relatório de caso clínico - caninos - ufrgs.br · a suspeita de insulinoma foi devida a...

4
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL Faculdade de Veterinária Departamento de Patologia Clínica Veterinária Disciplina de Bioquímica e Hematologia Clínica (VET03121) http://www.ufrgs.br/favet/bioquimica Relatório de Caso Clínico IDENTIFICAÇÃO Caso: 2007/2/11 Procedência: HCV-UFRGS N o da ficha original: 31845 Espécie: canina Raça: Poodle Idade: 9 anos Sexo: fêmea Peso: 15 kg Alunos(as): Gabriela G. Reiter, Natacha C. Mascarello, Verônica Mombach Ano/semestre: 2007/2 Residentes/Plantonistas: Médico(a) Veterinário(a) responsável: Álan Gomes Pöppl ANAMNESE O animal apresentava hipoglicemia há cerca de 2 anos, que iniciou após uma ovário-histerectomia realizada em decorrência de piometra. Apresentava bom apetite e suas refeições decorriam em um intervalo de 3 a 6 horas. À meia noite recebia alimento e durante a madrugada recebia água com açúcar, assim como durante o dia; cansava facilmente e apresentava abalos musculares (tremores) ao se exercitar; apresentava crises convulsivas e melhorava com a administração de glicose; não apresentava náuseas e vômitos e apresentava secreção ocular e nasal. A paciente aumentou 5 kg em um ano. EXAME CLÍNICO Temperatura retal: 38,4 °C; mucosas rosadas; atitude: prostrada e ofegante; tempo de preenchimento capilar: menor que 2 segundos; condição corporal: 4,5 (1-5); auscultação e palpação: evidenciado sopro leve em foco mitral; apresentava catarata madura bilateral (Figura 1). EXAMES COMPLEMENTARES Dosagem de insulina: 35,39 μU/mL (5-25 mlU/mL) Raio X torácico: evidenciou leve aumento cardíaco e infiltrado pulmonar Ecografia abdominal: foi detectada hiperplasia nodular na adrenal esquerda; na região do pâncreas o exame revelou suspeita de insulinoma. URINÁLISE Método de coleta: micção natural Obs.: Exame físico cor consistência odor aspecto densidade específica (1,015-1,045) amarelo fluida límpido 1,052 Exame químico pH (5,5-7,5) corpos cetônicos glicose pigmentos biliares proteína hemoglobina sangue nitritos 5,0 - - + - - - - Sedimento urinário (n o médio de elementos por campo de 400 x) Células epiteliais: 1 Tipo: escamosas Hemácias: -5 Cilindros: Tipo: Leucócitos: -5 Outros: Tipo: Bacteriúria: ausente n.d.: não determinado BIOQUÍMICA SANGÜÍNEA Tipo de amostra: soro Anticoagulante: Hemólise da amostra: ausente Proteínas totais: 78,0 g/L (54-71) Glicose: 30 mg/dL (65-118) ALP: 58 U/L (0-156) Albumina: 35,4 g/L (26-33) Colesterol total: 231 mg/dL (135-270) ALT: 68 U/L (0-102) Globulinas: 42,6 g/L (27-44) Uréia: 49 mg/dL (21-60) CPK: U/L (0-125) BT: mg/dL (0,1-0,5) Creatinina: 1,0 mg/dL (0,5-1,5) Frutosamina: 246 (170-338 Mm/L) BL: mg/dL (0,01-0,49) Cálcio: 10,2 mg/dL (9,0-11,3) TG: 152 mg/dL (32-138) BC: mg/dL (0,06-0,12) Fósforo: 3,0 mg/dL (2,6-6,2) Amilase: 1259,0 U/L (<700) BT: bilirrubina total BL: bilirrubina livre (indireta) BC: bilirrubina conjugada (direta)

Upload: lylien

Post on 17-Dec-2018

221 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Relatório de Caso Clínico - Caninos - ufrgs.br · A suspeita de insulinoma foi devida a hipoglicemia persistente, valores elevados de insulina e evidência de tumor mediante exame

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL Faculdade de Veterinária Departamento de Patologia Clínica Veterinária Disciplina de Bioquímica e Hematologia Clínica (VET03121) http://www.ufrgs.br/favet/bioquimica

