revista subversa volume 1 | n.º 1 | ago 2014

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DIEGO PETRARCA | MORGANA RECH ZÉLIA MOREIRA| ESTEVAN DE NEGREIROS KETZER JULIANA BEN| TAIS NAVES POLLIANA DOS SANTOS | TÂNIA ARDITO 1ª Edição | AGO /1 2014

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Page 1: Revista Subversa Volume 1 | n.º 1 | ago 2014

DIEGO PETRARCA | MORGANA RECH

ZÉLIA MOREIRA| ESTEVAN DE NEGREIROS KETZER

JULIANA BEN| TAIS NAVES

POLLIANA DOS SANTOS | TÂNIA ARDITO

1ª Edição | AGO /1 2014

Page 2: Revista Subversa Volume 1 | n.º 1 | ago 2014

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[email protected]

@CANALSUBVERSA

SubVersa

| literatura luso-brasileira |

© originalmente publicado em 01 de Agosto de 2014 sob o título de

SubVersa ©

1ª Edição

Responsáveis técnicas:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como

autores desta obra.

Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos

ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.

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1ª Edição

Agosto de 2014

DIEGO PETRARCA | A | 4

POLLIANA DOS SANTOS |”IMPÁVIDO COLOSSO”, SEM EIRA NEM

BEIRA: O POVO BRASILEIRO EM JOÃO UBALDO RIBEIRO | 5

TÂNIA ARDITO | JANELA |10

JULIANA BEN | A CIDADE | 13

MORGANA RECH | PIMENTA AOS (DES)BOCADOS: TRÊS

RESPOSTAS DE ALBERTO PIMENTA | 16

ZÉLIA MOREIRA | A DESCOBERTA DA HUMANIDADE EM

ALMADA NEGREIROS | 22

TAIS NAVES | INDECISÃO | 25

ESTEVAN DE NEGREIROS KETZER | O HOMEM E A LEI: UMA

TRANSCRIAÇÃO PARA E.E.CUMMINGS | 27

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DIEGO PETRARCA

PORTO ALEGRE, RIO GRANDE DO SUL, BRASIL

A mágica existe sim e pode ser materializada no fundo das coisas

lá dentro, onde tudo prefere se esconder.

Devolva meu sorriso,

pega emprestada apenas a minha cara séria, histérica calada.

Mudez total.

Os abismos como luvas de pelica.

Insista.

Tomo um chá de canela e maçã porque faz frio

e a sensação de frio traz a gente pra mais dentro da gente

e a gente nunca chega tão perto do lado de cá.

O lado daqui faz mais pressão, aperta as pontas do peito.

Tão mais dentro. Os lábios sabem dublar,

a língua consente.

Veja que mesmo daqui os ângulos se fragmentam.

As cortinas servem de tampa para a boca das janelas.

Vou criar uma cidade debaixo da minha cama:

antes que a terra inflame.

Um repouso? uma chama? Quem prefere o pre ferido?

em vez de plumas:

pedras.

A

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5

_______________________________

POLLIANA DOS SANTOS F.

SILVA

PALMEIRA D‟OESTE, SÃO PAULO, BRASIL

A gente tem a tendência de pensar que só o que

nós fazemos é difícil e complexo, cheio de

sutilezas e complicações invisíveis aos olhos dos

“leigos”. Isto, naturalmente, é um engano que a

vida desmascara a todo instante, como sabe

quem quer que já tenha ouvido com atenção

qualquer homem falar de seu trabalho, que

sempre, por mais simples, envolve atividades e

conhecimentos insuspeitados.

(RIBEIRO, João Ubaldo.

A Arte e Ciência de Roubar Galinhas)

IMPÁVIDO COLOSSO”,

SEM EIRA NEM BEIRA:

O POVO BRASILEIRO,

EM JOÃO UBALDO RIBEIRO

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João Ubaldo Ribeiro possuía a arte de cativar a atenção do leitor,

graças ao seu estilo cômico, popular e à (re)leitura da história (fictícia

ou factual) brasileira, que são marcas indeléveis de seu texto. Em Viva o

Povo Brasileiro, diz o autor: “O segredo da Verdade é o seguinte: não

existem fatos, só existem histórias.” (RIBEIRO, 1984, p. 8).

Este estilo de João Ubaldo Ribeiro chama a atenção para o lado

criativo da língua portuguesa caracteristicamente brasileira. Como

aspecto fundamental da língua, a cultura brasileira também desponta,

emergindo de tantas coerções. Basta dizer que as raízes africanas e

indígenas lutaram para sobreviver, enquanto a norma social (e oficial)

sempre as inferiorizou. Para que sobrevivessem, foi preciso traquejo, arte

e ciência. O domínio da arte e da ciência conquista-se paulatinamente

– mesmo que seja para roubar galinhas – e o brasileiro foi forçado a

tornar-se mestre nas duas áreas, na tentativa de superar as

adversidades sociais. Afinal, a condição de brasileiro foi imposta.

Nenhum português perguntou ao caboco Capiroba, de Viva o Povo

Brasileiro, se ele gostaria de ser. Excluindo aqueles que foram comidos

pelo índio, obviamente.

Falando de acordo com Rita Olivieri-Godet (2009, p. 211), a

coletânea de contos Livro de histórias traz “um alegre questionamento

das diferentes normas – social, política, econômica, religiosa, literária,

linguística – que regem a sociedade brasileira”. Poder-se-ia dizer que a

Ilha de Itaparica é um espaço que aparece com recorrência na ficção

do autor. Dentro de uma grande narração dos elementos que, a priori,

fariam o brasil, Brasil a ilha de Itaparica, em muitos momentos, funciona

como uma metonímia do país a ser desnudado.

