revista subversa vol 4 nº6 abril2016

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SUBVERSA ANDERSON FREIXO GRINGO CARIOCA EDSON DUARTE MARLON VILHENA VAGNER SILVA GLAUBER COSTA EDSON AMARO EBER S. CHAVES GUILHERME ANICETO SÉRGIO SANTOS Vol. 4 | n.º 06 | abril de 2016 ISSN 2359-5817 Ilustração | NEAL PICKHAVER

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Page 1: Revista subversa vol 4 nº6 abril2016

SUBVERSA

ANDERSON FREIXO

GRINGO CARIOCA

EDSON DUARTE

MARLON VILHENA

VAGNER SILVA

GLAUBER COSTA

EDSON AMARO

EBER S. CHAVES

GUILHERME ANICETO

SÉRGIO SANTOS

Vol. 4 | n.º 06 | abril de 2016 ISSN 2359-5817

Ilustração | NEAL PICKHAVER

Page 2: Revista subversa vol 4 nº6 abril2016

2

WWW.FACEBOOK.COM/CANALSUBVERSA

@CANALSUBVERSA

[email protected]

Subversa | literatura luso-brasileira |

V. 4 | n.º 06

© originalmente publicado em 01 de abril de 2016 sob o título de

Subversa ©

Edição e Revisão:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações

NEAL PICHAVER| PORTFÓLIO | FACEBOOK | BEHANCE

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados

como autores desta obra.

Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos

textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem

com a realidade.

Page 3: Revista subversa vol 4 nº6 abril2016

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ANDERSON FREIXO | ACIDENTE DE TRÂNSITO | 6

EBER S. CHAVES | PÉ MÃO CÉREBRO | 9

EDSON AMARO | POR QUE AMO OURO PRETO? | 11

EDSON DUARTE | CINCO ESTUDOS PARA O RETRATO DE UM

PÁSSARO | 13

GLAUBER COSTA | GODOFREDO E O ESPELHO | 17

GRINGO CARIOCA | AS NAVILOUCAS | 27

GUILHERME ANICETO | RUA CHEIA | 29

MARLON VILHENA | TEMPORADA DE ANDORINHAS| 31

SÉRGIO SANTOS | PEDIR PARA NÃO ROUBAR | 37

VAGNER SILVA | COSTURA AMOROSA | 41

SOBRE NEAL PICKHAVER: pintura digital, surrealismo e capas

para LP´s | 43

SUBVERSA

Page 4: Revista subversa vol 4 nº6 abril2016

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EDITORIAL

“A indústria cultural perfidamente realizou o homem como ser

genérico.”

Adorno, Indústria Cultural e Sociedade.

Hoje, que é dia da mentira, optamos por revelar a verdade: a Subversa

é uma réplica. Sim, isso mesmo que você acaba de ler, uma comum e

proveitosa réplica.

A réplica é necessária, “os poetas discursam em réplica uns para os

outros, em aparte no meio do discurso geral do mundo” 1. É através dela que a

literatura tem a oportunidade de se renovar incessantemente. A réplica

permite que se diferencie o objeto estético do mero objeto didaticamente

reproduzido, fomentado pela indústria cultural. É ela que permite o surgimento

daquela vontade de ir numa direção um pouco diferente (contrária, lado a

lado, sobreposta, transposta, etc.) e encontrar o ponto ainda mais importante

de toda a arte: a autenticidade, a irrepetibilidade, que faz nascer na forma

artística a sua própria verdade, independente da distância que tomou do

objeto antigo. Uma réplica que se preze acaba por deixar de lado a própria

influência; acaba, portanto, por recusar-se a ser cópia.

A literatura é uma forma de evitar o constrangimento da reprodução

pela reprodução, uma oportunidade de revelar o inexprimível e o irrepetível,

de oferecer ao espectador algo para saborear, num tempo em que a

indústria cultural nos dá mais e mais motivos para engolir calados. Se, daqui

dez ou vinte anos, depois de muito trabalho, tivermos conseguido passar essa

única e singela mensagem, poderemos descansar tranquilas.

Neste número, estamos subvertendo um pouco a própria Subversa: o

ilustrador, Neal Pickhaver, é do Reino Unido; trabalha com pintura digital,

produz capas para EPs e, eventualmente, design de tatuagem. Desejamos a

todos uma boa leitura.

As editoras.

1 Alberto Pimenta. O Silêncio dos Poetas.

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ANDERSON FREIXO | Salvador, BA.

Você pode ser bonita

inteligente, cuidadosa

e ter uma pele sedosa

mas também tem uma perna maior

que a outra

como eu tenho

porque viemos ambos

do mesmo barro

do mesmo erro

do mesmo espirro

do mesmo esporro

do mesmo urro

do mesmo jorro

do mesmo tiro

do mesmo berro

do mesmo barro

Somos tortos, antemortos

Acreditamos no mesmo deus

Pagamos na mesma moeda

Colamos as mesmas figurinhas

ACIDENTE DE TRÂNSITO

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Em dois álbuns diferentes.

em mamilos mamamos ambos

ambos mijamos ambos cagamos

A sujeira da minha casa é a mesma da sua cama

Vivemos variações de uma mesma vida,

A única possível e existente

A porta da minha casa dá pro seu mundo

E de sua janela você encara o meu.

Somos cópias mais desgastadas do que fomos ontem

e mais estúpidas que as cópias que seremos amanhã

E, muito em breve, depois da derradeira cópia,

nossos corpos vão virar outros corpos, de outros seres

Enfim, você não está esperando o ônibus, querida, você está

esperando o

fim.

ANDERSON SOARES FREIXO é carioca, tem 25 anos e reside atualmente

em Salvador, onde estuda Letras. Já teve contos publicados por outrass

revistas, como Mallarmargens, Samizdat e Desenredos. Atualmente

publica seus textos no blog zonadofreixo.blogspot.com e em sua página

do Facebook (Zona do Freixo). | [email protected]

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EBER S. CHAVES | Vitória da Conquista, BA.

Veja aquele bicho caindo da árvore genealógica:

Senta

Alerta!

Postura ereta.

Caminha sobre os pés

Zanza da floresta à savana

PÉ MÃO CÉREBRO

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Mexe as pernas maiores e mais poderosas

Corra da fera!

Cabeça agitada no topo da coluna vertebral

Olha lá no céu aquela nuvem em forma de elefante

Olhe agora seus dois pés

Eles estão caminhando correndo pulando

E esse jeitoso polegar disposto em relação aos outros dedos?

Veja, olhe suas duas mãos!

Elas estão livres e prontas a intervirem e controlarem o mundo

Segura carrega apunhala agarra manipula.

O custo da evolução alargou-se ainda mais

Pé mão cérebro

Viva o progresso!

