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Pós-Graduação em Direito Público Disciplina: Direito Administrativo LEITURA OBRIGATÓRIA I GABRIEL DE BRITTO CAMPOS

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Pós-Graduação em Direito Público

Disciplina: Direito Administrativo

LEITURA OBRIGATÓRIA I

GABRIEL DE BRITTO CAMPOS

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Evolução histórica da responsabilidade civil do Estado

Gabriel de Britto Campos

1 Introdução

O Estado, sujeito de direitos e obrigações na ordem jurídica, realiza as suas atividades administrativas, legislativas e judiciárias na realização do bem comum da sociedade, e, neste sentido, interage com essa sociedade em uma pluralidade de atos materiais, administrativos, judiciais e legislativos.

Na realização de atividades pode o Estado, a qualquer instante, causar um dano patri- monial ou moral a uma pessoa específica, quando na verdade buscava realizar o bem- estar de toda uma coletividade, surgindo daí a questão da responsabilidade civil ou

extracontratual do Estado, conforme anota André de Laubadère.1

Considerando que os deveres jurídicos — originários — de não causar dano a outrem e de portar-se segundo preceitos de direito são impostos a todos, inclusive ao Estado, teremos de concordar que a realização de um dano a partir de uma atividade estatal produzirá para o Estado o dever jurídico — sucessivo — de reparação do dano, esse dever de reparação imposto ao Estado é denominado de responsabilidade civil ouex- tracontratual do Estado.

O fundamento específico da responsabilidade civil do/ Estado está centrado na con- cepção de que, embora seja o criador do direito por meio dos seus órgãos legislativos, o Estado também se submete a força imperativa do direito, sujeitando-se ao cumpri- mento de seus preceitos, constituindo este princípio o cerne da noção de Estado de Direito.

A expressão responsabilidade civil do Estado aparece ao lado da responsabilidade civil da Administração Pública, muitas vezes como sinônimas. A expressão responsabilidade civil da Administração Pública traz em si um erro, pois Administração Pública é uma expressão que designa o conjunto de órgãos e entidades que integra a estrutura admi- nistrativa do Estado (sentido formal, subjetivo ou orgânico); designa também o con- junto de atividades administrativas do Estado (sentido material, objetivo ou funcio- nal), e designa ainda, o desempenho perene e técnico de tais atividades no dia a dia (sentido operacional).

Em nenhum de seus significados a Administração Pública pode ser confundida com o Estado ou com as pessoas jurídicas integrantes de sua Administração indireta, por isso, talvez, a expressão responsabilidade civil da Administração Pública não seja a mais feliz. Por outro lado a expressão responsabilidade civil do Estado é mais precisa, no entanto, ela ainda não traduz a realidade, pois a responsabilidade civil do Estado por atos legislativos e judiciais, embora reconhecida pela doutrina e jurisprudência, está cercada de peculiares conforme veremos adiante.

Ademais, a expressão responsabilidade civil do Estado não traz em si a menção às entidades de direito público integrantes da Administração indireta, bem como daque- las entidades de direito privado prestadoras de serviços públicos.

De toda sorte, o uso de uma ou outra expressão deve lembrar sempre tais implicações, extremamente importantes no estudo do tema. Quanto ao tema em si, podemos definir a responsabilidade civil do Estado como o dever que lhe é atribuído pela ordem jurídica de reparar os danos materiais ou morais causados aos administrados por atos comissivos ou omissivos, lícitos ou ilícitos de seus agentes no exercício de suas atividades.

A responsabilidade civil do Estado é produto de um processo evolutivo lento e gradual, tendo evoluído por fases distintas, cada uma justificada por um conjunto de princípios

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e questões históricas e políticas próprias, que constituíram verdadeiros marcos teóri- cos.

Inicialmente, vivemos a Teoria da Irresponsabilidade do Estado. Evoluímos para as cha- madas Teorias Civilistas, que se desdobraram em Teoria dos Atos de Império e Gestão, e Teoria da Culpa Civil ou Teoria da Responsabilidade Subjetiva. Em um terceiro mo- mento, evoluímos para as Teorias Publicistas, que se desdobraram em Teoria da Faute du Service (Teoria da Culpa Anônima ou Culpa Administrativa), Teoria do Risco Admi- nistrativo e Teoria do Risco Integral. Esquematizando, teríamos:

Teoria da Irresponsabilidade Civil do Estado,

Teoria Regalista ou Regaliana

Teoria dos Atos de Império e Atos de Gestão

Teorias Civilistas

Teoria da Culpa Civil ou Te- oria Subjetivista

Evolução

Teoria da Faute du Ser- vice ou Culpa do Serviço

Teorias Publicistas Teoria do Risco Administra- tivo

Teoria do Risco Integral

É interessante anotar os eventos que foram determinantes para a alteração de cada conjunto de teórico da responsabilidade civil do Estado.

O abandono da Teoria da Irresponsabilidade e o acolhimento das primeiras noções das Teorias Civilistas se deu com o fim do absolutismo e com as primeiras noções de Estado de Direito. Enquanto, o abandono das Teorias Civilistas e o acolhimento das Teorias Publicistas se deu com a jurisprudência do Conselho de Estado na França, notadamente com o Caso Blanco, de 1873. Para a melhor compreensão do tema, é imperativo o conhecimento de cada uma dessas fases históricas da responsabilidade civil do Estado.

2 Teoria da Irresponsabilidade Civil do Estado

Originalmente, teve vigência a Teoria da Irresponsabilidade Civil do Estado, também chamada de Teoria Regalista ou Regaliana, segundo a qual não seria possível respon- sabilizar o Estado pelos atos de seus agentes. O fundamento maior e primeiro da Teoria

da Irresponsabilidade Civil do Estado era, segundo anotam Jean Rivero2 e André de

Laubadère,3 o conceito de soberania do Estado, tendo Laubadère sintetizado este en- tendimento com a máxima de que é próprio da soberania se impor a todos sem com-

pensação.4

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Yussef Cahali5 afirma que a Teoria da Irresponsabilidade Civil do Estado se assentava em três postulados básicos:

a) a soberania do Estado, por natureza irredutível, proíbe ou nega sua igualdade ao súdito;

b) representando o Estado soberano e o direito organizado, não pode este aparecer como violador desse mesmo direito;

c) os atos dos agentes públicos contrários ao direito não podem sob qualquer hipótese ser imputados ao Estado, devendo ser reconhecidos como atos dos próprios agentes — atos nomine proprio.

Curiosamente, os argumentos tendentes à defesa da irresponsabilidade civil do Estado eram bradados pelos juristas da época com grande fervor, em construções de relativa complexidade, onde se buscava a todo custo demonstrar a impossibilidade de chamar

o Estado à responsabilidade civil por atos de seus agentes. Leon Duguit,6 criticando os autores que defendiam a irresponsabilidade civil do Estado, assim resume os argumen- tos de então, embora deles discordando veementemente:

Definitivamente, é o Estado soberano que cria o direito, e sendo assim não se pode admitir que possa ser responsável. A concepção tradicional da responsabilidade implica uma violação ao direito: e quem cria o direito por um ato de sua vontade soberana, não pode violá-lo. Assim como nos países de monarquia absoluta o rei não pode fazer mal, e, portanto, não pode ser responsável, o Estado democrático, que não é mais que a nação soberana organizada, tampouco pode fazer mal, nem pode ser responsável.

Além destes fundamentos jurídicos em nome de uma soberania intangível e suprajurí- dica, é incontestável que a ideia da irresponsabilidade civil do Estado decorria também da concepção de intangibilidade do próprio soberano. Com efeito, a pessoa sagrada e soberana do Rei, detentor da soberania advinda de Deus, simplesmente não pode ser chamada a responder pelos seus atos. A presunção era a da impossibilidade de erro ou maldade por parte do Rei, consagrada nas máximas The king can do not wrong dos ingleses, e Le Roi ne peut mal faire dos franceses, ambas podem ser traduzidas para o português para o rei não pode errar. Por consequência, o Estado, realizando a vontade do Rei, por meio de seus agentes, não pode se sujeitar a qualquer tipo de responsabi- lidade.

