o legado da geografia

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COLEÇÃO TEMAS DE FORMAÇÃO Raul Borges Guimarães Antonio Cezar Leal Klaus Schlünzen Junior Elisa Tomoe Moriya Schlünzen (Organizadores) Geografia Acessibilidade: Vídeos com libras e legendas

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  • COLEO TEMAS DE FORMAO

    Raul Borges GuimaresAntonio Cezar LealKlaus Schlnzen JuniorElisa Tomoe Moriya Schlnzen(Organizadores)

    Geografia

    Acessibilidade: Vdeos com libras e legendas

  • GeografiaCOLEO TEMAS DE FORMAO

    VOLUME 2

  • COORDENADORESRaul Borges Guimares

    Antonio Cezar LealKlaus Schlnzen Junior

    Elisa Tomoe Moriya Schlnzen

    GeografiaCOLEO TEMAS DE FORMAO

    VOLUME 2

    Eliseu Savrio SpositoAntonio Elisio Garcia Sobreira

    Arthur Magon WhitackerPaulo Csar Rocha

    Jos Tadeu Garcia TommaselliSalvador Carpi Junior

    Rosangela Ap. de Medeiros Hespanhol

    Antonio Nivaldo HespanholLuciano Antonio Furini

    Alexandre Bergamin VieiraRegina Celia Correa de Araujo

    Raul Borges GuimaresEduardo Augusto Ribeiro Werneck

    Jos Tadeu Garcia Tommaselli

    AUTORES

    http://lattes.cnpq.br/8022527468369459http://lattes.cnpq.br/8520043515434606http://lattes.cnpq.br/3347663744949562http://lattes.cnpq.br/5039818757376272http://lattes.cnpq.br/8022527468369459http://lattes.cnpq.br/0958574773546143http://lattes.cnpq.br/9223246618159538
  • BY UNESP - UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTAPr-Reitoria de Ps-Graduao UNESPRua Quirino de Andrade, 215CEP 01049-010 So Paulo SPTel.: (11) 5627-0561www.unesp.br

    NEaD Ncleo de Educao a Distncia UNESPRua Dom Lus Lasagna, 400 - IpirangaCEP 04266-030 - So Paulo/SPTel.: (11) 2274-4191www.unesp.br/nead/

    Geografia [recurso eletrnico] / Raul Borges Guimares, Antonio Cezar Leal, Klaus Schlnzen Junior [e] Elisa Tomoe Moriya Schlnzen (Coordenadores). So Paulo : Cultura Acadmica : Universidade Estadual Paulista : Ncleo de Ensino Distncia, [2013]. (Coleo Temas de Formao; v. 2)

    Requisitos do sistema: Adobe Acrobat ReaderModo de acesso: World Wide WebAcesso em: www.acervodigital.unesp.brTextos provenientes do Programa Rede So Paulo de Formao Docente(Redefor)

    Resumo: Trata de aperfeioamento da formao em Geografia de docentes da rede pblica estadual de ensino para ministrarem a disciplina no Ensino Fundamental II e Ensino Mdio.Acessibilidade: Libras e LegendasISBN

    1 Geografia Estudo e Ensino. Professores Educao Continuada. I. Guimares, Raul Borges. II. Cezar Leal, Antonio, III. Schlnzen Junior, Klaus. IV. Schlnzen, Elisa Tomoe Moriya. V. Universidade Estadual Paulista. Ncleo de Educao a Distncia da Unesp.

    CDD 910.7

    Todos os direitos reservados. De acordo a Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/1998).

    G345

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  • GOVERNO DO ESTADO DE SO PAULO

    GovernadorGeraldo Alckmin

    SECRETARIA DE DESENVOLVIMENTO ECONMICO, CINCIA E TECNOLOGIA

    SecretrioLuiz Carlos Quadreli

    UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

    ReitorJulio Cezar Durigan

    Vice-ReitoraMarilza Vieira Cunha Rudge

    Chefe de GabineteRoberval Daiton Vieira

    Pr-Reitor de GraduaoLaurence Duarte Colvara

    Pr-Reitor de Ps-GraduaoEduardo Kokubun

    Pr-Reitora de PesquisaMaria Jos Soares Mendes Giannini

    Pr-Reitora de Extenso UniversitriaMaringela Spotti Lopes Fujita

    Pr-Reitor de AdministraoCarlos Antonio Gamero

    Secretria GeralMaria Dalva Silva Pagotto

    FUNDUNESP

    Diretor-PresidenteEdivaldo Domingues Velini

  • Administrao NEaDJessica Papp

    Joo Menezes MussoliniSueli Maiellaro Fernandes

    Equipe de Design GrficoAndr Ribeiro Buika

    Luciano Nunes Malheiro

    Equipe de ComunicaoDalner Palomo

    Roberto Rodrigues FranciscoRodolfo Paganelli Jaquetto

    Sofia DiasSoraia Marino Salum

    Equipe de Design Instrucional (DI)Fabiana Aparecida Rodrigues

    Lia Tiemi HiratomiMrcia Debieux

    Marcos Leonel de Souza

    Edio e Catalogao de MateriaisAntnio Netto Jnior

    Frederico Ventura

    Equipe de WebdesignAriel Tadami Siena HirataElisandra Andr MaranheErik Rafael Alves Ferreira

    Grupo de Tecnologia da InformaoPierre Archag Iskenderian

    Andr Lus Rodrigues FerreiraFernando Paraso Ciarallo

    Guilherme de Andrade LemeszenskiMarcos Roberto Greiner

    Pedro Cssio BissettiRen Gomes Beato

    SecretariaPatrcia Porto

    Suellen Arajo

    Vera ReisAline Gama Gomes

    Rebeca Naves dos ReisRoseli Aparecida da Silva Bortoloto

    NCLEO DE EDUCAO A DISTNCIA DA UNESP - NEaD

    CoordenadorKlaus Schlnzen Junior

    Coordenao Acadmica - RedeforElisa Tomoe Moriya Schlnzen

  • 6

    Os materiais didticos reunidos neste livro referem-se aos contedos das disciplinas dos cursos de espe-cializao a distncia oferecidos pela Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (Unesp) a educadores do Ensino Fundamental II e Mdio da rede estadual de So Paulo, no mbito do Programa Rede So Paulo de Formao Docente (Redefor).

    Elaborado sob a responsabilidade de docentes douto-res da Unesp, com a devida considerao do projeto peda-ggico da Secretaria da Educao do Estado de So Paulo (Seesp) e fecunda colaborao da equipe pedaggica da Es-cola de Formao de Professores Paulo Renato Costa Souza, o conjunto destes materiais didticos evidenciou-se suficien-temente amplo, rico, e capaz de fomentar a construo e a implementao de projetos pedaggicos prprios e diferen-ciados em escolas da rede pblica.

    Agora, o ciclo se completa: disciplinas aprimoradas em avaliao formativa nas duas edies concludas do curso tm seus contedos estruturados no formato e-book, para

    Apresentao

  • 7

    consulta e download gratuito, com recursos de acessibilidade como libras e audiodescrio.

    Com esta ltima iniciativa, a Unesp demonstra uma vez mais seu compromisso de sempre: democratizar o aces-so aos produtos intelectuais gerados em suas atividades, em prol da educao no Brasil.

    s equipes da Pr-Reitoria de Ps-Graduao, do N-cleo de Educao a Distncia, da Fundao para o Desen-volvimento da Unesp e da Fundao para o Vestibular da Unesp, bem como aos docentes unespianos engajados no Programa Redefor, o meu reconhecimento pelo competente trabalho. No posso deixar de destacar, tambm, outros fun-damentais atores que contriburam para transformar a ideia do curso em realidade: os orientadores pedaggicos e espe-cialistas em EaD especialmente contratados.

    Colocamos este e-book disposio da comunidade, no cumprimento de nossa misso institucional de gerar, di-fundir e fomentar o conhecimento, contribuindo para a su-perao de desigualdades e para o exerccio pleno da cida-dania.

    Marilza Vieira Cunha RudgeVice-Reitora

    Coordenadora Geral dos Cursos Redefor-Unesp

  • Sumrio

    Apresentao 6

    Prefcio 11

    Parte 1 Caminhos do Pensamento Geogrfico1. O legado da Geografia 162. A formao do conhecimento geogrfico

    na Antiguidade e na Idade Mdia 213. A gnese da Geografia e da Cincia Moderna 284. Institucionalizao da Geografia 325. A institucionalizao da Geografia no Brasil 52Referncias bibliogrficas 64

    Parte 2 Cartografia e ensino de Geografia 676. Introduo Cartografia 687. Caractersticas bsicas dos mapas e

    comunicao cartogrfica 808. Linguagem cartogrfica e propriedades de

    percepo 92Referncias bibliogrficas 110

    Parte 3 Ciclos da natureza e dinmica da paisagemApresentao 1139. Noes preliminares de geodinmica 11510. O ciclo das rochas 13111. O ciclo do carbono 13912. O ciclo da gua 15113. Escalas de tempo natural e social e

    as paisagens associadas 16314. Paisagens humanas: da escala do lugar

    escala planetria 194Referncias bibliogrficas 219

  • Parte 4 Fluxos e redes no campo e na cidadeApresentao 229Introduo 23015. A propriedade da terra rural e urbana, trabalho e

    renda fundiria 23216. A formao das cadeias agroindustriais e os

    circuitos econmicos globais 24417. Fluxos de mercadorias, redes de circulao e

    logstica 25918. Mobilidade populacional campocidade e

    transformaes recentes da rede urbana 271Referncias bibliogrficas 292

    Parte 5 Geografia do Brasil: formao territorial e padres espaciais

    19. A Amrica Portuguesa e o Brasil 29920. O Imprio e a construo da unidade 30821. A Repblica Federativa do Brasil: fronteiras e limites

    31722. Regio e regionalizao 32423. A natureza na formao territorial do Brasil 333Referncias bibliogrficas 342

    Parte 6 Geografia Regional: Amrica Latina e frica24. As invenes da Amrica 34625. A formao dos Estados americanos 35426. frica: colonizao e descolonizao 36427. As fronteiras da frica 37128. Amrica e frica no mundo globalizado 379Referncias bibliogrficas 388

  • Parte 7 Ordem geopoltica mundial: atores e escalas de ao

    29. Estado, Estado territorial e Estado Nacional 39230. Relaes estratgicas internacionais e a

    estruturao da ordem mundial 40731. A (des)ordem mundial 41632. Novos atores e escalas de ao 42933. A crise do mundo rabe 441Referncias bibliogrficas 450

    Parte 8 Gesto do territrio: energia e meio am-biente

    34. As questes da gesto territorial e o Protocolo de Kyoto 455

    35. Energias alternativas e desenvolvimento sustentvel 466

    36. Os biocombustveis um parte 48537. Impactos sociais e econmicos dos

    agrocombustveis 49638. Impactos ambientais dos agrocombustveis

    e a segurana alimentar 50139. Uma viso crtica sobre a questo ambiental 509Referncias bibliogrficas 518

    Crditos das imagens 526

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    Os textos didticos reunidos neste volume so pra-ticamente os mesmos utilizados nas disciplinas do Curso de Especializao em Geografia A sala de aula no mundo, ministrado nos anos de 2010 a 2012 no Programa Rede So Paulo de Formao Docente (Redefor). Foram feitos pequenos ajustes necessrios para a adequao do material ao formato de um livro. Assim, o leitor ter a oportunidade de conhecer de que maneira os contedos disciplinares foram integrados, articulando temas clssicos da Geografia com novas questes fundamentais para a compreenso e ensino da realidade contempornea, tendo como fio condutor os conceitos e categorias centrais da disciplina: espao geogrfico, paisagem, territrio, regio e lugar.