Tudo isto ao sabor de uma visão do brasileiro despida de uma

grandeza epistemológica e distante. Esta visão pode ser apontada no

trecho acima, em A Arte e Ciência de Roubar Galinhas, quando o autor

diz: “A gente tem a tendência de pensar que só o que nós fazemos é

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difícil e complexo”, em que este “nós” posiciona-o numa comunidade

intelectual que, forçosamente, exclui inúmeros brasileiros, mas estando

ele cônscio deste processo de exclusão simbólica, por via do discurso.

Desse modo, o discurso será fundamental para compreender o popular,

a elite e a imagem da nação, na obra de João Ubaldo Ribeiro. Sabe-se

que, historicamente, o projeto de construção identitária brasileira tem

estado nas mãos de quem vai detendo o poder político e econômico –

portanto, quem possui o poder do discurso oficial –. Nesse sentido, o

narrador, em João Ubaldo Ribeiro, sempre posiciona-se em relação à

classe social que pertence. Em Viva o Povo Brasileiro, esta característica

torna-se mais nítida: por exemplo, as vozes de Perilo Ambrósio Goés e

Amleto Ferreira contrastam-se com as de Dadinha, Nego Leléu e Maria

da Fé, tanto no plano linguístico, quanto no plano ideológico.

Em Livro de histórias, as narrativas trazem elementos fortíssimos da

linguagem corrente. Por exemplo: nos contos “Já podeis da pátria

filhos” e “O poder da arte e da palavra”, a linguagem apresenta uma

sintaxe repleta de encadeamentos de ideias e uma tendência de

ressaltar a oralidade.

O narrador de Já podeis da pátria filhos aflora tensões políticas,

durante a descrição da partida, realizada na Ilha de Itaparica. Desse

modo, esta voz narrativa, proveniente do povo, lança críticas aos

poderosos de maneira sutil, ainda que sublinhe, a certa altura do texto:

“mas não quero saber dessas coisas porque não suporto política”

(RIBEIRO, 1981, p.62). Contudo, é recorrente a alusão às dificuldades

financeiras, às privações mais básicas do próprio time de futebol: um

dos jogadores, Geraldo Tuberculoso, “pegou a tuberculose e o apelido

pela mania de ficar catando baga de cigarro no chão e fumando”

(RIBEIRO, 1981, p. 63); outro jogador, Digaí, é descrito como “avariado

da ideia”, devido à fome que sofreu, quando pequeno.

Embora, seguindo o dito popular, o povo seja “sem eira nem

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beira”, ele reconhece o espaço que ocupa nos jogos de interesse

promovidos pela elite – no conto, representada pelo prefeito da

cidade. Representado pelos jogadores, este povo que, como se

depreende do início do Hino Nacional (no trecho: “Ouviram do Ipiranga

às margens plácidas”), esteve sempre à parte das decisões políticas

mais importantes (nesse longínquo “Ouviram”), vai defender, no conto,

o orgulho brasileiro do futebol, “o heroísmo do atleta brasileiro”, como

diz o narrador, enquanto os jogadores sequer recebem o salário

proveniente da capinagem da cidade, no fim do mês.

Em um conto no qual a política aparenta ficar em segundo plano,

O poder da arte e da palavra liga-se a Já podeis a pátria filhos por

meio de dois temas entrelaçados: a resistência à menorização do povo

e o poder do discurso que denuncia esta resistência, temas que

permeiam várias obras de João Ubaldo Ribeiro. Descrevendo estes

temas em outras palavras: (Sobre)Viva o Povo Brasileiro, mesmo com

tantas privações e violências, mesmo que ainda esteja “sem eira nem

beira”. Somente assim, o “impávido colosso”, do patriótico Hino

Brasileiro, fará sentido: não se tenha medo de encarar a história.

Neste processo, continue-se a rir, com a ajuda do já saudoso

mestre João Ubaldo Ribeiro: a “rir das próprias desgraças”, como diz o

povo. Não o riso gratuito e boçal, mas aquele que desmonta qualquer

pilar aparentemente sólido. Que a solidez que esconde desigualdades

caia por terra, como tantas vezes acontece em Livro de histórias e em

Viva o Povo Brasileiro. O caboco Capiroba agradece.

Referências

DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil Brasil?. Rio de Janeiro: Rocco,

1984.

GODET, Rita Olivieri-. Estratégias Narrativas e Problemática Identitária. In:

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Construções Identitárias na Obra de João Ubaldo Ribeiro. Rio de

Janeiro; São Paulo: Ed. Uefs; Ed. Hucitec, 2009.

RIBEIRO, João Ubaldo. A Arte e Ciência de Roubar Galinhas. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

1. Livro de histórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

2. Viva o Povo Brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

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TÂNIA ARDITO

SÃO PAULO - PORTO

Ele passava horas olhando a janela, absorto, dia e noite a pensar

nela, não conseguia deixar de pensar que aquela janela representava

a sua última esperança de entrar na casa. A velha casa tornou-se

obsessão após a notícia de sua demolição,subitamente deu-se conta

que apenas ele nunca tinha explorado aquele território. Ficou

surpreendido quando chegou a essa conclusão– Todo o Mundo – já

tinha estado lá dentro; crianças brincando de esconde, namorados

apressados, consumidores de drogas, sem-abrigos, fantasmas – menos

ele. Decidiu também ser um explorador da velha casa, passou a rondar

o local espreitando pelos buracos existentes nos tapumese sentiu

afelicidade quando descobriu aquela janela lateral, a única passagem

para dentro quando todo o resto já estava coberto por blocos de

cimento, mas ali na lateral, aquela pequena abertura sorria-lhe como

uma amante convidando à invasão. Passou a estudar demoradamente

qual seria a melhor forma de vencer a barreira, de entrar e não ser

notado, angustiava-se dia após diaimaginando que aquela janela

JANELA

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poderia ter sido coberta também, o queinviabilizaria a sua aventura.

