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Revista Brasileira Fase VII J ULHO-AGOSTO-S ETEMBRO 2002 Ano VIII N o 32 Esta a glória que fica, eleva, honra e consola. Machado de Assis

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  • Revista BrasileiraFase VII JULHO-AGOSTO-SETEMBRO 2002 Ano VIII No 32

    Es t a a g l r i a qu e f i c a , e l e v a , h on ra e c on s o l a .

    Machado de Assis

  • A C A D E M I A B R A S I L E I R AD E L E T R A S 2 0 0 2

    Diretoria

    Alberto da Costa e Silva presidenteIvan Junqueira secretrio-geralLygia Fagundes Telles primeira-secretriaCarlos Heitor Cony segundo-secretrioEvanildo Bechara tesoureiro

    Membros efet ivos

    Affonso Arinos de Mello Franco,Alberto da Costa e Silva, Alberto VenancioFilho, Antonio Olinto, Ariano Suassuna,Arnaldo Niskier, Candido Mendes deAlmeida, Carlos Heitor Cony,Carlos Nejar, Celso Furtado,Eduardo Portella, Evandro Lins e Silva,Evanildo Cavalcante Bechara,Evaristo de Moraes Filho,Pe. Fernando Bastos de vila, GeraldoFrana de Lima, Ivan Junqueira,Ivo Pitanguy, Joo de Scantimburgo,Joo Ubaldo Ribeiro, Jos Sarney, JosuMontello, Ldo Ivo, Dom Lucas MoreiraNeves, Lygia Fagundes Telles, MarcosAlmir Madeira, Marcos Vinicios Vilaa,Miguel Reale, Murilo Melo Filho, NlidaPion, Oscar Dias Corra, Paulo Coelho,Rachel de Queiroz, Raymundo Faoro,Roberto Marinho, Sbato Magaldi,Sergio Corra da Costa,Sergio Paulo Rouanet, Tarcsio Padilha,Zlia Gattai Amado.

    R E V I S T A B R A S I L E I R A

    Diretor

    Joo de Scantimburgo

    Conselho editorial

    Miguel Reale, Carlos Nejar,Arnaldo Niskier, Oscar Dias Corra

    Produo editorial e Reviso

    Nair Dametto

    Ass i stente editorial

    Frederico de Carvalho Gomes

    Projeto grf ico

    Victor Burton

    Editorao eletrnica

    Estdio Castellani

    ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRASAv. Presidente Wilson, 203 4o andarRio de Janeiro RJ CEP 20030-021Telefones: Geral: (0xx21) 2524-8230Fax: (0xx21) 2220.6695E-mail: [email protected]: http://www.academia.org.br

    As colaboraes so solicitadas.

  • Sumrio

    EDITORIAL Celebrao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

    CICLO DE CONFERNCIAS Centenrio de nascimento de Augusto MeyerALBERTO DA COSTA E SILVA Augusto Meyer: um poeta sombra

    da estante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9EDUARDO PORTELLA Reencontrando Augusto Meyer . . . . . . . . . . . . . . . 21TANIA FRANCO CARVALHAL Augusto Meyer, leitor de Machado

    de Assis. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29LUS AUGUSTO FISCHER Augusto Meyer, um ensasta da Comarca

    do Pampa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45FBIO LUCAS Caminhos da crtica de Augusto Meyer . . . . . . . . . . . . . . . . . 69

    Centenrio de nascimento de Carlos Drummond de Andradee de Srgio Buarque de HolandaGILBERTO MENDONA TELES O privilgio de ler Drummond . . . . . . . . 81JOO ADOLFO HANSEN Alguma prosa de Drummond. . . . . . . . . . . . . . 139MASSAUD MOISS Srgio Buarque de Holanda e a crtica literria. . . . . . 183

    Centenrio de falecimento de Urbano DuarteFERNANDO SALES O fundador da Cadeira 12 da ABL. . . . . . . . . . . . . . . 191

    DEPOIMENTOS Dez anos sem Jos Guilherme MerquiorEDUARDO PORTELLA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 209JOS MARIO PEREIRA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215ANTONIO GOMES PENNA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 237SERGIO PAULO ROUANET . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 247LEANDRO KONDER. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 261

    ProsaARNALDO NISKIER Ceclia Meireles A educadora . . . . . . . . . . . . . . . . . 267

    PoesiaVERA HSEMANN Dia a dia inevitvel poesia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 289IVES GANDRA DA SILVA MARTINS Poemas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 297

    Guardados da memriaJOO LUSO A Academia Brasileira de Letras e o Jornal do Commercio . . . . . . 309FRANCISCO VENANCIO FILHO Obras Completas de Afrnio Peixoto. . . 315

  • Celebraes

    Editorial

    Est a um mistrio para ser desvendado. Autores h que mere-ceriam estar em alto pedestal, para serem vistos, indagadossobre a sua personalidade, os seus trabalhos no mundo, e o que dei-xaram para os psteros. Outros, pouco ou nada fizeram, mas tive-ram os clarins da comunicao, as trombetas que espalham sons evozes por todas as partes, e, sem mrito, acabam ficando nas estan-tes, nas antologias, nas vitrines das livrarias em sucessivas edies.Todas as naes oferecem exemplos desses tipos. At mesmo aFrana, onde a abundncia de homens de letras e de pensamento exaustivamente grande, temos desses espcimes, e, ao cabo de algu-ma inquirio nas pginas das histrias literrias, acabamos encon-trando o que nos preocupa pela curiosidade.

    Se o leitor souber que Victor Hugo o grande Victor Hugo, queaos 26 anos provocou a famosa batalha do Hernani, dando origem aoRomantismo perdeu trs vezes a eleio para a Academia France-sa, elegendo-se somente na quarta tentativa, vale como exemplo, so-bretudo porque ningum guardou o nome dos escritores que o ven-

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    Editorial

  • ceram. De Zola se diz que disputou a cadeira sous la coupole cercade vinte vezes, mas no conseguiu se eleger.

    Outros, numa vez s, sem competidor, alcanam o cobiado fau-teil, e nele se conservam, de laAcadmie franaise, durante toda avida, que s vezes longa. No deixam nada, mas o nome ficou entreos quarenta da Casa fundada por Richelieu e ocupada por tantos no-mes ilustres, mas tambm por no poucas mediocridades.

    No Brasil, temos exemplos para oferecer aos curiosos, aos pesqui-sadores de novidades. Juscelino Kubitschek, o fundador de Braslia ereformador do Brasil, autor de Memrias, no entrou na Academiapor dois votos. Roberto Campos, uma das mais cintilantes inte-ligncias do Brasil, teve vinte votos, o que era minimamente precisopara entrar. Entrou, fez brilhante discurso, numa noite de gala noPetit Trianon, freqentou a Academia, o seu sonho dourado, verdadei-ramente o que ele mais aspirava na vida, e passados uns trs ou qua-tro meses, foi acometido de uma isquemia e de um infarto, vindo afalecer alguns meses depois. Repousa no Panteo dos Imortais, oMausolu mandado erguer por Austregsilo de Athayde e monu-mento nacional por decreto.

    Pertence Academia Augusto Meyer, tendo lhe dado a respostaao discurso de posse o crtico Alceu Amoroso Lima, o Tristo deAtade da crtica literria, sem dvida um dos maiores crticos liter-rios que o Brasil at hoje j teve.

    Augusto Meyer foi um dos maiores escritores da lngua portu-guesa, no s dentre os contemporneos, mas em todas as pocas,pelo estilo literrio, de grande beleza, pela lgica na exposio dostemas que escolhia para dissertar sobre eles, pelo carinho com quetratava a lngua portuguesa, a nossa lngua, o idioma que nos veiocom os descobridores e deu a identidade civil falada nova terra,descoberta por uma armada remotamente preparada pelos estudos epela ousadia de Dom Afonso Henriques, o grande descobridor derotas, sem as quais o mundo no se expandiria.

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    Editorial

  • Augusto Meyer ocupou vrios cargos na administrao pblica,sempre na rea cultural, fazendo-o com irrepreensvel autoridade,com rigorosa competncia,com dedicado amor s suas funes. Era,em tudo, um exemplo, como escritor e poeta, como administrador ecomo companheiro na Academia, que freqentou regularmente en-quanto pde faz-lo.

    No transcurso de seu centenrio de nascimento, a Academia Bra-sileira de Letras o celebrou com uma srie de conferncias, que serodadas estampa, na ordem cronolgica em que foram proferidas emabril deste ano, neste nmero da Revista Brasileira para que os nossosleitores conheam ou relembrem a grande figura desse filho do RioGrande do Sul e de poeta do Brasil.

    A seguir comemoramos, com artigos especialmente escritos paraa efemride, o centenrio de nascimento de Carlos Drummond deAndrade e de Srgio Buarque de Holanda, o centenrio de faleci-mento, em 1902, de Urbano Duarte, que foi o fundador da Cadeirano 12 da ABL, e os dez anos da morte de Jos Guilherme Merquior.

    Merquior foi um dos mais fascinantes acontecimentos nas letras bra-sileiras. Ele, um letrado, procurou forrar-se de cultura quanto lhe foipossvel, como se tivesse a premonio de que partiria cedo, como cedopartiu, aos cinqenta anos, em plena manifestao de seus extraordin-rios dotes de inteligncia na crtica literria, no ensaio e no culto dos au-tores que lhe eram agradveis e na pertincia com que estudava todos osproblemas de interesse intelectual, nas vrias lnguas que dominava.Tendo feito cursos superiores em vrios pases, estava preparado paraanalisar obras que lhe caam nas mos, pois que poucos leram tantoquanto ele, a ponto de Raymond Aron afirmar: Esse moo leu tudo.De fato, Merquior leu tudo de quanto necessitasse para atender sedede saber de sua inteligncia rigorosamente privilegiada.

    Para comemorar uma data que a Academia tanto preza, for-mou-se mesa-redonda, que, presidida pelo Acadmico Tarcsio Pa-dilha, possibilitou um dilogo fecundo e opulento, objeto dos traba-lhos aqui reunidos, com a devida reviso de seus autores.

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    Celebraes

  • Nos somos a sombra de um sonho na sombra.Noturno portoalegrense,in Poemas de Bilu, 2a edio (1955), p. 93.

  • Augusto Meyer: Um poeta sombra da estante

    Alberto da Costa e Silva

    E screvi, em 1951, um pequeno texto sobre a poesia de Au-gusto Meyer. Dias depois, encontrando-me com ele, per-guntou-me se eu conhecia um artigo que sobre os Poemas de Bilu meupai havia escrito, em 1929, para o Dirio de Notcias de Porto Alegre.No, no o conhecia. Augusto Meyer ento me disse: Vou conse-guir-te uma cpia, porque o que tu agora dizes mais ou menos oque dizia teu pai, vinte anos faz.

    O que dizia Da Costa e Silva de Poemas de Bilu, que , sem dvida,o mais importante livro de poesia de Augusto Meyer? Dizia que setratava de livro de um jovem de 27 anos intoxicado de cultura cos-mopolita, intelectivo at o cerne da sensibilidade, o que lhe per-mitia fazer prodgios de verve e de humor. Dizia que Augusto Meyervivia naquele estado de radicalismo aristocrtico que Brandes in-ventou para Nietzsche, com um imenso poder de comover-se, ain-da que isto procurasse disfarar em todos os momentos. Dizia mais:que era um menino deslumbrado pela vida, um menino que no

    Poeta e historiador,autor de A enxada ea lana: a frica antesdos portugueses e de Amanilha e o libambo: africa e a escravido,de 1500 a 1700,recentementepublicado. Suaobra potica estem Poemas reunidos(2000).Confernciaproferida na ABL,em 2 de maio de2002, encerrandoo ciclo deconferncias emhomenagem aocentenrio denascimento deAugusto Meyer.

    As imagens aqui inseridas fazem parte da Mostra Comemorativa do Centenrio deAugusto Meyer, organizada pelo Centro de Memria da ABL, sob coordenao de IreneRodrigo Octavio Moutinho e execuo de Luiz Anselmo Maciel Filho.