EBER S. CHAVES (Itaquara, 1979) atualmente reside em Vitória da

Conquista/BA. Graduado em Administração, é blogueiro, apreciador de

psicanálise, filosofia, poesia, literatura fantástica, filmes de ficção e

fantasia, rock’n’roll, cervejas especiais e feijoada. | http://eber-

chaves.blogspot.com.br/ | [email protected]

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EDSON AMARO| São Gonçalo, RJ.

"Para Guilherme Ferreira Aniceto e Fabio Ferreira, lindo e feliz casal".

Por que amo Ouro Preto? Sendo ateu,

Em seus templos respiro a fé perdida

E nas ladeiras tortas como a vida

Piso as dores que a vida já me deu.

Piso as pedras pisadas por Dirceu.

Menos que a sua, mia lira vai sentida

Por trilha que é também menos florida

Mas em pedras equivale o vale meu.

Não repito, Marília, não repito

Como Gonzaga os verbos de meu verso

Nem redondilhas deixo-te expedito.

Se Vila Rica em versos eu converso

É por acalentar sonho bendito:

Em pastor despertar um dia converso.

(17 e 18 de outubro de 2015)

EDSON AMARO DE SOUZA é professor de Língua Portuguesa na rede pública

estadual do Rio de Janeiro. Publicou pela editora Buriti sua tradução do

romance "Valperga", de Mary Shelley e no site Amazon, em formato e-book,

sua tradução da tragédia "O Rei Saul: Davi em Gilboé" de Vittorio Alfieri. |

[email protected]

POR QUE AMO OURO PRETO?

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EDSON DUARTE | Campinas, SP / Dublin, Irlanda.

I

Não tenho asas

mas sei o tormento do pássaro.

Confabulo com a chuva

e há muito canto meu canto.

Sou mudo

raras vezes

canto.

O peso do silêncio

me abate quando

menos espero.

Das cinzas do meu sonho

renasço pássaro.

II

Coleciono penas

feito criança implume.

Afogo

minhas mágoas

meus desafetos

no sonho de ser pássaro.

CINCO ESTUDOS PARA O

RETRATO DE UM PÁSSARO

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III

Conheci as cinzas

do fogão à lenha.

Desde menino

armei arapucas.

Meu pai pagava

para eu soltar

os passarinhos.

Conheci desde cedo

a angústia de ser preso

desespero e medo.

Hoje

das cinzas do que fui

construo o pássaro.

IV

Um canto

nunca se esquece.

Ecoa até a alma.

Floresce

feito flor implume.

Nunca fenece.

V

Do bem-te-vi

guardo o canto.

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Essa dor de estar

preso a um corpo.

E outros trinados

mais graves

menos amenos

que o grito

de um ser humano.

SOLO

O pássaro que fui

canta em bem-te-vi.

Ai, bem-te-vi, ai ai.

O canto que ouvi

Rubro longe daqui.

Ai, bem-te-vi, ai ai.

O canto que eu vi

Triste-alegre nada ali.

Ai, bem-te-vi, ai ai.

EDSON COSTA DUARTE (Pratápolis, MG) estudou letras na Unicamp (1988-1991),

fez mestrado sobre a obra de Clarice Lispector (1992-1996) na mesma

universidade, e doutorado na USFC (2002-2006), sobre a poesia de Hilda Hilst.

Entre 2007 e 2009, fez pós-doutorado no IFCH, Unicamp, sobre e prosa de Hilda

Hilst. Escreve poesia e prosa há muitos anos, tendo publicado quatro livros:

Diário de um P.M.D. ou Diário de um diagnóstico (CBJE, 2008); Lírica impura III

(CBJE, 2008); Cartas para o Nunca (Madio Editorial, 2010); Líricia impura I

(EDUFSC, 2011). Publicou também vários textos em sites da internet e em

revistas impressas. Trabalha com preparação e originais, revisão de textos e

aulas particulares de português desde 1996. Corrigiu as redações dos

vestibulares da Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente vive em

Dublin, desde outubro de 2015. | [email protected]

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GLAUBER COSTA | Ubatã, BA.

Aquela não era uma situação da qual dava para ficar ignorando.

Godofredo andava com dificuldade de enxergar o seu próprio

reflexo no espelho. Estava com dificuldade de se enxergar em qualquer

GODOFREDO E O ESPELHO

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superfície espelhada. Fosse em janela de ônibus, em vitrine de loja, ou

até mesmo diante da tela da TV desligada, o fato é que ele não estava

mais conseguindo distinguir bem o seu reflexo.

Apenas nos momentos em que parava para se olhar no espelho

do banheiro é que conseguia ver a sua imagem claramente. Por conta

disso, com o passar dos dias, Godofredo, para se sentir seguro, passou a

ficar, todos os dias, minutos inteiros ali, contemplando a nitidez de sua

imagem, trancado no banheiro. E muitas vezes, lá, reflexivo, chegava a

considerar que poderia bem ser coisa da idade. Tinha quase setenta

anos.

Apesar de tratar-se de uma questão totalmente particular, para a

qual a solução deveria ser a procura de um médico, Godofredo

começava a sentir alguns efeitos sociais daquela sua nova experiência.

Sobretudo nas vezes em que tinha que passar diante de algum espelho,

junto com outras pessoas, e acabava enxergando o reflexo de todos,

menos o dele. Isso sempre lhe dava certa aflição, que o obrigava a

andar mais rápido ou a disfarçar de algum outro modo.

Dias atrás mesmo, aconteceu de estar sentado em uma pracinha

movimentada, e um carro preto, brilhoso e espelhado, estacionado à

sua frente, refletir a imagem de todo o movimento da praça, exceto a

dele. Ele, então, antes que alguém notasse aquilo, olhou para todos os

lados e fugiu rapidamente para casa.

Para evitar essas situações, Godofredo passou a sair cada vez

menos e a voltar cada vez cedo para casa.

E sempre que estava lá, de hora em hora, ficava repetindo

aquele ritual de ir conferir a nitidez da sua imagem no espelho do

banheiro. Lá ela se encontrava, como sempre, firme e completamente

nítida. Só que isso não deixava de ser espantoso, visto que, desse modo,

a invisibilidade estava sendo seletiva.

Diante disso, passou também a ficar testando o seu reflexo em

todas as superfícies espelhadas da casa, o que o levou a descobrir,

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após alguns dias, que a quantidade de êxitos na exibição de sua

imagem estava diminuindo.

Na solidão das noites, deitado em sua cama, Godofredo

começava a pensar em contar tudo para alguns familiares e amigos.

Mas sempre lhe surgia o receio de simplesmente o taxarem de caduco,

e acabava dormindo sem se decidir.