Relatório de Caso Clínico

IDENTIFICAÇÃO Caso: 2007/2/11 Procedência: HCV-UFRGS No da ficha original: 31845 Espécie: canina Raça: Poodle Idade: 9 anos Sexo: fêmea Peso: 15 kg Alunos(as): Gabriela G. Reiter, Natacha C. Mascarello, Verônica Mombach Ano/semestre: 2007/2 Residentes/Plantonistas: Médico(a) Veterinário(a) responsável: Álan Gomes Pöppl ANAMNESE O animal apresentava hipoglicemia há cerca de 2 anos, que iniciou após uma ovário-histerectomia realizada em decorrência de piometra. Apresentava bom apetite e suas refeições decorriam em um intervalo de 3 a 6 horas. À meia noite recebia alimento e durante a madrugada recebia água com açúcar, assim como durante o dia; cansava facilmente e apresentava abalos musculares (tremores) ao se exercitar; apresentava crises convulsivas e melhorava com a administração de glicose; não apresentava náuseas e vômitos e apresentava secreção ocular e nasal. A paciente aumentou 5 kg em um ano. EXAME CLÍNICO Temperatura retal: 38,4 °C; mucosas rosadas; atitude: prostrada e ofegante; tempo de preenchimento capilar: menor que 2 segundos; condição corporal: 4,5 (1-5); auscultação e palpação: evidenciado sopro leve em foco mitral; apresentava catarata madura bilateral (Figura 1). EXAMES COMPLEMENTARES Dosagem de insulina: 35,39 µU/mL (5-25 mlU/mL) Raio X torácico: evidenciou leve aumento cardíaco e infiltrado pulmonar Ecografia abdominal: foi detectada hiperplasia nodular na adrenal esquerda; na região do pâncreas o exame revelou suspeita de insulinoma. URINÁLISE Método de coleta: micção natural Obs.: Exame físico cor consistência odor aspecto densidade específica (1,015-1,045) amarelo fluida límpido 1,052 Exame químico pH (5,5-7,5) corpos cetônicos glicose pigmentos biliares proteína hemoglobina sangue nitritos5,0 - - + - - - - Sedimento urinário (no médio de elementos por campo de 400 x) Células epiteliais: 1 Tipo: escamosas Hemácias: -5 Cilindros: Tipo: Leucócitos: -5 Outros: Tipo: Bacteriúria: ausente

n.d.: não determinado

BIOQUÍMICA SANGÜÍNEA Tipo de amostra: soro Anticoagulante: Hemólise da amostra: ausente Proteínas totais: 78,0 g/L (54-71) Glicose: 30 mg/dL (65-118) ALP: 58 U/L (0-156) Albumina: 35,4 g/L (26-33) Colesterol total: 231 mg/dL (135-270) ALT: 68 U/L (0-102) Globulinas: 42,6 g/L (27-44) Uréia: 49 mg/dL (21-60) CPK: U/L (0-125) BT: mg/dL (0,1-0,5) Creatinina: 1,0 mg/dL (0,5-1,5) Frutosamina: 246 (170-338 Mm/L) BL: mg/dL (0,01-0,49) Cálcio: 10,2 mg/dL (9,0-11,3) TG: 152 mg/dL (32-138) BC: mg/dL (0,06-0,12) Fósforo: 3,0 mg/dL (2,6-6,2) Amilase: 1259,0 U/L (<700)

BT: bilirrubina total BL: bilirrubina livre (indireta) BC: bilirrubina conjugada (direta)

Page 2: Relatório de Caso Clínico - Caninos - ufrgs.br · A suspeita de insulinoma foi devida a hipoglicemia persistente, valores elevados de insulina e evidência de tumor mediante exame

Caso clínico 2007/2/11 página 2 HEMOGRAMA Leucócitos Eritrócitos Quantidade: 5.800/μL (6.000-17.000) Quantidade: 7,80 milhões/μL (5,5-8,5) Tipo Quantidade/μL % Hematócrito: 48,0 % (37-55) Mielócitos 0 (0) 0 (0) Hemoglobina: 18,5 g/dL (12-18) Metamielócitos 0 (0) 0 (0) VCM (Vol. Corpuscular Médio): 69 fL (60-77) Bastonados 0 (0-300) 0 (0-3) CHCM (Conc. Hb Corp. Média): 34,2 % (32-36) Segmentados 4.756 (3.000-11.500) 82 (60-77) Basófilos 0 (0) 0 (0) Eosinófilos 116 (100-1.250) 2 (2-10) Monócitos 116 (150-1.350) 2 (3-10)

