prÓ-reitoria de pesquisa e pÓs-graduaÇÃo … · e ensinado grande parte do que sei em pesquisa...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR
PR-REITORIA DE PESQUISA E PS-GRADUAO
FACULDADE DE MEDICINA
DEPARTAMENTO DE MEDICINA CLNICA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS MDICAS
TAUILY CLAUSSEN D`ESCRAGNOLLE TAUNAY
DESENVOLVIMENTO E VALIDAO DO NDICE DE
RELIGIOSIDADE INTRNSECA: CORRELAES COM SADE
MENTAL E QUALIDADE DE VIDA
FORTALEZA
2011
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TAUILY CLAUSSEN D`ESCRAGNOLLE TAUNAY
DESENVOLVIMENTO E VALIDAO DO NDICE DE
RELIGIOSIDADE INTRNSECA: CORRELAES COM SADE
MENTAL E QUALIDADE DE VIDA
Dissertao submetida Coordenao do Programa de Ps-Graduao em Cincias Mdicas do Departamento de Medicina Clnica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Cear, como requisito para obteno do ttulo de Mestre. rea de concentrao: Medicina. Orientador: Prof. Dr. Andr Frrer Carvalho.
FORTALEZA
2011
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T223d Taunay, Tauily Claussen D`Escragnolle Desenvolvimento e validao do ndice de religiosidade intrnseca: correlaes com sade mental e qualidade de vida / Tauily Claussen D`Escragnolle Taunay. Fortaleza, 2011. 73 f.
Orientador: Prof. Dr. Andr Frrer Carvalho.
Dissertao (Mestrado) - Universidade Federal do Cear. Faculdade de Medicina. Ps-Graduao em Cincias Mdicas. Fortaleza, Cear.
1. Religio 2. Sade Mental 3. Qualidade de Vida I. Carvalho, Andr Frrer (orient.). II. Ttulo.
CDD: 362.2
FICHA CATALOGRFICA Preparada pela Biblioteca de Cincias da Sade da Universidade Federal do Cear
reproduo autorizada pelo autor
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TAUILY CLAUSSEN D`ESCRAGNOLLE TAUNAY
DESENVOLVIMENTO E VALIDAO DO NDICE DE
RELIGIOSIDADE INTRNSECA: CORRELAES COM SADE
MENTAL E QUALIDADE DE VIDA
Dissertao submetida Coordenao do Programa de Ps-Graduao em Cincias Mdicas do Departamento de Medicina Clnica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Cear, como requisito para obteno do ttulo de Mestre. rea de concentrao: Medicina.
Aprovada em ______/______/_______.
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________ Prof. Dr. Andr Frrer Carvalho (Orientador)
Universidade Federal do Cear UFC
____________________________________________ Prof. Dr. Eliane Souto de Abreu
Universidade de Fortaleza UNIFOR
____________________________________________ Prof. Dr. Silvnia Vasconcelos
Universidade Federal do Cear UFC
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Cincia sem religio manca. Religio sem cincia
cega.
Albert Einstein
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AGRADECIMENTOS
Ao orientador deste trabalho, Professor Andre Frrer Carvalho, por ter me
acolhido e confiado em minha capacidade para o trabalho, me abrindo novas portas
no universo acadmico, sob as quais passarei com ainda mais dedicao, visando
contribuies importantes para o campo.
Ao co-orientador deste trabalho, Dr. Francisco de Assis Aquino Gondim
(Professor Cid), por ter me dado grandes oportunidades para produo cientfica,
especialmente na poca em que fui estudante de graduao em Psicologia na UFC,
e ensinado grande parte do que sei em pesquisa e Neurocincias.
Ao professor Dr. Francisco Hlio Rla, que, mesmo sem qualquer
necessidade e com toda sua humildade e genialidade caractersticas, abrilhantou o
presente trabalho com valorosas contribuies.
s neuropsiclogas Luciane Ponte e Silva e Silviane Pinheiro Andrade,
que me deram o suporte intelectual necessrio para a prxis em Neuropsicologia na
Universidade e na clnica.
Um agradecimento especial a toda equipe de pesquisadores que me
auxiliou na consecuo deste trabalho, que, sem ela, no poderia t-lo desenvolvido:
Luciana Arajo, Eva Cristino, Loraine Andrade e demais colaboradores.
minha famlia (Sheila [me], Francisco Claussen [av], Daisy [av],
Nancy [tia], Carolina [irm] e Leonardo [irmo]), que sempre me forneceu os
suprimentos necessrios para encarar os desafios maravilhosos propostos pela vida.
minha amada esposa, Karine, que tambm me deu muita fora na
consecuo deste trabalho, me auxiliando e me aturando nestes anos de estudo e
capacitao profissional, sempre com muito carinho e amor.
Ao meu lindo filho Ian, que um amor de pessoa e que, com toda
certeza, contribuir significativamente de forma progressiva com nossa felicidade
nessa vida.
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Ao Dr. Olavo Rocha, que tambm confiou na minha capacidade para o
trabalho e me deu oportunidade para colaborar consigo na luta contra a
dependncia qumica no Cear e no Nordeste, no mbito da Clnica Especializada
Viva.
Ao Dr. Paulo Vieira e Ramon de Paula que, indiretamente, me
apresentaram uma forma de aplicar neurocincias na clnica psicolgica por meio do
aprendizado da metodologia coaching.
A todos os meus amigos (do DF e CE) que, dialeticamente, me ajudaram
e me ajudam a constituir o sujeito que sou dia-a-dia.
E a todos aqueles que eu no citei, mas que, de alguma forma,
colaboraram para que eu realizasse este trabalho to importante em minha
trajetria.
A todos, Muito obrigado!
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RESUMO
OBJETIVO. A religiosidade est presente na sociedade humana, independentemente de poca ou local. No Brasil, 95% da populao declara ter religio. A partir do advento da metodologia cientfica no campo, a religiosidade, em sade mental, vem sendo objeto de intensa investigao. Hoje, sabe-se que a religiosidade, na maioria das vezes, atua como fator de proteo em sade mental e fsica. O presente estudo utilizou a cincia psicomtrica para desenvolver e validar um instrumento breve para mensurar religiosidade intrnseca (Inventrio de Religiosidade Intrnseca - IRI) em duas amostras brasileiras e comparar com medidas de sade mental e qualidade de vida. MTODO. A verso inicial (14 itens) foi baseada na reviso de literatura e em sugestes de especialistas. Estudantes universitrios (amostra 1; n=323) e pacientes psiquitricos (amostra 2; n=102) preencheram os seguintes instrumentos: IRI, Escala de Religiosidade Duke (DUREL), uma medida de espiritualidade (WHOQOL-SRPB), uma medida de qualidade de vida (WHOQOL-BREF), bem como medidas de sintomas ansiosos e depressivos (Inventrio de Depresso de Beck - BDI, Inventrio de Ansiedade de Beck - BAI e Escala Hospitalar de Ansiedade e Depresso - HADS). RESULTADOS. O IRI apresentou consistncia interna adequada nas amostras 1 ( de Cronbach=0,96; IC95%; 0,87-0,98) e 2 ( = 0,96; IC95%; 0,85-0,99). Anlises de componentes principais com rotao varimax indicaram um nico fator que explicou 73,7% e 74,9% da varincia nas amostras 1 e 2, respectivamente, aps a retirada dos itens de menor carga fatorial. Foram observadas fortes correlaes entre o IRI e a sub-escala de religiosidade intrnseca da DUREL (r de Spearman de 0,87 a 0,73 nas amostras 1 e 2, respectivamente, p 0,70). DISCUSSO. O IRI apresentou boas propriedades psicomtricas. Observou-se associaes significativas entre medidas de religiosidade intrnseca e depresso e qualidade de vida na amostra de estudantes, bem como associaes significativas entre religiosidade intrnseca e depresso e ansiedade, na amostra de pacientes psiquitricos. CONCLUSO. Os dados indicam que o IRI um instrumento vlido e pode contribuir para estudar religiosidade intrnseca em diferentes amostras brasileiras.
Descritores: religiosidade, estudo de validao, sade mental, qualidade de vida.
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ABSTRACT
OBJECTIVE. Religiousness is present in mankind regardless of period or place. In Brazil, 95% of the population said to have religion. Since the entrance of scientific methodology in the field, religiousness, in mental health, has been increasingly investigated. Nowadays, is well known that religiousness, in many ways, acts as a buffer in mental and physical health. The present study employed psychometric science to develop and validate a brief instrument to assess intrinsic religiousness (Intrinsic Religiousness Inventory - IRI) in two Brazilian samples and to correlate with mental health and quality of life measures. METHOD. The initial version (14 items) was based on literature review and experts suggestion. University students (sample 1; n=323) and psychiatric patients (sample 2; n=102) filled the following instruments: IRI, the Duke Religiosity Index (DUREL), a spirituality measure (WHOQOL-SRPB), a quality of life measure (WHOQOL-BREF) as well as measures of anxiety and depressive symptoms (Beck Depression Inventory - BDI, Beck Anxiety Inventory - BAI and Hospital Anxiety and Depression Scale - HADS). RESULTS. The IRI showed adequate internal consistency reliability in sample 1 (Cronbachs = 0.96; 95% CI; 0.87-0.98) and sample 2 ( = 0.96; 95% CI; 0.85-0.99). Principal component analyses with varimax rotation of the IRI indicated a single factor, which explained 73.7% and 74.9% of variance in samples 1 and 2, respectively, after the exclusion of items with small factor loadings. Strong correlations between the IRI and the intrinsic subscale of the DUREL were observed (Spearmans r ranging from 0.87 to 0.73 in samples 1 and 2, respectively, p 0.70). DISCUSSION. The IRI showed good psychometrical properties. Significantly associations were observed between intrinsic religiousness and depression symptoms and quality of life measures in the student sample, as well as significantly associations between intrinsic religiousness and depression and anxiety symptoms measures in the psychiatric sample. CONCLUSION. These data indicate that the IRI is a valid instrument and may contribute to study intrinsic religiosity in Brazilian samples.
Descriptors: religiousness, validation study, mental health, quality of life.