Um dia, pela manhã, tomou coragem de puxar assunto com o

amigo vizinho, porém, sem conseguir chegar ao ponto desejado,

limitou-se a falar sobre a velhice de modo geral.

Eles eram quase da mesma idade e o amigo sempre dava tom

bem humorado quando falavam sobre a terceira idade; o que o fez

pensar em aproveitar tal tom para expor a dificuldade de enxergar o

reflexo. Mas naquele dia o amigo estava meio apressado e ele

permanecia hesitante. Talvez fosse melhor procurar mesmo um médico.

Concluiu, pensativo. E mesmo depois de o amigo já ter ido embora,

Godofredo continuou ali, parado, sozinho, na porta de casa, ainda

pensativo.

Quando retomou a consciência, respirou fundo e decidiu

caminhar um pouco.

No caminho, começou a ponderar que talvez pudesse ser, afinal,

algum problema nos olhos. As pessoas da sua idade geralmente o

tinham. Resolveu, então, testar a sua visão em superfícies opacas

também. Às vezes, a visão embaçava, de fato. Mas não era sempre. E

nada ficava tão invisível quanto os seus reflexos.

Seguindo pelas ruas, assim, atento a tudo, acabou flagrando,

pela fresta de uma janela, uma senhora arrumando vários espelhos pela

casa. E como demorasse tempo demais olhando para aquela cena,

hipnotizado pela quantidade de espelhos que aquela mulher possuía,

imaginando-a a se olhar em cada um deles durante os seus dias,

acabou sendo flagrado por ela, que se mostrou um tanto irritada, por

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estar sendo observada com aquela insistência. Ele corou,

envergonhado, e seguiu adiante.

Mais à frente, do outro lado da rua, viu um senhor idoso receber

um carregamento por caminhão. Tratava-se de uma entrega de muitos

espelhos. Godofredo, achando aquilo coincidência demais, parou e

ficou olhando, com interesse. Mas novamente foi notado, e recebeu do

homem um aceno negativo com a cabeça.

Horas depois, em casa, batidas na porta o acordaram de um

torpor de pensamentos. Era o carteiro. Godofredo, ainda distraído,

pensou em comentar algo sobre aquilo. Mas, a tempo, reconheceu a

ideia como tola. Resolveu, então, que daquele dia não passaria a ida

ao consultório. Despediu-se do carteiro, com uma estranha

cordialidade melancólica.

Entrou em casa e abriu o envelope. Dentro, havia uma carta de

alguém que dizia ser seu parente, mas que não se identificava. Apenas

comunicava que iria chegar uma encomenda de espelhos para ele. E

no final, fazia uma despedida emocionada, que Godofredo não

compreendia bem.

Aquilo o fez pensar mais uma vez em telefonar para alguém. Mas

estava convicto de que não lhe dariam crédito.

Dirigiu-se, então, meio mecanicamente, para a janela, a ficar

olhando, absorto, o movimento da rua. E lá viu o seu amigo vizinho

carregando um espelho com fios. Parecia um objeto eletrônico

diferente. Godofredo, surpreso, esfregou os dois olhos e logo

reconheceu que havia sido só impressão sua. Na verdade, era um

espelho e um computador sendo carregados juntos. Achou que aquilo

estava desgastando a sua mente. Foi tentar dormir.

Sonhou que todas as pessoas, de todas as casas por onde

passava, olhavam-se em espelhos ligados em tomadas. Todas elas

demonstravam alegria por estar se enxergando. E ofereciam olhares

esporádicos de piedade para ele.

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No outro dia, acordou tarde e com dor de cabeça. De mau

humor, decidiu evitar espelhos, por ora; pelo menos até que

conseguisse ir ao consultório. Porém, tratava-se de um desafio difícil

agora que aquilo havia ganhado aquela dimensão. Acabou, sem

querer, vez ou outra, durante o dia, deparando-se com superfícies

espelhadas. Não só. Foi também notando que estava ficando ainda

mais raro encontrar uma que o refletisse.

Mais tarde, à noite, com o esfriamento dos ânimos, Godofredo

resolveu conferir direito aquilo, sem medo. E dessa vez pareceu

definitivo: Nenhum espelho da casa o refletia mais. Nem o do banheiro.

Era hora de procurar ajuda. Quem sabe não estivesse ficando cego ou

doido? Com o coração acelerado de medo, sentou-se na sala.

Como não encontrasse saída lógica para aquilo, deu nele um

repentino furor improvisado, que o fez juntar vários espelhos na sua

frente, para ver se, pela quantidade, forçava a formação de sua

imagem refletida.

Funcionou! Surgiram, aos poucos, várias imagens dele, nos vários

espelhos. Porém, elas se mexiam muito e acabaram deslizando para um

único espelho, dando forma a um único reflexo, que foi ficando

borrado, até sumir.

Com raiva, quebrou todos os espelhos que havia juntado. E

acabou se cortando.

O corte interrompeu o furor. Foi, então, tentar sanar a dor e

descansar, porque estava ficando muito cansado, estava lhe

chegando uma sonolência estranhamente hipnotizante. Adormeceu.

No outro dia, acordou muito tarde, perdendo a hora de ir ao

consultório médico sem pegar longas filas. Ficou em casa, no quarto. Iria

amanhã.

Na ociosidade da tarde, enquanto almoçava, com umas

colheradas distraídas, notou que havia um espelho enorme deixado em

cima da mesa. Não se recordava de ter colocado aquele objeto ali.

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Talvez tivesse esquecido lá durante a irritação anterior. Notou, no

entanto, que a moldura daquele espelho era muito diferente da dos

que ele tinha em casa. Aliás, só agora se dava conta de que não tinha

tantos espelhos em casa. E que todos aqueles que ele quebrara eram

de uma quantidade absurda. De onde eles vieram?

Lembrou-se da carta do parente. Da encomenda que ia chegar.

Levantou-se, no intuito de perguntar a alguém lá fora se teriam visto

alguma entrega chegar à sua casa ou se alguém tinha entrado

enquanto ele dormia. De pé, deu-se conta de que a cozinha estava um

pouco escura, ainda que não estivesse anoitecendo. No caminho para

acender a luz, colocou a louça do almoço na pia. Foi quando flagrou.

Outro espelho estava brotando do ralo da pia. Parecia ter saído por

osmose.

Esfregou, então, os olhos para se desfazer daquela alucinação,

mas só conseguia ver os seus próprios olhos refletidos ali, naquele objeto

nascido do nada.

Como estava escuro, atribuiu aquela ilusão de brotamento ao

susto de ter encontrado um espelho dentro da pia. De todo modo, não

deixou de continuar dando passos discretos para trás. Até que, em

certo ponto, viu, na parede ao lado, mais um espelho. Esse, agora,

estava saindo do concreto, a oferecer a imagem do seu rosto

espantado, bem de perto. Fugiu rapidamente da cozinha.