    De acordo com o gegrafo Milton Santos,

    a ordem global busca impor, a todos os lugares, uma nica racionalidade. E os lugares respondem ao mundo segundo os diversos modos de sua prpria racionalidade [...] A ordem global funda as escalas superiores ou externas escala do cotidiano. Seus parmetros so a razo tcnica e operacio-

    Prefcio

  • 14

    nal, o clculo da funo, a linguagem matemtica. A ordem local funda a escala do cotidiano, e seus parmetros so a copresena, a vizinhana, a intimidade, a emoo, a coope-rao e a socializao com base na contiguidade [..] Cada lugar , ao mesmo tempo, objeto de uma razo global e de uma razo local, convivendo dialeticamente.1

    Esta racionalidade atinge desigualmente os territrios nacionais, regies e lugares.

    Por meio das aulas de Geografia, os alunos da escola bsica podem ser desafiados a compreender essa realidade, comparando diferentes contextos geogrficos e situaes vi-vidas por eles mesmos. Tendo essa preocupao em mente, as partes do livro discutem diferentes aspectos que devem ser considerados pelo professor que pretende valorizar o es-pao da sala de aula para favorecer a leitura geogrfica do mundo em transformao.

    A parte 1 discute aspectos centrais do pensamento ge-ogrfico, que embasam a relao entre as teorias e mtodos da disciplina. Neste caso, os contedos foram articulados reflexo da produo do conhecimento no contexto escolar.

    Na parte 2, o foco a importncia da cartografia tem-tica para o processo de ensino-aprendizagem da Geografia. Os autores analisam os principais elementos da linguagem cartogrfica e apontam caminhos para aplicao de ferra-mentas da cartografia na Educao Bsica.

    A integrao de conhecimentos classicamente dividi-dos nas subreas da Geografia e disciplinas afins foi a preo-cupao central das partes 3 e 4. No primeiro caso, por meio do estudo de diferentes ciclos da natureza (gua, carbono, nitrognio) foram integrados conhecimentos dos campos

    1 Milton Santos. A natureza do espao: tcnica e tempo, razo e emoo. So Paulo: Edusp, 2002, p.272-273.

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    da Geologia, da Climatologia, da Hidrologia, dentre outros. O mesmo pode ser verificado na parte 4, quando os contedos de Geografia Urbana e Agrria foram abordados por meio da anlise de circuitos e cadeias produtivas.

    Alm desse tipo de articulao, o leitor tambm en-contrar neste volume alguns contedos que esto sendo mais valorizados no currculo da rede pblica do Estado de So Paulo, como a Geografia da frica e da Amrica Latina (estudos regionais, partes 5 e 6), a Geografia Poltica (parte 7), a questo ambiental e das alternativas energticas (parte 8).

    O ponto de partida das partes reunidas neste volume foi a convico da equipe envolvida na contribuio da Geo-grafia para o processo de formao de cidados, produtores de seus prprios textos e leitores crticos. Acreditamos que, dependendo do trabalho que se faa com os contedos, pode-se transformar o temrio da Geografia em um campo frtil para a reflexo docente e a sala de aula em um prof-cuo espao de estudo e construo de conhecimentos. Afi-nal, a fragmentao e segregao social tm reduzido cada vez mais os espaos de socializao e de vida comunitria. A rua ou a praa h muito tempo deixaram de ser o lugar do encontro e da vivncia social, embora recentemente redes-cobertas como espao de manifestaes pblicas. A escola, portanto, deve manter e aprofundar seu papel de mltiplos aprendizados no qual se desenvolvem habilidades, compe-tncias e valores necessrios ao exerccio da cidadania e ao aprimoramento da autoestima, da autoconfiana e da auto-nomia.

    Tendo em vista esses novos desafios da escola brasi-leira, a Geografia pode se transformar numa disciplina cen-tral do currculo, desde que o professor trabalhe com vrios temas inovadores e diretamente relacionados com os inte-resses dos jovens (ambiente, poltica, cultura). A Geografia

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    tambm oferece o aprendizado de conceitos bsicos para a leitura do mundo, assim como permite o contato com diver-sas linguagens e estabelece mltiplos canais de compreen-so por meio da interligao dos diversos saberes. O leitor ir encontrar essa perspectiva neste volume, uma vez que os captulos integram diferentes tipos de textos, dados estats-ticos e informaes tcnicas extradas de mapas. Boa leitura!

    Raul Borges Guimares

  • Caminhos do Pensamento Geogrfico

    Parte I

    ElisEu savrio spositoDoutor em Geografia pela Universidade de So Paulo (1990) e professor titular da Unesp.

    Tem experincia na rea de Geografia, com nfase em Geografia Urbana e Econmica, atuando principalmente nos seguintes temas: pensamento geogrfico, industrializao,

    territrio, dinmica econmica e mundializao.

    antonio Elisio Garcia sobrEiraGraduado em Geografia pela Universidade Federal da Paraba (2001), mestre pela

    Universidade Federal de Pernambuco (2003) e doutor pela Unesp de Presidente Prudente. Tem experincia na rea de Geografia, atuando principalmente nos seguintes temas: pensamento geogrfico, anarquismo, formao de professores, ensino e cidadania,

    agrotxicos e meio ambiente.

    http://edutec.unesp.br/images/stories/redefor/filosofia/paginavideos/paginavideos.php?vdo=123456789/65971/1/filo_d1_ficha&vdo1=123456789/65971/8/filo_d1_fichahttp://edutec.unesp.br/images/stories/redefor/filosofia/paginavideos/paginavideos_libras.php?vdo=123456789/65988/1/Filosofia_D01_ficha_1&vdo1=123456789/65988/8/Filosofia_D01_fichahttp://lattes.cnpq.br/8520043515434606http://lattes.cnpq.br/3347663744949562
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    Captulo 1 O legado da Geografia

    Introduo

    Para comeo de conversa, precisamos deixar claro o que estamos falando. O que a Geografia? Para Nelson Werneck Sodr (1987), ela foi por muito tempo conhecida por seu carter descritivo por causa de sua herana de levantamento de dados e de se basear na observao. O horizonte geogrfico, ampliando-se com as grandes navegaes, foi responsvel pela incorporao de elementos importantes para a Geografia. Desde as navegaes dos gregos e romanos, ainda confinados ao Mediterrneo e a algumas incurses por terra para a sia e o norte da frica, e posteriormente com as investidas dos portugueses e espanhis para o Atlntico, muitos gegrafos, como Alexander von Humboldt, puderam realizar viagens de observao e registro de fatos, descobrimentos e registros de espcies para consolidar o conhecimento dos lugares. Para Nelson Werneck Sodr (1987), o inventrio de fatos e informaes importante para a cincia, mas no constitui a cincia em si. Assim, depois de observar os cus na Antiguidade e de catalogar espcies botnicas olhando para o solo, os gegrafos arrolaram informaes para consolidar o conhecimento geogrfico. Essas matrias-primas foram importantes para que os gegrafos pudessem passar das descries sistematizao dos conhecimentos, definio

    http://edutec.unesp.br/images/stories/redefor/filosofia/paginavideos/paginavideos.php?vdo=123456789/65971/1/filo_d1_ficha&vdo1=123456789/65971/8/filo_d1_fichahttp://edutec.unesp.br/images/stories/redefor/filosofia/paginavideos/paginavideos_libras.php?vdo=123456789/65988/1/Filosofia_D01_ficha_1&vdo1=123456789/65988/8/Filosofia_D01_ficha
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    do seu campo de atuao, escolha das tcnicas e formulao de metodologias, embasados no mtodo cientfico.

    No entanto, a Geografia no conseguiu superar suas ambiguidades. Ela dividida em inmeras disciplinas que esto agrupadas em duas grandes ver-tentes, que se contradizem e se complementam: a Geografia Fsica, que est ligada s cincias da natureza, e a Geografia Humana, ligada s cincias do ho-mem. No passado, os conhecimentos da Geografia Fsica difundiram-se ampla-mente durante a expanso colonialista; enquanto que os da Geografia Humana expandiram-se com o imperialismo capitalista e sua consolidao nos sculos XIX e XX.

    A Geografia praticada nas escolas resultado do acmulo de conheci-mentos. Voc pode analisar os principais conceitos da Geografia contempo-rnea ao consultar os Parmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Mdio (PCNEM), elaborados pelo Ministrio da Educao (MEC). O PCNEM contm orientaes curriculares para que profissionais que trabalham com o ensino da Geografia tenham condies de observar, comparar e definir seus temas e suas estratgias voltadas prtica docente. Segundo o PCNEM,

    necessrio abandonar a viso apoiada simplesmente na descrio e memori-zao da Terra e o Homem, com informaes sobrepostas do relevo, clima, populao e agricultura, por exemplo. Por outro lado, preciso superar um modelo doutrinrio de denncia, na perspectiva de uma sociedade pronta, em que todos os problemas j estivessem resolvidos. (Brasil, 1998, p.30)

    Nesse documento, define-se o objeto de estudo da Geografia como sen-do o espao geogrfico, definido como

    o conjunto indissocivel de sistemas de objetos (redes tcnicas, prdios, ruas) e de sistemas de aes (organizao do trabalho, produo, circulao, consumo de mercadorias, relaes familiares e cotidianas), que procura revelar as prti-

    http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/cienciah.pdf
  • 20

    cas sociais dos diferentes grupos que nele produzem, lutam, sonham, vivem e fazem a vida caminhar. Nunca o espao do homem foi to importante para o desenvolvimento da histria. Por isso, a Geografia a cincia do presente, ou seja, inspirada na realidade contempornea. O objetivo principal destes conheci-mentos contribuir para o entendimento do mundo atual, da apropriao dos lugares realizada pelos homens, pois atravs da organizao do espao que eles do sentido aos arranjos econmicos e aos valores sociais e culturais cons-trudos historicamente. (Brasil, 1998, p.30)

    Continuando a olhar o mesmo documento, observamos que ele traz, como sugesto, os principais conceitos-chave da Geografia. Sem ordem hierr-quica, enuncia-se como o primeiro dos conceitos:

    paisagem, entendida como uma unidade visvel do arranjo espacial que a nossa viso alcana. A paisagem tem um carter social, pois ela formada de movi-mentos impostos pelo homem atravs do seu trabalho, cultura, emoo. A pai-sagem percebida pelos sentidos e nos chega de maneira informal ou formal, ou seja, pelo senso comum ou de modo seletivo e organizado. Ela produto da percepo e de um processo seletivo de apreenso, mas necessita passar a conhecimento espacial organizado, para se tornar verdadeiro dado geogrfi-co. A partir dela, podemos perceber a maior ou menor complexidade da vida social. Quando a compreendemos desta forma, j estamos trabalhando com a essncia do fenmeno geogrfico. (Brasil, 1998, p.32)

    O segundo conceito o de lugar:

    a poro do espao aproprivel para a vida, que vivido, reconhecido e cria identidade. Ele possui densidade tcnica, comunicacional, informacional e nor-mativa. Guarda em si o movimento da vida, enquanto dimenso do tempo pas-sado e presente. nele que se d a cidadania, o quadro das mediaes se torna

