revista subversa volume 1 | n.º 6 | nov 2014

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ERIC COSTA | TÂNIA ARDITO GABRIELA RUGGIERO NOR | ANDRÉ VICTOR MARQUES ESTEVAN DE NEGREIROS KETZER | SAT AM MORGANA RECH | PEDRO JUNG 6ª Edição | NOV 2014

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|literatura luso-brasileira|

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Page 1: Revista Subversa Volume 1 | n.º 6 | nov 2014

ERIC COSTA | TÂNIA ARDITO

GABRIELA RUGGIERO NOR | ANDRÉ VICTOR MARQUES

ESTEVAN DE NEGREIROS KETZER | SAT AM

MORGANA RECH | PEDRO JUNG

6ª Edição | NOV 2014

Page 2: Revista Subversa Volume 1 | n.º 6 | nov 2014

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SubVersa

| literatura luso-brasileira |

© originalmente publicado em Novembro de 2014 sob o título de

SubVersa ©

6ª Edição

Responsáveis técnicas:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como

autores desta obra.

Page 3: Revista Subversa Volume 1 | n.º 6 | nov 2014

6ª Edição

Novembro de 2014

ERIC COSTA | CRIATIVIDADE | 4

ANDRÉ VITOR MARQUES | ME PERMITA | 6

GABRIELA RUGGIERO NOR | SEU NOME |8

TÂNIA ARDITO | AZULEJOS |12

MORGANA RECH | EM TEMPO REAL |14

SAT AM | ATÉ TODAS AS ESTRELAS CAÍREM NA NOITE | 16

ESTEVAN DE NEGREIROS KETZER | VESTÍGIOS | 18

PEDRO JUNG | DITORÂMBICOS N. II |19

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ERIC COSTA

SÃO LUIS, MARANHÃO, BRASIL.

E a criatividade do ser humano? Não há quem me faça pensar

que ela não está inferior a outrora.

Se Jacques Bossuet disse ser a contemplação a janela e olhos da

alma, não vejo outra explicação para tal paradoxo da humanidade. E

o paradoxo não é entre a criatividade atual e a de outrora. É o

paradoxo no que vivemos hoje. O ser humano especializou-se em duas

rotinas: buscar inovações e cair no mais do mesmo. E, acreditem, elas

coexistem.

Sempre procuramos inovações em nossa busca por

conhecimento. Em uma velocidade e disposição desenfreadas, diga-se

de passagem. Quando não produzimos conhecimento, estamos

insatisfeitos com a velocidade que os artigos científicos chegam às

revistas. Quando produzimos, achamos que poderíamos fazer mais.

A inovação dita o dia-a-dia. Novas formas de conhecer, novas

CRIATIVIDADE

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formas de até mesmo fazer outros conhecerem movem nosso cotidiano.

Pena que mesma vontade não se reflete no autoconhecimento.

Quantos nessa desenfreada corrida pelo lucro e conhecimento

param e refletem acerca de si mesmo? O “eu”, que está aqui, que é

você, é mais distante e menos palpável do que pesquisar a função da

proteína das células da mucosa do rabo da salamandra, às vezes.(!!!)

Se os grandes pensadores faziam da contemplação uma rotina,

inevitável associar a ausência de autoconhecimento atual a falta de

momentos de reflexão. Talvez até falte o que contemplar para muitos

de nós, solenemente imersos em selvas de pedra sem fim.

O homem de hoje pensa mais. Sim, pensa bem mais. O homem,

de séculos atrás, que contemplava a natureza, pensava com mais

inteligência e conhecia-se primeiro para conhecer mais depois.

Jacques Bossuet falou dos olhos da alma na contemplação.

Victor Hugo, porém, disse e diria de novo que contemplar o mar, em

certas ocasiões, é sorver um veneno.

Ah, a oração intercalada. Tudo ali, entre vírgulas. Porque o mar

ao qual Victor Hugo se refere talvez seja não o de sua época, mas o de

hoje: o ser humano, que só contempla o mar da produtividade, do lucro

e do próprio capital, sorve um incrível veneno. Veneno mortal de uma

sociedade oriunda de si próprio.

Produzimos, criamos, mas conhecemos mais o alheio do que o

próprio. Vivemos? Ora em acepção física do termo. Ora, muito

raramente, na acepção mais plena. E, no fim de tudo, nos

envenenamos: afogamo-nos em nossas próprias criações e entranhas.