Após uma madrugada insone, resolveu que já não podia mais esperar,

na próxima segunda-feiraapós o trabalho procuraria a melhor forma de

transpor os tapumes; tarefa aliás realizada com sucesso pois descobriu

um pequeno muro dividido entre os dois lados, facilitando a entrada no

terreno. Porém, percebeu que nada estava disponível para alcançar a

janela, não havia escada, cadeira nem modo de escalar.

No dia seguinte durante a hora do almoço, elaborou uma

pequena lista de compras percebendo que para ser um escalador

precisava mais do que dois braços e duas pernas. Alegando uma dor

de dente, saiu mais cedo do trabalho, entrou numa loja e pediu ao

vendedor uma escada, corda e lanterna, embaraçou-se com a

indiscreta pergunta do vendedor sobre qual a utilidade da corda, não

estava preparado para perguntas e nem imaginava a existência de

diversos tipos de cordas, cada uma com a sua finalidade. Acabou

levando uma que suportava o peso de um homem de 75 quilos,

confiando na experiência do vendedor. Percebeu então que uma faca

também lhe seria muito útil, procurou na cozinha a mais parecida com

aquela do Rambo, sendo escolhida a faca de cortar carne. Mais uma

vez viu-se obrigado a responder perguntas, quando a mulher interrogou

se finalmente iria arrumar o telhado, achou muito conveniente dizer que

sim, no domingo resolveria o caso, afinal o que seria uma pequena

contrariedade em frenteà aventura prometida.

Na noite da terça-feira, após o jantar tratou de arrumar uma briga

qualquer com a mulher, saiu batendo a porta dizendo que precisava

de ar, ela não entendeu muito bem a briga e nem o bater de porta,deu

de ombros e achou bem aquela súbita saída, afinal pensava que

também precisava de respirar enquanto largava o corpo no sofá. Ele

transportou todos osmateriais até a velha casa, mas deparou-se com

um pequeno problema: como colocar a escada além muro, tarefa

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hercúlea, principalmente para ele, um sedentário convicto. O que não

esperava era o barulho que a escada fez ao chegar do lado de lá, saiu

correndo com medo de ser visto ou dos vizinhos chamarem a polícia.

Quando já estava dois quarteirões distante da casa e sem fôlego,

pensou que já estava longe o suficiente, sendo desnecessário continuar

correndo. Passou a andar tranquilamente, deu algumas voltas,

certificou-se de estar tudo calmo, voltou e resolveu pular o muro sem

demora para não levantar suspeitas.

Finalmente estava perto de concluir o objetivo, após tantos dias a

pensar se era capaz, se não era demasiado ridículo, ou se era mesmo

um merda de medroso como foi sentenciado pelo pai aos oitos anos

enquanto chorava aos berros com medo de montar num cavalo

enquanto o primo exibia-se como o orgulho da família. Encheu-se de

coragem, levantou a escada, colocou ali rente à janela, pegou a

corda e colocou embaixo do braço esquerdo, ajeitou a mochila nas

costas, pisou no primeiro degrau e sentiu uma tremenda vontade de

urinar. Pensou que podia ser da ansiedade, mas achou indigno urinar

ali, debaixo da tão sonhada janela e resolveu aliviar do outro lado.

Voltou e estancou de repente quando um gato atravessou sem aviso a

sua frente,suspirou de alívio por ser apenas um gato que não era preto

e por não ser sexta-feira. Pegou a lanterna na mochila, voltou a colocar

a corda debaixo do braço e subiu, degrau a degrau, o coração aos

pulos. Achou uma bobagem pensar que ainda podia ter gente lá

dentro, afinal foram todos expulsos pela demolidora – até os fantasmas.

Enquanto subia pensava em tudo o que deixou de viver naquela casa

sentindo saudade daquilo que nunca existiu, quando chegou ao último

degrau tinha lágrimas nos olhos, estava prestes a ter o seu momento de

glória, sentou no parapeito, olhou demoradamente em volta, respirou

fundo e saltou –

caiu na escuridão.

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JULIANA BEN

PORTO ALEGRE, RIO GRANDE DO SUL, BRASIL

A cidade

A cidade choca

Da janela do avião que parte

E me parte em dois

A cidade chora

Em gotas de chumbo

Por vezes mecânica e azul

A cidade lança

Olhares, flechas e prumos

A cidade avança

Pensando novos rumos

A CIDADE

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Pra mim e pra ti

A cidade avisa

Que o fácil pesa no lombo de quem fica

A cidade chama

Enxames de gente e de lama

A cidade em chamas

De dores ainda pouco conhecidas

A cidade abana

Havana

Cali

Pequim

A cidade abusa

E encontra um som por onde entra

A cidade pisa

E dói em quem chega de mais uma viagem definitiva

A cidade lusa

Ainda que Oliveiras falhem e Gomes percam toda sua fortuna

A cidade vaza

Por poros e valas afins

A cidade prisma

E prima por ti

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A cidade dura

Te leva presentes

E todos os teus parentes

A cidade vinga

Antigos e novos moradores

A cidade nota

Que ricos e pobres

Dividem o mesmo desprezo pelos seus

A cidade acusa

A cidade cara

A cidade assusta

E cai sobre aqueles que teimam em entrar pela porta da frente

A cidade mora

E é mor em tudo que vê

E fala porque sabe

A cidade é nua.

