revista subversa 9ª edição

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SUBVERSA 9ª Edição JAN. 2015 ESTEVAN KETZER | TAIS NAVES EVANDRO DO CARMO CAMARGO FELIPE LIMA | CÁTIA PENALVA PEDRO LIMA | TÂNIA ARDITO ELIANA MACHADO Edição ilustrada | Obras de MARILIA MOSER

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Page 1: Revista subversa 9ª edição

SUBVERSA

9ª Edição

JAN. 2015

ESTEVAN KETZER | TAIS NAVES

EVANDRO DO CARMO CAMARGO

FELIPE LIMA | CÁTIA PENALVA

PEDRO LIMA | TÂNIA ARDITO

ELIANA MACHADO

Edição ilustrada | Obras de MARILIA MOSER

Page 2: Revista subversa 9ª edição

CANALSUBVERSA.com

2

WWW.FACEBOOK.COM/CANALSUBVERSA

[email protected]

@CANALSUBVERSA

SubVersa | literatura luso-brasileira |

9ª Edição

© originalmente publicado em 15 de Janeiro de 2015 sob o título de

SubVersa ©

Edição e Revisão:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Obras plásticas de Marilia Moser :

[email protected]

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como

autores desta obra.

Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos

ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.

Page 3: Revista subversa 9ª edição

CANALSUBVERSA.com

3

9ª Edição

Janeiro de 2015

EVANDRO DO CARMO CAMARGO | © UMA GOTA DE

ESQUECIMENTO | 5

PEDRO LIMA | © (DES)CONSTRUINDO A NOÇÃO DE

TEXTO | 7

CÁTIA PENALVA | © AS LUZINHAS DELA | 12

ESTEVAN DE NEGREIROS KETZER | © PARTIDAS: SOBRE A

MLTIPLICIDADE DE CORPOS EM “A CHAVE DE CASA”,

DE TATIANA SALEM LEVY |13

TÂNIA ARDITO | © UM POUCO MAIS| 18

ELIANA MACHADO | © E AGORA, MARIA? | 20

TAIS NAVES | © O AMOR FATAL | 22

FELIPE LIMA |© DE HOMERO A VIEIRA: VISÕES

PRISMÁTICAS DA ALEGORIA | 24

Page 4: Revista subversa 9ª edição

EDITORIAL

Na 9ª edição da Subversa, são vários os elementos que

tornam esta revista cada vez mais interessante, sobretudo,

para nós que a editamos.

Para além do nosso prazer diário em trabalhar

recebendo textos incríveis de diversas partes do Brasil e de

Portugal, apresentamos a primeira edição completamente

ilustrada por uma artista plástica tão excepcional como a

gaúcha Marília Moser, a quem queremos registrar neste

editorial o nosso mais sincero agradecimento.

Uma combinação interessante de textos literários e

científicos também caracteriza a primeira edição do ano. A

“ciência literária”, afinal de contas, é algo inspirador,

polêmico e necessário e, portanto, que bom que os autores

de resenhas, artigos e críticas se sintam bem recebidos aqui,

dado que esta é, também, a nossa essência. E, claro, mais

uma dose de poesia e narrativas cheias de impacto. Amor,

intelecto e instintos primitivos poderão ser encontrados pelas

próximas 31 páginas.

Bem vindos à Subversa 2015 e boa leitura!

As editoras.

Page 5: Revista subversa 9ª edição

CANALSUBVERSA.com

5

EVANDRO DO CARMO CAMARGO

ILHABELA, SÃO PAULO, BRASIL

A estradinha sinuosa e úmida

Serpenteia pela floresta tropical.

A vegetação ulula, amedrontadora.

As plantas esticam os braços

E lambem o carro.

Querem luz.

Se expandem, se expõem,

Se abrem ao sol,

Que surge às nesgas sob a mata densa.

Tudo é vegetação.

RESIL

IÊN

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ÍLIA

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ELA

UMA GOTA DE ESQUECIMENTO

EVANDRO DO CARMO

CAMARGO

ILHABELA, SÃO PAULO, BRASIL

Page 6: Revista subversa 9ª edição

CANALSUBVERSA.com

6

Além da galharada, árvores de grande porte sem nome.

Enormes. Intrigantes.

Uma chuva muito leve e lateral

Cai mansa sobre a floresta,

Molhando bichos e plantas.

No coração da mata

As feras e as assombrações se escondem,

Temerosos.

Tudo é um refluir.

Os músculos se descontraem, cansados.

Meu cérebro, onde tudo se processa, também reflui.

E ele é a mata.

E a chuvinha lateral tão fresca e pura

Toca de leve o tecido cerebral

Escorrendo pelas reentrâncias da acinzentada noz.

Leva consigo a tinta preta

Com que se inscreve na memória

A acidentada história do tempo.

Plic.

EVANDRO DO CARMO CAMARGO

Page 7: Revista subversa 9ª edição

CANALSUBVERSA.com

7

A priori, conceituar a noção de texto aparenta ser uma tarefa

rápida e efêmera: uma pessoa leiga em Linguística não exitaria em

tentar fazê-lo, muito provavelmente definindo-o como um enunciado

escrito e estruturado dentro do esquema começo-meio-fim. Entretanto,

essa definição se mostra superficial ao ser rapidamente testada, pois ela

não abarca uma série de nuances e possibilidades.