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ANDRÉ

VICTOR MARQUES

RIO DE JANEIRO, RIO DE JANEIRO, BRASIL

Olhou e sentiu aquele arrepiar, de desconstruir qualquer possível

ideia de fingimento. Foi espontâneo, foi mágico. Foi algo que nem ele

mesmo soube dizer o que era. Viveu a vida a procurar. Se entregou

nessa procura incansável, nessa rotina de busca implacável. E foi então,

que estranhamente, construiu todo seu império de sonhos. Todas as suas

fantasias vieram à realidade. Havia conseguido seu amor: seu amor

correspondido, sua solidão retirada, sua vaidade aguçada. Seu

coração transbordava. Sentiu como se tudo, absolutamente tudo, fosse

infinito. Até mesmo as horas, que se passavam como a máquina a

correr na cidade moderna, era infinito. Os instantes curtos e rápidos,

tornou-se uma vida inteira, um carnaval a ser contemplado. Seu amor,

era sua fantasia, sua fantasia mais bonita de todas. Esqueceu-se, até,

da triste roupa cinza e sem graça, que a solidão lhe vestia. Mas

desconsertadamente, assim como tudo foi construído, passou a ser

temido. Agora era tanta correria, ainda se viam, mas com a triste

sensação de tudo acabar. De tudo se desmoronar. O trem parou, seus

olhares se cruzaram, em rápidos e decisivos minutos, e tudo se

ME PERMITA

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descortinou, tudo virou fumaça. Seu amor desceu, e ele, que ficou, se

despiu de forma tão bruta, grosseira. Ainda tentou avistar pela janela,

mas agora começavam a ganhar velocidade, andando rumo ao

próximo destino. Seu olhar voltou ao vácuo, ao nada, sem

profundidade, eram somente lamentações. Seus olhares cruzados,

fixados na alma de cada um, foi a realidade imaginada. Tudo ali se fez.

Tudo ali virou tudo. Seu amor não lhe permitiu, ele deixou-se levar. Num

desencontro, o tudo agora era nada. Eram somente lembranças de um

passado acontecido quase agora. Permitiu-se amar tão humanamente,

inteiramente. Ficou entregue. Mas deixou de se conectar, deixou de

amar no momento que perdeu de vista, na rapidez com que um cisco

vai encontrar o chão. Vestiu seu uniforme cinza novamente e se perdeu.

Seu mar de solidão já havia preenchido tudo. Seu corpo era tomado

pela inércia. Transformou-se num náufrago. Um náufrago só.

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GABRIELA RUGGIERO NOR

SÃO PAULO, SÃO PAULO, BRASIL

Foi outro dia que seu nome foi parar na minha língua, quase

saindo da boca, quase invadindo ar e mundo. Mas eu, que num

instante sentira o estômago se retorcer em falta, busquei alento no

gosto fervido em memória e segui caminhando; mas eram seus passos

que eu repetia, após cada esquina cruzada, um sinal, e mal sei como

cheguei em casa depois de tanto lutar contra as letras que escorriam

cálidas, uma após a outra; mas eu disse:

- Eu moro na rua Flórida número 165 – procuro a rua Flórida

número 165 – o senhor pode por favor me ajudar?, num soco só, letra

atropelando letra.

Ele me indicou o caminho e com as mãos tremendo eu girei a

chave do meu apartamento, que é no prédio da Rua Flórida, no

décimo andar.

Ninguém mais me viu entrar em casa fugida.

No meu quarto há estantes de livros meus e há também os livros

que você deixou. Eu os guardo debaixo da cama e quando não posso

dormir folheio as páginas que discutimos juntos. Ali está sua letra, seu

SEU

NOME

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nome, sua caligrafia vacilante, torcida para a esquerda, seus floreios