  • 21

    claro e a relao sujeito-objeto direta. no lugar que ocorrem as relaes de consenso e conflito, dominao e resistncia. a base da reproduo da vida, da trade cidado-identidade-lugar, da reflexo sobre o cotidiano, onde o banal e o familiar revelam as transformaes do mundo e servem de referncia para identific-las e explic-las. (Brasil, 1998, p.33)

    Por sua vez,

    os conceitos de territrio e territorialidade enquanto espao definido e delimi-tado por e a partir das relaes de poder, ou seja, quem domina ou influencia e como domina e influencia uma rea. Implica avanar da noo simplista de caracterizao natural ou econmica por contiguidade para a noo de diviso social. Todo territrio, seja ele um quarteiro na cidade de Nova York, seja uma aldeia indgena na Amaznia, definido e delimitado segundo as relaes de poder, domnio e apropriao que nele se instalam. Desta maneira, a territoria-lidade a relao entre os agentes sociais, polticos e econmicos, interferindo na gesto do espao geogrfico; no apenas uma expresso cartogrfica. Ela refere-se aos projetos e prticas desses agentes, numa dimenso concreta, fun-cional, simblica, afetiva, e manifesta-se em escala desde as mais simples s mais complexas. (Brasil, 1998, p.33)

    O PCNEM traz, tambm, um conjunto de conceitos que se articula em diferentes escalas: globalizao, tcnica e redes. Nesse documento,

    a globalizao um fenmeno decorrente da implementao de novas tecnologias de comunicao e informao, isto , de novas redes tcnicas, que permitem a circulao de ideias, mensagens, pessoas e mercadorias num ritmo acelerado, e que acabaram por criar a interconexo entre os lugares em tempo simultneo. Neste processo, tiveram papel destacado a instalao de redes tcnicas, incluindo-se a indstria cultural, a ao de empresas multinacionais e a circulao do capital, que intensificaram as relaes sociais em escala mundial, interligando localidades distantes, de tal maneira que acontecimentos locais so modelados por eventos ocorridos a milhares de quilmetros de distncia. No que se refere tcnica, devemos ressaltar ainda a importncia da compreenso

  • 22

    do papel das inovaes tecnolgicas na esfera da produo de bens e servios, engendrando novas formas de organizao social no trabalho e no consumo, criando novos arranjos espaciais. Outra face da revoluo tecnolgica so as novas formas de apropriao da natureza, tais como as expressas na biotecnologia, em que a deteno do conhecimento e do domnio tcnico so tambm um instrumento de poder que afeta os grupos sociais e exige modificaes na organizao espacial existente (Brasil, 1998, p.33-34).

    Todos os conceitos apontados devem ser articulados segundo

    diferentes tipos de escala: uma escala cartogrfica e a outra geogrfica. Na primeira, destaca-se o mapa como um dado instrumental de representao do espao, num recurso apoiado dominantemente na Matemtica. Na segun-da, a nfase dada ao fenmeno espacial que se discute. Esta a escala de anlise que enfrenta e procura responder os problemas referentes distribui-o dos fenmenos. A complexidade do fenmeno da cidadania, por exemplo, requer que se opere com diferentes escalas, articulando suas dimenses locais, nacionais e globais. Neste sentido, a cidadania no deve ser entendida ape-nas sob o aspecto formal do vnculo a uma nacionalidade, devendo apontar a dimenso vivencial de seu exerccio, como um fenmeno do lugar. De forma inversa, no podemos compreender a poluio atmica s no lugar, mas deve-mos trat-la enquanto fenmeno global. Assim sendo, a escala uma estratgia de apreenso da realidade. Portanto, importante compreend-la no apenas como problema dimensional, mas tambm fenomenal, na medida em que ela um instrumento conceitual prioritrio para a compreenso da articulao dos fenmenos. (Brasil, 1998, p.33)

    Podemos considerar que os conceitos-chave citados so, atualmente, os elementos que constituem a espinha dorsal dos contedos da Geografia.

  • 23

    Captulo 2 A formao do conhecimento geogrfico na Antiguidade e na Idade Mdia

    2.1. Antiguidade e Idade Mdia

    Dando continuidade ao nosso debate, vamos fazer voltar ao passado para buscar, na medida do possvel, informaes, fatos e contedos que possam contribuir para a compreenso do conhecimento e do pensamento geogrfico.

    Para Nelson Werneck Sodr (1987), a Geografia talvez seja a cincia de histria mais longa entre todas que conhecemos. Ela comea com as descries das migraes e das diferenciaes dos lugares, nas comunidades de tradio oral. Isso mostra que importante que o conhecimento seja registrado e trans-mitido. Na Grcia Antiga, j com o domnio da escrita e em decorrncia de sua posio geogrfica privilegiada no Mediterrneo em relao s outras partes do mundo conhecido, coube aos seus cidados coletar e sistematizar os conhe-cimentos de natureza geogrfica. So os navegadores, militares e comerciantes, de um lado, e os matemticos, historiadores e filsofos, de outro, que, ao longo do tempo, foram acumulando informaes e conhecimentos que se tornaram importantes fontes de estudos e anlises da sociedade e da natureza, interfaces importantes para a compreenso do temrio geogrfico.

    Para se ter uma leitura da Geografia na Antiguidade, podemos selecio-nar trs pensadores que so identificados com a Geografia e com a Histria, e

    http://edutec.unesp.br/images/stories/redefor/filosofia/paginavideos/paginavideos.php?vdo=123456789/65971/1/filo_d1_ficha&vdo1=123456789/65971/8/filo_d1_fichahttp://edutec.unesp.br/images/stories/redefor/filosofia/paginavideos/paginavideos_libras.php?vdo=123456789/65988/1/Filosofia_D01_ficha_1&vdo1=123456789/65988/8/Filosofia_D01_ficha
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    deixaram seus escritos contextualizados no mundo grego: Herdoto, Estrabo e Ptolomeu.

    Herdoto1 foi o primeiro a registrar, na tradio filosfica grega, o evento da invaso persa na Grcia, tendo como pressuposto que no apenas o registro dos fatos, mas tambm dos acontecimentos poderiam servir para compreen-der o comportamento humano. Ele sistematizou sua pesquisa e cunhou a pala-vra historie que, em grego, aproxima-se da palavra histria, como conhecemos atualmente. Ao escrever sua histria, ele sempre compunha a descrio dos fatos com os aspectos geogrficos. Segundo Nelson W. Sodr (1976), ele pode ter sido o primeiro a expor as dependncias deterministas entre o meio e o ho-mem, forma de compreender a relao sociedade-natureza antes mesmo do surgimento da Geografia de carter cientfico. Os nove livros que compem sua obra foram divididos em duas partes. O sexto livro, que finaliza a primeira parte, encerra-se com a derrota dos persas, em 490 a.C., na batalha de Maratona. Este o fato marcante que mostra o incio do retrocesso do Imprio Persa liderado por Ciro. Seu legado importante para a Geografia porque se constitui meto-dologicamente, em forma de narrativa contnua, como resultado de pesquisa pelo registro dos fatos e de abordagem dos fatos como elementos que auxiliam na compreenso do comportamento humano.

    Estrabo,2 outro gegrafo e explorador que pode contribuir nesta volta ao passado, classificado como gegrafo, historiador e filsofo grego. consi-derado um estoico, mas, ao mesmo tempo, um defensor do imperialismo ro-mano. Escrita na era crist, sua Geografia, em 17 volumes, considerada uma

    1 Herdoto, gegrafo e historiador grego, nasceu em 485 a.C. em Halicarnasso (atualmente

    Bodrum, na Turquia) e faleceu, possivelmente, na Ilha de Samos, em 420 a.C. Ele viajou

    pelas ilhas do Mar Egeu, esteve no Sul da Itlia, na Mesopotmia, no Egito (onde subiu o

    Nilo chegando ao Saara).

    2 Estrabo nasceu na Amaseia (atual provncia da Amasya, na Turquia), ento parte do Imprio Romano (63 ou 64 a.C. a cerca de 24 d.C.). Originrio de famlia rica, prosseguiu seus estudos em Roma, onde leu os filsofos e gegrafos que o antecederam. Fez viagens ao Egito e Etipia. Seu nome um termo utilizado pelos romanos para designar aqueles que tinham os olhos deformados ou portadores de estrabismo.

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    obra que contm inmeros erros de descrio, principalmente sobre os Piri-neus, mas uma obra da Antiguidade que articula conhecimentos da Geografia, por meio das descries dos lugares, da histria, da religio, dos costumes locais e das instituies de diferentes povos. Ele registra os conhecimentos adquiri-dos pelos gregos e pelos romanos.

    O terceiro gegrafo que apresentamos Ptolomeu.3 Cientista grego, ele viveu em Alexandria, no Egito. Sua obra mais conhecida o Almagesto, tratado que contm o conhecimento astronmico desde os tempos babilnicos at os tempos gregos. Nessa obra, ele apresenta o esquema de um sistema cosmol-gico concntrico, com a Terra no centro do universo, tendo-se os outros corpos celestes descrevendo a rbita ao seu redor. O Sol, os planetas e as estrelas des-creveriam epiciclos (crculos com centros em outros crculos) ao redor da Terra. Essa teoria conhecida, comumente, como Teoria do Geocentrismo. Ptolomeu foi considerado o primeiro cientista a expor uma teoria universal do movimento dos astros, mesmo que, posteriormente, duramente criticada e invalidada pelas observaes astronmicas de outros cientistas. Ele baseou sua obra em compi-laes anteriores e no fez nenhuma observao. Por outro lado, em sua obra Geographia h todo o conhecimento geogrfico de gregos e romanos, em que se destaca o uso de coordenadas geogrficas de latitude e longitude, mesmo que com deformaes,4 nas reas exteriores ao Imprio Romano.

    3 Cludio Ptolemeu (90-168 d.C) viveu em Alexandria, no Egito. Ele conhecido por suas obras na Geografia mas tambm, pelos trabalhos em outras cincias, como Matemtica, Astronomia, Cartografia, tica e at Teoria Musical. Alm de Almagesto e Geographia, escreveu Tetrabiblos, com o conhecimento de astrologia dos babilnios, gregos e egpcios, Optica, no qual mostra seus estudos sobre reflexo, refrao, cor e espelhos, e Harmnica, um tratado sobre teoria matemtica da msica. Sua obra foi transmitida aos eruditos do Renascimento pelos rabes.

    4 Toda representao da realidade transposta para desenho num plano ou mapa ter algum tipo de deformao. Para cada mapa h uma distoro ou deformao que corrigida parcialmente por tcnicas cartogrficas segundo a finalidade ou rea que se deseja representar no mapa. Essas tcnicas foram sendo desenvolvidas por matemticos, astrnomos, gemetras e gegrafos ao longo da histria do desenvolvimento da Matemtica e da Geometria.

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    Incio da descrio:Fotografia colorida de homem de meia idade, com cabelo e barba, brancos. Usa culos e traja cala e camiseta azuis. Est em p, encostado em uma cerca de ferro decorada, que restringe o acesso a uma escultura, que est ao fundo. A escultura, est sobre um pedestal de mrmore branco, feita em bronze, e representa o gegrafo Ibn Khaldun, em p, segurando um livro na altura do peito, com a mo direita. Ele tem fartos cabelos e barba, e traja uma capa que vai at os ps. No pedestal, observam-se algumas inscries em rabe.Fim da descrio.