Dentro da literatura há claros exemplos: ao seguir tal conceito à

risca, um romance como Lolita, do escritor russo Vladimir Nabokov não

seria um texto, uma vez que a história, em suas primeiras páginas, já

revela o desfecho da trama a ser apresentada: o fictício professor de

filosofia John Ray escreve um breve relato sobre como a obra chegou

às suas mãos, bem como o destino final de vários de seus personagens

e emite impressões sobre eles. A obra se propõe, portanto, a mostrar ao

leitor como a trama chegou ao ponto em questão. Lolita, considerado

A C

AIX

A |

MA

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IA M

OSER

TÉC

NIC

A M

ISTA

SO

BR

E T

LA

(DES)CONSTRUINDO A NOÇÃO DE TEXTO

PEDRO LIMA

CURITIBA, PARANÁ, BRASIL

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CANALSUBVERSA.com

8

um clássico da literatura mundial, se constrói na cabeça do leitor a

medida que a leitura avança, como um quebra-cabeças: as peças vão

se encaixando conforme o leitor as conhece e as “experimenta”1 (o

experimento aqui é considerado as possibilidades de como a história

obteve o seu final, revelado no início do texto).

O poema As meninas da Gare, de Oswald de Andrade, também

apresenta um fenômeno peculiar: ao lê-lo, sem procurar realizar uma

análise muito elaborada de sua leitura, o leitor verá nele a descrição de

um grupo de meninas bonitas e pueris. Ao saber, no entanto, que a

expressão do título tem origem no francês e que originalmente se refere

às profissionais do sexo que trabalhavam perto de estações de trem, o

leitor não verá mais inocência alguma nas meninas descritas no poema

do escritor modernista – ou, ao menos, não verá tanta inocência como

via antes. Ao saber, também, que o poema é a transcrição literal de um

trecho da carta escrita por Pero Vaz de Caminha ao Rei Dom Emanuel I

em que o navegante descrevia as suas primeiras impressões ao chegar

no que hoje é o território brasileiro, o leitor também não fará a mesma

leitura feita inicialmente.

Uma leitura breve e passageira gerará uma interpretação

específica de As meninas da Gare, a qual possui o seu próprio sentido.

Uma leitura apurada e minuciosa, na qual se procura obter informações

extras que venham a acrescentar novas conclusões, gerará uma outra

interpretação do poema. E ambas são sustentáveis e possíveis de serem

mantidas dentro das dimensões em que se apresentam.

Está claro, pois, que Lolita e As meninas da Gare não são leituras

convencionais. Contudo, ambas apresentam uma coesão (logicidade)

e coerência (sentido) inegáveis, ainda que a seu próprio estilo.

Essa afirmação é considerada hoje um dos maiores princípios da

Linguística Textual. A professora de Linguística da Universidade Estadual

1 Para mais informações sobre esse assunto, recomenda-se a leitura do

capítulo Coerência, do livro A Tessitura da Escrita, de Iara Bemquerer Costa e

Maria José Fontran.

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CANALSUBVERSA.com

9

de Campinas Ingedore Koch – uma das maiores autoridades brasileiras

dentro da área – afirma em seu livro O texto e a construção dos

sentidos, lançado em 1997, que “… se a coerência não está no texto

(…) ela deve ser construída a partir dele (…)”. Logo, o esquema

anteriormente mencionado, começo-meio-fim, pode não se apresentar

sob parâmetros considerados comuns, mas ele se comporá diante do

leitor assim que ele ler o texto que lhe for apresentado, qualquer que

seja ele.

Dessa forma, uma nova definição de texto se faz necessária, mais

abrangente e ampla do que a supracitada. Com base nos dados

discutidos, é possível definir o texto como sendo “todo enunciado que

vise transmitir uma mensagem ao longo de sua leitura”.

Ainda que essa nova definição seja mais precisa do que a

anterior – a qual é pautada apenas no senso comum – ainda é possível

questioná-la e problematizá-la: todo texto é compreendido somente

através da leitura de um enunciado escrito? Evidentemente, não.

Pensemos num congresso, por exemplo: o palestrante transmite

uma mensagem aos seus ouvintes e a sua fala está estruturada dentro

do esquema começo-meio-fim, o qual pode se apresentar, conforme já

demonstrado, de diversas formas. Ele pode utilizar artifícios pouco

convencionais para alcançar o seu alvo, como, por exemplo, falar

sobre uma tribo indígena isolada na Selva Amazônica para explicar suas

ideias sobre economia ou apresentar um trecho da Bíblia à plateia e

revelar que ele faz parte dessa obra após propôr reflexões sobre outros

assuntos, visando assim uma meta que, até determinado momento,

apenas ele conhecerá. Ainda assim, ao terminar a sua palestra, os

ouvintes sairão dela com uma mensagem bem clara em suas cabeças,

podendo tecer comentários e conclusões logo depois.

Logo, a conclusão de que o conferencista transmitiu um texto aos

seus ouvintes é inevitável de se chegar. Ainda que textos transmitidos

oralmente e pela escrita possuam mecanismos próprios de articulação

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10

e estratégias específicas para interagir com o leitor, impedindo-o que

ele se canse e se entendie, ambos possuem um objetivo claro: transmitir

uma mensagem.

