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Polít ic a s cultur ais no Br a sil

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u niv ersidade feder al da bahia

reitor Naomar Monteiro de Almeida Filho

vice reitor Francisco José Gomes Mesquita

editor a da u niv ersidade feder al da bahia

diretor a Flávia Goullart Mota Garcia Rosa

cult — centro de est udos multidisciplinares em cult ur a

coordenação Antonio Albino Canelas Rubim

vice-coordenação Gisele Marchiori Nussbaumer

conselho deliber ativo

Antonio Albino Canelas Rubim Ângela de Andrade

Gisele Marchiori Nussbaumer Lindinalva Rubim Mariella Pitombo Vieira

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A n t o n i o A l b i n o C a n e l a s R u b i m

& A l e x a n d r e B a r b a l h o ( O r g s . )

Polít ic a s cultur ais no Br a sil

c o l e ç ã o c u l t

e d u f b a

s a l v a d o r , 2 0 0 7

cult.vol2.v2.0.indb 3cult.vol2.v2.0.indb 3 5/15/07 9:46:07 AM5/15/07 9:46:07 AM

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© 2007, by autores

Direitos para esta edição cedidos à eduf ba.

Feito o depósito legal.

revisão e nor malização Flávia Goullart Mota Garcia Rosa

foto da capa João Milet Meirelles

P769 Políticas culturais no Brasil / organização Antonio Albino Canelas

Rubim. —Salvador : edufba , 2007.

000 p. — (Coleção cult)

isbn 978-85-232-0453-2 (broch.)

1. Cultura – Brasil. 2. Política e cultura – Brasil. 3. Brasil – Política

cultural. 4. Arte e Estado. i. Rubim, Antonio Albino Canelas. ii. Série.

CDU – 316.72/.74

CDD – 306

edufba Rua Barão de Geremoabo, s/n Campus de Ondina,

Salvador – Bahia cep 40170 290 tel/fax 71 3263 6164

www.eduf ba.uf ba.br eduf ba@uf ba.br

biblioteca centr al reitor macedo costa — ufba

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Apr esent aç ão

As experiências de políticas públicas de cultura no Brasil, ape-sar dos esparsos recursos materiais e humanos que historica-mente foram destinados ao setor, já constituem um corpo con-sistente para a pesquisa e a refl exão acadêmicas.

Desde a criação do Departamento de Cultura de São Paulo e a atuação do governo Vargas nos anos 1930/40, passando pela Política Nacional de Cultura da Ditadura Militar nos anos 1970, pela criação do Ministério da Cultura na redemocratização dos anos 1980, até chegar às atuais transformações promovidas pela gestão de Gilberto Gil, entre outras referências possíveis, várias questões se colocam ao pesquisador de diversas discipli-

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nas, ou, de preferência, de uma perspectiva multidisciplinar.No entanto, um levantamento bibliográfi co sobre o tema se

revela bastante acanhado, como é possível constatar no sítio do cult (http://www.cult.uf ba.br/arquivos/bibliografi as_poli-ticasculturais_brasil_01maio06.pdf ). É uma produção recente e seus títulos pioneiros datam dos anos 1980, com visível cres-cimento na década seguinte. Assim, ainda não se estabeleceu em nosso meio social um capital crítica sobre política cultural com a densidade que encontramos na Colômbia, no México, na França ou na Austrália, para citarmos exemplos bem distintos. O que é surpreendente quando observamos de nossa tradição em estudos sobre cultura e poder.

A idéia desta coletânea é motivada por este diagnóstico. Ela busca ampliar a bibliografi a e a discussão sobre as políticas pú-blicas de cultura no Brasil. Mas também responde à demanda de novos grupos de pesquisa, ou de trabalhos isolados de pes-quisadores que, em diversos estados do país têm se dedicado ao tema, não apenas em universidades, mas também em outras instituições públicas e privadas.

Estas duas motivações, entre outras, revelam-se na diver-sidade de análises diacrônicas e sincrônicas sobre as relações entre governo federal e cultura. E os diferentes sotaques des-tas abordagens proporcionados por pesquisadores atuantes em várias partes do país.

Aos autores convidados, foi enviado um breve roteiro: para pautar a linha editorial da coletânea. Os textos deveriam res-ponder a um ou mais dos seguintes desafi os relativos às políti-cas culturais estabelecidas em âmbito federal: Elaborar uma visão geral acerca das políticas culturais;Traçar periodizações;Identifi car seus pontos fortes;Identifi car seus impasses, defi ciências e difi culdades;Apontar as prioridades de uma política cultural nacional.

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Na medida em que o país consolida seu sentido republicano e democrático, e valoriza, cada vez mais a sua cultura, acredi-tamos que o debate proporcionado pela leitura dos textos aqui elencados servirá para fortalecer não apenas as políticas públi-cas voltadas para a cultura – entendida como direito básico –, mas também as políticas afi ns, como educação e comunicação. Todas elas, políticas fundantes para a constituição de um país mais justo e solidário.

A n t o n i o A l b i n o C a n e l a s R u b i mA l e x a n d r e B a r b a l h o

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s u m á r i o

A n t o n i o A l b i n o C a n e l a s R u b i m

P o l ít i c a s c ultur a i s no B r a s i l :

t r i s t e s t r a di ç õ e s , e n o r m e s d e s a f i o s

G e s t ã o o u G e s t a ç ã o P úb l i c a d a C u l t u r a :

a l g um a s r e f l e x õ e s s o b r e o p a p e l d o E s t a d o

n a p r o du ç ã o c ul t ur a l c o nt e mp o r â n e a

D u r v a l M u n i z d e A l b u q u e r q u e J ú n i o r

P o l ít i c a s c ultur a i s no B r a s i l :

i d e nt i d a d e e d i v e r s i d a d e s e m d i f e r e n ç a

A l e x a n d r e B a r b a l h o

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M a r t a P o r t o

Cultur a p a r a a p o l í t i c a c ultur a l

A p o l í t i c a c ultur a l c o mo p o l í t i c a p úb l ic a

A n i t a S i m i s

P o l ít i c a s c ultur a i s no B r a s i l :

b a l a n ç o & p e r s p e c t i v a s

L i a c a l a b r e

109

I s a u r a B o t e l h o

A p o l ít i c a c ultur a l & o p l a n o d a s i d é i a s

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*Professor da Faculdade de Comunicação e do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia. Coordenador do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (cult). Pesquisador do cnpq.

A n t o n i o A l b i n o C a n e l a s R u b i m *

Polít ic a s cultur ais no Br a sil :tr istes tr adiçõ es , enormes des af ios

A história das políticas culturais do Estado nacional brasileiro pode ser condensada pelo acionamento de expressões como: autoritarismo, caráter tardio, descontinuidade, desatenção, paradoxos, impasses e desafi os. Este texto busca realizar uma viagem, ain-da que panorâmica, por esta trajetória, atento aos di-lemas, passados e presentes, que a conformam.

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1 2 a n t o n i o a l b i n o c a n e l a s r u b i m

A bibliografi a sobre políticas culturais no Brasil, que pode ser encontrada no sítio www.cult.uf ba.br, caracteriza-se pela dispersão em duas perspectivas. Primeiro, ela provém das mais diversas áreas disciplinares (História, Sociologia, Comunica-ção, Antropologia, Educação, Ciência Política, Administração, Museologia, Letras, Economia, Arquitetura, Artes etc.) e mes-mo multidisciplinares, o que difi culta o trabalho de pesquisa e indica a ausência de uma tradição constituída e compartilhada, que conforme um pólo de gravitação acadêmico. Segundo, ela trata de maneira desigual os diferentes momentos da história das políticas culturais nacionais. Assim, para alguns períodos proliferam estudos, enquanto outros se encontram carente de investigações. Além disto, até hoje, não foram desenvolvi-das tentativas mais sistemáticas e rigorosas de compreender toda sua trajetória histórica. As tentativas de Márcio de Souza (2000) e José Álvaro Moises (2001) não podem ser considera-das exitosas nesta perspectiva.

A viagem proposta através das políticas culturais brasileiras está possibilitada e sinalizada por esta bibliografi a: dispersa, fragmentada, desigual e impregnada de atenções e silêncios. Por óbvio, ela retém estas marcas em seu itinerário. Mas, apesar das limitações da viagem, parece possível traçar um percurso primeiro do que foram e são as políticas culturais nacionais no Brasil, seus dilemas e desafi os.

P r e â m b u l o s

Apesar de Márcio de Souza, escritor amazônico, ter proposto inaugurar as políticas culturais do Brasil no período do Se-gundo Império (souza, 2000), devido à postura, por vezes, ilustrada e de mecenas que assume o imperador Pedro ii, é de-masiado caracterizar tal atitude como sendo inauguradora da política cultural da nação. O próprio conceito de políticas cul-

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turais exige bem mais que isto. Como as noções de políticas culturais são múltiplas, opera-se neste texto com o conceito escolhido por Nestor García Canclini. Ele assinala:

Los estudios recientes tienden a incluir bajo este concepto al conjunto de

intervenciones realizadas por el estado, las instituciones civiles y los gru-

pos comunitarios organizados a fi n de orientar el desarrollo simbólico,

satisfacer las necesidades culturales de la población y obtener consenso

para un tipo de orden o transformación social. Pero esta manera de ca-

racterizar el ámbito de las políticas culturales necesita ser ampliada te-

niendo en cuenta el carácter transnacional de los procesos simbólicos y

materiales en la actualidad (canclini, 2005, p. 78)

Neste horizonte teórico-conceitual, falar em políticas culturais implica, dentre outros requisitos, em, pelo menos: interven-ções conjuntas e sistemáticas; atores coletivos e metas. Vital no mundo atual, o caráter transnacional pode ser desconside-rado para o século xix. Outras exigências, sem dúvida, podem e devem ser reivindicadas em uma formulação mais plena da noção. Mas este empreendimento, além de não ser adequado ao propósito deste trabalho, já foi desenvolvido em texto anterior que pretende delimitar a abrangência da noção de políticas cul-turais (rubim, 2006).

Por certo, com base nestas premissas teórico-conceituais não se pode pensar a inauguração das políticas culturais nacionais no Segundo Império, muito menos no Brasil Colônia ou mes-mo na chamada República Velha (1889–1930). Tais exigências interditam que o nascimento das políticas culturais no Brasil esteja situado no tempo colonial, caracterizado sempre pelo obscurantismo da monarquia portuguesa que negava as cultu-ras indígena e africana e bloqueava a ocidental, pois a colônia sempre esteve submetida a controles muito rigorosos como: proibição da instalação de imprensas; censura a livros e jornais

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vindos de fora; interdição ao desenvolvimento da educação, em especial das universidades etc. A reversão deste quadro a partir de 1808, com a fuga da Família Real para o Brasil, decorrente da invasão das tropas de Napoleão, não indica uma mudança em perspectiva mais civilizada, mas apenas o declínio do poder colonial que prenuncia a independência do país.

A oligárquica república brasileira dos fi nais do século xix até os anos 30 também não teve condições de forjar um cenário propício para o surgimento das políticas culturais nacionais. Apenas foram realizadas ações culturais pontuais, em espe-cial, na área de patrimônio, preocupação presente em alguns estados. Nada que possa ser tomado como uma efetiva política cultural.

Conforma-se assim, uma primeira triste tradição no país, em decorrência de seu perfi l autoritário e elitista: o difi culto-so desenvolvimento da cultura (coutinho, 2000) e o caráter tardio das políticas culturais no Brasil.

I n a u g u r a ç õ e s

Os anos 30 do século xx trazem alterações políticas, econômicas e culturais signifi cativas. A velha república encontra-se em ruína. As classes médias e o proletariado aparecem na cena política. A emergente burguesia disputa espaço político com as oligarquias. A “Revolução” de 30 conforma mais uma transição pelo alto, com rupturas e continuidades controladas. O novo regime represen-ta um pacto de compromisso entre estes novos atores e as velhas elites agrárias, no qual inovação e conservação lutam sem emba-tes radicais. Industrialização; urbanização; modernismo cultural e construção do estado nacional centralizado, política e adminis-trativamente, são algumas das faces do renovado país.

Neste contexto de mudança societária, ainda que plena de limitações, dois experimentos, praticamente simultâneos,

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inauguram as políticas culturais no Brasil. Seus patamares são distintos, mas ambos terão repercussões essenciais para este instante inicial e, mais que isto, para toda sua trajetória no país. Tais experimentos são: a passagem de Mário de Andrade pelo Departamento de Cultura da Prefeitura da cidade de São Paulo (1935–1938) e a implantação do Ministério da Educação e Saú-de, em 1930, e mais especifi camente a presença de Gustavo Ca-panema, à frente deste ministério de 1934 até 1945.

Pode parecer surpreendente que uma experiência municipal seja reivindicada em um panorama histórico acerca das polí-ticas culturais nacionais. Acontece que ela, por suas práticas e ideários, transcende em muito as fronteiras paulistanas. Não por acaso este é um dos episódios mais estudados das políti-cas culturais no Brasil (abdanur,1992; barbato jr, 2004; chagas, 2003; raffaini, 2001; schelling,1991).

Sem pretender esgotar suas contribuições, pode-se afi rmar que Mário de Andrade inova em: 1. estabelecer uma interven-ção estatal sistemática abrangendo diferentes áreas da cultura; 2. pensar a cultura como algo “tão vital como o pão”; 3. propor uma defi nição ampla de cultura que extrapola as belas artes, sem desconsiderá-las, e que abarca, dentre outras, as culturas popu-lares; 4. assumir o patrimônio não só como material, tangível e possuído pelas elites, mas também como algo imaterial, intangí-vel e pertinente aos diferentes estratos da sociedade; 5. patroci-nar duas missões etnográfi cas às regiões amazônica e nordestina para pesquisar suas populações, deslocadas do eixo dinâmico do país e da sua jurisdição administrativa, mas possuidoras de signifi cativos acervos culturais (modos de vida e de produção, valores sociais, histórias, religiões, lendas, mitos, narrativas, li-teraturas, músicas, danças etc.).

A contraposição entre a triste tradição e todas estas iniciati-vas (e, por certo, outras não anotadas acima) dão a dimensão do impacto revolucionário do experimento de Mário de Andrade,

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ainda que não imune a problemas e defi ciências. Dentre ou-tras críticas ao seu projeto, cabe destacar: uma certa visão ilu-minista de imposição da cultura de elite e a desatenção com o tema do analfabetismo em uma sociedade tão excludente com a brasileira, em especial nos anos 30 (raffaini, 2001). Mas tais limitações não podem obscurecer a exuberância e criatividade deste marco inicial das políticas culturais no Brasil.

O movimento inaugurador foi simultaneamente construído pelo ministro Gustavo Capanema, ao qual estava subordinado o setor nacional da cultura durante o governo Getúlio Vargas. Esteticamente modernista e politicamente conservador, ele continuou no ministério depois da guinada autoritária de Var-gas em 1937, com a implantação da ditadura do Estado Novo. Apesar disto, acolheu muitos intelectuais e artistas progres-sistas, a exemplo de Carlos Drummond de Andrade, seu chefe de gabinete inclusive, Cândido Portinari, Oscar Niemeyer etc (ramírez nieto, 2000).

Pela primeira vez, o estado nacional realizava um conjunto de intervenções na área da cultura, que articulava uma atuação “negativa” – opressão, repressão e censura próprias de qual-quer ditadura (oliveira, velloso e gomes, 1982; vello-so, 1987 e garcia, 1982) – com outra “afi rmativa”, através de formulações, práticas, legislações e (novas) organizações de cultura. O poderoso Departamento de Informação e Propa-ganda (dip) é uma instituição singular nesta política cultural, pois conjuga como ninguém a face “negativa” (censura, etc.) e a “afi rmativa” (produção de materiais em diferentes registros), buscando, simultaneamente, reprimir e cooptar o meio cultu-ral, seus intelectuais, artistas e criadores.

A política cultural implantada valorizava o nacionalismo, a brasilidade, a harmonia entre as classes sociais, o trabalho e o caráter mestiço do povo brasileiro. A potência desta atua-ção pode ser dimensionada, por exemplo, pela quantidade de

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instituições criadas, em sua maioria já no período ditatorial. Dentre outras, podem ser citadas: Superintendência de Educa-ção Musical e Artística; Instituto Nacional de Cinema Educa-tivo (1936); Serviço de Radiodifusão Educativa (1936); Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1937); Serviço Nacional de Teatro (1937); Instituto Nacional do Livro (1937) e Conselho Nacional de Cultura (1938). Também não é mera ca-sualidade que este período esteja entre os mais contemplados em termos de estudos.

Cabe destacar o sphan, pois ele será a instituição emblemá-tica da política cultural no país até o fi nal dos anos 60 e início da década seguinte. Criado a partir de uma proposta encomen-dada por Gustavo Capanema a Mário de Andrade, mas não ple-namente aceita (miceli, 2001, p. 360; chagas, 2003 e fal-cão, 1984, p. 29), o sphan acolheu modernistas, a começar pelo seu quase eterno dirigente: Rodrigo de Melo Franco (1937 até sua morte nos anos 60). O Serviço, depois Instituto ou Se-cretaria, opta pela preservação do patrimônio de pedra e cal, de cultura branca, de estética barroca e teor monumental. Em ge-ral: igrejas católicas, fortes e palácios do período colonial. Com isto, o sphan circunscreve a área de atuação, dilui possíveis polêmicas, desenvolve sua competência técnica qualifi cada e profi ssionaliza seu pessoal. Tais atitudes, em conjunto com seu “insulamento institucional”, irão garantir a independência e a impressionante continuidade organizacional e administrativa da entidade e de seu dirigente (miceli, 2001, p. 362) e transfor-mar o sphan em algo exemplar para as políticas culturais no Brasil e em muitos outros países.

Entretanto, sua força é também sua fraqueza. A opção eli-tista, com forte viés classista; a não interação com as comu-nidades e públicos interessados nos sítios patrimoniais pre-servados e mesmo o imobilismo, advindo desta estabilidade, impediram o sphan de acompanhar os desenvolvimentos

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contemporâneos na área de patrimônio e o colocaram como alvo de severas críticas (miceli, 2001 e gonçalves, 1996).

A gestão inauguradora de Vargas/ Capanema cria uma outra e difícil tradição no país: a forte relação entre gover-nos autoritários e políticas culturais. Ela irá marcar de modo substantivo e problemático a história brasileira das políticas culturais nacionais.

P a r a d o x o s

O momento posterior, o interregno democrático de 1945 a 1964, reafi rma pela negativa esta triste tradição. O esplendoro-so desenvolvimento da cultura brasileira que acontece no pe-ríodo, em praticamente todas as suas áreas – arquitetura, artes plásticas, ciência, cinema, cultura popular, dança, fotografi a, humanidades, literatura, música, rádio, teatro etc – não tem qualquer correspondência com o que ocorre nas políticas cul-turais do Estado brasileiro. Elas, com exceção das intervenções do sphan, praticamente inexistem.

Para não reter apenas o silêncio, cabe lembrar algumas ações pontuais do período democrático. A instalação do Ministério da Educação e Cultura, em 1953; a expansão das universidades públicas nacionais; a Campanha de Defesa do Folclore e a cria-ção do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (iseb), órgão vinculado ao mec. O iseb dedica-se a estudos, pesquisas e re-fl exões sobre a realidade brasileira e será o maior produtor do ideário nacional-desenvolvimentista no país, uma verdadeira “fábrica de ideologias” (toledo, 1977). Apesar do iseb não ser estritamente uma instituição estatal voltada para a formulação e implementação de políticas culturais, ele terá um enorme impacto no campo cultural, através da invenção de um ima-ginário social que irá conformar o cenário político-cultural que perpassa o pensamento e a ação de governantes (Juscelino

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p o l í t i c a s c u l t u r a i s n o b r a s i l 1 9

Kubitschek e Brasília são os exemplos imediatamente lembra-dos) e as mentes e corações dos criadores e suas obras intelec-tuais, científi cas e artísticas. Ou seja, confi gura parte relevante da cultura brasileira daqueles anos.

A atuação de outras instituições, em geral não estatais, deve ser recordada por sua repercussão na área cultural e impacto sobre a atuação do estado brasileiro. Os famosos Centros Po-pulares de Cultura da União Nacional dos Estudantes, insta-lados no Rio de Janeiro (1961) e em outras cidades, ainda que com vida curta, pois são fechados em 1964, como também o iseb, agitam os sonhos políticos e culturais da juventude bra-sileira, em especial da universitária (berlink, 1984 e bar-cellos, 1994). Neste movimento formam-se muitos dos in-telectuais e artistas vigentes ainda hoje no cenário cultural do país. Entretanto, a avaliação dos cpcs e inclusive sua relação com a chamada cultura nacional-popular, que marca aquele momento histórico e mesmo os anos imediatos pós-golpe mi-litar (1964–1968), é bastante polêmica e controversa (chaui, 1983; ortiz, 1986 e coutinho, 2000).

Outra intervenção a ser rememorada é o Movimento de Cul-tura Popular, desencadeado na cidade de Recife (1960) e depois no estado de Pernambuco (1963), pelos governos municipal e estadual de Miguel Arraes, no qual aparece a notável fi gura de Paulo Freire com seu método pedagógico que conjuga educação e cultura (schelling, 1991). O movimento expandiu-se para outros estados e quando, em 1964, ele tinha sido assumido pelo Governo Federal foi bloqueado pelo Golpe Militar.

No âmbito conservador, algumas instituições também de-vem ser lembradas, a exemplo da estatal Escola Superior de Guerra pela construção dos ideários golpistas que terminam por destruir a frágil democracia brasileira e instalar a ditadura cívico-militar em 1964, com fortes e problemáticos impactos sobre a cultura.

cult.vol2.v2.0.indb 19cult.vol2.v2.0.indb 19 5/15/07 9:46:15 AM5/15/07 9:46:15 AM

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2 0 a n t o n i o a l b i n o c a n e l a s r u b i m

R e a f i r m a ç õ e sA preocupante tradição retorna e mais uma vez autoritarismo e políticas culturais vão estar associados. Novamente uma dita-dura no Brasil aciona ativamente as políticas culturais. Mas tal atitude tem diferenças que correspondem aos três momentos distintos do golpe cívico-militar. De 1964 até 1968, a ditadura atinge principalmente os setores populares e militantes envol-vidos com estes segmentos. Apesar da repressão e da censura, ainda não sistemática, acontecem manifestações políticas con-tra o regime, em especial aquelas dos setores médios, e existe todo um movimento cultural, uma espécie de fl oração tardia dos anos nacionais-populares anteriores, hegemonicamente de esquerda, mas com audiência circunscrita às classes médias, como assinalou Roberto Schwarz (1978).

Além da violência, a ditadura age estimulando a transição que começa a se operar nestes anos com a passagem da predo-minância de circuito cultural escolar-universitário para um dominado por uma dinâmica de cultura midiatizada (rubim e rubim, 2004). Com este objetivo, a instalação da infra-estrutu-ra de telecomunicações; a criação de empresas com a Telebrás e a Embratel e a implantação de uma lógica de indústria cultural são realizações dos governos militares, que controlam rigida-mente os meios audiovisuais e buscam integrar simbolicamen-te o país, de acordo com a política de “segurança nacional”.

O fi lme Bye bye Brasil de Cacá Diegues expressa de maneira contundente este movimento de integração simbólica, via te-levisão. Na contramão, intelectuais “tradicionais”, como diria Gramsci, que apóiam o regime, instalados no recém instituído Conselho Federal de Cultura (1966), demonstram sua preocu-pação com a penetração da mídia e seu impacto sobre as cultu-ras regionais e populares, concebidas por eles em perspectiva nitidamente conservadora (ortiz, 1986). Via Conselho Fede-ral de Cultura, o regime militar tenta estimular a criação de se-

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cretarias estaduais de cultura no país. O primeiro exemplo, é a Secretaria de Cultura do Ceará, criada em 1966.

O segundo momento (fi nal de 1968–1974), o mais brutal da ditadura, é dominado pela violência, prisões, tortura, as-sassinatos e censura sistemática bloqueando toda a dinâmica cultural anterior. Época de vazio cultural, apenas contrariado por projetos culturais e estéticas marginais, marcado pela im-posição crescente de uma cultura midiática controlada e repro-dutora da ideologia ofi cial, mas tecnicamente sofi sticada, em especial no seu olhar televisivo.

Com a relativa derrota da ditadura nas eleições legislativas de 1974, abre-se o terceiro momento que termina com o fi nal do regime militar no início de 1985. Tal período se caracteriza pela “distensão lenta e gradual” (General Geisel) e pela “abertura” (General Figueiredo). Isto é, por uma longa transição cheia de altos e baixos, avanços e recuos, controles e descontroles. A vio-lência diminui e o regime passa a ter inúmeras iniciativas nas áreas política e cultural. A tradição da relação entre autoritaris-mo e políticas culturais é retomada em toda sua amplitude. O regime para realizar a transição sob sua hegemonia busca co-optar os profi ssionais da cultura (ortiz, 1986, p.85), inclusive através da ampliação de investimentos na área. Pela primeira vez o país terá um Plano Nacional de Cultura (1975) e inúmeras instituições culturais são criadas (miceli, 1984). Dentre elas: Fundação Nacional das Artes (1975), Centro Nacional de Refe-rência Cultural (1975), Conselho Nacional de Cinema (1976), radiobrás (1976), Fundação Pró-Memória (1979).

A ditadura também abre-se às dinâmicas advindas do rico contexto internacional, ocasionado pelo conjunto de encontros, realizados pela unesco, sobre políticas culturais, em 1970, 1972, 1973, 1975, 1978 e 1982, que repercute na América Latina (serfaty, 1993) e no Brasil (botelho, 2000, p. 89), possibili-tando a renovação das políticas culturais nacionais, mesmo com

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os limites estabelecidos pela persistência da ditadura.Destaque especial para dois movimentos acontecidos neste

rico período de políticas culturais. Primeiro: a criação e o de-senvolvimento da funarte, a partir da experiência do Plano de Ação Cultural (1973), outra das instituições emblemáticas de políticas culturais no Brasil. A funarte, inicialmente uma agência de fi nanciamento de projetos culturais, paulatinamen-te consolida-se como um organismo com intervenções bas-tante inovadoras no campo cultural, com a constituição de um corpo técnico qualifi cado, em geral oriundo das próprias áreas culturais, e na tentativa de superar a lógica fi siológica, através de uma análise de mérito dos projetos realizados e fi nanciados (botelho, 2000).

Segundo, as mutações organizacionais, de pensamento e de ação associados à fi gura de Aloísio Magalhães. Em sua rápida trajetória nestes anos, facilitada por seu dinamismo, criativi-dade e relações com alguns setores militares, Aloísio, um in-telectual administrativo (ortiz, 1986, p. 124), criou ou reno-vou organismos como: Centro Nacional de Referência Cultural (1975); iphan (1979); sphan e Pró-Memória (1979), Secretaria de Cultura do mec (1981) até sua morte prematura em 1982. Sua visão renovada da questão patrimonial através do acionamen-to da noção de bens culturais; sua concepção “antropológica” de cultura; sua atenção com o saber popular, o artesanato e as tecnologias tradicionais, retomando Mario de Andrade (ma-galhães, 1985), ensejam uma profunda renovação nas anti-gas concepções de patrimônio vigentes no país, mesmo com limitações, dada a manutenção de alguns traços comuns como a “retórica da perda” (gonçalves, 1996). Por certo que tais movimentos não conviveram sem tensões internas, inclusive, entre eles, e com muitos problemas (ortiz, 1986; botelho, 2000). Mas eles representaram um sopro inovador nas políti-cas culturais brasileiras.

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Outra vez mais, reafi rma-se a problemática tradição, com a conexão entre autoritarismo e políticas culturais. Ainda que a maior parte da atuação do Estado tenha acontecido na fase de transição da ditadura, sua confi guração continua sendo mol-dada por parâmetros do regime autoritário, em declínio. A ditadura também realiza a transição para a cultura midiática, assentada em padrões de mercado, sem qualquer interação com as políticas de cultura do Estado. Em suma: institui-se um fos-so entre políticas culturais nacionais e o circuito cultural agora dominante no país.

A m b i g ü i d a d e s

O fi m da ditadura praticamente torna inevitável a criação do Ministério da Cultura. Não cabe neste estreito espaço discutir a questão da pertinência e da maturidade das condições para criar um ministério específi co (botelho, 2000). Aloísio Ma-galhães em sua trajetória interrompida vinha conformando e dando corpo às instituições nacionais para, no futuro, cons-truir o Ministério. Sua morte interrompe o processo. Mas o movimento de oposição à ditadura, os secretários estaduais de cultura e alguns setores artísticos e intelectuais reivindicam que o novo governo democrático, instalado em 1985, reconhe-ça a cultura e a contemple com um ministério singular.

O longo período de transição e construção da democra-cia (1985–1993), que compreende os governos José Sarney (1985–1989), Collor de Melo (1990–1992) e Itamar Franco (1992–1994), confi gura a circunstância societária e política, na qual acontece a implantação do ministério. As ambigüida-des serão todas. Nestes anos de construção serão nove ou dez (José Aparecido foi duas vezes ministro de Sarney) os respon-sáveis maiores pela cultura no país: cinco no governo Sarney, dois no período Collor e três durante o mandato de Itamar.

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Ou seja, em média, um a cada ano em um processo de instala-ção institucional do organismo nacional de cultura.

A instabilidade não decorre tão somente da mudança quase anual dos responsáveis pela cultura. Collor, no primeiro e tu-multuado experimento neoliberal no país, praticamente des-monta a área de cultura no plano federal. Acaba com o ministé-rio, reduz a cultura a uma secretaria e extingue inúmeros órgãos, a exemplo da funarte, embrafi lme, pró-memória, fun-dacem, concine. O primeiro responsável pelo órgão, Ipojuca Pontes, em um embate feroz contra quase todo o meio cultural, produz um radical programa neoliberal para a cultura no Brasil. Mercado é a palavra mágica para substituir o Estado, “inefi cien-te” e “corrupto”, inclusive na área cultural (pontes, 1991).

Mas as ambigüidades em torno da implantação do novo ministério não provinham somente da instabilidade institu-cional. No governo Sarney, em 1986, foi criada a primeira lei brasileira de incentivos fi scais para fi nanciar a cultura: a cha-mada lei Sarney (sarney, 2000). A lei foi concebida em um momento de fragilidade institucional da área, ainda que, de modo ambíguo, o governo estivesse criando diversos órgãos em cultura, a exemplo do próprio ministério e de outros orga-nismos, tais como: Secretarias de Apoio à Produção Cultural (1986); Fundação Nacional de Artes Cênicas (1987); Fundação do Cinema Brasileiro (1987); Fundação Nacional Pró-Leitura, reunindo a Biblioteca Nacional e o Instituto Nacional do Li-vro (1987) e Fundação Palmares (1988). A rigor, ela termina-va por contrariar todo este esforço e investimento em novos organismos, pois introduzia uma ruptura radical com os mo-dos, até então vigentes, de fi nanciar a cultura. Em vez, de fi -nanciamento direto, agora o próprio Estado propunha que os recursos fossem buscados pretensamente no mercado, só que o dinheiro em boa medida era público, decorrente do meca-nismo de renúncia fi scal.

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A nova lei, em um momento de escassez de recursos esta-tais, funcionou como outro componente no jogo de ambigüi-dades que caracterizou a chamada Nova República. O Estado aparentemente cresce, mas o mercado ganha poder de decisão. No governo seguinte, a Lei Sarney foi extinta, mas deu origem à outra lei de incentivo, a Lei Rouanet, segundo Secretário da Cultura do governo Collor. Tal legislação é vigente até hoje, de-pois de duas reformas nos governos Fernando Henrique Car-doso e Lula (ainda em curso).

A lógica das leis de incentivo torna-se componente vital do fi nanciamento à cultura no Brasil. Esta nova lógica de fi nancia-mento – que privilegia o mercado, ainda que utilizando quase sempre dinheiro público – se expandiu para estados e municí-pios e para outras leis nacionais, a exemplo da Lei do Audio-visual (Governo Itamar Franco), a qual ampliou ainda mais a renúncia fi scal. Esta última legislação foi fundamental para a retomada do cinema brasileiro (caetano, 2005). Com ela e com as posteriores mudanças da lei Rouanet, cada vez mais o recurso utilizado é quase integralmente público, ainda que o poder de decisão sobre ele seja da iniciativa privada. A predo-minância desta lógica de fi nanciamento corrói o poder de in-tervenção do Estado nas políticas culturais e potencializa a in-tervenção do mercado, sem, entretanto, a contrapartida do uso de recursos privados, nunca é demais lembrar.

A combinação entre escassez de recursos estatais e a afi nida-de desta lógica de fi nanciamento com os imaginários neolibe-rais então vivenciados no mundo e no país, fez que boa parcela dos criadores e produtores culturais passe a identifi car política de fi nanciamento e, pior, políticas culturais tão somente com as leis de incentivo. Outra vez mais a articulação entre demo-cracia e políticas culturais se mostrava problemática. O Estado parecia persistir em sua ausência no campo cultural em tem-pos de democracia.

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S u b s t i t u i ç õ e sO governo Fernando Henrique Cardoso (fhc) – Partido So-cial-Democrata Brasileiro, 1995/2002 – deve ser considerado o ponto fi nal da errática transição para a democracia e para um novo modelo econômico no país. O próprio FHC em discur-so no Senado, em 14 de dezembro de 1994, após ter sido eleito presidente disse: “Estas eleições (de outubro de 1994) colocam, a meu ver, um ponto fi nal na transição”. O novo governo ca-racteriza-se pela implementação, de modo menos tosco e mais enfático, do projeto neoliberal no Brasil. A retração do Estado acontece em praticamente todas as áreas. Pretende-se que o mercado, imaginado como todo-poderoso e dinâmico, substi-tua o Estado.

Não será diferente na cultura. Sintomaticamente a publica-ção mais famosa do Ministério naqueles longos oito anos será uma brochura intitulada Cultura é um bom negócio (ministé-rio da cultura, 1995). Ela pretende estimular, sem mais, a utilização das leis de incentivo. José Castello, avaliando o go-verno Fernando Henrique Cardoso: afi rma uma quase identi-dade entre Estado e mercado (castello, 2002, p. 635); fala das leis de incentivo como sendo a política cultural (castello, 2002, p. 637) e diz que as leis de incentivo escamoteiam a au-sência de uma política cultural (castello, 2002, p. 645). Em verdade e em boa medida, as leis de incentivo foram entroni-zadas como a política cultural do ministro Francisco Weffort, professor de Política da Universidade de São Paulo.

Um pequeno recurso ao tema do fi nanciamento da cultura naquele governo demonstra de modo cabal as afi rmações an-teriores. Para isto, cabe analisar a situação de três modalidades previstas de fi nanciamento da cultura. O Fundo de Investi-mento em Cultura e Arte (fi cart), voltado para apoiar uma cultura em moldes mais capitalistas, não foi regulamentado pelo governo. O Fundo Nacional de Cultura, também não regu-

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lamentado, era utilizado através da lógica do favor e da decisão do ministro. Já o fi nanciamento via leis de incentivo torna-se rapidamente na modalidade predominante de apoio à cultura, muito à frente das outras formas de fi nanciamento.