Vale lembrar, entretanto, que, mesmo durante o período de vigência da doutrina da irresponsabilidade civil do Estado, os administrados não se viam em completo desam- paro, pois, em alguns casos, admitia-se a responsabilização do Estado, desde que essa responsabilidade fosse prevista em leis especiais como, por exemplo, a Lei 28 Pluvioso do ano VIII (1800), que tratava da responsabilidade do Estado por conta de obras pú-

blicas.7Ademais, nessa época já era possível responsabilizar pessoalmente o servidor público, quando a vítima pudesse comprovar expressamente a responsabilidade do ser- vidor. Entretanto, em ambos os casos, o manejo da ação indenizatória dependia da autorização do Conselho de Estado, por força do art. 75 da Constituição do Ano VIII (1800), tornando a responsabilização do Estado severamente comprometida, pois nem

sempre o Conselho de Estado concedia a necessária autorização. Afirma Jean Ri- vero8

que tal situação perdurou até 1870 quando o Governo Provisório que substituiu Napoleão III revogou o art. 75 da Constituição do Ano VIII, bem como todos os demais atos que limitassem o direito de ação dos administrados em relação ao Estado.

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A irresponsabilidade civil do Estado mereceu severas críticas em face de seu aparente teor de injustiça e a sua insustentabilidade jurídica e política. No entanto, somente com o início da Revolução Francesa e com o crescimento da concepção do Estado de Direito a partir do início do séc. XIX, a Teoria da Irresponsabilidade Civil do Estado teve

o início do seu declínio. A respeito do tema, Rivero9 afirma que razões práticas e jurídicas condenavam a tese da irresponsabilidade, dentre elas “a amplitude dos danos provocados pela Administração, a importância que o tema da responsabilidade civil ganhara no direito privado, e a generalização do seguro”, tornando a manutenção do setor administrativo no terreno da irresponsabilidade algo insuportável.

É importante lembrar que este desenvolvimento da noção de que o Estado deve ser responsabilizado por seus atos foi uma construção desenvolvida na Europa continental ao longo da primeira metade do séc. XIX. Nos países de tradição anglo-saxã, a noção da irresponsabilidade civil do Estado perdurou até a primeira metade do séc. XX, tendo os Estados Unidos admitido a responsabilidade civil do Poder Público pelo Federal Tort Claim Act, de 1946, e a Inglaterra pelo Crown Proceeding Act, de 1947.

Sobre a aplicação da Teoria da Irresponsabilidade Civil na Espanha, alguns autores afir- mam que esta prevaleceu até a edição da denominada Lei de Expropriação Forçada de 1954, quando a Espanha então teria abandonado tal teoria. É certo dizer que a Lei de Expropriação Forçada, de 26 de dezembro de 1954, formou em grande parte o pensa- mento acerca da responsabilidade civil no direito espanhol, conforme afirma Garrido

Falla.10 É certo também dizer, com fundamento no ensino de García de Enterría,11 que a construção da noção de responsabilidade civil no direito espanhol se deu com certo atraso. No entanto, não é possível dizer que viveu a Espanha, até a década de 1950, a plena Teoria da Irresponsabilidade Civil do Estado. Contra tal argumento lembramos que diversos diplomas normativos, desde meados do séc. XIX, previam a possibilidade de responsabilização da Administração por situações específicas na Espanha, como a Lei de 9 de abril de 1842, a Lei de Polícia de Ferrocarriles de 1904 e a Lei de 31 de dezembro de 1945.

De todo modo, concordamos com a afirmação de que somente com a Lei de Expropri- ação Forçada, de 26 de dezembro de 1954, foi possível a construção de um sistema normativo, doutrinário e jurisprudencial acerca da responsabilidade civil do Estado nos moldes dos Estados contemporâneos, chegando, inclusive à condição de princípio cons-

titucional.12

Por fim, a partir do abandono da Teoria da Irresponsabilidade Civil do Estado pela Inglaterra e Estados Unidos, bem como a partir da Lei de Expropriação Forçada de 1954 na Espanha, tivemos um novo panorama no direito ocidental, levando Oswaldo Ara-

nha13 a afirmar na década de 1960 que “o princípio da responsabilidade civil do Estado, por atos de seus agentes públicos, passou a prevalecer, como se disse, em todo o mundo civilizado”.

No Brasil, jamais se adotou de forma plena a Teoria da Irresponsabilidade Civil do Estado. Na consolidação do nosso direito administrativo, no início do séc. XX, tivemos

em Amaro Cavalcante14 e Alcides Cruz,15 dois ardorosos defensores da responsabilidade civil do Estado, tendo este último afirmado que era, naquele tempo, intolerável sus- tentar a tese de que o Estado, criador do direito, não se submete em matéria de res- ponsabilidade civil.

3 Teorias Civilistas da Responsabilidade Civil do Estado

Embora a Teoria da Irresponsabilidade Civil do Estado tenha deixado de existir na Eu- ropa continental no decorrer do séc. XIX, sob influência da Revolução Francesa e do

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Estado de Direito por ela inaugurado, conforme observa Mário Masagão,16 o que se viu inicialmente foi uma tentativa de responsabilização incipiente do Estado a partir da

concepção e legislação civilistas. Juan Carlos Cassagne17 afirma ser razoável o fato de que, na ausência de um direito administrativo sistematizado, surgisse a concepção que o direito civil tivesse um alcance geral, para, inclusive, alcançar o Estado pelos atos de seus prepostos que viessem causar danos aos administrados. Com efeito, a premên- cia por aplicar o princípio da responsabilidade civil ao Estado, aliada à inexistência de um direito administrativo, por certo levaria os juristas mais abalizados de então a aplicar os princípios do direito comum ao tema da responsabilidade do Estado.

Por tal razão, na primeira metade do séc. XIX, veio surgir na França as chamadas Teo- rias Civilistas que admitiam a responsabilidade civil do Estado, mas sob a égide do direito civil, pois este ramo havia experimentado um alto grau de sofisticação legisla- tiva na forma do Código Civil Napoleônico de 1804, que no aspecto da responsabilidade

civil se valeu da sólida doutrina de Domat e Pothier.18

As Teorias Civilistas que primeiro procuraram justificar a responsabilidade civil do Es- tado se desdobraram em duas outras teorias, a saber: Teoria dos Atos de Império e de Gestão e Teoria da Culpa Civil ou Teoria da Responsabilidade Subjetiva. Na França esta construção teve início com aplicação do art. 1.382 do Código Civil. Segundo afirmação

de Duez19 que a partir daí tudo se formou, graças à obra jurisprudencial do Conselho de Estado, muito embora existissem algumas leis anteriores que tratassem de respon- sabilidade civil em alguns aspectos particulares.

3.1 Teorias Civilistas: Responsabilidade Civil do Estado a partir da identificação dos atos de império e de gestão

Inicialmente, a Teoria Civilista da Responsabilidade Civil do Estado procurou distinguir os atos da Administração Pública em atos de império e atos de gestão, para fins de

responsabilidade do Estado.20

Os atos de império, aqueles praticados com prerrogativas próprias da autoridade Esta- tal no exercício de sua soberania, eram impostos unilateralmente aos particulares, independentemente de sua aquiescência e regrados por um direito especial exorbi- tante do direito comum. Já os atos de gestão eram aqueles praticados pelo Estado em condições de igualdade com o homem comum, normalmente atos meramente burocrá- ticos de gerenciamento e funcionamento de serviços públicos.

A distinção repercutia diretamente na questão da responsabilidade civil do Estado, pois, pela prática dos atos de império não se admitia a responsabilidade do Estado, ainda que causadores de danos a particulares, em razão do poder soberano de império que estava na origem de sua prática; enquanto que pela prática dos atos de gestão lesivos aos particulares, admitia-se a responsabilidade civil do Estado, desde que fi- casse comprovada a culpa dos agentes públicos.

Percebemos que a primeira Teoria Civilista, a Teoria dos Atos de Império e de Gestão, ainda trazia em si o germe da irresponsabilidade civil, na medida em que não se admi- tia a responsabilidade civil do Estado pelos atos praticados no exercício do poder de império do Estado.

No entanto, não podemos negar que a Teoria dos Atos de Império e de Gestão repre- sentou um enorme avanço para a época, pois a admissão da responsabilidade do Es- tado, ainda que em parte, constituía uma inovação em relação à Teoria Regalista ou

da Irresponsabilidade, conforme anota Yussef Cahali.21

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A divisão das ações do Estado em atos de império e atos de gestão, para fins de defi- nição de sua responsabilidade, mereceu inúmeras críticas. Primeiro, pelo fato de que tal teoria se baseou em uma divisão da personalidade do Estado, ou em uma distinção entre Estado e Administração, como se fossem duas pessoas distintas, um pensamento que não se coaduna com a noção monista que caracteriza o Estado moderno, sendo a Administração apenas um de seus instrumentos, como bem observou Themístocles Ca-

valcanti.22 Segundo, pela dificuldade prática em apontar em cada caso onde havia ato de gestão e ato de império para fins de imputação de responsabilidade civil do Estado. E, por fim, para quem sofre o dano, somente interessa a sua integral reparação, pouco importando se adveio de um ato de gestão ou ato de império.