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LISTA DE QUADRO E TABELAS
QUADRO 1 Resumo das reas neurais e comportamentos correlatos envolvendo religiosidade/espiritualidade
33
TABELA 1 Distribuio das variveis demogrficas em ambas as amostras 48
TABELA 2 Distribuio das patologias psiquitricas referente amostra 2 49
TABELA 3 Escores gerados pelos estudantes referentes aos instrumentos de avaliao da sade mental, religiosidade e espiritualidade e qualidade de vida
49
TABELA 4 Escores gerados pelos pacientes referentes aos instrumentos de avaliao da sade mental, religiosidade e espiritualidade e qualidade de vida
50
TABELA 5 Mdia e desvio-padro da distribuio dos escores de cada item do IRI referente amostra 1 (n=323)
51
TABELA 6 Mdia e desvio padro da distribuio dos escores de cada item do Inventrio de Religiosidade Intrnseca referente amostra 2 (n=102)
52
TABELA 7 Carga Fatorial e comunalidade, autovalor e proporo da varincia explicada do nico componente do IRI (verso inicial, 14 itens) referente amostra 1 (n=323)
53
TABELA 8 Carga Fatorial e comunalidade, autovalor e proporo da varincia explicada do nico componente do IRI (verso inicial, 14 itens) referente amostra 2 (n=102)
54
TABELA 9 Carga Fatorial e comunalidade, autovalor e proporo da varincia explicada do nico componente do IRI (verso final, 10 itens) referente amostra 1 (n=323)
55
TABELA 10 Carga Fatorial e comunalidade, autovalor e proporo da varincia explicada do nico componente do IRI (verso final, 10 itens) referente amostra 2 (n=102)
56
TABELA 11 Correlao item-total corrigida e coeficiente Alfa de Cronbach do IRI referente amostra 1 (n=323)
57
TABELA 12 Correlao item-total corrigida e coeficiente Alfa de Cronbach do IRI referente amostra 2 (n=102)
57
TABELA 13 Escores mdios e desvios-padro (DP) dos 10 itens do IRI e ndices de confiabilidade teste-reteste (coeficientes de correlao intraclasse CCI) (n=313)
58
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TABELA 14 Relaes entre IRI com DUREL e WHOQOL-SRPB em ambas as amostras
60
TABELA 15 Relaes entre IRI, DUREL e WHOQOL-SRPB com medidas de depresso, ansiedade e QV na amostra 1 (n=323)
60
TABELA 16 Relaes entre IRI, DUREL e WHOQOL-SRPB e subdomnios da WHOQOL-BREF na amostra 1 (n=323)
61
TABELA 17 Relaes entre IRI, DUREL e WHOQOL-SRPB com medidas de depresso, ansiedade e QV na amostra 2 (n=102)
62
TABELA 18 Relaes entre IRI, DUREL e WHOQOL-SRPB e subdomnios da WHOQOL-BREF na amostra 2 (n=102)
62
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
BAI Inventrio Beck para Ansiedade
BDI Inventrio Beck para Depresso
DUREL Escala de Religiosidade Duke
HADS-A Escala de Depresso e Ansiedade Hospitalar Mdulo Ansiedade
HADS-D Escala de Depresso e Ansiedade Hospitalar Mdulo Depresso
HUWC Hospital Universitrio Walter Cantdio
IRI Inventrio de Religiosidade Intrnseca
QV Qualidade de Vida
WHOQOL-BREF Escala de Qualidade de Vida da Organizao Mundial de Sade
Verso Breve
WHOQOL-SRPB Escala de Qualidade de Vida da Organizao Mundial de Sade
Mdulo Espiritualidade, Religio e Crenas Pessoais
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SUMRIO
1 INTRODUO 14
1.1 Aspectos histricos da relao entre religiosidade, sade mental e qualidade de vida
15
1.2 Religiosidade e Espiritualidade 17
1.2.1 Dimenses da religiosidade 18
1.3 Atesmo 20
1.4 Religiosidade e Qualidade de Vida 21
1.5 Religiosidade e Sade Mental 22
1.5.1 Religiosidade e Depresso 22
1.5.2 Religiosidade e Ansiedade 26
1.6 Aspectos Negativos de Relao entre Religiosidade e Sade 29
1.7 Bases Neurobiolgicas da Religiosidade 30
1.8 Avaliao Psicomtrica de Fenmenos Humanos 33
1.8.1 Mensurao da religiosidade 34
1.9
1.9.1
1.9.2
1.9.3
1.10
2
Validao de Testes Psicolgicos
Elaborao dos itens e validao de contedo
Validao de construto
Validao de critrio
Justificativa
OBJETIVOS
35
37
37
39
40
41
2.1 Objetivo Geral 41
2.2 Objetivos Especficos 41
3 METODOLOGIA 42
3.1 Local do Estudo 42
3.2 Descrio das Amostras 42
3.3 Critrios de Incluso 43
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3.4 Critrios de Excluso 43
3.5 Instrumentos 43
3.6 Desenvolvimento do Inventrio de Religiosidade Intrnseca da Universidade Federal do Cear (IRI)
45
3.7 Procedimentos 45
3.8 Anlise Estatstica de Dados 46
4 RESULTADOS 48
4.1 Descrio das Amostras 48
4.2 Propriedades psicomtricas do Inventrio de Religiosidade Intrnseca da Universidade Federal do Cear (IRI)
51
4.2.1 Distribuio dos escores do IRI em ambas as amostras 51
4.2.2 Anlise fatorial do IRI em ambas as amostras 52
4.2.3 Consistncia interna do IRI em ambas as amostras 56
4.2.4 Validade de critrio 59
4.3 Correlaes entre os Instrumentos de Aferio da Religiosidade e Espiritualidade e Instrumentos de Aferio da Sade Mental e Qualidade de Vida em ambas as Amostras
60
5 DISCUSSO 63
6 CONCLUSES 68
REFERNCIAS
APNDICES
ANEXOS
70
79
84
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14
1 INTRODUO
Enquanto comportamento coletivo, a religiosidade um importante
fenmeno, presente em todas as culturas, sob diferentes formas, constituindo-se
como uma das mais antigas manifestaes do homem (MURAMOTO, 2004; PERES;
SIMO; NASELLO, 2007). Estudos indicam que mais de 90% da populao mundial
est envolvida em alguma forma de prtica religiosa (KOENIG, 2009). No Brasil, a
religiosidade tambm est fortemente presente, sendo considerado um dos pases
com o maior contingente catlico do mundo e aonde a populao de evanglicos
vem crescendo vertiginosamente (MOREIRA-ALMEIDA et al., 2010). De acordo com
Moreira-Almeida et al. (2010), em uma amostra de 3007 pessoas entrevistadas entre
os anos de 2005 e 2006, 61,7% se declararam catlicos, enquanto que 26,7%,
evanglicos (em 2000, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica -
IBGE, este nmero era de 15%).
Diante da importncia deste fenmeno em nossa sociedade, pesquisas
cientficas sobre o tema vm considerando a associao entre religiosidade e
benefcios sade, especificamente no que se refere influncia da religio no
enfrentamento do adoecer (CORREA et al., 2010; DALGALARRONDO, 2008; DEW
et al., 2010; KOENIG, 2009). Enquanto a maioria dos estudos apontam uma
associao positiva entre envolvimento religioso e sade, adicionalmente, algumas
manifestaes da espiritualidade, mesmo em grupos religiosos tradicionais, podem
camuflar e/ou mimetizar uma fenomenologia psicopatolgica (ALMEIDA, 2004;
ALMEIDA, 2007). Avanos metodolgicos recentes tm possibilitado a compreenso
de aspectos neuropsicolgicos da religiosidade e dos fenmenos espirituais
(INZLICHT et al., 2009; KAPOGIANNIS et al., 2009).
Dentre as dificuldades de se estudar a religiosidade, encontra-se o
desenvolvimento de mtodos e tcnicas cientificamente vlidos que viabilizem a
mensurao de diferentes aspectos da religiosidade, como a frequncia de prticas
religiosas organizacionais e no-organizacionais ou o modo pelo qual o sujeito
vivencia a religiosidade em seus aspectos cognitivos, emocionais e
comportamentais (HALL; KOENIG; MEADOR, 2008). Internacionalmente, uma breve
escala de religiosidade tem se mostrado muito til em pesquisas em sade, a Escala
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de Religiosidade Duke (DUREL), formulada a partir de grandes estudos
epidemiolgicos realizados nos Estados Unidos e se mostrou relacionada a
indicadores de sade fsica, mental e suporte social (KOENIG; PARKERSON
JUNIOR; MEADOR, 1997). No Brasil, este instrumento foi recentemente traduzido e
adaptado para o portugus (MOREIRA-ALMEIDA et al., 2008) e recentemente
validado em uma amostra de moradores de comunidade de baixa renda em So
Paulo (LUCCHETTI et al., 2010). No entanto, tal instrumento no foi validado em
amostras clnicas e, especificamente, psiquitricas, apesar dos recentes e
importantes avanos dos estudos cientficos da religiosidade e da sua relao com o
processo sade-doena (MOREIRA-ALMEIDA et al., 2010).
O presente trabalho objetiva validar um instrumento de mensurao da
religiosidade intrnseca destinado a populaes psiquitrica e universitria, bem
como estudar quantitativamente a associao entre medidas de religiosidade e
medidas de sintomas depressivos e ansiosos e de qualidade de vida,
independentemente da crena religiosa do sujeito.
1.1 Aspectos histricos da relao entre religiosidade, sade mental e
qualidade de vida
Na pr-histria, o fenmeno da doena era tido como de causa
sobrenatural, cuja cura estava associada a rituais de feitiaria e tcnicas cirrgicas
primitivas como a trepanao, na qual se fazia um furo no crnio para que espritos
malignos deixassem o corpo da pessoa (STRAUB, 2005).
Na Grcia e Roma antigas, o fenmeno da doena mental j era atribuda
a causas naturais. Hipcrates, considerado o pai da medicina moderna, desenvolveu
um conceito de sade em que esta era um perfeito estado de equilbrio entre quatro
fluidos corporais bsicos, chamados de humores (fleuma, bile amarela, bile negra e
sangue). A prevalncia ou excesso de um desses fluidos desencadearia
perturbaes no comportamento do sujeito (STRAUB, 2005).
A Idade Mdia foi caracterizada por um retorno s interpretaes
baseadas numa perspectiva sobrenatural dos transtornos mentais, os quais eram
considerados como oriundos de feitiaria ou possesso demonaca, dentre outros
mitos. De fato, historicamente, a religio e os cuidados aos doentes fsicos e mentais
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tm muitos pontos em comum, no entanto, causas naturais como pragas, fome ou
desastres de guerra tambm eram aceitos como possvel explicao para os
fenmenos psicopatolgicos (KROLL, 1973).
No Ocidente, neste perodo da histria da sociedade humana, em termos
cientficos, o surgimento do cuidado institucional aos enfermos se dava em
mosteiros e outras organizaes religiosas que ofereciam o servio de melhor
qualidade na poca relativo aos doentes mentais (FOUCALT, 1978). O primeiro
hospital destinado ao tratamento de doentes mentais foi construdo em Valncia em
1409, na Espanha, e era dirigido por religiosos, fato este representativo de que eram
as ordens religiosas que criavam e mantinham uma parcela dos hospitais da Europa
e Amrica, incluindo o Brasil, da Idade Mdia ao sculo passado (FIGUEIREDO;
TOLEDO FERRAZ, 1998).