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MORGANA RECH

PORTO ALEGRE, RIO GRANDE DO SUL, BRASIL

Alberto Pimenta, autor de uma obra que

consegue ser celebremente marginal, ou

marginalmente célebre, parece ironicamente

encaixar-se na dinâmica de uma literatura

contemporânea que vai muito além do que

simplesmente “de língua portuguesa”.

Poeta, ensaísta, teórico, prosador, performer e um mestre do

“happening”, o português Alberto Pimenta (Porto, 1937) desde o seu

primeiro livro, O Labirintodonte (1970), imprime na sua arte literária uma

linguagem que absorve a essência e a crise da atualidade social,

recriando-a a partir dela própria. Com uma incansável produção e

PIMENTA AOS (DES) BOCADOS:

TRÊS RESPOSTAS DE ALBERTO

PIMENTA

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títulos polêmicos como O discurso sobre o filho-da-puta, a literatura

como um espelho da realidade é neste caso mediada por um homem

para quem tradição, atualidade e conhecimento não podem ser vistos

separadamente, uma vez que a vida é puro movimento. Aos 76 anos,

lidando contra algum mal-estar físico, o autor de A magia que tira os

pecados do mundo concedeu esta entrevista cujo objetivo principal

era o de ser material complementar ao primeiro estudo sistemático feito

sobre sua obra em Portugal. O cenário é um tradicional restaurante no

Rossio em Lisboa. Alberto Pimenta é um homem que desafia a lógica

dos contrários, ou simplesmente daquilo que acostumamos a separar

forçosamente como “opostos”. Num tom sempre assertivo, fala sobre

classificações literárias, processo criativo, diferenças sobre poético,

artístico e outros supostos antagonismos. Estou diante da integridade e

da contrariedade do ser artista: o simples e sofisticado, o gênio e o

homem comum, mestre e aluno, cansaço e a vivacidade de persistir.

Isto porque ele próprio é o diverso e o inverso. Enfim, o meu sujeito e

objeto.

1. O trabalho inicia comentando resumidamente o que os críticos

têm abordado da sua obra, trazendo a questão de você não se deixar

agarrar pelas classificações. Nota-se que a tendência dos críticos, neste

caso, é a de se fixar num aspeto como a sátira, ou o experimentalismo,

ou a marginalidade. O que pensa sobre esta tendência?

Alberto Pimenta: Parece-me que há uma tendência muito antiga de

tentar encontrar dentro da obra de cada poeta aspetos estéticos, ou

melhor, aspetos formais, de gênero, de categoria… que permitam

metê-lo depois muito declaradamente dentro dum gênero, dum estilo,

duma forma… que é essa mesma maneira normal de tematizar aquilo

que se escapa à tematização geral social, que é a criatividade. A

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poesia sai fora da racionalidade, sai fora por uma emoção que não é

compartilhada, então vamos tentar compartilhar essa emoção pela

forma que ela adquire. Já quando eu era aluno do liceu com quinze

anos… e me falavam do Camões lírico, do Camões épico e do Camões

não sei quê mais… eu ficava… não sei se era irritado – se a palavra está

certa em relação a um rapaz de quinze anos – mas ficava

incomodado. Não há um Camões lírico nem há um Camões épico, há

um Camões.Há um senhor que se chama Camões, e que depois

escreve lírica, escreve poesia que se chama lírica, escreve poesia que

se chama épica, etc… e que são naturalmente distintas uma da outra.

MAS, que terão afinidades (e tem). E interessam mais as afinidades para

definir aquela personalidade e aquela razão de ser daquela poética,

do que meter mais uma vez o épico na tradição épica, desde o

Homero… O lírico na tradição lírica desde não sei quem, e por aí fora.E

faz-se isso desde então… faz-se isso com o Almada Negreiros, não é? É

o Almada pintor, é o Almada poeta, é o Almada… da performance. O

Almada é só um e é preciso integrar. A verdadeira maneira de entender

é INTEGRAR…Perceber como é que tudo aquilo são facetas de uma só

pessoa, e normalmente uma pessoa criativa e onde a emoção

supera… essa racionalidade do sistema.Normalmente utiliza várias

formas de expressar isso, porque se utilizasse só uma então estava no

plano do sistema… dos políticos que também utilizam só uma e de uma

certa maneira, e dos economistas que utilizam só uma e de uma certa

maneira, e por aí fora. E então é assim mais ou menos que se quer

resolver, de maneira que eu acho que tem sido muito simples no meu

caso resolver ou com o experimentalismo e chamar experimentalismo

aquilo que não é. Não experimenta nada, não se trata de

experimentar…se trata de desconstruir e construir, como por exemplo

naquele poema que falamos, a canção cuneiforme. Que

experimentalismo é que há ali? A canção cuneiforme é uma canção, é

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um poema que tem o título da forma que adquire. E a forma que

adquire que é muito importante. O soneto é importante porque tem

aquela forma… são quatro quatro três três, não pode ter outra. O

soneto romano – aquela forma mostra já uma evolução que depois é

uma – que se transforma numa – involução repetitiva. Mas numa

involução que é por assim dizer na primeira fase uma chave daquilo

que foi bom e que é bom repetir, e que se repete. E é por isso que

aquilo tem aquela forma, é aquilo que é e faz parte. É absolutamente

necessário ter aquela forma e manifestar-se assim para realizar tudo

aquilo que se quer dizer que de outra maneira não era possível… se de

outra maneira não era possível aquela é evidente. A segunda parte é

simplesmente uma queda analógica às várias quedas do corpo e

espírito que sucedem ao longo do tempo do ser humano ou qualquer

outro ser, que naquele caso funcionaram exatamente de acordo com

a vontade poética, que se não tivesse funcionado não se tinha feito.