3.2 Teorias Civilistas: Responsabilidade Civil a partir sob regras do Código Civil

Em um segundo momento, a doutrina passou a considerar a responsabilidade do Estado conforme o conceito de dolo ou culpa, equiparando o Estado ao particular. Trata-se da Responsabilidade Subjetiva do Estado.

Desse modo, o Estado passou a ser responsabilizado pelos atos de seus agentes quando prejudiciais a terceiros em razão de imprudência, negligência ou imperícia do agente público. Ainda assim, deveria o particular provar a ação do Estado, o dano sofrido e a culpa do agente público, para conseguir obter o reconhecimento da responsabilidade civil do Estado. Quanto aos atos dolosos, esses eram imputáveis diretamente ao agente

público,23 sendo tal medida, muitas vezes, desvantajosa para o lesado, pois como

afirma Duez,24 sendo o agente público insolvente, como quase sempre era, a imputação pessoal ao agente não permitia ao ofendido uma adequada reparação.

A Teoria da Responsabilidade com Culpa foi adotada por muitos países e acolhida por muitos doutrinadores, que somente concebiam a responsabilidade civil do Estado quando comprovado o dolo ou a culpa dos seus agentes, assemelhando-o à pessoa ju- rídica de direito privado em face dos danos causados por seus empregados. Daí a ex- pressão Teoria da Culpa Civil ou Responsabilidade Subjetiva.

No Brasil, a Constituição Imperial de 1824 estabeleceu de forma clara a responsabili- dade dos Ministros do Império no art. 133, pela prática de traição, peita, suborno, ou concussão, abuso do poder, falta de observância da Lei, pelo que obrarem contra a Liberdade, segurança, ou propriedade dos cidadãos e por qualquer dissipação dos bens públicos. No art. 156 a Constituição Imperial cuidou da responsabilidade dos Juízes de Direito e oficiais de justiça no art. 156, já no art. 179, inc. XXIX, ficou reconhecida a responsabilidade dos funcionários públicos “pelos abusos, e omissões praticadas no exercício das suas funções”. Ainda no que diz respeito à responsabilidade dos empre- gados e funcionários públicos, também tivemos as disposições dos arts. 137-166 do Código Criminal de 1830.

A Constituição Republicana de 1891 estabeleceu em seu art. 52, §1º, a responsabilidade pessoal dos Ministros de Estado e no art. 82 a responsabilidade dos funcionários públi- cos pelos atos ilegais que praticarem: “Os funcionários públicos são estritamente res- ponsáveis pelos abusos e omissões em que incorrerem no exercício de seus cargos, assim como pela indulgência ou negligência em não responsabilizarem efetivamente os seus subalternos”. A própria descrição da norma reclamava o caráter subjetivo da responsabilidade civil dos agentes públicos na Constituição Republicana.

Nessa época não havia uma norma jurídica específica que reconhecesse a imputação

da responsabilidade civil diretamente ao Estado, embora, Amaro Cavalcante25 expres- samente reconhecesse essa responsabilidade civil do Estado, ao afirmar:

8

Quando a obrigação, de satisfazer o damno do delicto, e também do quasi-delicto, recae sobre a Administração Publica, ou melhor dizendo, sobre o Estado, as referidas disposições lhe são por igual applicaveis; porquanto, já vimos que segundo a lettra expressa do próprio Cod. Penal (art. 31), a isenção da responsabilidade penal (a qual não pôde ser imposta ao Estado, como pessoa jurídica) não implica a da responsabili- dade civil. Si, como se disse, não há uma lei geral, firmando a responsabilidade civil do Estado, não faltam, todavia, disposições especiaes, reguladoras de vários actos ou serviços da Administração Publica, que reconhecem expressamente dita responsabili- dade nos casos de lesão dos direitos individuaes, commettida pelos seus representan- tes. (sic)

Como afirmou Amaro Cavalcante,26 a ausência de uma norma específica não impediu a existência de normas isoladas que trataram do tema. A esse respeito convém ressaltar as seguintes normas apontadas pelo autor:

a) Decreto nº 1.930, de 26 de abril de 1857, que dispôs sobre a responsabilidade civil do Estado em relação às estradas de ferro;

b) Decreto nº 1.663, de 30 de janeiro de 1894, art. 552, e também o Decreto nº 4.053 de 24 de junho de 1901, art. 121, que dispôs sobre danos causados pela Repartição Geral dos Telegraphos [sic] por ocasião da instalação de linhas telegráficas em propri- edades privadas;

c) Decreto nº 1.692-A, de 10 de abril de 1894, art. 8º, e Decreto nº 2.230, de 10 de fevereiro de 1896, art. 6º, tendo ambas as normas tratado da responsabilidade da União em matéria de serviço postal.

Somente com o Código Civil de 1916, tivemos no direito brasileiro uma norma geral sobre a responsabilidade civil do Estado. Com efeito, o Código Civil de 1916 adotou claramente no Brasil a Teoria Civilista, para fins de responsabilidade civil do Estado, tendo admitido em seu artigo 15, a responsabilidade das pessoas de direito público por atos de seu agentes “contrários ao direito”, nos termos seguintes: “As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano”. A expressão “contrário ao direito” para diversos autores traduzem a exata noção do ato ilícito, nas formas dolosas ou culposas, portanto, tal dispositivo trazia clara e explicitamente a adoção entre nós da Teoria da Culpa Civil ou Teoria da Res- ponsabilidade Subjetiva do Estado.

4 Teorias Publicistas da Responsabilidade Civil do Estado

Com o desenvolvimento do direito administrativo e o reconhecimento de sua autono- mia jurídica, tomou corpo a noção de que a responsabilidade do Estado não poderia ser considerada segundo as regras do direito civil. A autonomia e o desenvolvimento do direito administrativo na primeira metade do séc. XIX deram origem à abordagem da responsabilidade civil do Estado sob a ótica do direito público, nascendo assim as Teorias Publicistas da Responsabilidade Civil do Estado.

É interessante notar, preliminarmente, que na França floresceu desde o Antigo Regime um curioso modelo de organização judiciária dividido em duas jurisdições distintas,

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posteriormente reafirmada pela Lei nº 16-24, de agosto de 1790. A justiça administra- tiva, competente para julgar os conflitos oriundos da atividade do Estado realizada sob regramento de direito público, e a justiça comum, competente para o julgamento de todos os demais conflitos oriundos das relações jurídicas regradas pelo direito privado.

Como o reconhecimento da responsabilidade civil do Estado se deu inicialmente sob regras de direito privado (Teorias Civilistas) era razoável entender que a justiça comum era competente para processamento e julgamento de tais demandas. Nesse sentido,

Jean Rivero27 afirma que no séc. XIX as ações indenizatórias propostas contra agentes públicos eram julgadas na justiça comum como um particular, adotando-se a Teoria da Culpa Civil. Mesmo quando as ações indenizatórias eram propostas contra as pessoas jurídicas de direito público, ainda assim, os tribunais da justiça comum aplicavam a regra básica do art. 1.382 do Código Civil francês.

Mas uma importante mudança estava por acontecer. Ainda na primeira metade do séc. XIX, alguns casos de responsabilidade civil do Estado passaram a ser julgados pelos Tribunais Administrativos, tendo o seu órgão máximo, o Conselho de Estado, fixado o entendimento de que a responsabilidade civil do Estado deveria ser analisada sob o prisma do direito público e não sob o direito privado. Criava-se dessa forma, o caminho para a formulação das Teorias Publicistas da Responsabilidade Civil do Estado.

Dentre os primeiros casos em que o Conselho de Estado adotou princípios de direito público destaca-se o conhecido Caso Rotschild,28 em 06 de dezembro de 1855. Neste julgamento ficou assentado o entendimento de que:

A responsabilidade que pode incumbir o Estado pelos danos causados aos particulares por fatos decorrentes da prestação de serviços públicos não pode ser regida pelos prin- cípios estabelecidos no Código Civil, pois esses vinculam particular a particular; esta responsabilidade não é geral, nem absoluta; ela e suas regras especiais variam con- forme a carência do serviço e a necessidade de conciliar os direitos do Estado com os direito privado.