para as letras maiúsculas e as diferentes cores para marcar as

passagens mais bonitas. E quantas vezes não estávamos tão cansados

depois do trabalho, mas ao chegar em meu quarto, quando você vinha

me ver, e eu cozinhava para nós dois, e você abria o vinho, e eu fingia

não saber usar o saca rolhas, só para elogiar sua perícia, e depois

deitávamos e o abajur cintilava em suas pálpebras calmas de homem

calmo, e nós, mesmo cansados, líamos algumas dúzias de frases e o

encanto se fazia, a pele tocava o livro que tocava o corpo que tocava

a cama. De madrugada era tropeçar na pilha de livros, ao beber água,

e lembrar dos momentos anteriores enquanto os goles gelados iam

lavando o vinho do corpo, e lá fora um ônibus anunciava o recomeço

do dia; assim foi que diversas páginas dos seus livros ficaram marcadas,

mas também eram seus dedos enterrados em mim que depois

passavam pelas margens enquanto você alcançava a taça ao lado da

escrivaninha, e depois os cheiros se misturaram às folhas dos livros e hoje

é difícil ler certas coisas sem lembrar de você, sem que eu mesma não

me sinta como a personagem infame de um romance de banca.

Às vezes, também viajávamos e então era a música que ditava a

nossa postura, e íamos das odes melancólicas ao som mais pesado e

insuportável. O sol entrava quente pelos vidros do carro. A pele

arrepiava e os corpos se tornavam informes. Uma massa de gente

grudada. E por mais fundo que você viesse, nunca era suficiente: havia

um ponto qualquer que não se podia alcançar. Muita fome, muita

sede, muita dor, e o deslumbre contínuo do corpo, que saciava e

anestesiava, até o ponto em que as palavras abafadas quase não

faziam mais diferença. A indiferença entre o sim e o não. Você sabia

que eu nunca havia sido tão apaixonada: você adivinhava, pelas

minhas pálpebras que pulsavam e tremiam continuamente. Eu pensava

que éramos de outros tempos. O seu nome explode ainda em mim.

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Ancestral.

Quando não havia desejo, eu duvidava de nós, mas suas mãos

calmas pegavam nas minhas e sua cabeça repousava cansada em

meus braços, e de pouco o choro vinha manso, você não precisava

explicar, mas mesmo assim tentava, balbuciando nomes e ocorrências.

Ah, você dizia, “ele”, “ela”, “a minha família”, “quando eu era mais

jovem”, “o meu trabalho”, “aquele dia em que você”, eu te ouvia no

desespero de não ajudar, pois não se compreende inteiramente o

sofrimento do outro, eu não entendia, mas eu sofria tanto junto, e você

se afogava no meu peito, naqueles momentos eu me sentia cuidando

de você, mas você sempre soube que éramos uma dupla de elos

frágeis, como é difícil o encontro de iguais. Eu também tentava te dizer

da minha dor, eu também tentava te falar da minha angústia, ou da

sensação perpétua de observar o mundo sem estar de fato nele. Você

estava nele, tanto. Não pôde me guiar para dentro. Esta não é a

responsabilidade de um homem. Eu tentava te dizer o que era ter

crescido à sombra, o que era estar sempre à margem, mas as palavras

que saíam de minha boca eram “minha avó”, “o meu pai”, “houve um

dia”. E a frase permanecia incompleta no silêncio. Infinitamente

suspensa.

O nosso entendimento sempre foi de corpo, veja como a vida é,

os dois tão apaixonados pelas palavras e pelos sons, eu dizia,

“encantamento”, e você me chamava de bruxa, cada palavra que eu

dizia era um gozo a mais na boca, cada sílaba formando uma nova

pessoa e um novo continente, mas quando eram espontâneas

machucavam: você dizia, “dor”, eu entendia que era eu, e assim se

formava um zumbido, amor, foi se formando um zumbido que

ensurdeceu o que havia de real, a parede foi ficando cada vez mais

espessa, ao ponto de não podermos mais trocar palavras, mas só

carinhos, ou ler a literatura que era sempre segura; sempre segura

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porque apesar de ser nossa não eram nossas palavras, assim como

quando você me chamava de cachorra, de putinha, e dizia

impropérios e absurdos, e segurava minha cabeça, e rompia feliz meu

corpo como se eu fosse virgem – não éramos nós – e eu sofregamente

ia a seu encontro, porque era seguro, porque era bom, porque não era

exatamente você. Mas era o que eu tinha, afinal. Pedaços seus.

