu li num desses artigos

que a opção de não ter filhos aumenta a chance de desenvolver a

doença. Fui eu que procurei isso? Eu lembro que uma vez nós

queríamos, até conversamos na possibilidade de um doador… mas qual

ficaria grávida? Eu logo descartei a possibilidade, estava numa fase de

vida de muito trabalho e confesso que nunca tive o sonho de ser mãe…

será mesmo isso possível, a mulher foi feita para parir, essa é a nossa

função?

E se a minha história com ela não tivesse durado tanto tempo?

Meu pai consolava a minha mãe afirmando que era passageiro “são

experiências da juventude, logo ela enjoa, conhece um rapaz e vai

encher a casa de netos”… minha mãe morreu esperando por isso, ela

até me perdoou, conviveu cordialmente com a minha companheira,

mas nunca se conformou. Coitada rezava todas as noites para a Virgem

Maria me dar juízo. Virgem Maria, a mãe de todas as mães… queria

CANALSUBVERSA.com

24

rezar para ela também, mas não sei se ela me ouvirá, andei tão

distante…e não sei se tenho o direito…no fundo me culpo, mas por que

me culpo? Não lutei a vida toda pelo direito de ser quem eu sou, fui

uma boa pessoa, cumpridora de meus deveres… será que ela que foi o

meu grande amor também se sentia culpada? Ela que sempre foi tão

mais forte do que eu…e agora me sinto tão frágil, culpada… mais do

que me senti durante a vida toda.

Quando descobri a doença... Doença, é assim que eu chamo,

tenho medo do seu nome, como se fosse ficar mais doente se eu disser

câncer, sim tenho um tumor no seio que vai obrigar-me…preciso ser

forte, corajosa, afinal não é difícil só para mim, quantas não passam

pelo mesmo que eu? O médico até comentou que eu tive sorte, pois

descobri a tempo… sorte, se isso for sorte eu não sei dizer o que é azar.

Talvez, na lógica médica isso é ter sorte, mas como posso sentir-me uma

afortunada, se vou ser mutilada, retirar o meu símbolo, sempre fui tão

elogiada por ter belos seios… uma vez ela até escreveu uns versos neles

e achou tão bonito que insistiu para que eu fizesse uma tatuagem. –

Nunca – protestei - gostava deles assim, da pele sem nenhuma marca…

e agora, vou ficar marcada pelo resto da vida, será que o implante fica

mesmo bom?

Logo que sair deste hospital… detesto este cheiro de remédio

misturado com suor…estas paredes brancas, tão brancas que faz sentir

um vazio… logo que sair vou consultar um cirurgião plástico… isto não

há de ser nada, vai passar… como passou a dor por tê-la perdido, foi-se

embora… apaixonou-se por um professor especialista em lírica grega,

me senti duplamente traída, sabia que o romance começou quando lia

com o seu ar provocatório os mesmos versos…pensei em ligar, mas

depois desisti. Não quero pena, é o pior sentimento. Só queria uma

mão… uma mãe… mas, tenho que ser forte… vai passar.

TÂNIA ARDITO é cofundadora e editora do Canal Subversa.

CANALSUBVERSA.com

25

MORGANA RECH

PORTO ALEGRE, RS, BRASIL

Acordar subitamente assombrada pela tontura e descobrir que

aquilo tudo estava acontecendo era como respirar dentro de uma

sacola plástica. A dor na garganta penetrou pelo rosto e, depois, pelo

corpo, adormecendo a pele por onde passou.

Do espaço que consegui abrir nas pálpebras, pude ver um céu

encoberto e poluído. Fazia muito calor.

Percebi que um líquido vinha da minha camisa e pingava, denso,

no chão. Vinham das costas, pois eu estava sendo carregada por dois

homens robustos, um pelos pés, outro pelas mãos.

A comunicação tornou-se impossível quando parei de ouvir o que

eles diziam para apenas ouvir o ar entrando e saindo dos meus

pulmões. Lembrei-me de quando fiz um mergulho numa praia do Rio de

Janeiro. Desci três metros para o fundo do mar e a sensação de

calmaria era exatamente a mesma. Não fosse o calor que saía e

entrava cada vez mais forte pelo meu corpo, numa onda de ebulição

JECI

CANALSUBVERSA.com

26

frenética, eu poderia jurar que me levaram para lá de novo, para a paz

que havia nas profundas águas marítimas.

O calor ficou insuportável quando caí para fora. Pensei que me

fosse ver livre e chegar à superfície, respirar, descobrir que era a

aproximação com o Sol que estava esquentando a subida. Mas tudo

piorou quando o carro começou a acelerar mais e mais. Foi por uma

corda que me dirigi lenta e penosamente à morte.

Do fundo do mar para o pior dos contatos com a terra, tive

naquele momento a consciência de tudo.

O sangue dos tiros rapidamente se fundiu com os da pele, que

derreteu a roupa ao passar pelas fibras de tecido. Algumas pessoas se

aproximaram, tentando me ajudar a fazer uma pausa na viagem.

Ouvi mais tiros. Neste momento perdi outra vez a consciência e

não saberia dizer ainda se eram novos ou antigos os tiros que ouvi

naquele momento, pois aos poucos me acostumei com eles.

Ao reabrir as pálpebras, desta vez um pouco mais, a imensa luz

amarela e quente tomou conta do meu corpo para sempre.

Amortecida, não valia mais a pena tentar entender para onde fui em

concreto. Permiti, como se fizesse parte da luz solar, que as mais altas

temperaturas finalmente estivessem em paz comigo e me levassem

para onde bem entendessem.

Derreti-me por completo.

A minha vida, igualzinha a minha morte, foi uma luta belíssima.

MORGANA RECH é cofundadora e editora do Canal Subversa.

CANALSUBVERSA.com

27

Responsáveis técnicas:

MORGANA RECH E TÂNIA ARDITO

Recepção de originais:

[email protected]

Diretrizes para publicação:

WWW.CANALSUBVERSA/DIRETRIZES