Enão há experimentalismo nenhum, quer dizer, não há nada contra o

discursivismo tradicional. Mesmo porque aquilo é discursivo – e eu uso

normalmente formas discursivas… formas que discursam, que recorrem,

que tem gramática. Não utilizo letras soltas, formas soltas, de maneira

que experimentalismo é um chavão que simplifica o entendimento

através só de qualquer coisa de exterior. E todo resto… sátira… Sátira eu

já disse várias vezes que não é um gênero que me convenha muito… Eu

tenho uma constante ironia. Essa constante ironia é uma ironia (como

todas as ironias) do autoconhecimento. Oautoconhecimento leva à

ironia, o desconhecimento é que leva à segurança e a certeza. A

dúvida leva à ironia, a incerteza leva à ironia, e essa ironia está presente

em quase tudo, quase tudo leva à ela… Tanto por vezes com

melancolia, por vezes com alegria e todo o resto, de maneira que isso

não resolve normalmente nada. A única coisa que resolve para

entender é [que] entender e entender terá que ser uma totalidade, e

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essa totalidade é feita dessas e doutras coisas. Mas, sobretudo, doutras.

2. Você ainda se considera um inexistente? Como é se sentir um

inexistente?

Pimenta – A ideia da inexistência aplicada à mim – ou à pessoa, ao

escrito, aos escritos – é uma ideia de Pádua Fernandes… e é uma ideia

que tem poder sobretudo – parte e procura ironicamente justificar o

silêncio que se faz em volta do que eu escrevo. É importante – se esse

silêncio é muito muito grande – é porque eu não existo. Quer dizer, eu

não existo realmente… de forma que é a esse nível que a inexistência

tem que se entender… uma ironia sobre um modo de receção. O que

eu faço não é uma existência que seja importante conhecer como

parte da poética, não é de fato. Não podemos de maneira nenhuma

estar a querer, por exemplo, contrapor esta ideia de inexistência à uma

pluriexistência tipo Fernando Pessoa, que organizou aquele sistema

muito especial em volta da existência. Não, nada disso… a mim quer

dizer como eu de fato não frequento praticamente nada do que

acontece por aí em eventos de realizações públicas, poéticas, culturais

– não frequento nada, vou quando calha, quando alguma coisa para

mim tem um significado importante que me faça ir.Não frequento, não

apareço onde faço ver, não tenho interesse nenhum em fazer ver…

faço-me ver onde me faço ver como cidadão que tem um bilhete de

identidade, que está quase a caducar neste momento – espero bem

que não caduque por completo, porque se caducar então é que

chego à perfeita inexistência… é uma ideia, deixá-lo caducar… aí está.

É a inexistência.

3. Ao trabalhar o problema da inexistência tendo como ponto de

partida as ideias de P. Fernandes, cheguei até o problema dos espelhos,

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que muitas vezes é convocada por si como questão fundamental para

pensar a poesia. Que tipo de espelho é a sua poesia?

Pimenta – O espelho é o que leva à poesia… o que leva à poesia é o

espelho que reflete as coisas… as coisas são refletidas como num

espelho… não aparecem diretamente. É muito difícil ver as coisas

diretamente e fazer delas algo que seja consistente porque elas

escapam de vários modos e estão metidas no meio doutras.Mas com

espelhos… espelhos quebrados, espelhos que quebram e portanto

mostram parte da realidade já como coisa quebrada, como coisa que

não está perfeita em si… Ou espelhos levemente reclamantes, aqueles

espelhos côncavos e convexos… os há. Então aí a realidade aparece

nitidamente… começa a aparecer nitidamente. Ela em si está, anda,

aparece, surge, está aí… duma maneira que se escapa na sua

essência… mas a sua essência com um bocadinho de convexidade, ou

um bocadinho de concavidade, ou quebrando-a e fazendo-a parte

duma dessas quebras. Então revela-se, revela-se como nós achamos

que ela de fato poderá ser no meio duma totalidade que ela

inevitavelmente pertence.

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ZÉLIA MOREIRA

PORTO, PORTUGAL

Quando comecei a lê-lo não sabia muito bem o que pensar:

conhecia um texto ou outro, mas não a maioria. Naquela altura, estava

longe de o conhecer, de facto. Recordo-me de reler os manifestos e

achar que estavam cheios de energia e vitalidade, uma sensação

semelhante à que retive quando, ainda adolescente, lia Almada. Era o

que procurava nele: a irreverência, a rebeldia, o grito, a juventude, não

ainda a humanidade. Isso ficou para depois.