    Podemos resumir, baseados nesses trs gegrafos sem a pretenso de estabelecer uma relao linear direta entre eles que o conhecimento geogr-fico na Antiguidade (que limitamos do sculo IV a.C. ao primeiro sculo da Era Crist) tem caractersticas que vo ser importantes na constituio do pensa-mento geogrfico posterior. Podemos lembrar que o conhecimento geogrfico desse perodo baseia-se em elaborao terica (geocentrismo), na necessidade de observao para consubstanciar a descrio dos lugares (aqui entendidos com seus costumes, instituies e crenas), nos resultados de narrativas e de pesquisas sistemticas para o registro dos fatos. As palavras destacadas ainda hoje so fundamentais para a elaborao do conhecimento geogrfico.

    Dando um salto para a Geografia dos rabes, tomemos como exemplo Ibn Khaldun.5

    Monumento a IBN KHALDUN em Tnis, Tunsia. Crditos: Eliseu S. Sposito

    5 Ibn Khaldun nasceu em Tunis (atual capital da Tunsia), em 1332.

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    Incio da descrio:Foto colorida de paisagem, tirada de ngulo superior. Do centro ao lado direito da imagem, observa-se uma montanha de pedra, que invade o mar, e visivelmente divide o territrio em duas partes. Essa formao rochosa composta por trs partes arredondadas, e separadas na ponta da rocha, que se juntam a medida que chegam ao continente. Fim da descrio.

    Como todos os gegrafos do mundo europeu, ele foi um viajante que conheceu inmeros e distantes lugares em sua poca. Na frica, percorreu o Saara, indo do Egito a Tombuctu; na sia, foi China, passando pela ndia e a Palestina; na Europa, foi at o sul da Rssia.

    2.2. As grandes navegaes

    As grandes navegaes (ou os grandes descobrimentos) foram funda-mentais para o alargamento do horizonte geogrfico a partir da Europa. Para superar as dificuldades na busca de novas terras, os navegadores tiveram que aprimorar seus instrumentos de observao da natureza, e alguns deles servi-ram, portanto, como potencializadores da capacidade de observao e de re-gistro do que os homens conseguiam ver e conhecer. A combinao dos usos de instrumentos, resultado das invenes do ser humano, foi fundamental para que as navegaes ocorressem muito alm das proximidades dos continentes j conhecidos. Depois de ultrapassar o Cabo Bojador, no Marrocos, os portu-gueses foram alm, acompanhando a costa oeste da frica, at chegarem ao Oceano ndico depois de ultrapassarem o Cabo da Boa Esperana.

    Cabo da Boa Esperana, frica do Sul. Foto: Eliseu S. Sposito

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    Da, chegar ndia, acertar o rumo para a Amrica, ir alm do Estreito de Magalhes, foi resultado de um passo arrojado e corajoso que os navegadores portugueses, depois os espanhis, desafiando as condies naturais e adversas de correntes martimas e de ventos, puderam alcanar, chegando assim a terras antes desconhecidas por eles.

    Para que isso ocorresse, no entanto, foi necessrio o desenvolvimento de outros conhecimentos. A elaborao de mapas com o domnio da linguagem matemtica e das projees cartogrficas foi necessria para que as rotas fos-sem, ao longo do tempo, definidas com mais preciso.

    Um novo desafio se colocava: a Terra, de formato esfrico, precisava ser representada em um plano constitudo pela folha que se colocava sobre a mesa dos cartgrafos. As medidas de latitude e longitude precisavam ser res-peitadas e, para isso, a preciso matemtica se tornava cada vez mais necessria. A linguagem da cincia, no Renascimento, consolidava-se como sendo a ma-temtica. Por meio de pontos, retas e ngulos, seria possvel localizar qualquer ponto, pessoa, lugar etc. num sistema tridimensional de coordenadas. Cabia, com as mudanas paradigmticas do Renascimento, compreender como o mundo funcionava, muito mais do que compreender por que ele foi criado. O ser humano emerge como centro do universo e sua posio geogrfica nesse universo, mesmo tendo como referncia a Terra, era importante para se ampliar os horizontes da cincia.

    Para que isso ocorresse, os europeus foram responsveis pela conquista de novas terras, associando-se ou dizimando outras populaes que j a viviam. Sua capacidade de conquista foi potencializada por alguns elementos: a cara-vela, mais leve e gil e que podia ultrapassar cabos com ventos contrrios, por causa das suas velas; a plvora, elemento bsico para a demonstrao de pode-rio blico, que possibilitou o avano dos conquistadores sem se arriscarem no corpo a corpo das batalhas; e a bssola, instrumento que permitiu a orientao dia e noite nos deslocamentos pelos mares e pelas terras. A esses elementos, acrescenta-se a imprensa, inveno que permitiu o registro dos conhecimentos e sua divulgao em diferentes lnguas para todos aqueles que pudessem deci-frar os cdigos das letras e slabas, e das representaes cartogrficas.

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    Atitudes como a observao, a anotao, o uso de instrumentos, a descrio e a explicao foram incorporados pela Geografia e, ainda hoje, so importantes para a abordagem do temrio geogrfico. Para completar esse quadro, importante lembrar o papel do mtodo cientfico, que serviu para que os cientistas se orientassem, registrassem e transformassem a observao dos fatos em elementos cientficos. O mtodo cientfico, como foi organizado no Renascimento, continha alguns princpios que, quando seguidos, davam o estatuto de cincia ao que era enunciado. Observar sempre, experimentar, utilizar a linguagem matemtica, decompor o fato estudado, no deixar de lado nenhum aspecto do fato para que ele tivesse todas as suas possibilidades esgotadas, eram os princpios que deviam ser seguidos por todos aqueles que tinham, como objetivo, fazer cincia.

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    Captulo 3A gnese da Geografia e da Cincia Moderna

    3.1. Cincia e sociedade

    Os seres humanos compreendem o mundo de acordo com sua formao intelectual e sua capacidade de dominar o conhecimento. Neste processo, a histria humana desenvolveu diferentes tipos de conhecimento. So eles: senso comum, religioso, cientfico e filosfico.

    O senso comum o nvel bsico de conhecimento que pode ser elabora-do ou incorporado por qualquer pessoa, independentemente de sua condio de letrado ou no. Ele formado pelo domnio de informaes corriqueiras, tcitas e que so elaboradas de acordo com o nvel de desenvolvimento cogni-tivo da pessoa e como fruto da relao que ela estabelece com seu grupo so-cial. Assim, andar de bicicleta, nadar, elaborar uma roupa, praticar uma profisso com a agilidade de manusear uma mquina etc., so formas de conhecimento que todos podem dominar. O senso comum tem ntima relao com o sentido prtico da vida; ele o resultado extrado do erro e acerto que generalizado para a orientao da relao social e das pessoas com a natureza.

    O conhecimento religioso, por sua vez, depende da f da pessoa e no desenvolvido por nenhuma habilidade especfica. No se exige competncia para atingir esse nvel de conhecimento, mas a crena em algo abstrato, sub-sumido na explicao pelo outro que , muitas vezes, situado fora da realidade objetiva. O conhecimento religioso habitado por entes e criaturas resultantes

    http://edutec.unesp.br/images/stories/redefor/filosofia/paginavideos/paginavideos.php?vdo=123456789/65971/1/filo_d1_ficha&vdo1=123456789/65971/8/filo_d1_fichahttp://edutec.unesp.br/images/stories/redefor/filosofia/paginavideos/paginavideos_libras.php?vdo=123456789/65988/1/Filosofia_D01_ficha_1&vdo1=123456789/65988/8/Filosofia_D01_ficha
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    de sua capacidade de abstrao e de explicao para fatos que dependem apenas da f e no da experimentao ou da normatizao do conhecimento. comum que o conhecimento religioso se aproprie do senso comum e dele crie condutas morais importantes para a civilizao em determinadas circuns-tncias da histria. Em alguns casos, difcil separar o senso comum do conhe-cimento religioso, porque um se utiliza do outro diante dos impasses morais e de limitaes tcnicas da sociedade.

    O conhecimento cientfico considerado aquele decorrente dos prin-cpios de organizao, registro, repetio e normatizao da realidade, cuja principal linguagem a matemtica. Ren Descartes (1596-1650), por exemplo, deduziu que o mundo resume-se a pontos, retas e ngulos, estabelecendo os critrios para se localizar qualquer coisa no espao tridimensional que se orienta por trs ordenadas, podendo ser figurado em distncia, altura e profundidade.

    Assim, o conhecimento cientfico , necessariamente, cumulativo, organi-zado, comparativo e possibilita a previso de situaes futuras que no sero, necessariamente, demonstradas. Podemos tomar como exemplo o fato de que a sucesso de tempos em um perodo determinado define o clima de um lugar ou rea estudada, o que permite a previso da tendncia, em um tempo futuro, do que pode ocorrer. No se trata de adivinhao, mas de imaginar o que pode acontecer a partir de modelos e ritmos elaborados com referncia s medies, comparaes e anlises sobre dados obtidos com o auxlio de instrumentos que potencializam os sentidos humanos. A repetio de acontecimentos e a sucesso de fatos permite verificar regularidades com resultados imutveis que inspiram leis sobre a matria. Um conhecimento cientfico se baseia no fato concreto, naquilo que se apresenta do mesmo modo diante das mesmas cau-sas e do tempo de ao.

    Finalmente, o conhecimento filosfico racional e no necessariamente demonstrvel, cabendo quele que o domina avaliar os outros tipos de conhe-cimento. Ele condensa a posio do pensador que julga como e de que manei-ra a sociedade pensa e age.

    Esses tipos de conhecimento foram se diferenciando a partir do Renas-cimento, perodo da humanidade no qual se configurou a cincia moderna. A inveno da imprensa permitiu o registro do conhecimento e sua disseminao

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    em uma forma que se repete para todos que a ele tem acesso, o que tambm viabilizou a elaborao de diferentes interpretaes para fatos e acontecimen-tos comuns.

    3.2. Gnese da Geografia e da cincia moderna

    Os marcos cientficos da Geografia podem ser identificados por meio das obras de alguns autores6 e pelo conjunto de acontecimentos que marcou a ex-panso do horizonte geogrfico, principalmente as grandes navegaes (que j foram descritas no item anterior), o aprimoramento da Cartografia e as grandes invenes.

    Assim, a Geografia moderna se desenvolveu a partir da crtica dos conhe-cimentos do senso comum e do conhecimento religioso acerca do planeta Ter-ra, reunindo, desde o Renascimento,7 a descrio sistemtica das caractersticas da superfcie terrestre, da observao dos fenmenos naturais e humanos nas diferentes regies do globo. Desta forma, a Geografia surgiu da necessidade de explicar o que existe, onde existe, a forma em que se apresenta e em que quan-tidade ou dimenso se apresenta esse elemento ou objeto da natureza (planta, rio, solo etc.), estabelecendo as leis gerais do cosmo. Assim como as demais cincias renascentistas, a razo de encontrar uma lei teve a funo de auxiliar tecnicamente a sociedade em sua adaptao e aproveitamento dos recursos da natureza, vista como objeto de dominao das sociedades modernas.