Embora um desenho também contenha uma mensagem, defini-lo

como texto seria uma atitude precipitada, devido à sua alta carga de

subjetividade e à noção de que ele está atrelado à arte – que pode

muitas vezes ser abstrata, ou seja, o autor do desenho em questão pode

não querer transmitir absolutamente nada com ele – compromete uma

análise dele como pertencente à categoria texto. Para fins didáticos,

não entrarei nessa discussão.

Uma nova definição de texto, após as análises aqui feitas, se

apresenta: toda manifestação linguística oral ou escrita que vise

transmitir uma mensagem, sendo a mesma estruturada dentro do

esquema começo-meio-fim. Ainda que esse esquema não esteja claro

em alguns casos, é possível traçá-lo e identificá-lo: um grito de socorro é

nitidamente um texto2. O emissor transmite, ao gritar tal palavra, uma

mensagem com começo (“Não estou bem.”), meio (“Preciso de

ajuda.”) e fim (“Alguém venha me ajudar!”).

Com tal definição em mãos, é possível compreender melhor a

própria origem da palavra texto: ela vem do latim TEXTUM, que significa

tecido. Como todo tecido, o texto entrelaça (no caso, ideias), une

(através dos articuladores) e visa formar um todo. É curioso notar

também que, assim como o texto, o número de arranjos possíveis que

fios podem fazer para formarem juntos um tecido é imenso.

Com novos testes, a possibilidade de que novas definições de

texto surgirão com o tempo não deve, em hipótese alguma, ser

descartada. Espera-se, no entanto, que o presente texto tenha

cumprido o seu objetivo de origem: contribuir para a Linguística Textual

através do levantamento de questionamentos e análise de

probabilidades.

2 Stammerjohann (1975) foi o primeiro a definir um grito de Socorro como

sendo um texto.

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11

Referências bibliográficas:

KOCH, Ingedore. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo:

Contexto, 1997.

COSTA, Iara Bemquerer e FOLTRAN, Maria José (org). A tessitura da

escrita. São Paulo: Contexto: 2013.

BENTES, Anna C. Linguística textual. In. MUSSALIM F. E BENTES, Anna C.

(Orgs.) Introdução à linguística: Domínios e fronteiras. S. Paulo: Cortez,

2001.

NABOKOV, Vladimir. Lolita. Tradução de Jorio Dauster. Rio de Janeiro: O

Globo, 2003.

ANDRADE, Oswald de. As meninas da Gare. Disponível em

<http://www.portugues.com.br/literatura/oswald-andrade---modernista-

revolucionario-.html>. Acesso em: 03/12/2014.

PEDRO LIMA é aluno de Letras da UFPR, trabalha atualmente como tradutor

para o site Literatortura.

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CANALSUBVERSA.com

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E depois foi sempre assim: Ligava a rádio, enquanto esperava que

todas as luzinhas se apagassem do painel atrás do volante. Retocava

batôn, que nunca antes usara, inspecionava cabelo, rímel, unhas e

decote. Sorria. «Ok, podemos seguir», afirmava de si para si: para

a lágrima de si; soterrando no estômago, que jejuava há dois dias, a

voz insípida do médico: «o tumor cerebral confirma-se». Ouvia a rádio,

enquanto esperava que todas as luzinhas se apagassem.

PU

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OSER

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BR

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ELA

AS LUZINHAS DELA

CÁTIA PENALVA

VIANA DO CASTELO,

PORTUGAL

CÁTIA PENALVA já foi professora do primeiro ciclo do ensino básico e agora é

Mestre em Educação Artística e dá formação de escrita criativa na sua

cidade.

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13

“Essa viagem não tem porque existir, nem de verdade nem no papel.”

Tatiana Salem Levy

A obra A chave de casa, de Tatiana Salem Levy, não se limita a

expor uma viagem turística até a casa de seu avô na Turquia, mas ela

tenta compor sua história, chegando ao absurdo de esvaziamento de

sua busca. A casa, afinal, já não existe se não em sua fantasia, nas

lendas e na história de uma comunidade que enxerga na lei de Moisés

mais do que uma mera obrigação moral, mas justamente na lei que

não consegue ser seguida, o mandamento que não se compreende,

raiz dos problemas modernos entre o nosso desejo e a busca de sua

saciedade.

Essa constatação leva a autora à pergunta: quem sou eu diante

de mim mesma? Se evitarmos essa pergunta a conseqüência será

NO

VELO

S|

MA

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IA M

OSER

AC

RÍL

ICA

SO

BR

E T

ELA

PARTIDAS: SOBRE A MULTIPLICIDADE DE CORPOS EM

“A CHAVE DE CASA”, DE TATIANA SALEM LEVY

ESTEVAN DE NEGREIROS

KETZER

PORTO ALEGRE, RIO GRANDE

DO SUL, BRASIL

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desastrosa, mais cedo ou mais tarde, pois essa pergunta, de cunho

interno, nos leva irremediavelmente a observar o outro, o outro que está

em mim e que veio fora de mim. Estamos nesse sentido presos a nossa

opção de olhar uma coisa como ela mesma ou como um contato entre

coisas diferentes; entregarmos ao certo estado das coisas, ou deixar as

coisas saírem do nosso controle. A possibilidade de ver as coisas

reunidas nos leva à ética, a algo mais do que uma mera classificação

do mundo. Com os movimentos do mundo a autora também acontece.