Do sculo XIX em diante, grandes nomes da literatura mdica, psicolgica
e sociolgica, tais como Maudsley, Charcot e Albert Ellis argumentaram criticamente
em desfavor da religio considerando-a como algo irracional e primitivo, tomando
como patolgicas vrias manifestaes e vivncias religiosas (STROPPA, 2008).
Sigmund Freud, considerado pai da Psicanlise, uma das mais influentes escolas de
Psicologia at hoje, por exemplo, afirmava que a religio resultava em
desvalorizao da vida e distoro da viso do mundo real, em quanto que Karl
Marx foi atribuda a frase a religio o pio do povo, no mbito da obra Critica da
Filosofia do Direito de Hegel, de 1844. No entanto, outros influentes pensadores
como o psiclogo Willian James e o psiquiatra Carl Gustav Jung manifestavam uma
viso mais positiva da religiosidade (KOENIG; MCCULLOUGH, 2001). Porm,
ambas as posies se baseavam em anlises crticas filosficas acerca da
espiritualidade e religiosidade em sade mental, assim como em experincias
clnicas e opinio pessoal, mas no em estudos cientficos controlados (FREUD,
1998; JAMES, 1996; JUNG, 1977).
Na segunda metade do sculo XX, este panorama comeou a mudar com
a iniciao de pesquisas cientficas rigorosas e conseqentes publicaes em
revistas mdicas e psicolgicas de grande impacto no universo acadmico
(KOENIG; MCCULLOUGH; LARSON, 2001). A obra intitulada Handbook of Religion
and Health, de Harold G. Koenig, Michael McCullough e David B. Larson (2001),
considerada um marco neste campo de estudos dado que os autores examinaram
mais de 1200 pesquisas realizadas no ltimo sculo a respeito da relao entre
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religio e sade. Grande parte das pesquisas na rea conduzida com adultos e
dentro de instituies hospitalares, a partir da aplicao de medidas validadas de
religiosidade e sade, com a verificao da significncia da sua associao. Na
maioria dos estudos, os achados so de associao positiva e significativa entre
religio e sade fsica e mental (KOENIG; MCCULLOUGH, 2001). Modernamente,
ao lado de Koenig, David B. Larson e Jeffrey S. Levin so alguns dos pioneiros na
investigao cientfica a respeito de religiosidade e sade (STROPPA, 2008).
1.2 Religiosidade e Espiritualidade
A universalidade da religio tal que o fenmeno religioso existe na
cultura e comportamento humanos desde os tempos pr-histricos, permeando a
civilizao humana a despeito de raa ou geografia (MURAMOTO, 2004). Dentre as
mltiplas facetas da cultura humana, a religio uma das mais importantes,
abrangendo comportamentos religiosos diversos (CARVALHO, 2006). Segundo
Barros (2000 apud Carvalho, 2006):
Ela influencia o sentido da vida e da morte, o modo como se encara o mundo e os homens, as alegrias e o sofrimento, o modo como se vive a vida familiar (atitude frente ao divrcio, ao aborto, nmero de filhos, etc.), a maneira como se interpreta e vive a sexualidade, a tolerncia e ou o racismo, a poltica, a profisso. (p. 5)
A definio de Religio amplamente heterognea
(COMTE-SPONVILLE, 2007). Sendo assim, este termo tem sido utilizado como um
construto tanto individual quanto institucional (HILL; PARGAMENT, 2003). Existem
duas etimologias bsicas que orientam a interpretao do termo religio: uma,
latina, apregoando que o termo religio deriva de re-ligare, que significa atar, ligar
para trs, simbolizando o movimento de ligao do homem com a divindade; e a
outra, grega, defendendo que religio advm de re-lere, que significa ler
novamente, fazer uma nova interpretao da vida (COMTE-SPONVILLE, 2007). Na
obra de Glock (1962, apud CARVALHO, 2006), identificam-se cinco dimenses
bsicas da religio: a dimenso ritualstica (frequncia a servios e prticas
religiosas); a dimenso vivencial (conhecimento direto da realidade essencial que
deriva da experincia ou da emoo religiosa); a dimenso ideolgica (sistema de
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crenas); a dimenso intelectual (conhecimento das doutrinas ou textos sagrados) e
a dimenso conseqencial (obras ou efeitos das dimenses anteriores).
Para Fleck, religio pode ser definida como a "crena na existncia de um
poder sobrenatural, criador e controlador do universo, que deu ao homem uma
natureza espiritual que continua a existir depois da morte de seu corpo" (FLECK et
al., 2003). Na verdade, esta composta de variveis complexas envolvendo
dimenses cognitivas, emocionais, comportamentais, interpessoais e fisiolgicas
(HILL; PARGAMENT, 2003). No que se refere religiosidade, segundo Lukoff, esta
se define como a adeso a crenas e prticas relativas a uma instituio religiosa
organizada (1992, apud CARVALHO, 2006). Em Geertz (1989), religiosidade
representa um estilo de vida, as disposies morais e estticas, o carter e a viso
de mundo (ethos de um povo). Esta a extenso na qual um indivduo acredita,
segue e pratica uma religio.
Embora haja uma considervel sobreposio entre as noes de
espiritualidade e religiosidade (BLAZER, 2009), esta difere da outra pela clara
sugesto de um sistema crenas e adorao especfico que partilhado por um
grupo (FLECK et al., 2003). Difere do conceito de espiritualidade, que
compreendido como a busca pelo sagrado, um processo pelo qual a pessoa procura
descobrir, manter e transformar o que quer que ela considere sagrado em sua vida,
tratando-se mais de um conceito individual do que social (HILL; PARGAMENT,
2003). O sagrado trata-se exatamente do fator em comum entre espiritualidade e
religiosidade, sendo definido como aquilo que distingue religio e espiritualidade de
outros fenmenos, referindo-se a objetos e eventos apartados do ordinrio e
merecedores de venerao. O sagrado inclui os conceitos de Deus, Realidade
ltima e o transcendente, bem como qualquer aspecto da vida que tido como de
carter extraordinrio por sua associao com ou representaes de tais conceitos
(HILL; PARGAMENT, 2003).
1.2.1 Dimenses da religiosidade
Para facilitar a compreenso do que se segue, apesar da imensa
diversidade de conceitos utilizados para o assunto em questo (MOREIRA-
ALMEIDA; LOTUFO NETO; KOENIG, 2006), sero apresentados inicialmente os
-
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conceitos nos quais nos basearemos para tratar de religio, religiosidade e
espiritualidade, baseados no trabalho de Koenig, McCullough e Larson (2001) na
obra Handbook of Religion and Health:
Religio o sistema organizado de crenas, prticas, rituais e smbolos designados para facilitar o acesso ao sagrado, ao transcendente (Deus, fora maior, verdade suprema...); Religiosidade o quanto um indivduo acredita, segue e pratica uma religio. Por um lado, esta pode ser organizacional (participao na igreja ou templo religioso) ou no organizacional (rezar, ler livros, assistir programas religiosos na televiso), referindo-se ao envolvimento religioso. Por outro lado, pode ser intrnseca (o sujeito vive sua religio) e extrnseca (o sujeito usa sua religio), que se referem maturidade religiosa; Espiritualidade uma busca pessoal para entender questes relacionadas ao fim da vida, ao seu sentido, sobre as relaes com o sagrado ou transcendente que, pode ou no, levar ao desenvolvimento de prticas religiosas ou formaes de comunidades religiosas.
Conforme exposto brevemente acima, o conceito de religiosidade
subdividido em algumas dimenses que facilitam seu estudo do ponto de vista
metodolgico e fornecem as bases para o entendimento acerca dos seus diferentes
aspectos. A religiosidade descrita por ALLPORT e ROSS (1967) sob dois aspectos
fundamentais que permeiam a vivncia religiosa, que so a religiosidade intrnseca e
a extrnseca, ou religiosidade madura ou imatura, respectivamente (ALLPORT,
1950).
Religiosidade intrnseca se refere a pessoas que veem na sua orientao
religiosa a maior motivao para a vida. Outras necessidades, por mais fortes que
sejam, so consideradas de menor importncia e so, tanto quanto possvel,
harmonizadas s crenas religiosas. Tendo o indivduo adotado a crena, este se
esfora para internaliz-la e segui-la completamente (ALLPORT; ROSS, 1967). A
prtica intrnseca ou mais espiritualizada procura transcender o conforto e a
conveno social, buscando um sentido e um aumento do compromisso com a
crena ou religio (CARVALHO, 2006).
Por outro lado, religiosidade extrnseca se refere pessoa que usa a
religio para fins prprios (DALGALARRONDO, 2008). A religio mantida porque
serve a outros interesses considerados mais importantes pelo indivduo. Este v a
religio como til de vrias formas para prover segurana e conforto, sociabilidade
e distrao, status e auto-afirmao (ALLPORT; ROSS, 1967). A crena adotada
mantida levemente ou ento seletivamente adaptada a necessidades mais
primrias. A prtica extrnseca ou menos espiritualizada encontra-se entre aqueles
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20
que herdam sua crena religiosa, no havendo uma tendncia reflexiva no ato de
escolha pela entidade ou filosofia religiosa. Neste caso a divindade tende a um
instrumento de satisfao dos desejos impulsivos ou egocntricos (CARVALHO,
2006).
Aranda (2008) define envolvimento religioso como envolver-se formal,
pblica e coletivamente em atividades religiosas bem como em atividades mais
privadas como oraes. Envolvimento religioso pode afetar positivamente afetar o
bem-estar fsico e psicolgico (TOWNSEND et al., 2002). Neste contexto, podemos
segmentar o envolvimento religioso em dois aspectos complementares, que definem
as facetas da prtica religiosa: a religiosidade organizacional e no-organizacional
(STORCH, 2004). O primeiro se refere aos comportamentos religiosos manifestos,
relacionados a uma instituio religiosa, como ir igreja ou realizar atividades
religiosas em grupo, determinadas a partir de fatores externos. Religiosidade no-
organizacional/privada se refere a comportamentos religiosos manifestos, mas que
no esto relacionados a qualquer instituio religiosa e sim com comportamentos
individuais de exerccio da religiosidade, como o estudo da sua religio de forma
independente ou a prtica de oraes ou meditao (CARVALHO, 2006; STORCH,
2004).
1.3 Atesmo
O ateu e o agnstico tm em comum o fato de no acreditarem em Deus.
O que separa um do outro a assertiva com a qual o primeiro nega a existncia de
Deus, enquanto o segundo nem cr, nem descr, como um atesmo negativo, por
falta de provas (COMTE-SPONVILLE, 2007; FARINACCIO, 2002).