Chegando à sala, boquiabriu-se. A sala estava infestada de

espelhos. Eram espelhos de todos os formatos e de tamanhos variados.

E todos, agora, refletiam-no muito bem, deixando-o tonto. Os espelhos

pareciam se mover.

Sem se desfazer da tontura da visão, distinguiu o celular na mesa

da sala e pegou-o para ligar para alguém. Porém, quando o segurou,

olhando diretamente para a tela apagada, a tontura aumentou, pois

surgia, a partir da tela, uma progressão de reflexos advinda de um outro

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espelho às suas costas. Um bem maior. Quase do tamanho da parede.

Deixou o celular cair da mão.

Como a tontura persistia, Godofredo resolveu sair, rapidamente,

de casa para buscar ajuda, sentindo, no fundo, certa esperança de

que, se alguém tivesse mesmo colocado aquilo tudo ali, pelo menos

deveria estar por dentro do seu problema e, quem sabe, da solução.

Mas, chegando à sala de entrada, um susto maior lhe acometeu.

A porta da casa, que antes era de madeira, estava toda de vidro. E era

agora um espelho, sem nenhuma fechadura. Tentou empurrá-la. Mas o

material era muito grosso e pesado. Não saía do lugar. Buscou, então, a

janela. E esta também estava assim, sob forma de vidro pesado, grosso,

espelhado. Respirou fundo, passou as duas mãos pelo rosto e olhou

para cima. O teto também estava de vidro. Desesperou-se.

A passos rápidos, percorrendo a casa à procura de uma saída,

confirmou: toda a casa estava repleta de espelhos. Não só. Até mesmo

algumas paredes estavam puramente espelhadas. Gritou por socorro.

Sem resposta por infinitos minutos, começou a esmurrar uma das

paredes. Mas logo lhe doeram os punhos e os dedos. Reconheceu-se

completamente preso. Berrou. Chorou forte feito uma criança. Chorou

muito, como se pedisse ajuda pelo soluço, em uma reação de

incompreensão diante daquilo tudo. O que o fez cansar, até encostar o

corpo no material frio.

Silêncio. Ninguém do lado de fora. Pior, tentou ouvir qualquer

barulho e não ouvia nada. Nem mesmo os barulhos comuns da rua.

Ergueu-se apenas quando, minutos depois, teve a ideia de

procurar um martelo ou algum outro objeto para quebrar aqueles

vidros. Atordoado, pegou uma ferramenta qualquer e começou a bater

em uma parede. Animou-se, quando começou a ouvir o estalar de

vidro se quebrando. Porém só foi perceber tardiamente que até mesmo

os objetos eram agora de vidro espelhado, e o que estava se

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quebrando não era a parede, mas a chave de fenda em sua mão,

agora ferida.

Abriu a caixa de ferramentas e todas eram feitas de espelho, que

refletiam, em conjunto, para ele, o seu rosto velho e assustado.

Despejou todas no chão.

O barulho de vidro quebrando despertou-lhe o ímpeto de

quebrar todos os espelhos menores, todos os espelhos possíveis de

serem quebrados. Saiu, então, pelos cômodos, quebrando tudo,

aleatoriamente.

Após ter quebrado muitos, respirou fundo e sentou-se no chão,

aflito, fadigado.

Depois, erguendo a cabeça lentamente, viu que as paredes em

que antes estavam os espelhos menores, que havia quebrado, eram

agora todas de vidro. Agora a casa inteira era um jogo de reflexos, que

o deixava entontecido.

Estava preso ali na multiplicação de sua própria imagem.

Lembrou-se do telefone, dos amigos, da família, do consultório, dos

números de emergência, quando viu que o celular também havia se

tornado vidro e se partido. Desesperou-se por dentro, achando aquilo

loucura. E no meio daquela confusão em sua cabeça, começou a

jogar o próprio corpo contra as paredes, em desespero. Ia de encontro

ao próprio reflexo e se batia. Primeiro, com algum cuidado, e um tanto

desajeitado, pelo corpo já marcado pela idade; depois tombando

forte, se machucando, até cansar e desmaiar.

Cansado e dolorido, acordou, horas depois, e começou a se

arrastar pela casa, adormecendo e despertando durante o rastejo.

Num desses despertares oscilantes, viu um movimento estranho ao seu.

Procurou, ao redor, com os olhos machucados, até conseguir ver, de

relance, outra vez. Perdeu-o de vista! Mas sorriu, nervosamente, como

se tivesse encontrado algo além do seu reflexo.

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Sentou-se no chão da sala e viu, sem procurar, alguns pedaços

de fios saindo pelo espelho contra o qual tinha se batido.

Levantou-se com dificuldade e foi na direção dos fios soltos.

Agarrou um e começou a puxar. Era grande. Puxou com mais força. Era

fácil de sair, mas parecia infinito. Pegou, então, a ponta de outro fio. A

mesma coisa. Teve a ideia abrupta de puxar as duas pontas, esticando-

as para os lados, abrindo os braços forçadamente; o que, por fim,

resultou no rasgar daquela parede.

Empolgado pelo êxito, quis repetir aquilo em todas as paredes da

casa, já pressentindo sua libertação. Mas logo desistiu, quando notou

que, após quebrar a primeira parede, o espaço vazio, que ficou,

continuava refletindo, sem que se conseguisse ver o lado de fora da

casa.

Passou, resoluto, por cima dos cacos de vidro e dos fios,

escombros da parede rasgada. Mas mesmo indo para frente, tudo o

que via era seu próprio reflexo, como se não saísse do lugar. Parou,

olhou para trás e deu de cara com um céu noturno estrelado dentro de

sua sala. Esse céu parecia tão próximo, que Godofredo acabou

sentindo, sem conseguir evitar, a vertigem da sua própria dimensão.

Esfregava os olhos e a visão não saía.

Parou de olhar para aquele espaço sideral que o enlouquecia e

voltou-se para as outras paredes. Mas estas também pareciam estar

começando a formar imagens.

Com medo, ele começou a arremessar todo o vidro que

encontrava pela frente em direção às paredes. O que, nos primeiros

golpes, parecia inútil. Porém, de tanto insistir, percebeu que os objetos

se quebravam cada vez mais longe, cada vez mais profundamente

para dentro dos espelhos. Aproveitou, então, para correr rumo à

profundidade.

Correndo, sentia-se quebrando com o corpo inteiro alguns

espelhos muito finos e leves em seu caminho, que iam deixando

Page 26: Revista subversa vol 4 nº6 abril2016

26

pedacinhos de vidro cortantes em sua pele. Até que, após algum

tempo dessa insistência cega, as barreiras acabaram e, quando menos

esperava, deu de cara com a rua.