O outro está entre nós. Por que será essa a história que Tatiana nos

apresenta ser tão difícil de ler quando tão próxima dela mesma? Ler

esse outro criptografado em nós, como uma antiga escrita há muito

esquecida, tal como Gabriel García Márquez fez em Cien años de

soledad, ao realizar um encontro com a escrita esquecida, eis que a

história começa a despertar. Há algo de incerto, inconcluso e remoto ali

guardado. A mente consciente descobre, aos poucos, o que o corpo

não sabe ter vivenciado e que, no entanto, sempre esteve lá. Eis o

recalque freudiano, mudando de nome, gritando por vezes, em outras

circunstâncias, desejoso dos disfarces, a embalar o sono e impedindo o

contato do corpo com a mente. A experiência surge pelo desafiador

aparecimento de um não no lugar tranquilo da aparente natureza das

coisas.

Tatiana nos faz lembrar, com o velho ritual judaico do Hosh

hashaná (ano novo), a partilha do pão ázimo, sensação do deserto no

coração das pessoas; e da maçã com mel, representando a fartura do

ego. Nesta cerimônia, o deserto é a metáfora do egoísmo em nossa

relação com os outros, quando não conseguimos realizar um gesto de

doação ao outro, sofrimento durante a escravidão no antigo Egito; e a

maçã como o merecido doce da vitória sobre o sofrimento devido ao

exílio forçado em busca da “terra santa” (Eretz Israel). Tatiana nos

interroga, em seu trânsito migratório, na origem estranha do povo

brasileiro, se não somos também todos judeus, se de fato não estamos

Page 15: Revista subversa 9ª edição

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todos sob a ação de uma mesma lei, cujo contato perdemos: essa lei

do outro provoca a narradora, num esforço sem fim de poder contar

pessoalmente essa história, busca de um jeito inteiramente seu de dar

corpo a esta sensação. Talvez o primeiro instante seja ainda uma

descoberta desse seu mundo interno. Descobrir o que esse estranho

corpo quer dizer, estranhas palavras, estranhos desejos, advindos de

uma estranha cultura, muito antiga, quase desaparecida pelas

perseguições. É um corpo que viaja, impreterivelmente. Ele viaja

guardando um segredo. A mente registrando, depois de certo tempo; a

vagina gozando, no instante seguinte. A criação de um corpo novo,

como o Homem vitruviano de Da Vinci, mas fora do papel.

Entretanto, há aqui um interregno: um desenho visa clarificar,

facilitar a entrada do esboço de uma ideia, mas a mente humana não

suporta o insuportável, isto é, a verdadeira origem do sofrimento,

adquirindo um sintoma para dar conta. Sofrer porque não se pode

habitar um caminho verdadeiro sem “isso” (Es) da linguagem freudiana,

esse “isso” que me interpela repentinamente e invade meu modo de

sentir. Um “compromisso” que a palavra hebraica emuná denota ao

demonstrar o desafio entre um corpo e um mundo, girando em sentidos

contrários. O corpo foi obrigado a observar que a lei do mundo tinha

um sentido também e assim a irremediável constatação de que o

mundo está fora da mente, sem origem quanto ao nascer, sem destino

quanto ao morrer. Mundo que gera uma angústia na alma, sem

horizonte.

Um corpo, embrião de uma responsabilidade para além de si.

Responsabilidade política. Politizar esse corpo, por já começar a

descobri-lo, nesses territórios fora da lógica e do conhecimento

empírico, fora da ciência e da consciência que padroniza as coisas na

mesmidade mundana do eterno sempre. Essa descoberta que a mãe

da narradora fez com a política, a crítica de sua geração contra a

ditadura de Salazar em Portugal. A sina segue: ser caçada em Portugal,

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ser caçada na Suméria, ser caçada na Palestina, ser caçada na

Espanha, ser caçada na Turquia, ser caçada em Auschwitz e chegar ao

Brasil com o cansaço do corpo de todos os corpos de um passado

imemorial. Quantos corpos sem vida em 5775 anos de história? Desse

judaísmo que partilha ritos quebrados, deslocados de uma ordem do

mundo tornando caça aqueles que desobedecem as pretensas

autoridades de uma única e mesma política que regulou sempre os

corpos e os pensamentos. Política inquisitória e sua continuidade

através das ditaduras do século XX. Nesse ato contestatório, a política

materna reverbera na arte literária da filha. A tradição continua seu

reflexo fantasmático, a despertar de um grande sono lentamente.

Tatiana escreve, dando vida à voz de sua mãe:

“Você sabe, essa dor que sinto no corpo, os ombros

pesados, é o passado não esquecido que carrego

comigo. O passado de gerações e gerações. [Não,

minha filha, o que você suporta em seu dorso frágil são

os silêncios do passado. Você carrega o que nunca foi

falado, o que nunca foi ouvido. O silêncio é perigoso,

eu a alertei.]”.

Essa voz vinda de um outro lugar, de um outro tempo,

desautorizado e ainda impreterivelmente indagador, em sua tentativa

desesperada de trazer os escombros de uma caçada incessante.

Judeus na cumplicidade de sua judeidade, revelando o temor da

nomeação e com ele todo o perigo de um poder absolutista. Pensar é

um pesar, como nos provoca o filósofo espanhol Reyes Matte em sua

máxima acerca do povo sem território, errante, ainda à espera de um

tempo que se faça como descoberta da vida que vem

repentinamente. São tão remotas estas palavras a ponto de não

suportarem ídolos de barro ou falsas promessas de paz? Nesse momento

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17

a questão vem à tona: quem sou eu sem esse estranho corpo que me

carrega enquanto eu busco meu mundo?