Aliás, se houve política de cultura, ela se concentrou em am-pliar a utilização das leis de incentivo pelo mercado. Enquanto no governo Itamar somente 72 empresas usaram as leis (cas-tello, 2002, p.637), no governo Cardoso/ Weffort este nú-mero cresceu, por exemplo, para 235 (1995); 614 (1996); 1133 (1997); 1061 (1998) e 1040 (1999), sendo que a queda aconte-cida de 1997 em diante decorre do processo de privatização das estatais; que, em geral, no Brasil investem mais em cultura que a iniciativa privada. Mas para expandir o número de empresas interessadas em “apoiar” a cultura, o governo usou de artifícios. Por exemplo, ao reformar as leis de incentivo ampliou o teto da renúncia fi scal, de 2% para 5% do imposto devido, e, principal-mente, os percentuais de isenção. Antes eles fi cavam entre 65 e 75%, com exceção da área audiovisual, na qual eram de 100%. Agora este último percentual era estendido para teatro, música instrumental, museus, bibliotecas e livros de arte.

Em resumo, a utilização de dinheiro público subordinado a decisão privada ampliou-se bastante. Um estudo sobre fi -nanciamento da cultura mostrou que o uso de recursos sofreu profunda transformação entre 1995, 66% das empresas e 34% de renúncia fi scal, e 2000, 35% das empresas e 65% de renúncia fi scal (dória, 2003, p. 101). Em outras palavras, as leis de in-centivo ao investimento privado em cultura estavam desesti-mulando tal atitude, pois o dinheiro cada vez mais era público, entretanto, estranhamente, gerido pela iniciativa privada.

As críticas a esta política de retirada do Estado da decisão sobre as políticas de cultura são muitas (sarkovas, 2005; olivieri, 2004; castello, 2002): 1. O poder de deliberação de políticas culturais passa do Estado para as empresas e seus

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departamentos de marketing; 2. Uso quase exclusivo de recur-sos públicos; 3. Ausência de contrapartidas; 4. Incapacidade de alavancar recursos privados novos; 5. Concentração de re-cursos. Em 1995, por exemplo, metade dos recursos, mais ou menos 50 milhões, estavam concentrados em 10 programas; 6. Projetos voltados para institutos criados pelas próprias em-presas (Fundação Odebrecht, Itaú Cultural, Instituto Moreira Sales, Banco do Brasil etc); 7. Apoio equivocado à cultura mer-cantil que tem retorno comercial; 8. Concentração regional dos recursos. Um estudo realizado, em 1998/ 99, pela Funda-ção João Pinheiro, indicou que a imensa maioria dos recursos da Lei Rouanet e da Lei do Audiovisual iam para regiões de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Assim, com exceção de algumas políticas setoriais, como a de bibliotecas e patrimônio (Projeto Monumenta) e a legislação acerca do patrimônio imaterial, o longo período de oito anos de estabilidade da direção do Ministério da Cultura, contrapos-to ao quadro anterior de instabilidade, pouco colaborou para consolidação institucional do Ministério. Não aconteceram concursos para expansão ou substituição do quadro funcio-nal, nem programas signifi cativos para qualifi cação do pesso-al. Dos 2640 funcionários do Ministério em 2001, literalmente 49% estavam no iphan. Alguns temas das políticas culturais tinham sido abandonados, sem mais. Por exemplo, o tema das identidades, inclusive nacional (castello, 2002, p.655–656). Apesar da reforma da Lei do Audiovisual e da criação da Agên-cia Nacional de Cinema, instalada institucionalmente fora do Ministério, muito pouca atenção foi destinada ao audiovisual, em especial à televisão, que tem um peso cultural enorme no país. O mesmo pode ser dito acerca da nascente cultura digi-tal. Quanto às informações culturais – apesar do patrocínio do Ministério à pesquisa sobre economia da cultura realizada pela Fundação João Pinheiro, sem dúvida uma iniciativa importante

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– nada foi desenvolvido junto aos órgãos nacionais de estatística objetivando a confecção de dados culturais. Enfi m, o orçamento destinado à cultura no último ano do governo Fernando Henri-que Cardoso/ Francisco Weffort sintetiza de modo sintomático a falta de importância do Ministério e a ausência de uma política cultural ativa. Ele foi de apenas 0,14% do orçamento nacional.

D e s a f i o s

O governo Lula e o ministro Gilberto Gil se defrontam em 2002 como complicadas tradições que derivam agendas e de-safi os: relações históricas entre autoritarismo e intervenções do estado na cultura; fragilidade institucional; políticas de fi -nanciamento da cultura distorcidas pelos parcos recursos or-çamentários e pela lógica das leis de incentivo; centralização do Ministério em determinadas áreas culturais e regiões do país; concentração dos recursos utilizados; incapacidade de elabora-ção de políticas culturais em momentos democráticos etc.

A ênfase inicial do ministro artista, que transparece em seus discursos programáticos proferidos durante o ano de 2002 será reivindicar um conceito de cultura mais alargado, dito “antro-pológico”, como pertinente para ser acionado pelo Ministério (gil, 2003, p. 10, 22, 44 e 45). Em conseqüência, o público pri-vilegiado não serão os criadores, mas a sociedade brasileira. A outra ênfase dos discursos programáticos será a retomada do papel ativo do Estado nas políticas culturais (gil, 2003, p. 11, 23, 24, 27 e 49). As críticas à retração do Estado no campo cul-tural no governo anterior são sistemáticas (gil, 2003, p. 23, 49, 50, 51, 52 e 53). O desafi o de construir políticas culturais em um regime democrático – já diagnosticado por José Álvaro Moises no governo passado (moises, 2001, p. 42.) – será enfrentado em plenitude. Gil irá assumir de modo perspicaz que: “formu-lar políticas culturais é fazer cultura” (gil, 2003, p. 11).

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Com esta nova concepção de cultura – talvez até excessiva-mente ampliada – o Ministério busca trabalhar em novas áreas. Alguns exemplos devem ser enunciados. A Secretaria de Identi-dade e Diversidade Culturais está atenta às culturas populares, inclusive com a realização de conferências nacionais. A Secre-taria do Audiovisual, depois que o Ministério conseguiu trazer para seu interior a ancine, propôs sua transformação em an-cinav, estendendo sua atuação para a área do audiovisual, pen-sada de modo integrado. Talvez ingenuamente a reação brutal da grande mídia contra qualquer regulação, social e democrática da área não foi devidamente prevista, o que ocasionou a retirada do projeto. A Secretaria, entretanto, desenvolveu um signifi -cativo projeto de produção de documentos com a Rede Pública de Televisão, o doc-tv. Iniciativas foram realizadas na área da cultura digital, inclusive um edital para estimular a criação de jogos eletrônicos. A atuação internacional do Ministério foi bas-tante alargada. A presença de um nome internacional como o de Gilberto Gil à frente do Ministério certamente teve um papel importante nesta internacionalização. Neste patamar, o Brasil assumiu posições políticas importantes como a luta pela diver-sidade cultural no relevante encontro da unesco, realizado em Paris em 2005, sobre o tema. Estranhamente a reforma admi-nistrativa acontecida no início da gestão não dotou o Ministério de uma nova e potente estrutura institucional para realizar esta conexão internacional.

A atenção com a economia da cultura e os indicadores cul-turais também ampliou a atividade do Ministério abarcando zonas hoje vitais para pensar a cultura na contemporaneidade. Os acordos com o Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística para a produção de informações sobre a cultura no Brasil de-ram resultados concretos no fi nal de novembro de 2006 com a divulgação pública pelo ibge dos primeiros dados. Com rela-ção à economia da cultura, as iniciativas mais relevantes foram

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o debate sobre economia criativa, a realização de seminários internacionais sobre o tema e a conquista da instalação de um Centro Internacional de Economia Criativa no Brasil, voltado, em especial, para os países em desenvolvimento. Resta, entre-tanto, dar concretude a tais iniciativas.

Para a revisão das políticas de fi nanciamento foram realiza-das consultas amplas à sociedade. O Fundo Nacional de Cultura passou a ser defi nido com base na concorrência de projetos e o uso de editais para apoio à cultura foi incentivado e adotado, in-clusive por empresas estatais, a exemplo da Petrobrás, a maior empresa patrocinadora da cultura no Brasil. As leis de incentivo reformuladas foram apresentadas à sociedade, mas ainda não estão em funcionamento, condição para avaliar se os vícios an-teriores podem ser superados. Entretanto, uma certa correção dos desequilíbrios regionais já foi conquistada.

Alguns projetos assumidos por secretarias e organismos do Ministério merecem destaque, pois buscam consolidar institu-cionalmente a área de cultura com base em políticas de Estado, porque não restritas a um governo determinado. A constituição de um Sistema Nacional de Cultura, que articula os governos federal, estaduais e municipais, sem dúvida, é um projeto vital nesta perspectiva de institucionalização de mais largo prazo. O Plano Nacional de Cultura, votado pelo Congresso Nacio-nal, como política de Estado, também é fundamental para uma institucionalização da cultura, que supere as limites das instá-veis políticas de governo. A criação de Câmaras Setoriais para debater com criadores as políticas de cultura, também dá maior institucionalização à atuação do Ministério, pois possibilita a elaboração, interagindo com a sociedade civil, de políticas pú-blicas, em lugar de meras políticas estatais de cultura.

A descentralização das atividades do Ministério também é essencial para sua maior institucionalização. Nesta perspecti-va, um programa como os Pontos de Cultura, que fi nanciam

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pólos de criação e produção culturais – e não atividades even-tuais – em todo o país são fundamentais para dar capilaridade à atuação ministerial.

Mas a ausência de uma política consistente de formação de pessoal qualifi cado para atuar na organização da cultura, em níveis federal, estadual e municipal, continua sem solução e consiste em um dos principais obstáculos para a instituciona-lização do Ministério e uma gestão mais qualifi cada e profi ssio-nalizada das instituições culturais no país. Nesta área, a atua-ção do Ministério foi praticamente nula.

O Ministério, apesar da persistência de algumas fragilidades institucionais e mesmo da ausência de uma política cultural geral discutida com a sociedade e consolidada em documento, deu passos signifi cativos no sentido de restituir um papel ativo ao Estado no campo cultural. O orçamento triplicado, apesar de ainda não ter chegado ao 1% reivindicado, aponta este novo lugar para as políticas culturais no Brasil. A opção de Gilberto Gil pela abrangência na atuação do Ministério da Cultura trou-xe inúmeros desafi os, mas soube enfrentar alguns dos dilemas mais recorrentes das políticas culturais da nação e prover a de-mocracia brasileira da capacidade de formular e implementar políticas públicas de cultura.

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*Professor do ppg em Políticas Publicas e Sociedade da uece

A l e x a n d r e B a r b a l h o *

Polít ic a s cultur ais no Br a sil :identidade e diver sidade sem dif erenç a

O problema da identidade nacional coloca-se de for-ma incisiva e recorrente aos intelectuais da América Latina antes mesmo da constituição de suas nações independentes. Qual o caráter dessa população de brancos colonizados, vivendo em meio a negros boçais e índios indolentes, se questionavam nossos pensadores informados pelas teorias sócio-biológi-cas e racistas vigentes no século xix.

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Ou quais as características destas civilizações miscigenadas, crioulizadas, híbridas, transculturais, sincréticas que se esta-beleceram nos trópicos, vem se perguntando teóricos das mais diversas correntes culturalistas desde o início do século passa-do até os dias correntes (abdala júnior, 2004).

No Brasil, a discussão sobre a identidade nacional tornou-se, talvez, mais recorrente do que nos seus vizinhos latino-ameri-canos. Em primeiro lugar, pelo tamanho continental do país e o processo histórico de sua ocupação que envolveu não apenas o colonizador português, mas diversas etnias indígenas e afri-canas, afora outros migrantes europeus e os asiáticos, além dos fortes fl uxos migratórios internos.

Em segundo lugar, pela pobreza, ou mesmo inexistência, de um campo intelectual no Brasil colonial, imperial e republicano até, no mínimo, os anos 1930, o que sempre difi cultou refl exões críticas e independentes no país, bem como sua sistematização e permanência. É vastamente conhecida a proibição da metró-pole portuguesa no que diz respeito à criação de instituições de ensino, seja qual for o nível, de editoras, de jornais, enfi m, de toda instituição produtora de bens simbólicos na sua colô-nia americana 1. As coisas só começam a mudar, e muito lenta-mente, com a vinda de d. João vi e toda sua corte em 1808 para tomar um impulso considerável para a época no período de d. Pedro ii – impulso motivado pela preocupação do Imperador em estabelecer alguns elementos iniciais de nacionalidade.

São exemplos desse melhoramento da vida intelectual e ar-tística e de constituição mínima do campo cultural no século xix: a vinda da Missão Artística Francesa, as bolsas de estu-dos concedidas aos artistas, a criação do Instituto Histórico e Geográfi co Brasileiro, da Academia Imperial de Belas-Artes, da Biblioteca e do Museu Nacional etc.

O período da velha Primeira República não facilita este pro-cesso constitutivo. Diante de um excipiente mercado de bens

1 Na América hispânica, ao contrário, como informa Sérgio Buarque de Holanda (1991), a primeira das vinte e cinco universidades criadas na época da colonização surgiu em 1538. Em 1535, tem-se notícias dos primeiros livros impressos na Cidade do México, local onde um século depois se iniciaria a imprensa periódica americana com a publicação da primeira Gaceta (1671).

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simbólicos, sobressai, em todo esse período, a forte dependên-cia de nossos artistas e pensadores em relação aos aparelhos es-tatais (raramente ligados a questões culturais) confi gurada nas sinecuras, cargos no funcionalismo público que permitem sua sobrevivência material.

A situação se diversifi ca a partir do período getulista, com a construção institucional na área da cultura, o fortalecimento de indústrias culturais, como a cinematográfi ca, a radiofônica, a editorial e a jornalística e o surgimento de nossas primeiras universidades, permitindo alguma independência aos nossos produtores simbólicos.

De todo modo, na sociedade brasileira, onde historicamente a representação política é pouco fi rme, essa debilidade marca a identidade de seus intelectuais e artistas. Para Marilena Chaui (1986), estes oscilam entre a posição de “Ilustrados”, donos da opinião pública, ou de “Vanguarda Revolucionária” e educado-ra do povo. Contudo, há em ambas a opção pelo poder e pela tutela estatais.

O que se propõe neste ensaio é discutir as políticas federais de cultura, tendo como recorte temático a discussão acerca da identidade, da diversidade e da diferença. O recorte temporal privilegiará aqueles momentos de nossa história republicana nos quais, se não há políticas culturais claramente defi nidas, se percebe forte investimento (político, simbólico, fi nanceiro) no setor: o período Vargas, o regime militar e os governos fhc e Lula.

Por política cultural, se entende não apenas as ações con-cretas, mas, a partir de uma concepção mais estratégica, “o confronto de idéias, lutas institucionais e relações de poder na produção e circulação de signifi cados simbólicos” (mcgui-gan, 1996, p. 01). Nesse sentido, elas são criativas e propositi-vas, ao produzirem discursos, e detentoras de poder simbólico atuante no campo cultural 2.

c u l t u r a & i d e n t i d a d e s : t e o r i a s d o p a s s a d o e p e r g u n t a s p a r a p r e s e n t e 3 9

2 Assim, discordamos de Miller e Yúdice quando defendem que a política cultural “é mais burocrática que criativa ou orgânica” (MILLER; YÚDICE, 2004, p. 11) – se entendermos aqui burocracia em seu uso comum de trabalho repetitivo e inefi ciente.

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Portanto, não irei me deter aqui na materialização das po-líticas para a cultura na formação, produção, fi nanciamento, circulação e consumo – por exemplo, leis de fi nanciamento, editais, programas de circulação musical como Projeto Pixin-guinha etc. O objeto de refl exão será os discursos publicizados em textos ofi ciais e que, através de seus procedimentos pró-prios, exercem seus poderes e perigos (foucault, 1998).

A d i v e r s i d a d e m e s t i ç a e a c r i a ç ã o d a n a c i o n a l i d a d e

O primeiro momento de intervenção sistemática do Estado bra-sileiro na cultura ocorre após a “Revolução de 1930”. Quando assume o governo, Getúlio Vargas procura unir o país em torno do poder central, construir o sentimento de “brasilidade”, reu-nindo a dispersa população em torno de idéias comuns, e elabo-rar uma nova visão do homem brasileiro (barbalho, 1998).

Os responsáveis pela elaboração da identidade nacional e por sua publicização serão os intelectuais, já que para estes “cultu-ra” e “política” formam termos indissociáveis, devendo mes-mo se fundir em torno da “Nação”. Há a tentativa de criar uma “cultura do consenso” em torno dos valores da elite brasileira, e o projeto de uma “cultura nacionalista” é o espaço para apro-ximar parcelas da intelectualidade, mesmo aquela não alinhada diretamente ao regime. Para implementar tais tarefas, o Estado getulista promove a construção institucional de espaços, físi-cos ou simbólicos, onde os intelectuais e artistas possam traba-lhar em prol do caráter nacional.

Naquele momento, era fundamental romper com a leitura dominante sobre o povo brasileiro de orientação racista e que denegria o mestiço, grande maioria da população, qualifi can-do-o de preguiçoso, insolente e pouco capacitado. Por sua vez, os intelectuais a serviço do regime precisavam manter uma cer-ta continuidade com o passado, com a tradição. Eles recorrem,

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então, ao recém-lançado livro Casa Grande e Senzala de Gilber-to Freyre, o qual converte em positividade o que era antes nega-tivo, ou seja, a mestiçagem entre o branco, o índio e o negro.

Freyre não escreve sua obra para atender às necessidades do regime, até porque não é possível restringir a força ideológica da sua obra ao período getulista. Como situa Carlos Guilherme Mota (1977), sua obra, como produção cultural e elemento das relações de dominação, situa-se em uma esfera próxima àque-la na qual funcionam os mecanismos de controle social. Mas o governo Vargas se aproveita da abertura teórica que a “ideologia da mestiçagem” possibilita, produzindo, com seu respaldo, um discurso contrário à “inefi ciência inata” do povo.

Inconciliável com o novo momento do país, essa imagem é substituída por uma apologia do homem brasileiro, apologia que se sustenta na positividade da mistura entre as três raças. Assim, a população mestiça é valorizada e incorporada à nacio-nalidade. O discurso enaltecedor do homem brasileiro pode ser visto como peça de um discurso maior que procura legiti-mar o próprio regime. A questão é de ordem política e cultural: a valorização do homem brasileiro e sua relação com o Estado. Nesse sentido, uma de suas preocupações é demonstrar que o regime transcende ao aspecto meramente econômico e políti-co, possuindo também uma base cultural.

Portanto, a valorização da nacionalidade como política de Estado orienta a ação do governo na área cultural ao glorifi car a cultura popular mestiça, elevando-a a símbolo nacional. O “po-pular”, ou o folclore, retirado do local onde é elaborado, ocultan-do assim as relações sociais das quais é produto, funciona, nesse momento de constituição da “cultura brasileira”, como força de união entre as diversidades regionais e de classe. A mestiçagem amalgama os tipos populares em um único ser, o Ser Nacional, cujas marcas são a cordialidade e o pacifi smo.

A transformação do popular em nacional e deste em típico

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corresponde a um movimento ideológico, denominado por Marilena Chaui (1986) de “Mitologia Verde-Amarela” que se transveste em palavras-de-ordem adequadas a cada contexto histórico. No Estado Novo era Construir a Nação, permitindo ao Estado intervir na cultura como elemento dessa construção.

Sob essa perspectiva, nos anos 1930/ 40 surgem diversas ins-tituições culturais: o Serviço Nacional de Teatro (snt), o Insti-tuto Nacional do Livro (inl), o Instituto Nacional do Cinema Educativo (ince), o Serviço do Patrimônio Histórico e Artísti-co Nacional (sphan), etc. É criado, também, o Departamento de Imprensa e Propaganda (dip) que coordenava várias áreas: radiofusão, teatro, cinema, turismo e imprensa. Além de fazer a propaganda externa e interna do regime, exercer a censura e organizar manifestações cívicas. Para chegar em todo o Brasil, o dip cria departamentos estaduais que, executando as linhas de ação determinadas pelo órgão federal, desempenham papel importante no projeto de “construção da nação”.

Todos estes espaços criados dentro do governo para a atuação dos mais variados produtores culturais estavam inseridos na ótica do corporativismo getulista: ao Estado cabe decidir o quê e a quem conceder determinados benefícios.

A d i v e r s i d a d e n a u n i d a d e e a i n t e g r a ç ã o n a c i o n a l

Depois do período getulista, outro momento de nossa histó-ria que observa a intervenção sistemática do Estado no cam-po cultural é o do regime militar instaurado em 1964. Nesse momento, a preocupação das elites dirigentes não é mais “criar uma nação”, e sim garantir sua integração. No entanto, mais uma vez, a cultura é percebida como elemento central na ga-rantia da nacionalidade.

Por sua vez, ao regime militar não interessa apresentar-se como ruptura radical com o passado. Nesse sentido, ele dá con-

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tinuidade ao pensamento sobre a cultura nacional, estabeleci-do durante o governo Vargas, mantendo certa tradição conser-vadora e ligando um momento ao outro.

A “Mitologia Verde-Amarela”, sempre re-trabalhada pe-las elites brasileiras de acordo com o contexto, assume agora o lema Proteger e Integrar a Nação. Com isso, a cultura popu-lar, elemento central dessa mitologia, é apropriada pela classe dominante através de determinada visão do nacional-popular que representa a nação de forma unifi cada.

Como situa Chauí (1986), para os ideólogos do regime mi-litar a unidade não descarta a diversidade. O todo é diversifi -cado, porém, no conceito, o todo se torna a diversidade do que é, em si, uno e idêntico. O nacional reforça a identidade diante do que vem do exterior, enquanto o popular atua no reforço no interior do país. A junção das duas instâncias ocorre através do Estado. Compreende-se, então, porque a consolidação nacional se constitui, no regime militar, em políticas culturais do “esta-do para o Estado”.

Para atuar na área cultural, o regime cria em 1966 o Conselho Federal de Cultura (cfc) que reúne intelectuais renomados e de perfi l tradicional com função de elaborar a sua política cul-tural. O principal elemento unifi cador do cfc é a reverência ao passado, com um viés conservador, o que marca a direção que o Conselho dá à sua concepção de política e de cultura.

O lema da diversidade na unidade referenda a ação gover-namental na cultura, dando-lhe aspecto de neutralidade, de guardião da identidade brasileira definida historicamente. A miscigenação revela uma realidade sem contradições, já que o resultado do encontro entre as culturas passa por cima das possíveis divergências, e acaba por qualifi car a cultura brasileira como democrática, harmônica, espontânea, sincrética e plural.

A política cultural do regime militar alcança seu ápice du-rante o governo Geisel (1974/ 1978), com a gestão de Ney Braga

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no Ministério de Educação e Cultura (mec). Esse período re-presenta o ápice da busca em adequar uma ação cultural às pre-tensões políticas do regime.

Em 1975, é lançada a Política Nacional de Cultura (pnc), pri-meiro plano de ação governamental no país que trata de princí-pios norteadores de uma política cultural. Na apresentação que escreve para a pnc, Ney Braga ressalta a necessidade de valori-zar a diversidade regional do país, mas expõe que o documen-to, elaborado com “valiosa contribuição do Conselho Federal de Cultura”, “procura defi nir e situar, no tempo e no espaço, a cultura brasileira” (braga, 1975, p. 05 – itálico no original). Defi nir e situar as peculiaridades da “cultura brasileira”, espe-cialmente aquelas resultado do sincretismo entre nossas prin-cipais bases civilizacionais (indígena, européia e negra).

Para os redatores da pnc, seu objetivo principal, “aspirar uma verdadeira política cultural” que promova “a defesa e a constan-te valorização da cultura nacional”, deve ser alcançado com a “plena realização do homem brasileiro como pessoa”. O huma-nismo, de fundo espiritual, defendido ao longo do documen-to, necessita dos princípios culturais para se concretizar, para formar “seres humanos integrados harmoniosamente na vida em sociedade” (política nacional de cultura, 1975, p. 14 – itálicos meus).

Princípios que devem ser integrados de forma simultânea para dar conta da brasilidade cultural. Para tanto, faz-se neces-sário “preservar a sua identidade e originalidade fundadas nos genuínos valores histórico-sociais e espirituais, donde decorre a feição peculiar do homem brasileiro” (política nacional de cultura, 1975, p. 08 – itálicos meus).

A perspectiva essencialista de identidade do pnc se revela nos valores a que se aspira preservar: originalidade, genuini-dade, peculiaridade, enraizamento, tradição, fi xidez, perso-nalidade, vocação, perenidade, consciência nacional. Sempre

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levando em conta as dimensões regional e nacional, estando a primeira submetida à segunda. A pluralidade que surge em algumas regiões se dilui no sincretismo, marca da brasilida-de. Este é o signifi cado peculiar da cultura brasileira e da per-sonalidade de seu povo, “esta capacidade de aceitar, de absor-ver, de refundir, de criar”.

Os ideólogos da pnc observam, portanto, a diversidade contribuindo para a unidade nacional: “A sobrevivência de uma nação se enraíza na continuidade cultural e compreende a capacidade de integrar e absorver suas próprias alterações. A cultura, com tal sentido e alcance, é o meio indispensável para fortalecer e consolidar a nacionalidade” (política na-cional de cultura, 1975, p. 09 – itálicos meus). Por sua vez, a unidade nacional se salvaguarda na medida em que se protege dos valores estrangeiros impostos pelos meios de co-municação de massa e pela indústria cultural, como ditam as normas da Ideologia de Segurança Nacional.

O objetivo principal da pnc, defender e valorizar a cultura brasileira, se desdobra em cinco objetivos básicos: 1. O co-nhecimento — imprescindível na sua revelação do âmago e da essência do homem brasileiro, de sua vida e cultura; 2. A preservação dos bens de valor cultural — para manter pere-ne o núcleo irredutível e autônomo da memória e da cultu-ra nacionais; 3. O incentivo à criatividade; 4. A difusão das criações e manifestações culturais; 5. A integração — funda-mental para, além das diversidades (regionais) e adversidades (infl uências estrangeiras), se plasmar e fi xar a personalidade harmônica brasileira e a sua segurança, convergindo com os interesses da política de segurança nacional.

Uma forma encontrada para viabilizar a unifi cação da política cultural é a promoção de encontros nacionais de cultura, nos quais participam representantes culturais de todos os estados da federação. No Encontro de Secretários

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de Cultura realizado em julho de 1976 em Salvador, o tema central é “Política integrada de cultura”. Ney Braga afi rma em seu discurso que o evento reforça a construção da “Cultura Nacional”. Cultura homogênea em sua essência, diversifi cada pelas contribuições recebidas, em constante transformação e, ao mesmo tempo, fi el e leal ao passado.

Raymundo Moniz de Aragão, presidente do Conselho Fede-ral de Cultura (cfc), declara na abertura dos trabalhos:

Não foi esquecida a delicada questão da cultura brasileira tomada em

sua dupla dimensão; a regional e a nacional, por forma que se logre a in-

tegração e do mesmo passo a preservação do que é especifi camente

nacional, uma vez que o almejado é a unidade e não a uniformidade

(aragão, 1976, p. 37).

Como podemos notar, o tom da unidade cultural e, portanto, nacional perfi la os discursos do Encontro Nacional de Cultura. Nos trabalhos reunidos no documento “Conclusões do Encon-tro de Secretários de Cultura – 1976”, Miguel Reale, relator do 5° Tema, “Integração regional da cultura”, propõe caracterizar culturalmente as regiões brasileiras sem, contudo, fracionar a unidade de cada estado ou território. Percebemos aí a preocu-pação com a unidade até no contexto interno de cada região.

O relatório fi nal do Encontro, redigido por Diégues Júnior, conclui, a partir de todos os documentos apresentados:

de que um caminho comum pode ser encontrado; e neste caminho, o

que é regional pode somar-se e pode multiplicar-se no contato entre

regiões; e fi nalmente chegar ao nacional – já agora como expressão per-

feita da mesma identidade cultural através da personalidade nacional tra-

duzida justamente por essa diversidade que, ao invés de chocar-se, pode

somar. O Brasil – pode repetir-se sempre a idéia – é uno justamente pela

diversidade (DIÉGUES JÚNIOR , 1976, p. 270 – itálicos meus).

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A m e r c a d o r i a d a d i v e r s i d a d e e o e s t a d o - n a ç ã o n e o l i b e r a lA redemocratização do país com a eleição de Collor de Mello não signifi cou o estabelecimento de uma política cultural e o fortalecimento institucional do setor no governo federal. Pelo contrário, o novo presidente, de imediato, implementa uma política de “terra arrasada” na cultura com a extinção do re-cém-criado Ministério da Cultura (MinC) junto com diversas outras instituições como a Embrafi lme e o sphan.

No entanto, seu governo dá continuidade à política de incen-tivo fi scal para a cultura iniciada no governo Sarney com a lei de 1986. Em termos básicos, este formato propõe uma relação entre poder público e setor privado, onde o primeiro abdica de parte dos impostos devidos pelo segundo. Este, em contrapar-tida, investe recursos próprios na promoção de determinado produto cultural. A idéia não é apenas a de estabelecer incen-tivos à cultura, mas, principalmente, de introduzi-la na esfera da produção e do mercado da sociedade industrial; de criar um mercado nacional de artes (barbalho, 2005).

Na avaliação de Sarney, a ausência do Estado garantia “um espírito imensamente descentralizador, que transferia para a sociedade a iniciativa dos projetos, a mobilização dos recur-sos e o controle de sua aplicação” (sarney, 2000, p. 38). No entanto, o pouco controle do poder público foi o calcanhar de Aquiles da lei. Acusada de vulnerável e de facilitar a sonegação e a evasão fi scal, não sobreviveu ao novo mandato presidencial. Outra crítica à Lei Sarney era a de que não distinguia entre os produtos culturais aqueles que eram viáveis comercialmente daqueles que necessitavam de apoio público.

Com o governo Collor e o ensaísta Sérgio Paulo Rouanet na Secretaria de Cultura, criou-se a Lei 8.313 de Incentivo à Cul-tura 8.313, também conhecida como Lei Rouanet e o Fundo de Investimento Cultural e Artístico (fi cart) que funcionava

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como carteiras de crédito disciplinadas pela Comissão de Valo-res Mobiliários (cvm). Para Candido Almeida (1994), o inedi-tismo do fi cart era o reconhecimento do caráter comercial da cultura, disseminando seu entendimento como “investimen-to de possibilidades”. Ainda no âmbito federal, em 1993, o pre-sidente Itamar Franco criou a Lei 8.685, a Lei do Audiovisual, específi ca para projetos de audiovisual nas áreas de produção, exibição, distribuição e infra-estrutura.

A mesma orientação pauta a atuação dos dois governos fhc na cultura. Apesar da recriação do Ministério da Cultura (MinC), tendo à frente o cientista político Francisco Weffort, a visão de Estado mínimo acompanhada pela política de incentivo fi scal reforçam a submissão da cultura à lógica do mercado.

Em 1995, Weffort modifi cou a Lei Rouanet e introduziu a fi gura do captador de recursos – o agente intermediário entre o artista e o empresário. Na avaliação de Cesnik e Malagodi (1998), a possibilidade de contratar esse prestador de serviço viabilizou a ligação dos produtores culturais com as grandes agências publicitárias e fortaleceu a adoção, por parte das em-presas, do marketing cultural, evitado até então por sua baixa lucratividade.

A nova versão da lei reforçou o movimento de transferência para o mercado de uma parcela crescente da responsabilidade sobre a política cultural do país. Por um lado, o Estado abdica de determinar onde investir o dinheiro, o que deveria ocorrer dentro de um planejamento em longo prazo. Por outro, a esco-lha de qual projeto cultural deve receber o mecenato custeado pelo dinheiro público fi ca nas mãos dos empresários.

Por sua vez, a Lei Rounaet, desacompanhada de uma política nacional de cultura, reforçou as desigualdades entre as regiões brasileiras no que se refere ao apoio à produção cultural. Este desnível foi observado pelo Ministério que procurou promo-ver a divulgação nacional da lei e de suas vantagens junto aos

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artistas, produtores, empresários e empresas de marketing, bem como ministrando cursos sobre elaboração de projetos, captação de recursos etc…

Em 1996, por exemplo, o MinC promoveu Fóruns Empre-sariais em sete cidades do país: Recife, Porto Alegre, Salvador, Campinas, Campo Grande, Florianópolis e Manaus. Foram re-alizados cursos de gestão cultural em Brasília, Belém e São Luís e distribuídos 15 mil exemplares da cartilha Cultura é um bom negócio, com instruções sobre o uso da Lei Rouanet.

A exigência de uma profi ssionalização crescente por parte dos artistas, que agora devem contar, de preferência, com uma equipe de profi ssionais de apoio (produtor, captador de recur-sos, pesquisador, profi ssional de marketing… ) reforça uma outra desigualdade: a dos criadores que não possuem um nível mínimo de assessoria.

Outra crítica bastante comum por partes dos artistas e pro-dutores é a de que as empresas, mesmo com as facilidades fi -nanceiras e fi scais, só se interessam por projetos que tenham visibilidade midiático e/ ou sucesso de público. Projetos em áreas tradicionalmente com pouca ou nenhuma repercussão junto aos meios de comunicação e ao grande público, como as artes cênicas, ou os projetos de experimentação de linguagem, de qualquer que seja a área, encontram muitas difi culdades para captar recursos pelas leis de incentivo.

O resultado é que os criadores passam cada vez mais a ter que adequar suas criações à lógica mercantil. Antes de tudo, ensinam os manuais de marketing cultural, faz-se necessário conhecer o público consumidor, as empresas voltadas para esse público, o interesse da mídia pelo projeto, fazer pesquisas quantitativas e qualitativas… Na competição cada vez mais acirrada entre os criadores pelo patrocínio privado, obtêm su-cesso aqueles que se identifi cam ou estão submetidos ao pen-samento e ao gosto dominantes.

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A lógica do mercado termina por pautar a discussão acerca da identidade nacional e da diversidade cultural. O governo fhc não está preocupado com a “segurança nacional”, nem, portan-to, com a integração e a salvaguarda da cultura brasileira, mas com a formação de um mercado nacional e internacional para os diversos bens culturais produzidos no país.

Em seu texto de apresentação a um livro publicado pelo MinC, Fernando Henrique Cardoso destaca que a força da música popular brasileira exemplifi ca como o temor da perda da nossa identidade com a “invasão” de produtos culturais es-trangeiros é infundado. Na sua avaliação, seria ridículo querer salvaguardar as “glórias nacionais” da cultura pois elas dis-pensariam salvadores. O que se coloca é uma questão de mer-cado, a da defesa do mercado interno, bem como a conquista do mercado externo.