  • sabia nada, um menino que sabe nada, felizmente, porque saber saber que no sabe. Na realidade, tratava-se de um grande livro depoesia, porque Bilu se integrava e se reconhecia na ternura, fugindoassim ao seu fatalismo intelectual.

    E o que dizia eu? Dizia que o humor em Augusto Meyer era a ma-nifestao de uma sensibilidade saturada de cultura, para a qual o de-rivativo da verve era necessrio. Que nele o humor operava comouma espcie de porta por onde o homem de gabinete se evadia. Quenele a prpria prtica do verso correspondia a uma solicitao defuga da sombra da estante. E que seus poemas seriam apenas diverti-mentos de um poeta culturalmente saturado, se neles no houvesse apresena constante do sentimento da meninice. Bilu o falso autordos poemas que compem o livro mais do que um malabaristametafsico, / gro tapeador parablico, como lhe chama AugustoMeyer, era um menino s vezes perplexo, outras, abusado, mas quasesempre a iluminar-se de mundo.

    Em seu artigo de 1929, Da Costa e Silva invocou Heine, pela agi-lidade da inteligncia e o cepticismo velado; o Jogral de Goethe,porque brincava e sorria em sua revolta; e Jean Cocteau, pela ginsti-ca do esprito que o poeta demonstrava em cada poema. Eu lembreium outro autor. Lembrei Apollinaire, aquele Guillaume Apollinairecom quem Augusto Meyer dialoga num de seus ltimos sonetos, eque lhe confirma: Resistimos em vo dor do mundo. Como emApollinaire, h, em certos poemas de Bilu, uma multiplicidade desensaes, sentimentos e lembranas, que vo aflorando no espritodo poeta medida que seus passos ganham as caladas de Porto Ale-gre. Como em Apollinaire, sucedem-se, nos Poemas de Bilu, aquelesversos que ausncia de vrgulas, se distendem elsticos, e nos quaisno faltam palavras que se repetem sem pausa:

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    Alberto da Costa e Silva

  • Vernica do amor eterno sinos sinos

    Da infncia e a pandorga que soltavas l no morro.

    Ou ainda:

    Clareia a nvoa sobre o rio bocejo rseo.

    Ladra ladra o guaipeca a bordo.

    As ilhas nascem das guas:

    ilhas ilhas perdidas, me chamo Robinson Cruso,

    ilhas, lavai minhas mgoas,

    guas, lavai minhas mgoas.

    At mesmo a soluo final deste poema que abre o livro lembra osltimos versos de Zone de Apollinaire, s que, em vez de Soleilcou coup, temos:

    Quem botou esta luz irredutvel nos meus olhos?

    Manh.

    A estrela plida morreu.

    Tanto esse poema quanto o magnfico Noturno porto-ale-grense trazem nossa memria um outro poema, no pela dico,mas pela inteno, pois Augusto Meyer flana por Porto Alegre,como Baudelaire flanava por Paris. No se estranhar, por isso, que,em Andante, Meyer diga para si prprio:

    Bilu, cidado da harmonia csmica,

    voc deixe de bancar o Baudelaire.

    porque era Baudelaire que estava andando no corpo de AugustoMeyer pelas ruas de Porto Alegre. Mas Meyer tambm flanava pordentro de sua alma e, ao sair da sua sala cheia de livros para a rua,

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    Augusto Meyer: Um poeta sombra da estante

  • dava com a paisagem urbana, esta estava, nele, impregnada de pam-pa, nos gestos, nos modos de ser e, sobretudo, no vocabulrio comque a descrevia.

    Os gauchismos so, em Augusto Meyer, naturais no so pro-curados, no so intencionais e podem passar despercebidos a ou-tros que no a ns, que nos vemos obrigados muitas vezes, ao l-lo, acorrer aos dicionrios: Sou um tranquito de petio contente. Ou:A raiva di como um guarqueao. Ou ainda: Ladra ladra o guai-peca a bordo. Eu pergunto se os que no so gachos sabem o que um tranquito, um petio, um guarqueaoou um guaipeca?

    O gauchismo de Augusto Meyer no se reduz ao uso das palavras,palavras que lhe eram naturais, palavras do seu dia-a-dia. H umapresena da paisagem rio-grandense e dos modos de ser do gachoao longo de toda a sua poesia. At mesmo nos ttulos. Se no, veja-mos como denominou alguns de seus poemas: Ressolana, Ma-nh da estncia, Orao da estrela boeira, para no falar naquelemagistral Minuano, um poema que todos guardamos de cor. E as-sim ser at o final de sua vida, at os seus ltimos poemas, at Ce-mitrio campeiro e Caminho de Santiago.

    Mas h algo que deflui, de certa maneira, da sala cheia de livros: o tratamento potico que ele d aos temas folclricos que j haviamdesde muito sido recolhidos pelos grandes estudiosos do Rio Gran-de do Sul. Isto acontece em tantos poemas que me reduzo a dizer onome de apenas alguns deles: Boitat, Sinh dona, aquela mara-vilhosa Orao ao negrinho do Pastoreio, escrita em redondilhamaior e com a dico inteiramente popular, Puladinho, Canobicuda. Era como se o poeta estivesse antecipando o autor do Guiado folclore gacho, do grande estudioso das tradies de sua terra que foio erudito Augusto Meyer.

    Em outros poemas recorre s canes populares e delas retoma oritmo, o vocabulrio e o encadear dos versos. Desde os seus primei-

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    Alberto da Costa e Silva

  • ros livros, desde Corao verde, com Gaita, ou desde Giraluz, ondeencontramos versos como estes:

    Eu no tinha mais palavras, vida minha,

    Palavras de bem-querer.

    Eu tinha um campo de mgoas, vida minha,

    Para colher.

    pura poesia popular. Mas o poeta podia fazer isso, podiaat dedicar-se a trapezismos de humor, porque dominava com-pletamente o seu ofcio. Na sua oficina potica, ele estava sem-pre vontade, como se pode ver na stira goma de mascar,Chewing gum:

    Masco e remasco a minha raiva, chewing gum.

    Que plula este mundo!

    Roda roda sem parar.

    Zero zero zero zero,

    uma falta de imprevisto...

    Quotidianissimamente enfastiado,

    engulo a plula ridcula,

    janto universo e como mosca.

    Comi o mio-mio das amarguras.

    A raiva di como um guasqueao.

    Amolado.

    Paulificado.

    Angurreado.

    Bilu, pensa nas madrugadas que viro,

    aspira a fora da terra possante e contente.

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    Augusto Meyer: Um poeta sombra da estante

  • Cada pedra no caminho trampolim.

    O futuro se conjuga saltando.

    Depois:

    indicativo presente

    caio em mim.

    Ou naquela inesquecvel Elegia para Marcel Proust:

    Alia de bambus, verde ogiva

    recortada no azul da tarde mansa,

    o ouro do sol treme na areia da alameda,

    farfalham folhas, borboletas florescem.

    Porto de sombra em plena luz.

    Gemem as lisas taquaras como frautas folhudas

    onde o vento imita o mar.

    Marcel, menino mimoso, estou contigo, Proust:

    vejo melhor a amndoa negra dos teus olhos.

    Transparncia de uma longa viglia,

    imagino as tuas mos

    como dois pssaros pousados na penumbra.

    Escuta a vida avana, avana e morre...

    Prender a onda que franjava a areia loura de Balbec?

    Cetim rseo das macieiras no azul.

    Flora carnal das raparigas passeando beira-mar.

    Bruma esfuminho Paris pela vidraa

    Intermitncias chuva e sol Le temps perdu.

    Marcel Proust, diagrama vivo sepultado na alcova.

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    Alberto da Costa e Silva

  • O teu quarto era maior que o mundo:

    Cabia nele outro mundo...

    Fecho o teu livro doloroso nesta calma tropical

    como quem fecha leve leve a asa de um cortinado

    sobre o sono de um menino...

    As palavras correm de verso para verso, ainda que muitas vezes,magistralmente, o perodo se complete com o verso, coincida comele. A idia potica cabe inteira numa s linha, como nestes momen-tos perfeitos: Volpia da roupa nova e da carne lavada, Ns so-mos a sombra de um sonho na sombra, A tarde morre como umfim de sonho, Cresce a pupila at tocar no cu sem lua.

    Augusto Meyer tinha lances de mestre, desde seu primeiro livro.Apesar disso, os Poemas de Bilu representaram um salto para frente nasua poesia. Corao verde e Giraluz ainda so remanescentes do tardoSimbolismo, pertencem ao espao daquilo que se chamou, no Brasil,de penumbrismo. Poemas de Bilu rompem com esse penumbrismo ecom o lirismo bem comportado de seus livros anteriores. Mas, aomesmo tempo, continuam esses livros, pois todos os recursos que eledomina em Poemas de Bilu j vinham sendo exercitados desde antes, jfaziam parte do arsenal potico de um Augusto Meyer que convive-ra com a musicalidade verbal do simbolismo de Eduardo Guima-res, como o sentimento pastoral da vida de Francis Jammes, com ogosto pela palavra simples e humilde de um Marcelo Gama enchar-cado de Cesrio Verde.

    Encontram-se at mesmo, em Poemas de Bilu, certos temas que so t-picos do penumbrismo: o do cigarro e sua fumaa, por exemplo, umaconstante na poesia do incio do sculo na poesia de Mrio Peder-neiras, de Marcelo Gama, de Ronald de Carvalho, do primeiro Ribei-ro Couto e de todos os penumbristas. Em Augusto Meyer, lemos:

    15

    Augusto Meyer: Um poeta sombra da estante

  • Acendi a estrelinha do cigarro e me enrolei no poncho grande da sombra.

    E ainda:

    S vejo as plpebras cadas e a brasa ardendo no cigarro.

    Ou, mais adiante, estes trs versos de um penumbrismo absoluto:

    Bebe a melancolia dos goles sonolentos

    enquanto arde na ponta de cada cigarro

    a poesia implacvel do tdio feliz.

    H uma linha de coerncia em toda a sua obra. Mesmo quando severifica uma ruptura, esta se recompe em continuidade, como se ofalar de cada livro continuasse no outro e as tentaes que acossa-vam o poeta se repetissem. Est neste caso a admirao de AugustoMeyer pela poesia dos cancioneiros por Dom Dinis, sobretudo, dequem ele retiraria um verso para dar nome ao seu segundo livro dememrias, No tempo da flor , uma admirao que o fez parodiar o tro-var medieval e at inventar o que poderia ser uma forma de portu-gus quatrocentista, em Cano do chus, por exemplo, para, noimpulso seguinte ironizar o escrever antiga, quinhentista, que seia fazendo moda no Brasil depois de Jos Albano. Mas Meyer norecua ao quinhentismo: vai at os cancioneiros. E escreve:

    Amigos, trobemos cluz.

    O non troblemos, bailemos

    A dana dombros, e sus!

    Que malmaridada a alma

    E a vida, l vai perdida.

    Deix-la, sem chus nem bus...

    Ou, em Rimance:

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    Alberto da Costa e Silva

  • Senhora minha, quo vadis?

    Que me enchedes de soidades,

    A esta faom me feredes

    Deperecer por mi f

    De vossas blancas beldades.

    Para, alguns versos depois, concluir:

    Deixaredes de mardades.

    Essa pardia extraordinria revelava um conhecimento profundoda poesia trovadora, mas no impediu que em Bailada, Meyer dis-sesse ao poeta que tirou de si mesmo:

    Ai Bilu, j no sers bom jogral,

    J no sers nem bom jogral, nem segrel,

    Nem trovars, ai! como proenal,

    Nem cantars, ai! qual menestrel.

    Pouco depois de 1930, Augusto Meyer imps a si prprio oabandono da poesia: fez um voto ntimo de no mais escrever poe-sia. E s foi romper esse voto uns vinte anos mais tarde. Ao rom-p-lo, ele voltaria poesia trovadoresca e escreveria uma balada ex-traordinria, maneira de Franois Villon, na qual, por assim dizer,ele renega, ou melhor, se arrepende daquela promessa que fizera:

    Bilu, tire a lira do prego,

    Faa uma balada, no duro!