O agnosticismo distancia-se de sua etimologia na medida em que esta se
refere ao desconhecido ou incognoscvel (COMTE-SPONVILLE, 2007). Neste
sentido, agnstico seria aquele que, diante da questo da existncia de Deus,
reconhece sua ignorncia, traduzindo mais uma questo humana do que
propriamente uma posio particular. No entanto, ningum sabe se Deus existe, de
acordo com a distino dos trs nveis de crena descritos por Kant, em sua obra
Crtica da Razo Pura: opinio tem conscincia de ser insuficiente tanto subjetiva
quanto objetivamente; f pode ser suficiente subjetivamente, mas no
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21
objetivamente e saber que suficiente tanto subjetiva quanto objetivamente,
dentre pessoas inteligentes e lcidas (COMTE-SPONVILLE, 2007).
Resumindo, a diferena entre o crente, o ateu e o agnstico, est em que
o primeiro afirma a existncia de Deus, acredita nela (a chamada profisso de f); o
segundo a nega; e o terceiro no nega nem afirma, pois no tem uma posio
definida sobre (COMTE-SPONVILLE, 2007; FARINACCIO, 2002).
1.4 Religiosidade e Qualidade de Vida
Qualidade de vida (QV) tem sido enfatizada como um importante
desfecho dos problemas psicolgicos (MICHALAK et al., 2004; SWAN; WATSON;
NATHAN, 2009). Um grupo da Organizao Mundial de Sade, definiu QV como a
percepo do indivduo de sua posio na vida no contexto da cultura e sistema de
valores nos quais ele vive e em relao aos seus objetivos, expectativas, padres e
preocupaes (OMS, 1995), ficando implcito nessa definio que o conceito de QV
subjetivo, multidimensional e inclui elementos de avaliao tanto positivos como
negativos (FLECK et al., 2000).
Nos Estados Unidos, foram realizadas pesquisas em populaes clnicas
e acadmicas utilizando-se questionrios de religiosidade e, a partir dos dados
coletados, foi observado que indivduos classificados como altamente religiosos
seriam mais esperanosos, teriam mais vantagens no enfrentamento (coping) de
situaes adversas do que aqueles identificados como tendo pouca religiosidade,
gerando maior QV nesta populao (FLECK et al., 2003; HILL; PARGAMENT,
2003). Dentre os achados, incluem-se: baixos nveis de morbidade ou mortalidade
em doenas cardiovasculares (DWYER; CLARKE; MILLER, 1990), hipertenso
(LEVIN; VANDERPOOL, 1989) ou cncer (VISSER; GARSSEN; VINGERHOETS,
2010); melhor qualidade de vida e ajustamento psicossocial em pacientes com
cncer (BUSSING; OSTERMANN; MATTHIESSEN, 2005); facilitao no manejo do
estresse em pacientes com cncer (HALSTEAD; FERNSLER, 1994) ou HIV (HALL,
1994); menor utilizao de servios mdicos (STORCH et al., 2004); reduo da
frequncia de comportamentos de risco (OLECKNO; BLACCONIERE, 1991);
menores ndices de estresse ou conseqncias psicolgicas negativas frente a
eventos traumticos (HILL; PARGAMENT, 2003); fator protetor para tentativas ou
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22
ideao suicida, abuso de drogas e lcool, comportamento delinqente, satisfao
marital, sofrimento psicolgico e alguns diagnsticos de psicoses funcionais
delinqncia na adolescncia (FLECK et al., 2003).
1.5 Religiosidade e Sade Mental
Diversos estudos tm identificado importantes ligaes entre
religiosidade, espiritualidade e sade fsica e mental, no entanto, as razes para tal
ainda no so claras, envolvendo fatores psicolgicos, sociais e fisiolgicos (HILL;
PARGAMENT, 2003). Dentre os componentes da religiosidade, aqueles que
parecem ter um impacto positivo para a manuteno da sade e bem-estar e reduzir
o tempo de recuperao dos enfermos so o envolvimento religioso e a religiosidade
intrnseca (HUANG, HSU; CHEN, 2011).
1.5.1 Religiosidade e depresso
A depresso uma sndrome psiquitrica altamente prevalente na
populao brasileira e mundial, com ndices em torno de 16% ao longo da vida.
Trata-se da patologia psiquitrica mais comum, sendo considerada uma condio
mdica crnica e recorrente. A prevalncia anual na populao em geral varia entre
3% e 11% (FLECK et al., 2003). Em populaes com doenas clnicas, a incidncia
varia entre 5% e 10% nos pacientes ambulatoriais e entre 9% e 16% nos internados
(KATON, 2003). Como doena, ela tem sido classificada de vrias formas. Entre os
quadros mencionados na literatura atual encontram-se: episdio depressivo maior,
melancolia, distimia e depresso bipolar (LACERDA, 2009).
Como sndrome, a depresso inclui no apenas alteraes do humor
(tristeza, irritabilidade, incapacidade de sentir prazer, apatia), mas tambm vrios
outros aspectos, incluindo alteraes cognitivas, psicomotoras e vegetativas (sono,
apetite etc) e est associada diminuio da produtividade, incapacidade funcional
e absentesmo (HOTOPF et al., 2002), bem como a elevao dos custos
relacionados sade. Este transtorno tambm est frequentemente associado
comprometimento da sade fsica e tanto a depresso maior quanto sintomas
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depressivos subclnicos trazem substanciais riscos a sade (KIECOLT-GLASER;
GLASER, 2002). Neste sentido, um estudo de 13 anos de acompanhamento
conduzido por Pratt e colegas (1996) identificou um risco aumentado em 4,5 vezes
de sofrer ataque cardaco em pacientes com diagnstico de depresso maior em
relao a sujeito sem o diagnstico.
No entanto, apesar de ser um transtorno altamente prevalente na
comunidade, de acordo com Hirschfeld e colegas (2003), subdiagnosticado, de
modo que uma parcela pouco significativa dos pacientes adequadamente tratada
(35%), o que compromete o manejo adequado dos pacientes e sua qualidade de
vida.
Alguns estudos destinaram-se a investigar a relao entre religiosidade e
depresso, buscando articular diferentes aspectos da religiosidade. Um estudo
conduzido em Amsterdam (BRAAM et al., 2010) investigou a associao entre
diferentes estratgias cognitivas de enfretamento das adversidades baseadas na
religio (coping religioso, medido pela RCOPE verso curta) e sintomas
depressivos, em quatro amostras de provenientes de populaes distintas [i.e.,
holandeses nativos (n = 309) e imigrantes marroquinos (n = 180), turcos (n = 202) e
surinameses/holandeses antilhanos (n = 85)]. Dentre os seis tipos de coping
religioso (coping positivo e cinco tipos de coping negativo: punio por Deus, sentir-
se abandonado por Deus, coping sem Deus, questionamento da existncia de Deus
e sentir raiva ou mgoa de Deus), encontrou associaes positivas significativas (p <
0,05) entre coping positivo e trs formas de coping negativo (punio por Deus,
sentir-se abandonado por Deus e sentir raiva ou mgoa de Deus) e presena de
sintomas depressivos, medidos pelo Symptoms Check List-90 items (SCL-90). No
entanto, considerando apenas pessoas identificadas com transtorno depressivo
maior, de acordo com a Composite International Diagnostic Interview (CIDI), apenas
trs tipos de coping negativo se apresentaram significativa e positivamente
correlacionados com os referidos sintomas, dentre os quais, sentir-se abandonado
por Deus (achado mais consistente), punio por Deus e questionamento da
existncia de Deus (p < 0,04). Os autores ressaltam a bvia associao entre
sentimento de abandono e sintomas depressivos para explicar parte dos achados.
Dew e colaboradores (2008) entrevistaram 117 adolescentes (12-18
anos), usurios de um servio psiquitrico ambulatorial da Carolina do Norte,
visando explorar a relao entre depresso, medida pela Escala Beck de
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Depresso, e algumas facetas da religiosidade, avaliadas pela Medida
Multidimensional Breve de Religiosidade/Espiritualidade, controlando para o uso de
substncias psicoativas. Foi verificado que depresso se associou positiva e
significativamente com se sentir abandonado ou punido por Deus (p < 0,0001), no
sentir suporte de uma comunidade religiosa, por perceberem seus correligionrios
como demasiado crticos ou exigentes (p = 0,0143) e falta de perdo, como no
freqentemente exercitar o perdo ou no se sentir perdoado por Deus (p < 0,001).
Os autores discutem que tais aspectos do coping religioso negativo podem estar
relacionados com condies ou traos que predispem depresso, como
sentimentos de culpa, pessimismo e isolamento. Outro estudo conduzido pelo
mesmo grupo de pesquisadores (Dew, Daniel et al., 2010) com populao de perfil
semelhante, utilizando o Levantamento Feltzer Multidimensional de
Religiosidade/Espiritualidade e a Escala Beck de Depresso-II (BDI-II), encontrou
associaes significativas e negativas entre sintomas depressivos e experincias
espirituais dirias (p < 0,01), prtica do perdo (p < 0,0001), coping religioso positivo
(p < 0,02), suporte religioso positivo (p < 0,02), religiosidade organizacional (p <
0,007) e auto-denominao como religioso/espiritualista (p < 0,007), controlando
para suporte social e abuso de substncias psicoativas. Por outro lado, coping
religioso negativo (p < 0,0001), suporte religioso negativo (p < 0,04) e perda da f (p
< 0,0007) foram relacionados positivamente com sintomas depressivos medidos pela
BDI-II. Analisando prospectivamente, apenas perda da f foi capaz de predizer
mudanas na quantidade de sintomas depressivos ao longo de seis meses de
acompanhamento ( = 4,69, p = 0,007), controlando para gnero, abuso de
substncias e suporte social. Os autores levantam a hiptese de que falta de
perdo, coping religioso negativo e suporte religioso negativo so tipos de sintomas
depressivos. Adicionalmente, os autores questionam a possiblidade de que
depresso adolescente pode gerar marcas na personalidade e na viso de mundo
que distorce a experincia religiosa. Por fim, h possibilidade de variveis religiosas
e depresso, de fato, no se correlacionarem, havendo uma terceira varivel no
estudada promovendo estes achados.
A associao entre religiosidade e depresso frequentemente relatada
em diversos estudos com adultos (KOENIG, MCCULLOUGH, MEADOR, 2001).
Usualmente, tal associao tem orientao inversa em variados graus de magnitude,
especialmente, se utilizados como referncia os variados componentes da
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religiosidade. As pesquisas mais recentes tm procurado investigar a relao
existente entre depresso e diversos grupos religiosos, nveis de envolvimento
religioso e o quanto esse envolvimento pode influenciar como as pessoas lidam com
eventos de vida negativos. A religiosidade intrnseca, juntamente com o
envolvimento religioso, so componentes que significativamente se associam
negativamente com o construto depresso (MUELLER; RUMMANS; PLEVAK, 2001;
PIRUTINSKY et al., 2011). Embora o tamanho da associao seja modesto, este
similar ao encontrado na associao entre depresso e gnero, considerada uma
das variveis mais significativas associadas aos transtornos do humor. No que se
refere variao entre diferentes faixas etrias, gneros ou etnias, a associao
entre religiosidade e depresso sido observada mantida (HUANG, HSU; CHEN,
2011).