Eu, tal como muitas outras pessoas, não arrumo os livros todos da

mesma maneira; o espaço da estante é pouco para que todos fiquem

visíveis e de fácil acesso e, por isso, existem alguns que ficam

tendencialmente à frente, bem observáveis e que em pouca distância

lhes posso tornar a pegar e reler. Parece um caso de teimosia natural: os

livros do Almada ficam sempre à frente, naquela prateleira em que

basta estender a mão. Outro caso: durante o ano em que me dediquei

a escrever sobre Almada Negreiros comecei a ter alguma dificuldade

A DESCOBERTA DA HUMANIDADE EM ALMADA

NEGREIROS

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em separar-me d‟ A INVENÇÃO DO DIA CLARO, um livro verde,

pequeno e fino que cabia sempre na mochila, por mais carregada que

fosse. Sentia que naquele livro eu teria todas as respostas para as

perguntas que me ia fazendo, mas ainda não sabia bem porquê.

Dominada por um instinto detectivesco, que, de certa forma, era

necessário ao trabalho que tinha de fazer, eu ia, naturalmente,

descobrindo e anotando nessas imensas folhas e cadernos as minhas

ideias e a consistente beleza de como tudo nele se relacionava. Mas,

escrevia eu, esse instinto detectivesco não tardou a tornar-se um pouco

ambivalente: não raras vezes, essa atitude se voltava não só para os

textos do Almada, mas também para mim própria. E, à medida que ia

fazendo isso, era capaz de encontrar na sua obra os ecos dessas

sensações vertiginosas que nunca tinha sido capaz de verbalizar:

Quem tudo quer tudo perde

dizem os que sabem muito

e eu punha-me a chorar

porque eu só queria tudo.[1]

Pois, quem é que já quis tudo? Foi o que eu pensei. Não demorei

muito a dar o salto que nunca poderia ter dado quando era apenas

uma adolescente: a ler para lá do lugar-comum do JOVEM Almada

inconformado com um Portugal firmemente embrulhado em

decadência mental. Certas passagens dos seus textos revestiam-me

como uma segunda pele, outras tornavam-se mantras pessoais,

pequenos aforismos onde todo o humano cabia e ainda outras, menos

divulgadas e, para mim, pessoalíssimas.

Com Almada aprendi que antes de chegar à claridade teria de

passar primeiro pela escuridão e que não existe uma sem a outra. E,

mais que isso, esse caminho, viagem, travessia das trevas para a luz, é

um caminho pessoal, individualíssimo, diferente para cada um. Almada

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ensina a conviver com o inexplicável, a aceitar o mistério. E, pela

jornada,existem ainda aqueles momentos igualmente inexplicáveis e

misteriosos, como o momento em que percebi a razão pela qual não

me conseguia livrar d‟A INVENÇÃO DO DIA CLARO, esse livro singular.

“Hasystemas para todas as coisas que nos ajudam a saber amar, só não

hasystemas para saber amar!”[2]

[1] Almada Negreiros, „O Menino d‟Olhos de Gigante‟ in OBRA

LITERÁRIA DE JOSÉ DE ALMADA NEGREIROS/1, POEMAS (2001), edição

de Fernando Cabral Martins, Luís Manuel Gaspar e Mariana Pinto dos

Santos, Lisboa, Assírio & Alvim, 2005, p. 108.

[2] Almada Negreiros, A INVENÇÃO DO DIA CLARO, edição fac-

similada, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, p. 44.

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TAIS NAVES

NEPOMUCENO, MINAS GERAIS, BRASIL

Esse teu jeitinho, chega devagarzinho e depois causa tumulto no meu

coração

Decida-se se bem me quer ou apenas diga a verdade

Diga sem receio de doer que sou mais um dos teus devaneios

Penso em escrever-te, mas o que sinto nas palavras já não há tradução

Será que devo desatar o nó que nos uniu?

Esse que não desata e me mantém entrelaçada junto a ti

Não pense que eu não o amo quando me afasto de ti?

Não pense que quando tento esquecer-te é por não te querer mais

Meu rapaz, não sabe das noites que passei pensando num jeito de

desfazer o que está dentro de mim

Não , não sabe!

Não sabe das vezes que dancei para ti na minha imaginação

Ah! E Esse coração que insiste em bater contra a minha vontade e

permanecer-me viva amando-te.

INDECISÃO ______________________________________

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Eu gosto dos teus desejos. Gosto do estrago que fazes em mim,

deixando-me confusa, sem saber se caio de vez nos teus braços, ou

arranco com o coração para longe de ti.

Se não me queres, atire para longe esses olhos cheios de brilho e desejo!

Atire para que eu possa ser somente tua amiga sem desejar ser

loucamente tua mulher

Se acaso me quiseres, então me deixe pegar o avião sem

subentendidos para que eu possa ser toda tua.

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ESTEVAN DE NEGREIROS KETZER

PORTO ALEGRE, RIO GRANDE DO SUL, BRASIL

Conduz de leve e sorrateiro, nessas sendas que um sorriso

constrangido tenta alcançar. Pensa que é uma guirlanda tão antiga já

bem podre pelo tempo, de uma era de certezas, mas ainda assim tão

maleável. É que a criança cresceu, teve dentes, opiniões, mas parece

que deixou o saber tomar tanta conta que perdeu a relação com as

estrelas. Preferiu insistente desconhecer.

Neste contato com o desconhecido que deve continuar desconhecido

os dois pés estão no chão. O primeiro para se ter a certeza do passado,

o segundo para alterar o futuro. Com o advento das tecnologias o eu

parece uma lenta agonia. Ele quer se dizer igual a todos, mesmo que os

efeitos desse grito ainda sejam muito doloridos.