Um dia a parede ficou difícil demais de se atravessar, eu ouvia ao

longe alguns ruídos, minha voz eu sei que te chegava subterrânea,

minha figura embaçada, sem que nos pudéssemos ver direito. O para

sempre preso novamente na incompreensão. E em vez de sentir aquela

descarga de energia que rotineiramente me toma com as rupturas,

senti o despegar leve de um membro: lá se foi a perna, lá se foi meu

corpo, lá se foi ao longe. Imagino você caminhando anônimo pelo

mundo que te pertence: caminhando anônimo, ninguém te conhece,

ninguém sabe os atalhos, ninguém sabe seus inícios. Com o desabar do

muro o seu nome veio morar em mim. Você vaga com meu endereço

jorrando dos dentes, e eu caminho perdida pela cidade que tem só seu

nome como sinal.

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TÂNIA ARDITO

SÃO PAULO – PORTO

Olhem que lindo este painel de azulejo! – Foi o que a guia

acabou de dizer, mas se você estivesse aqui, não estaria prestando

atenção ao que foi dito, aliás, como era de costume, você nunca dava

ouvidos ao que ninguém dizia, sim ninguém… nem a mim. Realmente, o

painel é lindo… todo o lugar… marca o esplendor de uma Era… e, que

voltas deram para que esta Era acontecesse… mortes, conspirações…

e está inaugurada a Era Manuelina… com a sua nova forma de

entender o mundo. Entender… nunca vou conseguir entender… por

mais que o tempo passe… não dá para entender… não podia ter sido

de outra forma? Com tantas saídas e foi logo justamente escolher

essa… queria entender… País do azulejo… alguém falou algo sobre

isso… acho que foi a guia novamente… tenho que me juntar ao

grupo… você também poderia estar aqui… agora eu ri de mim…

AZULEJOS

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provavelmente não estaria prestando atenção a azulejo nenhum… e

eu te cutucando o tempo todo… nem prestaria atenção a este painel

que é formado por 1384 azulejos e que já mudou várias vezes de

endereço para continuar representando a Vida… por que você

também não mudou de lugar para preservar a Vida? Escolher ao seu

contrário… não entendo… este medo de enfrentar… de se olhar…

Cena de caça… a armadilha é montada com um espelho… a onça

não resistirá a olhar-se… será isso? Não conseguiu olhar e encarar a si

próprio, era tão doloroso… tão vergonhoso... Por isso montou a sua

própria armadilha… pensou que desta forma resolveria tudo… país do

azulejo… aqui há igrejas todas decoradas de azulejos, tirei muitas

fotos… um dia te mostro... Queria que estivesse vendo isto… é toda

azule… azul… é a sua cor preferida, né? Agora chegamos aos frontais…

neles está representada a fauna… pavão… tái um bicho que combina

com você… orgulhoso da própria beleza… representa a ressurreição de

Cristo… como queria que você ressurgisse… imortalidade… era isso que

buscava? A imortalidade… egoísta… sim egoísta! Pensou que desta

forma acabaria com a dor… não pensou que a dor assim como a alma

é imortal… egoísta… não passou pela sua cabeça que eu sentiria tanta

dor? Acho que por isso vim para cá… uma maneira de iludir-me dia

após dia… que a dor não existe… que tudo esta tal e qual… iludir-me

que se um dia voltar com fotos, postais e presentes… e na ansiedade

de contar tudo o que vi… você com o seu ar distraído me perguntaria…

e então, comprou o azulejo?

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MORGANA RECH

PORTO ALEGRE, RIO GRANDE DO SUL,

BRASIL

É incrível que mais um outono já esteja chegando a Portugal. Do

outro lado do mundo vejo fotografias da cidade onde renasci e que

trazem consigo um pedaço da minha nova nação.

Tão contraditório é ter a experiência de pertença a uma nova

pátria e ela permanecer do outro lado do oceano! Por mais que

Portugal tenha vindo, em espírito, no meu novo corpo que pegou o

avião, a vida e o cotidiano português estão lá, vivendo continuamente

sem mim. Posso ver hoje outras pessoas habitando lugares que

conquistei, ainda que brevemente, vestindo “casacas” confortantes

perante as tardes cinzentas que se aproximam. Elas sentam nas mesmas

cadeiras, nas mesmas poltronas, visitam os mesmos cafés, conversam

(quem sabe) com pessoas que conheci, fazem provavelmente

perguntas inocentes que só será respondida, mais do que nunca, em

um bom português.