Parece que havia um sentimento no ar que não mais suportava a condição do Estado estar submetido às mesmas regras das pessoas privadas para fins de responsabilidade

civil. Acerca deste aspecto, André de Laubadère29 afirma que na metade do séc. XIX a ideia dominante era a de que o Estado não poderia mais ser responsabilizado nos mes- mos termos que uma pessoa privada, exigindo uma espécie de autonomia da responsa- bilidade civil do Estado frente à responsabilidade civil do direito privado. Neste mesmo

sentido opina Paul Duez30 ao afirmar que o abandono das ideias civilistas acerca da responsabilidade do Estado e a inaplicabilidade do art. 1382 do Código Civil francês à Administração contribuíram para a autonomia da responsabilidade civil do Estado den-

tro de uma ótica de direito público. Na Itália, Guido Zanobini,31 analisando o mesmo tema, traz idêntico ensinamento informando que a autonomia do direito administrativo frente ao direito privado, exige uma sistemática própria de apuração da responsabili- dade do Estado, que não é outra senão um regime de direito público de responsabili- dade extracontratual.

Não obstante a importância do já citado Caso Rotschild, foi somente com o Caso Blanco de 1873 que tivemos essa autonomia da responsabilidade civil do Estado. O Caso Blanco se passou do seguinte modo: a Manufatura Nacional de Tabaco na cidade de Bordeaux ocupava dois edifícios separados por uma rua. Quando duas vagonetes transportavam mercadorias e matéria-prima de um prédio para o outro, a menina Agnès Blanco, mo-

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radora da cidade de Bordeaux, foi atropelada por uma das vagonetes enquanto atra- vessava a rua, perdendo uma das pernas no acidente. Em ação judicial promovida para a reparação dos danos, surgiu o conflito de competência entre a jurisdição comum e o contencioso administrativo. Levada discussão ao Tribunal de Conflitos, este decidiu que a matéria deveria ficar sob julgamento dos Tribunais Administrativos, afinal, tra- tava-se da apuração da responsabilidade do Estado a partir do dano causado por um serviço público.

O entendimento firmado nesse caso é que a responsabilidade do Estado não pode ser aferida com base em regras e princípios civilistas, pois as atividades do Estado também não se sujeitam a tais regras. Desse modo, os mesmos princípios publicistas que disci- plinam a atividade estatal deveriam disciplinar a questão da responsabilidade civil do Estado.

Como consequência direta de tais decisões, começaram a surgir as denominadas Teo- rias Publicistas, cujo foco era o exame da responsabilidade do Estado a partir dos prin- cípios de direito público, e não sob a ótica do direito privado, tese que prevalecia até então com as teorias civilistas. Surgiram, então, as Teorias da Culpa do Serviço (Faute du Service) ou culpa administrativa, ou ainda, culpa anônima; e a Teoria do Risco, que se desdobrou em risco administrativo e risco integral.

4.1 Teoria da Faute du Service32

Considerando que até a segunda metade do séc. XIX, estando vigente a Teoria da Culpa Civil, a possibilidade de se responsabilizar o Estado pelos atos de seus agentes, depen- dia da identificação da culpa pessoal do agente público causador do dano. Embora este entendimento constituísse um avanço em relação ao frágil sistema da Teoria dos Atos de Império e de Gestão, e ainda, um avanço brutal em face da teoria da irresponsabi- lidade civil, ele não era capaz de solucionar os casos de responsabilidade civil por omissão, e os casos de responsabilidade civil onde não era possível identificar pessoal- mente o agente público causador do dano.

Era imperativo que viesse a existir a possibilidade de responsabilizar o Estado por atos omissivos. Neste momento surgiu a Teoria da Faute du Service, também chamada de Teoria da Culpa do Serviço, Teoria da Culpa Administrativa, ou ainda, Teoria da Culpa Anônima, construída sobre princípios de direito público e representativa de um enorme avanço do tema da responsabilidade civil do Estado. A partir de então, passou o Estado a ser responsabilizado pelos atos omissivos, quando estes fossem a causa de lesão so- frida pelo administrado.

Interessante notar que, em um primeiro momento, a adoção da Teoria da Faute du Service, também chamada de culpa anônima, culpa administrativa, acidente do serviço ou acidente administrativo, não abandonou integralmente a Teoria Civilista da Res- ponsabilidade Subjetiva. A grande novidade desta teoria foi distinguir de um lado os casos em que era possível provar a culpa ou o dolo do agente público, com a conse- quente aplicação da Teoria Civilista; e de outro lado os casos em que não era possível verificar a culpa individual do agente público, passando a se considerar a culpa do serviço público ou a culpa anônima da Administração.

Desse modo, a última Teoria Civilista — Teoria da Culpa Civil — coexistiu por algum tempo com a primeira Teoria Publicista — Teoria da Faute du Service — sendo aplicá-

veis cada uma a seu caso. Acerca deste aspecto, observa Oswaldo Aranha33 que nos casos em que era provada a culpa ou dolo do agente público respondia o Estado com fundamento na regra do art. 1.382 do Código Civil Francês, e nos casos em que não se

11

verificava culpa ou dolo do agente público, mas sim a desorganização do serviço pú- blico como a causa do dano, respondia o Estado com fundamento na Teoria da Faute du Service.

Essa demonstração de culpa do serviço se dá, segundo André de Laubadère34 e Paul

Duez,35 quando o serviço público não funciona, quando deveria funcionar; funciona mal, ou ainda, quando funciona atrasado, gerando como consequência imediata um prejuízo particular. Em qualquer uma dessas situações, provando o administrado que o dano decorreu da culpa do serviço, poderá reclamar a reparação do dano.

A responsabilidade do Estado segundo a Teoria da Culpa do Serviço, apesar de inserir- se na fase publicística, não é apurada de forma objetiva, trata-se na verdade de res- ponsabilidade subjetiva, pois está baseada na comprovação de culpa da Administração

na prestação do serviço público, como advertia Oswaldo Aranha.36 Conforme observa-

ção de Celso Antônio,37 na configuração da responsabilidade do Estado pela Teoria da Culpa do Serviço, não basta a simples constatação de dano decorrente do serviço pú- blico. É necessário que a pessoa lesada demonstre o nexo causal provando que o dano decorreu do mau funcionamento do serviço público, revelando assim, os elementos subjetivos do dolo e da culpa, caracterizadores da responsabilidade subjetiva.

A doutrina aponta como causa da confusão o fato de que o termo faute cujo significado em francês é “culpa”, correntemente traduzido entre nós como “falta”, que denota a ideia de ausência. Considerando que a ausência pode ser considerada objetivamente, surgiu a ideia de que na Teoria daFaute du Service a apuração da responsabilidade do Estado seria objetiva, o que, efetivamente constitui um erro.

Segundo Celso Antônio,38 outro fator que pode ter contribuído para o erro de se apontar a responsabilidade objetiva na Teoria da Faute du Service,é o fato de que em muitos casos de aplicação da Teoria da Culpa Administrativa existe uma verdadeira “presun- ção de culpa” da Administração. Essa presunção de culpa decorre do fato de que, às vezes, é impossível ao particular demonstrar de forma clara a culpa da Administração, cabendo uma verdadeira presunção de culpa pelo fato do serviço não haver funcionado corretamente. Nesses casos, a presunção de culpa dispensa o particular de demonstrá- la. No entanto, ainda assim não haverá responsabilidade objetiva, pois o Estado poderá demonstrar que agiu de forma diligente e responsável e ficará isento do dever de in- denizar.

Conclui-se, deste modo, que o dever estatal de indenização não decorre de qualquer falta, ausência ou má funcionamento do serviço público. Na verdade, somente haverá responsabilidade subjetiva do Estado segundo a Teoria da Culpa Administrativa, quando o serviço público não funcionar, funcionar mal ou funcionar atrasado em face de um padrão inaceitável para o administrado. De outro modo, estaríamos transmu- dando a Teoria daFaute du Service em uma espécie de teoria integral, iníqua e inapli- cável em razão do bom senso. Ora, se o Estado deve realizar um conjunto de atividades em função do bem-estar da coletividade e tem o dever de fazê-lo dentro de um padrão de eficiência e satisfação previamente estabelecido, é de todo absurdo pretender que tais atividades venham funcionar como uma perfeição absolutamente indene de quais- quer falhas ou imperfeições. No entanto, quando as atividades estatais fogem a um padrão aceitável de funcionamento desembocando em ausência completa de funcio- namento, atrasos insuportáveis ou mau funcionamento capazes de gerar danos diretos aos administrados, estaremos aí diante da aplicabilidade da Teoria da Faute du Ser- vice.

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No direito francês, onde foi desenvolvida a Teoria da Faute du Service, a doutrina pacificamente afirma que não é toda e qualquer omissão que vai levar automatica- mente a uma responsabilidade civil do Estado. No caso concreto, os Tribunais Adminis- trativos apreciarão o grau de gravidade (degré de gravité) da culpa do serviço, para então concluir-se pela condenação ou não do Estado. Nesse sentido, colhemos o ensi-

namento de Colliard39 e Duez,40 afirmando este último que somente no caso concreto será possível apurar a culpa do serviço realçando, assim, a natureza subjetiva desta teoria.