Um gesto que se exige fora da página, uma nota em um antigo

alfarrábio hebraico. O fim dos ídolos gera outros ídolos? Qual a paz que

não é erguida após uma grande batalha? Dentro da página a

sequência de paradoxos que levam sempre à mesma pergunta: quem

somos quando o outro chegar? E a partir daqui começa ou recomeça

a viagem em busca desse estranho esforço decifratório, pelos

interstícios de uma sabedoria secreta: Ein sof, o infinito e sua lei própria,

base da eterna arte da criação também reverbera dentro de nós.

Referência

LEVY, Tatiana Salem. A chave de casa. São Paulo: Record, 2007.

ESTEVAN KETZER é psicólogo clínico. Doutorando em Letras

pela PUCRS. Pesquisa a relação entre poesia, filosofia e

psicanálise na obra do poeta Paul Celan. Além de ensaísta.

é poeta.

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18

“Será que é tempo

Que lhe falta pra perceber?

Será que temos esse tempo

Pra perder?

E quem quer saber?

A vida é tão rara

Tão rara”

Lenine

“Só te peço um pouco mais”… é tudo o que ela não quer ouvir!

Já perdeu a conta de quantas vezes em sua vida a palavra se repetiu;

-paciência! Era como um karma, uma perseguição, em tudo só pediam

que tivesse paciência: na fila, no mercado, no hospital, na repartição

pública… no raio que parta a puta da vida. E agora que tudo é tão

urgente; dor, frio, fome, sede, amor, tesão… quando não há mais

forças para esperar… e no momento em que sente a ponta do pé

UM POUCO MAIS

ALÍ

VIO

| M

AR

ÍLIA

MO

SER

AC

RÍL

ICA

SO

BR

E T

ELA

TÂNIA ARDITO

SÃO PAULO – PORTO

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CANALSUBVERSA.com

19

alcançar o vazio do abismo… ele só pede “um pouco mais de

paciência”.

TÂNIA ARDITO atualmente vive na cidade do Porto e é cofundadora e

editora do Canal Subversa.

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20

Homenagem a um dos maiores poetas de todos os tempos:

Carlos Drummond de Andrade

“As estrelas estão fechadas.

Volte outro dia”

Dizia o cartaz no pé da serra.

O que fazer, Maria?

E agora, Maria?

Sua roupa está lavada

Sua casa arrumada

E a comida preparada.

A mesa posta

A cama feita

O pó tirado

MO

ÇA

FLO

RID

A |

MA

RÍL

IA M

OSER

AC

RÍL

ICA

SO

BR

E M

AD

EIR

A

E AGORA, MARIA?

ELIANA MACHADO

SÃO PAULO - MÔNACO

Page 21: Revista subversa 9ª edição

CANALSUBVERSA.com

21

E sua alma...

Despedida.

E agora, Maria?

Se você soubesse,

Se você cantasse,

Se você escrevesse

Uma comédia musical

Para o teatro da vida

Aquela que teve, um dia.

E agora, Maria?

Você quer chorar

Mas as lágrimas secaram

Você quer gritar,

Gritar para quê?

Ninguém a ouve.

Você quer morrer,

Mas o céu está fechado.

Nem sequer você tem escolha...

E agora, Maria?

E se você trocasse de filosofia?

Vai, Maria, vai pro Inferno.

ELIANA MACHADO nasceu em São Paulo e vive na França desde 1994. É

especialista em línguas e literaturas hispânicas. Já lecionou diversas línguas e

traduziu Luiz Alfredo Garcia-Roza. EM 2015, lançará “Sete Contos Brasileiros” e

“Brasil: Aventura Interior”.

Page 22: Revista subversa 9ª edição

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22

Dedicado à Célia, uma pessoa especial.

O relógio bate as horas marcando o momento em que minha alma se

entregaria a tua

O relógio que bate as horas marcando a nossa convivência e

confiança

Os anos que se passam: mais que segundos, minutos e horas, são anos

somente ao teu lado

Belos anos! Belos! Belos!

O vento que tocou nos meus cabelos no momento em que me

entregava de corpo e alma. Quando me vi entrelaçada ao destino

inesperado. Acreditei em vão por anos num laço que não existia, pensei

que esse era um lindo laço, mas na verdade era um nó.

Levando palavras ao vento e fotos que viraram apenas papéis rasgados

Suas suspeitas eram incabíveis. Fui condena por ti por um crime que não

cometi.

O AMOR FATAL C

HU

VA

DE

FLO

RES

NEG

RA

S |

MA

RÍL

IA M

OSER

AC

RÍL

ICA

SO

BR

E TE

LA TAIS NAVES

NEPOMUCENO, MINAS

GERAIS, BRASIL

Page 23: Revista subversa 9ª edição

CANALSUBVERSA.com

23

Ah! Suas suspeitas intimando-me e assim acabar com o nosso amor.

Oh dor, saia de mim agora!

Saia da minha vida!

Ah! Minha vida!

Era mentira que eu poderia confiar minha alma na eternidade contigo

como prometido, foram apenas palavras ao vento.

Amor! Essa palavra me dói, fere como lança no peito.

Um rifle engatilhado preparado exato como alvo para acertar o meu

peito já ensanguentado.