Smith e colegas (2003) conduziram uma meta-anlise com um total de
147 investigaes independentes buscando verificar a associao entre
religiosidade e sintomas depressivos. O ndice de correlao (r) entre religiosidade e
sintomas depressivos foi .096 (n = 98.975). Indicando que maior religiosidade
levemente associada com menos sintomas. Os resultados no foram moderados por
gnero, idade ou etnia, mas a negativa associao religiosidade-depresso foi forte
em estudos envolvendo pessoas submetidas a estresse devido a recentes eventos
traumticos de vida.
Um estudo com populao geritrica (130 idosos, com media de idade de
72 anos) realizada por Cruz e colegas (2009) em uma clnica psiquitrica vinculada
Universidade de Pittsburg, Estado da Pensilvnia, observou que a prtica da orao
associou-se significativamente com menor desesperana (OR=0,58 [0,36, 0,94],
Wald qui-quadrado=4,97, gl=1, p=0,026) bem como escores reduzidos de
severidade de depresso (OR=0,56 [0,36, 0,89], Wald qui-quadrado=5,93, gl=1,
p=0,015). A frequncia de idas igreja no se associou significativamente com
depresso (OR=0,914 [0,70, 1,189], Wald qui-quadrado=0,45, gl=1, p=0,50) ou
desesperana (OR=0,78 [0,58, 1,04], Wald qui-quadrado=2,88, gl=1, p=0,09). Os
autores defendem que, segundo estes achados, a prtica de atividades religiosas
privadas curativa na medida em que facilita a sensao de bem-estar ou a crena
em Deus e pode ser mais importante para indivduos idosos sob tratamento para
depresso em um servio de sade mental do que os benefcios oriundos da
freqncia igreja para esta mesma populao.
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Um estudo de seguimento conduzido por Koenig e colegas (1998), no
qual buscou-se, por um perodo de quase um ano de acompanhamento (47
semanas), investigar os efeitos da crena e atividade religiosas em 87 idosos
deprimidos e hospitalizados no centro mdico da Universidade de Duke, observou
que a religiosidade intrnseca esteve significativa e independentemente relacionada
ao tempo de remisso da doena, ao contrrio da frequncia igreja e atividades
religiosas privadas que no o foram. Em concluso, os autores afirmaram que os
pacientes deprimidos com altos escores de religiosidade intrnseca tm os maiores
ndices de remisso da doena em relao aos que no o tm.
1.5.2 Religiosidade e ansiedade
Segundo Andrade e Gorenstein (1998), a ansiedade trata-se de um
estado emocional com componentes psicolgicos e fisiolgicos, comum
experincia humana e ajuda no desempenho dos indivduos. Esta se torna
patolgica quando no existe um objeto especfico ao qual se direcione e quando
surge como desproporcional situao que a desencadeia. Os transtornos de
ansiedade esto entre os transtornos psiquitricos mais freqentes na populao
geral, com prevalncias de 12,5% ao longo da vida e 7,6% ao ano, cujos sintomas
esto entre os mais comuns, podendo ser encontrados em qualquer pessoa em
determinados perodos de sua existncia (ANDRADE; GORESTEIN, 1998). Lewis
(1979 apud ANDRADE; GORESTEIN, 1998) salienta que existem manifestaes
autonmicas, como secura da boca, sudorese, arrepios, tremor, vmitos, palpitao,
dores abdominais e outras alteraes biolgicas e bioqumicas detectveis por
mtodos apropriados de investigao. Psicologicamente, dentre outras definies
encontradas, este autor ressalta que a ansiedade um estado de medo em relao
ao futuro, como uma sensao de perigo iminente sem risco real e, se este houver,
a emoo desproporcionalmente mais intensa. Ainda, a ansiedade pode afetar
aspectos da cognio, como percepo e memria. Desse modo, a ansiedade no
envolve um construto unitrio, principalmente no contexto psicopatolgico. A
ansiedade pode ser generalizada ou focada em situaes especficas, como nos
transtornos fbicos. A ansiedade no-situacional ampla, podendo ser um estado
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de incio recente ou uma caracterstica persistente da personalidade do indivduo
(ANDRADE; GORENSTEIN, 1998).
Estudos em animais e clnicos explorando as bases neurobiolgicas da
ansiedade indicam que a atividade do neurohormnio noradrenalina tem impacto
considervel nas manifestaes comportamentais da ansiedade (FRAZER;
MOLINOFF; WINOKUR, 1994). Estudos com macacos evidenciaram que, se o
ncleo produtor de noradrenalina (locus coeruleos) no crebro for extirpado nestes
animais, os sintomas de medo (similares aos de ansiedade em humanos) induzidos
por estmulos amedrontadores, deixam de se manifestar. Do contrrio, se houver
estimulao eltrica deste mesmo ncleo, h manifestao de sintomas de medo
mais intensa aos mesmos estmulos, em comparao com estado cerebral natural
destes animais (FRAZER; MOLINOFF; WINOKUR, 1994).
Segundo Inzlicht et al. (2009), a ansiedade surge quando a
autorregulao do organismo ameaada. Autorregulao invariavelmente
caracterizada um modelo composto por trs componentes cuja funo central
minimizar erros possveis. Estes componentes incluem padres ou ideais, os quais,
em vertebrados, so os mapas cognitivos que geram as expectativas;
comparadores, os quais esquadrinham a situao atual para detectar incongruncias
com os padres, chamada previso de erros; e efetores, os quais so requisitados
para operar na situao atual para minimizar possveis erros futuros. De acordo com
Gray e McNaughtons (2000, apud INZLICHT et al., 2009), a teoria neuropsicolgica
da ansiedade, a qual baseada em modelos animais, pesquisa com leses
cerebrais e efeitos farmacolgicos clssicos e modernos de drogas ansiolticas, a
previso de erros ativa um sistema de alarme que vivido como ansiedade. Os
tipos de erros que produzem ansiedade incluem estados de incerteza, ativao
simultnea de objetivos conflituosos e respostas errneas. Neuroanatomicamente, o
sistema septo-hipocampal de vital importncia para este modelo, sendo
considerado um sistema filogentico antigo, compartilhado pelos humanos com
animais inferiores. H tambm tm um sistema de alarme cortical localizado
precisamente no crtex cingulado anterior (CCA) (GRAY; MCNAUGHTON, 2000,
apud INZLICHT et al., 2009, p. 137). Este alarme tem projees elaboradas para e
do sistema septo-hipocampal, possibilitando a regulao de objetivos conceituais
abstratos da mesma forma que objetivos concretos. Estudos de neuroimagem,
eletrofisiolgicos e de leso sugerem que o CCA importante para tipos de reaes
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caractersticas da ansiedade (HAJCAK; FOTI, 2008; HAJCAK; MCDONALD;
SIMONS, 2003; RIDDERINKHOF et al., 2004, apud INZLICHT et al., 2009). O CCA,
ento, considerado parte do importante do sistema geral de regulao e
modificao do comportamento quando preciso, mediante experincias
potencialmente ameaadoras.
De acordo com o trabalho de Everdosa (2004), os resultados publicados
na literatura acerca da associao entre religiosidade e ansiedade no so
conclusivos. Brown (1962, apud EVERDOSA, 2004) no observou associao entre
religiosidade e ansiedade manifesta. J o estudo de Heitzelman e Fehr (1976, apud
EVERDOSA, 2004) observou uma associao negativa entre os escores de um
instrumento de religiosidade (Teste de Religiosidade Ortodoxa) e outro de ansiedade
(Escala de Ansiedade Manifesta). Tais autores (1985, apud EVERDOSA, 2004),
procurando replicar os dados observados anos antes, utilizaram, alm dos referidos
instrumentos, um instrumento adicional de religiosidade (Escala de Valores) em uma
amostra de 120 estudantes do primeiro ano de Psicologia. No entanto, os resultados
no apontaram associaes significativas. Um achado incomum foi relatado no
estudo de Wilson e Miller (1968, apud EVERDOSA, 2004), em que foram
empregados diversos instrumentos de avaliao de diversas prticas religiosas
(como assistncia Igreja, crena em um ser supremo, imortalidade da alma,
moralidade religiosa, etc.), ansiedade (Escala de Ansiedade Manifesta de Taylor) e
medo (Prova de apreenso, contendo expresses de medo a estmulos comumente
temidos como enfermidade, animais, fogo, acidentes, etc.), nos quais pessoas no-
religiosas tenderam a responder de forma mais equilibrada aos fatores emocionais,
visto que foi encontrada uma positiva associao significativa entre religiosidade e
medo e ansiedade.
Outros pesquisadores (ABDEL-KHALEK; LESTER, 2010) observaram em
amostras de estudantes do Kuwait e dos Estados Unidos que o instrumento
designado para medio de ansiedade (Escala de Ansiedade da Universidade do
Kuwait KUAS, sigla em ingls) correlacionou-se significativamente com a medida
utilizada para medio da religiosidade (um item a ser pontuado em uma sequncia
de 0 a 10, descrito da seguinte forma: qual seu nvel de religiosidade em geral?),
porm com fraca associao (r = -0,18, p < 0,05).
Koenig e Larson (2001), em uma reviso de literatura, encontraram 76
estudos nos quais foi examinada a relao entre ansiedade e religio. Destes, 69
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eram estudos transversais ou de coorte e sete ensaios clnicos. Novamente, a
maioria dos estudos observacionais (35/69) encontrou baixos nveis de ansiedade
ou medo entre os mais religiosos. Entretanto, foi encontrada grande ansiedade entre
os mais religiosos em 10 destes estudos. A explicao potencial para a
inconsistncia nos achados de que talvez as pessoas mais ansiosas busquem
mais o envolvimento religioso e, aps tal envolvimento, a ansiedade venha a
diminuir, j que, em quatro de cinco estudos prospectivos, os mesmos autores
identificaram maior religiosidade como fator preditor para menor ansiedade ou medo
ao final do seguimento (KOENIG; LARSON, 2001).
Phillips et al. (2009), no tocante populao idosa, resumem a discusso
afirmando que crenas religiosas e espirituais podem influenciar ansiedade e
depresso de diferentes maneiras, como forma de enfrentamento da enfermidade,
podendo favorecer ou dificultar o tratamento dependendo dos valores do indivduo
em questo. Tais crenas podem promover esperana e encoraja comportamentos
positivos. Os autores listam pelo menos quatro evidncias que sugerem os
benefcios que atividades religiosas/espirituais podem exercer sobre a sade de
idosos: estado de sade mental positiva associado com participao regular em
atividades religiosas, seja semanalmente, seja mensalmente; muitos religiosos
idosos tendem a ter suporte social, como amigos, contatos sociais, dentro da
organizao religiosa; muitos outros relatam ser suas crenas ou atividades
religiosas aquilo de mais importante que os mantm estimulados a viver; muitos
idosos adoecidos relatam usar suas crenas ou atividades religiosas para lidar com
o estresse da doena fsica (PHILLIPS et al., 2009).