A mpb, continua Cardoso, é a área paradigmática “daquilo que a cultura brasileira tem de mais excitante: a riquíssima di-versidade aurida das múltiplas fontes da nossa formação histó-rica”. Portanto, “muito ao contrário do nacionalismo xenófobo, eminentemente defensivo, essa cultura (brasileira) em ebuli-ção inspira uma visão autoconfi ante do Brasil em tempos de globalização” (cardoso, 1998, p. 14).

O texto introdutório do ministro Weffort para a mesma publi-cação comunga com o texto de Cardoso ao afi rmar que uma das maiores riquezas do país seria a sua diversidade cultural e uma identidade em construção. Não se encontra aqui o pensamento essencialista, nem integrador da pnc, a não ser que a essência da cultura e seu elemento integrador seja o mercado… Na avalia-ção de Weffort, “a área da cultura é, não obstante as restrições ao gasto público em geral, benefi ciária do período de estabilidade econômica aberto pelo Plano Real. Ampliou-se o mercado como um todo e, assim, as possibilidades de novos investimentos cul-turais” (weffort, 1998, p. 17).

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A estabilidade econômica atraiu a iniciativa privada para compor com os esforços da administração pública no desen-volvimento cultural e de seu mercado, que em algumas áreas é um dos maiores do mundo. O desafi o que tem que ser en-frentado é o “de descobrir os meios de chegar a ele (ao mercado cultural)” (weffort, 1998, p. 23). Apesar de reconhecer que a fi nalidade da cultura não é o mercado, mas a formação identi-tária, Weffort não deixa de ressaltar a nossa “identidade” como amplo mercado produtor e consumidor de cultura, inclusive com necessidade de importar o que não produzimos. Não custa nada “lembrar sempre que a cultura é também um investimen-to e que, como tal, cria empregos e oportunidades de lucro” (weffort, 1998, p. 25). O que implica, por exemplo, em gerar programas que estimulem a exportação de bens culturais.

Weffort conclui seu texto afi rmando que o Brasil não tem porque temer a globalização, pois é formado por um povo de “enorme vitalidade cultural” e que segue conquistando os “sentidos da sua identidade”. O que o país deve é se preparar para se mostrar ao mundo pois as “nossas fronteiras estão aber-tas” e “todas as fronteiras se abrem para nós”.

Em outro texto, publicado na série Cadernos do Nosso Tempo e editada pela Funarte (MinC), Weffort defende que o Estado deve promover a cultura, observando-a como um valor em si e como produto de mercado, pois “é impossível deixar de reconhecer a relevância do mercado no mundo da cultu-ra, assim como a da cultura na economia” (weffort, 2000, p. 65). E os bens culturais que não formos capazes de produzir teremos que importar, pois devemos estar bem preparados, ou em outras palavras, devemos entrar na modernidade da cultura e da educação para podermos responder às exigências da mo-dernidade econômica. Parceria entre Estado e mercado: a solu-ção para o aprimoramento da democracia brasileira e o cresci-mento da economia nacional.

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Perceber a aceitabilidade da mercadoria cultural e o seu papel no desenvolvimento econômico brasileiro, para Weffort esta perspectiva difere a concepção de política cultural do gover-no fhc da tradição estabelecida por pensadores como Mário de Andrade nos anos 1920 e 1930 e que chegou aos anos 1990. Nada mais apropriado para um presidente que, em determina-do momento, afi rmou querer encerrar o modelo varguista do Estado brasileiro.

A d i v e r s i d a d e e a s i d e n t i d a d e s n a c i o n a i s

Ao analisarmos a atuação do Ministério da Cultura no pri-meiro governo Lula, observaremos uma outra perspectiva em relação aos períodos analisados anterioremente: a questão identitária se pluraliza. É recorrente nos documentos e falas ofi ciais o uso no plural de palavras como política, identidade e cultura: as políticas públicas, as identidades nacionais e as cul-turas brasileiras.

A diversidade não se torna uma síntese, como no recurso à mestiçagem durante a era Vargas e na lógica integradora dos governos militares, nem se reduz à diversidade de ofertas em um mercado cultural globalizado. A preocupação da gestão Gilberto Gil está em revelar os brasis, trabalhar com as múlti-plas manifestações culturais, em suas variadas matrizes étni-cas, religiosas, de gênero, regionais etc.

Tal perspectiva inclusiva de política cultural não se limita ao Ministério da Cultura, mas se encontra em outras áreas insti-tucionais, como, por exemplo, no Ministério da Educação, no Ministério do Meio Ambiente etc.

No caso específi co do Ministério da Cultura é criada a Secre-taria da Identidade e da Diversidade Cultural. Na avaliação de seu Secretário, o ator Sergio Mamberti, a nova instituição tem três desafi os centrais:

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a) participar nos debates internacionais em torno da diversidade cultural;

b) promover o melhor entendimento do conceito de diversidade cultural

no contexto da cultura brasileira e trabalhar de maneira transversal aos

segmentos governamentais e da sociedade civil; c) estabelecer diálogos

com grupos e redes culturais representativos da diversidade cultural bra-

sileira ainda excluídos do acesso aos instrumentos de política pública de

cultura e contribuir para o aperfeiçoamento dos mecanismos de prote-

ção e promoção da nossa diversidade cultural (mamberti, 2005, p. 13).

Sobre o primeiro ponto levantado por Mamberti, podemos perceber que o MinC vem participando de forma mais ativa nos debates internacionais sobre política cultural e diversida-de, estabelecendo intercâmbios com países africanos e latino-americanos, bem como travando um forte diálogo conceitual e parcerias com a unesco, inclusive no esforço de desenvol-verem juntos uma Convenção Internacional sobre a Proteção e Promoção da Diversidade Cultural.

A preocupação em avançar no debate teórico sobre a questão identitária e da diversidade, presente no segundo desafi o colo-cado por Mamberti, foi o tema central do Seminário Diversi-dade Cultural Brasileira realizado em 2004. Aos participantes do seminário se propôs um roteiro de discussão cujo principal problema do era pensar respostas ao paradoxo colocado pela Revolução Francesa: o da efetivação máxima e concomitante em uma mesma sociedade da liberdade e da igualdade. Ou nas palavras do documento: “o antagonismo entre uma cidadania universal-inclusiva e outra particular-plural.”

No entanto, o roteiro parece assumir a “posição ofi cial” do Ministério ao propor que a fraternidade (terceiro elemento da tríade) seja a mediadora deste “antagonismo” e fortalecendo o pólo universal-inclusivo: “O grande desafi o do Estado nacio-nal e da sociedade internacional organizada hoje é exercer sua função agregadora, favorecendo o diálogo em lugar do confl ito,

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estimulando a criatividade de forças centrífugas, sem permitir que o caos acabe por inviabilizar a criação” (lopes, 2005, p. 26). Voltaremos a esta discussão na parte fi nal deste ensaio.

Por fi m, podemos perceber a terceira questão colocada à Se-cretaria da Identidade e da Diversidade Cultural na realização do Seminário Nacional de Políticas Públicas para as Culturas Populares que aconteceu em 2005. A proposta é discutir meios para atingir determinados setores pouco ou nada contempla-dos pelas políticas do MinC.

Na avaliação de Juca Ferreira, secretário executivo do Minis-tério, há, na instituição, uma nova visão de cultura com viés antropológico que valoriza todos os modos de expressão, daí a necessidade do MinC em chegar às culturas populares, às et-nias, aos grupos etários, aos trabalhadores, dando “a importân-cia devida a essas expressões culturais, conferindo-lhes o justo valor cultural, preenchendo lacunas e reparando erros” (fer-reira, 2005, p. 19).

A preocupação do MinC com os grupos e redes excluídos do raio de alcance do Ministério motivou a criação de um dos mais importantes programas da gestão Gilberto Gil, o Programa Na-cional de Cultura, Educação e Cidadania – Cultura Viva.

Na compreensão de Célio Turino, coordenador do programa, o Cultura Viva se volta para aqueles que denomina de “os sem Estado”, ou seja, os milhares de brasileiros e brasileiras que não acessam os direitos básicos da cidadania, inclusive o cultural. Em sua busca por um “Estado ampliado”, o Cultura Viva pro-move o

acesso aos meios de formação, criação, difusão e fruição cultural, cujos

parceiros imediatos são agentes culturais, artistas, professores e militan-

tes sociais que percebem a cultura não somente como linguagens artísti-

cas, mas também como direitos, comportamento e economia (turino,

[s/ d], p. 15).

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A principal ação do Programa Cultura Viva é o Ponto de Cultura com o qual, através de um edital de seleção pública, o Minc apóia projetos culturais promovidos pela sociedade civil. O intuito é es-tabelecer uma rede entre estes pontos e o Estado de modo a promo-ver o fl uxo de informação, conhecimento, experiência.

E a s d i f e r e n ç a s . . .

Nessa breve passagem sobre os momentos paradigmáticos das relações entre Estado e cultura no Brasil se percebe como a questão da identidade nacional é recorrente a todos os perí-odos analisados. É como se fosse um enigma a ser desvendado pelos intelectuais orgânicos de cada governo, cuja possibili-dade de resposta parece necessariamente passar pela questão da diversidade cultural.

No entanto, como se observou, há algumas peculiaridades que se revelam em cada momento. Nos governos de Vargas e dos militares, interessados, respectivamente, em construir e integrar a Nação, o discurso acerca da identidade nacional conhece uma forte continuidade baseada no conceito de mes-tiçagem abordado de forma conservadora. A cultura mestiça garante que da diversidade de raça e de região surja a essência da brasilidade.

O caminho perseguido por estes dois momentos de autori-tarismo da história brasileira trabalha a identidade nacional, como diria Stuart Hall, “em termos de uma cultura partilhada, uma espécie de ‘ser verdadeiro e uno’ coletivo, oculto sob os muitos outros ‘seres’ mais superfi ciais ou artifi cialmente im-postos, que pessoas com ancestralidade e história em comum compartilham” (hall, 1996, p. 68). Por este viés, a identidade cultural fornece unicidade a um povo, a sua essência, através de referências e sentidos estáveis que pairam intocáveis sobre os confl itos e divisões sociais.

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O retorno à democracia nos anos 1990 comunga com o forta-lecimento no Brasil do ideário neoliberal que os governos fhc assumem como seu. A conseqüência para o campo cultural é a ratifi cação da política de incentivos fi scais iniciadas no governo Sarney. O discurso identitário, se perde o essencialismo auto-ritário e conservador dos anos 1930/ 40 e 1960/ 70, passa a ser pautado pela lógica do mercado globalizado. Uma vez posto em xeque o lugar unifi cador e integrador da identidade nacional, parece prevalecer o discurso liberal da diversidade, onde todos são iguais perante o mercado.

Com o governo Lula, tem-se uma reavaliação do que seria a identidade nacional brasileira que aponta para o pluralismo e a incorporação de expressões culturais historicamente excluí-das. A diversidade não resulta mais em uma síntese, pelo con-trário, é o pólo identitário que cede à diversidade e se multiplica em identidades. Há, por sua vez, a crítica à concepção mercado-lógica da cultura e a cobrança do papel fundamental do Estado como elaborador e executor de políticas culturais.

No entanto, mesmo fazendo referências às diferentes cul-turas, a gestão do ministro Gilberto Gil não consegue romper com a busca de uma harmonia entre os brasis. Não se coloca na sua radicalidade (no sentido de raiz e não de sectarismo) a ques-tão da identidade em seu confl ito com a alteridade, com a di-ferença. A relação identidade/ diversidade é fundamental para se perceber as diversas manifestações culturais que funcionam como referências identitárias, e muitas vezes efêmeras, para os vários grupos de uma sociedade. Os sentidos assumidos, por-tanto, não são fi xos e sim processuais e a identidade deixa de ser um fato consumado para ser uma produção.

Acontece que a diversidade não dá conta dos confl itos entre as culturas. Seu pressuposto é o da convivência harmoniosa, a fraternidade entre os povos do ideário iluminista que apontei acima no discurso de Lopes. Ou como na apresentação de Gil-

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berto Gil ao Seminário Diversidade Cultural Brasileira:

São fundamentais o respeito, a valorização e o convívio harmonioso das

diferentes identidades culturais existentes dentro dos territórios nacio-

nais (… ) podemos e devemos reconhecer e valorizar as nossas diferenças

culturais, como fator para a coexistência harmoniosa das várias formas

possíveis de brasilidade (gil, 2005, p. 07).

Esta concepção é a mesma que informa o discurso da unesco, órgão com o qual o Brasil vem construindo várias parcerias na área das políticas culturais. O título de seu relatório preparado pela Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento e pu-blicado em fi ns dos anos 1990 chama-se, sugestivamente, Nos-sa diversidade criadora. Creio que a esta perspectiva cabem a observações críticas de Tomaz Tadeu da Silva:

Na perspectiva da diversidade, a diferença e a identidade tendem a ser

neutralizadas, cristalizadas, essencializadas. São tomadas como dados ou

fatos da vida social diante dos quais se deve tomar posições. Em geral a

posição socialmente aceita e recomendada é de respeito e tolerância para

com a diversidade e a diferença. Mas será que as questões da identidade e

da diferença se esgotam nessa posição liberal?” (silva, 2000, p. 73).

A questão que se coloca é como uma política pública de cultura, além de trabalhar com as identidades e a diversidade, pode incor-porar as diferenças. Como lidar com as manifestações culturais que não se encaixam harmoniosamente como peças de um que-bra-cabeça porque suas arestas não permitem. Não se trata do res-peito tolerante ao Outro, daquilo que Slavoj Zizek denominou de noção horizontal da diferença, onde as diferenças acabam se ajustando em um mosaico cuja fi gura é a da Humanidade.

A questão é afi rmar as diferenças verticais, os antagonismos que atravessam a sociedade. É preciso “reafi rmar a noção de um

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antagonismo inerente que constitui o campo social” (zizek, 2002, p. 13). Em outro texto, Zizek aborda a lógica da “cultura descafeinada”, ou seja, a forma como a contemporaneidade vive suas manifestações como estilo de vida, ou seja, uma cultura sem paixão, sem crença, e não como um modo de vida substan-cial. Na atualidade, negamos todos aqueles que experimentam a cultura “de forma imediata, todos os que não guardam certo distanciamento em relação a ela” (zizek, 2004, p. 13).

Claro que não há uma resposta pronta para a questão. Mas o passo inicial é assumir a existência das diferenças irremedi-áveis. Parece-me que o MinC se orienta nesse sentido quando traz o debate para dentro do governo. No Seminário Diversi-dade Cultural Brasileira o confl ito está posto claramente pelos formuladores do roteiro. As respostas foram muitas e entre elas a refl exão de Jacyntho Brandão converge com o que estou expondo. Portanto, para fi nalizar este ensaio, recoloco ao de-bate os termos com os quais Brandão participou do seminário promovido pelo Ministério. Entre outras implicações, uma política cultural justa, na sua defi nição, seria a que provocasse “embates entre diferenças, balançando as certezas da cultura dominante”, tendo consciência que as “relações culturais são por natureza confl ituosas” (brandão, 2005, p. 82).

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( * )Universidade Federal do Rio Grande do Norte

D u r v a l M u n i z d e A l b u q u e r q u e J ú n i o r *

Gest ão ou Gest aç ão Públic a da Cultur a :alg uma s r e f le xõ e s s obr e o p ap el do E st ado na pr oduç ão cultur al contempor âne a

Para pensarmos o papel que o Estado pode exercer quando se trata da produção cultural contemporânea, ou mesmo para avaliarmos como devem se processar as relações entre os agentes do Estado e os produtores de formas culturais em nossa sociedade, temos que partir da constatação que tanto Estado como cultu-ra não são realidades óbvias. Quando pronunciamos estas palavras, que são conceitos, não estamos neces-sariamente dotando-as do mesmo signifi cado, ven-do-as com o mesmo sentido, não estamos necessa-riamente falando das mesmas “coisas”.

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Para debatermos a relação entre Estado e cultura é necessá-rio pensar o que defi nimos como sendo a cultura e que con-cepção de Estado possuímos, como imaginamos seu funcio-namento e o destino de suas políticas, como devem ser seus modos de governar, a que estratégias políticas deveria estar ligado, a que grupos sociais destinaria preferencialmente suas atividades. Abordar a relação entre Estado e cultura implica, pois, travar discussões teóricas e políticas que ponham em questão não apenas os sentidos atuais que possam ser dados a estes conceitos e às suas relações, mas também tratarmos, com uma perspectiva histórica, a forma como esta relação se estabeleceu em nossa sociedade, pelo menos nos últimos dois séculos, para dotar a discussão presente de uma certa pers-pectiva de distanciamento temporal, que a problematize e lhe dê profundidade.

Em grande parte do século xix, a noção de cultura recobria a produção de formas e matérias de expressão pertencentes ape-nas às elites das sociedades ocidentais. Possuir cultura era ter o espírito cultivado, era ser culto, era possuir uma formação escolar, era ser letrado e se dedicar a atividades do espírito, re-metendo tal sentido para o uso original da palavra cultura que, desde a antiguidade clássica, se referia ao cultivo do campo, ao trabalho transformador da terra inculta em terra fértil e pro-dutiva 1. Portanto, nesta concepção, alguns grupos sociais pos-suíam cultura e outros não. Possuir ou não cultura era motivo do estabelecimento de uma hierarquia que, inclusive, alijava a maior parte da população de qualquer atividade política orga-nizada e do direito de participar das atividades de governo.

O Estado imperial era um Estado patrimonialista, ou seja, dominado por uma minoria proprietária e que o usava em be-nefício próprio, por ter sido estruturado e por ser gerido por uma pequena elite letrada formada nos poucos cursos superio-res existentes no país ou, em sua maioria, em Universidades es-

1Sobre o conceito de cultura e sua história ver: elias, 1995; williams, 2000; laraia, 2004; sahlins, 2006; bosi, 1992.

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trangeiras, notadamente portuguesas. Ao monopólio da “cul-tura” correspondia o monopólio do governo, da ação pública 2.

Neste mesmo século, no entanto, como eco da Revolução Francesa e do pensamento liberal, em que um povo ideali-zado e abstrato emerge como sujeito da vida política e como parte da luta pela unifi cação tardia de nações como a Itália e a Alemanha, emerge o conceito de cultura popular. Este con-ceito introduzido por pensadores e artistas românticos como Herder e Goethe vem dar sentidos novos para o próprio ter-mo cultura 3. Este passa a ser associado à questão nacional e representar aqueles elementos que dariam uma identidade própria a cada nação, a cada povo. O conceito de cultura passa a ser anteposto ao conceito de civilização, que representaria o processo desencadeado pelo avanço das relações capitalistas, uma tendência unifi cadora e homogeneizadora das culturas trazida pelo avanço do progresso, apanágio da sociedade ur-bana e industrial. A cultura passa a ser aquilo próprio, aquilo específi co, aquilo que garantiria a singularidade, a identidade de cada povo e de cada nação, por isso mesmo, algo que se de-via preservar e defender das ameaças de extinção trazidas pelo processo civilizatório. As elites românticas vêem com desa-grado que o processo civilizatório havia se tornado o mito com o qual operavam as elites governantes da maioria dos pa-íses ocidentais 4. Estes Estados tendiam a apoiar políticas civi-lizatórias que, em muitos casos, ameaçavam o que chamavam de cultura nacional, ou mesmo, as várias culturas regionais que formavam esta cultura nacional.

Os românticos, muitos deles saídos das fi leiras das aristocra-cias em decadência, reagiam ao mito do progresso e da civiliza-ção, tão bem encarnados pelas burguesias triunfantes, voltan-do seus olhos para a produção cultural das camadas populares, notadamente, aquela advinda do campo e das pequenas co-munidades rurais, como sendo o que havia de mais autêntico

2 Sobre o Estado monárquico e sua relação com a cultura ver: sussekind, 1990; ventura, 1991; freyre, 2003; mota, 1999; fausto, 2006; miceli, 1984; lopez, 1995.

3 Sobre a relação entre romantismo e o surgimento da noção de cultura popular ver: certeau, 1995. Sobre a relação entre romantismo e a idéia de nação no Brasil, ver: ricupero, 2004; saliba, 2003.

4 Para a distinção entre as noções de cultura e civilização ver: elias, 1995; todorov, 1993.

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e puro na cultura nacional. A plebe, que antes era vista como bárbara e inculta, agora se torna o povo, guardião das mani-festações mais autenticamente nacionais, que detém a cultura popular matriz da produção da cultura erudita e nacional 5. As elites letradas nacionalistas e românticas teriam o papel de sal-vadoras destas manifestações culturais em vias de desaparece-rem, tragadas pela civilização e pela modernização, buscando preservá-las, colecioná-las, ordená-las e selecionar o que po-deria ser matéria para a produção de uma literatura e uma arte nacionais e depurar estas manifestações culturais populares do que possuíam de bárbaro, de rústico, de chulo, de ameaçador à ordem pública. Deste interesse pelo que produz o povo, des-de que este não tenha o novo rosto assustador do morador da cidade, dos subúrbios das cidades industriais, do operariado, das classes perigosas, nasce a “ciência do folclore” 6. A cultura popular nasce, assim, como um conceito elaborado pelas elites letradas para se apropriar das manifestações culturais popula-res, exercendo, sobre elas, uma censura, transformando-as em mote para uma cultura nacionalista ou regionalista.

Os primeiros letrados a se interessarem pela cultura popu-lar em nosso país, homens como Gonçalves de Magalhães ou Juvenal Galeno 7, pertencem a esta geração romântica e fazem dos temas populares apenas motivos para a elaboração de suas poesias eruditas. Eram homens que estavam ligados ao Estado imperial que, desde a criação de instituições como o Instituto Histórico e Geográfi co Brasileiro, em 1838, do qual o Impera-dor era mecenas e participante ativo de suas reuniões, buscava criar uma identidade nacional, mas assentada numa produção erudita, na produção de uma história, de uma etnografi a, de uma geografi a para o país 8. Daí porque será já na crise deste Es-tado monárquico, quando a chamada geração de 70, composta, em grande medida por simpatizantes da causa republicana, que emergirão os primeiros estudos de cultura popular, que não

5 Ver: michelet, 1988.

6 fernandes, 2003; lima, 2003; ortiz, 1992.

7 magalhães, 1998; galeno, 1965.

8 Ver: diehl, 1998; guimarães, 1988.

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apenas a usam como temáticas de elaboração erudita, mas que buscam realizar a sua autópsia que, nas palavras de François Hartog 9, signifi ca escavá-la, encontrá-la em suas fontes puras e autênticas e, através de suas atividades escriturísticas, regis-trar e dar voz a estas manifestações em vias de desaparecimen-to. Mello Moraes Filho e Silvio Romero 10 tornam-se pioneiros neste uso da cultura popular, inclusive para se colocarem contra as elites governantes, adotando o lado do marginalizado povo para denunciarem a própria marginalização das novas gerações emergentes no seio das camadas dominantes e médias que não encontravam espaço no aparelho estatal. Este povo que se es-tuda como curiosidade etnográfi ca, que representa a existência de outras temporalidades convivendo com o pretenso tempo do progresso e da civilização vivido pelas elites governantes do litoral, que são incapazes de olhar para sua própria gente que vive nos sertões entregues a outros ritmos temporais e a outros complexos culturais, seria o genuíno povo brasileiro e guarda-ria nossas tradições, embora requeresse urgentes políticas por parte do Estado, no sentido de ser resgatado da ignorância e da inferioridade, inclusive racial, em que se encontrava. Surge, nesta geração de pensadores, toda uma tensão que tende a atra-vessar grande parte das refl exões sobre a cultura popular daí em diante. Ou seja, estas elites gostam da cultura popular, mas simpatizam muito pouco com o povo que a produz, povo mes-tiço, povo atrasado, povo amolecido pelo clima dos trópicos, povo que necessita de políticas eugênicas urgentes para resga-tá-lo de sua indolência e de seu atraso racial e civilizacional 11.

Para o Estado, durante todo o Império, a cultura era a pro-dução letrada e erudita, era para ela que se voltava a sua política de mecenato, os incentivos diretos de um Imperador que bus-cou construir uma imagem de homem sábio e interessado pelas coisas do pensamento e da ciência 12. As manifestações cultu-rais de outros grupos sociais, quando não eram vistas com te-

9 hartog, 2003.

10 moraes fi lho, 1999; romero, 1985.

11 Ver: schwarcz, 1993; sevcenko, 2003; schwarks; costa, 2000; ventura, 1991.

12 schwarcz; 1998. schwarks; costa, 2000.

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mor e desprezo, sendo algumas delas motivo de repressão poli-cial, eram tratadas através do personalismo senhorial, em que o mecenato exercido por estas elites, fi nanciando, participan-do e até chefi ando algumas destas atividades culturais, tinha como contrapartida a homenagem e a subserviência, o serviço dos populares nelas envolvidos 13. Fazendo parte do que Freyre chamou de sociedade patriarcal, as manifestações culturais também se passavam, em grande medida, no âmbito privado e doméstico, com a intervenção direta da camada senhorial e de seu patronato e patrocínio. Era mais uma forma de estabelecer vínculos de afeto e de submissão entre camadas sociais distin-tas 14. A divergir, cada vez mais, desta forma de produção cultu-ral, apenas a cultura das ruas, das poucas concentrações urba-nas, onde tenderam a se desenvolver manifestações culturais de grupos marginalizados ou subalternos, resistindo nas bre-chas deixadas pela hegemonia cultural branca e europeizada, tais como: a capoeira e o maracatu, que tendem a ser vistas com maus olhos até pelos “estudiosos da cultura popular” 15. Como aponta os estudos de Sidney Chalhoub, sobre o Rio de Janeiro, ao lado da cidade branca, forma-se uma cidade negra, mestiça, com um cotidiano próprio, com atividades culturais variadas e distintas daquelas vivenciadas pelas elites 16.

O Estado republicano terá que lidar não apenas com estas novas culturas das ruas e das áreas periféricas das cidades, mas com aquelas que surgem nos morros e favelas do Rio de Janeiro ou nos alagados de Recife e Salvador, não esquecendo ainda que terá de tratar com a diversifi cação crescente das manifestações culturais que surgem com a emergência de novos grupos sociais, como o operariado urbano e as classes médias 17. À medida que a sociedade brasileira se torna mais complexa, mais diferenciadas e múltiplas passam a ser as demandas que o Estado recebe em relação a apoio e patrocínio, ou no mínimo, por reconhecimen-to e legitimidade para determinadas manifestações culturais. A

13 Ver: abreu, 1999; cunha, 2001; cunha, 2002; duarte, 1995.

14 freyre, 2001.

15 soares, 2004; bruhns, 2000; silva; reis, 1999; carvalho, 2002; arrais, 1998.

16 chalhoub, 1990, 1996, 2005.

17 costa, 1999; gomes, 2002; velloso, 2000; moraes, 1995; lesser, 2001; toledo, 2000.

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política de policiamento e de tentar “civilizar” e “disciplinar” as manifestações culturais populares, que agora devem estar a serviço da produção de um povo cidadão e trabalhador, já que é, pelo menos em teoria, o pilar sobre o qual se assenta o novo regime, provoca inúmeros confl itos durante a Primeira Repú-blica, entre a lógica autoritária e civilizatória, que está na base das políticas do Estado republicano, e os agentes produtores de manifestações culturais nas camadas populares. Episódios como os de Canudos, a Revolta da Vacina, a repressão à capo-eiragem, a Revolta da Chibata, mostram a incompreensão exis-tente num país segmentado entre uma elite com identidade eu-ropeizada e uma população majoritariamente mestiça, no corpo e nas manifestações culturais, muitas delas em aberto confl ito com o que se entendia por civilização 18. Esta tentativa de gerir as produções culturais desde o Estado, desde a perspectiva das elites, foi causadora de muitas tensões e de confl itos abertos entre distintos segmentos da sociedade brasileira. Insatisfação que também será vocalizada pelas camadas médias da socieda-de que se vêem alijadas do pacto oligárquico e que têm, apenas na subordinação e participação dos conluios oligárquicos e nas prebendas distribuídas pelo Estado, a chance de exercerem suas carreiras de produtores culturais e de eruditos 19.

A geração modernista e regionalista e tradicionalista ex-pressa essa insatisfação de novos grupos emergentes com o caráter patrimonialista e oligárquico com que as relações entre Estado e produção da cultura letrada se dão no país, denun-ciando, também, a completa miopia a qual as manifestações culturais populares são tratadas no país 20. Vivendo um mo-mento de acelerado processo de modernização e urbanização, com a emergência da sociedade burguesa entre nós, a geração de produtores culturais dos anos vinte marca uma infl exão na forma de se avaliar a relação entre Estado e manifestações culturais populares, introduzindo com muita força a idéia de

18 Ver: levine, 1995; cava, 1985; neves, 2001; roland, 2005; ortiz, 1999.

19 ortiz, 1998; saliba, 2002; miceli, 2003, 1977, 2001; lustosa, 1993; rago, 1985.

20 albuquerque jr., 2006; pontes, 1984.

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que um verdadeiro Estado nacional deve ser responsável pela formulação de uma política cultural para o país. O Estado não deveria ser apenas o mecenas episódico, nem aquele que apa-drinha seus apaniguados, mas deveria gerir a cultura, ter uma política cultural voltada para a produção de uma cultura na-cional, que reconhecesse a diversidade ou que incorporasse a diversidade regional, ponto de discórdia entre modernistas e regionalistas 21. O surgimento de novos meios de comunicação ou de novas manifestações artísticas, como o rádio e o cinema, passa a ser também uma preocupação destes formuladores de políticas culturais que, com a evolução do Estado pós-trinta para um Estado autoritário, com o advento do Estado Novo, advogam que esta gestão cultural torne-se, em grande medi-da, dirigismo cultural, acompanhado de censura e repressão a determinadas manifestações culturais 22.

A criação, por Vargas, de um Ministério voltado não só para a Instrução Pública, agora chamada de Educação, mas um Mi-nistério que traz a preocupação com a Cultura 23, realiza ins-titucionalmente a preocupação da geração modernista com a necessidade de uma política estatal de cultura, posta em prá-tica pioneiramente pelo próprio Mário de Andrade, no Depar-tamento Municipal de Cultura de São Paulo 2 4, que muito ex-trapolou os limites desta cidade, por ser uma clara expressão do projeto de hegemonia cultural em nível nacional das elites paulistas, que se esboçou com o modernismo e contra o qual se levantaram as elites que estavam se articulando em torno da idéia de Nordeste, com o movimento regionalista e tradi-cionalista. O Ministério dirigido por Capanema, para o qual constrói prédio monumental e exemplar da arquitetura e artes modernistas, onde simbolicamente se encontram pensadores e artistas de esquerda e de direita, em anos de forte polarização ideológica, vai expressar esta busca pelo estabelecimento de uma gestão da cultura, que desta forma nasce e fi cará associada

21 ortiz, 1998; bosi, 1997, 1991;

22 velloso, 1982.

23 araújo, 1999.

24 barbato jr, 2004.

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a momentos de exceção e autoritarismo político no país 25. Sem-pre que se falar na formulação de políticas culturais por parte do Estado e na necessidade de uma gestão para a cultura estes fantasmas autoritários serão trazidos à baila 26.

A adoção do nacional-popular como eixo central da formula-ção da política cultural durante a Era Vargas 27 levou a uma aten-ção maior às manifestações culturais populares que passam a ser objeto de intervenção e legitimação por parte do Estado 28, além de reforçar a atenção das elites letradas para a formulação de estudos e tentativas de interpretação do Brasil, que Carlos Guilherme Motta 29 chegou a chamar de redescobrimento do Brasil, matriz de muitos dos estudos clássicos sobre a histó-ria, a etnografi a, a sociologia e a antropologia brasileiras, como Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda, Vaqueiros e Cantadores de Luís da Câmara Cascudo e Formação do Brasil Contemporâneo de Caio Prado Júnior 30, possibilitando, inclusive, a emergência das primeiras universidades no país e o crescimento da indús-tria editorial, que permitiu a alguns intelectuais viver das le-tras 31. Ao mesmo tempo em que o carnaval e o samba saem da marginalidade e são alçados à condição de símbolos nacionais, as letras dos sambas que elogiam o malandro e a malandragem são censuradas pelo dip e a polícia passa a fi scalizar e defi nir até o tipo de fantasias que podiam ser usadas e os temas que as escolas de samba, recém-criadas, podiam levar para a avenida, recebendo patrocínio do Estado desde que abordassem temas patrióticos, de afi rmação da ética do trabalho e que exaltassem o regime 32. Embora o povo e o popular fossem, no discurso ofi cial do Estado, as matrizes da cultura nacional, o rosto deste povo ainda continua desagradando às autoridades, sempre que ele aparece fora das idealizações dos letrados. Portinari tem al-gumas de suas telas, onde estavam pintados corpos negros e mulatos, retiradas de uma mostra de arte nacional no exterior,

25 gomes, 2000.

26 fausto, 2001.

27Ver: sequeff; wisnik, 2001.

28 barros, 1973.

29 mota, 1998.

30 freyre, 2006; holanda, 1997; cascudo, 2005; prado jr, 1996.

31 barros, 1973.

32 kaz, 2004; tinhorão, 1998; contier, 1998; cabral, 1996.

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patrocinada pelo governo federal, por não representarem bem o que era o povo brasileiro 33.

O período de democratização que se segue vem consolidar, de certa forma, no imaginário nacional, a idéia de que governo formalmente democrático não possui política cultural, porque abre mão do dirigismo que seria característico dos regimes auto-ritários, preocupados em gerir para controlar a cultura, e aposta na liberdade dos agentes privados, que seriam responsáveis por produzir, gerir e legitimar a sua produção cultural 34. Os gover-nos que se sucederam até o golpe militar de 1964, quando volta a existir uma preocupação em formular políticas de Estado para a cultura, acompanhada da censura e da repressão, possuem po-líticas episódicas e setoriais para o fomento e o apoio às mani-festações culturais das diferentes camadas da sociedade. Se, por um lado, toda a estrutura institucional montada durante o Era Vargas foi mantida com os órgãos voltados para a gestão da cul-tura preservados, estes são paulatinamente esvaziados por fal-ta de recursos, ou mesmo pela perda de seus quadros técnicos, que são agenciados pela iniciativa privada, onde a emergência da cultura de massas e a ampliação da oferta de empregos bem remunerados, fora do setor público, possibilitam novas opor-tunidades ou pela aposentadoria de muitos deles. Da inoperân-cia do setor público de cultura e da falta de políticas culturais é que advém a emergência de uma série de movimentos culturais que passam ao largo do Estado e oxigenam a produção cultural brasileira entre os anos 40 e 60. Destacam-se as iniciativas em-presariais e privadas no campo do cinema, como as experiências da Atlântida e da Vera Cruz e no campo da museologia, como a criação do masp e a realização das bienais, voltadas para afi rmar simbolicamente o poderio da burguesia paulista. Ao mesmo tempo ocorrem os chamados movimentos populares de cultura, encabeçados por organizações estudantis, como a União Nacio-nal dos Estudantes, que funda os Centros Populares de Cultura,

33 Ver: miceli, 1996.

34 napolitano, 2001; ortiz, 1994.