4.2 Teoria do Risco Administrativo41

Como resultado da evolução das Teorias da Responsabilidade Civil do Estado, surgiu a Teoria do Risco Administrativo, que atualmente é a teoria adotada pelo direito mo- derno naqueles países cujo direito administrativo sofreu influência do direito francês. No entanto, cumpre salientar que a adoção da Teoria do Risco Administrativo não eli-

minou a Teoria da Culpa Administrativa,42 de modo que, atualmente, as duas teorias coexistem pacificamente.

A Teoria do Risco Administrativo surgiu a partir da jurisprudência do Conselho de Es- tado Francês, na medida em que, se afastou da aplicação dos dispositivos do Código Civil de 1804 aos casos de responsabilidade civil do Estado, aplicando em seu lugar

princípios de direito público.43

O seu primeiro fundamento está no exercício da atividade administrativa, que, mesmo tendo por objeto a realização do bem-estar da coletividade, expõe essa coletividade a certos riscos. Considerando que a exposição das pessoas ao risco da atividade admi- nistrativa ocorre sem culpa ou dolo por parte do Estado, antes decorre do exercício normal de suas atividades, é razoável concluir que o eventual dano decorrente dessa atividade acarreta o dever de reparação, independentemente da existência de culpa ou dolo por parte do agente público. Este afastamento da apreciação do elemento subjetivo, isto é, da culpa para construir uma noção de responsabilidade essencial- mente calcada na causalidade, é o cerne da Teoria do Risco, segundo Themístocles

Cavalcanti.44

Com incrível simplicidade e coerência, Jean Rivero45 expõe este fundamento básico da Teoria do Risco Administrativo asseverando que:

A Administração, no exercício de sua missão, expôs certas pessoas a um risco particu- lar; o risco concretiza-se sem culpa da sua parte; o juiz impõe-lhe, em certas hipóte- ses, a obrigação de indenizar. O fato gerador consiste na realização do risco volunta- riamente criado.

O segundo fundamento da Teoria do Risco Administrativo é a solidariedade que deve existir por parte da sociedade beneficiária da ação do Estado, em face daquele parti- cular que sofreu o dano decorrente da ação pública. Como foi dito anteriormente, a atividade administrativa a cargo do Estado, composta de uma série de atividades das mais diversas e complexas, sendo muita delas potenciais causadoras de danos, como por exemplo, a energia elétrica, construção e manutenção de serviços de saneamento básico, saúde, segurança pública e defesa nacional, dentre outras. Essas atividades são desempenhadas em benefício da coletividade, de modo que todos usufruirão das van- tagens proporcionadas pelos serviços públicos. Caso a atividade administrativa, reali- zada em favor de toda a sociedade, cause um dano a uma pessoa, haverá uma situação

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de desigualdade insuportável, onde toda a sociedade usufruirá de um benefício que é o serviço público, e o lesado arcará com o ônus causado pela prestação do serviço. Nesse caso, o Estado deverá indenizar o lesado, utilizando recursos públicos recolhidos de toda a sociedade como forma de reequilibrar os ônus e benefícios da ação estatal.

Esse fundamento da Teoria do Risco Administrativo se deve, em grande parte, à in-

fluência do pensamento solidarista do sociólogo Émile Durkheim46 em torno de sua concepção de formação das sociedades e do próprio Estado. Para Durkheim o elemento chave que levou o homem a se organizar em núcleos sociopolíticos foi a solidariedade. Em um primeiro momento, pela semelhança de interesses e aptidões, os homens se agregaram em núcleos estatais mais simples e primitivos em torno de uma solidarie- dade mecânica. Em um segundo momento, pela diversidade de interesses e pela espe- cialização e divisão do trabalho, os homens se organizaram em complexas unidades sociopolíticas, como é o caso do Estado contemporâneo, movido pelo fenômeno da solidariedade orgânica.

Na França, Leon Duguit,47 sob forte influência de Émile Durkheim é também um dos entusiastas da Teoria do Risco, analisando o fundamento da solidariedade, a partir da sua concepção de serviço público afirma que:

Se a organização de um serviço ocasionam a um grupo ou a um indivíduo danos excep- cionais, um prejuízo particular, o patrimônio afetado a este serviço público deve su- portar a reparação, com a condição, sem embargo, de que haja uma relação de causa e efeito entre a organização e o funcionamento do serviço e o prejuízo.

Merecedor de destaque pela clareza com que expõe a matéria é o magistério de Patrí- cio Aylwin:48

Funda-se esta teoria no princípio constitucional de igual repartição dos encargos pú- blicos. Se, em conseqüência da atividade administrativa, um ou mais particulares so- frem danos especiais e anormais, que não são gerais e comuns da vida social, é claro que isso comporta uma ruptura do equilíbrio na distribuição dos encargos públicos em prejuízo daqueles indivíduos, que dessa maneira suportam em quantidade maior que o normal o peso da atividade estatal. Necessário é, pois, para que impere plenamente aquele princípio, restabelecer o equilíbrio, indenizando os prejudicados à custa dos cofres públicos.

No direito brasileiro, a explicação desse fundamento jurídico é realizada por Oswaldo Aranha49 com maestria e simplicidade:

A responsabilidade fundada na teoria do risco-proveito pressupõe uma ação positiva do Estado, que coloca terceiro em risco, pertinente à sua pessoa ou ao seu patrimônio, de ordem material, econômica ou social, em benefício da instituição governamental ou de coletividade em geral, que o atinge individualmente, e atenta contra a igualdade de todos diante dos encargos públicos, em lhe atribuindo danos anormais, acima dos comuns, inerentes à vida em sociedade.

Consiste em ato comissivo, positivo do agente público, em nome e por conta do Estado, que redunda em prejuízo a terceiro, a conseqüência do risco decorrente de sua ação,

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repita-se praticado tendo em vista proveito da instituição governamental ou da cole- tividade em geral. Jamais de omissão negativa. Esta (omissão negativa), em causando dano a terceiro, não se inclui na teoria risco-proveito. A responsabilidade por omissão só pode ocorrer na hipótese de culpa anônima, da organização e funcionamento do serviço, que não funcionou ou funcionou mal ou com atraso, e atinge os usuários do serviço ou os nele interessados.

O terceiro fundamento da Teoria do Risco Administrativo é a posição privilegiada da Administração em face do particular, sendo, portanto, um fundamento de natureza política e jurídica. É inegável a posição do Estado, detentor de maior poder, recursos e prerrogativas em comparação qualquer outra pessoa ou instituição interna. Nesse sentido, o cidadão e a pessoa jurídica privada são naturalmente inferiores, menos po- derosos e sujeitos às prerrogativas estatais. Desse modo, quando o particular é vítima de um dano causado por uma ação direta do Estado, não seria justo, muito menos razoável, que a essa pessoa fosse imposto o ônus de provar o dolo ou a culpa do agente público na realização daquele ato, para então obter a eventual reparação dos danos sofridos.

A grande virtude da Teoria do Risco Administrativo, ensina Themístocles Cavalcanti,50 é a sua preocupação com a reparação do dano, que converte em distribuição do dano por toda a sociedade, em última análise beneficiária da ação do Estado que trouxe o prejuízo ao administrado.

Por fim, vale lembrar que, embora a Teoria do Risco Administrativo dispense a neces- sidade de demonstrar o dolo ou a culpa do agente público, ela permite que o Estado demonstre a culpa da vítima para excluir ou minimizar a indenização, de idêntico modo, as situações de caso fortuito ou força maior podem afetar gravemente a confi- guração da responsabilidade civil do Estado, até mesmo para excluí-la.

Pela Teoria do Risco Administrativo, o Estado responde apenas pelos danos oriundos da ação imputada ao Poder Público, logo, quando ficar demonstrado que, não obstante a ação do Estado, a culpa pelo dano decorreu exclusivamente da vítima, não há que falar em responsabilidade civil do Estado; e quando ficar comprovado que a vítima concorreu para o evento danoso, o dever de indenizar será minimizado em seu quan- tum.

No Brasil, a partir da Constituição Federal de 1946, adotamos a Teoria do Risco Admi-

nistrativo, tendo o jurista e professor Mário Masagão51oferecido à subcomissão de an- teprojeto o texto que veio a ser aprovado na forma do art. 194. Segundo este disposi- tivo:

As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros. Caber-lhes-á ação re- gressiva contra os funcionários causadores do dano, quando tiver havido culpa destes.

Convém ressaltar que, não obstante a Teoria do Risco Administrativo tenha sido admi- tida genericamente pela Constituição de 1946, tivemos, em períodos anteriores a essa Carta, alguns diplomas legais que adotaram em nosso ordenamento a Teoria do Risco.