Todo dolorido e aliviado tinha, enfim, chegado à saída. E lá

estava o mundo. Era mundo para todo lado. Estava livre para pedir

ajuda.

Mas, poucos segundos depois, quando olhou para o próprio

corpo, Godofredo agora era de vidro. E, dele, pendiam fios interligados

a outros vidros pela rua. Vidros grossos e resistentes, dentro dos quais, ele

conseguia distinguir, embora um tanto embaçados, aquela senhora

que dias atrás ele vira arrumando espelhos em casa, aquele senhor que

recebera um caminhão de espelhos de encomenda e o seu amigo

vizinho. Todos com olhares paralisados, como se estivessem mortos, em

uma mistura bizarra de reflexo e fotografia.

Agora, Godofredo, todo no vidro fechado, nunca mais iria mesmo

conseguir enxergar a sua própria imagem envidraçada. Somente as

imagens dos outros. Todas elas, para ele, mórbidas, paralisadas, pois

não reagiam, nem jamais reagiriam, a todos aqueles seus socos

espelhados, eternos e emparedados.

Atrasados, alguns dias depois, bombeiros arrombaram a porta, à

procura de Godofredo. Mas não o encontravam. O que viram mesmo,

um tanto intrigados, foi apenas um espelho pequeno de vidro

escurecido, em cima da sua cama, virado para cima, todo rachado.

GLAUBER COSTA publicou as crônicas “No longe, no dentro” e “Gênese”,

ambas pela Coletânea Eldorado, da Celeiro de Escritores. Publicou o conto

“Meu velho” na Revista Subversa, texto que faz parte do primeiro volume

impresso. Escreve no blog glauber-manuscritos.blogspot.com.br e na Fanpage

do Facebook chamada Manuscritos. | [email protected]

Page 27: Revista subversa vol 4 nº6 abril2016

27

GRINGO CARIOCA| Rio de Janeiro, RJ.

as naves conquistaram o mar,

para não sermos apenas terrenos;

as aeronaves conquistaram o ar,

para não sermos apenas terrestres;

as espaçonaves conquistarão Marte,

para não sermos apenas terráqueos;

as naviloucas conquistarão a arte,

para não sermos apenas terríveis...

AS NAVILOUCAS

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GRINGO CARIOCA é uma figura ambivalente, intermediária e transcultural da

América do Norte ao Sul, radica(liza)do na metrópole pré-pós-moderna do Rio

de Janeiro, ex-capital do Brasil. É autor do livro Reflexos & reflexões (Oito e

meio, 2014) e tem poemas publicados na antologia Novos talentos da

literatura brasileira - Poesia, contos e crônicas (Confraria de Autores, 2014) e

em revistas como Plástico Bolha, Mallarmargens e Otoliths. Participa em saraus

e eventos como o CEP 20.000, e já expôs a sua obra no Museu de Arte

Contemporânea (Niterói - RJ) e, mais recentemente, no Museu da Língua

Portuguesa (São Paulo - SP), como integrante da exposição Poesia Agora

(2015). É, também, o alter-ego do americano naturalizado brasileiro Marco

Alexandre de Oliveira, Doutor em Literatura Comparada e Mestre em Línguas e

Literaturas Neolatinas pela Universidade da Carolina do Norte (EUA).

Atualmente é escritor, tradutor e professor de Letras da PUC-Rio. |

[email protected]

Page 29: Revista subversa vol 4 nº6 abril2016

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GUILHERME ANICETO | Itajubá, MG.

A chuva desceu com gosto.

Na rua cheia, só se caminha se quiser se molhar.

Na rua cheia, a água invade as casas, a água limpa mas suja.

A dita cuja (a chuva) não dá trégua.

RUA CHEIA

Page 30: Revista subversa vol 4 nº6 abril2016

30

Desce, gostosamente desce.

Entra, forçosamente entra onde não é desejada.

E o imposto, por onde escorre nessas enxurradas?

E a obra prometida, o nivelamento da rua, quando começa?

A dita cuja (a chuva) não tem força política.

GUILHERME FERREIRA ANICETO (Minas Gerais, 1991), Bacharel em

Administração de Empresas pela Universidade Federal de Itajubá,

poeta, autor de “nós líricos”, livro de poemas publicado pela Editora

LiteraCidade em 2015. | [email protected]

Page 31: Revista subversa vol 4 nº6 abril2016

31

MARLON VILHENA | Belém, PA.

É assim que será. Eu vou pular dessa ponte e abrir os braços. O

vento vai me pegar em algum ponto, talvez logo no início da queda.

Daí eu caio, caio, e espero que os olhos comecem a lacrimejar forte.

Dessa vez é pra valer. Vou ter o baque me esperando no final. Cena de

filme, iluminação natural, sem câmeras de zoom. O melhor presente

que vou dar a mim mesmo nessa vida. Porque a gente sempre deixa o

melhor para o final, é assim que é, assim que será. Porque o cansaço

venceu, naqueles minutos finais do jogo. As andorinhas vão me

amparar depois, eu sei que vão. É, soa como alucinação, mas eu sei

TEMPORADA DE ANDORINHAS

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que, no final, elas estarão comigo. Nelas eu tenho fé. Só tenho

confiança nos pássaros hoje, têm suas penas, são perfeitos estrutura e

esteticamente, e ponto final. Deus não se importa, porque tem mais o

que fazer do que prestar atenção a essa ponte. Ele tem muito papel pra

despachar, muitos carimbos pra carimbar, agenda lotada, essas coisas.

Eu também não tenho muita conversa com ele. Nós nos deixamos em

paz, cada um com seu inferno. Eu com minhas misérias, ele com a pilha

de processos para serem processados. Fiz o que pude pra levar na boa

os dias. Os dias se tornam cinza, bem lá no finzinho, ou melhor, aqui.