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e pela Igreja Católica, que patrocina o Movimento de Educação Básica e a experiência com rádios rurais. Agrupamentos de in-telectuais de esquerda promovem experiências teatrais como as do Teatro de Arena, do Teatro Ofi cina, e do Grupo Opinião, e trazem para as telas de cinema os fi lmes do Cinema Novo.

A emergência de uma indústria cultural se manifesta através da ampliação sem precedentes da radiodifusão, da publicação de jornais e revistas, da emergência de uma indústria discográ-fi ca de massa, com a instalação das primeiras estações de televi-são, quando os produtos culturais começam a perder a sua aura de objeto sagrado e para poucos, os iniciados, e passam a ser vistos como objetos de consumo 35.

O crescimento acelerado da população, a formação de gran-des concentrações urbanas com o processo de industrialização e a alta concentração da propriedade da terra, que levam a um processo intenso de migrações entre cidade e campo, formam um mercado consumidor também em processo permanente de expansão para a produção cultural, que vai ganhando con-tornos de produção em massa. Quando o tropicalismo emer-ge como movimento cultural, nos anos sessenta, a questão do objeto cultural como mercadoria e ao mesmo tempo como forma nascida da criação e da gestação individual e coletiva já se coloca intensamente em debate 36. A participação do Estado é novamente requerida, seja por setores conservadores e tra-dicionalistas da sociedade, que vêem nele a possibilidade de se contrapor e barrar este processo de integração do mercado cultural brasileiro nos circuitos culturais mundiais, posição majoritária entre aqueles que fazem parte do Conselho Federal de Cultura, que vêem mais uma vez, na valorização da “cultu-ra popular ou do folclore”, uma possibilidade de reação a este processo de internacionalização, explicitado por movimentos como a bossa nova, o iê iê iê e o tropicalismo, seja por seto-res da esquerda que têm que se contorcer entre a rejeição da

35 Ver: lenharo, 1995; matos, 1997; bernadet e ramos, 1994; gomes, 1986; bernadet, 1978; bardi, 1992; meneguello, 1996; patriota, 1999; silva, 1981; tavares, 2006; almada, 2004; ridenti, 2000; napolitano, 2002.

36 favaretto, 1996; castelo branco, 2005; veloso, 1997.

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censura e da repressão cultural trazidos pelo regime 37 e a rei-vindicação de que este Estado formule políticas e institucio-nalize ações em favor da cultura brasileira, como se explicita na posição de Glauber Rocha diante da criação da Embrafi lme e que este enfrente a questão nuclear do caráter mercantil que adquiriu a cultura 38.

Findo o longo período da ditadura, colocam-se para os no-vos governos democráticos os mesmos desafi os de como gerir a cultura sem dirigir a cultura. A criação do Ministério da Cultura aparece como sendo o indício de que algo mudaria no que tange à gestão das políticas culturais no Brasil. Padecendo da mesma penúria fi nanceira que os antigos órgãos de gestão da cultura, oscilando entre diferentes posições quando se trata de como se relacionar com os produtores culturais e a que agentes culturais se dirigir, o MinC em sua curta trajetória tem sido motivo de explicitação de tensões e confl itos que atravessam a área de pro-dução cultural como colorário das próprias divisões e tensões que atravessam a sociedade brasileira e, por que não dizer, in-ternacional, já que vivemos um momento novo na história, que se caracteriza pela possibilidade da troca rápida de informações e de matérias e formas de expressões culturais, não que isto não tenha ocorrido antes, muito pelo contrário, pois o que sempre caracterizou as culturas foi sua capacidade de circulação, embo-ra não com a intensidade e velocidade com que acontece hoje 39. Vivemos agora, no governo Lula, momento simbólico em que alguém vindo das próprias camadas populares governa o país, na gestão de Gilberto Gil, um tropicalista gerindo as políticas culturais, a explicitação de questões seculares no que tange à própria compreensão do que seja cultura, de quem são seus agentes, e de como o Estado deve se relacionar com eles. Des-de a realização do Fórum Cultural Mundial e agora quando se discute a elaboração de um plano nacional de cultura, algumas questões históricas voltam a ser colocadas em debate, e penso

38 napolitano, 2001; ridenti, 2005; reis fi lho, 1998, 1997; gomes, 1991; gomes, 1997; araújo, 2000

39 napolitano, 2002; ortiz, 2006, 2006; weffort e souza, 1998; weffort,2000; furtado, 1978.

37 aquino, 1999; stephanou, 2001; carneiro, 2002.

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em dedicar algumas linhas agora para analisá-las.A primeira questão que tem sido colocada contra a certa insis-

tência por setores comprometidos com uma visão neoliberal é a de que realmente se deva ter política cultural por parte do Esta-do. Aproveitando do fato de que no imaginário nacional há uma percepção de que somente em períodos autoritários o Estado pre-tendeu gerir a cultura, estes setores se insurgem contra qualquer intervenção reguladora do setor público nas questões culturais, posição caricaturalmente denominada por famoso cineasta de stalinismo cultural, embora, estes mesmos setores, não deixem de reivindicar certo mecenato por parte do poder público, desde que atenda a seus interesses privados. É o funcionamento ainda da lógica patrimonialista, onde o Estado é apropriado pelos inte-resses privados, no mesmo passo em que se coloca como isento de intervir nos confl itos sociais. Esta pergunta é em si mesma fa-laciosa, pois numa sociedade atravessada por inúmeros confl itos e contradições – de classe, de geração, étnicos, de gênero, que se expressam sempre em termos culturais, pois já não concebemos a cultura como uma superestrutura, ou uma camada decorativa do bolo social, pois sabemos que todas as atividades humanas se expressam culturalmente – as atividades econômicas também são expressões culturais, as atividades políticas, as atitudes coti-dianas, todas se materializam através de códigos culturais. Não ter política cultural nenhuma já é, em si mesma, ter uma política, já é tomar uma posição, a pior delas, talvez, pois o Estado abre mão de seu papel de mediador de interesses e confl itos, para en-tregar a gestão e a regulação da produção cultural aos interesses privados, empresariais, que hoje se expressam através de gran-des conglomerados industriais de mídia, que dominam seja o mercado nacional, seja o mercado internacional.

Desta questão uma outra imediatamente se deriva, ou seja, que forma de gestão deve ser exercida quando se trata de orien-tar políticas culturais? Para responder esta questão é preciso ter

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muito clara a relação que há entre a forma de governar que carac-teriza um dado Estado e o conjunto de forças sociais que estão nele representadas. Uma política de gestão cultural expressa-rá, portanto, a compreensão do que seja cultura, o que deve ser nela valorizado e incentivado pelos grupos sociais que estejam diretamente envolvidos no controle do Estado. Para contarmos com uma gestão democrática das instituições culturais e uma política cultural inclusiva e pluralista que, ao mesmo tempo, fuja de qualquer tentação populista, como já ocorreu em outros momentos da história do país – populismo que quase sempre se expressa através do culto a um povo folclórico, um povo ide-alizado, mas que não tolera o povo com sua face diversifi cada, confl ituosa, problemática, instauradora de questionamentos, de confl itos e dissensões, no campo social e cultural – e do me-cenato ou do clientelismo cultural, atendendo apenas àqueles ligados aos pequenos grupos que controlariam a máquina do Estado, seja em que nível de governo for, precisamos criar um Estado aberto às diferentes demandas sociais, inclusive por formas culturais divergentes. Estado atravessado pelos dife-rentes interesses que convivem na sociedade, que possa ser o mediador entre as diferentes concepções políticas e estéticas que se cruzam na sociedade. Estado aberto à participação das minorias sociais, aos grupos divergentes, que devem ter no Es-tado um garantidor de que suas matérias e formas de expressão culturais não hegemônicas possam ter acesso aos canais de co-municação, às centrais de distribuição de sentido.

Não se trata mais de pensar o Estado como o mecenas, o cen-sor ou o formulador de bens culturais, mas como o regulador e o investidor em áreas e em expressões culturais que não são do interesse da iniciativa privada ou que não visem imediata-mente o lucro, mas a formação de subjetividades mais demo-cráticas e mais problematizadoras do mundo em que vivemos. Para termos políticas culturais mais inclusivas e democráticas

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é preciso transformar o Estado brasileiro nesta direção. Cabe ao Estado estabelecer relações com os agentes da produção cul-tural, inclusive populares, que não se baseiem no clientelismo, no apadrinhamento, na troca de favores e homenagens. Adotar uma política voltada para a gestão participativa e democrática dos recursos destinados ao patrocínio cultural, estabelecendo uma relação republicana com os agentes da produção cultural, baseada no reconhecimento do mérito, na oferta de oportu-nidades equânimes para todos e, em casos específi cos, adotar políticas compensatórias e de estímulo a grupos sociais cujo grau de desorganização e défi cit de poder os impeça de aparecer com o mínimo de possibilidade na concorrência no mercado de bens simbólicos.

É preciso superar as políticas culturais apoiadas no discurso da identidade, seja nacional, seja regional ou local, quase sem-pre excludentes, pois manipuladoras de mitos a serviço da ma-nutenção de um imaginário favorável aos grupos que controlam o Estado. Vivemos num mundo cuja característica é a multipli-cidade dos signos e matérias e formas de expressão culturais. Em todos os países, e esta tem sido uma marca importante da sociedade brasileira, cada vez mais o que prevalece são as mis-turas culturais, os hibridismos, as mestiçagens, tal como já cha-mavam à atenção os tropicalistas nos anos sessenta 40. Nossas sociedades estão marcadas por numerosos processos de desen-raizamento, onde falar de cultura de raiz ou de tradição se torna cada vez mais difícil e desatualizado. Vivemos processos claros de superação das fronteiras que antes pretensamente demarca-vam os pertencimentos culturais. As mulheres conquistaram, ao longo do século passado, o direito de problematizar as anti-gas fronteiras que separavam o masculino do feminino. Cami-nhamos, pois, para uma cultura caracterizada pela androginia e pela multiplicidade cada vez maior das formas de ser homens e mulheres; os modelos se diversifi cam e se tornam cada vez

40 Ver: bahba, 2003; canclini, 2006, 2005, 2003; bauman, 2005,1998; serres,1997.

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mais tênues as demarcações. Embora ainda muito arraigadas, as fronteiras que separam as etnias em nosso país, também vêm sendo corroídas pela atuação política dos negros e de muitos movimentos sociais de defesa dos direitos humanos. A cultura afro-brasileira, antes reclusa aos guetos e periferias das cidades, ou folclorizada nos salões e nas praças públicas sobre controle dos brancos, ganha cada vez mais autonomia e se coloca não apenas como expressão cultural e estética diversa, mas como expressão de diferentes concepções políticas e éticas que nas-cem das formas diferenciadas de ler a sociedade que partem dos grupos minoritários ou subalternizados. O Estado deve se tor-nar mais democrático e criar espaços para que esta diversidade e esta alteridade se expressem. Para isso é fundamental sair do excludente discurso da identidade que, em nosso país, sempre teve a cara das elites brancas ou dos subalternos folclorizados e emasculados em seu potencial de questionamento e de con-testação. Lampião, Jesuíno Brilhante, Jararaca, podem se tornar símbolos de uma pretensa identidade cultural agora que estão mortos e não oferecem mais perigo; quando vivos eram apenas facínoras e monstros humanos. Capoeira e maracatu se tornam manifestações típicas, quando se transformam em danças ou rituais pacifi cados e dentro da ordem. Talvez em pouco tempo o rap e o hip hop tornem-se expressões da identidade nacional, quando forem fi nalmente domados em sua diferença e capaci-dade de questionamento.

A adoção de políticas regulatórias do mercado de bens sim-bólicos, do mercado de produtos culturais e do mercado de trabalho da indústria cultural é outro papel relevante que deve assumir o Estado, neste momento. As empresas de produção cultural são, cada vez mais, parte importante da produção eco-nômica e do mercado de trabalho no país e devem estar, pois, reguladas por legislação específi ca. O caráter estratégico de-sempenhado na sociedade da informação e da comunicação

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pelos médias, coloca na ordem do dia a necessidade de que o Estado formule políticas e adote medidas de regulação no que tange, inclusive, aos tipos de conteúdos que devem ser aí vei-culados, não adotando censura ou exercendo controle sobre os mesmos, mas assumindo o seu papel de indutor de determina-das produções ou no sentido de que determinados conteúdos devam estar presentes nos veículos de comunicação. A demo-cratização destes espaços é um dos grandes desafi os não ape-nas para a democratização da produção cultural brasileira, mas para a própria sociedade brasileira. Como espaços públicos não estatais, os meios de comunicação de massa não podem aten-der apenas aos interesses imediatos de seus controladores; eles devem estar a serviço da efetivação de políticas públicas, deci-didas coletivamente. O espaço midiático deve também passar por um processo de redistribuição e redivisão, para que outras forças sociais possam ter acesso a um quinhão deste território e possam veicular visões alternativas e divergentes sobre o so-cial, a política, a cultura, a história, sob pena da democracia ser entre nós apenas um construto formal.

Uma gestão democrática da cultura passa, para mim, pelo reconhecimento de que deva haver a gestação pública da cultu-ra, que esta deva contemplar a pluralidade das manifestações culturais e abrir espaço para a multiplicidade de seus agentes, que os confl itos que atravessam o social devam se explicitar nas próprias atividades culturais que são apoiadas e contem-pladas pelas políticas públicas. As produções culturais apoia-das pelo Estado não devem ser o coro dos contentes ou apenas dos descontentes, devem sim dar espaço para que a diversidade cultural se manifeste e com autonomia. Este é o grande desa-fi o colocado para todos os agentes que participam desta relação entre Estado e produção cultural, que é o de gerir a diferença e confl ito, a dissensão e a discórdia, sem querer reduzi-los ou apagá-los, mas aceitá-los como índice de potência e de pujança.

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Não apenas dizer o múltiplo, mas fazer o múltiplo, aceitar e conviver com o entre-lugares, com o que não se defi ne, com o que não se identifi ca, com o que é transitório e transitivo, tran-sa, transe, transado… conviver com o fracasso das sínteses dialéticas, afi rmar a convivência e coexistência dos contrários, do múltiplo no Uno, da diferença na semelhança, do planetá-rio no local e do local no universo, pois cultura no fundo não existe, existem trajetórias culturais, fl uxos culturais, que só se tornam culturas quando sedentarizados, territorializados, domados, mas que nunca deixam de trazer em si o potencial de desterritorialização, nomadismo, rebeldia, por isso sempre será difícil, embora desafi adora, a relação entre Estado, como agente da territorialização, da sedentarização, da domestifi ca-ção das pessoas e coisas, e as matérias e formas de expressão culturais, que ameaçam sempre escaparem de seus dedos, de seus controles e que, por outro lado, podem, uma vez apoiadas na máquina do Estado, adquirir novos potenciais desafi adores. Estado e cultura, estado de cultura, estado de humano, angús-tia e desafi o, dúvidas e certezas, confl itos… este é o jogo que sempre teremos que jogar.

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*Lia Calabre, doutora em história pela uff, pesquisadora e chefe do setor de estudos em política cultural da Fundação Casa de Rui Barbosa.

L i a C a l a b r e *

Polít ic a s cultur ais no Br a sil :balanço & per spec tiv a s

No Brasil a relação entre o Estado e a cultura tem uma longa história. Entretanto a elaboração de políticas para o setor, ou seja, a preocupação na preparação e realização de ações de maior alcance, com um cará-ter perene, datam do século xx 1. O estudo de tais políticas também é um objeto de interesse recente. Sobre as décadas de 1930 e 1940 existe um número razoável de trabalhos que tratam da ação do estado sobre a cultura. É importante ressaltar que na maio-ria dos casos as ações não são necessariamente trata-das como políticas culturais. Segundo Eduardo Ni-vón Bolán, a política cultural como uma ação global e organizada é algo que surge no período pós-guerra, por volta da década de 1950.

1 Foi a partir da década de 1930 que Estado brasileiro passou por um processo de reforma administrativa que tentou implantar políticas governamentais específi cas e com alcance nacional para uma série de setores. No recenseamento de 1940, por exemplo, a cultura mereceu a publicação de um volume específi co, com considerações sobre as diversas áreas de abrangência.

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Até então, o que se verifi cava eram relações, de tensão ou não, entre o campo do político e o da cultura e da arte em geral, gerando atos isolados. A institucionalização da política cultu-ral é uma característica dos tempos atuais.

Um marco internacional na institucionalização do campo da cultura foi o da criação, em 1959, do Ministério de Assuntos Culturais da França, promovendo ações que se tornaram refe-rencia para diversos países ocidentais. Philippe Urfalino em um estudo sobre o que denomina de a “invenção da política cultural da França” chama a atenção para o fato de que a política cultural evolui a partir do somatório de ações dos segmentos adminis-trativos, dos organismos em geral e dos meios artísticos inte-ressados e que, de certa forma, os estudos de política cultural contribuem para a constituição de uma espécie de história da ideologia cultural do Estado. (urfalino, 2004, p. 10–11)

Este artigo, na primeira parte, pretende resgatar sintetica-mente a trajetória histórica da relação estado/ cultura no campo das políticas culturais, com a atenção voltada para alguns mo-mentos que podem ser considerados marcos nos processos de mudança. Em seguida são apresentadas algumas considerações sobre o papel a ser cumprido pelas políticas culturais, acompa-nhadas de alguns dos desafi os para a realização das mesmas.

R e c o m p o n d o a c e n a h i s t ó r i c a

Durante o governo de Getúlio Vargas (1930–1945) foram im-plementadas o que se pode chamar de primeiras políticas pú-blicas de cultura no Brasil. Nesse período, foi tomada uma série de medidas, objetivando fornecer uma maior institucionali-dade para o setor cultural. O exemplo mais clássico dessa ação está na área de preservação do patrimônio material quando em 1937, foi criado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (sphan). Desde a década de 1920, os intelectuais mo-

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dernistas vinham realizando uma forte campanha em favor da preservação das cidades históricas, em especial daquelas per-tencentes ao ciclo do ouro em Minas Gerais. Outras iniciativas federais do período são a criação do Instituto Nacional de Ci-nema Educativo (ince) e do Instituto Nacional do Livro (inl). Em julho de 1938 foi criado o primeiro Conselho Nacional de Cultura, composto por sete membros.

No volume sobre a Cultura Brasileira, publicado junto com o Recenseamento Geral do Brasil de 1940, o governo registrava a intenção de criar um órgão de pesquisa estatística específi co para as áreas de educação e cultura. Foi também merecedora de atenção especial pelo governo Vargas a área da radiodifusão 2. O decreto-lei n° 21.111, de 1932, regulamentou o setor, norma-tizando, inclusive, questões como a da veiculação de publici-dade, da formação de técnicos, da potência de equipamentos, entre outras. (calabre. 2003)

O período seguinte, entre 1945 e 1964, o grande desenvolvi-mento na área cultural se deu no campo da iniciativa privada. Em 1953, o Ministério da Educação e Saúde foi desmembrado, surgindo os Ministérios da Saúde (ms) e o da Educação e Cul-tura (mec). O Estado não promoveu, nesse período, ações di-retas de grande vulto no campo da cultura. Em linhas gerais a estrutura montada no período anterior foi mantida. Algumas instituições privadas como o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o Museu de Arte de São Paulo, a Fundação Bienal, entre outras, foram declaradas de utilidade pública e passaram a receber subvenções do governo federal, porém sempre de ma-neira descontinuada, nada que se possa chamar de uma política de fi nanciamento ou de manutenção de instituições culturais. Alguns grupos, como o Teatro Brasileiro de Comédia, tam-bém receberam auxílio fi nanceiro do governo. Era o momento do crescimento e da consolidação dos meios de comunicação de massa – do rádio e da televisão mais especifi camente, mas

2 As áreas de rádio e depois de televisão nunca estiveram sob a gestão dos ministérios da Educação ou da Cultura.

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também do cinema. O término da Segunda Guerra Mundial, em 1945, permitiu o retorno da produção de aparelhos de rádio e de equipamentos de transmissão. Ainda na década de 1940, o número de emissoras de rádio cresceu na ordem de 100% 3. Na década de 1950 a televisão chegava ao Brasil se popularizando rapidamente. No campo da produção artística em geral, sur-giam grupos que propunham a utilização de novas linguagens aliada a uma maior autonomia no processo de criação.

Em 1961, o presidente Jânio Quadros recriou o Conselho Nacional de Cultura, subordinado a presidência da República e composto por comissões das áreas artísticas e de alguns órgãos do governo. A idéia era a da instalação de um órgão responsável pela elaboração de planos nacionais de cultura. Com as mudan-ças políticas do país, já em 1962, o Conselho retorna para a su-bordinação do mec, mantendo as suas atribuições.

A partir de 1964, com o início do governo militar os rumos da produção cultural são alterados, o Estado foi retomando o projeto de uma maior institucionalização do campo da pro-dução artístico-cultural. Durante a presidência de Castelo Branco (1964–1967), surgiu nos quadros do governo a discus-são sobre a necessidade da elaboração efetiva de uma política nacional de cultura. Em meados de 1966 foi formada uma co-missão para estudar a reformulação do Conselho Nacional de Cultura de maneira a dotá-lo de estrutura que o possibilitasse assumir o papel de elaborador de uma política cultural de al-cance nacional. (calabre, 2006)

Em novembro de 1966, foi criado o Conselho Federal de Cultura (cfc), composto por 24 membros indicados pelo Pre-sidente da República. Alguns planos de cultura foram apresen-tados ao governo, em 1968, 1969 e 1973, mas nenhum deles foi integralmente posto em prática. A questão central dos planos era a da recuperação das instituições nacionais – tais como a Bi-blioteca Nacional, o Museu Nacional de Belas Artes, o Instituto

3 Segundo os dados publicados nos Anuários Estatísticos do ibge, entre os anos de 1940 e 1944 foram inauguradas 39 novas emissoras de rádio e no período de 1945 a 1949 foram 79 novas emissoras.

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Nacional do Livro etc. – de maneira que pudessem passar a exer-cer o papel de construtores de políticas nacionais para suas res-pectivas áreas. O cfc tinha a atribuição de analisar os pedidos de verba ao mec instituindo uma política de apoio a uma série de ações, papel exercido efetivamente até 1974. Durante muito tempo a estrutura do Ministério esteve toda voltada para a área de educação. O Departamento de Assuntos Culturais (dac), dentro do mec, foi criado somente em 1970, através do Decreto 66.967.

No fi nal do governo do Presidente Médici (1969–1974), du-rante a gestão do ministro Jarbas Passarinho (1969–1973), foi elaborado o Plano de Ação Cultural (pac), apresentado pela im-prensa da época como um projeto de fi nanciamento de eventos culturais. O pac abrangia o setor de patrimônio, as atividades artísticas e culturais, prevendo ainda a capacitação de pessoal. Ocorria, então, um processo de fortalecimento do papel da área da cultura 4. Lançado em agosto de 1973, o Plano teve como meta a implementação de um ativo calendário de eventos culturais patrocinados pelo Estado, com espetáculos nas áreas de músi-ca, teatro, circo, folclore e cinema com circulação pelas diversas regiões do país, ou seja uma atuação no campo da promoção e difusão de atividades artístico-culturais 5.

A gestão do ministro Ney Braga, durante o governo Geisel (1974–1978), foi um período de efetivo fortalecimento da área da cultura, com a criação de órgãos estatais que passaram a atuar em novas áreas, tais como: o Conselho Nacional de Direito Au-toral (cnda), o Conselho Nacional de Cinema, a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro e a Fundação Nacional de Arte (fu-narte). Para Sérgio Miceli o ministro Ney Braga conseguiu:

[…] inserir o domínio da cultura entre as metas da política de desenvolvi-

mento social do governo Geisel. Foi a única vez na história republicana

que o governo formalizou um conjunto de diretrizes para orientar suas

4Os recursos fi nanceiros do pac vinham do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (fnde).

5 “Um dia para a cultura”. In: Veja, p. 66–70. 15/08/1973.

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atividades na área da cultura, prevendo ainda modalidades de colaboração

entre os órgãos federais e de outros ministérios, como por exemplo, o Ar-

quivo Nacional do Ministério da Justiça e o Departamento Cultural do

Ministério das Relações Exteriores, com secretarias estaduais e munici-

pais de cultura, universidades, fundações culturais e instituições privadas.

(miceli,1984, p. 75)

A criação dos novos órgãos cumpria parte das metas previstas na Política Nacional de Cultura, que tinha como objetivos principais: “a refl exão sobre qual o teor da vida do homem brasileiro, passando à preservação do patrimônio, ao incentivo à criatividade, à difusão da criação artística e à integração, esta para permitir a fi xação da personalidade cultural do Brasil, em harmonia com seus elemen-tos formadores e regionais.” A Política havia sido elaborada por um grupo de trabalho, a pedido do Ministro, contendo defi nições, fundamentos legais e traçando as diretrizes de atuação do mec.

Nesse mesmo período tinha início, fora do âmbito do mec, um projeto que resultou na criação do Centro Nacional de Refe-rência Cultural (cnrc)6. O Ministério da Indústria e Comércio e o governo do Distrito Federal fi rmaram um convênio preven-do a formação de um grupo de trabalho, sob a direção de Alo-ísio Magalhães, para estudar alguns aspectos e especifi cidades da cultura e do produto cultural brasileiro. Os principais obje-tivos do projeto eram o de propiciar o desenvolvimento econô-mico, a preservação cultural e a criação de uma identidade para os produtos brasileiros. Em 1976 o projeto foi defi nitivamente ofi cializado através de um convênio entre a Secretaria de Pla-nejamento, o Ministério das Relações Exteriores, o Ministério da Indústria e do Comércio, a Universidade de Brasília e a Fun-dação Cultural do Distrito Federal. Em 1979, Aloísio criou, no âmbito do mec a Fundação Nacional Pró-Memória, ampliando o trabalho do cnrc (magalhães,1997).

No fi nal da década de 1970 temos mais um momento des-

6O cnrc deu origem, em 1979, a Fundação Nacional Pró-Memória.

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tacado no processo de redirecionamento da política do Minis-tério. O Departamento de Assuntos Culturais foi substituído pela Secretaria de Assuntos Culturais. Mais que uma simples troca de títulos ocorreu uma clara divisão da atuação em duas vertentes distintas dentro de uma mesma secretaria: uma ver-tente patrimonial 7 e outra de produção, circulação e consumo da cultura. O papel da Secretaria fi cava mais fortalecido dentro do mec. Em 1981, Aloísio Magalhães assumiu a direção da se-cretaria que passou a se chamar Secretaria de Cultura, sendo formada por duas subsecretarias: a de Assuntos Culturais – li-gada a funarte e a de Patrimônio ligada ao iphan e a Funda-ção Pró-Memória. (botelho, 2000)

O processo de institucionalização do campo da cultura dentro das áreas de atuação de governo ocorrido na década de 1970 não fi cou restrito ao nível federal. Nesse mesmo período o número de secretarias de cultura e de conselhos de cultu-ra de estados e municípios também cresceu 8. Em 1976, ocor-reu o primeiro encontro de Secretários Estaduais de Cultura, dando origem a um fórum de discussão que se mantém ativo e que muito contribuiu para reforçar a idéia da criação de um ministério independente.

Em 1985, durante o governo do Presidente José Sarney, foi criado o Ministério da Cultura. Dentro dos órgãos que compu-nham a Secretaria de Cultura muitos eram de opinião de que mais valia uma secretaria forte que um ministério fraco. Um dos maiores defensores dessa idéia foi Aloísio Magalhães, que havia falecido em 1982. Logo de início o Ministério enfrentou muitos problemas, tanto de ordem fi nanceira como adminis-trativa. Faltava pessoal para cuidar do conjunto de atribuições que cabem a um Ministério, recursos fi nanceiros para a manu-tenção dos programas existentes e até mesmo espaço físico para a acomodação da nova estrutura. Ocorreu também um proces-so de substituição contínua na chefi a da pasta. José Aparecido

7Defi nida por Aloísio Magalhães como aquela que está “preocupada em saber guardar o já cristalizado de nossa cultura, buscando identifi car esse patrimônio, recupera-lo, preserva-lo, revitalizá-lo, reverenciá-lo e devolvê-lo a comunidade a que pertença”. (Magalhães, 1997. p. 144)

8As primeiras secretarias e conselhos de cultura datam da década de 1960.

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de Oliveira foi nomeado Ministro da Cultura, logo substituído por Aluísio Pimenta, que por sua vez passou o cargo, em 1986, para Celso Furtado.

Na tentativa de criar novas fontes de recursos para a impul-sionar o campo de produção artístico-cultural foi promulgada a primeira lei de incentivos fi scais para a cultura. A Lei n° 7.505, de 02 de junho de 1986, que fi cou conhecida como Lei Sarney. O objetivo era o de buscar superar as difi culdades fi nanceiras que o campo da administração pública federal da cultura sem-pre enfrentou. O orçamento fi cava em grande parte compro-metido com a administração do Ministério e de seus órgãos vinculados. A criação do novo Ministério acabou por signifi car um menor aporte de recursos fi nanceiros para a área. Diferen-temente da educação, a cultura não conseguiu criar um fundo que não sofresse cortes orçamentários.

Em 1990, sob o governo de Fernando Collor o Ministério da Cultura foi extinto junto com diversos de seus órgãos 9. A es-trutura que naquele momento era insufi ciente, fi cou em situa-ção insustentável. Muitos dos funcionários dos órgãos extintos foram colocados em disponibilidade. Diversos projetos e pro-gramas foram suspensos. A Lei Sarney, que vinha apresentando alguns problemas na forma de aplicação também foi revogada. Entre março de 1990 e dezembro de 1991, o governo federal não realizou investimentos na área da cultura. A retirada do governo federal de cena fez com que uma maior parte das atividades cul-turais passassem a ser mantidas pelos estados e municípios 10.

Em 23 de dezembro de 1991, foi promulgada a Lei° 8.313, que instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura. A nova lei, que fi cou conhecida como Lei Rouanet, era um aprimoramento da Lei Sarney e começou, lentamente, a injetar novos recursos fi nanceiros no setor através do mecanismo de renúncia fi scal.

Em 1992, sob o governo de Itamar Franco, o Ministério da Cultura foi recriado e, a partir daí, também algumas de suas

9Foram extintos: a Fundação Nacional de Artes Cênicas – fundacen; a Fundação do cinema Brasileiro; a embrafi lme; a Fundação Nacional Pró-leitura, o Conselho Federal de Cultura, Conselho Consultivo do Sphan. A Fundação Pró-Memória e o sphan foram transformados em Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural e a funarte em Instituto Brasileiro de Arte e Cultura (ibac).

10A Constituição de 1988 forneceu aos municípios uma maior autonomia, delegando aos mesmos algumas responsabilidades. Essa nova conjuntura política contribuiu para a ampliação da ação dos governos locais sobre as atividades culturais.

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instituições como a funarte. Em seguida, em 1993, foi criada uma lei de incentivo específi ca para a área do audiovisual, com foco especial no cinema, ampliando os percentuais de renúncia a serem aplicados. Tinha início o processo da conformação de uma nova política, mais voltada para as leis de mercado, na qual o Ministério tinha cada vez menos poder de interferência.

A gestão do Ministro Francisco Weffort, sob a presidên-cia de Fernando Henrique Cardoso, foi o momento da con-sagração desse novo modelo que transferiu para a iniciativa privada, através da lei de incentivo, o poder de decisão sobre o que deveria ou não receber recursos públicos incentivados. Ao longo da gestão Weffort, a Lei Rouanet se tornou um im-portante instrumento de marketing cultural das empresas patrocinadoras. A Lei foi sofrendo algumas alterações que foram subvertendo o projeto inicial de conseguir a parceira da iniciativa privada em investimentos na área da cultura. As alterações ampliaram um mecanismo de exceção, o do aba-timento de 100% do capital investido pelo patrocinador. Em síntese isso signifi ca que o capital investido pela empresa, que gera um retorno de marketing, é todo constituído por dinhei-ro público, aquele que seria pago como impostos. O resultado fi nal é a aplicação de recursos que eram públicos a partir de uma lógica do investidor do setor privado. Esta passou a ser a política cultural do ministério na gestão Weffort.

O resultado de todo esse processo foi o de uma enorme con-centração na aplicação dos recursos. Um pequeno grupo de produtores e artistas renomados são os que mais conseguem obter patrocínio. Por outro lado grande parte desse patrocí-nio se mantém concentrado nas capitais da região sudeste. As áreas que fornecem aos seus patrocinadores pouco retorno de marketing são preteridas, criando também um processo de investimento desigual entre as diversas áreas artístico-cul-turais, mesmo nos grandes centros urbanos. Essa foi a con-

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juntura herdada pelo Ministro Gilberto Gil, no governo do Presidente Lula.

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Partindo de um conceito de cultura que englobe o conjunto dos saberes e dos fazeres a relação estado e cultura passa a estar pre-sente no conjunto dos órgãos que compõem o governo. Logo, a elaboração de políticas deve partir da percepção da cultura como de bem da coletividade e da observação da interferência nas práticas culturais enraizadas das ações levadas a cabo pelas mais diversas áreas governamentais (saúde, educação, meio-ambiente, planejamento urbano, entre outras) 11.

Durante muito tempo a ação do Estado fi cou restrita a pre-servação daquilo que comporia o conjunto dos símbolos for-madores da nacionalidade, tais como o patrimônio edifi cado e as obras artísticas ligadas à cultura erudita (composições, escri-tos, pinturas, esculturas etc). O papel de guardião da memória nacional englobava atribuições de manutenção de um conjunto restrito de manifestações artísticas. As manifestações popula-res deveriam ser registradas e resgatadas dentro do que poderia ser classifi cado como o folclore nacional 12.

A partir da década de 1950 os organismos internacionais pas-sam, gradativamente, a trabalhar com a noção de bens culturais, tornando usual a expressão patrimônio cultural. Em 1972, temos a Carta do México em defesa do patrimônio cultural, que apre-senta a defi nição de patrimônio como o “conjunto dos produtos artísticos, artesanais e técnicos, das expressões literárias, lingü-ísticas e musicais, dos usos e costumes de todos os povos e gru-pos étnicos do passado e do presente”. Também nesse momento, dentro da convenção da unesco, a Bolívia lidera um movimen-to pela realização de estudos que apontassem formas jurídicas de proteção às manifestações da cultura tradicional e popular.

11Essas recomendações se encontram presentes nos documentos internacionais da Unesco e são partilhadas por uma série de estudiosos como Isaura Botelho, entre outros.