Desejo forte de aliança jogada fora, anos, fotos, lembranças.

Saio correndo sem destino no meio da mata com raiva, mágoa-Abro

um buraco e enterro o passado, aliança que está no meu dedo fica ali.

Levanto a cabeça, lágrimas ao cair, sem olhar para trás. Lembranças

vão me atormentar, mas o rifle não me atingirá.

TAIS NAVES Sonha em ver o mar, viajar para vários países, conhecer outras

culturas, fazer um centro educacional e centro de adoções para animais

abandonados. Pretende, também, escrever vários livros. E como a vida para

ela é só o começo, afirma que há de sonhar isso e muito mais.

Page 24: Revista subversa 9ª edição

CANALSUBVERSA.com

24

Este texto tem como proposta refletir sobre o conceito de alegoria

em dois momentos paradigmáticos da história literária: o período

helênico e a Península Ibérica do século XVII. Desenvolveremos, para

isso, uma dupla focalização, partindo, em primeiro lugar, de uma

preparação de um instrumental teórico que nos possibilite remontar um

painel em que se exponha os procedimentos retórico-poéticos

pertinentes ao tempo em questão; em seguida, buscaremos traçar um

cruzamento entre o modus operandi da alegoria no texto homérico e

na sermonística de Antônio Vieira. Mais precisamente, falaremos do

escudo de Aquiles 3 , cuja descrição está presente na Ilíada, como

alegoria do poder, assim como assinalaremos o cruzamento tropológico

engendrado na épica homérica que se transmuta em alegoria da mais

engenhosa formulação; paralelamente, também abordaremos como o

3 Para um aprofundamento nos outros sete escudos analisados, cada um, sob

o prisma da cena central da tragédia esquiliana “Sete contra Tebas”, ver

Vernant, 2011.

FELIPE LIMA

RB

AR

A |

MA

RÍL

IA M

OSER

AC

RÍL

ICA

SO

BR

E T

ELA

DE HOMERO A VIEIRA:

VISÕES PRISMÁTICAS DA ALEGORIA

FELIPE LIMA

RIO DE JANEIRO, RIO DE

JANEIRO, BRASIL

Page 25: Revista subversa 9ª edição

CANALSUBVERSA.com

25

texto de Antônio Vieira, enquadra-se em uma categoria alegórica

distinta.

Para êxito da tarefa que esse texto se incumbe, cabe destacar

que não se trata de um trabalho de comparação, propriamente, mas

de usar esses dois representantes da história literária universal como

eixos canalizadores de uma produção alegórica insuperável. Espero

que as breves observações aqui esboçadas consigam alguma sintonia

com o movimento da obra de Antônio Vieira, com o ritmo singular de

suas concepções, bem como com a épica homérica, possibilitando,

assim, um cruzamento proveitoso com a produção teórica e a literária.

Além disso, não cabe, neste trabalho, discutir as arestas do

conceito de literatura, mas, notifica-se, de antemão, que o aspecto

“literário” atribuído aos textos de ambos os autores aqui em foco, serve,

em sentido lato sensu, como instrumento de menção ao objeto ao qual

nos debruçamos. Nesse contexto, respeita-se o espaço temporal que

separa ambos os autores dos valores iluministas os quais plasmam uma

noção distinta de literatura. Sendo assim, serão conservadas as ideias e

os valores do tempo de cada autor, para que não sejam reproduzidas

as concepções estéticas de um conceito neokantiano.

Para melhor contextualizar o tema abordado, é oportuno

ressaltar, ainda, que o conceito de alegoria sofreu modificações

segundo à concepção de cada tempo, recebendo nomeações e

atribuições de acordo com a configuração do pensamento vigente de

cada momento histórico específico.

Primeiramente, na Retórica antiga esse conceito consistia em

uma modalidade da elocução, uma espécie de “procedimento

construtivo” (HANSEN, 2006, p. 7) que a Antiguidade greco-latina e

cristã, continuada pela Idade Média denominou “alegoria dos poetas”.

Tal conceito é fundado na expressão alegórica, uma “técnica

metafórica de representar e personificar abstrações” (2008, p. 8).

Nas práticas discursivas da Antiguidade, a alegoria era posta em

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oposição retórica ao sentido próprio e ao sentido figurado cujo

segundo termo, considerado o „desvio‟, é posto em lugar do primeiro

termo, considerado „próprio‟ ou „literal‟, transmutando-se a significação

de um objeto a outro, para - em um movimento de transposição, como

assinalava Aristóteles no proêmio do livro terceiro da Retórica - produzir

novas significações a partir de pontas semânticas afastadas.

Distintamente dos poetas épicos greco-romanos, medievais e

autores hebraicos do Velho Testamento – dá-se o surgimento de outra

alegoria denominada “alegoria dos teólogos”. Esta, por sua vez,

também denominada, às vezes, de figura, figural, tipo, antitipo,

tipologia, exemplo (cf. Ibidem, p. 8). Ou, quando mais: ambages,

effigies, exemplum, imago, similitudo, species e umbra e, mais à frente,

allegoria – palavra latina usada como prefiguração histórica (cf.

AUERBACH. 1997 27).