    Apesar desse desenvolvimento cientfico, as outras formas de conheci-mento no foram abandonadas. Assim, o senso comum incorporou o conhe-cimento geogrfico, mesclando-o com o conhecimento religioso. Da mesma

    6 Vrios autores sero apresentados, resumidamente, no captulo 4.

    7 Renascimento: perodo que, na histria europeia, transcorre, aproximadamente, do final

    do sculo XIII a meados do sculo XVII. Tem esse nome por causa da releitura que os

    europeus fizeram dos principais filsofos da antiguidade clssica, reinterpretando-os

    dentro de ideais humanistas e naturalistas.

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    forma, o conhecimento religioso admite a importncia do conhecimento cien-tfico, da filosofia e apela ao senso comum. Vejamos alguns exemplos.

    O conhecimento cientfico e filosfico busca na reflexo e na experin-cia sistematizada e revisitada inmeras vezes o aprofundamento de questes que no so objetivos do sentido prtico do senso comum e das exigncias da f. Como exemplo mais atual, tem-se a possibilidade cientfica de clonar o ser humano, ainda que no estejam dominados todos os conhecimentos sobre isso. A tcnica no aceita pela Igreja para a reproduo humana, mas no contestada para a reproduo animal. Filosoficamente, a mesma questo vista como uma possibilidade que no traz o mesmo componente moral sobre a reproduo, mas sobre qual finalidade isso tem para a existncia humana no futuro. A cincia no se ausenta do debate, mas precisa descobrir mais sobre essa possibilidade para a cura de doenas e para a superao dos limites da reproduo humana.

    O resultado atual desse problema est sob um impasse se a pesquisa deve ou no continuar nesse sentido, e se seu avano (ou no) est sob con-trole. Mesmo que a Cincia e a sociedade estabeleam e consigam impedir a clonagem humana por lei e por diversos bloqueios disponveis, a Filosofia no vai parar de refletir sobre o assunto. A simples possibilidade de uma doena destruir a fertilidade masculina em massa j colocaria uma questo para Igreja que obrigaria algumas delas a mudar de posio, pois o que estaria em jogo seria a existncia humana. Algumas Igrejas no mudaro de posio, mas a Ci-ncia ir lutar pela vida. A Filosofia continuar a provocar e a se contradizer, seja qual for o destino que prevalecer. Por sua vez, a Filosofia avanar mais que a Cincia quando esta no conseguir encontrar respostas, dando substncia para o conhecimento cientfico encontrar novamente seu caminho.

    Foi preciso distinguir essas formas de conhecimento para que voc possa se colocar perante o tema que estamos estudando neste momento: o pen-samento geogrfico. Para maior aprofundamento desse assunto, sugerimos a consulta da obra de Eliseu Savrio Sposito (2004).

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    Captulo 4 Institucionalizao da Geografia

    Um incio de conversa

    Nosso convite aqui para que voc compreenda qual caminho a Geo-grafia percorreu, em seu desenvolvimento, e como a sociedade a compreen-deu no passado e a interpreta no presente. Como vimos nos captulos anterio-res, a Geografia no surgiu como conhecida hoje e os trabalhos de Herdoto, Estrabo e Ptolomeu so testemunhos desse acmulo de conhecimentos. Da mesma forma, existiram expedies militares desde o mundo antigo, com o intuito de conhecer territrios e suas possibilidades e dificuldades de ocupao. Mas vejamos como na histria8 desta cincia h um momento em que ela deixa de ser uma preocupao de pessoas isoladas com suas curiosidades sobre os fenmenos e passa a ser apropriada pelas instituies governamentais e em-presas. Vamos analisar a institucionalizao da Geografia, processo pelo qual as informaes, mtodos e investimentos no conhecimento se tornam interesse

    8 Em estudos sobre a construo da Geografia, comum ver a palavra evoluo do pensamento geogrfico. Preferimos falar de histria do pensamento geogrfico, que no cria confuso e elabora a geografia como um processo construtivo que tanto assume teorias antigas em suas perspectivas como trabalha com novas teorias. A ideia de evoluo sugere uma superao e desgaste de uma ideia que nem sempre o que ocorre.

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    do Estado, de governos, de empresas e de associaes com objetivos diversos. Esses atores institucionalizam a Geografia quando criam grupos de pesquisa, expedies e comitivas para investigar os territrios, as colnias, ou mesmo es-pionar outros pases.

    Assim, uma empresa pode criar suas expedies confluindo com interes-ses do Estado,9 sendo muitas vezes difcil de distinguir se buscam dominao poltica e/ou econmica. Por sua vez, uma associao de vrios gegrafos e especialistas afins pode ser criada autonomamente por interesses cientficos ou a servio de um Estado e/ou investidores de variados interesses. Na medida em que as informaes geogrficas deixam de ser uma juno de informaes feitas por entusiastas para se tornar conhecimento estratgico de Estados e em-presas, ela se institucionaliza dentro de um gabinete de governo, em reunies de sociedades de pesquisa, nos debates em esferas intelectuais e na criao de universidades. Surgiro desse complexo de interesses a realizao de expedi-es cientfico-militares patrocinadas por alguns dessas instituies.

    Foi da expanso colonial dos reinos europeus que surgiram os primeiros relatos oficiais, como aquele elaborado por Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal. Posteriormente aos relatos escritos, as principais viagens foram or-ganizadas pelos chamados naturalistas, homens que dominavam cartografia, botnica e zoologia, matemtica e desenho, entre tantas outras habilidades que os fizessem comunicar aos seus financiadores as descobertas de suas investi-gaes. Em outros casos, as expedies buscavam entender a extenso de um continente ou de um rio e, para isso, navegar era a forma mais fcil para se atin-gir o objetivo pretendido. Havia tambm as expedies que buscavam cidades ou lugares mitolgicos com suas promessas de riqueza. Em todos esses casos, foram perdidas muitas vidas e pequenas fortunas dos financiadores.

    9 A palavra estado pode ser grafada com letra minscula quando se fala genericamente de estados da federao, por exemplo, estado do Mato Grosso. Quando se fala em Estado com letra maiscula um nome prprio que designa a instituio que abriga governos, por exemplo, Estado Nacional ou o Estado regido por leis. A palavra governo no recebe letra maiscula. Essa distino importante para que se entenda os texto sobre o assunto.

    http://www.culturabrasil.org/zip/carta.pdfhttp://www.culturabrasil.org/zip/carta.pdf
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    Geografia escolar

    A institucionalizao da Geografia se desenvolveu progressivamente, mas tem seu marco definitivo ao longo do sculo XIX , acentuadamente, na se-gunda metade e na virada para o sculo XX. O surgimento da Geografia escolar tambm faz parte do processo de institucionalizao da cincia geogrfica, que ocorre inicialmente nas naes industrializadas ou ricas. Posteriormente inclu-so da Geografia nas cartilhas escolares, foram criados cursos universitrios para formao de professores. Isso ocorreu inicialmente na antiga Prssia, imprio que se tornou pioneiro na institucionalizao da Geografia escolar (Capel, 1991) e que o exemplo mais citado na literatura, depois acompanhado pelos outros Estados Nacionais modernos.

    No se deve concluir, por essas afirmaes, que a nica funo da Ge-ografia na escola foi de servir aos interesses expansionistas e colonialistas. En-tretanto, a estreita relao da Geografia escolar com os interesses do Estado Nacional foi fundamental para a delimitao e desenvolvimento de algumas teorias e metodologias geogrficas.

    A Geografia escolar na antiga Prssia iniciou a construo de identidade de pertencimento territorial ligada cultura de suas populaes. Antes disso, a Prssia era composta por ducados e pequenos territrios autnomos que no se constituam em uma fora organizada para defender um projeto nacional e consolidar uma indstria e um comrcio com menor barreira entre os pe-quenos territrios. Esse exemplo ser seguido mesmo por outros pases que se poderia considerar Estados Nacionais modernos.

    No sendo suficiente apenas a educao bsica para este fim, foi impres-cindvel a construo de uma teoria nacionalista que fundasse seus pilares em um territrio ou espao de identidades culturais e polticas. nesse contexto que elaborada a teoria do determinismo geogrfico, demonstrando o papel da natureza na formao cultural de um povo. Um conceito central dessa teoria o de espao vital, que significa dizer que uma nao necessita de uma quan-tidade de espao explorvel correspondente ao seu contingente populacional.

    Na prtica, o conceito de espao vital foi exacerbado para uma ao po-ltica territorial expansionista prussiana, no caso da ocupao da Alscia-Lorena

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    em 1870 (Moraes, 1996, p.64). H um pressuposto que procura explicar o pa-pel dos professores de Geografia: eles seriam os verdadeiros responsveis pela vitria na anexao desse territrio porque os soldados do Exrcito prussiano haviam aprendido a interpretar mapas e estratgias militares espaciais por meio do ensino de Geografia. Essa teoria apropriada pela elite da nascente nao alem e explica, em parte, seus intentos expansionistas, que se estende no tempo (sculo XX) com as incurses nos pases vizinhos durante as Primeira e Segunda Guerras Mundiais. Tal tendncia foi denominada determinismo pelo historiador francs Lucien Febvre .

    A importncia da escolarizao nos feitos blicos contra a Frana passou a ser considerada pelas naes como fundamental para a expanso alem; por isso, a Geografia comeou a figurar nas escolas com propsitos nacionalistas e no apenas informativos. Desde esse momento, a educao bsica passou a incluir, com mais certeza, a Geografia em suas cartilhas e planos de estudos identificados com a unidade de cada Estado Nacional, fazendo parte, assim, da construo ideolgica de seus povos.

    No caso do possibilismo (denominao que se deu ao conhecimento geogr-fico produzido em territrio francs ou por influncia de importantes autores france-ses), o conceito de gnero de vida criado por La Blache ops-se ao conceito de espao vital por estabelecer que a cultura quem determina o uso do espao e sua adaptao ao homem. Para La Blache, o territrio repleto de possibili-dades e as tcnicas podem auxiliar a superar as barreiras naturais, tornando-as favorveis sociedade.

    Surgimento das universidades, das sociedades reais de Geografia e do colonialismo

    Para Horacio Capel (1991), o modelo universitrio da Alemanha impor-tante de ser analisado. Em primeiro lugar, pela liberdade de pensamento garan-tida ao corpo de tericos, o que permitiu um impulso na construo de massa crtica independente nos quadros universitrios, e pode ser considerado inova-dor at hoje. Essa liberdade de pesquisa e de pensamento foram instrumentos

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    muito bem utilizados pela elite poltica desse novo Estado Nao na superao do seu atraso em relao aos outros pases industrializados. Concomitantemen-te Geografia universitria alem, surgiram as sociedades geogrficas, para via-bilizar o conhecimento espacial e territorial de diversos estados nacionais.