12 É interessante observar que no momento da criação do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ainda não era usual o conceito de patrimônio cultural e que independente das recomendações presente no projeto original de Mário de Andrade, prevaleceu no decreto a visão de patrimônio histórico, material e artístico.

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Surgem em 1989, as Recomendações sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular da unesco, um instrumento le-gal que fornece elementos para a identifi cação, a preservação e a continuidade dessa forma de patrimônio. Em 2000, temos no Brasil, a criação do Registro de Bens Culturais de Natureza Ima-terial, dando início ao processo de efetivação de um campo espe-cífi co de atuação dentro da área de preservação de patrimônio.

Em 2005, a unesco propôs a adoção da Convenção para a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, conhecida por Convenção da Diversidade. Seu texto reafi rma as relações entre cultura e desenvolvimento procurando criar uma nova plataforma para a cooperação internacional. Um dos seus aspectos mais destacados é a reafi rmação da soberania dos países para elaborar suas políticas culturais, tendo em vista a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais, buscando criar condições para que as culturas fl oresçam e inte-rajam com liberdade de uma forma que benefi cie mutuamente as partes envolvidas. Depois de ratifi cada pelos países membros da unesco a Convenção entra em vigor em março de 2007.

Na década de 1990, novas questões se colocam para o cam-po da produção cultural. Tornam-se mais comuns os estudos e as discussões sobre as relações entre economia e cultura. O campo da economia da cultura ainda é visto com uma enorme desconfi ança por diversos setores. No caso da promoção da diversidade, por exemplo, estão envolvidos fortes interesses econômicos que dizem respeito ao comércio internacional de bens e serviços culturais. Segundo Pedro Tierra, no programa de governo elaborado na campanha do Presidente Lula a área da economia da cultura abrange tanto “a indústria de entreteni-mento como a produção e difusão das festas populares e obje-tos artesanais, ou seja, é a área capaz de gerar ativos econômicos independentemente de sua origem, suporte ou escala”. (tier-ra. 2005) Dentro dessa perspectiva o governo vem buscando

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produzir informações que contribuam para tornar mais visí-veis esses ativos econômicos.

Em 2004, o Ministério da Cultura fi rmou um acordo de coo-peração técnica com o Instituto Brasileiro de Geografi a e Esta-tística com o objetivo de desenvolver uma base de informações relacionada ao setor cultural a partir das pesquisas correntes produzidas pela instituição. A reunião de dados relacionados ao setor cultural tem como principais objetivos fomentar estu-dos, fornecer aos órgãos governamentais e privados subsídios para elaboração de planos, ações e políticas e contribuir para a delimitação do que é produto cultural e serviço cultural.

Em termos gerais podemos dizer que os primeiros quatro anos de gestão do Ministro Gil foram de construção real de um Ministério da Cultura. Desde a criação em 1985, o órgão passou por uma série de crises e processos de descontinuidade. A ges-tão do Ministro Weffort (oito anos) foi acompanhada por uma política de Estado mínimo, o que para um ministério que mal havia sido recriado trouxe enormes difi culdades operacionais. Ao terminar tal gestão o MinC tinha como principal atividade aprovar os processos que seriam fi nanciados através da Lei de Incentivo à Cultura.

No primeiro ano da gestão do Ministro Gil, foi elaborado um plano de ampla reformulação da estrutura do MinC. Logo de início foram previstas alterações radicais na lei de incentivo 13. Antes de implementar as mudanças, o Ministério realizou uma série de consultas e fóruns com participação de diversos seg-mentos da área artística e da sociedade em geral, onde fi caram evidenciadas tanto as distorções acarretadas pela forma da apli-cação da lei, quanto sua extrema importância para o setor artís-tico-cultural. Estavam abertos os primeiros canais de diálogo entre o MinC e a sociedade civil.

Internamente foi planejada a criação de secretarias, buscan-do uma racionalização do trabalho que levasse a uma defi nição

13Tais alterações não ocorreram. O que houve foi a criação de alguns critérios e normas que permitissem uma melhor distribuição dos recursos, porém ainda muito longe do nível ideal.

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do papel do próprio Ministério dentro do sistema de governo. Foram criadas as secretarias de Políticas Culturais, de Articu-lação Institucional, da Identidade e da Diversidade Cultural, de Programas e Projetos Culturais e a de Fomento a Cultura. Esta-va formada uma nova estrutura administrativa para dar supor-te à elaboração de novos projetos, ações e de políticas.

D e s a f i o s p a r a o p r o c e s s o d e i m p l e m e n t a ç ã o d e p o l í t i c a c u l t u r a i s

Uma política cultural atualizada deve reconhecer a existência da diversidade de públicos, com as visões e interesses diferen-ciados que compõem a contemporaneidade. No caso brasileiro, temos a premência de reverter o processo de exclusão, da maior parcela do público, das oportunidades de consumo e de criação culturais. Nestor Canclini utiliza o conceito de hibridização cultural como uma ferramenta para demolir a concepção do mundo da cultura em três camadas: culta, popular e massiva. O conceito de hibridização abrange diversas mesclas intercul-turais, não apenas as raciais, que se costuma encaixar no termo mestiçagem, ou as preponderantemente religiosas, categoriza-das enquanto sincretismos.

A promoção de políticas de caráter mais universal tem como desafi o, segundo Pierre Bourdieu, a questão de um processo de “desigualdade natural das necessidades culturais”. Para o so-ciólogo francês é necessário ter cautela na aplicação mecânica e simplista de uma política de acesso. Ao analisar a questão do público dos museus de arte em diferentes cidades da Europa, ele alerta para o fato de que:

[...] se é incontestável que nossa sociedade oferece a todos a possibilidade

pura de tirar proveito das obras expostas no museu, ocorre que somente

alguns têm a possibilidade real de concretizá-la. Considerando que a aspi-

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ração à prática cultural varia como a prática cultural e que a necessidade

cultural reduplica à medida que esta é satisfeita, a falta de prática é acom-

panhada pela ausência do sentimento dessa privação. (Bourdieu; Darbel,

2003, p. 69)

A política de franqueamento das diversas atividades culturais ao conjunto da sociedade tem como desafi o o compartilha-mento dessas múltiplas linguagens com esse mesmo conjunto. Segundo Tereza Ventura, “o desafi o que se impõe é combinar processos culturais particulares com direitos de cidadania uni-versais”. (ventura, 2005, p. 88)

A ação na área da cultura tem sido frequentemente vista atra-vés de uma visão limitada ao acontecimento episódico, ao even-to, inclusive por muitos dos gestores da área pública. Qualquer processo de gestão requer diretrizes, planejamento, execução e avaliação de resultados, e com a cultura não ocorre diferente. Um dos grandes desafi os da gestão pública da cultura na ava-liação das ações implementadas tem relação com os objetivos e à multiplicidade de efeitos buscados ou por ele alcançados. As ações públicas têm que demonstrar minimamente coerên-cia entre o que se diz buscar e as ações postas em prática. Não existe relação direta de causa e efeito no campo da ação cultural, o que torna complexa a avaliação. Parte das ações interagem com o campo das mentalidades, das práticas culturais enraizadas, necessitando de um tempo mais longo para gerarem resultados visíveis. Nesse caso o grande desafi o é o de criar projetos que não sejam desmontados a cada nova administração, gerando um ciclo contínuo de desperdício de recursos e de trabalho.

Um dos possíveis caminhos a serem seguidos nesse processo de construção de políticas de longo prazo é o do envolvimento dos agentes atingidos por tais políticas. O país vive hoje um movimento contínuo de construção de projetos coletivos de gestão pública nas mais variadas áreas. São cada vez mais atu-

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antes os conselhos que contam com a participação efetiva da so-ciedade civil. Os produtores, os agentes, os gestores culturais, os artistas, o público em geral, também vêm buscando formas de participar e de interferir nos processos de decisões no cam-po das políticas públicas culturais. Ressurgem movimentos de valorização das manifestações culturais locais que incentivam tanto a redescoberta dos artistas da comunidade, como de no-vas formas de produção artístico-culturais. Aumentam as de-mandas por uma maior formação e especialização dos agentes culturais locais em todos os níveis, do artesão aos responsáveis pelas atividades burocráticas, que devem implementar seus projetos buscando uma autonomia cultural.

A base de um novo modelo de gestão está no reconheci-mento da diversidade cultural dos distintos agentes sociais e na criação de canais de participação democrática. A tendência mundial aponta para a necessidade de uma maior racionali-dade do uso dos recursos, buscando obter ações ou produtos (um centro de cultura, um museu, uma biblioteca, um curso de formação) capazes de se transformar em multiplicadores des-ses ativos culturais. É a falência do modelo de uma política de pulverização de recursos, como foi o caso do Programa de Ação Cultural da década de 1970, que, mesmo cobrindo vastos espa-ços territoriais, não evitou a falta de integração entre eventos que foram percebidos e vivenciados de maneira isolada, ou seja, mobilizou uma grande soma de recursos com um resultado pe-queno, mas que ainda vem sendo insistentemente utilizado por algumas administrações.

No caso brasileiro, encontramos, nos diversos níveis de go-verno, órgãos responsáveis pela gestão cultural. Em todos eles estão presentes os problemas da carência de recursos. É funda-mental defi nir as relações que podem e devem ser estabelecidas entre os vários órgãos públicos de gestão cultural nos níveis fe-deral, estadual e municipal, e destes com outras áreas governa-

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mentais, com as instituições privadas e com a sociedade civil. Existe uma série de competências legais comuns entre a União, os estados e os municípios. Entre as quais podemos destacar a função de proteger os documentos, as obras e outros bens de va-lor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais e os sítios arqueológicos. Uma conseqüência visível disso é a da existência de uma série instituições como museus, centros culturais, galerias de arte, bibliotecas, teatros etc, sob administração indistinta da União, dos Estados e dos municí-pios. Estas instituições possuem acervos similares e promo-vem, muitas vezes, atividades idênticas sem ao menos buscar uma integração, ou um planejamento partilhado. Não existem políticas nacionais, por exemplo, de gestão desses acervos. Não existe um lugar que centralize essas informações permitindo ao governo um real conhecimento da atual situação, subsídio indispensável para a elaboração de políticas. Há a necessidade de realizar algumas partilhas de tarefas entre os diversos níveis de governo, evitando duplicidades ou, ao contrário, omissão de ações, como comumente ocorre na área dos bens tombados.

A diversidade cultural coloca em pauta a questão da demo-cratização cultural. Um processo contínuo de democratização cultural deve estar baseado em uma visão de cultura como for-ça social de interesse coletivo, que não pode fi car dependente das disposições do mercado. Numa democracia participativa a cultura deve ser encarada como expressão de cidadania, um dos objetivos de governo deve ser, então, o da promoção das for-mas culturais de todos os grupos sociais, segundo as necessida-des e desejos de cada um, procurando incentivar a participação popular no processo de criação cultural, promovendo modos de autogestão das iniciativas culturais. A cidadania democráti-ca e cultural contribui para a superação de desigualdades, para o reconhecimento das diferenças reais existentes entre os su-jeitos em suas dimensões social e cultural. Ao valorizar as múl-

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tiplas práticas e demandas culturais, o Estado está permitindo a expressão da diversidade cultural.

Q u e s t õ e s p r e s e n t e s e d e s a f i o s p a r a o f u t u r o

Podemos afi rmar que hoje duas questões centrais compõem a pauta das políticas de cultura: a da diversidade cultural e a da economia da cultura. As problemáticas que as envolvem têm uma série de pontos interseccionados, alguns deles serão apre-sentados a seguir, acompanhados por possíveis formas de atua-ção na elaboração de políticas.

O primeiro ponto é o da defesa da diversidade como elemen-to fundamental para a continuação da existência das próprias sociedades e que comporta como proposições de política:Aquela que considera os vários aspectos da diversidade, não se con-tentando, por exemplo, com a mera preservação do variado como na construção de um enorme museu de “objetos” vivos, destina-do ao prazer daqueles que são de fora daquela comunidade. Promoção da diversidade como lugar de diálogo constante en-tre grupos e não como lugar da formação de grupos isolados. Utilização da questão da diversidade como bandeira fundamen-tal contra o processo de globalização uniformizadora.

O segundo ponto é o de que é essencial a garantia e a defesa dos produtos e do mercado cultural, ou seja, é o que diz respeito a forma de ação do Estado sobre o mercado de bens culturais, re-gulando os excessos e que pode ter como objetivos principais:Implementar ações que inibam a intervenção mercadológica devastadora (como, por exemplo, alterações de calendários e de tempo de duração) em festejos e celebrações tradicionais. Desenvolver ações que elevem o grau de autonomia de decisão dos grupos envolvidos sobre os bens e serviços culturais. Adotar medidas que garantam um tratamento diferenciado entre os produtos culturais e os mercantis.

O terceiro ponto é o da implementação de uma maior aber-

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tura no intercâmbio cultural internacional. A manutenção da diversidade não implica na geração de um processo de isolamen-to cultural. Há a necessidade da realização de intercâmbios di-versos, em condições equilibradas e não a submissão ao tipo de relação que vem sendo imposta pelo crescente processo de glo-balização. Para tanto podem ser elaboradas políticas que visem:Apoiar ações pautadas em relações transnacionais, sem sub-missões ou dependências. Criar políticas de defesa da circulação da produção cultural em níveis mundiais, elevando ao máximo a idéia de diversidade.Ampliar o conceito de globalização, diferenciando-o da domi-nação cultural norte-americana. Formular procedimentos que estimulem o efetivo cumpri-mento dos acordos internacionais no campo. Implementar ações que coloquem cada vez mais a cultura como um dos elementos centrais nos acordos internacionais.

No quarto ponto está a necessidade de tratamento das mani-festações culturais como parte do patrimônio de um povo, que deve ser protegido frente a ameaças de natureza diversa e que necessita de políticas que contribuam para a:Elaboração de formas de ação quando por um motivo qualquer um grupo, tradição ou manifestação se veja ameaçado de desin-tegração e/ ou desaparição. Formulação procedimentos que recuperem a capacidade do Es-tado de regular, de proteger e fomentar a produção cultural. Promoção de ações com a consciência de que cultivar a diversi-dade implica, sim, em abalar o conceito tradicional de naciona-lidade. É necessário atualizar os marcos conceituais.

O quinto ponto diz respeito à importância da integração das ações de maneira interministerial. A divisão das áreas em ministérios deveria ter a fi nalidade de aumentar a governabi-lidade e não de fracionar o Estado, difi cultando sua ação. Este desafi o está diretamente ligado a construção de novas práticas

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administrativas dentro do Estado, tais como a:Criação de uma prática permanente de constituição de grupos interministeriais para atuação em políticas públicas, mesmo setoriais que, de alguma maneira, afetem a área da cultura. Elaboração de ações políticas conjuntas com a área da educação.

Uma questão que apresenta grandes desafi os, também liga-da ao relacionamento interministerial, é a da circulação de con-teúdos culturais através dos meios de comunicação de massa. Um ponto fundamental dentro de um projeto que objetiva a democracia cultural é o do reconhecimento da importância que os meios de comunicação assumiram na constituição das sociedades modernas e a posição central que eles ocupam na atualidade. O debate sobre comunicação e cultura estrutura-se, além do mais, a partir da compreensão de que ambos são di-reitos humanos inalienáveis, e assim devem ser encarados por qualquer governo ou governante. A problemática que se coloca aqui é a da ampliação do nível de participação do conjunto da sociedade nos diversos níveis de gestão e de produção da cultu-ra e nos canais de circulação dessa produção.

A gestão atual do MinC realizou avanços signifi cativos no sentido de colocar a cultura dentro da agenda política do go-verno, fez com que ela deixasse de ter um papel praticamente decorativo entre as políticas governamentais. Porém, novas questões se colocam. As reformas realizadas forneceram as condições mínimas de funcionamento para o Ministério. Estão abertos novos campos de atuação, nos quais os técnicos da área da cultura têm sido chamados para participar de alguns fóruns de decisão. O grande desafi o é transformar esse complexo de ações em políticas que possam ter alguma garantia de continui-dade nas próximas décadas.

Foram estabelecidos canais de diálogos com as administra-ções municipais e estaduais, com o objetivo de criar um Sistema Nacional de Cultura. Nesse mesmo processo estão envolvidos

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representantes da área artístico-cultural e da sociedade civil em geral. A continuidade do processo implica em delimitação real de direitos e deveres de cada um dos grupos participantes, que devem se tornar parceiros e co-responsáveis.

Outra questão prioritária é a da gestão da informação. A ela-boração de políticas requer conhecimento sobre o tema. O pla-nejamento demanda a existência de um mínimo de dados. A criação de um Sistema Nacional de Cultural é uma das possíveis formas de garantir as parcerias necessárias para a construção de um Sistema Nacional de Informações Culturais.

A função da elaboração de políticas públicas na área de cultu-ra deve ser a de garantir plenas condições de desenvolvimento da mesma. O Estado não deve ser um produtor de cultura, mas pode e deve ter a função de democratizar as áreas de produção, distribuição e consumo. Cultura é fator de desenvolvimento.

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*Doutora em Ação Cultural pela usp. Pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (cem) onde coordenou a pesquisa sobre “O uso do tempo livre e as práticas culturais na Região Metropolitana de São Paulo”.

I s a u r a B o t e l h o *

A polít ic a cultur al & o plano da s idéia s

Privilegio neste texto a abordagem de três momen-tos importantes na história das políticas culturais no Brasil a partir dos preceitos que estavam por trás destas políticas. São três brasis diferentes (anos 1930, 1970 e 2000), porém a linha de continuidade se faz pela presença de pressupostos conceituais que contribuíram para a relevância das políticas imple-mentadas em cada uma dessas épocas, relevância que continuam tendo quando se pensa na institu-cionalização deste campo no Brasil.

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Trata-se aqui da adoção de um conceito ampliado de cultura de forma a abarcar os fazeres e saberes populares e não apenas se restringir ao universo das belas-artes como sendo “a cultura” – singular e com c maiúsculo. Ou seja, vale nesta linha de con-tinuidade a incorporação da dimensão antropológica da cultu-ra, aquela que, levada às últimas conseqüências tem em vista a formação global do indivíduo, a valorização de seus modos de viver, pensar e fruir, de suas manifestações simbólicas e mate-riais, e que busca, ao mesmo tempo, ampliar seu repertório de informação cultural, enriquecendo e alargando sua capacidade de agir sobre o mundo. O essencial é a qualidade de vida e a ci-dadania, tendo a população como foco.

Trago para refl exão três momentos em que essa constelação de idéias sobre a cultura, adequando-se às conjunturas e às ne-cessidades políticas dos diferentes momentos de intervenção, deu consistência às políticas culturais engendradas em nível federal. Focalizo lideranças – fi guras de gestores ou não – que não se contentaram formular em discurso estas posições, mas buscaram traduzi-las, de fato, em uma política concreta.

A criação das primeiras instituições culturais no Brasil se inicia com a vinda de d. João vi na transferência da corte por-tuguesa para o Brasil. Cria-se a Biblioteca Nacional, o Museu Nacional de Belas Artes, o Museu Histórico Nacional, por exemplo. Porém, é na década de 1930, durante o período Var-gas, que se implantou um sistema verdadeiramente articulado em nível federal, quando novas instituições foram criadas com o fi to de preservar, documentar, difundir e mesmo produzir diretamente bens culturais, transformando o governo federal no principal responsável pelo setor.

É no âmbito do Ministério da Educação e Saúde, criado logo depois da Revolução de 1930, tendo como titular Gustavo Ca-panema, que fi cou no cargo por longo período (1934–1945), que se criam o Conselho Nacional de Cultura – decreto-lei nº 526 em

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1938 –; o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – decreto-lei nº 25 de 30/11/1937 –, o Serviço Nacional do Tea-tro – decreto-lei nº 92 de 21/12/1937 –, o Instituto Nacional do Livro – decreto-lei nº 93 de 21/12/1937 –, o Serviço de Radio-difusão Educativa – a partir da doação feita por Roquete Pinto ao Estado em 1936 –, e o Instituto Nacional do Cinema Edu-cativo (1936). Também se incorporam ao sistema, instituições existentes desde o período do império: a Biblioteca Nacional, o Museu Nacional de Belas Artes, o Museu Histórico Nacio-nal. A Casa de Rui Barbosa, criada em 27/5/1929, já havia sido incorporada ao Ministério da Educação e Saúde desde 1/12/1930.

De maneira geral, a repercussão do movimento revolucionário de 1930 na

cultura foi positiva. Comparada com a de antes, a situação nova represen-

tou grande progresso, embora tenha sido pouco, em face do que se espe-

raria de uma verdadeira revolução. Se pensarmos no ‘povo pobre’ (…), ou

seja, a maioria absoluta da nação, foi quase nada. Mesmo pondo entre pa-

rênteses as modifi cações que poderiam ter ocorrido na estrutura econô-

mica e social, para ele o que se impunha era a implantação real da instrução

primária, com possibilidade de acesso futuro aos outros níveis: e ela conti-

nuou a atingi-lo apenas de raspão. Mas se pensarmos nas camadas inter-

mediárias (que aumentaram de volume e participação social depois de

1930) a melhora foi sensível graças à difusão do ensino médio e técnico que

aumentou as suas possibilidades de afi rmação e realização, de acordo com

as necessidades novas do desenvolvimento econômico. Se, fi nalmente,

pensarmos nas chamadas elites, verifi caremos o grande incremento de

oportunidades para ampliar e aprofundar a experiência cultural. […] Além

disso, depois de 1930 se esboçou uma mentalidade mais democrática a res-

peito da cultura, que começou a ser vista, pelo menos em tese, como direi-

to de todos, contrastando com a visão de tipo aristocrático que sempre

havia predominado no Brasil, […]. Para esta visão tradicional, as formas

elevadas de cultura erudita eram destinadas, apenas às elites, como equi-

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pamento (que se transformava em direito) para a ‘missão’ que lhes compe-

tia, em lugar do povo e em seu nome. (candido, 2006, p. 234–235).

Neste momento, Mário de Andrade cumpre um papel funda-dor ao estabelecer os parâmetros para um conceito ampliado de cultura (para ele “arte”), ao qual voltaremos mais adiante. Em-bora não tenha sido um gestor de política do governo federal e sim importante colaborador, ele estabeleceu as bases de uma matriz que vai sendo reapropriada, relida e adaptada ao longo do tempo pela sensibilidade de gestores que estiveram à frente do setor cultural em nível nacional. Suas posições estão deline-adas no anteprojeto de proteção do patrimônio artístico nacio-nal redigido em 1936, a pedido do Ministro Gustavo Capanema, época em que Mário era diretor do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo e chefe de sua Divisão de Expansão Cultu-ral 1. A política implementada por ele no Departamento prefi -gura os conceitos sistematizados no referido anteprojeto para o governo federal, que previa a criação do Serviço de Patrimônio Artístico Nacional, que veio a ser dirigido por Rodrigo Melo Franco de Andrade até 1967. Nesse sentido, as duas experiên-cias são simultâneas – permitindo que se estabeleça uma ponte entre elas –, como se fossem partes de uma mesma refl exão no que tange a cultura popular e o patrimônio.

Experiência inovadora na época, a política implementada por Mário de Andrade segue sendo um exemplo interessantís-simo de uma ambiciosa gestão cultural na esfera do município, embora tenha tido pequena duração (interrompida em novem-bro de 1937). Creio ser o primeiro exemplo de uma política pú-blica de cultura no sentido que encaramos hoje, dando conta de todo o universo da produção cultural em sentido abrangente (esporte, turismo, culinária, design, por exemplo) e incluindo em suas preocupações todas as camadas da população, inclusi-ve a infantil. Considerando que uma política pública se formu-

1 Criado por um decreto municipal em 30 de maio de 1935.

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la a partir de um diagnóstico de uma realidade, o que permite a identifi cação de seus problemas e necessidades. Tendo como meta a solução destes problemas e o desenvolvimento do se-tor sobre o qual se deseja atuar cabe então o planejamento das etapas que permitirão que a intervenção seja efi caz, no sentido de alterar o quadro atual. Para ser conseqüente, ela deve prever meios de avaliar seus resultados de forma a permitir a correção de rumos e de se atualizar permanentemente, não se confun-dindo com ocorrências aleatórias, motivadas por pressões es-pecífi cas ou conjunturais. Não deve se confundir também com ações isoladas, carregadas de boas intenções, mas que não têm conseqüência exatamente por não serem pensadas no contexto dos elos da cadeia criação, formação, difusão e consumo. (Bote-lho,2006). Nesse sentido, estribar-se em pesquisas sócio-eco-nômicas para melhor conhecer seu “objeto” é importantíssimo. O Departamento de Cultura realizou inúmeras pesquisas sobre a cidade e sua população claramente ultrapassando o universo específi co da cultura 2.

A ambição do projeto do departamento pode ter como pano de fundo, além da visão de ma o fato de ele ter sido pensado des-de seu início, como o germe de um Instituto Paulista de Cultura (com jurisdição sobre todo o estado), e que previa ainda a expan-são de sua experiência para todo o território nacional, no caso da chegada do então governador de São Paulo, Armando Sales de Oliveira, à presidência da república, o que era dado como certo. Neste caso, seria criado o Instituto Brasileiro de Cultura. Po-deríamos ver como sinal desta “predestinação” o olhar sobre o país como um todo, como testemunha o escopo das pesquisas de caráter etnográfi co – contando com a colaboração de Claude e Dina Lévi-Strauss, por exemplo –, não se restringindo à cida-de ou ao Estado de São Paulo. A questão era conhecer o Brasil, descrevê-lo, descortinar a autêntica tradição brasileira: “pintar o mapa da brasilidade” (sandroni, 1988, p. 121).

2Para conhecer melhor a experiência do dc recomendo a leitura do livro de Paulo Duarte Mário de Andrade por ele mesmo (sp: hucitec, 1977).

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Feito um polvo, as pesquisas sociais tudo abarcam com uma audácia in-

comparável (…) E, sendo municipal, o Departamento de Cultura cresce e

quer crescer, esculpido na fôrma do Brasil. Já emissários seus internam-se

por Mato Grosso, em busca de conhecimentos ignorados. Já do Rio lhe

chegam decoradores e sambistas para as festas do Carnaval. Já do Recife

lhe vem receitas, melodias e instrumentos, de Minas e da Bahia especialis-

tas; ao mesmo tempo em que da sua atividade partem para divulgação no

mundo, a pedido do Ministério do Exterior, estudos especializados sobre

o Brasil (sandroni, 1988, p. 120–121).

O Instituto Brasileiro de Cultura – que teria a forma jurídica de uma fundação – previa que seu patrimônio fosse alimentado por doações dos municípios, estados e governo federal, soma-dos a recursos a reservas de arrecadação de impostos, garanti-dos constitucionalmente. Teria sua sede no Rio e a ele corres-ponderiam institutos estaduais 3. Já havia naquele momento, a previsão de mecanismos de relacionamento e parceria entre os entes da federação, o que se tenta constituir ainda hoje sob a denominação de Sistema Nacional de Cultura. Mário acu-mulava, junto com a direção do Departamento Municipal de Cultura, a chefi a de sua divisão de Expansão Cultural; Sérgio Milliet era o chefe da Divisão de Documentação Histórica e So-cial – que realizou pesquisas inovadoras sobre o município e sobre sua população –; Rubens Borba de Moraes chefi ava a Di-visão de Bibliotecas, e ainda duas outras, a de Educação e Re-creio e a de Turismo e Divertimentos Públicos.

Aquilo que mais tarde (nos anos 60–70) veio a ser chamado de democratização cultural (disseminação da cultura erudita) era uma meta contida nas ações desencadeadas pelo departa-mento, bem como a preocupação com a diversidade da pro-dução e da vivência cultural das camadas populares – o que se defi ne melhor como democracia cultural.(botelho; fi ore, 2004) Está presente também a preocupação com a ampliação

3 Para maiores detalhes da experiência de Mário de Andrade frente ao dc ver Mário contra Macunaíma de Carlos Sandroni (SP/RJ: Edições Vértice/ iuperj, 1988) e Mário de Andrade por ele mesmo de Paulo Duarte (sp: hucitec, 1977). Os detalhes sobre a constituição do Instituto Brasileiro estão no livro de Paulo Duarte, páginas 61–62.

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do repertório de informação cultural da população: Mário acre-dita que a arte é fundamental para o aperfeiçoamento do ser humano (rphan, 2002, p. 9).

Há que forçar um maior entendimento mútuo, um maior nivelamento geral

da cultura que, sem destruir a elite, a torne mais acessível a todos, e em con-

seqüência lhe dê uma validade funcional. Está claro, pois, que o nivelamento

não poderá consistir em cortar o tope ensolarado das elites, mas em provocar

com atividade o erguimento das partes que estão na sombra, pondo-as em

condição de receber mais luz. Tarefa que compete aos governos. (RPHAN,

2002, p. 141).

A abertura dada à noção de cultura (conceito que necessitou ser criado “como assunto de governo, como questão política”), na interpretação de Carlos Sandroni em sua análise em Mário con-tra Macunaíma, teria criado, naquele momento, “essa necessi-dade, até hoje presente, de afi rmar que determinadas coisas ‘são cultura’[…]” (como o esporte, o turismo, a indústria cultural, por exemplo), motivada “pela contradição entre a vagueza do termo e a necessidade de especifi cá-lo para fi ns administrati-vos e burocráticos”. Continuando minha citação de Sandroni: Mário de Andrade dizia ao justifi car a realização pelo dc do i Congresso de Língua Nacional Cantada: “Faz parte da cultura duma nacionalidade a organização consciente de seus processos essenciais de se manifestar”(sandroni,1988, p.107).

Não cabe aqui fazermos um comentário pormenorizado so-bre a experiência do Departamento de Cultura de São Paulo ou sobre as inúmeras contribuições de Mário para a cultura bra-sileira como criador (crítico, músico, escritor, poeta). Destaco apenas seu papel decisivo como organizador do campo de in-tervenção dos poderes públicos no desenvolvimento da cultu-ra, ação que se expressa no seu anteprojeto de proteção do patri-mônio artístico nacional, base (que sofreu alterações realizadas

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por Rodrigo Melo Franco de Andrade de forma a adequá-lo à conjuntura do momento) para o que se tornou o decreto-lei nº 25/ 37, redigido em 1936, a pedido do Ministro Gustavo Capa-nema. O anteprojeto apresentado é reconhecidamente inova-dor para a época, antecipando preocupações que só mais tarde foram incorporadas por instrumentos internacionais como a Carta de Veneza de 1964.

A organicidade de seu anteprojeto se dá em torno do concei-to de arte: “Arte é uma palavra geral, que neste seu sentido ge-ral signifi ca a habilidade com que o engenho humano utiliza-se das ciências, das coisas, dos fatos” – diz ele, respondendo à sua própria “objeção” (antecipando a de terceiros, na verdade) em torno da questão de a técnica industrial ser uma arte (Antepro-jeto). São oito as categorias de arte – arqueológica, ameríndia, popular, histórica, erudita nacional, erudita estrangeira, apli-cadas nacionais e aplicadas estrangeiras – agrupadas em quatro livros de tombamento aos quais corresponde a criação de mu-seus específi cos, estes vistos como instrumento pedagógico e formador: o arqueológico e etnográfi co (artes arqueológica, ameríndia e popular); o histórico (arte histórica); o das belas-artes (artes eruditas nacional e estrangeira) e, fi nalmente o das artes aplicadas e técnica industrial (nacionais e estrangeiras). Sem entrar no mérito das classifi cações propostas, cabe ressal-tar a abrangência que permeia o anteprojeto e que se expressa no escopo previsto para o órgão proposto, na medida em que con-templa todas as artes, no que tange seu registro e legitimação. A missão pedagógica e formadora seria mais uma responsabili-dade de um único organismo – o Serviço do Patrimônio Artís-tico Nacional. “O que prefi gurou para o sphan como conceito no anteprojeto, e depois nas formas de ação da sua assistência técnica a esse Serviço, Mário atualizou em maior escala na di-reção do Departamento de Cultura.” 4

No entanto, a ação do então sphan, como já foi mencionada,

4 Texto de introdução de Lélia Coelho Frota (mec/sphan/fnpm:1981:24)

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não foi regida pelo anteprojeto de ma, pois as circunstâncias do momento inviabilizaram a “generosidade etnográfi ca” da proposta andradina, nos dizeres de Sérgio Miceli em seu exce-lente artigo “sphan: refrigério da cultura ofi cial”. A redação fi nal do projeto de criação do sphan fi cou a cargo de Rodri-go Melo Franco de Andrade, que dirigiu a nova instituição de 1937 a 1967. Em sua análise, Miceli mostra como, na verdade, a prática institucional se concentrou “em salvar do abandono os exemplares arquitetônicos considerados de valor estético signifi cativo para uma história das formas e dos estilos da clas-se dirigente brasileira” (miceli, 2001, p. 363), ressaltando sua opção pela especialização e o insulamento institucional, afi r-mando-se “como órgão capaz de constituir sua própria deman-da no mercado cativo de bens culturais subsidiado pelo Estado, sem precisar levar em conta as preferências dos consumidores ou do público usuário potencial dos bens tombados e restau-rados” (miceli, 2001, p. 364). O Anteprojeto elaborado por Mário de Andrade foi abandonado naquilo que trazia de mais desafi ador e avançado para seu tempo: a memória dos grupos populares, das etnias que compõem a brasilidade, da diversida-de dos saberes e fazeres do país. Permaneceu, no entanto, como um norte a ser citado e perseguido.

A abrangência do Anteprojeto para o patrimônio tem tal força que ele será assumido, principalmente por aqueles de al-guma forma ligados à cultura popular e ao patrimônio ou estu-diosos como Miceli, como se fosse um projeto global para a área de cultura. Como venho insistindo até aqui, ele não o é. A visão verdadeiramente abrangente de Mário está consignada em seus textos, em suas inúmeras cartas a privilegiados interlocutores, e na ação do Departamento Municipal de Cultura: é aí que se vêem suas posições sobre o papel da arte, do artista, as preocu-pações com a formação de todos os segmentos da população, com o registro e a análise de comportamentos, a democrati-

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zação do acesso de todos aos diversos registros da cultura. Ou seja, a cultura vista de forma plural, valorizada e respeitada em sua diversidade. No Anteprojeto o objetivo de dar conta de todo o universo cultural está consignado no campo da preservação, conservação e na respectiva ação educativa necessária para di-fundir os acervos. Desta forma, a ação cultural propriamente dita não se vê contemplada, pois não estava no âmbito da soli-citação que lhe fora feita, que era a de um desenho institucio-nal (e conceitual) para um serviço de proteção ao patrimônio. Assim, é o Anteprojeto que confi gura, de forma organizada, a matriz de um conceito abrangente de cultura, sendo sempre re-tomado daí por diante, como vai acontecer nos anos 1970 (com conseqüências para a condução da política implementada).