Tentei ser bom, mas descobri que é preciso ter talento pra bondade, se

você não nasce defeituoso. Todos nascem com falhas, alguns têm

menos azar que outros. É difícil ser humano no sentido pleno. Na

verdade, impossível. Então que se dane. Cansei da hipocrisia. Cansei da

minha cara, das máscaras, dos escudos, dos sorrisos. Felicidade é uma

propaganda de margarina com balões e um piano ao fundo. Tudo

invencionice. Retirei o que tinha na conta do banco, enfiei num

envelope e deixei com uma senhora imunda e seus cachorros cobertos

de sarna no caminho. Pois que façam melhor proveito do que eu. A

leveza é algo a ser admirado. Ninguém escutava o que eu dizia, agora

não interessa mais. Que continuem surdos, pra mim já deu. A desistência

também requer colhões. O cansaço possui suas recompensas. O

cansaço não é para qualquer um. É preciso coragem para se cansar e

desistir, firmeza para abrir a mão e largar a corda. Sem julgamento do

mundo, por favor, sou apenas o cara de pé sobre a beira da ponte,

numa tarde comum. Sinto falta das nuvens. Vou abrir os braços e elas

não estarão lá em cima. Dessa vez vou com tudo, a gravidade faz o

resto do serviço. Um carro acabou de passar, o motorista diminuiu a

marcha, não parou, olhou para mim, seguiu o rumo. Acho até que tirou

uma foto com o celular. Tanto faz. A filha pequena dele, no banco de

trás, também olhou, disse alguma coisa ao pai, acenou um tchau. Não

respondi, não vou me meter na vida dos outros a essa altura. Uma

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andorinha pousou perto de mim. Parece me encarar com aquele jeito

neutro que elas têm de olhar para as coisas. Virou a cabeça, virou outra

vez, deu uns passos, parou, pegou uma carona no vento que passava.

Um sinal. Vai fundo, serzinho esquisito parado de pé sobre isso que você

chama de ponte. Sim, vou fundo, pode acreditar. Aproveita o vento,

ela disse, está uma delícia. Vou aproveitar, não se preocupe comigo. O

azul ficou um pouco mais cinza. Aparentemente tudo está como devia,

menos as nuvens. É delas que vou sentir falta, uma pena.

Porque a Lili é minha boneca e minha amiguinha, minha melhor

amiga, além da Raquel, eu gosto da Raquel, ela é legal, a gente brinca

juntas, a gente estuda juntas, ela gosta de desenho animado, eu gosto

de desenho animado, tem também a Juju, a gente brinca, a gente faz

bolinho de mentirinha na casa dela, a gente corre juntas na hora do

recreio, eu não gosto muito é dos meninos, eles tão sempre esfregando

o nariz, se sujando todos, querendo mostrar o piu-piu deles, não sei por

que eles têm mania de mostrar o piu-piu pra gente, aquela coisinha feia

que parece um amendoim, outro dia eu comi amendoim, na verdade

não foi amendoim, foi doce de amendoim, mas tava muito gostoso,

mamãe disse que era pé-de-moleque, eu fiquei com medo, não quero

comer pé de nenhum menino, não, chorei mas a mamãe riu e explicou

que era só o nome do doce, que ali não tinha pé de moleque nenhum,

ainda bem, né, que tinha mesmo era amendoim, daí eu falei que se

fosse amendoim, eu comia, e comi, e foi gostoso, comi o pé-de-

moleque inteirinho, eu gosto muito de doce, dá uma sensação boa na

boca da gente, a Raquel disse que já tinha comido em festa de São

João, eu também gosto de festa de São João, a hora da quadrilha é

bem divertida, tem as fantasias, tem as comidinhas, mamãe disse que

eu não posso beber vinho quente, disse que é bebida pra gente

grande, eu também nem gostei do cheiro disso, mas o resto é bem

legal, tem canjica, tem musiquinha de forró, e na hora que acendem a

fogueira, caramba, é muito bonito ver a fogueira bem alta, toda cheia

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de fogo, dá muito calor, né, se a gente fica muito perto, agora tô com

saudade da Raquel, da Juju também, a Lili tá aqui comigo, ela é super

minha amiga, só que não responde quando eu pergunto alguma coisa,

o papai tá me levando pra casa da vovó, eu não sei bem porquê, ele

falou que é aniversário do vovô, eu nem sabia que gente velha como

ele fazia ainda aniversário, parece que é muito aniversário que ele já

fez, todo enrugadinho, uma vez perguntei se ele tinha tido algum

acidente e não tinham colado direto a pele dele de volta e ele riu

muito, eu não entendi a risada, eu queria saber mesmo, o vovô tem um

cheiro meio estranho, vai ver é a pele que tá descolando da cara e dos

braços e das mãos dele, mas eu gosto dele, ele é bonzinho comigo, a

vovó também, só que ela sempre fica perguntando se eu já comi, se eu

dormi bem, se tá tudo bem na escolinha, tem vezes que a vovó é um

pouquinho chata de tanto que pergunta as coisas pra mim, mas é bem

legal também, enrugadinha também e até mais bonita que o vovô, a

mamãe já tá esperando a gente lá na casa deles e sou eu que vou

entregar o presente do vovô, foi o que o papai me disse, o presente tá

aqui do meu lado, ele pediu pra eu tomar cuidado, não deixar cair nem

amassar, por isso eu olho pra ele o tempo todo, pra não deixar cair no

chão do carro. Ei, o papai parece que tá freando, será que aconteceu

alguma coisa errada, ele esqueceu alguma coisa e a gente vai ter que

voltar pra casa, hum, ele não tá parando, ele tá é olhando pra fora, tá

olhando pra beira da ponte onde a gente tá, tem alguém ali, é um

senhor que não se mexe, fica olhando pra cima, mas tá de costas pra

gente, ah, agora ele virou a cara pra cá, não sei se é normal ter gente

parada na beira da ponte assim, eu não fico ali, dá muito medo de

olhar pra baixo, não sei bem por que, mas dá, o papai perguntou

agorinha o que é que esse sujeito tá fazendo ali, acho que tirou uma

foto com o celular dele, olhei bem nos olhos do homem, a cara parece

um pouco fechada, mas acho que podia até conversar com ele, não

parece uma pessoa ruim, feito aquelas que a mamãe diz que é pra eu

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evitar na rua ou em qualquer outro lugar, só que daqui de dentro não

deve ter problema, né, acho que deve tá se sentindo meio sozinho, não

sei como é que posso saber disso se nem nunca vi ele antes, dei um

aceno e sorri um pouquinho, só um pouquinho, ele não respondeu,

pode não ter me visto, tudo bem, eu sou pequenininha, ainda vou

crescer muito, disse o papai uma vez, e vou ser mais bonita ainda do

que já sou, não sei se sou bonita, a Raquel é, a Juju também, elas dizem

que gostam do meu cabelo, eu também gosto do cabelo delas, agora

acho que nem sei se quero crescer muito, é tão legal brincar e correr e

fazer um monte de coisa divertida, gente grande não faz isso, não

brinca quase nada, não corre, só vi a mamãe correr duas vezes porque

tava atrasada pra sair pra algum lugar, acho que gente grande é tudo

meio chata, gosto mais é das minhas amiguinhas, da Lili também, gosto

de levar ela pra todo canto, gente grande devia brincar pra valer, eles

devem esquecer como é isso quando crescem demais, eu sei lá, mas

não tenho muita vontade de crescer, não, vai ver foi por isso que

aquele homem tava ali na ponte, devia tá muito sozinho, sim, podia tá

esperando alguém pra brincar com ele, agora fiquei um pouquinho

triste, bem que o papai podia ter parado pra gente brincar com ele,

não ia fazer diferença, eu acho, aliás, a gente até podia convidar ele

pro aniversário do vovô, é, seria legal, super bacana, o vovô ia gostar,

ele gosta de todo mundo, ele ri bastante, podia fazer aquele homem rir

também, o papai vai achar estranho, mas será que dá tempo de pedir

pra voltar e falar com o homem na ponte.