Essa dúvida antropológica primeira, gesto de difícil assimilação quando

não se permite olhar no espelho, ao menos nos olhos do outro. Onde

está a intimidade para chegarmos aí? Não será esse outro grave

problema que estamos até o presente momento recalcando? Para ter

intimidade deveríamos ouvir algo incessante, algo que não se deixar

generalizar... Ou morrer na mácula de uma imagem perfeita, imagem

O HOMEM E A LEI: UMA TRANSCRIAÇÃO PARA E. E. CUMMINGS

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sem imaginação, que muitos elementos da cultura pós-moderna

tentam facilitar. Esses pontos de apoio, quase nevrálgicos da cultura,

quase tão verdadeiros como as pílulas que induzem ao sono ou a uma

ereção de três horas, proposta do Viagra, alívio para uma certa

virilidade. Com as pastilhas mágicas, pílulas da felicidade, assim o

homem pode gozar, pleno de suas capacidades. A questão passa a ser

em quem o homem goza. Em quem?

Essas recentes décadas do século XXI imprimem o silêncio do homem:

aquele heterossexual, branco, bem sucedido, com respostas prontas e

uma rápida audácia fálica para demonstração de força física. Esse

discurso do tipo não preciso mudar, não chega de repente, mas sim

pela novas fronteiras abertas pela subjetividade contemporânea. O que

passa a ser o homem depois que homossexuais, negros, feministas e a

pluralidade de outras assim ditas minorias se rebelam contra a ordem

falogocêntrica, organizando-se diante do prejuízo causado pela

hegemonia branca? D. H Lawrence, em seu artigo de 1923, acerca da

obra de Moby Dick, já deixara claro que o poder branco aterrorizador já

estava com seus dias contados. Principalmente quando uma simples

propaganda de desodorante parece guiar o que é ser homem: “trazer

o orgulho de ser e cheirar como um homem”. Há aí um misto de ironia e

ao mesmo de um desassossego incessante: o que é ser homem após o

movimento de tudo o que não é homem? O homem não consegue

mais com o tempo verbal no presente do indicativo do verbo ser

encontrar sua solução. Aí, nessa plataforma de pensar, o tempo e o

espaço se unem como um eterno presente, onde a responsabilidade

sobre a produção da destruição dos direitos da dita igualdade não

possui lastro de sustentação em uma sociedade em que o direito já está

completamente codificado e a possibilidade de romper a lei com o

aparecimento da justiça dá um tom de mera utopia social.

Pelo advento da justiça a centralidade da lei é questionada no âmago

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do modo de habitação da lei, isto é, para aqueles em que a lei se

destina. Passa a haver um de crítica, encurtando o espaço para a

misoginia, para o preconceito, ou para o uso de uma violência que seja

encarnada como o semblante de um estado de guerra. A figura

ultrapassada do político, necessária, mas ainda assim desencontrada

com as constantes e necessárias criações poéticas desse grito.

O filme espanhol Una pistola en cada mano (O que os homens falam),

do diretor Cesc Gay, se aproximou dessa crise identitária masculina. O

que o homem deve enfrentar diante do outro? O outro assustador que

o desabilita a falar, falar do outro ainda se sentindo em primeiro plano,

primeira pistola que o exige a ser duro e irredutível, falso e hipócrita,

frágil e ignóbil. Ser homem nessas condições é nadar contra a

correnteza de todas as transformações sociais, permanecendo parado

no tempo, sem qualquer coisa para dizer, fantasma dos antigos

westerns de John Wayne. Não parece ser desafiador ser homem, mas

sim amedrontador. O homem com medo parece impotente, sem a

capacidade de captar coragem e mudar sua história. O homem está

colonizado a partir da história dos outros, história que ele não

compartilha, tão pouco sabe dialogar. É difícil ouvir é uma narrativa a

qual ele está fora de qualquer intervenção, desaparecendo no instante

em que decide se movimentar.

O poeta estadunidense Edward Estlin Cummings 1 (e. e. cummings

como preferia a grafia), descreveu um mundo do passado, ressaltando

a saudade pelo velho homem que tinha ainda uma presença de

espírito, um pai que tinha algo dentro de si que vem da antiga

formação (bildung) a qual os homens olhavam de frente seus desafios.

Ele colocou seus sentimentos no poema my father moved through

dooms of love, de 1940.

1 Poeta considerado um dos pais da poesia concreta contemporânea, segundo os irmãos Campos, junto

à Mallarmé e Maiakovsky. Ver: CAMPOS, Augusto; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo. Teoria da poesia concreta. Cotia: Ateliê editorial, 2014.

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my father moved through

dooms of love

through sames of am through

haves of give,

singing each morning out of

each night

my father moved through

depths of height

this motionless forgetful

where

turned at his glance to shining

here;

that if(so timid air is firm)

under his eyes would stir and

squirm

newly as from unburied

which

floats the first who,his april

touch

drove sleeping selves to

swarm their fates

woke dreamers to their

ghostly roots

and should some why

completely weep

my father's fingers brought

her sleep:

meu pai se moveu através de sentenças

de amor

através do mesmo que sou através de

lema de dar,

cantando cada manhã longe de cada

noite

meu pai se moveu através profundeza

de altura

esse esquecimento sem movimento

onde

virou de soslaio para brilhar aqui;

que se(tão tímido ar firme que é)

sob seus olhos mexeria e contorceria

bem novo como vindo desenterrado o

qual

boia o primeiro quem,seu abril toca

impulsionou dormindo pra si abundar

seus destinos

acordou sonhadores de suas

fantasmantes raízes

e deveria ser para alguns o porquê que

lacrimejam tanto

os dedos de meu pai trouxeram seu

sono:

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vainly no smallest voice might

cry

for he could feel the

mountains grow.