    As sociedades geogrficas foram, na maioria dos casos, criadas no sculo XIX, a saber: Frana (1821), Alemanha (1828), Inglaterra (1830), Mxico (1833), EUA (1852), Portugal (1875), Espanha (1876), Canad (1877), Brasil (1883).10 So conhe-cidas a investidas de outros pases em territrios das Amricas, da Oceania, da frica entre outros com intuitos comerciais e expansionistas, colonialistas e ne-ocolonialistas.11 O papel dessas sociedades geogrficas pode ser sistematizado da seguinte maneira: investigar os territrios de seus prprios pases; fornecer uma base de informaes para os objetivos expansionistas nacionais; criar expli-caes cientficas que sustentem o papel de dominao das metrpoles sobre as colnias. As sociedades tambm so identificadas por suas caractersticas: es-tatuto ou organizao interna prprios e que as diferenciam das outras; adoo de linguagem cientfica, principalmente aquela baseada nas comprovaes dos

    10 Confira o texto Novos horizontes para o saber geogrfico (Cardoso, 2005).

    11 O filme O homem que subiu a colina e desceu a montanha retrata como o Reino Unido refazia suas medies no interior de seu reino atravs de levantamentos topogrficos, estabelecendo cdigos e medidas que se transformam em referncias para todas as outras medidas. Neste caso, os cartgrafos do filme vo medir a altitude do monte Ffynnon Garw, limite entre o Pas de Gales e a Inglaterra, considerando que uma montanha, no reino, s poderia assim ser considerada se tivesse, no mnimo, mil ps de altitude. Outro filme que apresenta a mesma preocupao pode ser o pico Lawrence das Arbias, que retrata a poca da independncia da Arbia Saudita em relao ao Reino Unido e, mais recentemente, em O paciente ingls. Finalmente, o filme Montanhas da Lua conta a histria de dois gegrafos exploradores que, em meados do sculo XIX, tentam descobrir as nascentes do Rio Nilo. No filme, destacam-se as formas como as caravanas so organizadas, como os gegrafos utilizam instrumentos para potencializar sua capacidade de observao, como so registrados os fatos observados e como o conhecimento legitimado pela Sociedade Real Geogrfica da Gr-Bretanha. Toda essa filmografia relata parcialmente o interesse em cartografar com maior preciso o espao, seja para instalar vias frreas, seja para identificar riquezas e seus potencias de explorao, seja para fins de delimitao de territrios ou conhecer os terrenos para facilitar deslocamentos de foras militares.

    http://www.mast.br/arquivos_sbhc/27.pdf
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    feitos em debates pblicos; utilizao de instrumentos que potencializam a ca-pacidade de observao dos gegrafos (bssola, termmetro, barmetro etc.) e legitimam as informaes obtidas em campo; linguagem prpria na descrio dos fenmenos estudados, inclusive com o recurso dos mapeamentos, cada vez mais precisos com o passar dos anos. Essas caractersticas so importantes para criar um ambiente de exposio e debates sobre os conhecimentos de novas reas. Esse ambiente legitima as descobertas e d estatuto cientfico aos escritos dos gegrafos. Finalmente, todo esse conjunto de aspectos positivos das associaes lhes do importncia nos cenrios polticos nacionais, fazendo com que os governos ou mesmo mecenas se mobilizem para financiar os pro-jetos de viagens de reconhecimento dos novos continentes.

    A prpria soberania dos pases nas colnias no dependia mais apenas de uma ocupao que se fizesse pela fora e pelas armas, mas pelo domnio de informaes12 e de tcnicas, e seu uso na ocupao ou explorao desses territrios. Associado ao interesse de dominao, as sociedades geogrficas abrigaram personalidades com formaes distintas para elaborar seus planos nacionais de viao, mapeamento poltico e topografia, alm de outras infor-maes com embasamento cientfico que corroboraram para fortalecer a so-berania desses pases, tanto internamente, como sobre as naes consideradas incapazes de realizar os prprios inventrios ou explorar as suas riquezas. As so-ciedades geogrficas tm como efeito formar investigadores e fornecer apoio

    12 Saber poder? Essa frase banalizada pelo senso comum ainda contm muito de verdade para o bem e para o mal. O domnio de conhecimentos serve para controlar, embora sirva tambm para oprimir e destruir ideias, pessoas e obras humanas. Um dos papis da educao criar uma condio de que o cidado supere a desinformao e os conhecimentos parciais ou superficiais para avanar para uma crtica qualificada. A escola no ensina ao cidado a ser crtico ou revoltado com a injustia, pois esse processo tem uma relao com o esprito de uma poca. No entanto, a educao tenta fazer na medida do possvel uma qualificao do discurso do cidado que servir a ele nos embates. A preocupao aqui contida que o professor saiba de suas limitaes e de suas potencialidades. Sem esse entendimento, o professor no encontrar nenhum sentido nobre em seu trabalho.

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    aos seus construtos metodolgicos e s suas teorias, assim como o engajamen-to destas aos interesses de seus patrocinadores.13

    Tanto a identidade nacional14 como a ocupao por colonizao ou ex-panso dependem de informaes consistentes sobre os territrios e espaos cobiados. As empresas, por sua vez, tambm dependem de informaes pre-cisas sobre a geografia de territrios para investir em estradas, portos e outras estruturas de extrao de riquezas com menor investimento e maior veloci-dade de retorno. O sculo XIX determinado pela mudana das tcnicas para a cincia sistematizada. A Primeira Revoluo Industrial ainda tem seus efeitos impressionantes, como o trabalho assalariado servir de base para o sistema capitalista ser preponderante.

    O florescimento da cincia tem um papel pragmtico crescente, e as universidades no ocupavam funo to relevante quanto tinham as grandes expedies patrocinadas pelas sociedades geogrficas. A cincia ir progredir entre um processo de avano capitalista em favor de suas necessidades e os desafios cientficos que so impostos pelos avanos resultantes desse processo.

    4.3. Os referenciais das escolas clssicas do pensamento geogrfico

    No final do sculo XIX e incio do sculo XX, duas escolas de pensamento geogrfico poderiam ser distinguidas por suas bases e propostas tericas: a es-

    13 O filme Montanhas da lua (1990) um registro artstico que serve para ilustrar como era o funcionamento de algumas dessas sociedades cientficas. Ele adapta fatos da histria real ocorrida em 1850 quando dois oficiais britnicos, capito Richard Burton e tenente John Speke, realizaram expedies para descobrir a nascente do Nilo em nome do Imprio Britnico da Rainha Victria.

    14 Identidade nacional se confunde com ufanismo ou um elogio exagerado, preconceituoso, excludente, acrtico e parcial de algumas pessoas que se dizem amar um pas. fundamental que esses elogios sejam contidos pela realidade dos fatos e no por uma imagem ideal de um pas. Os regimes ditatoriais colocam frases do tipo Amem ou deixem!, que resumem a ideia de que amar incondicionalmente um pas justifica a injustia, perseguio e assassinato de opositores ordem vigente. No entanto, h que ter uma identidade cultural crtica que a base do humanismo e respeito aos direitos universais.

    http://www.filmesraros.com/loja/product_info.php?%20products_id=107
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    cola alem e a francesa. Elas so responsveis pelos debates mais enriquecedo-res da Geografia moderna. Os principiais nomes da escola alem so Alexander Von Humboldt, Carl Ritter15 e Friederic Ratzel (1844-1904). Na escola francesa, Elise Reclus e Vidal de La Blache tiveram grande influncia, sendo este ltimo o que obteve maior destaque.16 De maneira muito geral, reputa-se escola alem o que se chama determinismo geogrfico e geografia geral. A escola francesa citada como possibilista e utilizadora da abordagem da geografia regional.

    Como vimos, o determinismo geogrfico explicado como sendo base-ado na fora das caractersticas fsicas para o comportamento, formao, evo-luo e progresso de uma sociedade. Por exemplo: pases com litoral muito recortado favorecem as navegaes, como as costas dos pases banhados pelo mar Mediterrneo. O possibilismo, por sua vez, a tendncia terica que de-fende que um povo, dependendo do seu progresso tcnico e cultural, pode conduzir mudanas e adaptar-se ao meio geogrfico de forma a aproveitar-se dele e transform-lo a seu favor. Sem reduzir a importncia das condies fsicas sobre a sociedade e sem exagerar na influncia do aporte cultural na trans-formao do espao natural, essas duas correntes fundam a discusso sobre a relao entre sociedade e natureza, que ainda central na produo cientfica da Geografia.

    A apropriao poltica das teorias para justificar o colonialismo foi comum entre ambas, tanto na depreciao de um povo e seu estgio de desenvolvi-mento tcnico primrio em relao aos colonizadores que defendiam o pos-sibilismo, quanto para justificar a dominao de um povo por estar fadado s

    15 Carl Ritter (1779-1859). Gegrafo alemo que descobriu a existncia dos raios ultravioletas em 1801 e considerado, junto com Humboldt, um dos principais fundadores da Geografia moderna.

    16 A influncia da obra de Reclus na Frana foi enorme e suas obras tiveram alcance em escolas do mundo todo. Reclus no teve um papel importante na geografia institucional por ser um anarquista e estar envolvido em questes contrrias ao Estado. La Blache teve um papel acadmico e poltico sem oposio ao Estado e muito de sua obra esteve a servio dele. A revista Hrodote publicou um nmero especial de comemorao dos 100 anos da morte de Reclus (1905-2005), contendo alguns textos em francs que descrevem o esforo de La Blache em apagar as fortes referncias reclusianas na Geografia francesa.

    http://www.herodote.org/spip.php?article149
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    limitaes impostas pelo meio em que vivem. No entanto, se fizermos uma lei-tura mais aprofundada dessas duas escolas e, principalmente, dos escritos dos tericos citados, no ser encontrada uma posio to polarizada quanto se acredita, pois foi a apropriao poltica e as consequncias dessa apropriao que deram uma nfase superficial no pensamento desses pioneiros da Geogra-fia moderna.

    A Geografia Geral uma abordagem que parte do princpio que um fenmeno geogrfico deve ser visto em escala mundial ou tomando-se como referncias grandes superfcies. A compreenso metodolgica, neste caso, baseia-se em fazer um inventrio de tudo que engloba grandes superfcies e dados gerais que alimentem uma lei geral da natureza. A coleta de informaes sobre flora, fauna, distribuio hdrica, tipo de relevo, distribuio populacional entre outras informaes gerais do meio fsico sustentam apreciaes dessas grandes superfcies e de seus fenmenos. A demanda cientfica justificou ex-pedies investigativas por todo o mundo e tanto mais nos pases colonizados. Conhecer a natureza e a sociedade desses pases e continentes era determinan-te para se construir uma Geografia Geral e compreender a complexidade do mundo natural por meio dela. O tipo de trabalho derivado desses inventrios era descritivo e sem nfase na ao humana como agente transformador. importante ressaltar que, embora procurassem paisagens e fenmenos que se repetissem para criar leis gerais, no possuam, ainda, o que hoje se chama viso sistmica (interao) ou a noo de natureza como fruto relacional de fenme-nos que interagem e se retroalimentam.

    A crtica ao descritivismo deve ser amenizada se levarmos em conta que os meios tcnicos disponveis e a linguagem daquele perodo no desfrutavam dos mecanismos que possumos atualmente; por isso, retratar os fenmenos literariamente e detalhadamente era a forma adequada de lidar com as infor-maes coletadas. O correto dizer que, aps os progressos tericos e tecnol-gicos, a descrio detalhada pode ter sido uma herana de formao de alguns gegrafos que perdura em algumas produes cientficas.