Ora, e essa agora, minha filha quer que eu pare pra falar com

aquele sujeito estranho, vê se pode. E convidar pra festa. Não tem o

menor cabimento um negócio desses. Falei que podia até ser perigoso,

e que ela deve sempre evitar falar com pessoas desse tipo, pessoas que

ficam sozinhas são esquisitas, podem ser muito violentas, minha querida,

não dá pra confiar. Lembra o que significa confiar, não é. Pois bem,

fique longe de pessoas assim. De repente está na hora de comprar um

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celular simples para ela levar a todo canto. Pode ser bem útil. Hoje não

dá mais para se sentir seguro de jeito nenhum, em lugar nenhum, em

hora nenhuma. Além do mais, estamos em cima da hora pra chegar à

festa. Sem condição de ficar parando pra qualquer um. Acho que

aquele cara está pensando em se matar. Tinha toda a pinta. Se é que

já não pulou da ponte, daqui não dá mais para vê-lo. Por via das

dúvidas, tirei uma foto. Pra ser sincero, sei lá o motivo de ter tirado a

foto. Curiosidade, talvez. Quem sabe reconheço ele quando a polícia

ou os bombeiros retirarem o corpo do rio e o rosto estiver estampado na

página de algum jornal, ou num site de notícias. Olha eu aqui,

pensando na morte do outro. Ai, cacete, agora ela está com a carinha

triste, conheço essa carinha. Mas não tem jeito, não mesmo. Ela pode

até começar a chorar, eu não vou dar meia volta. Minha filha, entenda,

a gente não conhece o homem, não adianta voltar lá, ele deve estar

passeando, é isso, nada de mais. Vamos deixar o sujeito em paz e

vamos pra festa, que o seu avô está lhe esperando. Ele ama você,

todos nós te amamos muito, vamos nos divertir bastante hoje. Aquele

homem tem a família dele, deve brincar com os filhos dele e gosta de

olhar o rio correndo lá embaixo. Não, não sei onde os filhos dele estão,

não sei quem são, eu não o conheço. Vamos deixar assim. Ótimo,

parece que ela se conformou. Voltou a brincar com a boneca. Que

cada um cuide da própria vida, pombas. Olha, quer saber, o cara que

se dane pra lá. Mas vou ficar atento nas notícias de amanhã.

MARLON VILHENA é natural de Macapá, Amapá, Brasil. Em 2013 lançou

a coletânea de contos As Horas Todas da Carne (All Print, 2013). Viveu

em Minas Gerais e São Paulo, trabalhou como garçon e professor; fez

bicos como segurança e músico. Formou-se como químico. Já

colaborou com textos em diferentes mídias eletrônicas. Atualmente

mora em Belém, Pará, Brasil. | http://marlonvilhena.blogspot.com/ |

[email protected]

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SÉRGIO SANTOS | Barreiro, Portugal.

Estava na paragem do autocarro, penso que existiria uma fila

com cinco pessoas que aguardavam o transporte. Um mendigo ou um

drogado aproxima-se e com ar pesaroso pede que lhe facultem uma

esmola para diminuir a sua dor. Há medida que as pessoas sobem para

o autocarro, ele escuta desculpas ou apenas a mera indiferença.

Revoltado e sem argumentos, perante as recusas, finge que pensa em

voz alta e afirma.

- Depois querem que um homem não roube! Metem-nos entre a

espada e a parede e depois só nos resta pisar a poça e chafurdarmos.

Bahhh!!!..

PEDIR PARA NÃO ROUBAR

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Fico sentado a pensar no assunto enquanto o veículo arranca.

Imagino então a seguinte situação: e se outros também fizessem o

mesmo pedido ao público anónimo? Muitos para lá do ar respeitável e

supostamente digno vivem acossados, antes de cometer o mal

irremediável poderiam apelar a que os ajudassem. Fixo-me a olhar para

a janela e observando o exterior imagino então as seguintes

personagens que se passeiam na rua.

....

Noutra paragem, um homem aparece está bem aprumado de

fato e gravata, corte de cabelo impecável e usa um perfume

agradável. Dirige-se às pessoas que estão na fila e começa o seu

discurso.

- Bom dia! Chamo-me Raimundo Esteves, sou gerente comercial

de uma empresa imobiliária. Infelizmente influenciado pela mania das

grandezas embarquei numa onda despesista e comecei a gastar mais

do que devia. Eu e a minha mulher quisemos comprar um T5 numa zona

nobre da cidade e actualmente pagamos uma exorbitância em juros.

Temos também uma vida derreada, onde investimos muito em bens

materiais e serviços que completam a nossa ilusão de felicidade: Boas

roupas de marca, jantares em restaurantes exclusivos, mobiliário de luxo,

bons vinhos, férias no estrangeiro de primeira classe, clube de golfe,

carro de alta cilindrada. Um dia a bolha tinha que rebentar. As

despesas eram mais que muitas, mesmo trabalhando mais horas para

ganhar mais prémios de produtividade eu e a minha mulher não

aguentamos o barco. Pedimos dinheiro a agências de créditos ao

consumo para renegociarmos as dívidas, mas só nos atolávamos mais

ainda.

Tudo está hipotecado, desde a nossa casa, carro e escassas

poupanças, inclusivamente valores de familiares próximos e amigos que

quiseram ajudar-nos e acreditaram nas nossas mentiras e acabaram por

ficar como nossos fiadores. Não vou conseguir aguentar mais, tudo se

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desmorona à minha volta, os tribunais perseguem-nos e eu não tenha

mais por onde me virar. Peço-vos que me ajudem, preciso de 50.000

Euros! Já não sei o que fazer para arranjar esse dinheiro.

Tem que me ajudar!!! Senão terei que roubar dinheiro no balanço

de conta do imobiliário onde trabalho, falsificar a declaração de IRS,

provocar um incêndio na casa dos meus avós e tentar sacar

posteriormente o dinheiro do seguro, talvez tenha mesmo que me

dedicar ao pequeno tráfico de droga pois sei que alguns amigos meus

conseguiram desta forma um rendimento extra bastante agradável.

Não quero actividades desonestas! Peço-vos ajudem-me! Estou

desesperado!!! Preciso do vosso auxilio.

......