Cirne Lima,52 escrevendo em período anterior à Constituição de 1946 — a primeira edição de sua obra — afirma que “o risco, como base da responsabilidade da adminis- tração circunscreve-se a algumas matérias, apenas, em nosso ordenamento positivo”, mencionando a seguir a Lei nº 2.681, de 7 de outubro de 1912, que em seu art. 26

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estabelecia a responsabilidade civil objetiva da União, Estados e Municípios pelos da- nos decorrentes da gestão de suas estradas de ferro, somente dele se esquivando se comprovada a culpa exclusiva da vítima.

A Constituição Federal de 1967 manteve a responsabilidade objetiva das pessoas de direito público, conforme a Teoria do Risco Administrativo, exposto em seu art. 105. A Emenda Constitucional nº 01/69 manteve a redação do art. 105, renumerando-o como art. 107.

A Constituição Federal de 1988 manteve a adoção da Teoria do Risco Administrativo, já consagrada pela legislação anterior, bem como pela doutrina e jurisprudência, em seu art. 37, §6º, dispondo que:

As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a ter- ceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

4.3 Teoria do Risco Integral

A Teoria do Risco Integral, segundo Meirelles,53 surgiu como uma ideia absurda e exa- cerbada da responsabilidade do Estado. Por esse entendimento, o Estado responde por todo e qualquer dano causado a qualquer vítima, bastando que seja comprovado o nexo causal, e independentemente de culpa ou dolo da vítima, bem como de eventos internos e externos como o caso fortuito e a força maior.

Na aplicação das Teorias do Risco Administrativo e Risco Integral a Responsabilidade Civil do Estado é apurada objetivamente, portanto, independentemente da verificação de dolo ou culpa do agente público. A diferença entre as duas teorias, segundo Meirel-

les,54 reside no fato de que, na Teoria do Risco Administrativo, o Estado somente res- ponde pela atividade que pratica e que seja a causa eficiente do dano sofrido pela vítima, podendo em sua defesa arguir as cláusulas excludentes de responsabilidade civil. No caso da Teoria do Risco Integral, cabe ao Estado o dever de indenizar as víti- mas de danos, não sendo possível a ele defender-se alegando a existência de cláusulas excludentes de responsabilidade, como por exemplo, culpa exclusiva da vítima ou fato de terceiros. Por tal razão, a Teoria do Risco Integral se apresenta tão absurda que jamais foi adotada inteiramente em qualquer lugar do mundo.

Alguns doutrinadores, como é o caso de Yussef Cahali,55 não aceitam essa distinção entre as Teorias do Risco Administrativo e do Risco Integral, chegando a tratá-las como sinônimas.

O direito brasileiro jamais adotou de forma clara a Teoria do Risco Integral, na forma

como ela foi definida por Meirelles,56 como aquela que não admite causas excludentes de responsabilidade. No entanto, algumas legislações isoladas definiram situações es- pecíficas de responsabilidade civil do Estado, onde a sua responsabilidade estará con- figurada independentemente de qualquer possibilidade de causa excludente, tais são os casos de danos causados por acidentes nucleares, atos terroristas, atos de guerras e outros semelhantes.

A doutrina é praticamente unânime em afirmar que a responsabilidade decorrente de dano nuclear é regida entre nós pela Teoria do Risco Integral. O fundamento de tal posicionamento é o art. 21, inc. XXIII, alínea “d”, da CF/88, cuja redação diz: “a res- ponsabilidade civil por danos nucleares independe de culpa”. Aparentemente, o texto

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não deveria produzir tal interpretação, pois tal como está redigido, dá a entender que o referido dano será processado pela Teoria do Risco, nada mais. No entanto, conside- rando a posição majoritária da doutrina, adotamos este entendimento com apoio em

Lucas Furtado57 e Maria Sylvia Zanella Di Pietro.58

No dia 24 de setembro de 2001, ainda sob forte impacto do atentado terrorista ao World Trade Center nos Estados Unidos da América, o Governo brasileiro editou a Me- dida Provisória nº 2 de 2001, dispondo sobre a assunção pela União da responsabilidade civil perante terceiros no caso de atentados terroristas ou atos de guerra contra aero- naves de empresas aéreas brasileiras no Brasil ou no exterior. Aprovada pelo Congresso Nacional, a MP nº 02/2001 foi convertida na Lei nº 10.309 de 22 de novembro de 2001.

Posteriormente foi editada a MP nº 126 de 31 de julho de 2003, que foi convertida na Lei nº 10.744 de 9 de outubro de 2003. Tal lei, em seu art. 1º, autoriza a União,

na forma e critérios estabelecidos pelo Poder Executivo, a assumir despesas de res- ponsabilidades civis perante terceiros na hipótese da ocorrência de danos a bens e pessoas, passageiros ou não, provocados por atentados terroristas, atos de guerra ou eventos correlatos, ocorridos no Brasil ou no exterior, contra aeronaves de matrícula brasileira operadas por empresas brasileiras de transporte aéreo público, excluídas as empresas de táxi aéreo.

Para cobrir tais despesas foi fixado o montante global das despesas de responsabilida- des civis no equivalente em reais a US$1.000,000,000.00 (um bilhão de dólares dos Estados Unidos da América), excluídas, como se disse anteriormente, as empresas de táxi aéreo.

5 Atos comissivos e omissivos no direito brasileiro

A configuração da responsabilidade civil do Estado por atos comissivos não guarda mai- ores complicações. Sendo ela processada pela Teoria do Risco Administrativo, se faz necessária a observação de alguns requisitos básicos para sua configuração, sem os quais não será possível vislumbrar o dever do Estado de indenizar a suposta vítima.

Paul Duez59 aponta as seguintes condições de existência da responsabilidade civil do Estado: um ato danoso imputável ao Estado, um dano sofrido pelo administrado e uma relação de causa e efeito entre o ato do Estado e o dano sofrido pelo administrado.

A apreciação da responsabilidade civil do Estado em face de condutas omissivas, ainda traz alguns debates na doutrina e na jurisprudência. É possível verificar em relação a este tema a divisão da doutrina e da jurisprudência em duas correntes distintas.

A primeira corrente defende a tese de que a Teoria do Risco Administrativo, consa- grada no art. 37, §6º da CF/88, é aplicável indistintamente aos atos comissivos e omis- sivos do Poder Público. Dentre os defensores dessa corrente, defendendo a aplicação da Teoria do Risco Administrativo para os atos comissivos e omissivos, temos Meirel-

les,60 Yussef Cahali61 e Sergio Cavalieri.62 Para estes autores, no âmbito da responsabi- lidade civil do Estado, a regra é a Teoria do Risco Administrativo, onde a responsabili- dade é apurada objetivamente. Ademais, o próprio texto constitucional do art. 37, §6º da CF/88 não faz qualquer distinção entre a ação comissiva ou omissiva dos agentes públicos.

A segunda corrente sustenta a tese de que a Teoria do Risco Administrativo, consagrada pelo dispositivo do art. 37, §6º da CF/88, somente é aplicável aos atos comissivos do

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Poder Público, sendo que nos casos de omissão deverá ser aplicada a Teoria da Faute du Service, com apuração subjetiva da responsabilidade civil do Estado. Como parti-

dários dessa corrente temos Oswaldo Aranha,63 Celso Antônio,64 Maria Sylvia Di Pie- tro65

e Lucas Furtado.66 Para estes autores, o texto do art. 37, §6º da CF/88 somente é aplicável aos atos comissivos do Estado, pois se o Estado responde pelos atos praticados por seus agentes, mediante a aplicação da Teoria do Risco Administrativo, devemos entender que a omissão constitui uma não ação, portanto, diz Celso Antônio, “se o Estado não agiu, não pode, logicamente, ser ele o autor do dano”. Por tal razão, en- tendem esses autores que nos casos de atos omissivos é de se aplicar a Teoria da Faute du Service, sendo a responsabilidade civil do Estado apurada subjetivamente.

A existência de duas sistemáticas de responsabilidade civil para o Estado não deveria causar surpresa, razão da insistência de alguns autores no sentido da aplicação da Teoria do Risco para as ações e omissões do Estado constitui uma tentativa de pensa-

mento monista insustentável. Na doutrina francesa, Laubadère67 admite exatamente a coexistência de duas teorias para justificar a responsabilidade civil do Estado, sendo elas a Teoria da Faute du Service e a Teoria do Risque Administratif.