    A geografia regional elaborada por Vidal de La Blache considerada uma construo terica importante e responsvel pela manuteno da importncia da Geografia como cincia. Capel afirma que aps a morte de Humboldt e Rit-

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    ter, em 1959, a Geografia tendeu ao esfacelamento em vrias disciplinas e quase desapareceu, no fosse a necessidade de criar uma Geografia escolar. Do ponto de vista terico, a Geografia Geral dava respostas para fenmenos amplos, mas esse nvel de informao no produzia explicaes das aes humanas em seu meio natural. La Blache conseguiu delinear que o propsito da Geografia era identificar em fragmentos do espao uma regularidade de fenmenos naturais e sociais. A Geografia regional busca identidades em escalas mdias e peque-nas. A diviso regional se far por caractersticas naturais, pela composio tc-nica de seus habitantes na relao cultural e natural. Em algumas abordagens, como se o gegrafo tivesse que descobrir a regio por fenmenos especficos. Se ouvirmos algum falar que existe a regio Nordeste no Brasil, isso quer dizer que ela composta por um tipo de natureza dominante, um histria poltica e de desenvolvimento que a faz diferente da regio Sul ou Centro-Oeste. O trabalho regional poder produzir subdivises e de uma forma geral serve para o planejamento territorial de uma regio ou delimitao de uma regio admi-nistrativa de interesse maior do Estado. La Blache salva a Geografia do desapa-recimento e recoloca uma funo que a faz sobreviver ao desaparecimento. As metodologias mudam, ou mudam suas nfases.

    A Geografia regional depende de uma descrio, mas exige uma abor-dagem que crie a identidade regional. A comparao entre os fenmenos importante, mas nas escalas regionais pode ser pouco expressiva para dar uma identidade natural particular. Exemplo prtico disso falar da regio Nordeste como tendo uma nica identidade e compar-la com a regio de Provena, na Frana, que menor (em superfcie) que o estado de Sergipe. A caracterizao regional relativa ao pas e suas pesquisas para a gesto poltica, administrativa e produtiva, e no dimenso territorial.

    A Geografia Geral, como foi praticada h um sculo, entrou em decadn-cia por no servir aos interesses do Estado Nacional moderno e, segundo vrios autores, a Geografia regional lablachiana recolocou em cena a importncia da Geografia e a impediu de sucumbir pela fragmentao em outras disciplinas, como Geologia, Climatologia, Biologia, entre outras.

    A discusso entre Geografia nomottica ou geral (que busca leis gerais) e Geografia idiogrfica ou regional (que busca identidades particulares) estar

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    sempre ressaltada nos debates tericos, metodolgicos e epistemolgicos, e tambm nos debates polticos e ideolgicos. importante enfatizar a influn-cia poltica e ideolgica nesse debate, porque a informao cientfica tem uma vertente pura e objetiva pela busca do conhecimento da realidade e uma ob-jetiva e subjetiva associada aos interesses concretos dos governos, empresas e pessoas, que resultam em incompreenses e refutaes por desconfiana dos interesses escondidos em alguns de trabalhos cientficos.

    A diviso entre Geografia Fsica e Humana tambm se faz importante en-tre essas correntes (alem e francesa), dando a entender que a Geografia alem seria determinista, descritiva, geral, nomottica e fsica, enquanto que a francesa seria possibilista sinttica, regional, particular, idiogrfica e humana. No to simples assim e uma compreenso desse modo sobre o pensamento geogr-fico pode levar a entender que um trabalho em Geografia Humana esteja livre de descrio e das informaes fsicas, ou que um trabalho de Geografia Fsica pode eliminar a informao dos grupos e aglomeraes sociais e a influncia deles sobre a natureza. No entanto, esta no uma verdade absoluta nem de-finitiva. H diferentes possibilidades de se fazer trabalhos, em qualquer uma das vertentes, com qualidade e com abrangncia suficiente para se descrever e explicar os territrios. H trabalhos em Geografia Fsica de alta qualidade que no necessitam falar da sociedade e h trabalhos em Geografia humana de inestimvel valor que no necessitam fazer inferncia aos fenmenos fsicos.

    Na sequncia, apresentamos um quadro que separa as relaes entre as duas tendncias. Esse quadro no deve ser seguido risca nos dias atuais, j que as tendncias metodolgicas e tericas se mesclam e oferecem elementos que explicam mais a realidade dos fenmenos do que na forma como esto expostos.

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    Sntese comparativa, geral e parcial, dos marcos das escolas de geografia francesa e alem

    Caractersticas Geografia alem Geografia francesa

    Teoria centralEspao vital: equilbrio entre uma popula-

    o e recursos naturais disponveis

    Gnero de vida: a cultura de uma

    sociedade capaz de se adequar

    s limitaes naturais e transfor-

    m-las em vantagens

    Objeto da geografiaLeis gerais da natureza Identificar a relao homem e

    natureza

    Conceituao Cincia dos lugares, no dos homens Cincia de sntese

    Metodologia Descritiva/inventrio/causas/observao

    Relacional/imbricaes/finalida-

    de/

    natureza

    Carter dos resultados

    cientficos

    Determinista

    (homem produto do meio)

    Possibilista

    (a cultura transforma o meio)

    Apresentao dos resultados Anlise Sntese

    Escalas de abordagem Geral Regional

    Forma do construto cientfico

    Nomottica.

    Leis gerais e normativas: regularidades de

    fenmenos e suas causas

    Idiogrfica.

    Encontrar uma identidade espec-

    fica de uma parte do espao

    Primazia Fenmenos fsicos Fenmenos sociais/ naturais

    Propsito poltico expansionista Colonialista

    O quadro comparativo apresentado simplificador e contm uma distin-o bastante superficial da sistematizao da Geografia moderna. Essa tendn-cia que separa uma da outra desaparece em trabalhos elaborados no sculo XX e haver muita proximidade entre o construto terico dessas duas correntes que esto apresentados com muita generalidade. Nesse sentido, o quadro deve ser considerado apenas como uma sistematizao geral de caractersticas mui-

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    to amplas e deve ser considerado com cautela, a partir de seu objetivo mais pedaggico do que fiel ao fato cientfico que o inspirou.

    Nas distines entre gegrafos que veremos a seguir, ser possvel notar que h pensamentos de franceses que incorporam propostas de alemes e vice-versa. Tomar essas ideias de maneira simples pode levar ao estudo empo-brecido de cada um desses pensadores e fazer cair em erros como os que repu-tam ao historiador Lucien Febvre, que distinguiu a geografia em duas vertentes (determinista e possibilista). Em um estudo sobre a obra de Humboldt, Ritter e Ratzel, ser possvel verificar que eles reconheciam o elemento cultural na trans-formao do espao. Do mesmo modo, a escola francesa no desconsiderava as influncias do meio fsico no desenvolvimento das sociedades (Moraes, 1989, 1990).17

    Mediante o que foi exposto, importante entender que as definies de determinismo e possibilismo servem mais aos interesses ideolgicos do Estado Nacional moderno. Isso distorceu os conhecimentos elaborados por esses ge-grafos em favor dos objetivos colonialistas e expansionistas dos Estados-Nao sem qualquer compromisso cientfico com esses pensadores, embora alguns deles estivessem identificados com os interesses polticos de seus pases.

    4.4. O pensamento geogrfico alemo (Humboldt, Ritter, Ratzel, Het-tner, Richthoffen)

    Alexander von Humboldt (1769-1859) considerado um gegrafo de campo18 e seu objetivo era encontrar leis gerais sobre os fenmenos naturais. As regularidades dos fenmenos fsicos forneceriam informaes gerais sobre

    17 Esse trabalho de Moraes, A gnese da Geografia moderna, que aprofunda o pensamento de Humboldt e Ritter, e a continuidade desse trabalho em outro livro intitulado Ratzel (1990) so caminhos que fazem justia amplitude do pensamento desses trs gegrafos, superficialmente e injustamente chamados de pais do determinismo geogrfico.

    18 Entre os gegrafos, comum se afirmar que um cientista de campo quando se dedica busca de dados primrios em trabalhos diretamente voltados para atividades empricas, em viagens, entrevistas, observaes, anotaes e descries do que observado.

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    a dinmica fsica global. Sua obra Cosmos tem o papel de identificar leis gerais com forte relao com a compreenso platnica.19 Desse modo, era importante conhecer as causas dos fenmenos fsicos. As tcnicas mais utilizadas foram a observao e a descrio (textual, cartogrfica; inventrios e desenhos). A proximidade entre o filsofo Kant e Humboldt no foi confirmada pelos registros histricos, mas o trabalho realizado pelo gegrafo profundamente associvel ao construto terico elaborado pelo filsofo, principalmente em sua obra A crtica da razo pura. Por isso, o princpio de causalidade (segundo o qual todos os fenmenos na superfcie da Terra tm uma explicao causal e no casual de sua existncia) fortemente ligado ao pensamento humboldtiano.

    Carl Ritter (1779-1859), em vrios aspectos de seu pensamento, aproxima-se das ideias de Humboldt. possvel simplificar afirmando que este ltimo era um ge-grafo de campo, e Ritter um elaborador de gabinete.20 Ritter teve um papel pre-ponderante na construo dos cursos de formao de professores de geografia (Capel, 1991). Foi professor de Elise Reclus e Karl Marx. Esse fato d conta de como a profuso da Geografia moderna influenciou o pensamento cientfico da virada do sculo XIX para o XX. O princpio de analogia, sistematizado por Ritter, segue a inteno de descobrir leis gerais da natureza. Esse princpio tem como base a comparao entre os fenmenos para destacar suas particularida-des, destacando diferenas e semelhanas entre eles.

    Ferdinand von Richthofen (1883-1905) segue por uma perspectiva que se pode denominar de humboldtiana de totalidade (harmonia natural). Von Ri-chthofen era emprico-naturalista e se servia das observaes de campo e das formas de relevo. Esse tipo de trabalho refora a geomorfologia no papel de descrio e compreenso das paisagens e seus relevos. Ele fez uma viagem

    19 O cosmos platnico deve ser entendido como totalidade da expresso possvel do ser, ou seja, expresso do bem. Plato no compreendia o todo por seu carter corruptvel, mas empreendia em seu mtodo a concepo do sensvel pelo sensvel, uma vez que considerava que a realidade fsica nos engana.

    20 Entre os gegrafos, afirmar que um gegrafo de gabinete significa procurar demonstrar que seu trabalho privilegia fontes escritas produzidas por outros cientistas, cabendo a si o papel de ler, interpretar e sistematizar os conhecimentos produzidos por outrem.

    http://www.funape.org.br/geomorfologia/cap1/index.php
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    China que durou cinco anos, de leste a oeste e de norte a sul, colhendo in-formaes e mapeamentos sobre a rota da seda. Efetuou estudos geolgicos e levantamentos topogrficos completados com informaes econmicas e sociais. Na Alemanha, passou sete anos elaborando o Grande mapa da China, tarefa que o notabilizou como um dos grandes gegrafos do mundo.

    Alfred Hettner (1859-1941), por sua vez, considerado neokantiano. Ele pe a Geografia no plano de encontro do nomotetismo e do idiografismo, cen-trando a referncia unitria no conceito de regio. Para ele, a regio a cate-goria universal da Geografia, o conceito portador da capacidade de oferecer uma viso de unidade de espao que ele denomina corolgica, a qual seria configurada atravs da pluralidade dos aspectos fsicos e humanos. Desse pon-to de vista, o conceito auxilia a forjar a sntese do mundo, que seria a identidade metodolgica e cientfica da Geografia. Assim, chega-se sntese regional por intermdio da interao entre a Geografia sistemtica, parte da Geografia en-carregada de realizar a anlise dos fenmenos no seu plano tpico, e a Geogra-fia regional, a verdadeira Geografia, que se serve da primeira, ao mesmo tempo em que lhe impe a necessria unidade sinttica. Embora crtico de Kant ao realizar o esforo de unir a Geografia geral regional, sua anlise e sntese pare-ce buscar algo semelhante ao kantismo, quando une empirismo (observao) com racionalismo (razo) na busca da diferenciao das reas ou para entender o porqu delas se diferenciarem.