    Malfelizardo! em vo esfrego

    O epicrnio e as Musas torturo.

    Sbrio ou brio, puro ou impuro,

    Que Rei sou eu, que em vo me afano

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    Augusto Meyer: Um poeta sombra da estante

  • A imprecar Bilu, o perjuro?

    Mas u som as nvoas dantano?

    U Alba, meu primo amor,

    E u Germana, a Menina,

    Fremosa sobre toda flor?

    Ay! fumo tudo, v nebrina,

    Menonha, folia malina!

    Mal me nembra damor e ogano

    Digo alto e bom som ou em surdina:

    Mas u som as nvoas dantano?

    Que Meyer haja colocado esta balada a abrir os Poemas de Bilu, naedio de 1955 de sua poesia, que ele haja tomado um poema novo eo colocado como abertura de um livro antigo, sintomtico. Mostraque a personagem que, em 1929, se ameninou do adulto continuavaviva, a equilibrar-se no alto dos muros e a saltar de um lado paraoutro. Poeta, ele continuava a ver-se mais como jogral que comotrovador. Mas estava enganado. Pois a balada maneira de FranoisVillon exceo no conjunto de seus ltimos versos.

    Os poemas em prosa de Literatura e poesia j foram vistos como umadespedida. Quando retoma o verso ainda que poucas vezes, por-que a poesia de Augusto Meyer, aps 1950, se reduz a uma quinzenade poemas , o tom dessa poesia elegaco denso e elegaco. Quasesempre a regressar dico de sua poesia antiga, de sua primeira poe-sia, anterior aos Poemas de Bilu, a uma poesia que se deixara ficar nopenumbrismo, mas que agora se alimentava de uma tcnica perfeita,pois o poeta amadurecera a no escrever poesia. Mas nesses poemasde fim de vida, regressa, completo, perfeito, ntegro, o menino des-lumbrado que Da Costa e Silva encontrara nos versos de 1929.

    Augusto Meyer, nas duas abas de seu silncio, encontra-se e se in-tegra na ternura da meninice, naquilo a que ele chamou fonte cla-

    18

    Alberto da Costa e Silva

  • ra. E seria essa necessidade de recuperar os primeiros dias do mun-do, em quem talvez reconhecesse na memria uma certa superiorida-de sobre a imaginao criadora, que o levaria a escrever esse longo ecomovente poema em prosa a que deu o nome de Segredos de infncia.

    Segredos de infncia antecipa, em um ou dois anos, a ruptura docompromisso que assumira consigo prprio de no mais escreverversos. Ainda bem que se fez perjuro! No nos enganemos, porm.Poemas como Cemitrio campeiro, como aquele soneto que as-

    sim termina

    Tudo se apague e a hora esquea a hora

    Que s do sonho eu vivo, e grato o sono

    A quem provou seu dia de vindima.

    bem como aquele belssimo Retrato no aude, so acenos deadeus. Todo esse pequeno conjunto de versos escritos aps 1950,como a culminar a obra potica de Augusto Meyer, pode definir-secomo uma poesia do regresso, apurada na linguagem e verticaliza-da na emoo da vida, de uma poesia que sempre quis estar coladas cousas e que nos diz, por isso, em todos os momentos: O mun-do .

    19

    Augusto Meyer: Um poeta sombra da estante

  • Se me debruo um pouco para dentro de mim mesmo, voltando aoscaminhos confusos da juventude, vejo um mocinho espigado e tmido, j maisou menos doente de literatura.

    Discurso de posse na ABL (19/04/1961),in Discursos Acadmicos, vol. 16o, p. 57.

  • ReencontrandoAugusto Meyer

    Eduardo Portella

    Devo dizer que tenho uma satisfao muito especial de poderfalar sobre Augusto Meyer, a convite de Ivan Junqueira.No sei se a satisfao saber mobilizar o necessrio alcance crtico.s vezes a satisfao e o exerccio crtico no se articulam devida-mente. Mas fiquei muito impressionado com a possibilidade deum reencontro. Eu conheci Meyer, quase diria que privei da inti-midade dele e temos uma srie de pontos de contato ao longo davida importante dele e da minha que comeava. Ele foi o primeiroprofessor titular de Teoria da Literatura, a ctedra que veio a serminha pouco depois, sucedendo a ele. Vou insistir no verbo suce-der, para evitar que algum imagine que eu estou pensando emsubstitu-lo. Esse exerccio universitrio e a preocupao perma-nente de desenvolver um ensaio nos aproximou. Naquela hora demeu regresso ao Brasil, depois de uma vida de estudante fora, erao auge da crtica estilstica, e Meyer soube como poucos encarnaressa crtica.

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    Professorcatedrtico eprofessoremrito daFaculdade deLetras da UFRJ;ensasta e crticoliterrio;Presidente dafundaoBibliotecaNacional.Confernciaproferida naAcademiaBrasileira deLetras, em 2 deabril de 2002,no cicloCentenrio denascimento deAugusto Meyer.

  • Ele era uma figura discreta, silenciosa, amena, mas extremamentesensvel, extremamente perceptiva. Com essa sensibilidade e essapercepo, mais uma instrumentalizao crtica, ele pde construiruma obra que reflete exatamente essas duas vertentes bsicas daconstruo dele. A percepo, o contato subjetivo e a programaocrtico-racional de todo aquele material.

    Para se ingressar na construo mltipla de Augusto Meyer po-de-se recorrer a diferentes possibilidades. Vrias so as passagensque se abrem diante de ns. Em todas elas predomina o trao liter-rio, o vinco inegocivel da literariedade. fundamental dizer queMeyer no foi bem um intelectual de padro moderno, um intelec-tual ao estilo de Voltaire, um intelectual que o Ocidente desenvol-veu a partir das Luzes. Ele era fundamentalmente um homem de le-tras, algum voltado para a construo e para a indagao do fazer li-terrio.

    Se comearmos pelas suas poesias e aqui utilizamos a edio daLivraria So Jos, de 1957 seremos surpreendidos por uma colet-nea de textos que no encontrou a ressonncia merecida, talvez peladificuldade de classificao. Seus poemas, no raro poemas em pro-sa, narrativas, pequenos ensaios, crnicas, so todos textos de fron-teira, boa maneira dos pampas, mas com uma densidade reflexivapouco freqente em nossa literatura. A opo da simplicidade o pro-tegeu das retricas opulentas ou equivocadamente solenes.

    O primeiro livro, Alguns poemas, de 1922. A descrio, de fundoromntico, se compraz em desenhar cenas simples, onde se revezamsom e imagem sem nenhuma fria para aludir a alguma coisa queficou no ar graas a Shakespeare e a Faulkner. O mesmo acontececom o livro seguinte. V-se nesse bucolismo congnito que a voraci-dade modernista no havia chegado ainda aos seus pagos gachos. OSul no havia ainda tomado conta da plataforma de governo lanadaem 1922 em So Paulo. O mesmo acontece com Corao verde, de1924. O lirismo comedido atravessa o mbito da natureza e alarga o

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    Eduardo Portella

  • alcance pictural do poema. Em seguida temos o livro Giraluz, de1926. J um lugar de contraponto, de verticalizao, de maior vi-gor intersubjetivo. Essa intersubjetividade absorve e reprograma omundo exterior, sem cair na poetizao melodramtica ou concessi-va nem ceder palavra esqulida e anmica.

    fundamental perceber que, nesse primeiro momento, embora apresso dos resduos romnticos seja enorme, Meyer vai se descar-tando progressivamente do melodramtico dos primeiros versos econstruindo uma poesia distncia daquele esplio, relevante po-rm perigoso. A Balada para os carreteiros, dentro desse equilibra-do esforo de despojamento, envereda pela prosa adentro. Depoisdo intervalo sublime do Poema das rosas, e ainda nostlgico da li-teratura absoluta, o poeta csmico anuncia: Eu vi a luz nascer pelaprimeira vez no mundo.

    Em seguida o tom cai, na pausa menos convincente de Duas ora-es, de 1928. A programao auditiva e visual sofre uma espcie deparada cardaca. Quase simultaneamente o ritmo coronrio se refaz,e Meyer publica o seu livro de mais ampla repercusso, Poemas de Bilu,de 1929. O fantasma romntico ttulo do livro do nosso saudosoJos Guilherme Merquior o acompanhar para sempre, ao pontode se assumir por inteiro em um de seus ltimos versos: Eu pormim conservarei o dom das lgrimas, disse ele.

    fundamental acrescentar que no escritor sbrio essa preocupa-o ainda um ato contido, jamais exposto visitao pblica. Noh, portanto, uma inundao das lgrimas. H um controle moder-no da lgrima, uma espcie de gesto da lgrima. Difcil gesto, por-que a lgrima por ela mesma incontrolvel. Este verso se encontracoincidentemente no livro Literatura e poesia, de 1931, uma metalin-guagem colorida, onde ele pde gravar o seu saber resumido e deixarclaro o alto teor potico de sua prosa. Vale a pena transcrever umtrecho emblemtico dessa obra de Augusto Meyer, das mais fasci-nantes e das menos conhecidas. Diz ele:

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    Reencontrando Augusto Meyer

  • Lucidez de manh, quando as idias voam com asas de luz e nopousam. Toda a idia que pousa morreu. No momento em que elafechar as asas minha sombra descer sobre mim. Toda idia que voavive. Toda idia que eu agarro um punhado de cinzas. Que seria demim se eu achasse o caminho?

    V-se que a obra toda de Meyer este contraponto entre prosa epoesia. Essa destruio, essa dinamitao do limite. A prosa guarda,revela uma extrema palpitao potica e a poesia no ultrapassa cer-tos limites, o que implicaria uma poetizao de gosto duvidoso. AsFolhas arrancadas, de 1940, e ltimos poemas, de 1950, so livros quecompletam o percurso, sempre em ntima conexo com o trabalhoensastico, porque a obra de Augusto Meyer se desdobra em duasfrentes: a da produo de linguagem e a da compreenso do fazer li-terrio. Ele , portanto, um produtor de linguagem, um inventor.Um inventor que se serve da palavra para inventar. E tambm umgrande entendedor do fazer literrio, algum que reflete o tempotodo, que pensa cada palavra que escreve.

    Diversa e mltipla, sua obra abriga estudos modelares sobre ques-tes e autores de culturas outras. O ncleo principal do seu enten-dimento hermenutico se reparte entre Lus de Cames, ArthurRimbaud e Machado de Assis. Ao autor de Os Lusadas ele consagrouuma srie de textos e de aulas-texto, reunidas no livro Cames, o bruxo eoutros estudos (1958). Meyer entende como ningum dos bruxos, por-que ele prprio era um bruxo. Um bruxo dissidente, alternativo, talvezat com sotaque, porm um bruxo. No caso, algum que fala para e comalm da razo. O bruxo seria, assim, aquele que ps a servio, dispo-sio da lngua, pela via da linguagem, impulsos intersubjetivos aindano catalogados pelos cdigos retricos. Por essas e outras razes,Meyer inscreve Cames no cerne do Renascimento.

    Deixando de lado os sinais de crise, h duas maneiras recentes deler Cames: uma, fazer opo do Cames no corao do Renasci-

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  • mento pleno; outra, ler Cames a partir do saque de Roma, a partirda crise do Renascimento, quando emerge o estilo de oposio es-ttica do Renascimento pleno, que se chama Maneirismo. um esti-lo mais cerebral, ainda no o Barroco. O Maneirismo introverti-do, o Barroco extrovertido; o Maneirismo cerebral, o Barroco passional. De maneira que por todas essas razes Meyer preferiu vero grande construtor que h em Cames. Ele abandonou esse possvelCames de braos dados com o Maneirismo. Meyer deslinda Ca-mes e o conjunto de recursos expressivos que, ouvindo a poca e oseu saber de experincia feito, ele pde criar e recriar.