Diante da pluralidade de posições doutrinárias, optamos por nos filiar à teoria defen-

dida desde a década de 1960 por Oswaldo Aranha,68 e mais modernamente por Celso Antônio, Maria Sylvia Zanella Di Pietro e Lucas Furtado, entendendo que as disposições do art. 194 da Constituição Federal de 1946, e art. 105 da Constituição Federal de 1967 consagravam a responsabilidade civil do Estado pela Teoria do Risco Administrativo apenas para os atos comissivos. Considerando que o texto do atual art. 37, §6º, da Constituição Federal de 1988, manteve-se praticamente idêntico aos seus antecesso-

res, a lição de Oswaldo Aranha69 mantém-se atualizada, nos seguintes termos:

A responsabilidade fundada na teoria do risco-proveito pressupõe uma ação positiva do Estado, que coloca terceiro em risco, pertinente à sua pessoa ou ao seu patrimônio, de ordem material, econômica ou social, em benefício da instituição governamental ou de coletividade em geral, que o atinge individualmente, e atenta contra a igualdade de todos diante dos encargos públicos, em lhe atribuindo danos anormais, acima dos comuns, inerentes à vida em sociedade.

Consiste em ato comissivo, positivo do agente público, em nome e por conta do Estado, que redunda em prejuízo a terceiro, a consequência do risco decorrente de sua ação, repita-se praticado tendo em vista proveito da instituição governamental ou da cole- tividade em geral. Jamais de omissão negativa. Esta (omissão negativa), em causando dano a terceiro, não se inclui na teoria risco-proveito. A responsabilidade por omissão só pode ocorrer na hipótese de culpa anônima, da organização e funcionamento do serviço, que não funcionou ou funcionou mal ou com atraso, e atinge os usuários do serviço ou os nele interessados.

O pensamento esposado por Oswaldo Aranha não merece censura. A dicção do art. 37, §6º da CF/88, ao determinar que as pessoas jurídicas de direito público respondem pelos atos de seus agentes pressupõe verdadeiramente uma ação positiva, o que con- siste obviamente no ato de fazer alguma coisa cujo resultado venha ser um dano so- frido pelo administrado.

Não merece crédito a afirmação de que o art. 37, §6º, da CF/88 não fez a distinção entre o ato comissivo e omissivo, e, portanto, a Teoria do Risco Administrativo deve ser aplicada indistintamente a ambos os atos. Ora, o dispositivo constitucional em co- mento está fundado na teoria organicista de Otto Gierke que imputa a ação do agente

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público à pessoa jurídica em cuja estrutura está o órgão inserido. A imputação volitiva de que trata a teoria do órgão é a da vontade-ato, isto é, a vontade que se realiza concretamente por uma ação positiva, por um ato, por um fazer. A omissão é a não manifestação da vontade, portanto, a ausência da prática do ato. Se tal afirmação é verdadeira, não é possível imputar, segundo a teoria do órgão, a omissão pura e sim- ples do agente público ao Estado para fins de responsabilidade civil. Por fim, embora reconheçamos que a omissão causadora de dano possa dar azo à responsabilidade civil do Estado, não o será pela aplicação da Teoria do Risco Administrativo.

É de todo absurda a pretensão de responsabilizar uma pessoa qualquer, inclusive o Estado, por omissão da qual resulte um dano, se esta pessoa não tiver o dever de agir para evitar tal dano. É indubitável que a omissão da qual resulte um dano somente terá relevância para fins de responsabilidade civil se aquele que se omitiu tinha o dever de agir para evitar o dano. Caso o Poder Público tenha o dever de agir para evitar um determinado dano e não o faz na forma e medida determinada pelo direito, pratica ato ilícito, pois agiu contrariamente ao direito. Desse modo, verificada a omissão do Estado em relação a determinada situação onde deveria agir para evitar um dano, será necessária a perquirição das razões de tal omissão, a fim de verificar se ela efetiva- mente ocorreu, e por quais circunstâncias ocorreu. Aliás, neste sentido o STJ se mani- festou no julgamento do RESP nº 152.360/RS sob a relatoria do Min. Otávio de Noronha, afirmando no acórdão que “na hipótese de danos por omissão do Estado, a responsabi- lidade só tem lugar caso haja comportamento ilícito, ou seja, se omisso foi quando a lei impunha-lhe impedir o evento lesivo”.

Acerca do tema, Celso Antônio70 afirma que sendo a responsabilidade estatal por ilí- cito, ela é

necessariamente responsabilidade subjetiva, pois não há conduta ilícita do Estado (em- bora do particular possa haver) que não seja proveniente de negligência, imperícia ou imprudência (culpa) ou, então, deliberado propósito de violar a norma que o constituía em dada obrigação (dolo). Culpa e dolo são justamente as modalidades de responsabi- lidade subjetiva.

Daí a assertiva precisa de Oswaldo Aranha,71 afirmando que a responsabilidade por omissão só pode ocorrer na hipótese de culpa anônima, da organização e funciona- mento do serviço, que não funcionou ou funcionou mal ou com atraso, e, em conse- quência, atinge os usuários do serviço ou os nele interessados. Desse modo, é preciso analisar e perquirir acerca desse mau funcionamento do serviço público a fim de des- cobrir se houver culpa na organização, realização ou planejamento do serviço a ser realizado ou, ainda, se houve dolo do agente público responsável.

Advirta-se que no exame da negligência, imperícia ou imprudência no serviço, somente será possível responsabilizar o Estado se o mau funcionamento do serviço foi marcado por um padrão aquém do padrão legal razoável. Não é possível, pois, do ponto de vista racional estabelecer ou pretender estabelecer para qualquer atividade, inclusive para a atividade administrativa, um padrão de eficiência e efetividade absoluta e perfeita. Desse modo, será preciso verificar em cada caso se a omissão violou um padrão mínimo de funcionamento e de eficiência que deve marcar aquela atividade administrativa a fim de se concluir pela responsabilidade do Poder Público, sendo que tal análise já constitui o próprio elemento subjetivo (culpa ou dolo) da responsabilidade civil.

A jurisprudência dos Tribunais superiores guarda a mesma relação controvertida veri- ficada na doutrina. No Superior Tribunal de Justiça e também no Supremo Tribunal

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Federal, observamos acórdãos que adotam a tese da responsabilidade civil objetiva pela Teoria do Risco Administrativo, e, ao mesmo tempo, acórdãos que adotam a tese da responsabilidade civil subjetiva pela Teoria da Faute du Service (Teoria da Culpa do Serviço, Culpa Anônima ou Acidente Administrativo). Não obstante essa discrepân- cia

jurisprudencial, o Prof. Lucas Furtado72 também anota que é possível perceber uma sensível e clara tendência de aplicação da responsabilidade subjetiva pela jurispru- dência.

1 LAUBADÈRE, André. Traité élémentaire de droit administratif. Paris: L.G.D.J., 1953. p. 486.

2 RIVERO, Jean. Droit administratif. 3. ed. Paris: Dalloz, 1965. p. 237.

3 LAUBADÈRE, André de. Traité élémentaire de droit administratif. Paris: L.G.D.J., 1953. p. 484.

4 Tradução livre de: “Le prope de la souveraineté est de s’imposer à tous sans com- pensation”.

5 CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 21.

6 DUGUIT, Leon. Les transformations du droit public. Paris: Armand Colin, 1913. p. 225. Tradução livre de: C’est done em definitive l’État souverain qui crée le droit et dès lors on ne peut admettre qu’il puisse être responsable. Dans la concecption tra- ditionnelle la responsabilité implique une violation de droit; et qui crée le droit par un acte de sa volunté souveraine ne peut le violer. De même que dans les pays de monarquie absolue “le roi ne peut pas mal faire” et par conséquent ne peut pás res- ponsable, de même l’État démocratique qui n’est que la nation souveraine organiseé, ne peut pas mal faire, ne peut pas être responsable.

7 RIVERO, Jean. Droit administratif. 3. ed. Paris: Dalloz, 1965. p. 237.

8 RIVERO, Jean. Droit administratif. 3. ed. Paris: Dalloz, 1965. p. 240.

9 RIVERO, Jean. Droit administratif. 3. ed. Paris: Dalloz, 1965. p. 239.

10 FALLA, Fernando Garrido; OLEMDA, Alberto Palomar; HERMINIO, Losada Gon- zález. Tratado de derecho administrativo. 12. ed. Madrid: Tecnos, 2006. v. 2, p. 371.

11 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de derecho admi- nistrativo. 10. ed. Madrid: Thomson Civitas, 2006. p. 371.

12 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de derecho admi- nistrativo. 10. ed. Madrid: Thomson Civitas, 2006. p. 377.