Morfologia:

Linfócitos 812 (1.000-4.800) 14 (12-30) Plaquetas Plasmócitos 0 (0) 0 (0) Quantidade: /μL (200.000-500.000) Morfologia: Observações: TRATAMENTO E EVOLUÇÃO Dieta com base em uma ração rica em fibras oferecida em pequenas porções distribuídas em intervalos de 4-5 horas. A dieta recomendada contém carboidratos complexos que favorecem o controle da glicemia por serem degradados mais lentamente. Foi recomendado interromper a administração de água com açúcar e evitar situações de estresse. Decorridas aproximadamente duas semanas após a primeira consulta foi realizada a revisão e a proprietária relatou que cessaram as crises convulsivas e que o animal estava bem. NECRÓPSIA (e histopatologia) Patologista responsável: DISCUSSÃO

A paciente chegou ao HCV evidenciando sinais clínicos correspondentes a hipoglicemia, a qual foi sustentada pelo teste de glicemia. A linfopenia observada é devido à liberação de corticosteróides decorrente do estresse causado pela hipoglicemia. A paciente demonstrou sinais clínicos correspondentes à Tríade de Whipple (glicemia igual ou inferior a 40 mg/dL; sintomas neurológicos decorrentes de hipoglicemia; alívio dos sintomas pela administração parenteral de glicose), e isso pode ter levado à suspeita de insulinoma pelo médico veterinário, apoiado pela dosagem de insulina. A tríade de Whipple não é específica para essa doença (GOMES et al., 2007), porém indica a existência de baixa glicemia de origem patológica. O ultra-som foi realizado com a intenção de confirmar o insulinoma, e um nódulo tumoral de aproximadamente 1,0 cm x 2,4 cm foi encontrado (Figura 3). A atividade sérica elevada da amilase pancreática foi em decorrência do tumor. Já os triglicerídeos estão aumentados devido à obesidade (Figura 2). O insulinoma é uma neoplasia maligna em 90% dos casos relatados em cães (GOMES, et. al., 2007), que acomete as células beta do pâncreas endócrino, levando a uma produção excessiva de insulina, tendo como conseqüência hipoglicemia. É um tumor de crescimento lento e pode estar devidamente encapsulado. Nos animais hígidos a secreção de insulina é controlada principalmente pela glicemia, somatostatina e glucagon. As células neoplásicas podem não sofrer este controle, uma vez que a sua proliferação é autônoma, fazendo com que a insulina seja secretada continuamente. Com isso o animal passa a apresentar sintomatologia de hipoglicemia. A insulina age primariamente nos músculos e células adiposas, facilitando o ingresso de glicose nesses tecidos e sua utilização intracelular, e no fígado favorece a sua metabolização. Com isso, os tecidos que não necessitam de insulina para a utilização da glicose, como o cérebro, trato gastrointestinal e células sanguíneas são os primeiros a sofrer os efeitos da hipoglicemia. Os sintomas da privação neural de glicose podem ser: comportamento anormal, tremores, confusão ocasionalmente evoluindo para convulsões e até coma (TIBURI, 2006). Hipotermia, bradicardia e dilatação pupilar também são observadas em situações mais prolongadas. A intervenção cirúrgica é um dos possíveis tratamentos, entretanto, é um procedimento complicado porque existe risco de extravasamento das enzimas pancreáticas que podem levar à autólise do tecido ou pancreatite. Outro ponto negativo dessa cirurgia é a grande possibilidade de recidiva, a qual ocorre, em sua maioria, entre um mês e um ano (GOMES et. al., 2007). Foi, também, sugerido o tratamento quimioterápico, o qual é realizado através da administração de streptozotocina. Atualmente, este medicamento não é comercializado no Brasil, o que o torna muito oneroso. Por se caracterizar de um químico nefrotóxico quando

Page 3: Relatório de Caso Clínico - Caninos - ufrgs.br · A suspeita de insulinoma foi devida a hipoglicemia persistente, valores elevados de insulina e evidência de tumor mediante exame