Lifting the valleys of the sea

my father moved through

griefs of joy;

praising a forehead called

the moon

singing desire into begin

joy was his song and joy so

pure

a heart of star by him could

steer

and pure so now and now so

yes

the wrists of twilight would

rejoice

keen as midsummer's keen

beyond

conceiving mind of sun will

stand,

so strictly(over utmost him

so hugely) stood my father's

dream

his flesh was flesh his blood

inutilmente sem a menor voz que possa

chorar

para que ele pudesse sentir as

montanhas crescerem.

Elevando os vales pelo mar

meu pai se moveu através de dores de

alegria

louvando uma fronte chamada lua

cantar desejo no começo

alegria era sua música e alegria tão

pura

um coração de estrela pra que ele

pudesse se guiar

e puro tão agora e agora tão sim

o pulso do crepúsculo regozijaria

entusiasmado como o pleno verão o é

alhures

a mente concebendo que o sol

permanecerá,

tão estritamente(mais sobre extremar

ele

tão enormemente) permaneceu esse o

sonho do meu pai

sua carne era carne seu sangue era

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was blood:

no hungry man but wished

him food;

no cripple wouldn't creep

one mile

uphill to only see him smile.

Scorning the Pomp of must

and shall

my father moved through

dooms of feel;

his anger was as right as rain

his pity was as green as grain

septembering arms of year

extend

less humbly wealth to foe and

friend

than he to foolish and to wise

offered immeasurable is

proudly and(by octobering

flame

beckoned)as earth will

downward climb,

so naked for immortal work

his shoulders marched against

the dark

sangue;

sem fome de homem mas desejou ele

comida;

nenhum aleijado rastejaria um

quilômetro

morro acima para somente ver ele sorrir.

desprezando a pompa da obrigação e

dever

meu pai se moveu através de sentenças

do sentir;

sua ira era tão certa como a chuva

sua piedade era tão verde como a

grama

setembrando braços de um longo ano

longo

menos humildemente rico para o algoz

e o amigo

do que ele tolo e sábio

ele ofereceu sem medidas é

orgulhosamente e(por outobrando

chama

sinalizada)como terra descenderá subir,

tão entregue para o trabalho imortal

seus ombros caminham contra o escuro

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his sorrow was as true as

bread:

no liar looked him in the

head;

if every friend became his

foe

he'd laugh and build a world

with snow.

My father moved through

theys of we,

singing each new leaf out of

each tree

(and every child was sure that

spring

danced when she heard my

father sing)

then let men kill which cannot

share,

let blood and flesh be mud

and mire,

scheming imagine,passion

willed,

freedom a drug that's bought

and sold

giving to steal and cruel kind,

a heart to fear,to doubt a

mind,

sua tristeza era tão verdadeira quanto o

pão:

nenhum mentiroso o olhou de frente;

se cada amigo tornou-se seu algoz

ele riria e construiria um mundo só com

neve.

Meu pai se moveu através de muitos

eles de nós,

cantando cada nova folha fora de

cada árvore

(e cada criança era certa que aquela

primavera

dançou quando ouviu meu pai cantar)

deixa então homens matarem o que

não podem compartilhar,

deixa sangue e carne serem barro e

lama,

intrigante imaginar,paixão desejada,

liberdade uma droga que é comprada

e vendida

dando para roubar e tipo cruel,

um coração para temer,para dúvida de

uma mente

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to differ a disease of same,

conform the pinnacle of am

though dull were all we taste

as bright,

bitter all utterly things sweet,

maggoty minus and dumb

death

all we inherit,all bequeath

and nothing quite so least as

truth

-i say though hate were why

men breathe-

because my father lived his

soul

love is the whole and more

than all

para diferir uma doença do mesmo,

conforme a cúpula do sou mesmo

embora enfastiados todos nós pagamos

de inteligentes,

amargar tudo preferivelmente as coisa

doces,

menos bichado e morte muda

tudo nós herdamos,tudo foi legado

e nada tão menos quanto a verdade

-eu digo embora o ódio fosse a razão

dos homens respirarem-

porque meu pai viveu sua alma

amor é o todo e mais do que tudo

Cummings está mostrando que algo contundente aconteceu com o

homem. O que o homem perdeu talvez jamais seja recuperado. É o

desamparo pela incapacidade de regeneração. Seu silêncio diante

das diferenças é a ainda afirmação de uma intensidade perdida, o

dooms of love de que trata o poema. Ainda ali havia um amor

insondável, um amor à vida, ao mundo, uma partilha do sensível, com

severidade, tão difícil que não pode ser contada. Possui muitos erros de

grafia. A verdadeira grafia parece não fazer o menor sentido. Isso

demonstra a concreção da linguagem poética, a ponto de evitar o

léxico para evidenciar uma sábia ignorância acerca dos fatos. O fato

mesmo é um passado sem a menor possibilidade de retorno.

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Atentemos que dooms também pode denotar sina, o dia do juízo

(dooms day), a ruína diante do inefável. Essa ruína que se mostra numa

anterioridade a tudo o que sentimos, fundação sem fundo, o fantasma

do passado e sua infatigável tarefa de nos atormentar.

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Edição e revisão:

MORGANA RECH E TÂNIA ARDITO

Recepção de originais:

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Diretrizes para publicação:

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