    Leo Waibel (1888-1951) tem sua elaborao terica destacada por dois conceitos: o de Wirtschaftsformation (formao econmica) e o de Kulturlandschaft (paisagem cultural). Analogamente a uma formao vegetal, afirma Waibel, uma paisagem econmica contnua pode ser denominada de formao econmica. A agricultura emprega para essas unidades, sejam elas extensas ou reduzidas, geralmente a denominao de zonas. Ele fala, assim, de uma zona de cultura de hortalias, uma zona triticultora, uma zona de lacticnios etc. J a paisagem cultural, dentro da Geografia agrria, entendida como resultante do uso do solo, ou seja, do tipo de cultivos, tcnicas utilizadas, estradas e instalaes, determinado pela Formao Econmica (Etges, 2000).

    http://www.uff.br/geographia/ojs/index.php/geographia/article/download/34/32%20GEOgraphiaAno.II%20No32000http://www.uff.br/geographia/ojs/index.php/geographia/article/download/40/38
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    4.5. O pensamento geogrfico francs

    lise Reclus (1830-1905) foi aluno de Carl Ritter e produziu uma Geografia com forte referncia em Humboldt e Ritter. Sua obra teve impacto importante na educao da Frana, Espanha e outros pases da Europa. De fato, foi essa referncia que teve relevncia para os gegrafos franceses que o sucederam, embora haja registros de que La Blache combateu essa influncia na Frana. Seus livros, sua atividade poltica como anarquista e sua dedicao educao fez Reclus ser popular e reconhecido. possvel afirmar que ele prenunciou as bases do geoambientalismo, da sustentabilidade e de uma geopoltica prxima da compreenso contempornea. Sua formao pela escola alem no o fez um determinista, e sua posio poltica deixou mais claro que a ao humana responsvel pela transformao do espao reconhecendo a capacidade de poluio e a necessidade de uso adequado da natureza. A base metodolgica que ele deixou para a Geografia impedia a separao dos fatos humanos e dos fenmenos naturais, trazendo conjuntamente a preocupao com a liberdade das naes e de seus povos.

    Vidal de La Blache (1845-1918) foi responsvel pelo conceito de gnero de vida e criou as bases metodolgicas da regionalizao que recolocou a Geografia como disciplina importante entre as demais cincias. A proposta vidalina serviu ao planejamento estatal e permitiu o desenvolvimento de monografias regionais que buscavam identidades espaciais ou idiogrficas para espaos determinados por variveis comuns, procurando superar as limitaes que a Geografia geral, caracterstica da escola alem, tinha para a compreenso da organizao espacial.

    Jean Brunhes (1869-1930) preocupava-se com a poltica e tinha posies consideradas catlico-sociais. Sua obra sobre os princpios da Geografia colocava a existncia de vrios nveis de percepo dos fenmenos. Primeiro, estaria a Geografia das necessidades vitais (explorao da terra), depois a Geografia social e, por fim, a Geografia histrica e poltica. O mtodo proposto por ele considerava os seguintes feitos essenciais: a) a ocupao improdutiva (casas e vias); b) a conquista vegetal e animal (cultura e pecuria) e; c) a economia destrutiva (devastao dos animais, vegetais e explorao mineral).

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    Nessa superfcie seria encontrada a ao da sociedade e acresceria o nome da Geografia Humana como referncia para escola francesa de geografia.

    Max Sorre (1880-1962) elaborou o conceito de habitat que se refere poro do planeta vivenciada por uma comunidade que a organiza. Trata-se da humanizao do meio, que expressa mltiplas relaes entre o homem e ambiente que o envolve. Aproxima-se do axioma vidalino de gnero de vida.

    Emmanuel de Martonne (1873-1955) conhecido por desenvolver, ao longo de sua vida, um amplo trabalho docente de difuso da Geografia como cincia experimental. Em suas duas visitas ao Brasil (1933 e 1937), realizou levantamentos morfolgicos e ministrou cursos na Universidade de So Paulo. Seu estudo sobre problemas morfolgicos do Brasil tropical-atlntico foi um dos primeiros trabalhos de geomorfologia climtica no mundo. Para ele, tudo aquilo que existe na superfcie terrestre e faz parte da paisagem pode ser considerado um fato geogrfico. Um fato geogrfico se caracteriza por ser um elemento tangvel e , de certo modo, permanente ou estvel, como as montanhas, os rios, as comunidades humanas, um edifcio, uma rvore etc. O fenmeno geogrfico ocorre quando se pode observar uma mudana mais ou menos imediata na superfcie terrestre, resultando em alteraes no ambiente.

    Pierre Deffontaines (1894-1978) iniciou seu contato com o Brasil na dcada de 1930 e, conjuntamente, com Pierre Monbeig, fundou a cadeira de Geografia na Universidade de So Paulo, em 1935. Foi, tambm, um dos principais responsveis pela criao da Associao dos Gegrafos Brasileiros, do Conselho Nacional de Geografia e da Revista Brasileira de Geografia. Defontainnes foi for-temente influenciado por Jean Brunhes, por sua vez, discpulo de Vidal de La Blache. considerado introdutor da escola francesa de geografia no Brasil e teve papel determinante na estrutura do curso de formao de professores de Geografia. Seus artigos, de cunho vidalino (ou lablacheano), descreviam a di-menso continental do Brasil, onde a natureza definia a organizao das ativida-des humanas. Como La Blache, ofereceu ao Brasil uma matriz de pensamentos ao dispor do planejamento estatal e com os projetos nacionais brasileiros da Era Vargas (Ferreira, 1998).

    Pierre Monbeig (1908-1987), tambm influenciado pela geografia regional vidalina, destaca a importncia da cultura na transformao do espao e se

    http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/anpocs/moraes.rtf
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    coloca em posio oposta ao determinismo econmico (Gaeta, 2007). Dantas (2005, p.30) afirma que sua ideia de complexidade em Geografia Humana co-loca a necessidade de ir alm da descrio, indo buscar as contingncias que cercam a relao entre o homem e a natureza. A Terra, para Monbeig, um todo cujas partes se condicionam. O homem ser o perturbador de um equi-lbrio complexo e o gegrafo dever recolher como essas diversas influncias contribuem para a formao espacial e adaptao humana. Como cofundador da cadeira de Geografia na Universidade de So Paulo, em 1935, ir influenciar a formao de gegrafos com forte cunho da Geografia regional francesa, que dar escola de Geografia brasileira sua nfase na Geografia Humana.

    4.6. As abordagens de inspirao anglo-americanas

    Ellen Semple (1863-1932) tem proximidade com a obra de Ratzel (antropo-geografia) e inspirou a produo de vrias obras e artigos caracterizados como deterministas. Em seu pensamento, o meio fsico tem papel mais preponderan-te do que a ao humana e a cultura na transformao espacial. Ou seja, o meio determina o homem, em palavras diretas. O determinismo geogrfico, como se conhece hoje, foi mais influenciado por Semple do que por Ratzel, influncia esta que deu um carter prprio Geografia anglo-saxnica com maior nfase no empirismo e na descrio do meio fsico. Semple, por exemplo, recorre Bblia, em alguns de seus escritos, para definir a importncia da natureza sobre a sociedade. A finalidade de seus trabalhos entender as vantagens ambientais e suas influncias no desenvolvimento econmico.

    Ellsworth Huntington (1876-1947) concluiu que as populaes de regies frias tinham desempenho econmico superior ao de pases tropicais, fenme-no que chamou de paradoxo tropical. De acordo com esse gegrafo, a influ-ncia do clima no desempenho econmico tambm podia ser verificada nas estruturas polticas, pois os Estados tropicais tendem a ter uma histria poltica instvel. O determinismo climtico que baseou a obra de Huntington passou a ser uma considerao exacerbada para outros campos e utilizado como expli-cao simplria para explicar a pobreza e o subdesenvolvimento.

    http://www.unirio.br/morpheusonline/numero10-2007/antoniogaeta.htm
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    Richard Hartshorne (1899-1992) conhecido por seu mtodo de regio-nalizao que, diferente do que props La Blache, seleciona elementos para se delimitar um espao e no a totalidade de elementos que o compe. A regio, para Hartshorne, deve ser compreendida conceitualmente quando especia-lizada por funes correlatas. No quer dizer que ele negue a regionalizao tradicional, mas aprofunda o pragmatismo da informao geogrfica que deve ter finalidade para o planejamento e desenvolvimento humano. Seus trabalhos so influenciados pelo kantismo, e ele escreveu um texto importante sobre a relao entre as obras de Kant e de Humboldt (Hartshorne, 2006).

    David Harvey (1935) tem sua formao na Geografia quantitativa, mas, aos poucos, foi se apropriando das bases epistemolgicas marxistas. Por essa mu-dana de perspectiva, ele considerado um dos pilares da Geografia radical. Os pressupostos de Harvey colocam a luta de classes no centro dos debates te-mticos da Geografia com uma qualidade que extrapola a ideologia que marca parte da corrente da Geografia crtica mundial. Seus escritos sobre a ao do capital na civilizao servem de pilar para a construo de uma crtica globa-lizao e para a compreenso da ao das corporaes na internacionalizao do capital. A sociedade est no centro do debate geogrfico e da esquerda poltica arrefecida no final da dcada de 1990, mas com mais aprofundamento aps a crise econmica de 2008. Sua obra A condio ps-moderna referncia no Brasil, para se entender sua compreenso terica da Geografia.

    Os trabalhos de Edward William Soja (1940) so voltados para o planeja-mento urbano. Seus referenciais tericos se baseiam no materialismo histrico e ele percorre um caminho mais ecltico entre os gegrafos radicais estadu-nidenses. Sua obra Geografias ps-modernas polmica e teve enorme reper-cusso na dcada de 1990. Soja considerado, por alguns crticos, como um gegrafo ps-moderno por sua aproximao com a Geografia cultural.

    Doreen Barbara Massey (1944) referenciada por produzir trabalhos in-fluenciados pelo materialismo dialtico e por isso definida como gegrafa marxista. Um dos seus campos de estudo a globalizao e suas relaes com o desenvolvimento das cidades, a reconceitualizao do espao urbano e a diviso espacial do trabalho. Seu conceito de geometria do poder tem como aporte a compreenso das profundas divises entre ricos e pobres e as desi-

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    gualdades provocadas pelo capitalismo. Seus argumentos so que o espao composto por vrias identidades que no esto congeladas, ou seja, o espao permeado por processos permanentes de mltiplas identidades e no fecha-do, mas consequncia de superposies de aes humanas dinmicas.

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    Captulo 5A institucionalizao da Geografia no Brasil

    5.1. Introduo

    No Brasil, h marcos importantes sobre a institucionalizao da Geogra-fia, como a fundao do Instituto de Histria e Geografia Brasileiro (IHGB), primeiro no Rio de Janeiro, em 1838, e, posteriormente, em outros Estados do pas. Inicialmente, o IHGB era ocupado por engenheiros militares, cartgrafos, advogados e historiadores. A criao do curso de formao de profe