    J em Rimbaud, no Le Bateau Ivre Anlise e interpretao (1955),vem a ser a modernidade absolutamente moderna. Tem um verso fa-moso de Rimbaud que diz preciso ser absolutamente moderno(Il faut tre absolument moderne). E j esse sintagma absolutamente mo-derno seria uma contradio, em termos, como diria o famoso fil-sofo de Knigsberg: Ou somos modernos, e j deixamos de ser ab-solutos, ou somos absolutos e no conseguimos ingressar definitiva-mente na modernidade.

    o caso de Rimbaud. Ele chega quando a literatura absoluta co-mea a se retirar de cena e os primeiros sinais de incerteza foram e sodivisados no horizonte. Em ambos os casos, Meyer pratica uma esti-lstica comparatista amparada no dispositivo de segurana do dom-nio das fontes. Ele recolhia os traos do estilo, cotejava com as fontese elaborava a sua compreenso crtica. Ele denominou essa operaometodolgica de volta ao texto, desgarrado e abandonado peloolhar impressionista. Por um instante, na histria da crtica, ou na his-tria da compreenso literria do Ocidente, em que o olhar era funda-mentalmente impressionista no que esse olhar impressionista fossetotalmente destitudo de verdade, ele dispunha de uma riqueza per-ceptiva que no se pode ignorar completamente, mas ele no dispunhade instrumentos crticos, no era um conhecimento aparelhado, era

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    Reencontrando Augusto Meyer

  • mais um conhecimento sensorial e, graas ao vigor crtico de Augus-to Meyer, ele se converteria volta ao texto, uma espcie de volta adi-ante, que culminaria nas suas anlises de Machado de Assis.

    Augusto Meyer se insurge contra o que seria uma crtica preventi-va e pressuposta. Adverte ele, no seu Machado de Assis (1958):

    Mas o grande perigo da crtica um dedutivismo ingnuo que,partindo de uma prenoo, acha no seu campo de pesquisas apenasaquilo que procura. Como se a crtica preexistisse relao crtica,antecedesse o contato com o objeto, sobretudo com o objeto-sujei-to, como a linguagem literria.

    Meyer acredita na anlise, porque acredita no texto, e percebeudesde o incio que a crtica uma situao relacional e o mtodo no um procedimento milagreiro. Isto quer dizer que, para Meyer, acrtica pressupe contato com a obra, mas no como o pressupemalguns scholars que se excederam, nas ltimas dcadas, nas universida-des estrangeiras, sobretudo americanas, em trazer todos eles o seumtodo porttil e passaram a ler as obras literrias em funo deuma programao anterior ao contato. No. O que existe no crtico um conjunto de hipteses, de possibilidades reais de trabalho, espe-rando exatamente os sinais que sero emitidos da obra literria. Nopara concluir ou para antecipar-se queles sinais, mas para estabeleceruma parceria criadora com esses sinais que a obra vai emitindo s ve-zes vermelho, s vezes verde, s vezes amarelo. Em qualquer hiptese,so sinais que estabelecem uma cumplicidade com o olhar crtico.Ento, a crtica no uma operao individual, um contrato de tra-balho. Ela vive exatamente dessas conexes ntimas no interior daobra, s vezes difcil, porque s vezes a obra silenciosa. Ento ela parcimoniosa na emisso desses sinais. O crtico, portanto, precisa es-tar atento para saber, quando for o caso, ler o silncio.

    No prtico do seu livro sobre Machado de Assis, editado peloinesquecvel mercador de livros que foi Carlos Ribeiro, tem-se logouma frase penetrante de Augusto Meyer sobre o Bruxo do Cosme

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    Eduardo Portella

  • Velho: Fez do seu capricho uma regra de composio, diz ele. Ca-pricho e regra, dois plos intercomunicveis de uma aventura insli-ta e desconcertante, levada a efeito sob o imprio das leis chamadasde misteriosas. As leis misteriosas ocupam um espao que ultrapassaa prpria normatividade vigente ou os cdigos vigentes nas diferen-tes poticas.

    Meyer descreve com preciso as leis que presidem a elaboraopotica camoniana, sem contudo resvalar na obsesso legislativa.Ou seja, ele sabe servir-se da norma e manter a distncia com rela-o obsesso legislativa da norma. Empreende o uso heterodoxoda razo, ela mesma infiltrada de desrazes. Ou seja, ele j no ope-ra com um padro hegemnico de razo, aquele que dominou aconquista do Ocidente, sobretudo do Ocidente moderno e queleva a cincia e a tecnologia s ltimas conseqncias. Ele percebeque a razo pode ser uma construo tambm plural. Ele desdobra-ria uma espcie de racionalidade aberta e j no uma racionalidadeabsolutamente fechada.

    Da o seu empenho ao constatar, em A forma secreta (1965), o ver-dadeiro significado de ranger de cataventos, ao que eu acrescenta-ria, com todo respeito a este outro bruxo que Jorge Luis Borges,que A forma secreta quase um doce pleonasmo. Toda forma que sepreza secreta, guarda a dimenso do no-dito, pedaos de vida pro-tegidos pelo ocultamento. O que no secreto, em hiptese alguma, o escndalo.

    Isto significa que Meyer, mais uma vez, procura ler as coisas queesto em cima das estruturas poticas, aquelas que se ocultam, quepertencem ao domnio do no-dito, mas que s vezes decidem a sor-te do dito, do que dito. A ironia capaz de assumir formas inespe-radas e nem sempre necessariamente corrosivas. No crepsculo damodernidade, alguma coisa como a derradeira volta do circuito, Ma-chado e Meyer assistiram no creio que impvidos, face capaci-dade de prever de que eram dotados ao destaque da vertente cus-

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    Reencontrando Augusto Meyer

  • tica do Modernismo, ou seja, aquele lado da modernidade que seempenhou o tempo todo em fazer a crtica do edifcio compacto damodernidade plena.

    Essa modernidade no tardou muito para assinar um protocolode cooperao com o pessimismo. A literatura plena se debilita, sedesplenifica. Apesar de ressaltar, pela voz do seu Machado, o descr-dito da aventura literria e a misria das interpretaes, AugustoMeyer apostou na literatura at o fim. At mais no poder.

    O prprio pessimismo, que Machado e Meyer dividiram demodo desigual, no teria sido uma forma de confiana, uma espcieestranha e chocante do niilismo positivo? H quem diga que sim.Lembro-me de que, uma vez, Albert Camus disse que dentro detodo no h um sim. Ento, o aparente pessimismo, o niilismo con-tundente, no caso de Meyer, era uma forma de construo. Os pessi-mistas agem, pem vida na negao, mesmo que desoladamente.

    Augusto Meyer um homem de letras na mais alta acepo da pa-lavra. Nem superestimou as articulaes de arte e sociedade, nemaplaudiu a mgica dos prestidigitadores. Meyer compreendeu a lite-ratura como entidade pluridimensional, constituda de diferentesdimenses; multidisciplinar, formada por diferentes disciplinas: a fi-losofia, a histria, a teoria literria, a psicologia e tantas outras disci-plinas, superiormente oblqua e dissimulada. Por isso ele se enten-deu to bem com Capitu. Por isso percebe que Capitu atravessa olivro numa nvoa de mistrio.

    Capitu a literatura, o impulso vital, a complexidade do real. intil submet-la ao julgamento mecnico de qualquer tribunalmoralizante. A viso monofocal no capaz de ler o paradoxo. A li-teratura, como a vida, constituda de relaes perigosas, de pergun-tas sem respostas. indispensvel dispor de percepo aparelhada. Etanto Machado quanto Meyer dispunham. E foi assim que AugustoMeyer retirou a sua singularidade da sua pluralidade.

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    Eduardo Portella

  • Augusto Meyer, leitorde Machado de Assis

    Tania Franco Carvalhal

    para mim, sem dvida, uma honra e motivo de grande satis-fao participar das homenagens que a Academia Brasileirade Letras presta a Augusto Meyer no centenrio de seu nascimento.Agradeo, pois, o convite para dirigir-vos a palavra e evocar, simul-taneamente, o escritor gacho e aquele que foi fundador desta Casa,casa na qual, certamente, Meyer deveria sentir-se muito bem, entrepares e entre lembranas do Bruxo do Cosme Velho. Como disse opoeta gacho Athos Damasceno Ferreira, na ocasio em que Meyerassume, em 1960, a Cadeira 13 desta Academia, em uma frase umpouco jocosa, mas muito feliz, indicativa da familiaridade com os li-vros e do bem-estar que Meyer sentiria em estar na Academia, pro-nunciando esta frase que se tornou antolgica e passou a ser correntenos pagos: O fardo ser-lhe- simples pijama.

    Por sua vez, Manuel Bandeira saudou o ingresso de Augusto Me-yer em uma crnica na qual ele expressa a alegria de t-lo como com-panheiro na Academia, chamando-o afetuosamente de Bilu, ve-

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    Doutora em Letraspela USP; professoratitular da UFRGS eprofessora visitanteno pas e no exterior.Tem doze livrospublicados, dos quaistrs sobre AugustoMeyer: O crtico sombra da estante, Aevidncia mascarada eAugusto Meyer, coleoAutores Gachos, e asair, pela ABL, Ospssegos verdes, coleode ensaios dispersos.Confernciaproferida naAcademia Brasileirade Letras, em 9 deabril de 2002, nociclo Centenrio denascimento de AugustoMeyer.

  • loz, malabarista metafsico, gro tapeador parablico, da mes-ma forma como o eu lrico assim se designou na Cano encrenca-da, poema que est no livro de 1929.

    Quero evocar ainda duas outras referncias: o belssimo discur-so de Tristo de Atade, na saudao a Meyer em sua posse nestaAcademia, e tambm o belo texto de Francisco de Assis Barbosa,que assumiu justamente a Cadeira 13, que havia sido ocupada porMeyer, aps o seu falecimento, e que se intitula Posso sentar-mena Cadeira 13.

    As relaes de Augusto Meyer com esta Academia iniciaram bemantes, quando ele ganha o Prmio Machado de Assis, em 1948, pelolivro que publicara no ano anterior, sombra da estante, e pelos estudose ensaios que j havia publicado sobre Machado. Dez anos depois,em 1958, justamente no ano comemorativo, vai tornar-se o primei-ro presidente da Sociedade dos Amigos de Machado de Assis, insta-lada no dia 8 de abril daquele ano, com a participao, na diretoria,tambm de Plnio Doyle, como secretrio-geral, Carlos Ribeiro,como primeiro-secretrio, e Manuel Esteves na condio de tesourei-ro. Portanto, no encontrei outra forma de homenagear AugustoMeyer do que a de evoc-lo, aqui, neste momento, na posio de lei-tor de Machado de Assis.

    Associar Augusto Meyer a Machado de Assis significa entenderque no haveria outra perspectiva que melhor identificasse o crtico-poeta (ou o poeta-crtico) do que a de situ-lo em estreita relaocom o autor a cuja anlise dedicou mais interesse e constncia. Domesmo modo, no haveria para Meyer outra posio que no a de lei-tor, pois viveu sombra da estante, dedicado leitura e compre-enso das obras. Por isso natural que adote, como epgrafe do livro

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    Tania Franco Carvalhal

  • de 47, intitulado sombra da estante, o verso de Baudelaire: Mon ber-ceau sadossait la bibliothque,1 deixando perceber a sugesto queele empresta ao ttulo do volume.

    Foi sem dvida Meyer um leitor sistemtico e seletivo, com pre-ferncias consolidadas e raro equilbrio entre a tradio e o novo,atento s publicaes que ampliavam, cada vez mais, sua erudio ecampos de conhecimento.

    Alm disso, o fato de ter sido um leitor exemplar e constante daobra machadiana indicativo de sua inclinao para os grandes obser-vadores da alma humana, como Machado, Proust, Dostoievski e Pi-randello, autores com os quais tinha afinidades, pois privilegiaram ainvestigao psicolgica e exploraram, cada um a seu modo, o desdo-bramento e a dissociao da personalidade. Neles o crtico apreciavasobretudo o deslocamento do eixo da ao para o da introspeco.