1.6 Aspectos Negativos de Relao entre Religiosidade e Sade
Dentre os aspectos negativos da relao entre religiosidade e sade
esto traos de personalidade possivelmente contraproducentes para o
desenvolvimento do sujeito, como conformismo, dependncia, atitudes defensivas,
baixa auto-estima, pior ajustamento, perfeccionismo, insegurana e dio auto-
dirigido, especialmente entre estudantes universitrios (KOENIG; LARSON, 2001). A
principal argumentao acerca deste tpico, segundo Pruyser (1977, apud
DALGALARRONDO, 2008) est associada racionalizao do preconceito,
discriminao e dio direcionada a grupos especficos. Para este autor, grupos de
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pessoas religiosas podem ter excessivas expectativas em relao a si mesmos e,
desse modo, tendem a excluir ou depreciar aqueles cujas crenas ou modos de vida
difiram em relao a si, como no caso dos homossexuais. Neste sentido, em virtude
do tipo de crena e sistema religioso ao qual o sujeito afiliado, os acontecimentos
adversos podem gerar culpa, angstia, tristeza por assumir o merecimento do
sofrimento ocasionado por estes perante a autoridade espiritual, associado ao
aumento da autocrtica.
Segundo Koenig (2009), um dos maiores e mais detalhados estudos da
Gr-Bretanha examinou a prevalncia de delrios religiosos (religious delusions)
entre pacientes com esquizofrenia (n = 193). Os resultados indicaram que aqueles
com delrios religiosos (24%) tiveram sintomas mais graves, especialmente
alucinaes e delrios bizarros, mau funcionamento, maior durao da enfermidade
e maior dosagem de medicaes antipsicticas, comparados com pacientes com
outros tipos de delrios.
Um aspecto negativo de destaque relativo ao papel da religio no modo
como alguns adeptos manejam seus cuidados com sade se refere a orient-los de
maneira rgida e inflexvel, desestimulando a busca de cuidados mdicos, como o
caso do indivduo que no aceita vacina ou da testemunha de Jeov que no aceita
transfuso de sangue (DALGALARRONDO, 2008) ou mesmo do rastafri que no
aceita cortar, amparar ou amputar qualquer parte do corpo. A morte do astro da
musica reggae Bob Marley evidencia esta questo, na medida em que este recusou
amputar um dedo do p afetado por um melanoma maligno, para no contrariar os
princpios de sua religio (FRANCE PRESSE, 2011). Por fim, um estudo de Krause
e Wulff (2004) de escala populacional nos EUA, verificou que lderes religiosos so
os que mais so afetados por afetos e sintomas depressivos quando so acometidos
por dvidas religiosas, possivelmente devido ao seu papel de destaque na
instituio, tendo mais a perder do que aqueles menos envolvidos com a religio.
1.7 Bases Neurobiolgicas da Religiosidade
Presumivelmente, a atividade religiosa um fenmeno que deve
particularmente implicar vrias reas do crebro humano, medida que envolve
muitas funes cognitivas e emocionais, tais como alegria, medo, linguagem,
memria, aprendizado, julgamento, razo (MURAMOTO, 2004). Apesar dos grandes
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avanos, o conhecimento a respeito de seus fundamentos biolgicos ainda no
satisfatrio.
Persinger (1983) presume, de modo geral, que experincias
transcendentais so evocadas por pequenas crises epilpticas transitrias nos lobos
temporais. Diversos estudos relacionam as experincias desta natureza a crises
epilticas ictais, peri-ictais e ps-ictais de lobo temporal, com incremento de
sentimentos msticos e espirituais, bem como converso religiosa, em estados
interictais (BEAUREGARD; PAQUETTE, 2006).
Um estudo com freiras franciscanas utilizando tomografia por emisso de
fton nico durante a prece, comparado com o estado de descanso, demonstrou
aumento do fluxo sanguneo cerebral regional no crtex pr-frontal, lobos frontais
inferiores e lbulo parietal inferior. Curiosamente, a mudana na atividade do crtex
pr-frontal demonstrou correlao inversa com a atividade no lbulo parietal superior
ipsilateral, regio neural associada percepo dos limites corporais (NEWBERG et
al., 2003).
Especificamente em relao neurocognio da religiosidade, segundo
Inzlicht et al. (2009) a religio, por meio de seu sistema de crenas, atua como um
guia e estabelece os padres do comportamento. Estes padres provm a estrutura
sobre a qual o sujeito religioso entende e compreende a realidade na qual est
inserido, atuando ativamente em seu meio, reduzindo a incerteza e minimizando a
experincia do erro. Por exemplo, quando algo inesperado ocorre, a crena de que
vontade de Deus pode aliviar ansiedade e promovendo uma sensao de paz
interior (INZLICHT et al., 2009). Em resumo, a religio serve como uma explicao
que pode acomodar muitas observaes sobre a vida, provendo previses
adequadas do futuro e reduzindo ansiedade associada incerteza, justamente por
minimizar a ativao do crtex cingulado anterior (CCA), como componente neural
intrinsecamente associada experincia da ansiedade em situaes potencialmente
ameaadoras. Estes autores sugerem que a convico religiosa restringe a atividade
do CCA porque a convico age de forma semelhantemente ao ansioltico e arrefece
a conseqncia afetiva dos erros e da incerteza.
O estudo de Kappogiannis et al. (2009) investigou por meio de
ressonncia magntica funcional que reas cerebrais estavam mais relacionadas a
trs dimenses associadas a crenas religiosas (nvel de envolvimento de Deus
percebido, emoo de Deus percebida e conhecimento religioso
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doutrinal/experiencial). Afirmaes refletindo a falta do envolvimento ativaram reas
neurais engajadas ao sistema de neurnios-espelho: o giro frontal inferior (GFI)
bilateral, parte triangular (rea de Brodmann 45). Declaraes refletindo a emoo
de Deus percebida engajou reas envolvidas na Teoria da Mente emocional e
regulao emocional de ordem superior. No que se refere reflexo sobre a ira
divina, o giro temporal mdio esquerdo, rea de Brodmann 21, envolvida na
deteco da valncia emocional na expresso facial e contedo lingstico. A
mesma rea responde a percepo lingstica do medo e media o reaparecimento
consciente de emoes negativas percebidas. Por outro lado, afirmaes refletindo o
amor de Deus ativaram o giro frontal mdio (GFM) direito, rea de Brodmann 11,
rea envolvida em estados emocionais positivos e supresso da tristeza. Por fim, o
conhecimento religioso doutrinal fortemente ativou regies temporais em
comparao s imagens do conhecimento experiencial. Declaraes referindo o
conhecimento doutrinal ativaram o giro temporal inferior, rea-chave na
compreenso de metforas e na abstrao, dentre outras regies temporais
associadas compreenso da linguagem. Por outro lado, o conhecimento
experiencial da religio ativou uma rede que inclui os lobos occipitais (incluindo o
pr-cneos esquerdo), o giro pr-central esquerdo e o GFI esquerdo. Esta rede
classicamente media a imagem motora e visual da prpria ao, a qual pode ser
disparada por contedo lingstico, baseado na lembrana de memrias episdicas.
Segue abaixo, um quadro resumo de demais reas relatadas na literatura
relacionadas experincia religiosa/espiritual:
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Quadro 1 - Resumo das reas neurais e comportamentos correlatos envolvendo
religiosidade/espiritualidade.
reas neurais Comportamentos correlatos Autores
Circuitos lmbicos e subcorticais + crtices frontal dorsolateral e orbital
Alegria, amor, medo e xtase religiosos ou no
Saver e Rabin, 1997
Amgdala Experincias sensoriais com intenso significado, experincias freqentes de profunda e csmica significncia pessoal em resposta a eventos incomuns e singulares
Persinger, 2001
Circuito fronto-parietal (crtex pr-frontal dorsolateral direito, crtex pr-frontal dorsomedial e crtex parietal medial)
Leitura de textos religiosos (salmos) por religiosos experincia religiosa, como um processo cognitivo
Azari, Nickel et al., 2001
Crtex pr-frontal medial Manuteno equilibrada de atividades religiosas obedincia a regras e costumes, auto-reflexo ou auto-monitoramento e teoria da mente
Muramoto, 2004
Crtices temporais do hemisfrio direito, amgdala, hipocampo e fibras da nsula (mudanas sbitas na qumica do crebro e sua atividade eletromagntica)
Experincias paranormais (sensao de presena, envolvendo a aquisio de informao para alm dos sentidos especiais)
Persinger, 2001
1.8 Avaliao Psicomtrica de Fenmenos Humanos
Apesar de suas limitaes, os benefcios da avaliao psicomtrica
(objetividade, baixo custo, rapidez e fcil aplicao) ensejaram o desenvolvimento
de escalas padronizadas que tm sido preferencialmente usadas em diversos
campos cientficos. Alm disto, esse recurso oferece a possibilidade de avaliar a
intensidade e a freqncia da ocorrncia de determinados comportamentos,
pensamentos e sentimentos a partir de uma perspectiva dimensional (PASQUALI,
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2010). Desse modo, a utilizao de instrumentos psicomtricos pode contribuir para
pesquisas das reas da Psiquiatria, Neurologia e Psicologia Clnica, destinada
populao clnica, em escala epidemiolgica, na medida em que facilita a
comunicao entre diversos profissionais e estabelece critrios dimensionais e
objetivos para avaliao padronizada dos construtos em questo (PASQUALI,
2010).
1.8.1 Mensurao da religiosidade
Internacionalmente, foram criados inmeros instrumentos destinados a
medir o grau de religiosidade das pessoas, com devida fundamentao cientfica,
destinados populao dos pases em que foram desenvolvidos (HOOD JUNIOR,
1975; PLANTE; BOCCACCINI, 1997a, 1997b; PLANTE et al., 1999; PLANTE et al.,
2002; SHERMAN et al., 1999; STORCH et al., 2004). Por exemplo, Duke Religion
Index (DUREL) (KOENIG; PARKERSON JUNIOR; MEADOR, 1997) e Santa Clara
Strength of Religious Faith Questionnaire (SCSRFQ) (PLANTE, 1997a), procuram
quantificar a freqncia da prtica religiosa dos sujeitos, como ir igreja ou orar,
bem como estimar o grau de integrao/envolvimento da religio com a vida pessoal
dos mesmos (PLANTE; BOCCACCINI, 1997a; STORCH et al., 2004). No entanto,
uma srie de estudos acerca da relao entre aspectos diversos de religiosidade e
construtos psiquitricos, como por exemplo, a ansiedade, utiliza instrumentos de
avaliao no-publicados, com fracas propriedades psicomtricas, dificultando a
generalizao dos achados e a reproduo dos mtodos em outros ambientes socio-
culturais (SHREVE-NEIGER, EDELSTEIN, 2004). A maior dificuldade na
interpretao destes estudos a definio precisa dos construtos, o que coloca em
dvida a validade dos mesmos: se eles realmente medem o que pretendem medir.