A década de 1970 foi o segundo momento importante do ponto de vista da organização institucional no Brasil, quando houve uma grande reformulação do quadro existente até então e, mais uma vez, instituições foram criadas para atender às no-vas necessidades do período 5. A ditadura militar implantada no país, desde o golpe de 1964, preparava a abertura democrá-tica e necessitava melhorar sua imagem, tanto no país como no exterior, principalmente junto aos setores mais claramente de oposição, numa conjuntura em que, apesar do regime, perdu-rava uma relativa hegemonia cultural da esquerda no país.

Em 1975, o então existente Conselho Federal de Cultura sis-tematiza uma política cultural em nível federal, o documento Política Nacional de Cultura (pnc), incluindo, pela primeira vez, a cultura dentre suas metas políticas, formalizando um conjunto de diretrizes para o setor que se refl etiu imediata-mente num novo desenho institucional. Órgãos foram criados a partir de algumas demandas específi cas de setores artísticos, como é o caso da Fundação Nacional de Artes (funarte); ou-tros a partir da aglutinação de institutos já existentes, como a Empresa Brasileira de Filmes (Embrafi lme); outros, ainda,

5Para maiores detalhes sobre o período e sobre estas “conseqüências” mencionadas, sugiro a minha análise em Romance de Formação: funarte e Política Cultural — 1976–1990.

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tiveram seu raio de ação ampliado, como o Serviço Nacional de Teatro. Foram criados conselhos para tratar dos aspectos le-gais dos setores ligados à indústria cultural, como o Conselho Nacional do Direito Autoral (cnda) e o Conselho Nacional de Cinema (concine). Tinha-se ali, na verdade, a estrutura que veio redundar na criação do Ministério da Cultura em 1985 (botelho, 2000).

Detenho-me aqui na fi gura mais proeminente do período, Aloísio Magalhães, que embora dando continuidade ao que vi-nha sendo desenvolvido na gestão anterior à sua, soube articu-lar politicamente o setor de forma inovadora e dar-lhe visibili-dade, inclusive na mídia, de uma maneira não vista até então. Grande estrategista, Aloísio estabeleceu novos parâmetros de atuação, reestruturando, inclusive, a área federal refazendo os elos com o projeto de Gustavo Capanema. Por isso mesmo, qualquer discussão sobre a política cultural e redesenho ins-titucional, não só do fi nal dos anos 70 e início dos 80, como também hoje, passa obrigatoriamente pela fi gura de Aloísio Magalhães e de suas características pessoais. Estas característi-cas foram decisivas para o sucesso e prestígio de sua curta ges-tão (1981–1982) à frente da Secretaria da Cultura do mec, cria-da a partir da transformação da então existente Secretaria de Assuntos Culturais em Secretaria da Cultura, em 10/4/1981, quando o General Rubem Ludwig era o titular da pasta 6.

Sob o comando de Aloísio Magalhães, a proposta que, no iní-cio dos anos 80, estabeleceu os termos do intenso debate entre as instituições que compunham a então Secretaria da Cultura do mec aponta a continuidade do projeto (confi gurado no An-teprojeto) de Mário de Andrade, relido e reapropriado em fun-ção das conjunturas do momento. O essencial aqui é a opção por um conceito alargado de cultura, onde sua dimensão an-tropológica é privilegiada e que, em sua acepção mais genérica, correspondia ao que passou a ser apregoado pela unesco nos

6 A Secretaria da Cultura funcionava através de duas subsecretarias: a Subsecretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – sphan – e a de Assuntos Culturais – seac –, cada uma delas com suas respectivas fundações, a Pró-Memória e a funarte, braços executivos da política da sec. A Embrafi lme, Fundação Casa de Rui Barbosa e a Fundação Joaquim Nabuco, por sua especifi cidade eram subordinadas diretamente ao Secretário da Cultura.

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anos 70: a noção de que não pode haver verdadeiro desenvolvi-mento de um país se não for considerada a dimensão cultura:

[…] nosso desenvolvimento só será verdadeiramente harmonioso na me-

dida em que o conhecimento dos valores reiterados pelo processo histó-

rico passe a informar o conjunto de decisões tomadas com vistas à solu-

ção de nossos problemas de hoje. A continuidade da trajetória de uma

cultura em processo ininterrupto de transformação como a nossa não

pode prescindir do constante aferimento dos valores da anterioridade a

de identifi car os caminhos do tempo projetivo. (magalhães, 1985, p. 128–

129).

Aloísio radicaliza a opção pela dimensão antropológica da cul-tura e a adota como baliza de sua política. Neste plano, pode-se dizer que a cultura é tudo – para Mário de Andrade tudo era arte – o que o ser humano elabora e produz, simbólica e mate-rialmente falando, o que exige um talento de articulação muito grande para congregar outros setores da gestão pública, pois deve ser assumido como um pressuposto geral de governo e não exclusivo do setor de cultura.

A maneira como Aloísio Magalhães articulou a criação do Centro Nacional de Referência Cultural (cnrc), em 1975, já de-monstrara que ele tinha clareza desta necessidade de articula-ção política ampla em vários setores do governo, de forma a dar peso às demandas culturais.

O percurso de Aloísio Magalhães na área pública começa com a criação do Centro Nacional de Referência Cultural(cnrc), grupo de trabalho criado no âmbito do Ministério da Indústria e do Comércio, em 1975, em convênio com o Governo do Dis-trito Federal, em espaço cedido pela Universidade de Brasília. A meta maior deste grupo – composto por pessoas de formação diversa como físicos, matemáticos, literatos e arquitetos entre outras –, era a de levantar questões referentes não só ao processo

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de desenvolvimento econômico, como também à preservação dos valores da nossa formação cultural, passando pelo papel do desenho industrial na defi nição de uma fi sionomia dos produ-tos brasileiros. Em 1979 ocorre a fusão entre o então Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (iphan) dirigido por A. Magalhães, o Programa de Cidades Históricas – da Secretaria de Planejamento da Presidência da República e o cnrc, reuni-dos na Fundação Nacional pró-Memória, braço executivo do patrimônio, transformado em subsecretaria. É o ideário deste último que prevalece na política implementada por Aloísio na Secretaria da Cultura.

Não foi por acaso, creio, que o cnrc, mesmo sendo, desde seu início, um projeto eminentemente cultural, não tenha sido articulado e viabilizado dentro desta área. Mesmo consideran-do que sua viabilidade tenha se devido às relações de Aloísio Magalhães dentro do aparelho governamental – no caso, o mi-nistro da Indústria e do Comércio, Severo Gomes – o projeto do cnrc apontava para um conceito abrangente de cultura, exigindo, por sua natureza, o concurso de diversas áreas da ad-ministração. A rapidez com a qual ele conseguiu reunir tantas instituições em torno de um só projeto, evidencia a sua capaci-dade política de agregar e sua consciência da fragilidade do se-tor cultural e de sua marginalidade em face de outras questões governamentais. Daí a necessidade de comprometer organis-mos de tipo tão diverso: Ministério da Indústria e do Comércio, o Governo do Distrito Federal, Universidade de Brasília, a Se-cretaria de Planejamento da Presidência da República, o Minis-tério da Educação e Cultura, o Ministério do Interior, o Minis-tério das Relações Exteriores, a Caixa Econômica Federal. Em 1978, aderem ainda o cnpq e o Banco do Brasil. Esta variedade de instituições signatárias do convênio garantiu a sobrevivên-cia do projeto a despeito das turbulências políticas e mudanças ministeriais. Esta capacidade de articulação ampla, Aloísio irá

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reproduzir em muitos outros momentos em sua curta gestão à frente da Secretaria da Cultura (1981–1982).

A política adotada pela Secretaria de Cultura do mec – em-brião do atual Ministério da Cultura – encontra-se no documen-to Diretrizes para a operacionalização da política cultural do mec, foi redigido em Brasília no período em setembro de 1981, com a participação de representantes de todos os organismos ligados à sec. São eles: Subsecretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e a Subsecretaria de Assuntos Culturais; Biblioteca Nacional; Coordenação de Museus e Casas Históri-cas; Empresa Brasileira de Filmes s.a .; Fundação Casa de Rui Barbosa; Fundação Joaquim Nabuco; Fundação Nacional de Arte e seus Institutos de Artes Plásticas, Música, Folclore e Assessoria Técnica; Fundação Nacional Pró-Memória; Insti-tuto Nacional do Livro; Museu Histórico Nacional; Museu da República; Museu Imperial; Museu Nacional de Belas-Artes; Museu Villa-Lobos; Serviço Nacional de Teatro; 10 Delegacias Regionais, responsáveis pelo patrimônio nacional, com raio de ação em todos os estados do país.

Teoricamente a questão patrimonial é colocada de forma a abranger tanto o universo dos bens culturais legitimados quanto aquele dos bens não consagrados representando as duas frentes que atuavam na Fundação Nacional Pró-Memória 7. A tradicional, representada pelos arquitetos egressos do antigo iphan, e a do cnrc, o chamado ‘grupo da referência cultural’. Vejamos as Considerações básicas do documento citado:

A Secretaria da Cultura reivindica uma conceituação ampla e abrangente

de cultura, entendida como todo sistema interdependente e ordenado de

atividades humanas na sua dinâmica. Assim, privilegia não só os bens mó-

veis e imóveis impregnados de valor histórico e/ ou artístico, mas tam-

bém uma gama importantíssima de comportamentos, de fazeres, de for-

mas de percepção que, por estarem inseridos na dinâmica do cotidiano,

7 Nesta linha, a Secretaria da Cultura compra em leilão documentos originais da Inconfi dência Mineira no exterior, da mesma forma que devolve, à Sala dos Milagres do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos (Congonhas do Campo – mg), uma coleção de 89 ex-votos – tombados e restaurados pela sphan. Outro exemplo é o do tombamento da Fábrica de Vinho de Caju Tito Silva & Cia. na Paraíba, bem como a reinauguração de oito km da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré em Rondônia.

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não têm sido considerados na formulação das diversas políticas. Cultura,

portanto, é vista como o processo global em que não se separam as con-

dições do meio ambiente daquelas do fazer do homem, em que não se

deve privilegiar o produto – habitação, templo, artefato, dança canto, pa-

lavra – em detrimento das condições históricas, sócio-econômicas, étni-

cas e do espaço ecológico em que tal produto se encontra inserido. Nesse

processo, destacam-se alguns bens culturais – aqueles fortemente im-

pregnados de valor simbólico e continuamente reiterados – ao lado de

outros, manifestações em processo que se constituem em evidências da

dinâmica cultural. E é na interação entre os contextos que elegem e de-

senvolvem esses bens que se instaura a tensão criadora que impulsiona o

processo cultural. (diretrizes, 1981, p. 7)

A partir dessas premissas, o documento esclarece que trabalha, operacionalmente, com duas vertentes: a patrimonial e a da produção cultural, mas reconhecendo sua inter-relação indis-solúvel. Se de um lado é necessário proteger, apoiar e recupe-rar as informações contidas no patrimônio cultural brasileiro, tornando-as acessíveis à comunidade, de outro, reconhece-se a importância de se…

[…] estimular o fl uxo criador contemporâneo que, exatamente por se rea-

lizar ao nível do vir a ser da Nação, dispensa a preocupação de retorno ime-

diato, cabendo ao Estado resguardar o espaço da criação, mantendo-o livre

das pressões dos mais diversos fatores que possam difi cultar o desenvolvi-

mento de uma cultura verdadeiramente pluralista e democrática.

Na prática, no entanto, a questão patrimonial, incorporando as raízes populares como fonte de conhecimento, foi a verten-te privilegiada; o próprio documento considerava como evi-dente “[…] a necessidade de serem considerados na política de desenvolvimento sócio-econômico os indicadores culturais, sobretudo aqueles identifi cados no fazer popular”. O país só

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poderia sair de uma “[…] indiscutível situação de dependência cultural” a partir do momento em que se desse “[…] atenção às potencialidades, aos valores, às características dos brasilei-ros de cada região, assim como ao contexto específi co em que se encontram, reconhecendo-lhes respeitabilidade enquanto conhecimento”. Só depois de feito este inventário é que o co-nhecimento por ele acumulado poderia receber o aporte ad-vindo das “[…] ciências exatas e humanas, tanto para o enri-quecimento global do homem brasileiro como para que sejam enfrentados adequadamente os imperativos de ordem econô-mica e tecnológica.” (diretrizes, 1981, p.8) A educação é vis-ta como meta prioritária, busca de processos de aprendizagem que correspondam à “realidade brasileira”. Às artes cabe um papel instrumental, vistas apenas como recurso a ser utiliza-do para facilitar a alfabetização, a consciência comunitária e a recuperação das maneiras tradicionais de expressão do fazer brasileiro: “Deve-se utilizar teatro, dança, cinema, música, li-teratura, artes plásticas, fotografi a, desportos, museus, casas históricas, etc., na geração e operacionalização de situações de aprendizagem.” 8

Há uma diferença aqui face à postura de Mário de Andrade, que não só considerava a arte com elemento fundamental para o desenvolvimento do ser humano, como buscou romper com a estreiteza das dicotomias erudito/ popular e nacional/ estran-geiro. Diferentemente, a Secretaria de Cultura do mec via a área acadêmica e as artes como distantes do legítimo saber do povo, visto como a única saída para os grandes impasses nacionais, fato no mínimo paradoxal, já que o secretário era um artista plástico e designer de renome, fundador da primeira escola de design do país, a Escola Superior de Desenho Industrial (esdi) hoje inte-grada a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (uerj).

No entanto, nas formulações do próprio Aloísio, em suas inúmeras intervenções públicas este problema não aparece,

8Trata-se aqui do Projeto Interação entre a educação básica e os diferentes contextos culturais existentes no país, fi nanciado com recursos do salário-educação, administrados pelo Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação – fnde,cuja aplicação se restringia ao 1º grau, regular e supletivo. O projeto Interação manteve, por exemplo, 95 projetos em 1984, na maioria dos estados do país. Para maiores detalhes ver Brincando, fazendo e aprendendo (Projeto Interação) publicação do mec/ minc/ fnde (rj: Memórias Futuras Edições, 1985. A citação está na página 141 desta edição.

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mas sim na prática institucional, que não era, de fato conduzi-da por ele, mas sim por sua equipe, o que poderia ser uma das razões deste descompasso que apequena a política cultural da-quele momento:

Eu diria que minha missão talvez seja temporária nesta dupla função; tal-

vez seja apenas o tempo necessário para estabelecer uma adequação mais

nítida, dentro do sistema do trato cultural, da responsabilidade do Estado,

e talvez defi nir melhor o que sejam as duas grandes vertentes do bem cul-

tural: a vertente patrimonial e a vertente da ação cultural. Parece nítida

essa divisão que, na verdade, é mais para efeito de trato metodológico, e

não propriamente uma divisão de áreas. Na imagem que me ocorre a ver-

tente patrimonial lembra uma rotação ou um círculo de diâmetro muito

amplo e rotação lenta, enquanto a ação cultural, na criação do bem cultu-

ral, é um círculo de diâmetro curto e de rotação muito rápida. Ambas es-

sas rotações, ambos esses círculos trabalham interagindo um com o ou-

tro, mas têm seus tempos e a sua dinâmica própria e específi ca. 9

A conjuntura da época – o processo de abertura política desen-cadeado pelo General Ernesto Geisel –, quando se fazia neces-sária uma extrema habilidade para não expor indevidamente a área cultural, e a própria visão daqueles que compunham a equipe forte da Secretaria da Cultura, comprometidos com a ideologia do cnrc, calcada numa visão do nacional-popular (fonseca,1994), talvez sejam parte da explicação do porquê do descompasso apontado. (botelho, 2000)

A meu ver, este é um dos aspectos falhos no projeto de Alo-ísio que, na prática não deu espaço para que se implementasse uma política pública que corrigisse esta diferença de tratamento entre preservação e ação cultural. O importante aqui seria bus-car uma ação mais articulada – o que Aloísio afi rma na citação anterior utilizando a imagem do disco –, atenta ao fato de que cada uma tem seus próprios desafi os, que devem ser enfrenta-

9magalhães, A. “As duas vertentes do bem cultural”. In: Cultura, Ano 10, n. 36, mec, abr./ jun. 1981, p. 2 e 3. “E Triunfo?” p. 132–137

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dos com estratégias adequadas, notadamente quando se deseja uma política integrada de preservação e produção, onde não há incompatibilidades. A memória se faz da atenção pelo que se produz justamente na interação entre o que é cultura no nível do cotidiano e o que é cultura no campo das artes reconhecidas, pois um plano alimenta o outro, um transforma o outro. O pa-trimônio é algo mais do que os monumentos, as peças de mu-seu, sendo a cristalização de experiências vivas sedimentadas numa cultura, o que inclui todas as práticas e suas diferenças. A produção, por sua vez, não se restringe ao campo das artes que têm autor e nomes a consagrar, fazendo-se também do te-cido de expressões de criações coletivas que emergem da vida social, dos problemas, das formas de cada cultura se constituir enquanto dá soluções originais para questões práticas, e mes-mo de sobrevivência, que são universais.

Cabe aqui insistir nesta questão que as políticas de cultura continuam enfrentando. Refi ro-me ao empobrecimento que ocorre quando se entende que a ênfase dada a uma visão an-tropológica deva se acompanhar de uma desconfi ança diante da produção artística, ou diante do que se imputa a ela como “produto de elite”, ou como vertente que se afasta dos traços nacionais que a memória privilegia. Creio que a dinâmica é outra, pois identidades são produtos de formação histórica, realidade dinâmica, sempre em transformação, o que justa-mente faz produtiva a relação entre memória e criação, pois os problemas enfrentados pela sociedade mudam com as conjun-turas e exigem respostas originais. Além disso, a cultura não é apenas um bem coletivo, uma tradição a preservar. Ela é uma produção coletiva, constante incorporação do novo. Nesse sentido, todo o patrimônio cultural até agora produzido pela humanidade, repertório do qual extraímos nossas escolhas e que nos permite o desenvolvimento da vida cultural e o exer-cício contínuo da criação é objeto de atenção. Esta herança, ao

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mesmo tempo em que nos enriquece, re-elabora, por sua vez, este mesmo patrimônio que é aberto, sempre incorporando as novas criações.

Em 1985, com os ventos da redemocratização, é criado o Mi-nistério da Cultura, a partir da reiterada demanda dos Secre-tários de Cultura dos Estados, solução que lhes parecia a mais adequada para a resolução de suas carências orçamentárias e políticas. O arranjo e a gestão institucional do Ministério têm sido alterados constantemente desde então, ao sabor de arran-jos que, se não foram aleatórios, demonstraram a falta de trato, por parte dos dirigentes que se sucederam, com o setor cultu-ral, fragilizando-o ainda mais. Nesse sentido, o momento mais doloroso foi 1990, quando o governo de Fernando Collor de Melo se iniciou pondo fi m nas instituições federais de apoio à produção cultural e ao patrimônio, que foram aglutinadas em duas novas instituições: o Instituto Brasileiro de Arte e Cultura (ibac) e o Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (ibpc), ambos sem nenhum prestígio político ou apoio orça-mentário. O Ministério foi rebaixado ao status de secretaria da presidência da república. Esta situação foi de tal gravidade que, mesmo com os esforços de reconstituição – a secretaria volta a ser ministério pela promulgação da lei no. 8.490 de 19/11/1992 – realizados a partir de 1993, no governo Itamar Franco. Sente-se ainda hoje o golpe defl agrado então. Durante o governo Fer-nando Henrique Cardoso (1994–2002) o Ministério foi pouco a pouco recuperando sua presença no debate público e se esses anos foram marcados por um pesado investimento político nas leis de incentivo fi scal, eles também se caracterizaram pelo es-vaziamento do papel nacional e político das instituições do Mi-nistério da Cultura e pela repetição mecânica de pressupostos de uma política cultural democrática.

Somente em 2003, depois de tantas idas e vindas ao longo desses anos, o Ministério da Cultura deu início a um intenso

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processo de discussão e reorganização do papel do Estado na área cultural. Nesse sentido, houve um grande investimento no sentido de recuperação de seu orçamento e a discussão de mecanismos que possibilitassem uma melhor distribuição de seus poucos recursos do ponto de vista do equilíbrio regional voltou a ser uma preocupação. Mais importante ainda é o fato de o Ministério, sob a liderança do ministro Gilberto Gil, vir investindo na recuperação de um conceito abrangente de cul-tura, compondo o terceiro momento do percurso dessas idéias que aqui estou condensando. Retorna a baliza de considerar como fundamental a articulação entre cultura e cidadania, bem como chamar a atenção para o peso da cultura em termos da economia global do país, que vem infl uenciando positivamen-te as políticas culturais regionais e municipais.

Mário de Andrade foi quem desenhou nosso Iphan nos anos 30, que deu

às suas idéias míticas uma forma institucional. Foi ele quem estabeleceu

as balizas antropológicas e estéticas para a preservação da diversidade

cultural brasileira. Pensou um modo de conservar a memória que a torna-

va viva, tirando o patrimônio das gavetas e botando ela nas ruas, no atrito

vivo da multidão, fazendo objetos sagrados experimentarem da incerteza

do cotidiano. Autor de teorias e peças literárias que mostraram à nossa

imaginação como poderíamos nos tornar aquilo que já éramos. E éramos,

sem saber, uma cultura verdadeiramente brasileira. Mas tínhamos receio

e preconceito de ser, medo da nossa afi rmação, de nossa identidade de

muitas identidades. Foi Mário, com suas fantasias, que nos libertou de

nosso complexo de inferioridade simbólica. Grande abridor de trilhas. 10

O Ministério da Cultura defende hoje uma conceituação am-pla da cultura, considerando-a em sua dimensão antropológi-ca, como a dimensão simbólica da existência social brasileira, como o conjunto dinâmico de todos os atos criativos de nos-so povo, aquilo que, em cada objeto que um brasileiro produz,

10Discurso do ministro Gilberto Gil durante a solenidade da Ordem do Mérito Cultural 2006 (Brasília, 8/11/ 2006)

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transcende o aspecto meramente técnico. Cultura como “usina de símbolos” de cada comunidade e de toda a nação, eixo cons-trutor de identidades, espaço de realização da cidadania.

Estas são formulações retiradas de discursos do Ministro Gilberto Gil e que se vêm refl etidas em diversos programas e ações do ministério e de suas instituições. A recusa em assu-mir a dicotomia cultura popular versus cultura erudita – como se fossem pólos excludentes e representassem, em si mesmas, opções ideológicas – é demonstrada na variedade de progra-mas e projetos, que transitam por todos os registros culturais: questões de democracia e de identidade nacional não se redu-zem à defesa do popular entendido como apanágio do valor e da autenticidade, diferentemente do que ocorreu em momento anterior. Todas as formas de cultura que permitam avançar em termos artísticos e de qualidade de vida merecem atenção, pela ação efetiva das várias esferas do Estado na formulação e na im-plementação de políticas públicas para a área, ação determinan-te para a contribuição da cultura ao desenvolvimento, notada-mente quando este é entendido como combate às barreiras de ordem social, econômica e simbólica – esta última nem sempre sufi cientemente ressaltada. Sem a dimensão cultural é difícil imaginar o próprio desenvolvimento nacional.

A retomada conceitual se refl etiu num redesenho insti-tucional importante que, se ainda não é o ideal, pelo menos devolveu às instituições a ele vinculadas o poder de conduzir as políticas específi cas de suas áreas. Desta forma, estas ins-tituições vêm recuperando uma presença nacional, papel que deixaram de exercer desde o fi nal dos anos 80. Exemplo de um dos instrumentos utilizados para isso é a criação de Câmaras Setoriais correspondentes às diversas expressões artísticas, promovendo uma mobilização de cada um desses setores de forma até agora única. Estas Câmaras têm como meta pro-mover um amplo processo de discussão sobre as diretrizes

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políticas e planos de ação de cada setor, levando em conta um diagnóstico formal (estudos específi cos) ou informal (pela experiência e vinculações de seus componentes) que permi-ta o estabelecimento de prioridades com relação aos diversos elos que compõem a cadeia de produção de cada uma das lin-guagens artísticas – teatro, dança, circo, ópera, música e artes visuais, literatura, livro e leitura. Compostas por entidades governamentais e integrantes das cadeias produtiva e criativa dos segmentos das artes, elas propiciam, pela primeira vez na história da gestão federal de cultura, a participação da socieda-de civil no processo de defi nição do conjunto de metas e ações a serem priorizadas por essas políticas setoriais, incentivando com isso um processo de diálogo contínuo para a construção e a avaliação de políticas públicas a serem conduzidas pela insti-tuição responsável pelas artes no âmbito do ministério, que é a Fundação Nacional de Artes (funarte).

Ao lado disso, o Ministério da Cultura incentivou intensa mobilização nacional em torno de conferências municipais, es-taduais de cultura, culminando com a Iª Conferência Nacional realizada em Brasília, em novembro de 2005, para dar substân-cia ao Sistema Nacional de Cultura, que, se for estabelecido e não sofrer solução de continuidade em próximas gestões orga-nizará a articulação entre os entes da federação e a sociedade civil. Neste Sistema, o diálogo e a negociação permanente entre as instâncias municipal, estadual e federal deverão constituir não só a novidade desse mecanismo, bem como permitirão a otimização de recursos humanos e materiais no desenvolvi-mento da vida cultural brasileira. Ou seja, dentre outras ações e programas importantes que foram iniciados (e que não cabe aqui arrolar), o Ministério da Cultura vem investindo em ações estruturantes que nos permitem esperar uma melhoria signifi -cativa de espaços de gestão intergovernamental e de co-gestão com os movimentos culturais 11. Embora seja cedo para apos-

11Vale ainda mencionar a prioridade dada ao estabelecimento de um sistema permanente de estatísticas culturais, em conjunto com o ibge (geração de dados), bem como com o ipea (análise dos dados) de modo a superar a insufi ciência e a dispersão de informações que impedem a análise sócio-econômica aprofundada dos diversos setores que compõem os elos da produção cultural em seus diversos níveis e registros, além de impedir a comparação do perfi l econômico das atividades culturais desenvolvidas no Brasil com outros países.

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tarmos no que fi cará desta gestão, registro, pelo menos, a con-sistência do que vem sendo proposto e implementado.

A aposta é consolidar a cultura como a base de expressão do próprio indivíduo – e de conjuntos de indivíduos; como ferra-menta mais decisiva para a construção e o exercício da cidada-nia. A par da inclusão que se pode promover por meio da me-lhoria na qualidade da educação de cada um, o investimento em cultura resulta, no longo prazo, em aumento da criatividade e da capacidade de inovação, da efi ciência e da produtividade dos indivíduos e da sociedade. Nesse sentido, a cultura é o setor em que o investimento reverte mais diretamente para o conjunto da sociedade; no entanto, sendo um setor ainda marginal no campo das políticas públicas, vimos dependendo até agora da lucidez e integridade de grandes fi guras como Mário de Andra-de, Aloísio Magalhães e Gilberto Gil, à espera de que se consiga implantar um verdadeiro sistema nacional de cultura que nos permitirá ampliar o escopo desta interlocução.

B i b l i o g r a f i a

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*Anita Simis é professora assistente-doutora no Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia na Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (Unesp) – Araraquara.

A n i t a S i m i s *

A polít ic a cultur al como polít ic a públic a

Para iniciar nossa refl exão sobre Política Cultural, creio ser preciso defi nir o que ela é, sua origem e como historicamente foi implementada. Entendo a política cultural como parte das políticas públi-cas. É verdade que a expressão política pública pos-sui diversas conotações, mas aqui genericamente signifi ca que se trata da escolha de diretrizes gerais, que tem uma ação, e estão direcionadas para o futu-ro, cuja responsabilidade é predominantemente de órgãos governamentais, os quais agem almejando o alcance do interesse público pelos melhores meios possíveis, que no nosso campo é a difusão e o aces-so à cultura pelo cidadão.

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No entanto, ainda “é muito reduzida a atenção dada por políticos em geral e cientistas sociais às políticas públicas da área cultural, sejam elas oriundas de órgão federais, estaduais ou municipais” tal como apontava Mário Brockmann Macha-do (1984, p. 7), em 1982, durante seminário realizado em São Paulo. Passados, mais de 20 anos, é signifi cativo que embora a política cultural tenha se transformado e ganho tantos estudos empíricos e teóricos, nas ciências sociais – na área acadêmica das políticas públicas – é ainda um tema se não desconhecido, ao menos desconsiderado. Na verdade, é no âmbito dos estudos voltados para as comunicações que encontramos mais pesqui-sas e artigos sobre o tema. Quanto ao desinteresse com que a maior parte dos políticos trata a política cultural, penso que hoje, mais do que apontar outras carências com maior priori-dade dada a falta de organização democrática da sociedade, po-demos afi rmar que trata-se de preconceito ou ignorância em relação ao assunto.

Primeiramente é preciso ter em conta que a cultura é um di-reito e, nesse sentido, é muito mais que uma atividade econômi-ca, embora a economia da cultura tenha hoje um papel impor-tante na geração de empregos 1. Os direitos sociais são aqueles que dizem respeito a um mínimo de bem-estar econômico, de participação, de ser e viver na plenitude a civilização, direitos cuja conquista se deu a partir do século xx e que se preocupam mais com a igualdade do que com a liberdade. Mas, para con-cretizá-los é preciso admitir um grau maior de intervenção do Estado na vida dos cidadãos por meio dos mais variados meca-nismos e instituições que assegurem sua implantação e obser-vância. É o caso da educação, da saúde e da moradia hoje direi-tos a que todo cidadão deve ter acesso, direitos garantidos pela Constituição da maioria dos países modernos. Sendo direitos do cidadão são também um dever do Estado que, por sua vez, deve promover o acesso a todos e gratuitamente. Com isso, o

1 Com dados defasados, há um texto interessante, que traz dados sobre 1994: “a cultura brasileira, considerando-se todos os seus setores, empregava cerca de 510 mil pessoas, divididos em 391 mil empregados no setor privado (76,7% do total); 69 mil trabalhadores autônomos (13,6%) e 49 mil nas administrações públicas (9,7%). Esse contingente é 90% superior ao empregado pelas atividades de fabricação de equipamentos e material elétrico e eletrônico; 53% superior ao da indústria de material de transportes (incluída a indústria automobilística, de autopeças e de fabricação de outros veículos); 78% acima dos serviços industriais de utilidade pública (energia elétrica e distribuição da água e esgotamento sanitário). Com relação ao setor de telecomunicações e correios, o total de empregados na cultura é 2,8 vezes maior”. O pib da Cultura (2005).

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Estado aumenta sua intervenção, não só para fazer vingar esse direito, mas também provendo esse serviço, aumentando-lhe os encargos, e tendo como espelho reverso, o aumento de encar-gos dos cidadãos, caso da tributação, para suprir o Estado com os recursos para implementar o direito a que foi imposto. O mes-mo pode-se dizer em relação à cultura. E mais, é possível que o Estado ao prover esse serviço interfi ra em outros direitos, como o da liberdade, mesmo que para garantir o acesso a outros. Em outras palavras, para garantir a igualdade, às vezes esbarra-mos na questão da liberdade. Recordemos que uma proposição que continua atual é a busca da convergência entre liberalismo e algum tipo de utopia igualitária e nesse processo igualitário, que é a própria democracia, procura-se resolver a contradição igualdade e liberdade. Ora, nesse aprimoramento democrático, onde ocorre essa luta contra privilégios e em busca de uma socia-lização estão, não apenas bens materiais, mas também o acesso à cultura, e neste sentido o Estado é responsável pela promoção da política cultural, nela incluída a defesa do patrimônio.

No Estado democrático, o papel do Estado no âmbito da cul-tura, não é produzir cultura, dizer o que ela deve ser, dirigi-la, conduzi-la, mas sim formular políticas públicas de cultura que a tornem acessível, divulgando-a, fomentando-a, como tam-bém políticas de cultura que possam prover meios de produzi-la, pois a democracia pressupõe que o cidadão possa expressar sua visão de mundo em todos os sentidos. Assim, se de um lado se rechaçam as iniciativas que favorecem a “cultura ofi cial”, a imposição de uma visão monopolizada pelo Estado do que deva ser cultura brasileira, por outro, não se pode eximir o Estado de prover esse direito social, de estimular e animar o processo cul-tural, de incentivar a produção cultural, sem interferir no pro-cesso de criação, e preservar seu patrimônio móvel e imóvel.

Na nossa discussão, esse é um ponto interessante, pois diz respeito à questão da autonomia, da emancipação das forças

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culturais. Durante anos fomos tutelados. O ufanismo era a tô-nica. Depois, no período democrático, chegamos a enveredar pelo caminho oposto, fechando as brechas para o fl orescimen-to de uma cultura autônoma.

Não podemos deixar de lembrar o que ocorreu com o cinema, uma das formas artísticas mais consolidadas durante o regime militar. Na volta ao regime democrático, em um movimento de contração paradoxal, o cinema estrangeiro pode questionar na Justiça a forma como o Estado organizou a política cinema-tográfi ca, asfi xiando o espaço existente para expressão da pro-dução cinematográfi ca nacional e, consequentemente, abrindo novos para o cinema concorrente. Distanciando-nos um pou-co mais os anos de chumbo, o primeiro presidente eleito pelo voto direto propôs encolher os espaços culturais, quando não, o exagero de extinguir as estruturas culturais. Sob a crítica cer-rada da imprensa, que denunciava o favoritismo estatal, o cor-porativismo, a corrupção, o empreguismo, o cartorialismo ar-tístico cultural, a responsabilidade do Estado se tornou omissa. Alguns artigos enfatizaram inclusive, que as saídas possíveis para o desenvolvimento da produção cultural estariam no uso das próprias forças das atividades culturais, valendo-se para tanto de uma dose de inventividade, saúde e coragem. O co-medor de marajás, aproveitando esse clima, se negou a propor iniciativas concretas, argumentando que o governo não pode ter uma política cultural, já que o Estado que empresa espetá-culos, patrocina artistas ou promove iniciativas na verdade fa-vorece uma “cultura ofi cial”. Assim, proibiu que a gerência dos teatros, festivais, concertos, exposições, bibliotecas e museus fi casse a cargo dos artistas, empreendedores culturais e edu-cadores, não dos burocratas. Ironicamente, não pode creditar a uma política cultural os benefícios indiretos que seu famoso plano econômico trouxe como conseqüência. Referimo-nos à abolição da subvenção ao cinema estrangeiro decorrente da

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remessa de 60% de seus rendimentos a um câmbio ofi cial, que chegou a uma defasagem na ordem de mais de 122% em relação ao câmbio paralelo. Por ter passado despercebido, relato breve-mente o que ocorreu: com as mudanças na política econômica esta situação foi alterada. O câmbio ofi cial foi extinto e intro-duziu-se o câmbio livre, ou seja, o Banco Central deixou de es-tabelecer uma cotação ofi cial para a conversão. Continuaram a existir as cotações do dólar-turismo e do dólar no mercado pa-ralelo, mas as remessas de lucros passaram a ser cotadas pelo câmbio livre, regulado pela oferta e demanda, fl utuando con-forme a realidade cambial do país. Em outras palavras, houve uma aproximação entre o valor do dólar livre e do dólar paralelo. A subvenção às matrizes estrangeiras é pouco signifi cativa do ponto de vista de uma economia de divisas para o país (o total remetido no primeiro semestre de 1989 representa aproxima-damente 4% do nosso saldo comercial de janeiro), mas é preju-dicial a uma política cinematográfi ca de incremento à produção nacional, ao mesmo tempo em que incentiva a importação de fi lmes estrangeiros. Se considerarmos que antes do Plano um ingresso era vendido em média a US$ 1 (no câmbio paralelo, ncrz$ 78,00) e que o produtor recebia 33% deste valor, mas com um mínimo de um mês de diferença e, portanto, um valor corroído pela infl ação, para que o produtor obtivesse o retorno de US$ 500 mil, orçamento de um fi lme médio, seria preci-so que ele fosse assistido por 1,5 milhão de espectadores, isto é, que todos os fi lmes produzidos tivessem sempre o sucesso dos Trapalhões, que vence a concorrência de inúmeros fi lmes estrangeiros, inclusive Batman e sua milionária campanha pu-blicitária. No caso do fi lme estrangeiro, as matrizes não têm as mesmas difi culdades. Seu lucro provêm da média dos fi lmes que importam e podem oferecê-lo por um preço relativamente abaixo do nacional, mesmo tendo altos custos de produção, já que estes custos são abatidos, primeiramente, no seu mercado

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interno. A remessa ao câmbio ofi cial era, portanto, um incen-tivo extra signifi cativo (um total de us$ 23.540.908,31 só no 1o semestre de 1989) que contrabalançava o preço reduzido dos ingressos no Brasil.