    Nesta dupla condio, leitor e crtico de Machado, Augusto Me-yer assume a posio adequada a seu temperamento e forma de es-tar no mundo que lhe agradava, a de uma vida entre livros.2

    Carlos Drummond de Andrade, em artigo de 1970, ao homena-gear o escritor falecido havia pouco apontava essa afinidade, esbo-ando-lhe o retrato: Caberia num livro? Imagino-o transformadono livro de si mesmo: volume fino, alongado, de elegante encaderna-o, tipos escolhidos, vinhetas desenhadas por um diabinho renas-centista que, aqui e ali, pusesse um toque de Bilu no contorno das fi-guras. Livro que fosse a sntese de uma biblioteca sem obras indiges-tas, cultura presente como atmosfera ou gua de beber.3

    Por sua vez Josu Montello percebeu bem que a convivncia coma obra machadiana identificava o crtico, estabelecendo a relao en-tre o intrprete e o interpretado. No artigo Uma profecia de Ma-

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    Augusto Meyer , le itor de Machado de Ass i s

    1 Baudelaire,Charles. LaVoix, Picesdiverses. In:Oeuvres Compltesde Baudelaire.Paris, Gallimard,Coll. Pliade,1954, p. 229.

    2 Evoque-se queMeyer foi diretorda BibliotecaPblica doEstado do RS,em Porto Alegre,de 1935 a 1937,quando muda-separa o Rio deJaneiro e se tornaprimeiro diretordo InstitutoNacional doLivro, que irpresidir por duasvezes, a primeiraat 1956 e asegunda de 1961a 1967.

    3 Andrade,CarlosDrummond de.De Meyer aBilu. Jornal doBrasil, 16.7.70,p. 8.

  • chado de Assis,4 comenta que o mestre, no captulo LXXI dasMemrias pstumas, profetizou que um senhor magro e grisalho, em1950, se inclinaria para descobrir-lhe o seno do livro. Para Montel-lo, Machado teria adivinhado a figura esguia de Augusto Meyer, de-bruado nas pginas do romance a esmiuar-lhe o pensamento navolpia da boa leitura. Observa que a profecia machadiana est cer-ta quando alude paixo dos livros, que o trao dominante dapersonalidade de Augusto Meyer, e ainda quando no-lo mostra a ir evir pelas linhas impressas.

    A continuidade das leituras da obra de Machado consagra a idiade que um livro se desdobra no tempo e nele adquire, por fora dasleituras que o renovam, outros sentidos. Por isso dir: Impossvelimagin-lo seno em andamento no tempo, avultando ou decrescen-do de importncia, quase esquecido s vezes, para ressurgir mais tar-de, transfigurado imagem de outras geraes.

    Essa observao crtica sobre Machado de Assis pode ser aplicadahoje com relao ao prprio Meyer. A bela metfora da obra queatravessa o tempo, revivida a cada passo pela ao da leitura que lheinjeta novo alento e interpretaes, serve igualmente para o escritorgacho. Retomar sua obra, l-la nas diversas formas em que se ex-pressou poesia, relatos de memria, crnicas, ensaios crticos perceber que ela se organiza graas a uma lei de reflexos que garantea unidade deste universo literrio. Tom-la em uma de suas facetas ainda aludir s demais, associadas todas por um singular trao de es-tilo caracterizado pela elegncia e naturalidade da expresso. Domesmo modo, reler seus estudos sobre Machado de Assis significaperceber como seu pensamento, sem perder a segurana das primei-ras intuies, se vai enriquecendo nos modos de ler e nas indagaesdiversas a que submete o objeto de anlise.

    V-se, ento, por que a obra de Machado seria para Meyer umdesafio de vida inteira. Como leitor ele assim julgava: Os anos vo

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    Tania Franco Carvalhal

    4 Montello,Josu. Umaprofecia deMachado deAssis. Rio deJaneiro. Jornal doBrasil, 23.6.60.

  • passando e Machado de Assis cresce cada vez mais. Avulta e abre emderredor um vazio de solido como certas rvores gigantescas da sel-va que, fundidas de perto na mesma profuso de troncos e folhagem,contempladas a grande distncia, esgalham l no alto e dominam orecorte das grimpas mais sobranceiras.

    Com essa imagem, Augusto Meyer inicia o artigo Trecho deum posfcio, escrito em 1958, que pensava juntar traduo deE. Percy Ellis intitulada Posthumous Reminiscenses of Bras Cubas, pre-vista para publicao pelo Instituto Nacional do Livro em 1955.Por isso ressalta ali que a obra machadiana representa um mo-mento nico na histria da literatura americana, procurandov-lo em contexto maior que o da literatura nacional. Antecipa,portanto, o que reconhecer Carlos Fuentes em Valiente Mundo Nue-vo ao dizer que a Indo-Afro-Iberoamrica tiene un solo gran no-velista decimonnico: el brasileo Machado de Assis. No mesmotexto observa que Las Memorias pstumas de Blas Cubas es la ms gran-de novela iberoamericana del siglo pasado, y sus enseanzas libr-rimas slo sern entendidas, en el continente hispanoparlante, has-ta bien entrado el siglo XX.5

    Para Meyer, portanto, Machado de Assis continua a ser o ni-co na histria da literatura brasileira, dada a singularidade de umaobra que no cabe nas classificaes rotineiras, mas tambm nico esingular dentro da literatura latino-americana. Mestre da sntese,Machado recusou os caminhos batidos e tambm soube desprezar oimediato, ao compreender, como diz o crtico, que a arte no suma longa pacincia, uma escola admirvel de verdade e probida-de, um rude imperativo de renncia.

    As passagens aqui transcritas so reveladoras da admirao deAugusto Meyer pela obra machadiana e dos motivos por que eleconverteu o autor em objeto constante de sua indagao crtica.Neste sentido, no seria por acaso que inaugura sua produo ensa-stica com o Machado de Assis, de 1935,6 nem que em todos os seus li-

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    Augusto Meyer , le itor de Machado de Ass i s

    5 Fuentes,Carlos. ValienteMundo Nuevo.pica, utopa y mitoen la novelahispanoamericana.Mxico. Fondode CulturaEconmica,1990, p. 45.

    6 Meyer,Augusto. Machadode Assis. PortoAlegre, EditoraGlobo, 1935 [In:Machado de Assis.1935-1958. Riode Janeiro.Livraria So Jos,1958].

  • vros posteriores, exceo de Prosa dos pagos,7 cujo tema a literatu-ra gacha, haja estudos sobre o criador de Brs Cubas. Tantos fo-ram os textos de exegese dessa obra que os reuniu no livro Machado deAssis. 1935-1958.8 Os vrios estudos ali inseridos so de pocas di-versas, indicativo da forma como se organizavam seus livros, ou seja,como reunio de ensaios antes publicados na imprensa. Por isso elesso descontnuos, traduzem a inquietao crtica de determinadosmomentos, no adotando uma orientao exclusiva de anlise. Cadacaptulo um todo estruturado, independente de outro, no haven-do unidade formal na composio do volume. No entanto, preser-vam a coerncia resultante do encadeamento reflexivo e da adeso acertas idias centrais que retornam em vrias situaes.

    Como observou Antonio Candido ao comentar o livro Preto &branco na poca de seu lanamento, em 1956, no seria no vulto dasobras que devemos buscar a unidade e amplitude de seu esprito, masna atitude geral, na matriz de sensibilidade e pensamento que informaos ensaios. E acrescenta: H nele uma corrente slida e brilhante depensamento crtico, da qual os estudos realizados emergem comopontas extremas, afloramentos, cuja reunio evidencia a envergaduraprofunda. Por isso, ainda que no escreva um livro volumoso, Augus-to Meyer , e ficar, em nossa histria literria, como um dos mais al-tos crticos, um dos espritos mais penetrantes e fecundos.9

    Concluiu dizendo: Para completar e garantir a unidade, vem oestilo, graas ao qual tudo isso vive e se torna bem comum. No seide quem escreva, no Brasil, com mais elegncia e, ao mesmo tempo,naturalidade, obtendo uma expresso logicamente adequada, semdeixar de ser potica e imaginosa, tanto na seleo dos adjetivosquanto na elaborao dos conceitos ou das imagens, discretamenteinseridas.

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    Tania Franco Carvalhal

    7 Nesta obra,Machado aindareferncia noensaio sobreAlcides Maya,autor de Machadode Assis. Algumasnotas sobre ohumour. Rio deJaneiro, LivrariaEditora JacintoSilva, 1912,reeditado pelaAcademiaBrasileira deLetras em 1942.

    8 Meyer,Augusto. Machadode Assis.1935-1958. Riode Janeiro,Livraria So Jos,1958.

    9 Candido,Antonio.Literatura.Augusto Meyer,Preto & branco. OEstado de S. Paulo,SuplementoLiterrio, no 60,14.12.1957,p. 2.

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    Augusto Meyer , le itor de Machado de Ass i s

    Folha de rosto da 1a edio de Machado de Assis.

  • Vinte e trs anos de fidelidade ao estudo da obra machadiana es-to representados no volume de 58. De acordo com a indicao quetitula cada bloco, o primeiro corresponde ao ensaio de 35, que, jun-tamente com o de Lcia Miguel Pereira, em 1936, significa uma ver-dadeira ciso na crtica machadiana. Abandonando o Machado ofi-cial, e sob a tica do homem subterrneo de Dostoievski, Meyerprocura desvelar o que para ele se oculta na trama da obra. Alm dis-so, ao aproxim-lo de um grande autor da literatura ocidental, situaMachado em outra dimenso que no apenas a da literatura brasilei-ra. Esta seria uma preocupao constante, manifestada igualmenteno confronto com Sterne, Xavier de Maistre, Lawrence e Swift, nosestudos de 22 e que estaria, certamente, relacionada com a posionica que lhe atribua no contexto nacional. Como dir mais tar-de: Se no possui a frescura alencarina, por exemplo, o dom gene-roso da fantasia arejada e plstica, soube suprir a falta com o mtodomais rigoroso de composio; transformou uma prosa de aparnciamodesta e remediada num riqussimo instrumento de sugestes emodulaes.10

    Segue-se o estudo de 1947, sob a inspirao da crtica de AlcidesMaya. O terceiro e ltimo conjunto, globalmente designado dePresena de Machado de Assis. 1938-1958 compreende estudosincludos em sombra da estante (1947), mas produzidos bem antes.Integra ainda outros publicados em Preto & branco (1956) e alguns de1958, como as partes de um alentado ensaio que, com o ttulo DeMachadinho a Brs Cubas, apareceu na Revista do Livro do InstitutoNacional do Livro, em 11 de setembro de 1958, edio especial co-memorativa do cinqentenrio da morte de Machado de Assis. Nolivro da So Jos, esse texto est desdobrado em trs, intitulados res-

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    Tania Franco Carvalhal

    10 Meyer,Augusto, 1958,p. 221.

  • pectivamente de Uma cara estranha, Presena de Brs Cubas eTrecho de um posfcio.

    Nesta perspectiva de resgate dos textos, ressalte-se que seus pri-meiros estudos crticos, publicados em O Exemplo Jornal do Povo, dePorto Alegre, em 1922, sob o pseudnimo de Guido Leal, se ocu-pam com As idias de Brs Cubas.11

    Trs anos depois, ao iniciar a militncia crtica no jornal Dirio deNotcias, de Porto Alegre, o far com dois artigos sobre Machado deAssis e a alma contempornea.12

    Finalmente, os ltimos ensaios sobre Machado, em sua maioriareunidos em A forma secreta,13 com os ttulos de Silvio e Silvia,Pratiloman, e A casa de Rubio, iniciam a parte do livro deno-minada de O aprendiz grisalho.

    Assim, do despertar da vocao crtica, nos anos 20, plena ma-turidade dos anos sessenta, Meyer foi um fiel leitor de Machado. Opercurso crtico indicado nas datas do livro de 58 pode, portanto,ser ampliado para sua conta real: de 1922 (o primeiro texto sobreMachado publicado) a 1965 (ano da edio de A forma secreta) so 43anos de leituras continuadas da obra do autor de Brs Cubas.