A Religiosidade, como um fenmeno pessoal e indefinvel, torna-se
praticamente impossvel de ser circunscrito a uma quantificao ideal. Entretanto,
fundamentando-se na teoria da Psicometria possvel contribuir cientificamente
para o processo de mensurao de construtos pr-estabelecidos, qual seja,
religiosidade intrnseca, o qual o objetivo deste trabalho. Dentro desta perspectiva,
com uma medida de auto-relato, pretendemos estimar o mais objetivamente possvel
o quanto o sujeito integra a religiosidade na sua vida e a tem como algo de maior
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importncia e de maior motivao, mediante a representao lingstica (listagem de
itens) dos comportamentos e pensamentos que perfazem tal conceito.
1.9. Validao de testes psicolgicos
Testes psicolgicos, em geral, necessitam portar adequada validez para
ter seu uso reconhecido pela comunidade cientfica (PASQUALI, 1999, 2001 e
2007). No entanto, existe, hoje em dia, uma mirade de vieses em validao, de
diversas magnitudes, que contribuem mais para confundir do que para esclarecer:
um teste pode ter um tipo de validade e um outro, outra (PASQUALI, 2007). Samuel
Messick define de um modo moderno o conceito de validade, em acordo com a
American Psychological Association (APA, 1985), quando afirma:
Validade um julgamento avaliativo integrado do grau em que evidncia
emprica e racionalizaes tericas apiam a adequao e propriedade de
inferncias e aes baseadas em escores de teste ou outros modos de
avaliao. (apud PASQUALI, 2007)
Na literatura tradicional e atual sobre o tema, diversos tipos de validaes
para testes psicolgicos so assumidas, a saber, validade de construto (construct
validity), validade de contedo (content validity), validade de critrio (criterion-
oriented validity), validade preditiva (predictive validity), validade posditiva (posdictive
validity), validade concorrente (concorrent validity, variedade da validade de critrio),
validade aparente (face validity), validade convergente (convergent validity), validade
fatorial (factorial validity), validade substantiva (substantive validity), validade
estrutural (structural validity), validade interna (internal validity), etc. Portanto, como
afirma Pasquali (2007), a validade de um instrumento de medida j no mais um
parmetro objetivo, englobando uma gama muito grande de situaes onde se pode
estabelecer a validade de um teste, encerrando uma srie de questes filosficas.
Para este autor, Borsboom, Mellenbergh e van Heerden problematizam muito bem a
questo ao afirmarem:
O conceito de validade com o qual os tericos esto interessados parece estranhamente divorciado do conceito que pesquisadores tm em mente quando colocam a questo da validade. Isso se deve a que, no sculo passado, a questo da validade evoluiu da questo de se a gente mede o
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36
que se pretende medir para a questo de se relaes empricas entre escores de um teste se emparelham com relaes tericas numa rede nomolgica e, finalmente, para a questo de se interpretaes e aes baseadas em escores de testes so justificadas no somente luz de evidncia cientfica, mas com respeito a conseqncias sociais e ticas do seu uso. (apud Pasquali, 2007)
A rede nomolgica, inventada por Cronbach e Meehl (1955), significa um
sistema estabelecido de leis estatsticas ou determinsticas em que determinado
fenmeno ocorre para se tornar claro o que algo seja, podendo relacionar a
propriedades ou quantidades observveis entre elas mesmas; construtos tericos a
observveis; ou diferentes construtos tericos entre eles mesmos. De fato,
construtos admissveis cientificamente devem ocorrer numa rede nomolgica, no
necessariamente passveis de observao, mas envolvendo, pelo menos, algumas
leis observveis (PASQUALI, 2007).
Um teste psicolgico deve ser um conjunto constitudo de
comportamentos que o sujeito deve exibir. Ele um teste vlido se todos os
comportamentos envolvidos no conjunto se referirem mesma coisa, ou seja, ao
mesmo construto (unidimensionalidade). Se o construto diferir em magnitude para
diferentes sujeitos, com alguns destes apresentando mais dos comportamentos
envolvidos do que outros, ento, aquele deve ser uma realidade, na medida em que
os comportamentos envolvidos no teste realmente existem e causador das
respostas dos sujeitos, uma vez que produz diferenas nos comportamentos destes.
Os parmetros de validade e preciso so caractersticas do teste, e no da medida
feita de um objeto. Esta ltima confivel e legtima se o instrumento que a produziu
for vlido (pertinente, relevante) e preciso (calibrado). Quem garante a qualidade da
medida a pertinncia do instrumento com respeito ao objeto que se quer medir;
uma questo de referncia (PASQUALI, 2007).
Um teste, ento, um conjunto de estmulos que pretendem produzir
comportamentos (estmulos comportamentais). Sendo assim, constitudo de um
conjunto de comportamentos observveis. O psiclogo procura entender tais
comportamentos com referncia a processos psquicos (os construtos), que se
constituem como a causa do comportamento manifesto, entendidos como realidades
ontolgicas e no como racionalizaes inseridas numa rede nomolgica. O fato de
que esses processos psquicos sejam minimamente conhecidos (isto ,
praticamente desconhecidos) no invalidam sua presena, muito menos sua
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37
utilidade cientfica. O construto (trao latente, teta) se posiciona como o objeto que o
teste quer medir, isto , ele o aquilo que o teste pretende medir, assim, o
referencial para os resultados de um teste. Assim, o que a Psicometria preconiza
que o teste no prediz um teta, ele apenas o representa ou o modela do ponto de
vista comportamental (PASQUALI, 2007).
1.9.1. Elaborao dos itens e validao de contedo
Validade de contedo estabelecida dedutivamente demonstrando que
os itens contidos nos questionrios so uma amostra do universo no qual o
investigador est interessado, atravs da anlise semntica, que compreende a
inteligibilidade dos itens, e da anlise por juzes, que trata da pertinncia dos
mesmos.
Neste contexto, foram realizadas as seguintes atividades: 1) reviso da
literatura; 2) entrevistas realizadas com profissionais de nvel superior, com algum
percurso na temtica em questo; 3) entrevistas realizadas com a populao-alvo
(religiosos ligados a alguma instituio religiosa); 4) pr-testagem dos instrumentos.
1.9.2. Validao de construto
Finalizada a etapa anterior, segue-se a validade de construto, ou de
conceito, dos instrumentos, que se do mediante procedimentos experimentais
(planejamento da pesquisa e coleta de dados) e analticos (tratamento estatstico e
anlise dos resultados) (PASQUALI, 1999).
A validade de construto pode ser considerada como a mais importante
etapa de validao de um instrumento psicomtrico, pois possibilita uma avaliao
da representao comportamental dos traos latentes. A validao de construto,
atualmente, tem como objetivo verificar se um teste refere-se de forma apropriada a
um determinado construto, ou seja, se as pessoas com determinadas caractersticas
agem conforme o que a teoria prediz e tambm quais itens ou fatores so mais
pertinentes ao construto. A validade de construto pode ser trabalhada sob dois
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38
ngulos: anlise da representao comportamental do construto e a anlise por
hiptese.
A anlise da representao comportamental do construto baseia-se em
duas tcnicas distintas: a anlise de preciso (investiga a homogeneidade dos itens
que compem o instrumento) e a anlise fatorial (qual a quantidade de construtos
necessrios para explicar as covarincias desses itens), sendo que esta ltima no
foi realizada neste estudo. O conceito de preciso ou fidedignidade de uma medida
psicolgica est ligado variabilidade produzida por fatores alheios ao construto
(conceito de varincia de erro) e se refere a quanto um escore obtido em um
determinado momento se refere a caractersticas estveis do sujeito. O coeficiente
de preciso pode ser calculado por diferentes tcnicas, dentre estas, esto a
preciso teste-reteste, a preciso de formas alternativas (paralelas) e a consistncia
interna (sendo o clculo do Alpha de Cronbach a tcnica mais utilizada para
avaliao de medidas escalares, indicando quais itens tm maior correlao com o
escore total da escala, ou seja, confiabilidade, e, portanto, maior qualidade
psicomtrica) (PASQUALI, 2001).
Uma das tcnicas mais utilizadas para se estabelecer este tipo de
preciso e verificar a homogeneidade da amostra de itens do teste, como j foi dito,
o clculo do alfa de Cronbach. Os clculos do alfa de Cronbach das presentes
escalas geraram os seguintes ndices: 1) 0,93, para Religiosidade Intrnseca
(questionrio 1); 2) 0,91, para Religiosidade Extrnseca (questionrio 2); e 0,92, para
Sensibilidade Espiritual (questionrio 3).
A anlise por hiptese fundamenta-se no poder que um teste psicolgico
tem de discriminar ou predizer um critrio externo a ele mesmo, distinguindo grupos-
critrio que difiram especificamente no trao que o teste mede. Um critrio bastante
utilizado, neste sentido, a tcnica da validao convergente/divergente
(PASQUALI, 1999). Neste estudo, procura-se estabelecer uma correlao entre o
instrumento criado e os instrumentos correlatos a esse (com devida qualidade
psicomtrica). Neste ponto, valida-se o novo instrumento quando so encontradas
correlaes coerentes entre os escores deste e os escores de instrumentos
convergentes ou divergentes, estabelecidos pela literatura (REPPOLD, 2005). Para
a validade convergente, necessrio que se tenha um instrumento de medida
correlato que exera o papel de padro-ouro em estatstica, servindo como
parmetro para a comparao (PASQUALI, 2001). Se forem encontradas
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39
correlaes positivas entre os instrumentos em que se espera, teoricamente, que
estejam correlacionados, h de se confirmar teoricamente o propsito da nova
medida, indicando convergncia entre os construtos avaliados. Para a validao
divergente, h de se estimar a ocorrncia de correlaes negativas entre os
instrumentos em que se espera, teoricamente, que estejam direcionados
inversamente.
1.9.3. Validade de critrio
A validade de critrio uma etapa do mtodo psicomtrico que visa
predizer um critrio esterno e se d quando h correlao adequada entre o
instrumento sob anlise e preditores pr-estabelecidos, com a confirmao de
prognstico, desempenho ou qualquer indicador de comportamento. A validao de
critrio pretende verificar o quanto as escalas podem predizer as caractersticas do
indivduo no presente (validade concorrente), passado (validade posditiva) ou futuro
(validade preditiva) atravs de pesquisas de delineamento transversal e longitudinal.