No entanto, não são apenas as matrizes estrangeiras que ti-ravam vantagens da situação. Os darwinistas brasileiros que na sua esperteza se julgam mais aptos a sobreviver na selvageira da sociedade hiperinfl acionária, logo encontraram uma forma de ganhar uma fatia deste bolo. Alguns distribuídores/exibi-dores brasileiros abriram nos EUA uma empresa que compra os títulos americanos, remete-os para a distribuídora brasileira e depois envia os 60% dos lucros permitidos, ao câmbio ofi cial, para fora. Mas, se a repercussão das medidas contidas no Plano Collor atingiram desfavoravelmente os setores que comercia-lizavam o fi lme estrangeiro, por conta da falta de uma política cultural e de instituições culturais houve uma paralisação das atividades no âmbito da produção cinematográfi ca nacional até a chamada Retomada do Cinema Brasileiro 3.

Voltando à nossa refl exão, é também interessante notar que hoje, com a difusão do conceito de globalização, enten-dido genericamente como uma abertura de via dupla ao mun-do, já não se aponta o perigo da aculturação (especialmente da música totalmente despida de identifi cação) e da necessá-ria busca das raízes autênticas que formam a nacionalidade. Na balança da nossa identidade, nota-se que se a cultura tem pesado mais que a nação, ou o local/ espaço de origem, que ela está envolvida por intercâmbios versáteis, e em continua formação. Já se incorporou a crítica de que é enganoso bus-car uma “identidade brasileira” ou uma “memória brasileira”. Por outro lado, mais que contrapor a essa pseudo-unicidade as inúmeras identidades, creio que Ortiz (1985, p. 139) foi fe-liz ao afi rmar que a questão que se coloca é: “quem é o artífi ce desta identidade e desta memória que se querem nacionais?

3 Ver sobre esse momento o artigo de Campos, 2006.

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A que grupos sociais elas se vinculam e a que interesses elas servem?” Sem dúvida, o Estado articulou que “identidade” e “memória” mereciam ser incentivadas e a história do nosso cinema espelha bem como esta expressão cultural foi apro-priada pelos diversos governos, que a ligaram à integração, à identidade nacional, à estruturação e consolidação de uma sociabilidade vinculada ao território interno dos Estados-na-ção, mas também à formação do senso de nação republicana e recentemente à globalização.

Mas, trata-se de um estado de globalização imposto unila-teralmente. É neste sentido que, conforme Martinez (2005, p. 40), “os princípios e políticas de resguardo e preservação dos símbolos nacionais e da diversidade cultural, inclusive, que têm despertado o desenvolvimento audiovisual em diversos países, precisam ser entendidos”: como uma reação. Trata-se de um processo em que Hollywood surge, sem dúvida, como maior emblema, embora possamos identifi car a gênese da distribuição de seus tentáculos muito antes dos anos globali-zantes. Por outro lado, diversidade também pode ser pensada não só como reação, principalmente quando deixa em segun-do plano as diferenças de classes e passa a ser apenas cultural, evidenciando uma retomada de um conceito de culturalismo em novas bases, sem polarização ideológica, embora também devamos notar que as visões culturalistas têm os mesmos pais fundadores, mas não são homogêneas em sua totalidade. Hou-ve, na última década, uma reinterpretação na forma de pensar a política, agora centrada principalmente nos aspectos cultu-rais e que coincide com o momento em que os EUA formatam o mundo à sua imagem. Conforme Bourdieu e Wacquant (2001), trata-se de um discurso que ao mesmo tempo que serve de ins-trumento para a construção de políticas públicas e privadas, é também instrumento de avaliação dessas políticas e apoia-se numa série de oposições:

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Ora, o que se coloca é que o Estado é a negação da democracia, da diversidade, da liberdade. Essa oposição Mercado/ Estado tem afi nidades com o que Kurz (2001) afi rma quando diz “quanto mais, nos anos 80 e 90, a cultura era economicizada, mais a eco-nomia era culturalizada no pensamento ideológico”. Na verdade “Estado e mercado representam apenas os dois pólos da sociali-zação capitalista e não podem ser jogados um contra o outro.”

Mas, o movimento que ocorreu da integração nacional, da estruturação e consolidação de uma sociabilidade ligada à na-ção, da identidade nacional à globalização que dissolve a idéia de nação e recompõe o culturalismo, portador da bandeira da afi rmação da diversidade, não é exclusivo do Brasil. A diversi-dade também surge como oposição e “se mistura ao ruído dos motores de uma indústria multinacional de controle concen-trado e altíssima capilaridade” (martinez, 2005, p. 40). Se há cada vez mais controle da rede hegemônica, há também cada vez mais e por toda parte a proliferação da produção indepen-dente impulsionada por políticas culturais que sabem da im-portância da reação diante deste paradoxo.

Especialmente na gestão do ministro Gilberto Gil, passamos a ter uma política cultural cujo projeto acentua o binômio entre diversidade e desigualdade, desfazendo-se daquela exclusiva-

MERCADO ESTADO

LiberdadeAbertoFlexíveldinâmico, móvelfuturo, novidadeCrescimentoindivíduo, individualismodiversidade, autenticidadeDemocrático

CoerçãoFechadoRígidoimóvel, paralisadoPassado, ultrapassadoimobilismo, arcaísmogrupo, colectivismouniformidade, artifi cialidadeAutocrático (“totalitário”)

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mente sobre a identidade nacional. Aqui enfatiza-se a distância do culturalismo e seu confi namento de minorias e culturas e busca-se uma identidade dialógica, intercultural que se hibri-diza e se relaciona. Certamente a diversidade enfatizada por Gil em seus discursos não é aprofundar divisões sociais ou mes-mo divisões de coteries, como a dos baianos, dos “globais”, do grupo cearense, do Rio Grande do Sul, ou ainda reeditar anti-gas disputas entre paulistas e cariocas. A noção de diversidade cultural é para nos ajudar “a procurar caminhos e a reorganizar uma agenda de emancipação e realização humana” (gil, 2006). O próprio termo multicultural reproduzido em discursos dos agentes governamentais refere-se ao reconhecimento das cul-turas marginalizadas. Neste sentido, é interessante notar que pela primeira vez, mais concretamente, durante a reforma ad-ministrativa de 2003, Gil criou uma Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural. No entanto, segundo seu secretário, Mamberti (2007), se tal secretaria reconhece “situações especí-fi cas derivadas das distinções de classe ou do mundo do traba-lho (identidades de trabalhadores do campo ou da cidade, estu-dantes, etc.)”, também segue a revisão do Plano Brasil de Todos, que aprovou a criação do Programa Brasil Plural – Identidade e Diversidade Cultural, cujo objetivo talvez se distancie do que o próprio ministro afi rma, pois o texto ainda diz que trata-se de “garantir que os grupos e redes responsáveis pelas manifes-tações características da diversidade cultural brasileira tenham acesso aos mecanismos de apoio necessários à valorização de suas atividades culturais, promovendo o intercâmbio cultural entre as regiões e grupos culturais brasileiros, considerando ca-racterísticas identitárias por gênero, orientação sexual, grupos etários, étnicos e das culturas populares.” (grifo nosso).

Antes de abordarmos a atual gestão do Ministério da Cul-tura, analisemos como esse processo se constituiu no Brasil, como a questão da diversidade foi assumida enquanto chave

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para a elaboração de uma política cultural diferenciada.Se entendermos os primórdios da preocupação do Estado

com questão cultural ainda no século xix, quando, sob infl u-ência européia, sob a ideologia positivista, o Brasil tinha que ser “civilizado”, quando cultura signifi cava civilização e esta-va imbricada na educação, e foram assim criadas instituições como bibliotecas, escolas de belas artes, museus, arquivos, sem dúvida o avanço é em muitos sentidos radical, pois hodierna-mente, a preocupação já não é com a nação, mas com a socie-dade. Já superamos o paradigma da nacionalidade, não se trata mais de construir uma nação, mas de democratizar uma socie-dade injusta e desigual, de construirmos um diálogo aberto para o mundo. Mas, não podemos deixar de evidenciar o peso desse legado e perceber o quanto somos ainda credores dos res-quícios desse passado. Foi especialmente com a Revolução de 1930, quando o processo de modernização conservadora se ace-lera que, diversamente do que ocorrera na Europa onde a partir dos confl itos nascidos no interior uma sociedade civil já consti-tuída, procura-se controlar a sociedade e civilizar as classes po-pulares com o objetivo essencial de manter a ordem burguesa ameaçada pelos movimentos de esquerda – aqui, por meio de um processo dirigido pelo Estado, o processo educacional ad-quire uma função muito importante e ainda hoje a educação é apresentada como um direito e um instrumento fundamental. Isso sem esquecer a contribuição dos modernistas, principal-mente de Mário de Andrade, nosso primeiro dirigente público de cultura, e seu anteprojeto para a criação de um serviço de proteção ao patrimônio artístico nacional (1936), cujos desíg-nios ainda hoje respingam no MinC. E a nossa tão proclamada diversidade regional, socioeconômica e cultural? Não foram os pensadores conservadores e suas soluções autoritárias para a questão da organização nacional ou da construção da cidada-nia pela via corporativa que a ergueram pela primeira vez no

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início do século xx, inclusive com o objetivo de a partir dela criar condições de formular uma consciência nacional? Ora, essa ideologia positivista que vem do século xix, permanece nos anos 30–40, e em parte nos 50, naquelas instituições her-dadas. Em suma, se no nosso passado não tivemos uma socie-dade civil forte e organizada, capaz de fazer com que o Estado respeitasse os limites impostos pela sociedade à sua ação, neste momento, o Estado consegue impor sua tutela sobre o sistema educacional e é sob a longa gestão do Ministro da Educação, Ca-panema (1934–1945) que, em pleno autoritarismo de Vargas, o Estado será, em parte, mecenas de diversos projetos. Portanto, a autonomia do campo cultural foi obscurecida: ele é invadido pelo autoritarismo e, depois, será marcado pelo paternalismo do Estado. Talvez seja neste momento inclusive, que o Estado passou a absorver da sociedade tudo que pudesse ser renova-dor, mas que assumiu o sentido de único realizador ou cujo apoio tornara-se indispensável. E, no pós 45, é interessante ver como diversos agentes – do setor cafeeiro ao cultural – ao invés de proporem a diminuição do grau de centralização ou concen-tração das decisões no âmbito do Estado, passaram a sugerir a privatização do Estado introduzindo os interesses privados em sua estrutura.

Um ícone deste movimento é certamente Jorge Amado e seu projeto de um Conselho Nacional de Cinema, na verdade um órgão abrigado nas estruturas do Estado, mas sob o con-trole do setor dos produtores cinematográfi cos. O mesmo irá ocorrer efetivamente com a Embrafi lme/ Concine, quando cinema deixou de ser uma atividade regulada apenas pelas leis do mercado. Como afi rma Farias (2005, p. 16), na Embrafi l-me “nos reuníamos, conversávamos, anotávamos as medidas que queríamos e íamos para ao Conselho Nacional de Cine-ma, lutar por elas, impor, discutir e votar. Acabamos implan-tando uma série de coisas que foram permitindo o avanço do

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cinema”. Na verdade, se essas instituições foram uma tenta-tiva do governo militar monitorar o cinema, é preciso lem-brar que podem ser pensados como o resultado de uma luta do cinema brasileiro, muito anterior ao regime militar, isto é, a culminância da luta em torno do próprio Conselho Nacional de Cinema proposto por Jorge Amado, e sem dúvida, o que mais contribuiu para que a política do cinema acabasse sendo feita pelos próprios cineastas, sem intermediações de um bu-rocrata, foi o nacionalismo dos cineastas.

É esse movimento contraditório que é rico e precisa ser mais estudado.

Como se sabe foi com Mário de Andrade que pela primei-ra vez se formulou uma política cultural no sentido público, e não apenas voltada para as elites, a elite nacional agrária oligár-quica. A cultura passou então a ser um direito de todo cidadão. E embora esse momento de ruptura não tenha perdurado, seus sinais serão retomados posteriormente. Por outro lado, com a estruturação do Estado varguista, também herdamos des-te período instituições públicas na área cultural mais fortes e que, consequentemente, tiveram mais condições de atingir um espectro maior da população brasileira. Além disso, não po-demos deixar de lembrar que, se há censura e o famigerado dip do Estado Novo, há por outro lado proteção e incentivo à cultura e projetos sistêmicos, como já mostramos no livro Estado e ci-nema no Brasil. Alguns projetos serão implementados, outros, como o de Lourival Fontes, de uma grande e potente estação de rádio com alcance sobre todo o país, não chegaram a germinar. Também durante a ditadura militar encontramos essa ambigüi-dade, com a Embrafi lme, conforme afi rmamos acima.

De fato, o regime militar irá revigorar temas da era getu-lista, como a integração nacional que será enfi m atingida em sua plenitude, mas já em um meio em que as indústrias cultu-rais estão se impondo com toda força, transformando o meio

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cultural, seja no aspecto da profi ssionalização, seja pelo pro-gresso técnico e midiático.

Com a ascensão do presidente Fernando Collor de Mello tem início o chamado “desmanche do Estado” — a determinação neoliberal e globalizada de redução do Estado — e sua respec-tiva desregulamentação, privatização, livre comércio, concor-rência solta, que levou à implosão da máquina das empresas públicas e de diversas das instituições do Estado, inclusive o próprio Ministério da Cultura, que voltam a existir na gestão Itamar Franco (1992–1995). Há um desmantelamento delibe-rado do Estado social e é, cada vez mais claro, o crescimento correlativo do Estado penal. Antes, porém temos também um período onde se constitui uma sólida indústria cultural, som-breando muitas vezes a posição do Estado, mas sem aniquilá-la. A própria Lei Sarney (1986), que se apresenta como a primeira lei de incentivo, mote para outras, como a Lei Rouanet (1991), mas também aquelas estaduais e municipais, era uma forma de toldar o intervencionismo do Estado militar a que sucedeu ou quem sabe para se contrapor ao recém criado Ministério da Cul-tura (1985) 4, quando a cultura tem um ministério específi co, reconhecendo-se a singularidade da política cultural. Na ver-dade nos anos 90 se transformou a relação com o Estado, pois que indiretamente, passou a incentivar a produção. Em outras palavras, por meios tortuosos, qual mecenas de um novo tipo, passou ele próprio a fi nanciar a produção audiovisual, inclusive porque várias das empresas que aplicaram recursos em ativi-dades culturais são estatais. Assim, quem atualmente fi nancia a produção é o contribuinte. Trata-se de uma apropriação gra-tuita do capital e da cultura pelos interesses privados, e ainda, com a fama creditada à iniciativa privada. No caso do cinema, se, por um lado, não há mais tutela do governo, com comissões que selecionam fi lmes capazes de obter recursos do Estado, por outro, o que conta é a capacidade do produtor de atrair uma

4 Anteriormente, a cultura era pensada seja no dip, seja no Ministério de Educação e Saúde e, em 1953, o Ministério de Educação e Saúde mudou para Ministério da Educação e Cultura.

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empresa pagadora de impostos que, por sua vez, não corre qual-quer risco. Além disso, critica-se a concentração destes recur-sos em alguns estados em detrimento de outros e a aplicação em setores com maior retorno de imagem positiva da empresa.

Mas, mesmo mantendo as leis de incentivo (inclusive a Lei do Audiovisual), sem dúvida, com o governo Lula, assistimos a uma mudança signifi cativa na política cultural. Pensando em cidadania, passou a se levar em conta a diferença como carac-terística dos homens enquanto indivíduos, mas em que todos, sem distinção, tenham direito aos benefícios, pois enquanto cidadãos, todos são iguais, ao menos perante a lei e com rela-ção a certos direitos estabelecidos como fundamentais. E neste sentido, foram abertas formas de expressão cultural que esta-vam sufocadas ou desassistidas.

Recorremos mais uma vez a Machado (1984, p. 8–9 e 11–12) que afi rmava nos anos 80 não existir uma política cultural “com um comando centralizado, metas defi nidas e aferição de resul-tados”, “uma política que integrasse organicamente as diversas ações executadas pelas agências de fomento da área”. É certo, segundo o autor, que anteriormente houve sim tentativas nes-te sentido, como aquela que pretendia formular uma política cultural centrada na defesa do chamado “patrimônio históri-co e artístico nacional”, uma política cultural que ao procurar recuperar e conservar o passado, foi conservadora. Afi rmava também que dada a diversidade das agências culturais, seu ca-ráter clientelístico, mas também pluralista e assistencial, o que tínhamos eram políticas culturais e não uma política cultural, situação esta – de desorganicidade das agências – o que, invo-luntariamente, possibilitou um relativo grau de autonomia. O autor ressaltava ainda o fato de que “essas políticas públicas são implementadas por órgãos os mais variados, que mantêm poucas relações entre si.” Se com isto Machado procurou refe-rir-se aos vários órgãos do âmbito cultural que estavam fora do

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ex-Ministério da Educação e Cultura, por exemplo, e que certa-mente continuam fora do atual Ministério da Cultura, no caso da atual política cultural implementada pelas agências da área cinematográfi ca, poderíamos acrescentar que a política desen-volvida por vários outros órgãos continua a interferir direta-mente nos âmbitos sob a responsabilidade daquelas agências, como a produção, a distribuição e a exibição.

É curioso notar que Machado faz essa análise antes mesmo da existência do Ministério da Cultura, em 1985, mas que se sustenta ao menos até o início da gestão do ministro Gilberto Gil, em 2003. Não por acaso, o ministro tem feito referências sobre a necessária transformação da uma política de cultura numa política pública de cultura. Sem desconhecer as lições dos teóricos clássicos de transformar sem dar as costas para o que existe, o tratamento da Cultura como política pública e desta como política cultural avançou nos últimos anos, abrin-do perspectivas novas. Hoje o Ministério conta com seis secre-tarias sistêmicas, orientadas por especifi cidades, mas dentro de uma pauta que privilegia a universalidade: de políticas cultu-rais, de programas e projetos culturais, do audiovisual, de ar-ticulação institucional, da identidade e diversidade cultural e a de fomento e incentivo à cultura. Destas, apenas uma dirigida a um setor cultural específi co. A política deixou o balcão e se tornou pública e cultural, ao formular projetos e incentivar o desenvolvimento cultural, articulando relações dentro e fora do governo, embora essas últimas nem sempre tenham suces-so. Se por um lado a nova formulação teórica que embasa a po-lítica cultural exige uma maior articulação em relação a todas as ações governamentais, nem sempre isso se torna realidade. Há enorme difi culdade de avançar nas relações com os demais ministérios e do próprio executivo. Mais próximo estão as ongs e mesmo organismos internacionais como a Unesco.

A exigência de uma maior articulação governamental, seja

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com a educação, saúde, economia etc., é fundamental. Mas por outro lado, já há outras iniciativas mostrando que é possível haver mais integração. Neste sentido, podemos citar o Siste-ma Nacional de Cultura (snc) que desde 2005, atrai estados e municípios através da assinatura de protocolos de intenção para implantar o snc, que tem como objetivo “que cada ente fe-derado tenha órgão gestor específi co para a política pública de cultura, sistema de fi nanciamento para execução das políticas, plano de cultura pactuado com a sociedade, conselho de cultu-ra atuante, e participação na Conferência Nacional de Cultura, através da conferência municipal, intermunicipal, ou estadual de cultura, além de um conjunto de leis ou instrumentos nor-mativos que assegurem a permanência e desenvolvimento des-se novo modelo de gestão para o setor cultural.” (Secretaria de Articulação Institucional, 2005, grifos do texto). Outro gran-de projeto que está sendo acompanhado com grande interesse por parte de agentes culturais e imprensa são os Pontos de Cul-tura, escolhidos a partir de chamada pública. Em fi nal de 2004, o primeiro edital dos Pontos de Cultura já havia benefi ciado mais de 260 grupos culturais de todos os estados do País e, após o primeiro mandato do governo Lula, alcançaram o número de 500. A pretensão é chegar a 2010 com cinco mil Pontos de Cul-tura em todo país.

Mas, como viabilizar esses Pontos de Cultura sem que a estrutura burocrática seja um impedimento para a participa-ção de projetos ousados, do cotidiano ou experimentais, e de amplas camadas da população? Como ampliar os setores par-ticipantes das chamadas públicas sem atrelar estruturas bu-rocráticas que absorvam parte do fi nanciamento que deveria ser para a atividade fi m? Por outro lado, como facilitar o elo entre o governo e os participantes sem desproteger o dinheiro público? Como trazer equipamento e fi nanciamento para as comunidades sem tutela-las, sem impor um modelo organi-

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zacional? Estas são sem dúvida questões que devem preocu-par os atuais “intelectuais orgânicos”.

E o que dizer sobre o tratamento dado aos setores da indús-tria cultural nacional?

A imprensa com freqüência vem mostrando dados signifi -cativos sobre a importância da indústria cultural. O comércio internacional de bens e serviços culturais deve movimentar, em 2005, mais de um trilhão de dólares. No Brasil, a indústria cultural vem ocupando espaços cada vez mais signifi cativos, seja pela sua infl uência na área política, seu impacto nos valores democráticos e no processo democrático, seja pelo seu papel no âmbito econômico, tendo consolidado há mais de quaren-ta anos um mercado de bens culturais. Isso sem contar que as novas tecnologias digitais estão desconectando os produtos de entretenimento das mídias específi cas e os fazendo adaptáveis a múltiplas plataformas, inaugurando novos mercados e habi-litando novas formas de exploração do produto cultural.

Neste ponto, cabe uma análise sobre o projeto Ancinav, isto é, a iniciativa do Ministério da Cultura em transformar a Anci-ne – Agência Nacional do Cinema – (2001) em Agência Nacio-nal do Cinema e do Audiovisual, possivelmente um organismo com uma atuação possivelmente próxima à extinta Embrafi lme e ao Concine, mas que englobaria o audiovisual como um todo e não limitada ao setor de cinema e vídeo. Certamente por meio deste instrumento havia um projeto de desenvolvimento mais amplo, mas, após uma tramitação conturbada, foi engavetado. Seria esse fracasso comparável ao processo pelo qual passou o projeto do inc, encomendado por Getúlio Vargas a Alberto Cavalcanti? O certo é que as críticas à Ancinav, classifi cada pelo cineasta Cacá Diegues de “autoritária, burocratizante, concen-tracionista e estatizante”, fazem lembrar aquelas dirigidas ao inc: órgão burocrático, centralizando nas mãos do Estado uma espécie de “super-dip”. É possível ainda que, tal como ocorreu

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com a encomenda de Getúlio, o natimorto projeto da Anci-nav tenha esbarrado na questão da sujeição a um novo árbitro, já que obedecia a um movimento de retorno à iniciativa do Es-tado, portanto oposto ao neo-liberalismo, e perda do controle por parte do setor produtor, não diremos do cinema, mas do audiovisual como um todo, na formulação da política.

Talvez o Ministério da Cultura quando propôs a criação da Ancinav, avançando para a regulação do conjunto das ativida-des cinematográfi cas e audiovisuais, tenha justamente descon-siderado que o avanço não deveria se dar numa única direção, mas no conjunto, passando a entender o audiovisual como uma única face difundida sobre diversos suportes, superando a se-paração entre obras cinematográfi cas e outros conteúdos au-diovisuais. É preciso unifi car esforços em torno de uma políti-ca cultural que abarque desde a produção de fi lmes até os jogos eletrônicos, que regule os suportes mais diversos, e questione a relação desigual de competição com o produto de conteúdo importado. Para tanto, ao contrário das medidas equivocadas tomadas nos anos 50, quando se perdeu a oportunidade de uma aliança entre produtores e exibidores 5, é interessante no-tar que, para a alavancar esse processo, vivemos um momento em que a presença cada vez maior do capital estrangeiro, prin-cipalmente nas telecomunicações, aponta para a instabilidade ou insegurança de setores consagrados e esse é um dado sig-nifi cativo para estabelecer novas relações entre os setores na-cionais 6, bem como uma nova delimitação das competências, um re-equilíbrio entre as ações do Ministério da Cultura, das Comunicações e de uma Agência Nacional do Audiovisual.

Neste sentido, ainda estamos aguardando um projeto que sinalize o desenvolvimento deste setor, integrando uma po-lítica legal e regulatória que promova a produção, incorpo-rando novas mídias, acompanhando a evolução tecnológica e que possa assim se aproximar de uma visão hegemônica, sem

5 Referimo-nos ao congelamento dos preços dos ingressos que atingiu fortemente a produção nacional e o setor exibidor e, por isso mesmo, poderia ter sido elemento fundamental para aproximar e integrar uma política que tratasse com maior abrangência as questões cinematográfi cas nacionais. Cf. Simis, 1996.

6 Na Argentina, uma oportunidade semelhante foi agarrada com êxito. Diante do investimento estrangeiro em redes de tv e o acirramento da competição pela audiência no fi nal dos anos 90, as emissoras se tornaram mais permeáveis e abriram suas grades para exibição de obras de produções independentes. Ver Galvão, 2004.

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grandes resistências. Entendemos que a forma como a proposta foi apresentada, evidenciou uma postura ultrapassada, sugerin-do talvez uma privatização do Estado introduzindo os interes-ses privados em sua estrutura, mas que certamente na “guerra de posições” mediu suas forças equivocadamente e sem ao me-nos tentar conquistar apoios mais fortes (leia-se distribuidores e produtores) para que a televisão se abrisse ao cinema nacional. Hoje uma das alternativas talvez seja incorporar algumas medi-das na antiga proposta de uma Lei Geral das Comunicações de Massa, mas também fortalecer e ampliar as televisões públicas.

Com isso, fi ca claro mais uma vez o quanto é preciso pensar a política cultural de forma sistêmica e integrada. Não apenas o Ministério das Comunicações, mas também o da Educação, precisam estabelecer em conjunto uma política cultural. Se há uma ênfase na economia da cultura, de como as empresas que atuam no mercado vem contribuindo, por exemplo, signifi ca-tivamente para a geração de empregos, é preciso contrabalan-çarmos isso com a noção de que a cultura é também um direito, tanto quanto é a educação, reafi rmando uma política que dê acesso à cultura, à diversidade cultural. É necessário pensar em formação de público, em distribuição, em difusão de cultu-ra, inclusive para evitar a tutela ofi cial ou a reprodução do que a indústria cultural já produz.

C o n c l u s ã oDo que foi exposto, uma das conclusões mais instigantes é re-fl etir sobre uma periodização para as políticas culturais, seus marcos fundamentais. De forma a contribuir para o debate, creio ser possível sugerir que um dos critérios para sua elabo-ração seja perceber quando as políticas culturais surgem ade-quadas à defi nição do que elas de fato são e como se aproximam e afastam dela.

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Assim, dentro de uma concepção de políticas públicas, como um direito, é com Mário de Andrade que pela primeira vez se formulou uma política cultural no sentido público, e não ape-nas dirigida às elites.

Em um segundo momento, podemos dizer que temos uma política cultural que tutela a cultura, que é autoritária, mas que institucionaliza organismos públicos na área cultural mais fortes e que procuraram atingir a população brasileira de forma ampla.

Até os anos 80, a política cultural não se propôs como polí-tica pública e, neste sentido, o que estava mais próximo de ser uma política cultural foram diretrizes conservadoras, de cará-ter clientelístico, por vezes pluralista e assistencial. O Ministé-rio da Cultura, em meados dos anos 80, embora seja o reconhe-cimento da singularidade da política cultural, não teve tempo de articular um projeto sistêmico.

Outro marco fundamental se dá com a ascensão do presiden-te Collor de Mello quando justamente tem início uma inversão desta institucionalização das instituições culturais, e quando se transformou a relação com o Estado, com a própria omissão deste em relação à cultura, ainda que indiretamente, com as leis de incentivo, ele tenha passado a infl uir na produção, muito mais que as empresas privadas.

Somente na gestão do ministro Gilberto Gil, passamos a ter uma política cultural cujo projeto acentua o binômio entre diversidade e desigualdade, desfazendo-se daquela exclusiva-mente sobre a identidade nacional e a questão da diversidade foi assumida enquanto chave para a elaboração de uma política cultural diferenciada. Sem voltar para os preceitos do Estado desenvolvimentista, o Estado voltou a um papel a cumprir, no desenvolvimento econômico, no setor cultural, na regulação de economias da cultura, de árbitro, de legislador.

Se há inúmeras difi culdades de articulação, inclusive dentro do próprio Ministério, notamos que a política cultural desen-

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volvida durante o último governo buscou com afi nco e clareza sua fi liação à política pública. Assim a cultura vem progressiva-mente sendo concebida como direito também para uma mas-sa anônima que, se não se benefi ciava dela, é porque nem sabe que ela existe. Além disso, a tutela é repudiada em um processo que denota, assinale-se, o amadurecimento da autonomia das forças culturais e sua emancipação. Finalmente, é signifi cativo que haja um progresso na produção de dados objetivos sobre o setor cultural, fundamental para se implementar uma política cultural e aferir seus resultados. Os Pontos de Cultura e o snc, neste sentido e o Observatório Internacional de Economia da Cultura, um centro de referência da economia criativa, com sede no Brasil, que abrigaria números, estudos, textos, canais interativos, informações, toda sorte de referência, conheci-mento sobre o setor, são exemplos nesta direção.

Enfi m, esperemos que aqueles que propõem a mínima inge-rência nos assuntos culturais estejam fracos, que a proposta da diversidade seja a tônica, mas que a força da questão republica-na dos direitos sociais não fi que assombreada.

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Secretaria de Articulação Institucional do Ministério da Cultura.

cult.vol2.v2.0.indb 154cult.vol2.v2.0.indb 154 5/15/07 9:47:33 AM5/15/07 9:47:33 AM

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a p o l í t i c a c u l t u r a l c o m o p o l í t i c a p ú b l i c a 1 5 5

Sistema Nacional de Cultura, maio/2005. Disponível em http://www.forumnaccultura.org.br/forumcultura/arquivos/File/CuiMT_2005SetApresentacaoSNC.doc. ‹Acesso em 1 de março de 2007›.

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cult.vol2.v2.0.indb 155cult.vol2.v2.0.indb 155 5/15/07 9:47:34 AM5/15/07 9:47:34 AM

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*Jornalista, ensaísta e editora.

M a r t a P o r t o *

Cultur a par a a polít ic a cultur al

A retomada de uma trajetória sustentável de desen-volvimento é encarada por todos como a maior prio-ridade para o Brasil. Ao contrário do que tanto se diz nas páginas dos jornais, no entanto, ela não depende de uma simples redução da taxa de juros. Nem muito menos implica a reedição de um modelo que já ex-perimentamos no passado, que se esgotou por seus próprios limites e que está na raiz de grande parte dos problemas que enfrentamos hoje: a insufi ciência e a baixa qualidade da educação, a desigualdade, o caos metropolitano, os desequilíbrios ambientais etc.

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1 5 8 m a r t a p o r t o

Uma agenda de desenvolvimento para o Brasil hoje passa, antes de tudo, pelo aprofundamento e pelo aprimoramento de processos que já estão em curso na sociedade brasileira:A democratização política, econômica e social;A consolidação da estabilidade macroeconômica;Uma ampla reforma de instituições que já tiveram seu tempo, que não condizem com a sociedade aberta e de mercado que se está construindo e que impedem maiores ganhos de efi ciência e uma maior equidade;A redefi nição do espaço público, de forma a consolidar a descen-tralização e a ampliar suas fronteiras para além da esfera estatal;O aumento dos investimentos em infra-estrutura, em ciência e em tecnologia;A reformatação de um amplo leque de políticas públicas, vi-sando obter uma maior transparência e, sobretudo, uma maior efi cácia do gasto público;O redesenho da inserção do país no cenário econômico e polí-tico internacional.

Trata-se, portanto, de uma agenda complexa – cuja materia-lização requer o envolvimento de um amplo leque de atores e de uma profunda mudança no imaginário coletivo nacional.

Os pressupostos acima foram retirados de um documento intitulado “Caminhos para o Desenvolvimento no Brasil” ela-borado por uma das principais entidades de pesquisa e estudos sobre este tema no país, o Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade, liderado por economistas e estudiosos de peso no cenário nacional.

A pauta, correta sob todos os pontos de vista, não exclui por todo a dimensão cultural, certamente subentendida em alguns dos itens acima, mas revela a forma indireta com a qual ela é tratada na totalidade dos documentos, e também nos debates públicos, sobre desenvolvimento que lideram a discussão no país. Certamente porque a cultura antes de defi nir um cami-

•••

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c u l t u r a p a r a a p o l í t i c a c u l t u r a l 1 5 9

nho político próprio, com uma agenda clara, propositiva, de médio e longo prazo e de fácil compreensão para o cidadão co-mum, assume uma postura dúbia ao tentar justifi car a sua im-portância através de associações com outras agendas – a social e a econômica para fi car nas mais óbvias – muitas vezes roubam dela o que seria a sua maior contribuição: a formação de indiví-duos com consciência crítica capazes de propor mudanças em um modelo que raramente corresponde ao anseio humano por liberdade e justiça.