Caso clínico 2007/2/11 página 3

administrado sem associação de fluídos que induzem a diurese, muitos animais sofrem de insuficiência renal em conseqüência do tratamento. Outra alternativa terapêutica é a utilização de octreotida (derivado sintético da somatostatina) que oferece um bom controle glicêmico. Todavia, também é de custo elevado e necessita a presença de receptores específicos nas células neoplásicas. Em decorrência das desvantagens dos tratamentos citados, a proprietária optou por um tratamento de suporte, consistente em controlar os sintomas de hipoglicemia através de refeições com base em uma ração rica em fibras, oferecidas 4 a 5 vezes ao dia. Entretanto, esse tratamento não tem como objetivo normalizar a glicemia. Outra alteração observada na ecografia, a qual surpreendeu o veterinário, foi hiperplasia nodular na glândula adrenal (Figura 4). A princípio esta hiperplasia não implicou em nenhuma sintomatologia evidente, porém, caso se trate de uma neoplasia funcional poderá acarretar em hiperadrenocorticismo. O curioso de estas patologias (insulinoma e hiperadrenocorticismo) ocorrerem concomitantemente, é que elas apresentam sintomatologias opostas em relação à glicose. O crescimento desordenado das células da adrenal resulta em um excesso de cortisol. Os corticóides, entre outras ações, inibem a utilização da glicose periférica e estimulam a gliconeogênese. Esta ação causa hiperglicemia. Como não se tem conhecimento sobre a funcionalidade do tumor da adrenal, não é possível saber até que ponto ele estaria influenciando na ação do insulinoma e vice-versa, especialmente em relação à glicemia. A paciente apresentou também hipertrofia cardíaca leve e sopro na válvula mitral, o que provavelmente se deve a sua idade. Algumas alterações cardiovasculares poderiam ser explicadas pelo excesso de insulina. A insulina favorece a entrada de potássio nas células e o excesso desse hormônio tende a causar hipopotassemia. A baixa concentração de potássio causa transtornos cardiovasculares, como insuficiência cardíaca congestiva e hipertrofia ventricular esquerda (FELIPPE, 2004) além de diminuir a freqüência cardíaca. CONCLUSÕES A suspeita de insulinoma foi devida a hipoglicemia persistente, valores elevados de insulina e evidência de tumor mediante exame ecográfico. Falta identificar se a hiperplasia nodular da adrenal, evidenciada através do diagnóstico por imagens, se caracteriza como tumor funcional e se há influência de uma patologia sobre a outra. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FELIPPE, J. J. O potássio no pronto-socorro e UTI. Associação Brasileira de Medicina Complementar, São Paulo, 2004. Disponível em: <www.medicinacomplementar.com.br> Acesso em: 01 nov. 2007. GOMES, C.; GUIMARÃES, K. M.; PÖPPL, A. G.; FOERSTNOW, L.; MUCILLO, M.; MUSCHNER, A. C.; CONTESINI, E. A. Tratamento cirúrgico de insulinoma em um cão. Acta Scientiae Veterinariae, Porto Alegre, 2007. Disponível em:< www.ufrgs.br/favet/revista>. Acesso em: 28 nov. 2007. p. 370-371 MOCHIZUKI, M. O papel da ressecção vascular no câncer de pâncreas. Hepcentro, Piracicaba, 2001. Disponível em: <www.hepcentro.com.br/neoplasia_pancreas>. Acesso em: 30 nov. 2007. TIBURI, M. F. Rastreamento e detecção de insulinoma em pacientes com hipoglicemia. Portal Saúde Brasil, Porto Alegre, 2006. Disponível em: <www.saudebrasilnet.com.br>. Acesso em: 28 nov. 2007. 8 p.

Page 4: Relatório de Caso Clínico - Caninos - ufrgs.br · A suspeita de insulinoma foi devida a hipoglicemia persistente, valores elevados de insulina e evidência de tumor mediante exame

Caso clínico 2007/2/11 página 4

FIGURAS

Figura 1. Olho esquerdo da pacientel. Apresenta catarata que na foto é evidenciada pelo aspecto esbranquiçado do globo ocular. (© 2007 Alan Pöppl)

Figura 2. Vista dorsal do paciente. Animal evidenciando obesidade (CC=4,5) . (© 2007 Álan Pöppl)

Figura 3. Ecografia da região abdominal. A área demarcada evidencia o nódulo (1,0 cm x 2,4 cm) no lobo esquerdo do pâncreas. (© 2007 Adriane Ilha)

Figura 4. Ecografia da região abdominal. A área demarcada demonstra hiperplasia nodular da glândula adrenal. (© 2007 Adriane Ilha)