O essencial nesse procedimento que os critrios escolhidos como referncia
sejam condizentes finalidade do instrumento. Neste estudo, a qualidade do teste
determinada pela sua capacidade de discriminar diferenas no comportamento
religioso dos sujeitos (PASQUALI, 1999, 2007; REPPOLD, 2005).
Neste tipo de validao, um determinado critrio (p. ex., pessoas com
ausncia de qualquer crena religiosa, ou, religiosos considerados lderes em sua
instituio) passa a ser parmetro para que se certifique que o instrumento
consegue, de fato, dimensionar adequadamente o construto desejado. Aqui, verifica-
se a capacidade que o instrumento tem de diferenciar sujeitos que apresentam
magnitudes prximas no trao investigado, permitindo que se identifique o poder de
discriminao dos itens. Esta discriminao pode ser estabelecida por diferentes
formas, tais como a seleo de grupos-critrio, a anlise dos ndices de
discriminao do item e a teoria de resposta ao item (TRI) (PASQUALI, 1999, 2001).
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1.10 Justificativa
O presente estudo se justifica pela escassez de instrumentos destinados a
avaliao da religiosidade no contexto brasileiro. Recentemente, um grupo de
pesquisadores traduziu a verso original da DUREL para o portugus brasileiro, que
foi validado em uma amostra de baixa renda de uma comunidade proveniente da
cidade de So Paulo. Os achados deste esforo inicial de validao da P-DUREL
demonstraram adequada validade discriminante e elevada consistncia interna.
Neste sentido, o presente estudo tem como objetivo ampliar o espectro populacional
nacional no qual o instrumento poder ser aplicado, avaliando suas propriedades
psicomtricas em duas amostras com caractersticas distintas do primeiro estudo de
validao (amostras clnica e com mais altas escolaridade e renda). Alm disso,
alm de avaliar sua consistncia interna e validade convergente-discriminante,
pretendemos avaliar a confiabilidade teste-reteste e suas possveis relaes com
espiritualidade e sintomas de sofrimento psicolgico, ampliando o escopo
investigativo inicial.
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2 OBJETIVOS
2.1 Objetivo Geral
Validar o ndice de Religiosidade Intrnseca (IRI) em amostras
universitria e psiquitrica.
2.2 Objetivos Especficos
1. Avaliar as propriedades psicomtricas (validade e preciso) do IRI em
duas amostras distintas (universitria e psiquitrica);
2. Correlacionar as escalas de religiosidade (IRI, DUREL) com escalas de
sade mental que avaliam sintomas depressivos e ansiosos (Inventrio Beck para
Depresso BDI; Inventrio Beck para Ansiedade BAI; Escala Hospitalar de
Ansiedade e Depresso - HADS) em duas amostras distintas (universitria e
psiquitrica);
3. Verificar a correlao entre ndices de religiosidade (IRI, DUREL) com
um ndice de qualidade de vida, a saber, a Escala de Qualidade de Vida da
Organizao Mundial de Sade verso breve (WHOQOL-BREF) em duas
amostras distintas (universitria e psiquitrica).
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42
3 METODOLOGIA
3.1 Local do Estudo
Universidade Federal do Cear (UFC), Campi de Benfica e
Porangabussu, localizados na cidade de Fortaleza, Cear e ambulatrio
especializado de Psiquiatria do Hospital Universitrio Walter Cantdio (HUWC). O
HUWC se caracteriza como um hospital pblico universitrio de atendimento
tercirio da rede pblica que presta assistncia de alta complexidade pelo Sistema
nico de Sade (SUS), realizando desde transplantes at pesquisas clnicas
relacionadas a diversos programas de ps-graduao regionais e nacionais.
Vinculado Secretaria de Sade do Estado do Cear, o hospital recebe pacientes
de baixo padro socioeconmico da cidade de Fortaleza e demais municpios do
Cear. Caracteriza-se como referncia local e regional de ensino, pesquisa e
assistncia de alta complexidade, abrangendo nove programas de ps-graduao,
alm de cerca de 1500 funcionrios, 147 residentes e 600 estudantes de graduao
(LAGE; MONTEIRO, 2007).
3.2 Descrio das Amostras
O estudo foi realizado com estudantes de Psicologia e Medicina do 1 ao
5 semestre da graduao, sem restrio de idade, de ambos os sexos, sem
qualquer outra formao universitria, selecionados na Universidade Federal do
Cear (UFC) e com pacientes ambulatoriais psiquitricos selecionados por
convenincia junto ao HUWC, de ambos os sexos, sem restries para escolaridade
ou idade.
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3.3 Critrios de Incluso
Estudantes universitrios da UFC, de ambos os gneros, com idade
acima de 18 anos, com anuncia e assinatura do TCLE (Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido apndice A), aps a explicao dos objetivos e da metodologia
do estudo.
Pacientes ambulatoriais psiquitricos do HUWC estabilizados, de ambos
os gneros, com idade acima de 18 anos, com anuncia e assinatura do TCLE
(Termo de Consentimento Livre e Esclarecido apndice A), aps a explicao,
mediante leitura do referido documento, dos objetivos e da metodologia do estudo.
3.4 Critrios de Excluso
Recusa verbal do sujeito; presena de outra patologia (cegueira, mudez,
demncia, retardo mental ou episdio psictico agudo) que impossibilite responder o
questionrio.
3.5 Instrumentos
Inventrio de Religiosidade Intrnseca (IRI): consiste em um
questionrio estruturado, composto por 14 itens em sua verso inicial, os quais
esto organizados em escala Likert, com escores variando de 1 a 5 que refletem
gradaes de intensidade/frequncia: 1-nunca, 2-raramente, 3-ocasionalmente
4-frequentemente e 5-sempre (Apndice B);
Inventrio de Religiosidade Duke, verso brasileira - DUREL (KOENIG
et al., 1997; LUCCHETTI et al., 2010): possui cinco itens destinados a mensurar
algumas dimenses de religiosidade: religiosidade organizacional (RO), religiosidade
no-organizacional (RNO) e religiosidade intrnseca (RI). Os primeiros dois itens
abordam RO e RNO, enquanto que os demais itens se referem RI. Na anlise dos
resultados da DUREL, segundo instrues dos autores e tradutores, as pontuaes
nas trs dimenses (RO, RNO e RI) devem ser analisadas separadamente e os
escores dessas trs dimenses no devem ser somados em um escore total. O
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coeficiente alfa de Cronbach do componente intrnseco da escala na amostra 1 foi
0,89 e na amostra 2 foi 0,87 (Anexo A);
Mdulo de Espiritualidade, Religiosidade e Crenas Pessoais do
WHOQOL-100 WHOQOL-SRPB (Development of the World Health Organization
WHOQOL-BREF quality of life assessment. The WHOQOL Group, 1998): consiste
em 4 itens designados a examinar as crenas pessoais e como estas afetam sua
qualidade de vida e o enfrentamento das adversidades. Este instrumento pode ser
aplicado a indivduos com diversas crenas religiosas, bem como aqueles cuja
crena religiosa ou espiritual no corresponde a uma religio particular. Os itens
devem ser somados para gerar um escore total (FLECK et al., 2003) (Anexo B);
Inventrio de Beck para Depresso BDI (BECK et al., 1961): Esta
escala um instrumento de auto-relato estruturado, composto por 21 categorias de
sintomas e atitudes (pessimismo, insatisfao, sentimentos de culpa, sentimentos de
fracasso, etc.), que descrevem manifestaes comportamentais, cognitivas, afetivas
e somticas da depresso. Cada categoria contm quatro alternativas que
expressam nveis de gravidade dos sintomas depressivos, onde a pontuao varia
de zero (ausncia de sintomas depressivos) a trs (presena dos sintomas mais
intensos - Anexo C) (CUNHA, 2001);
Inventrio de Ansiedade de Beck - BAI (BECK et al., 1988): Esta escala
um instrumento de auto-relato estruturado, composto por 21 itens descrevendo
sintomas comuns em quadros de ansiedade. perguntado ao sujeito o quanto este
foi incomodado por cada sintoma na semana precedente, dentro de uma escala de
quatro pontos, variando de zero (absolutamente no) a trs (severamente) (CUNHA,
2001) (Anexo D);
Instrumento de Avaliao de Qualidade de Vida da Organizao
Mundial de Sade- verso abreviada, WHOQOL-BREF (Development of the World
Health Organization WHOQOL-BREF quality of life assessment. The WHOQOL
Group, 1998): Este um instrumento um instrumento de auto-relato estruturado,
constitudo por 26 questes, abrangendo 4 domnios da QV (fsico, psicolgico,
relaes sociais e meio ambiente). A verso brasileira apresentou excelentes
propriedades psicomtricas de confiabilidade, consistncia interna, correlao
teste-reteste e validade aparente e de critrio quando aplicado a amostras de
sujeitos saudveis e com condies mdicas gerais (Fleck et al., 2000) (Anexo E);
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Escala Hospitalar de Ansiedade e Depresso HADS (ZIGMOND;
SNAITH, 1983): Esta escala um instrumento de auto-relato estruturado, que possui
14 itens, dos quais sete so voltados para a avaliao da ansiedade (HADS-A) e
sete para a depresso (HADS-D). Cada um dos seus itens pode ser pontuado de
zero a trs, compondo uma pontuao mxima de 21 pontos para cada escala
(BOTEGA et al., 1995) (Anexo F).
3.6 Desenvolvimento do Inventrio de Religiosidade Intrnseca da Universidade
Federal do Cear (IRI)
O autor deste trabalho juntamente com dois de seus co-autores
(GONDIM, Francisco de Assis Aquino; RLA, Francisco Hlio) desenvolveram uma
verso inicial do IRI, a partir da compilao de afirmativas com temas relacionados
ao construto religiosidade intrnseca baseados na reviso de literatura e na sugesto
de especialistas (telogos, antroplogos, psiquiatras e psiclogos), gerando 14 itens.
Tais itens foram organizados em escala Likert nos quais cada afirmativa encontra-se
atrelada a cinco possibilidades de respostas (ver Apndice A). Os critrios utilizados
para retirada de itens no pertinentes so apresentados na seo Anlise
estatstica de dados, a seguir.
3.7 Procedimentos
Para execuo do presente estudo, foram aplicados s amostras os
questionrios descritos acima. Na amostra de estudantes, as aplicaes deram-se
em sala de aula, com a permisso do professor responsvel, em turmas do 1 ao 5
semestres dos cursos de Psicologia e Medicina. As aplicaes duraram cerca de
trinta minutos para cada sujeito. Na amostra clnica, as aplicaes foram
intermediadas pelo auto