    Essa constncia que nos permite hoje acompanhar o percursocrtico do autor na evoluo de seus estudos machadianos. Neles, ocrtico se identifica. Neles, ele se confronta consigo mesmo. o queinteressa aqui examinar.

    I. Os estudos da fase inicial(1922 a 1935)14

    No texto Um desconhecido, que encerra o volume Machado deAssis. 1935-1958, publicado pela Livraria So Jos, Meyer busca seuinterlocutor preferido em uma biblioteca, no silncio do gabinete.Pois, como define, valendo-se de outra bela metfora, uma bi-

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    Augusto Meyer , le itor de Machado de Ass i s

    11 Os doisartigos citadosforampublicados,respectivamente,em 17.9.1922 e24.9.1922.

    12 Os artigosforampublicados noreferido jornalem 01.11.1925 e12.11.1925.

    13 Meyer,Augusto. A formasecreta. Rio deJaneiro, Lidador,1965.

    14 Procureiestudar emprofundidade acrtica de Meyer,desde seu incio,no livro O crtico sombra da estante.Porto Alegre,Ed. Globo,1976.

  • blioteca antes de tudo solido e silncio, o silncio das vozes de-sencontradas e a solido dos grandes ajuntamentos.15

    Ali, uma vez mais, Machado revive diante do seu exemplar lei-tor para dizer-lhe, num fio de voz: Oua, menino, cada alma mais do que um mundo parte em cada peito, um enigma parasi prpria...

    Curiosamente, no ltimo texto do livro de 58 se recompe a situ-ao inaugural do processo de deslinde a que Meyer submeteu per-manentemente a obra de Machado de Assis, fazendo-nos voltar aoensaio de 35 e aos primeiros estudos. J a o encontramos no plenoexerccio da crtica como leitura, considerada como decifrao daobra, sempre metaforicamente designada como enigma. Ressalteiesse aspecto ao examinar um dos livros mais notveis de Meyer, Achave e a mscara (1964),16 no qual, desde o ttulo, a associao consci-ente das duas palavras deixa transparecer ao mesmo tempo um con-ceito de crtica chave numa funo desveladora, e um conceitode obra literria mscara, em seu carter ambgo e encobridor.Nesta perspectiva, fcil entender a atrao do crtico pela obra ma-chadiana, pois este cultivou, como poucos, a arte da dubiedade e afalsa transparncia da mscara.17

    Portanto, como anota no texto de 35, em Machado, a aparnciade movimento, a pirueta e o malabarismo so disfarces que mal con-seguem dissimular uma profunda gravidade deveria dizer: uma ter-rvel estabilidade.18

    Toma, ento, o traado das personagens para identificar o autor.Flora, segundo ele, aludiria a Machado na medida em que hesitaentre Pedro e Paulo como o pensamento do autor, entre uma esco-lha e outra que a suprime. Todo o pensamento de Machado secorporifica nessa figura de mulher, chave de sua obra perversa e per-feita.19 Da mesma forma, considera Brs Cubas um pretexto e, noromance, o seno do livro o seno de si mesmo.20

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    Tania Franco Carvalhal

    15 Meyer,Augusto. Machadode Assis.1935-1958. Riode Janeiro,Livraria So Jos,1958, p. 235.

    16 Carvalhal,Tania. Meyer, achave e asmscaras In:Dez anos semAugusto Meyer,Caderno de Sbado,jornal Correio doPovo, 12.7.1980,p. 16.

    17 Meyer, A.Machado de Assis,1958, p. 224.

    18 Meyer, A.1958, p. 13.

    19 Meyer, A.1958, p. 41.

    20 Meyer, A.1958, p. 17.

  • O interesse desse ensaio, ainda hoje, reside pelo menos em doisaspectos: primeiro, o de sua repercusso no conjunto da crtica ma-chadiana, nela introduzindo a orientao psicolgica na anlise, oque inaugura uma nova maneira de interpret-lo e, depois, sua im-portncia na evoluo do pensamento crtico de Meyer. O pioneiris-mo do ensaio se expressa na boa aceitao que ganha na poca de suapublicao. Sobre isso leia-se Lcia Miguel Pereira na 3a edio deseu Machado de Assis, em 1944, ao confrontar o estudo de Meyer comos de Alcides Maya (1912) e Alfredo Pujol (1917) e em seus ecosposteriores, e veja-se Afrnio Coutinho em Machado de Assis na literatu-ra brasileira (1960) onde ressalta o carter inovador desse trabalho.

    Cumpre acentuar que a inteno de desvelamento que move o cr-tico no elimina a admirao e j esto a, nesses primeiros estudos,fixados alguns conceitos que o crtico dever retomar em textos pos-teriores: a dificuldade de classificar os romances machadianos nombito da fico, a tendncia a visualizar o autor sob as personagense sob a figura de um narrador que dita as regras do texto, a intenode traar o seu perfil psicolgico, reconhecendo o pessimismo e oniilismo de uma personalidade complexa e contraditria. Alm dis-so, reitera a valorizao do estilo machadiano, que adotou um pro-cesso particular de sempre subtrair palavras em busca da sntese,como se dissesse uma de menos, uma de menos.21

    II. A obra machadiana, umavirtualidade em andamento

    Ao reler Machado de Assis ao longo dos anos, Meyer redimensi-ona suas posies crticas, adotando outras modalidades de leitura.Os caminhos sero sempre os sugeridos pela prpria obra, em per-feita empatia entre analista e objeto analisado. Deste modo, h umacontnua retomada dos textos que acrescenta a cada passo outros

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    Augusto Meyer , le itor de Machado de Ass i s

    21 Meyer, A.1958, p. 238.

  • elementos interpretativos. Cada releitura uma redescoberta. Porisso dir que ele ganha muito em ser lido aos trechos, ou a largos in-tervalos de leitura.

    Na primeira verso do estudo Machado de Assis, 1947, queabre o segundo bloco do volume, o ttulo era bastante elucidativocom relao a seu contedo: Sugestes de um texto aludia direta-mente ao estmulo crtico provocado pelo estudo de Alcides Mayasobre o humour. No volume, Meyer guarda apenas a indicao dadata de sua publicao. Nesse ensaio, procura examinar como a crti-ca constri a imagem oficial do escritor, comentando que sua sobre-vivncia depende do compromisso entre o medalhonismo e a sin-gularidade, um equilbrio instvel que oscila entre o ser e o deixarde ser e constantemente se desfaz para refazer-se. O trabalho dacrtica, portanto, incide justamente no processo de modificao, dedeformao, de renovao do sentido da obra porque mudou o n-gulo de interesse e so outros os motivos nela contidos que fixam depreferncia a ateno dos novos intrpretes.22

    Outro aspecto chama sua ateno: as questes ligadas criao li-terria. Nesse contexto acentua a importncia do processo de disso-ciao literria, pois o escritor quando escreve, deixa as virtudesquotidianas no tinteiro. No ato de escrever, ele j no o homem,produto moral e social de todos os dias, mas uma libertao e s ve-zes uma superao de si mesmo. Em parte, dir, uma errata de simesmo.23

    Os textos seguintes, Da sensualidade e Capitu, foram igual-mente publicados no livro de 47. Ambos so reflexes inspiradas emLcia Miguel Pereira, a quem o primeiro deles dedicado. Em se-tembro de 1935, por ocasio da publicao do ensaio de Meyer, acrtica escrevera: exceo de dois pontos que creio primordiaispara o entendimento do maior escritor brasileiro a sensualidade e atimidez todos os seus aspectos foram abordados, com grande

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    Tania Franco Carvalhal

    22 Meyer, A.1958, p. 119.

    23 Meyer, A.1958, p. 110.

  • compreenso, pelo crtico rio-grandense.24 Este comentrio deuorigem certamente ao estudo sobre a sensualidade.

    Os demais trabalhos do ltimo bloco so os includos em Preto &branco (1956). Eles tomam, em seu conjunto, uma feio quase ficci-onal. Em textos como Os galos vo cantar, O enterro de Macha-do de Assis e Um desconhecido, Meyer procura recriar a figurado escritor e, diante de sua morte fsica, pensar como se dar sua per-manncia no gosto e na imaginao dos leitores. So textos como es-ses que justificam o parecer de Otto Maria Carpeaux, que reconhe-cia a fora criadora da crtica meyeriana capaz, como observa, decriar o seu objeto.25

    Nesses textos, ir tambm consolidar sua concepo de leitor,cuja funo ganha cada vez mais importncia. Desaparecido o escri-tor, a crtica assume um papel fundamental no processo literrio,pois lhe cabe assegurar a sobrevivncia das obras. Dir, ento, quequando os olhos so ricos, at os livros medocres podem reviver,transfigurados. em Machado que Meyer encontra essa sugesto,pois o autor de Dom Casmurro tinha conscincia desse fato ao dizer:Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meternos livros omissos.26

    Diante disso, a vaguidade da obra machadiana um dos seusgrandes atributos, por solicitar a cada momento a colaborao diretado intrprete e o envolvimento dos leitores. Da o seu enigmatis-mo ser voluntrio.

    Como se percebe, Meyer completa um crculo nos textos reuni-dos em 1958: retoma, sob outro prisma, a questo inicial da obracomo enigma e reitera a relao entre ela e o leitor.

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    Augusto Meyer , le itor de Machado de Ass i s

    24 Pereira, LciaMiguel. Rio deJaneiro, Gazeta deNotcias,15.9.1935.

    25 Carpeaux,O.M. O crticoAugusto Meyer,Tribuna de Santos,29.7.1956.

    26 Meyer, A,1958, p. 155.

  • III. Machado em variantes

    Publicado o volume de 1958, no se esgota o interesse do crticosobre a obra machadiana. Em seus dois ltimos livros, A chave e a ms-cara (1964) e A forma secreta (1965), ainda so includos estudos quepoderiam integrar um outro volume semelhante. No entanto, inte-ressa ressaltar que o crtico se modifica. Sem descartar integralmentea orientao psicolgica ainda o autor o sistema vivo segundoo qual a obra se ordena a metodologia crtica incorpora um supor-te terico mais atual. Ao centrar-se na obra, chega ao autor despre-zando as interpretaes biogrficas, mesmo que lhes reconhea umacerta utilidade secundria. Assim, observa: Por mais oportuna queseja esta reao da neocrtica contra o exagero das interpretaesbiogrficas, no devemos concluir da pelo divrcio completo entreas duas formas de vivncia; sem uma correlao de fundo, que senti-do atribura tantos vestgios inegveis de uma conexo ntima, daqual s restam, alis, em nossa viso crtica, os destroos mais vagos paralelismos, convergncias, semelhanas oblquas, deformaesde imagens pelo meio refletor...27

    Meyer apontara, ao final do volume de 58, para a relevncia dasedies crticas das Obras Completas, com uma sria reviso biblio-grfica e crtica, que vinha sendo levada a bom termo pela ComissoMachado de Assis28 e alertava para a falta de uma sadia conscinciametodolgica em nossos arraiais literrios, como vem observandoAfrnio Coutinho. Volta-se, ento, para os aspectos formais dotexto, ocupa-se com variantes e atenta para questes de linguagem,sob o influxo dos estilistas Leo Spitzer e Dmaso Alonso. Acentua,cada vez mais, a necessidade da leitura reiterada e sob diferentes n-gulos, pois, como observa: A obra de um grande escritor possui v-rias camadas superpostas, muitos degraus de iniciao, e s poderser conquistada em profundidade pouco a pouco.29

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    Tania Franco Carvalhal

    27 Meyer, A.1958, p. 214.

    28 Integrada porAntnio JosChediak,AntnioHouaiss, CelsoCunha e Galantede Sousa,publica, em1960, a ediocrtica de QuincasBorba.