13 MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1968. v. 2, p. 481.

14 CAVALCANTE, Amaro. Responsabilidade civil do Estado. Rio de Janeiro: Laemmert & Co., 1905. p. 502.

15 CRUZ, Alcides. Direito administrativo brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1914. p. 137.

16 MASAGÃO, Mário. Curso de direito administrativo. São Paulo: Max Limonad, 1960. v. 2, p. 317.

17 CASSAGNE, Juan Carlos. Derecho administrativo. 8. ed. Buenos Aires: Lexis Nexis, 2006. v. 1, p. 463.

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18 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 58.

19 DUEZ, Paul; DEBEYRE, Guy. Traité de droit administratif. Paris: Dalloz, 1952. p. 417.

20 MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1968. v. 1, p. 139-140.

21 CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 22.

22 CAVALCANTI, Themístocles Brandão. Tratado de direito administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1951. v. 6, p. 359.

23 ARAUJO NETTO, Edmir. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 719.

24 DUEZ, Paul; DEBEYRE, Guy. Traité de droit administratif. Paris: Dalloz, 1952. p. 418.

25 CAVALCANTE, Amaro. Responsabilidade civil do Estado. Rio de Janeiro: Laemmert & Co., 1905. p. 502.

26 CAVALCANTE, Amaro. Responsabilidade civil do Estado. Rio de Janeiro: Laemmert & Co., 1905. p. 503.

27 RIVERO, Jean. Droit administratif. 3. ed. Paris: Dalloz, 1965. p. 241.

28 SOUTY, Pierre. Recueil de jurisprudence en matiêre administrative. 5. ed. Paris: Domat Montchrestien, 1952. p. 15. Tradução livre de: “La responsabilité qui peut in- comber à l’État pour les dommages causés aux particuliers par le fait personnes qu’il emploie dans le service public ne peut être régie par les principes qui sont établis dans le Code Civil pour les rapports de particulier à particulier; cette responsabilité n’est ni générale, ni absolue; elle a ses régle spéciales qui varient suivant les besoins du service et la necessité de concilier les droits de l’État avec les droits privé”. Cf, DUEZ, Paul; DEBEYRE, Guy. Traité de droit administratif. Paris: Dalloz, 1952. p. 421.

29 LAUBADÈRE, André. Traité élémentaire de droit administratif. Paris: L.G.D.J., 1953. p. 484.

30 DUEZ, Paul; DEBEYRE, Guy. Traité de droit administratif. Paris: Dalloz, 1952. p. 420.

31 ZANOBINI, Guido. Corso di diritto ammistrativo. 5. ed. Milano: Dott A. Giufrè, 1947. v. 1, p. 262.

32 Quanto cumpre salientar que, não obstante girar em torno do serviço pú- blico, esta expressão aqui não é tomada em seu sentido técnico dentro dateoria do di- reito administrativo, mas sim como uma expressão genérica que cuida da atividade es- tatal como um todo, conforme ensinamento deCassagne (CASSAGNE, Juan Carlos. De- recho administrativo. 8. ed. Buenos Aires: Lexis Nexis, 2006. v. 1, p. 464).

33 MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1968. v. 2, p. 482.

34 LAUBADÈRE, André. Traité élémentaire de droit administratif. Paris: L.G.D.J., 1953. p. 488.

35 DUEZ, Paul; DEBEYRE, Guy. Traité de droit administratif. Paris: Dalloz, 1952. p. 423- 426.

36 MELLO, Oswlado Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1969. v. 2, p. 482.

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37 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 960.

38 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 961.

39 COLLIARD, Claude-Albert. Cours d’instituitions administratives. Paris: Edição do Au- tor, 1962.

40 DUEZ, Paul; DEBEYRE, Guy. Traité de droit administratif. Paris: Dalloz, 1952. p. 421.

41 Alguns autores denominam a teoria do risco administrativo de teoria da responsabi- lidade objetiva, outros tratam as duas expressões comosinônimas. Por teoria, enten- demos o conjunto coerente de conceitos e proposições que procura explicar, ao me- nos, parte de uma realidade. Nessesentido, a reunião de um conjunto próprio de con- ceitos e princípios para explicar sob outro ângulo a responsabilidade do Es- tado é uma teoria. Já omodo de aferição da responsabilidade, subjetiva ou obje- tiva, em cada teoria é uma discussão à parte. As teorias civilistas tentam explicar ares- ponsabilidade civil do Estado, sendo a sua verificação realizada de forma subjetiva (te- oria dos atos de império e atos de gestão e teoria do culpacivil — responsabilidade sub- jetiva). Já as teorias publicistas tanto admitem a responsabilidade apu- rada de forma subjetiva, quanto de forma objetiva(teoria da culpa administra- tiva — responsabilidade subjetiva; teorias do risco administrativo e teoria do risco in- tegral — responsabilidade objetiva).Por essa razão, preferimos falar em teo- ria do risco administrativo, sendo a apuração da responsabilidade reali- zada de forma objetiva. Nesse sentido,afirmou o Ministro Celso de Mello no julga- mento do Recurso Extraordinário nº 109.615/RJ: “A teoria do risco administrativo, con- sagrada emsucessivos documentos constitucionais brasileiros desde a Carta Polí- tica de 1946, confere fundamento doutrinário à responsabilidade civil objetivado Po- der Público pelos danos a que os agentes públicos houve- rem dado causa, por ação ou por omissão”. Na verdade a teoria do riscoadministra- tivo é que permite a aferição da responsabilidade do Estado de forma objetiva.

42 LAUBADÈRE, André. Traité élémentaire de droit administratif. Paris: L.G.D.J., 1953. p. 490.

43 DUEZ, Paul; DEBEYRE, Guy. Traité de droit administratif. Paris: Dalloz, 1952. p. 434.

44 CAVALCANTI, Themístocles Brandão. Tratado de direito administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1951. v. 6, p. 372.

45 RIVERO, Jean. Droit administratif. 3. ed. Paris: Dalloz, 1965. p. 252.

46 DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Tradução de Paulo Neves. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 2, 13; DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 34, 36-37.

47 DUGUIT, Leon. Les transformations du droit public. Paris: Librairie Armand Colin, 1913. p. 233. Tradução livre de: “si l’organization ou le functionnement d’un service public occasionne à un groupe ou un individu des charges exceptionnelles, un préjudice particulier, le patrimoine affecté à ce service public devra suporter la réparation du préjudice, à la condition toutefois qu’il y ait un rapport de cause à effet entre l’or- ganization ou le functionnement du service et le préjudice”.

48 AYLWIN, Patrício. Manual de derecho administrativo. Santiago: Jurídica do Chile, 1952. p. 267.

49 MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1968. v. 2, p. 487.

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50 CAVALCANTI, Themístocles Brandão. Tratado de direito administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1951. v. 6, p. 391.

51 MASAGÃO, Mário. Curso de direito administrativo. São Paulo: Max Limonad, 1960. v. 2, p. 322.

52 LIMA, Ruy Cirne. Princípios de direito administrativo brasileiro. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 1954. p. 203.

53 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 30. ed. São Paulo: Malhei- ros, 2005. p. 632.

54 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 30. ed. São Paulo: Malhei- ros, 2005. p. 632.

55 CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do estado. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 41.

56 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 30. ed. São Paulo: Malhei- ros, 2005. p. 632.

57 FURTADO, Lucas Rocha. Curso de direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 1007.

58 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2007. p. 611.

59 DUEZ, Paul; DEBEYRE, Guy. Traité de droit administratif. Paris: Dalloz, 1952. p. 419.

60 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 33. ed. São Paulo: Malhei- ros, 2007. p. 656.

61 CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 314.

62 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 230.

63 MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1968. v. 2, p. 487.

64 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 997.

65 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 618.

66 FURTADO, Lucas Rocha. Curso de direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 1029.

67 LAUBADÈRE, André. Traité élémentaire de droit administratif. Paris: L.G.D.J., 1953. p. 485.

68 MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1968. v. 2, p. 487.

69 MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1968. v. 2, p. 487.

70 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, São Paulo, 2008. p. 997.

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71 MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1968. v. 2, p. 487.

72 FURTADO, Lucas Rocha. Curso de direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 1032.

Currículo Resumido

Gabriel de Britto Campos

Mestrando em direito e políticas públicas pelo UNICEUB. Professor de direito adminis- trativo. Procurador do Distrito Federal. Advogado.

Como citar este artigo

CAMPOS, Gabriel de Britto. Evolução histórica da responsabilidade civil do Estado. Fó- rum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 11, n. 126, p. 43-57, ago. 2011. Material da 7ª aula da Disciplina: Direito Administrativo, ministrada no Curso de Pós Graduação em Direito Público - Anhanguera-Uniderp | Rede LFG.