Na área da cultura, o debate capaz de recuperar a sua dimen-são e importância política foi gradativamente substituído pela insufi ciente discussão sobre os mecanismos de fi nanciamento através da facilitação do acesso aos recursos privados. Substi-tuímos o essencial pelo acessório e em 20 anos colhemos o fru-to dessa escolha: a fragilização do sistema nacional de cultura, com ausência de verbas públicas nos órgãos ofi ciais de cultura, o desmonte de instituições de salvaguarda e memória do pa-trimônio nacional, a má remuneração ou qualifi cação dos re-cursos humanos, mas especialmente a substituição da idéia de acesso amplo e universal a toda a população brasileira, pela ação pautada em “público-alvo”.

Cultura e desenvolvimento, cultura e fortalecimento da democracia, cultura e cidadania são temas que começam a despontar com força na agenda política nacional, em debates, seminários, apresentações de documentos de secretarias e fun-dações culturais a partir dos anos 2000. Um debate tardio, já que 20 anos nos separam da implantação do Ministério da Cul-tura, em 1985, no bojo da redemocratização do país.

Mesmo tardio, o debate surge com força em especial a partir da Gestão Gilberto Gil, iniciada em 2003, onde mudanças no desenho político incorporam novas preocupações que come-çam a produzir resultados para o desenho político da ação cul-tural. Nesse texto iremos traçar um breve panorama do traçado

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1 6 0 m a r t a p o r t o

da política cultural do país desde 1985 com a implantação do Ministério da Cultura e do modelo de incentivos fi scais como principal âncora de gestão. Na segunda seção, proporemos al-gumas noções articuladoras para o avanço das políticas cultu-rais no Brasil.

U m b r e v e p a n o r a m a

— no reino do marketing: lideranças empresariais e o

avesso da cultura

Alheia a boa parte dos avanços políticos que marcaram nas duas últimas décadas as discussões em outros setores de atu-ação pública, a cultura caracterizou-se nos últimos anos como uma área de disputa de privilégios, personifi cados nos limites reivindicados para a isenção fi scal dos diversos setores artísti-cos, pelo lobby de aprovação dos tetos permitidos nas comis-sões de cultura e, naturalmente, pelas verbas publicitárias e de marketing das grandes empresas brasileiras, em especial e paradoxalmente das estatais. Assim, o campo teórico por ex-celência das soluções coletivas, revela com crueza o traço mais contundente da elite nacional em relação às mazelas do povo: o prevalecimento dos interesses privados e das soluções res-tritas a poucos, sobre as necessidades de um corpo social di-verso a quem se nega o direito de emancipação cultural e visi-bilidade pública.

Causas e conseqüências de uma política de incentivos fi scais a cultura, adotada indiscriminadamente no país desde 1985 onde empresas sem regulação adequada abatem um percen-tual do imposto devido ao Tesouro Nacional para estimular o ingresso de recursos privados nas várias áreas da produção cultural. São as leis de mecenato, que se implantam a partir de proposta do Governo Federal com a Lei Sarney e com ajustes

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c u l t u r a p a r a a p o l í t i c a c u l t u r a l 1 6 1

seqüenciais a partir de 1992 surgem nas fi guras da Lei Rouanet, Lei do Audiovisual e posteriormente as leis estaduais e munici-pais que incidem sobre impostos como icms, iss e iptu.

Apesar da implantação do minc em 1985, optou-se por se-torizar a discussão nos mecanismos fi nanceiros capazes de am-pliar as verbas públicas a setores restritos da produção cultural, aqueles com maior capacidade de organização e pressão polí-tica. As leis de incentivo, nas três esferas do Estado, seus tetos de isenção, as estratégias de preenchimento das planilhas dis-ponibilizadas pelos órgãos públicos deram a tônica da superfi -cialidade política que acometeu durante duas décadas o debate cultural no país. Como em nenhuma outra área a cultura do privilégio, da ausência de preocupação com os movimentos sociais e culturais de fora do que tradicionalmente se denomi-na “produção cultural” esteve tão presente como nas políticas culturais brasileiras.

O que ocorre com essa política? Primeiro ela traz um novo agente à cena política: os departamentos de marketing e comu-nicação de empresas em um primeiro momento, e a partir de 1995 as grandes fundações culturais privadas, muitas atreladas a entidades fi nanceiras.

Surge, com esses novos atores a mentalidade distorcida de que o investimento em cultura se sustenta como “ação prefe-rencial de comunicação e marketing” bem distante da idéia da cultura como via de desenvolvimento ou instrumento para a democracia.

Amparados pelo governo que incentiva essa visão, instituin-do ofi cialmente em 1997 a famosa cartilha Cultura é um bom negócio, os diretores de marketing acionam teorias de marke-ting cultural e privatizam os critérios de escolha do que a po-pulação deve ou não produzir, distribuir, fruir, onde e como a partir de suas preocupações mercadológicas com clientes, for-necedores e consumidores.

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1 6 2 m a r t a p o r t o

preferência das empresas por áreas de ações de comunicação— 1997

Uma pesquisa encomendada pelo Ministério da Cultura em 1997 à Fundação João Pinheiro registra de forma contundente a ausência de espírito público e falta de visão crítica dos burocra-tas do governo (Gestão Francisco Weffort 1995–2002) e tam-bém dos dirigentes de empresa que assumiram esse discurso e essa prática que ainda permeia o debate e o desenho das políti-cas de cultura brasileiras:

O texto de apresentação da pesquisa intitulada, O Investi-mento em Cultura por empresas públicas e privadas 1 chega a afi rmar entusiasticamente:

A participação da cultura em ações de comunicação e marketing, por

empresas públicas e privadas, em 1997, ocupa o primeiro lugar, com 53%

das preferências das empresas entrevistadas pela Fundação João Pinhei-

ro. Essa revelação consagra o marketing cultural como o meio mais im-

portante para as empresas para divulgarem a sua marca. A evolução do

comportamento empresarial de investimento em cultura, nos últimos

anos, após a modernização das leis de incentivo à cultura levada a efeito

pelo governo FHC, foi infl uenciada pela política de parceria entre Esta-

do, empresários e comunidade cultural, implementada pelos governos

1 Fundação João Pinheiro, 1997, Disponível no site do Ministério da Cultura www.cultura.gov.br

Cultural

Educacional

Esportiva

Meio ambiente

Saúde

Assistencial

Científi ca

11%

7%

9%

3%

13%

4%

53%

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c u l t u r a p a r a a p o l í t i c a c u l t u r a l 1 6 3

federal, estaduais e municipais (…). A pesquisa de economia da cultura

revelou ainda que a partir de 1992, há um crescimento contínuo de em-

presas brasileiras que investem em cultura como ação de comunicação e

marketing. (grifo nosso)

O espírito público que deve orientar qualquer escolha dos órgãos competentes do estado, preservando o direito às dife-renças e o acesso às fontes estatais em condições de igualda-de, é excluído da mentalidade estampada na cartilha adotada pelo minc em 1995 “cultura é um bom negócio”. Privatizou-se o poder decisório e com ele o papel exigido de um Minis-tério e de uma política pública, reduzindo-se a política cul-tural a uma ação casuística e de pouco interesse público ou formador.

Na seqüência iremos acompanhar os resultados dessa polí-tica e as difi culdades impostas no momento para retomarmos o princípio de que a cultura deve ser central no debate sobre o desenvolvimento e a democracia participativa.

— sísifo e o projeto cultural que não encanta nem

avança: carregando a pedra dos incentivos

Desde 1985, data de seu nascimento, o Ministério da Cultu-ra adotou, primeiro através da Lei Sarney e depois pela Lei Roaunet, o mecanismo do incentivo fiscal a empresas, como principal fonte de financiamento à cultura nacional. A au-sência de um projeto estratégico para o setor e de mecanis-mos reguladores estabelecidos pela legislação ou de outras fontes diferenciadas de financiamento, gerou resultados pouco animadores. Há uma enorme concentração regional e em projetos de fundações privadas, além do reforço as áre-as mais glamourosas, como cinema, espetáculos musicais e peças do show business. Os gráficos abaixo demonstram essa afirmação:

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1 6 4 m a r t a p o r t o

Os 10 maiores benefi ciários dos incentivos proporcionados pela Lei Roaunet, foram às atividades e programas das gran-des fundações privadas, com origem nos setores bancários, as multinacionais da área de telecomunicações ou de grandes conglomerados. Sem analisar o mérito e a qualidade das ações empreendidas, é possível afi rmar que se fi nanciou no país uma ação regionalmente e setorialmente concentradora, de renda inclusive, que sob a égide do gosto dos homens de marketing e comunicação das empresas, ditaram aquilo que a população brasileira poderia ver fi nanciado ou nas casas de espetáculos dos centros urbanos.

Não se tem registro na história das políticas culturais no país,

distribuição regional total 1998–2004

Norte 22.328.309,76

Nordeste 132.286.547,99

Centro Oeste 79.395.188,58

Sudeste 1.871.677.551,33

Sul 221.212.183,61

3%6%1%

10%

80%

comparativo por região — 2004

Norte 8.394.434,91

Nordeste 28.967.333,53

Centro Oeste 14.711.870,30

Sudeste 361.324.071,47

Sul 58.557.599,33

77%

2%12% 6%

3%

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c u l t u r a p a r a a p o l í t i c a c u l t u r a l 1 6 5

nem no período da ditadura militar, de tal privilégio as elites nacionais. O resultado é uma série de ações fragmentadas, pa-trocinadas pelas principais empresas brasileiras, concentradas no eixo Rio-São Paulo, sem expressão regional ou garantia de contrapartida pública, em forma de diversidade, circulação ou de gratuidade, à população brasileira que, ao longo desses últi-mos 20 anos, abriu mão do seu direito a recursos provenientes de impostos para co-patrocinar um projeto de incentivo ao se-tor cultural, embalado na fórmula do marketing cultural.

Institui-se como via unilateral de relação com o Estado a fi gura do projeto, peça intelectual, capaz de ser desenvolvida por poucos em um país onde 73% da população dita alfabeti-

relação entre projetos apresentados, aprovados

e fi nanciados

região sudeste

1998

2002

2004

1998–2004

1.200.000.000

1.000.000.000

800.000.000

600.000.000

400.000.000

200.000.000

Minas GeraisEspírito Santo Rio de Janeiro São Paulo

Projetos Apresentados

Projetos Aprovados

Projetos Financiados

10.000

9.000

8.000

7.000

6.000

5.000

4.000

3.000

2.000

1.000

1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004

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1 6 6 m a r t a p o r t o

zada não compreende o que lê 2. Na planilha proposta o minc sempre defendeu com clareza a quem pretende benefi ciar com sua política: aqueles capazes de realizarem estratégias de co-municação competentes para atraírem a atenção das empresas e garantirem o retorno de marketing esperado. Nada parecido do que se espera de uma política voltada para o fortalecimento do estado democrático de direito. Adotar o projeto como único mecanismo institucional de diálogo do poder público com sua população restringe o acesso dos mais pobres, e, portanto mais vulneráveis à esfera pública.

Hoje, já há um consenso que essas são bases frágeis para se empreender uma mudança de eixo na política cultural brasilei-ra, destacando-se aquelas direcionadas a indução de processos de desenvolvimento. A atual gestão do Ministério da Cultura vem empreendendo esforços reais nessa direção, propondo al-terações nesse modelo e brigando por orçamento público.

— avanços recentes nesse modelo

Os recentes editais de patrocínio conduzidos por estatais mos-tram a preocupação em imprimir maior transparência nos cri-térios de concessão de patrocínios, com resultados concretos para a regionalização das ações e para o surgimento de novos atores culturais. Podemos afi rmar que nos últimos quatro anos a política cultural consegue avanços importantes, tanto do ponto de vista de desenho, objetivos e gestão, como dos inves-timentos regionais.

Além da conquista da Medida Provisória que instituí o tão desejado Plano Nacional de Cultura, com a realização da 1ª Con-ferência Nacional de Cultura em novembro de 2005, há todo o trabalho para implementar o Sistema Nacional de Cultura e a profi ssionalização dos quadros, especialmente nas áreas de gestão e planejamento. Estamos, é certo, longe de resultados concretos que dependem de tempo, da insistência e da vontade

2 Dados da última pesquisa divulgada pelo Ministério da Educação, 2003. www.mec.gov.br

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c u l t u r a p a r a a p o l í t i c a c u l t u r a l 1 6 7

política de retomar a cultura como uma das bases públicas para o desenvolvimento do Brasil, mas avançamos aos poucos, ape-sar da reação da classe artística mais emperdenida, que a qual-quer tentativa de redução dos seus privilégios ameaça com os meios de comunicação e frases de efeito.

O incentivo fi scal é um recurso temporal legítimo do Estado desde que ele apresente suas estratégias de desenvolvimento global do setor benefi ciado e os benefícios conquistados pela população ao fi nal de sua vigência. A estratégia de identifi car problemas e desafi os para a gestão pública, consensuados com outros atores da sociedade, indica a possibilidade de promover-mos uma parceria público-privada, com aplicação de incenti-vos escalonados, para imprimir velocidade na resolução dessa problemática. Podemos citar a área de infra-estrutura ou de inclusão digital nas escolas e comunidades de baixa renda, ou mesmo as que vêm sendo concedidas pelo Governo na área edi-torial. Mas a transparência e a qualifi cação dos gestores, mais a participação da população, devem ser garantidos para preser-var o sentido público de tal iniciativa.

O certo é que acepções que consideram a cultura uma pers-pectiva de marketing e comunicação não podem mais ser pagas com dinheiro do contribuinte, mas fi nanciadas pelas verbas de publicidade e os lucros das operações ou do mercado fi nancei-ro. Seria uma guinada fundamental, para eliminarmos a cul-tura do privilégio que se instalou na área cultural no Brasil, e reapropriarmos o espírito público tão desejado.

D e s e n h a n d o u m a p o l í t i c a c u l t u r a l c o n t e m p o r â n e a

— começando pela idéia de acesso

Um bom começo é discutir a noção de acesso. Muitos são os documentos de cultura no Brasil, desde a década de 70 com as

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1 6 8 m a r t a p o r t o

propostas políticas de Aloísio Magalhães, que pregam “a de-mocratização do acesso à cultura”. Inevitavelmente a noção de melhorar o acesso, até meados da década de 90, está intima-mente relacionada ao aumento de iniciativas programáticas de difusão cultural, de ampliar os espaços e circuitos de cultura “até onde o povo está”. É a política difusionista que marca todo o período da ditadura militar e que constrói de forma subjacen-te à idéia de que há quem faça e produza cultura e há aqueles que devem recebê-la.

Aos poucos a noção difusionista da cultura, como meio de melhorar o acesso da população a produção artístico-cultural vai sendo superada pela noção de diálogo e intercâmbio cultu-rais. O que pressupõe que todos os atores sociais são capazes de produzir cultura e estão em condições de igualdade para trocar e experimentar novas práticas e experiências. Assim a idéia de acesso passa a ser muito mais um desafi o de estabelecer vias de diálogo, de encontro entre diferentes, num contexto de diver-sidades, do que produzir linhas programáticas baseadas na no-ção de entreter ou de levar a cultura ao povo.

A diversidade cultural tem a ver com as várias formas de produção, circu-

lação e apropriação dos sentidos que identifi cam pessoas e grupos sociais.

Além de conectar a multiplicidade de expressões da criatividade como

saberes, valores, crenças ou estéticas, compreende marcas culturais dos

modos de vida, as práticas simbólicas que determinam a cotidianidade de

homens e mulheres, as memórias que articulam o passado e a tradição

com o presente e as projeções de futuro. A diversidade cultural associa-se

a complexos processos de hibridação entre culturas, no que Arturo Esco-

bar tem chamado uma “interculturalidade efetiva”, ou aquela que promo-

ve o diálogo de culturas em contextos de poder. Não se pode perceber a

interculturalidade simplesmente como o contato, a exposição pública ou

os arranjos formais entre culturas. Pelo contrário, trata-se de encontros

das diferenças que não deixam por em movimento confl itos e desafi os, e

cult.vol2.v2.0.indb 168cult.vol2.v2.0.indb 168 5/15/07 9:47:43 AM5/15/07 9:47:43 AM

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c u l t u r a p a r a a p o l í t i c a c u l t u r a l 1 6 9

que de qualquer maneira signifi cam profundos processos de reconheci-

mento dos outros. (rey,2002)

Acesso então é promover o diálogo de culturas em contextos de igualdade e cooperação, disponibilizando a todos as mesmas condições para participar da vida pública, imprimindo trans-parência à disputa por recursos, garantindo bens e serviços cul-turais com a mesma qualidade em todos os espaços e a todos os setores da sociedade, independente de classe social ou local de moradia.

O acesso à cultura – cultura pensada não só como memória ou ato criativo espontâneo ou artístico, mas como conheci-mento –, ou a necessidade de apropriar-se continuamente de suas variáveis e disponibilizar esse acervo à comunidade, é um ato consciente que exige inserção coletiva e política de todos os cidadãos. Assim, exige um ambiente comunitário e políti-co favorável à inserção cultural do indivíduo e grupos. A nos-sa disposição de aprender e dialogar com universos diversos é fruto dos estímulos que recebemos do ambiente vivenciado na infância, na adolescência, na fase adulta da vida. Estímulos e incentivos proporcionados pela riqueza dos encontros cul-turais proporcionados ao longo da vida, da nossa facilidade e curiosidade de apreendê-los e transformá-los em dados impor-tantes da experiência humana. A cultura, tal qual ela é pensa-da no século xxi, é a experiência que marca a vida humana em busca do conhecimento, do alto aprimoramento, do sentido de pertencimento e da capacidade de trocar simbolicamente.

Um acesso desigual aos meios de expressão cultural, novos ou tradicio-

nais, implica não somente uma negação do reconhecimento cultural,

mas algo que afeta seriamente o sentimento de pertencimento de indi-

víduos e comunidades à sociedade do conhecimento, ou a sua exclusão

dela. A cultura possui laços múltiplos e complexos com o conhecimen-

cult.vol2.v2.0.indb 169cult.vol2.v2.0.indb 169 5/15/07 9:47:44 AM5/15/07 9:47:44 AM

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1 7 0 m a r t a p o r t o

to. A transformação da informação em conhecimento é um ato cultural,

como é o uso a que se destina todo o conhecimento. Um mundo auten-

ticamente rico em conhecimento há de ser um mundo culturalmente

diverso. (MATSUURA, 2002)

O valor que damos à cultura, a nossa ou a aprendida, é aquele que aprendemos a dar. Assim a experiência cultural ocorre a partir do diálogo constante entre práticas criativas próprias e o livre acesso aos acervos culturais tradicionais e contemporâneos.

Duas dimensões políticas ganham relevância no estímulo ao cumprimento desse objetivo: a universalização dos bens e serviços culturais ofertados a toda a população, através de equipamentos, programas e serviços públicos permanentes de cultura que incentivem a formação de hábitos de fruição cul-tural e promovam a visibilidade e a troca de produções cultu-rais e artísticas locais e comunitárias, e a luta por uma educação de qualidade, pensada como via fundamental de crescimento pessoal e coletivo, promotora de autonomia, independência e identidade. Uma educação meramente instrumental, sem valores éticos e culturais, é uma educação sem alma, sem os estímulos necessários para formar um indivíduo cônscio de si mesmo, do seu papel histórico, de seus direitos e responsabi-lidades, o que afeta as condições necessárias para a realização efetiva do acesso à cultura.

Como afi rmou o escritor Alcione Araújo, “a educação é o braço armado da cultura” e garantir a sua presença nos bancos escolares é a primeira medida para a universalização do aces-so à cultura. Em artigo recente intitulado “Favor deixar as lu-zes acesas”, Beatriz Sarlo escreve que: “um público leitor não é resultado simplesmente da abundância, nem pode se pensar que se o anima só com políticas culturais. Em troca, as políti-cas educativas o tornam possível. Onde há escola, há público”. (sarlo, 2002)

cult.vol2.v2.0.indb 170cult.vol2.v2.0.indb 170 5/15/07 9:47:44 AM5/15/07 9:47:44 AM

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c u l t u r a p a r a a p o l í t i c a c u l t u r a l 1 7 1

— a cultura como capital social promotora de

desenvolvimento

O que é capital social? Vamos usar um trecho do discurso de Enrique Iglesias, presidente do Banco Interamericano de De-senvolvimento para ilustrar essa noção:

Há múltiplos aspectos da cultura de cada povo que podem favorecer seu

desenvolvimento econômico e social. É preciso descobri-los, potenciali-

zá-los e apoiar-se neles, e fazer isto com seriedade signifi ca rever a agenda

de desenvolvimento de um modo que resulte, posteriormente, mais efi -

caz, porque tomará em conta potencialidades da realidade que são da es-

sência e que, até agora, foram geralmente ignoradas. (iglesias, 1997)

Outra noção interessante é a de Michael Porter desenvolvida em seu artigo Atitudes, Valores, Crenças e a Micro Economia da Prosperidade: 3

Um papel importante para a cultura na prosperidade econômica conti-

nuará existindo, mas poderá ser muito bem um papel mais positivo.

Aqueles aspectos particulares de uma sociedade que originam inusita-

das necessidades, habilidades, valores e modos de trabalho serão os as-

pectos característicos da cultura econômica. Os aspectos positivos da

cultura, como a paixão da Costa Rica pela ecologia, a obsessão dos eua

com o conforto, a paixão do Japão por jogos e desenhos animados serão

fontes vitais de vantagem competitiva difícil de imitar, resultando novos

padrões de especialização internacional, à medida que os países produ-

zam cada vez mais os bens e os serviços nos quais sua cultura lhes dá

vantagem única. (porter, 2002)

Partindo dessas duas acepções podemos considerar que a cul-tura pensada como capital social é aquela identifi cada como um ativo originado em todos os pontos desse país onde se possa encontrar um traço singular do fazer produtivo – arte-

3 porter, Michel, in harrison, Lawrence e huntington, Samuel. A Cultura Importa – Os Valores que Defi nem o Progresso Humano. Editora Record, 2002.

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sanato, culinária, festas populares, patrimônio tangível e in-tangível, memória e história – que podem ser tratados como agentes de desenvolvimento social e econômico. O termo ati-vo cultural foi cunhado por Joatan Vilela Berbel em seu tra-balho Ativo Cultural: um outro paradigma para as políticas públicas de cultura onde ele destaca a noção de cultura pro-posta pela unesco na Conferência do México em 1997 para avançar em termos de uma noção capaz de supor movimento, ação. Afi rma Berbel:

Para introduzir o conceito de ativo na dinâmica da produção cultural, que-

ro lembra-lhes a defi nição de cultura consagrada pela unesco na Decla-

ração do México, sobre as Políticas Culturais, em 1997:

“Em seu sentido mais amplo, pode-se considerar a cultura como o conjun-

to dos traços distintivos, espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que

caracterizam uma sociedade ou um grupo social. Além disso, ela engloba

as artes e a literatura, os modos de vida, os direitos fundamentais do ser

humano, os sistemas de valores, as tradições e as crenças”.

Quando utilizo a palavra ativo, quero me referir a sua defi nição como:

“que exerce ação; que age, funciona, trabalha se move”, mas também

como “a totalidade dos bens de uma empresa, ou pessoa, inclusive os di-

reitos suscetíveis de avaliação”, e ao aproximar o conceito de ativo da de-

fi nição de cultura da unesco pretendo assim propor um novo paradigma

para a formulação e gestão das políticas culturais. Dessa forma serão

consideradas ativos culturais todas as expressões culturais de um povo,

independente da forma como foram ou estão sendo produzidas, com

seus valores tangíveis e intangíveis, tal e qual como se avalia os ativos de

uma empresa onde se incluí os bens patrimoniais, sua participação no

mercado, o valor de suas ações que é variável e o valor de sua marca (good

will) que é um valor intangível, porém valorável.Isto nos remete para o

universo da economia que hoje predomina sobre as estratégias de gover-

no e nos nossos países – ditos em desenvolvimento – e condicionam o

cotidiano de nossas sociedades”. (berbel, 2003)

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Planejamento de longo prazo, com o fortalecimento da for-mação de recursos humanos, a pesquisa e a combinação de sistemas mistos de fi nanciamento, públicos e privados, des-tinados a imprimir velocidade e qualidade a setores estraté-gicos da produção artístico-cultural do país podem, com ou sem escala industrial, contribuir para formar um novo mapa de desenvolvimento acelerando a melhoria dos indicadores sócio-econômicos.

Promover o capital social em suas diversas variáveis está re-lacionado ao desafi o de fortalecermos a vida pública, ampliar-mos a representatividade simbólica e institucional dos atores sociais ainda hoje encobertos pelo manto da invisibilidade. É o que desenvolveremos no próximo item desse ensaio.

— uma cultura para a política cultural

O que se defende afi nal é uma política cultural baseada em preceitos culturais, na observância de valores e parâmetros que contribuam efetivamente para trazer um mote singular à discussão e ao processo de desenvolvimento. Não é o isola-mento da cultura de outras esferas da ação pública, mas a pos-sibilidade de formular uma agenda capaz de se legitimar de forma independente na vida pública. Uma agenda que colabo-re para um tipo de desenvolvimento defendido pelo Prêmio Nobel de Economia, Amartya Sen, que mostra que a qualida-de de nossas vidas deve ser medida não só por nossa riqueza mas por nossa liberdade.

A expansão da liberdade é vista como o principal fi m e o principal meio

do desenvolvimento. O desenvolvimento consiste na eliminação de pri-

vações de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das pes-

soas de exercer ponderadamente sua condição de agente. A eliminação

de privações de liberdades substanciais, argumenta-se aqui, é constituti-

va do desenvolvimento. (sen, 2000)

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O desenvolvimento preconizado por Sen parte da idéia de que cada indivíduo é agente ativo de mudança, e não receptor passivo de benefícios. Sendo assim, um desenvolvimento visto como um processo de expansão das liberdades reais que as pes-soas desfrutam é um desenvolvimento que vai muito além “do crescimento do PNB ou das rendas pessoais, industrialização, avanço tecnológico ou modernização social. (…) As liberdades dependem também de outros determinantes como as disposi-ções sociais e econômicas (serviços de educação e saúde) e os direitos civis (a liberdade de participar de discussões e averi-guações públicas)”.

Contribuir para a formação de agentes capazes de participa-rem da vida pública de forma consciente e ativa, em uma socie-dade capaz de estabelecer fóruns de diálogo e participação cida-dã, é uma das ações mais desafi adoras das políticas culturais.

Uma política cultural que não tem como principais destina-tários artistas e produtores, mas o povo. Não para entretê-lo, mas para criar oportunidades reais de enriquecimento huma-no, de acesso ao conhecimento produzido pela enorme diver-sidade cultural e ambiental do planeta, do reconhecimento da nossa e de outras identidades culturais, de experiências cultu-rais que emocionem, que modifi quem a nossa maneira de ver e estar no mundo. E que nos habilitem, se assim desejarmos, a ser ativos participantes das escolhas sobre nosso presente e nosso futuro.

Uma política cultural voltada para as pessoas, de braços da-dos com a ética que valoriza a vida, a justiça e o reconhecimento da diversidade. Capaz de promover públicos leitores, de esti-mular a curiosidade sobre si e sobre os outros, de expandir as experiências culturais e com elas a vontade de se relacionar com o diferente sem que ele represente uma ameaça. Ou seja, uma política cultural voltada para a formação cultural das pessoas, de ampliação dos imaginários e das sensibilidades, para tornar

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a vida àquilo que ela deveria ser por princípio: mais humana. Uma política de cultura que ponha alma no processo de de-

senvolvimento, que inspire as pessoas e as impulsione de for-ma crítica e construtiva a enfrentar os desafi os da vida pessoal e coletiva. Que estimule protagonistas e não benefi ciários de outras políticas.

Uma política para a liberdade.E como se faz isso? Primeiro estabelecendo um marco de atuação política que

priorize com força a formação ética e humanística do cidadão, atributos que parecem esquecidos nos dias de hoje. Que pro-mova um amálgama com potencial para garantir que a trajetó-ria da vida de cada um, e de todos nós, seja mais do que profi s-são, trabalho e renda.

Quem cuidará do lado humano, espiritual, do imaginário e do sonho se a cultura quer apenas o econômico, o entretenimento, a disputa pelas verbas sociais? Nada contra as dimensões cultu-rais promotoras desses setores, mas o principal parece esqueci-do: o que nos torna humanos não é a função e sim a inspiração.

Nesse ponto uma gestão cultural atenta a prover a educação do que ela parece ter perdido, o conhecimento humanístico e a autonomia crítica, é a âncora desse desenho. Um processo edu-cacional e educativo enriquecedor, que amplie a visão de mun-do e as perspectivas de cada um, parte de dentro e de fora dos muros escolares. Ganha relevância nos conteúdos gerados pe-los veículos de comunicação, na internet, nos celulares e ipods. Nos bancos escolares e nos centros de cultura, nos teatros, nas ruas e praças das cidades onde os encontros se tornam possí-veis quando promovidos de forma criativa e sistemática. Onde se abra espaço para o experimental, para o comunitário, para o estranho, que dialogando com o tradicional, o clássico, o de sempre, produza novos sentidos, aprendizados já preconizados pela antropofagia cultural de Oswald de Andrade.

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Os números são eloqüentes: somos hoje 186 milhões de brasileiros. Isso

corresponde a 20 vezes a população de Portugal, 5,5 vezes a da Argentina

e 3 vezes a da França e da Alemanha. A educação – estudantes e professo-

res nos níveis fundamental, médio, superior e pós-graduação – envolve 55

milhões de brasileiros. Cotejar esses números com os da produção cultu-

ral nacional é deparar-se com um outro país. A tiragem média de um ro-

mance no Brasil é de 3 mil exemplares, a ocupação média dos teatros é de

18% dos ingressos oferecidos, e o público médio do fi lme brasileiro é de

600 mil espectadores. Vê-se que nem mesmo os inscritos na escola for-

mal participam da produção artística. Como Educação e Cultura são inse-

paráveis como irmãs siamesas, o país vive uma fratura esquizofrênica: de

um lado, uma educação sem cultura, do outro uma produção cultural sem

público. (araújo, 2005)

O desenvolvimento, esse feito com e para a liberdade, é a pos-sibilidade de encontrarmos em vida e também de cultivarmos para as próximas gerações condições que além de suprir nossas necessidades, carreguem de sentido a vida humana. Aqui a cul-tura ganha em dimensão e relevância, oportunizando a todos sem distinção a participar desse processo como protagonis-tas, alargando a visão de si e do mundo e por fi m enriquecendo a nossa existência daquilo que é inadiável: a capacidade de ima-ginar essa vida e de sonhar outras formas de viver mais solidá-rias, justas e por fi m, alegres.

Quais os pilares de uma política de cultura pensada a partir desses princípios? Abaixo citamos um conjunto de elementos propostos em documentos internacionais que podem contribuir para o debate sobre os fundamentos de uma política cultural.A promoção da diversidade cultural como elemento promo-tor de uma ética de convivência e de respeito a dignidade hu-mana. O simples reconhecimento da diversidade cultural não conduz a percepção de que apesar das diferenças culturais, to-dos têm direitos iguais e inalienáveis perante um corpo social

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que supera as diferenças e luta por justiça e igualdade. Assim, essa agenda de política cultural promotora da diversidade deve “promover o diálogo de culturas em contextos de poder”, o que signifi ca ofertar bens e serviços com a mesma qualidade para o conjunto de cidadãos, independente do local de moradia ou da sua origem social, estimular intercâmbios entre as várias ex-pressões culturais e tecnologias artísticas e garantir meios de acesso transparentes aos recursos e mecanismos de poder da gestão cultural.As relações entre cultura e eqüidade, apoiado, segundo Karen Marie Mokate, em três valores sociais: igualdade, cumprimen-to de direitos e justiça. A equidade na cultura é garantida tanto na criação de condições adequadas de circulação dos bens cul-turais, como de criar possibilidades para que todas as pessoas possam participar e fruir dessas condições. O crescimento da oferta não representa em si mais pluralismo ou melhores opor-tunidades, por isso é tão importante a informação cultural, a disposição física dos lugares de circulação, o diálogo entre prá-ticas, valores e experiências diversas e especialmente a demo-cratização do conhecimento, através da qualidade da educação, que permite nivelar as condições de fruição;A importância da cultura nos processos de desenvolvimento humano e no fortalecimento da institucionalidade democrática, articulando as políticas de cultura com outras áreas políticas eco-nômicas e sociais, fomentando a participação da sociedade civil, dos criadores e suas organizações profi ssionais. Nesse campo abre-se todo o mapa da economia da cultura, as oportunidades do turismo cultural, do desenvolvimento local e comunitário, do estímulo às indústrias culturais e da economia solidária.Repensar as formas tradicionais de se pensar e fazer política de cultura, entendendo que um novo paradigma de comunicação surge a partir da intensa conectividade gerada pelas redes digi-tais. novos sentidos e percepções sobre a vida, sobre si mesmo

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e sobre os outros, e também sobre estar junto e com os outros, estrutura outras linguagens e formas de escrita e leitura que constroem um novo tipo de protagonismo cultural e de partici-pação e mobilização na vida pública. Nessa modalidade de atua-ção em rede, as fronteiras entre o pessoal (mais do que o privado) e o público se diluem, produzindo gozo e indignação na mesma medida quando se acessa a intimidade de vídeos que contam detalhes da vida de um desconhecido em um quarto escuro de uma cidade qualquer como na mobilização de atos públicos por justa indignação.Todo o processo conhecido de criação e absor-ção de sentidos é alterado, pois entre o ato de criar na intimidade do seu quarto, e exibir em rede, aciona de forma quase imediata um público de milhões de pessoas, através de sistemas como o You Tube, que riem, choram e interagem, formando uma massa crítica invisível as políticas culturais dos estados e dos sistemas de cooperação internacionais. Como entender os novos modos de rir e chorar? De participar e se mobilizar? De criar e cooperar? Pensar no futuro das políticas culturais é enfrentar os desafi os de um mundo em rede no que tange: a) a experimentação e a ino-vação estética, b) as formas de narrativa, recepção e formação de público c) e especialmente a compreensão de um novo tipo de imaginário coletivo impulsionado pela fragmentação e pelo nar-cisismo das pequenas diferenças que coloca em xeque os modos tradicionais de estar juntos, se emocionar, cooperar e atuar.

Esse mapa inicial, de necessária mas complexa implantação serve de orientação para vislumbrarmos a potencialidade das políticas culturais na identifi cação de caminhos pró-ativos de desenvolvimento humano. Um desenvolvimento que requer a participação ativa dos cidadãos e onde a cultura poderá contri-buir essencialmente para a formação crítica e consciência social de seu lugar no mundo e do futuro que se deseja.

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Este livro foi composto no Estúdio Quimera por

Iansã Negrão com o auxílio de Inara Negrão para

a Eduf ba, em Salvador. Sua impressão foi feita no

setor de Reprografi a da Eduf ba. A capa e o acaba-

mento foram feitos na Cartograf, em Salvador.

A fonte de texto é dtl Documenta. As legendas

foram compostas em dtl Documenta Sans, famí-

lia tipográfi ca projetada por Frank Blokland.

O papel é Alcalino 75 g/m².

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