    29 Meyer, A.1958, p. 153.

  • Certamente orientaes novas esto na base dos estudos que exa-minam o romance machadiano sob o prisma da anlise tematol-gica, os cinco contos de Machado que se prestam para um estudo depsicologia da criao artstica, as provveis fontes do captulo Odelrio, a casa de Rubio em uma enseada de Botafogo, as variantesdo Quincas Borba. V-se nesse ltimo conjunto no s a incidncia deteorias vrias bem como a inclinao comparatista que se pode reco-nhecer na maioria dos estudos de Meyer. Os textos dos ltimos anosde uma vida intelectual extremamente produtiva retomam diversostpicos j analisados, a que so acrescidos novos elementos. A cole-tnea de dispersos que preparo, com o ttulo de Os pssegos verdes, de-ver comprovar como Augusto Meyer foi, at o final, o leitor persis-tente e criativo de que os estudos sobre Machado de Assis serosempre o exemplo mais perfeito e acabado.

    Nesse contexto, o leitor exemplar se delineia com clareza, poisele , em essncia, um colaborador, um segundo autor, a completaras sugestes do texto e a encher de ressonncia os brancos da pgi-na. Como ainda comenta Meyer: O leitor nunca inventa, nuncadescobre, mas inserindo nessa descoberta a sua ressonncia pessoal,consegue tocar nos limites da inveno. Neste sentido modesto, in-ventamos sempre o que descobrimos.

    Pode-se dizer, sem hesitao, que ele no apenas analisou Ma-chado de Assis mas igualmente que ele o reinventou, pois sua crti-ca criativa toca os limites da inveno.

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    Augusto Meyer , le itor de Machado de Ass i s

  • Augusto Meyer, em foto de 1930.Porto Alegre, RS.Coleo Famlia Meyer.

  • Augusto Meyer, umensasta da Comarcado Pampa

    Lus Augusto Fischer

    Em primeiro lugar, preciso dizer que se trata de uma honraestranha o estar aqui, na Academia, para falar. Nunca na mi-nha vida havia figurado a mais remota possibilidade de tal aconteci-mento, naturalmente devido s limitaes, ao acanhamento e aomodo de ser de meu trabalho, mas tambm ao estilo de proceder daprpria Academia, isso para no falar da falta de nexo entre uma coi-sa e outra, a Academia e a minha vida. Que estejamos agora aqui, e eucom a palavra, pode significar que a Academia se enganou, propor-cionando-me uma ocasio descabida, ou que esteja eu menos distan-te da Instituio, porque ela est mais prxima de gente como eu,que vive na plancie, por sinal a plancie do pampa sulino.

    No sendo a pauta desta breve interveno, porm, a busca dasrazes desta visita, paremos por aqui, aproveitando apenas paraagradecer o convite e para prometer um esforo de raciocnio em

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    Doutor emLiteraturaBrasileira;professor-adjuntoda UFRGS.Autor de Umpassado pela frente,estudo sobre apoesia do RGS;dos ensaios Parafazer a diferena eContra oesquecimento e oDicionrio deporto-alegrs.Confernciaproferida naAcademiaBrasileira deLetras, em 16 deabril de 2002, nociclo Centenrio denascimento deAugusto Meyer.

  • torno de nosso tema, a que em seguida chegaremos. Evoco aqui, parafazer minhas, certas palavras de Graciliano Ramos, que nos comeosde sua atividade escrita, ainda em sua terra natal, assim terminava umartigo para o jornal: Se eu no puder ser-te interessante, leitor, queeu te seja til. o que espero.

    Vamos tratar de alguns aspectos da obra de Augusto Meyer, inte-lectual e escritor cujo centenrio de nascimento esta Casa com muitajustia celebra, fazendo-o da forma adequada, a saber, debatendoseu legado. Legado que no pequeno, nem irrelevante, e que aindaassim, em nossos tempos, de difcil acesso mesmo a profissionaisda rea. (Fica aqui a sugesto, dirigida aos cus, de reedio de suaensastica e de sua obra toda, tarefa que parece ter ficado estacionadaem algum ponto do passado recente, quando a professora TniaCarvalhal ofereceu um belo volume com as memrias de nosso ho-menageado.)

    Mencionado o nome da professora Tnia, cabe um reconheci-mento. Foi com ela que, exatos vinte anos atrs, este que agora falaestudou o ensaio em Augusto Meyer, numa disciplina do mestradodo Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande doSul. Sua admirao pela obra de Meyer , desde muito tempo, umdos fatores de divulgao do trabalho de nosso homenageado.

    No ciclo de estudos que ora segue, minha opo pessoal recaiusobre a parte referente ao Rio Grande do Sul. Dizendo melhor: cou-be-me a poro no pequena de trabalhos em que Augusto Meyermedita sobre a literatura e a cultura gachas, ambiente em que nas-ceu e tema que ajudou a formular criticamente. A tentativa aqui sera de, com base na leitura de sua ensastica, particularmente Prosa dospagos, e de passagens de suas memrias, procurar detectar as constan-

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    Lus Augusto Fischer

  • tes da prtica analtica de Meyer; com base em tal diagnstico, pro-curaremos oferecer algumas consideraes interpretativas, que tal-vez tenham algum interesse para alm da mera curiosidade. Para re-gistro: estamos referindo desde o ttulo conhecida categoria dengel Rama, o grande crtico uruguaio, que imaginava poder tratar acultura e a literatura da Amrica Latina a partir de comarcas supra-nacionais, como o caso da Comarca do Pampa, que abrangeria euacho que abrange mesmo a maior parte da Argentina, o Uruguai eo Sul do Brasil.

    J de sada, entretanto, cabe um registro. Meyer, como sabemostodos, foi um crtico que, na linguagem relativamente apressada dahistoriografia, se poderia chamar de impressionista, e que ns,para consumo momentneo, talvez pudssemos considerar, mais es-pecificamente, como no-sistmico, isto , como um crtico a quemno afeioava o enquadramento dos tpicos que analisava em estru-turas de significao e interpretao abrangentes, totalizantes, en-globantes, preferindo ele, antes, o comentrio focado, de uma parte,no prprio objeto de que se ocupava, naturalmente, e de outra, emuma meia dzia de premissas mais ou menos universais, cuja vign-cia na obra em questo ele tratava de averiguar.

    Isso significa dizer que nosso homenageado, tendo sido, comotodos reconhecemos e as novas geraes precisam conhecer, um se-nhor comentarista da literatura, no era um intrprete que buscassesistematizao, nem na linha de um historiador da literatura, nem nalinha de um terico em sentido estrito, um formulador de sistemainterpretativo. Por dever de honestidade, e mesmo por convico deordem epistemolgica, devo dizer, entre parnteses, que nisso, per-mitindo-me agora uma intromisso mais ou menos impertinente, euestou quase nas antpodas de Meyer. No que eu seja critrio paranada, naturalmente, mas cabe anunciar que meu ponto de vista jus-tamente aquele que busca sistema, que procura encontrar regularida-

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    Augusto Meyer, um ensasta da Comarca do Pampa

  • des, particularmente em funo de duas coordenadas, fceis de men-cionar e certamente difceis de diagnosticar a excelncia esttica e arelevncia sociolgica da literatura. Para dizer de modo sinttico epoupar o tempo da platia, diria que meu ponto de vista trata de en-xergar o caminho formativo das coisas, usado o adjetivo no sentidopostulado por Antonio Candido em vrias partes, nomeadamenteem sua Formao da literatura brasileira. Espero no cometer injustiascom nenhum deles.

    Assim, o que teremos nos prximos minutos um programacomposto de: (a) um pequeno quadro de aferio da mentalidadeanaltica de Augusto Meyer, o que se poderia talvez nomear pompo-samente como a epistemologia de nosso ensasta; (b) diagnstico dotratamento dispensado a Meyer s questes do Rio Grande do Sul,que se acompanha de certo quadro das referncias em que ele se mo-vimenta nessa matria gacha, nessa poca; e (c), finalmente, um co-mentrio sobre o alcance e a vigncia de tal tratamento e de tais refe-rncias no debate contemporneo. A pretenso muita, meu talentopouco, o tempo escasso; s resta esperar que a generosidade da pla-tia seja suficiente para chegarmos ao termo deste passeio.

    A

    Iniciemos por aqui: a um leitor atento da obra de Meyer poderparecer um disparate o dizer que no alimentava ele o gosto pelas to-talizaes, se pusermos em destaque uma passagem de seu ensaioCincia e esprito histrico em que o autor defende a superiorida-de da histria para alcanar a suma dos conhecimentos humanos.1

    Sua viso, parece, est atravessada de idealismo, em vrios sentidosda palavra, idealismo que ao longo do tempo o ensaio de que trata-mos aqui de 1947 Meyer parece abandonar em favor de mais ce-ticismo e mesmo de mais materialismo filosfico; idealismo que

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    Lus Augusto Fischer

    1 Barbosa, JooAlexandre, Textoscrticos, p. 22.Doravante,mencionaremosessa edio comoTC, seguido donmero dapgina.

  • abre o texto quando o ensasta ironiza aqueles que tm o mpetode resolver o problema do movimento caminhando (TC, p. 21) eque continua a aparecer no texto at o final, quando expressa sua de-solao para com a Cincia moderna, ao dizer que ela evoluiu nosentido de uma desumanizao (TC, p. 24).2

    Meyer estaria, ainda assim, apresentando uma apologia da totali-dade histrica? Parece que no. O que faz, de fato, neste ensaio, adefesa da literatura como fonte de perspectiva histrica, pelo fato dea leitura literria oferecer a possibilidade de viver a vida dos sculosatravs de algumas horas de concentrao sobre as pginas de um li-vro (TC, p. 25), com o que a experincia humana pode ampliar-se,passando da singularidade de nossos pobres anos na terra varieda-de e intensidade dos sculos, e afastando assim a terrvel conscin-cia da efemeridade da vida, conscincia que dizemos ns agora aCincia vem, mais que oferecendo, impondo ao homem moderno.

    Vistas as coisas por esse ngulo, Augusto Meyer pensa na capaci-dade historicizante da literatura, mas mais que isso defende o poten-cial humanizante da literatura, contra a desumanizao que a Cin-cia traz. Cincia que, poderamos avanar, representa a prpria carada modernidade. que Meyer no um pensador moderno, a rigor.Vejamos alguns aspectos disso.

    Em vrias passagens de sua obra, percebe-se claramente um duplomovimento, que sem dificuldade poderemos cotejar com a perspec-tiva romntica, especialmente a alem: de uma parte, a evocao dainfncia, ou da inocncia, ou mesmo da irracionalidade anterior conscincia; de outra, a renegao dos aspectos racionais, tecnolgi-cos, vanguardistas da vida moderna.

    Exemplos de cada um dos campos poderiam ser facilmente mul-tiplicados aqui. A condenao modernidade j foi citada logoatrs, naquela defesa da Histria contra a Cincia moderna, numprimeiro exemplo. Num segundo e muito significativo caso, nosso

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    Augusto Meyer, um ensasta da Comarca do Pampa

    2 No o lugaraqui, masregistremosmesmo assim:parece queMeyer evoluiuem suaconsiderao dasquestesfilosficas emdireo a umacompreenso,permitida adeseleganteexpresso,anti-antimarxista,ou pelo menosanti-antidialtica.Veja-se, apropsito, suadefesa dadialtica naCarta dialtica,de 1965, em queelogia o Marxque demonstrao movimentopelo prpriomovimento caminhando(TC, p. 671).

  • homenageado faz uma restrio genrica a certa prtica da vanguar-da moderna: ao apreciar os Casos do Romualdo, de Simes Lopes Neto,diz que tm eles certa parecena com os desenhos animados, para obem e para o mal um excesso de intenes de imprevisto anulan-do vez que outra o imprevisto, embotando no leitor, ou no especta-dor, o choque admirativo da surpresa (TC, p. 568); e a seguir insi-nua genericamente que tal questo anda ligada a problemas impor-tantes da arte moderna e das literaturas de vanguarda, a contar dosanos de Vinte (TC, mesma pgina). No chega a configurar a res-trio crtica vanguarda, mas a apresenta.