De modo diferente da prescrição da retórica antiga, essa outra

alegoria não consiste em um modo de expressão verbal retórico-

poético, mas de uma interpretação religiosa de coisas, homens e

eventos figurados em textos sagrados. Sendo assim, a rigor, não se trata

simplesmente de uma conversão, meramente, conceitual, mas de uma

alteração significativa no processo alegórico. Em primeira instância,

tem-se uma alegoria construtiva ou retórica – alegoria dos poetas; de

outro modo, uma alegoria interpretativa ou hermenêutica – alegoria

dos teólogos, podendo-se afirmar serem ambas simetricamente

diversas, mas complementares, pois, “como expressão, a alegoria dos

poetas é uma maneira de falar e escrever; como interpretação, a

alegoria dos teólogos é um modo de entender e decifrar.” (HANSEN,

2006, p. 8). Genericamente, pode-se compreendê-las pela sua matriz

semântica, que, nesse caso, configura-se segundo um substrato básico:

a alegoria dos poetas é fundamentada na semântica de palavras,

enquanto a dos teólogos é uma “semântica” de realidades reveladas,

supostamente, por coisas dispostas no mundo.

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Para maior eficácia, façamos um movimento de recolha no texto

– esforço natural das práticas textuais seiscentistas – e comecemos

analisar o cunho alegórico do escudo de Aquiles, imagem capital nos

versos da Ilíada.

Não é sem admiração que observamos “o grande e maciço”

escudo com o qual Aquiles voltará ao campo de batalha para a

conquista definitiva do seu destino, que selará o próprio destino dos

Aqueus e da guerra de Tróia. No momento que o escudo é descrito, o

discurso opera numa eloquência estrondosa, revelando um outro

escudo, feito de linguagem, refratário a tudo que não seja investimento

de uma necessidade interna da épica, enquanto objeto estético-

filosófico. Na própria, monumental, descrição homérica:

Fez primeiro um escudo grande e robusto,

todo lavrado, e pôs-lhe à volta um rebordo

brilhante,

triplo e refulgente, e daí fez um talabarte de prata.

Cinco eram as camadas do próprio escudo; e nele

cinzelou muitas imagens com perícia excepcional.

Nele forjou a terra, o céu e o mar;

o sol incansável e a lua cheia;

e todas as constelações, grinaldas do céu:

as Plêiades, as Híades e a Força de Oríon;

e a Ursa, a que chamam Carro,

cujo curso revolve sempre no mesmo sítio, fitando

Oríon.

Dos astros só a Ursa não mergulha nas correntes do

Oceano.

(Ilíada, XVIII VV.478-608)

Na comparação entre imagem e texto pode-se notar que

tamanha descrição é única e não fica a desejar à imagem real do

escudo. Nesse caso, todos os motivos humanos e naturais estampados

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por Hefesto na camada externa da admirável arma constituem um

verdadeiro “escudo” literário, refletindo as ressonâncias, os

espelhamentos, os paradigmas, as recorrências do contexto épico

narrado na Ilíada. Na chave de leitura de Werner Jaeger, na sua

Paidéia, esse escudo é o “símbolo da concepção épica do homem”

(cf. 1994, p. 77) que alcança seu auge na representação iconografia e

na descrição em detalhe pela Ilíada.

A riqueza de detalhes, como amplitude iconográfica, junto à

exímia descrição no texto épico, feita por Homero, atribui ao escudo um

valor de grande prestígio. Além disso, faz valer o importante papel

ocupado por Aquiles no texto, uma vez que não só por ser o ilustre

guerreiro, ainda recebe as melhores armas que o engenhoso Hefesto

pôde produzir. O escudo - enquanto instrumento bélico - demonstra a

nobreza de Aquiles que detém uma arma indestrutível e o destaca

como idôneo guerreiro entre os demais.

Na esteira da questão que se explora, o escudo, portanto, é a

alegoria do poder de Aquiles, consistindo em uma “alegoria dos

poetas” criada por Homero na descrição que faz no canto XVIII da

Ilíada. Isso se dá através da transferência do “poder” - sentido figurado

que representa o valor do escudo – para a própria materialidade do

escudo – o sentido próprio. Em outras palavras, o escudo representa,

tropologicamente, o poder e a glória de seu detentor – Aquiles. E mais:

operando essa transmutação entre os lugares-comuns das pontas

semânticas, a alegoria se concretiza plenamente, pois desloca o valor

simbólico do termo “poder” para o objeto que emana o poder e glória

do ilustre guerreiro, relacionando-os na mesma esfera significativa do

campo semântico da guerra.

Desse modo, a “alegoria dos poetas” com seu aspecto

assimilativo possibilita relacionar dois objetos independentes e projetar

uma correspondência entre eles, como assim faz Homero, em relação

ao sentido de “poder” que detém o grande guerreiro grego Aquiles e o

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material impecável descrito no escudo feito por Hefesto.

Em claras palavras, Adolfo Hansen apresenta o cerne da

diferença entre ambas as alegorias, apontando que:

Segundo a alegoria greco-romana e suas

retomadas, o mundo é objeto de representação

própria e figurada pela poesia e prosa; segundo

alegoria hermenêutica, desde sempre existe uma

prosa do mundo a ser pesquisada no mundo da

prosa bíblica. (2006, p. 91).

Seguindo tal pista deixada por Hansen, pode-se enxergar a

questão segundo um prisma cristalino: a alegoria criada nos versos da

épica homérica não tem valor essencialista, isto é, sua relação

significativa acontece entre os dois elementos, o “poder” e o “escudo”,

sem que, inerentemente, carreguem uma carga de essencialismo. Em

poucas palavras, trata-se de um objeto que representa, ou melhor,

possibilita representar um conceito: o poder.