O outono em Portugal é como um revisitar diário à infância. Posso

sentir como deve ser estar lá agora. Avós, doces e braços dados estão

por todo o lado. Sim, talvez tenha sido uma questão de sorte, ter

encontrado na minha trajetória lusa pessoas que tinham braços para

EM

TEMPO

REAL

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me oferecer e agarrar-se aos meus, mas, ao ver as fotografias em

tempo real de um Portugal no qual já não vivo, tenho a estranha

sensação de que uma parte deste tempo real fica sempre muito

exclusivamente, lá.

Outro dia acordei no meio da noite assustada pois estava nas

Galerias de Paris, uma rua agitada e boêmia que remonta, no ar que

circula entre os casarões, épocas sobre épocas de gargalhadas,

exuberância e uma diversidade de amores achados e perdidos. Era

verão, estação na qual a tristeza se afasta de Portugal exatamente

como as chuvas que só retornam no outono e permanecem por longos

dias.

Mais estranho do que a questão sazonal em si, foi a sensação de

pertença que, no meu êxtase onírico, voltei a sentir por meu segundo

país. Uma coisa é sonhar com um belo parque onde nunca estive, uma

praia paradisíaca que me alivia a pressão do dia a dia, mas sonhar com

a baixa do Porto foi como estar lá de verdade. Eu estava sentada

descansadamente numa cadeira de alumínio dizendo aos meus amigos

que seria o último copo, pois eu deveria ir para casa dormir e acordar

cedo no dia seguinte para terminar a tese. Vê, como eu estava lá, e o

verão era interminável?

Sim, é incrível que mais um outono esteja chegando a Portugal,

que hoje guarda mais um pedaço de vida real que lá ficou,

inalcançável às fotografias e às redes sociais que demonstram o seu

agora. Isso porque não há tempo real em Portugal, lá a vida é pura

realidade, e não é à toa que uma grande parte da boa literatura

sobreviva nesta terra. O tempo real em Portugal leva o sujeito de volta

para um lugar que quer ser uma grande morada para todos e que, no

meu caso, não só conseguiu, mas fez questão de jogar na minha cara o

significado de uma palavra tão brasileira como a saudade.

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SAT AM CURITIBA, PARANÁ, BRASIL

Pelo som que corre por minhas veias e corrompe meus ouvidos,

Em bálsamo frio e musgoso,

Tenebroso aos olhares vistos.

Sua voz que em emaranhadas cobertas torna minha visão turva.

E o som da chuva fria que cai e se choca em meu rosto,

O som da agonia translúcida que chama a gritar,

O som que a solidão de meus dias provoca em mim,

Nada se compara a isso!

Não há paz no mundo de um deus cego!

Surdo aos clamores daqueles que se dizem seus filhos,

Mudo aos corpos cremados e agonizantes de dor e fúria!

Eu, que aqui estou e vos vejo,

ATÉ TODAS

AS ESTRELAS

CAÍREM DA NOITE

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E te desejo o mesmo fim.

Para você que se diz existir desde o início das estrelas,

Você, que se diz o único do nascimento do universo até a queda de

todas as constelações na noite,

Você, a quem desejamos todas as pragas malditas deste mundo,

Junto às almas desses pobres cães imundos que se alto declaram sua

imagem.

Certas chamas não me queimam mais!

O corpo, a alma... "adormecidos" pelas dores e por suas falhas,

O grito no escuro...

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VESTÍGIOS

ESTEVAN DE NEGREIROS KETZER

PORTO ALEGRE, RIO GRANDE DO SUL, BRASIL

Só calei depois de muito tempo. Chamam isso de cansaço, eu

acho. Caminhei bastante entre os escombros e uma pequena murada.

Tão leve que eu era, pulei na pilha de tijolos amontoados. Ali me atrevi

a ousadia. Sentar e chorar. Foi assim até que finalmente desisti de tentar

esquecer.

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PEDRO JUNG

PORTO ALEGRE, RIO GRANDE DO SUL, BRASIL

Há singular beleza nos dias sem sol - de somente nuvens cinzentas

e sequer uma vaga brisa ao sopro - beleza monoforme e cromática,

donde nunca raia feixe que não do indivíduo em si e por si; dias de

perscrutar um mar que não se estende aos olhos, mas adentro; aos

quais a tempestade de sentimentos a mente invoca, não nuvens claras

ou clarões ao céu - todos curtos e breves - sobretudo, vãos.

DITORÂMBICOS Nº. II

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Edição e revisão:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Colaboração fotográfica:

Luciana Belinazo