    Este o mesmo poeta que, na juventude, teve seu o depoimen-to a ousadia de recitar, ou melhor, de gritar num sarau da Socie-dade Jocot, na fase combativa do Modernismo, a Ode ao bur-gus, de Mrio de Andrade.3 Bem, na juventude, especialmente najuventude vivida no ambiente provinciano, muita coisa poder terocorrido. Porque depois, por exemplo em texto de 1956, Meyer re-pudia a gravao de poesias, mesmo que pelo prprio autor, com ar-gumento perfeitamente pr-moderno: A voz do homem abafa aconscincia do poeta, como a nfase de um alto-falante deforma emcaricatura gritada a naturalidade de um timbre (TC, p. 70). ComoAdorno neste particular, nosso ensasta prefere o passado, a arte comaura, a execuo da msica ao vivo, a poesia apenas lida, contra a in-terveno da tecnologia.

    O outro lado desta equao romntica vem com a evocao amo-rosa da infncia, presente em pginas adorveis de suas memrias,4

    mas tambm em passagens menos evidentes e, talvez por isso mes-mo, mais significativas. Por exemplo: em texto presente em seu livroLiteratura e poesia, de 1931, coletnea de para dizer de algum modo poemas em prosa, marcados de certo surrealismo, lemos: Queriaera ser Gaspar Hauser.5 Claro que no se trata de trecho diretamen-te autobiogrfico, mas creio que podemos interpretar como indica-

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    Lus Augusto Fischer

    3 Ver A formasecreta, p. 188.

    4 Segredos dainfncia e No tempoda flor.

    5 Poesias 1922-1955,p. 224.

  • o de preferncia de Meyer esta meno ao infeliz rapaz, cuja hist-ria aconteceu de fato na altura de 1828, virou romance de JakobWassermann em 1908 e filme de Werner Herzog em 1974. Comolembramos, Kaspar Hauser era um jovem que no sabia falar nemconviver civilizadamente com as pessoas, por ter sido criado comobicho; e a tentativa de civiliz-lo resultou em tragdia, com Hausersendo assassinado.

    Naturalmente no se pode imaginar Augusto Meyer querendo li-teralmente um tal destino para si; mas no estou longe de pensar nelecomo um descendente de alemes dotado daquele desconsolo e da-quela solido to caractersticos do temperamento germnico. (Debrincadeira, eu digo que os alemes e seus descendentes nos dividi-mos em dois grandes grupos, na vida como na arte: os homicidas e ossuicidas. Meyer do segundo grupo, naturalmente.)6

    Estamos falando, portanto, de um esprito pr-moderno,7 apro-ximadamente romntico, o que no significa insinuar que Meyer sejaum passadista ou um mal-informado. Nada disso, claro. Veja-seum caso notrio: seu belo texto Idade urea, que abre denuncian-do o tpico estampado no ttulo como um dos preconceitos histo-riogrficos mais persistentes. Seus comentrios a tal preconceitoservem, para ns, de entrada aos estudos de Meyer em torno da lite-ratura gauchesca.

    No Romantismo diz ele , a persistncia do mesmo preconcei-to logo transparece na repetio de alguns temas e motivos, a come-ar pelo Selvagem Bom, o apelo Natureza como fonte perene doestro potico, a preferncia pela poesia das coisas lendrias, na infn-cia dos povos, ou pela poesia popular considerada criao espont-nea, a exemplo dos Volkslieder de Herder. (TC, p. 106)

    Consideremos algumas variveis para o caso. Toda literatura dembito ou tema regionalista tende fortemente a perpetuar, isoladaou combinadamente, precisamente tais preconceitos. Com a litera-

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    Augusto Meyer, um ensasta da Comarca do Pampa

    6 Se precisarargumentar para ganharautorizao de fazeressas estimativas deordem biogrfica,buscarei a obra doprprio Meyer. Porexemplo: em Asaventuras de um mito,repetindo procedimentotpico, ele especulasobre as motivaespessoais de Cervantesao escrever Don Quijote.Com Machado deAssis, Meyer vriasvezes praticou o mesmomtodo.

    7 Para quem quisertentar a aventura deencontrar as definiesde Meyer paramodernidade,moderno e coisasassim, sugiro comearpela estranha, inusitadaabertura do textoAventuras de ummito, quando anunciasua inteno de escreverensaio sobre a fortunado personagem DomQuixote na imaginaodas pessoas: DomQuixote, mito literriofascinante, merece umlivro todo, e talvez omais belo tema dacrtica moderna.(TC, p. 95)

  • tura sul-rio-grandense no foi diferente, regra geral. E Meyer foi,dentre os intelectuais de sua poca, um dos mais devotados ao estu-do dela, sendo no entanto o mais cosmopolita deles, j por sua for-mao, j por sua vocao. (No significa isso que no tivesse eleboas figuras de emulao; bastaria lembrar um crtico como JooPinto da Silva, lamentavelmente esquecido, historiador da literaturasulina com largos mritos e impressionante discernimento.)

    Pois bem: tomada em conjunto, a obra de Meyer em torno daproduo literria e, mais amplamente, da produo cultural gachaest notoriamente afastada dos riscos tanto de superestimao quan-to de subestimao, e certamente no se perde na mincia irrelevan-te, e muito menos da generalizao excessiva. Em outro texto clssi-co sobre o tema, Poesia popular gacha, dir mais claramente ain-da, a propsito de demonstrar a pouca participao de elementosverdadeiramente populares na formulao da poesia tida como po-pular: O preconceito herderiano ou romntico est de tal modo ar-raigado em ns, que preferimos supor o contrrio: que o povo,essa vaga abstrao, o grande criador, a fonte generosa onde os poe-tas vo beber a verdadeira poesia (TC, p. 491).

    Que o equilbrio de Meyer entre tais limites ter sido difcil de ob-ter, parece claro. Por que, de perguntar, como conciliar coisas como,de um lado, certo apelo sentimental ao irracionalismo infantil, ou pelomenos extrema sensibilidade infantil ou pr-racional, com, de outro,a clareza metodolgica que rejeita a fantasia da Idade do Ouro? Seria,talvez, mais ou menos como entalar o pensamento num brete estreito:no ceder idia romntica do Paraso Perdido, mas no abdicar desonhar com ele, revivendo-o na forma de memria.

    O que, de outra parte ainda, sempre implica uma excurso de ris-co. A reconstituio da infncia, seja numa tentativa autobiogrficaou em qualquer forma de evocao literria, j se apresenta viciadana origem, pela perspectiva de iluso e mesmo de transfigurao em

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    Lus Augusto Fischer

  • que se coloca o adulto, para poder descrev-la, diz ele em Da in-fncia na literatura (TC, pp. 171-5). No podemos ler aqui, acaso,uma espcie de defesa enviesada da irrecuperabilidade e da intangi-bilidade da infncia, isto , uma sutil mas firme reafirmao da Idadedo Ouro, em escala individual?

    Acresce ainda que Meyer, sendo o crtico fino, filologista e ergo-cntrico que sempre foi, desde os primeiros textos, foi tambm um ar-gidor at impertinente da psicologia alheia, quero dizer, da psicolo-gia dos autores. E aqueles com quem mais se identificou, a julgar pelaintensidade com que freqentou analiticamente a obra, por assim di-zer sofreram em suas mos; e o diagnstico do crtico, nesses casos,sempre me parece uma espcie de confisso no espelho. De SimesLopes Neto, aproxima sem muita mediao autor e personagem,numa fuso que permite aproximar vida e obra quase descuidadamen-te; de Machado de Assis, diz que foi o monstro de lucidez que se cri-ara aos poucos, um ser com a duvidosa alegria de caar as essnciasque transparecem na obra dos moralistas e psiclogos (TC, p. 213).

    B

    hora de avanar sobre a segunda parte de nosso percurso, bus-cando agora diagnosticar de que modo Augusto Meyer pensou oRio Grande do Sul, sua literatura e sua cultura. Como dito antes,trata-se de lidar com material vasto, embora relativamente uniformequanto ao tratamento quero dizer que nesta matria no se verificanenhum turning point to notvel quanto aquele que aqui se diagnosti-cou em redor da imagem do sujeito que buscava entender o movi-mento caminhando: como lembramos, nosso homenageado pareceter sido, na juventude, um idealista que imaginava ser necessrioafastar-se do mundo para entend-lo, enquanto na maturidade ad-mitiu haver razo na dialtica.8

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    Augusto Meyer, um ensasta da Comarca do Pampa

    8 Especulaolateral: nomesmo passo emque ocorreu talmudana, tal(quase) inverso,Meyer deixou deser poeta se que podemosdizer isso assim,de modo totrivial. De todomodo, pareceque aquelaspores desimbolismomitigadopresentes em suapoesia inicial, devis modernista,parece tersumido, em favorde uma presenano desprezvelde surrealismo(com exceodos ltimospoemas,melanclicos,evocativos).

  • Naturalmente, sua percepo a respeito do tema vai-se matizan-do, ao longo do tempo. Prosa dos pagos, sua obra de referncia neste as-sunto, teve vrias edies e pelo menos duas feies, tal o montantede novidades entre a edio primeira, de 1943, e as que apareceram apartir de 1960. As datas mesmo so significativas, considerado oquadro da cultura do Rio Grande do Sul. Faamos uma breve reto-mada.

    Na altura em que Meyer publicava sua coletnea sobre a literaturaregionalista gacha, pode-se dizer que estava por fechar um sculode freqentao do tema por artistas e intelectuais locais. Ainda quea Sociedade Partenon Literrio tenha aparecido formalmente apenasnos ltimos anos de 1860 de lembrar que a instituio abrigou edivulgou os escritores tentativos daquela altura, numa espcie deirm antecipada desta Academia, anterior no tempo mas com algunsmpetos anlogos , j ao final da Guerra dos Farrapos (1835-45) otema regional comeou a impor-se mentalidade dos jovens da ter-ra. Era preciso ser gacho palavra por sinal ainda maldita na altura,reservada que era apenas aos marginais sociais da vida interiorana dacampanha , e os escritores puseram mos obra na forma de forjaruma figura identitria.

    Com o Partenon, tudo cresceu, e apareceram escritores que, noobstante as limitaes formais e o acanhado alcance, se impuseramao meio. Sirva de exemplo Apolinrio Porto Alegre, professor, pes-quisador espontneo, leitor voraz, escritor obstinado, folcloristaamador, republicano de tmpera democrtica (o que no Rio Grandede ento era uma raridade, bom lembrar). Na vida poltica vem aRepblica, na forma positivista extremada que uma gerao brilhan-te protagonizou, Jlio de Castilhos em primeiro plano, mais Pinhei-ro Machado, Assis Brasil, Borges de Medeiros, Ramiro Barcellos.

    Na virada do sculo XX, surgir a primeira grande gerao de es-critores dedicados ao tema regional, com Simes Lopes Neto fren-

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    Lus Augusto Fischer

  • te, seguido de Alcides Maya, mais Amaro Juvenal e outros. Estestrs, naturalmente sem qualquer combinao prvia, apresentam aomundo um conjunto de obras que marcar para sempre as coisas: emrpida sucesso aparecem de Simes Lopes Neto o Cancioneiro guascaem 1910, os Contos gauchescos em 1912 e as Lendas do Sul em 1913; deAlcides Maya suas Runas vivas em 1910 e Tapera no ano seguinte; eAmaro Juvenal, fazendo a stira poltica de ataque a Borges de Me-deiros, apresenta seu Antnio Chimango em 1915. Na poltica, no ven-tre mesmo daquela primeira gerao republicana, estava se gerandouma sucesso das mais notveis: Getlio Vargas se preparava.

    A gerao seguinte j a do poeta Augusto Meyer, que nesta con-dio, a de poeta, no pode ser qualificado como regionalista emsentido estrito, ainda que sua poesia no se furte a apontar cenrios efiguras da redondeza, aqui e ali. E de fato nos anos 20 todo um gru-po de interessantes poetas vai mostrar as garras, herdando uma pr-tica esttica que o mesmo Meyer definir como uma competio deinfluncias entre Parnasianismo e Simbolismo, que eles trataro dereverter em fav