Diferentemente, o mesmo conceito tomará noções na Idade

Média que atribuem a ele um sentido espiritual, segundo os preceitos

escolásticos. Nesse caso, tem-se como exemplo, Antônio Vieira, exímio

jesuíta, cujo fundamento de todo seu sermonário é uma “teatralização

retórica da teologia política” (HANSEN, 2008, p. 9), ou melhor, um

autêntico theatrum sacrum cuja natureza da sermonística se agrupa a

uma unidade composta por uma “cenografia em que, por alegoria e

por anamorfose, a actio oratória [do] Padre dramatiza os fins últimos do

Estado português” (Ibidem, 2008, p. 10).

Posto desta forma, a natureza alegórica da Idade Média e da

época de Vieira modificou-se profundamente em relação à “alegoria

dos poetas”, pois àquela é introduzido um novo elemento de

funcionalidade: o essencialismo. Todo pensamento escolástico está

vinculado, tomisticamente, a uma questão inerente ao pensamento

vigente da época: a presença de Deus em todas as coisas. Formado

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sob a égide jesuítica, Vieira imprime o caráter essencialista em seus

textos, reproduzindo algo que ainda não era característico da

concepção alegórica dos poetas clássicos. Sendo assim, a arte

parenética do século XVII define-se por: “semear as palavras de Deus e

fazê-las frutificar no coração dos fiéis e no corpo místico do reino”

(PÉCORA, 2001, p.136). O sermão, por sua vez, constituiu-se, nas palavras

do Autor que nos vem acompanhando por aqui, como uma autêntica:

Imperial máquina de guerra que captura com os

arquétipos do direito natural, tritura com os conceitos

predicáveis e refina com as agudezas dos conceitos

as ocasiões e as matérias do livre-arbítrio dos atores,

dirigindo-se para o fim sabido antes mesmo de que a

peça começasse: futuro do pretérito. (HANSEN, 2008,

p. 15)

A alegoria talvez seja um dos principais conceitos do repertório

retórico-poético que se modificou, apresentando adequações de

acordo com a vigência do pensamento de cada época, até receber

aspectos que a moldaram segundo um imaginário fundido na

unicidade de uma verdade – o cristianismo (cf. COSTA LIMA, 1988, p.

26). Assim sendo, Antônio Vieira é um dos maiores representantes da

produção dessa distinta configuração alegórica, ilustrando com nitidez

em seu famoso “Sermão da Sexagésima” que se deve “dobrar as flores

da eloquência ao serviço de um pensamento militante”. Em síntese,

retórica e poética jamais assumem posição independente como artes

discursivas, estando sempre subordinadas a um critério de verdade

preexistente no âmbito da moral cristã (cf. OLIVEIRA, 2005, p. 26).

Pelo caminho traçado aqui, já se pode vislumbrar como, em dois

momentos paradigmáticos, essa ferramenta, recorrente na longa e

fecunda tradição poética, metamorfoseou-se, produzindo

funcionalidades distintas segundo os prismas de cada época. No caso,

vimos que a construção alegórica que é representada pelo escudo de

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Aquiles é estabelecida em proporcionalidades semânticas da mesma

esfera, a guerra, à medida que o ornamento retórico-poético em Vieira

só pode ser aceito se for estritamente submetido ao critério de utilidade.

Além disso, o escudo, enquanto máquina de guerra representa o poder

e o prestígio de Aquiles entre os gregos, ao passo que o engenho

alegórico de Vieira representa uma eficaz máquina ideológica, que

busca contrapor ao prazer lúdico da linguagem a rentabilidade moral

que dela se extrai.

REFERÊNCIAS

AUERBACH, Erich. Figura. São Paulo: Ática, 1997.

COSTA LIMA, Luiz. O fingidor e o censor: no ancien regime, no Iluminismo

e hoje. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Lisboa: Edições70, 2005.

HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da

metáfora. São Paulo: Hedra; Campinas; Editora da Unicamp, 2006.

________. “Prefácio”. In PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento: a unidade

teológico-retórico-política dos sermões de Antônio Vieira. São Paulo:

EDUSP, Campinas: Editora Unicamp 2008.

HOMERO. Ilíada. São Paulo: Ediouro: s/d.

JAEGER, Werner W. Paideia: A formação do homem grego. Trad. Arthur

Parreira. 3° ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

LAUSBERG, Heinrich. Elementos de retórica literária. 3. ed. Lisboa:

Fundação Calouste Gulbenkian, 1982.

PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros. São Paulo: EdUSP, 2001.

_______. Teatro do Sacramento: a unidade teológico-retórico-política

dos sermões de Antônio Vieira. São Paulo: EDUSP, Campinas: Editora

Unicamp 2008.

VERNANT, Jean Pierre. “Os escudos dos heróis. Ensaio sobre a cena

central dos Sete contra Tebas”. In ______. Mito e tragédia na Grécia

Antiga. São Paulo: Perspectiva, 2011.

VIEIRA, Antônio. Sermões. Vol 1. Org. de Alcir Pécora. São Paulo: Hedra,

2000.

FELIPE LIMA é acadêmico de Letras da Universidade do Estado do Rio de

Janeiro, professor de Literatura e pesquisador das letras luso-brasileiras do século

XVII.

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