Mais à frente, observo outra fila e outro interveniente, é um miúdo

traz um brinco na orelha, calças largas, ténis desabotoados, casaco

desportivo com capucho. Tem um ar gingão e uma atitude desafiante,

inicia então uma conversação com as várias pessoas que estão à

espera do 145.

-Olá "Barriles". Saudações! O meu nome é Fernando Gilas mas

todos me chamam o "Mãozinhas", tenho apenas 17 anos mas já estou

com muita rodagem!!! Ehhh!!!

Bem!... É assim!... O meu velho é cadastrado e apanhou 15 anos

que está a curtir em Monsanto, a minha velha trabalha como

empregada doméstica a limpar as sujidades dos que se dizem grandes,

mas são apenas ranhosos! Moro na Musgueira, numa casa ilegal e a

cair aos bocados. Bem!.... A verdade é esta, eu não vou acabar podre

como os que me rodeiam! Hei-de ter tudo o que mereço: Dinheiro,

gajas, fama, prestígio, muitos bens materiais....

Como não tenho jeito para a escola que, aliás, também não ia

dar em nada, nem para ser explorado num emprego de porcaria onde

dou o litro e não ganho nenhum, não vejo outra alternativa senão

dedicar-me a uma vida de crime. Já percebi que com pequenos

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assaltos a supermercados também não vou lá, isto tem mesmo que ser

com assaltos à mão armada a ourivesarias e a gasolineiras.

É assim meus, eu não queria entrar nessa vida, porque sei bem o

que aconteceu ao meu pai e a amigos meus. Para entrarmos nesta

onda, tem que haver uma grande organização e muitos cuidados

senão a "judite" e os latas apanham-nos. Sei que não sou cuidadoso e

acabaria por cometer erros fatais, ainda acabo numa prisa sodomizado

por algum gorila.

De modo que venho pedir-vos, ajudem este puto aqui! Precisava

de 780.000 Euros. Acreditem se tiver essa massa vou curtir à boa e não

incomodo ninguém. Compro uma alta mansão com piscina, crio uma

editora de música Hip-Hop, contrato umas garinas para fazerem parte

do meu harém privado, dou altas festas, conduzo grandes carrões e

faço altas corridas na minha pista privada, apareço nas revistas de

sociedade e na televisão. O mundo ia ganhar uma estrela e todos

teríamos a ganhar com isso. Não é justo eu ter nascido nesta condição,

não pedi isto! Estou condenado a ser um ranhoso de merda que não

tem horizonte nenhum!

Quando eu vejo tantos poltrões que tem uma alta vida e não

fazem nenhum, eu penso como tudo isto é injusto! Aqueles "mans" da

TV, dizem umas baboseiras e ganham milhões, aproveitam as coisas

boas da vida e nós aqui a apodrecer a vermos os outros crescerem.

Não aguento mais! Vá lá dêem-me o dinheiro a bem porque

senão tenho que ir buscá-lo a mal. Só peço 780.000 Euros por agora!

SÉRGIO SANTOS é formador e webdesigner. Fundador do colectivo albatrós

dedicado à escrita ficcional colaborativa. Editor da revista digital de BD H-alt.

Adora escrever ficção e criar BD. | [email protected]

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VAGNER SILVA | Lavras, MG.

Precisamos, urgentemente, reescrever este relacionamento que

tecemos em conjunto. Escrito com excesso de sentimentalidade, falta-

lhe clareza, coerência, coesão e, por que não dizer, fundamentação.

Precisamos, imediatamente, deixá-lo fluído e compreensível.

Sinceramente, já não aguento mais estas reticências frias, sem

graça e sem gozo que, hoje, definem a nossa história. Por isso, acredito

que a interrogação nos ajudará a refletir sobre os nossos alicerces. E a

exclamação será responsável por revelar nossos sentimentos – espanto,

súplica, entusiasmo, surpresa.

COSTURA AMOROSA

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Porém, antes de prosseguir, preciso te advertir de três questões.

Primeira, preze pela sua autenticidade quando estiver conversando

comigo e esqueça na gaveta de cuecas, ao menos dessa vez, as suas

queridas aspas; por favor, sem citações diretas, assim como indiretas.

Segunda, procure não se esconder atrás dos seus parentes e

parênteses; busque a objetividade. Terceira, respeite os travessões de

nosso diálogo; também se disponha a me ouvir.

Diante desse processo de costura amorosa, acredito que nós

temos possíveis orientações: (i) talvez fosse o caso de pensarmos nos

dois pontos contidos num café da manhã e explicarmos, abertamente,

nossos sentimentos, até os mais dolorosos e sombrios; (ii) talvez fosse o

caso de pensarmos naquela vírgula, presente numa viagem de final de

semana, que é momentânea, mas reveladora; (iii) talvez fosse o caso

de pensarmos naquele ponto e vírgula, presente num jantar romântico

de despedidas, sem abraços, sem beijos, sem investidas, sem mãos

dadas, que, no entanto, oculta olhares desejosos de reconciliação, de

retorno, de continuidade; ou, optando pela medida mais drástica, (iv)

talvez fosse o caso de pensarmos naquela luz no fim do túnel (?)

chamada ponto final, que não trará, necessariamente, inimizade,

desrespeito e desconsideração, e nos possibilitará outras histórias, outras

pessoas, outros amores, isto é, outras introduções, outros

desenvolvimentos, outras (in)conclusões.

VAGNER DA SILVA BATISTA é graduando do 6º período do curso de Direito da

Universidade Federal de Lavras (UFLA) e membro do Núcleo “Artes, Direito e

Literatura”. Publicou, em 2015, o poema “Mudo (n)o mundo” no livro “15º

Concurso de Poesias”, organizado pela Campanha Nacional de Escolas da

Comunidade (CNEC) de Capivari/SP. Interpretou o poema “Corpo negro”, de

sua autoria, no 2º Encontro do Orgulho Crespo em Lavras, ocorrido no 2º

semestre de 2015. | [email protected]

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PORTFÓLIO | PORTFÓLIO| FACEBOOK

Neal Pickhaver é um artista de Cornwall, United Kingdon, o

primeiro ilustrador que recebemos de outra nacionalidade que não

luso-brasileira. A vida de Neal sempre esteve entrelaçada pelo desejo

de produzir obras artísticas, tendo iniciado com tintas e aquarelas até

chegar no trabalho de pintura digital que realiza hoje. Passou, dessa

forma, de uma influência realista para assumir um teor surrealista,

fantástico e de ficção científica, traços explícitos em suas produções.

Atualmente, Neal trabalha com design e produz capas para EP´s

para algumas gravadoras locais. Eventualmente, trabalha com o design

de tatuagem. | [email protected]

NEAL PICKHAVER: pintura digital, surrealismo e

capas para EP´s

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PARCEIROS:

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Edição e Revisão:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais:

[email protected]