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COMO A IDADE MWIA TRATOU O LEGADO ARISTOTIUCO 1101 6. Como a Idade Média tratou o legado aristotélico Muitos dos princípios e conceitos aristotélicos descritos no capitulo 4 foram mantidos na Idade Média. Esses conceitos - elemento, composto, matéria, forma, doutrina dos contrários, quatro tipos de mudança, incorruptibilidade celeste e outros - eram demasiado fundamentais para serem abandonados ou mesmo alterados de forma significativa. Contudo, numerosos outros argumen- tos e ideias de Aristóteles foram modificados consideravelmente e, por vezes, substituídos no seu todo. As transformações mais significativas na filosofia natural aristotélica durante a Baixa Idade Média, sob o ponto de vista da histó- ria da ciência, deram-se no modo como tratava o movimento. Aqui, os desvios foram verdadeiramente dramáticos. As explicações de Aristóteles relativas ao movimento natural e violento foram em grande parte abandonadas, em espe- cial as respeitantes ao movimento violento. Um desvio notável foi o que ocorreu em relação à formulação básica aris- totélica, descrita no capítulo 4. Vimos que, para Aristóteles, Voe F/R, em que V é a velocidade, F a força motriz e R a resistência total oposta à força apli- cada, uma quantidade que, presumivelmente, inclui o sujeito ou o corpo resistente mais a resistência do meio externo em que o movimento se dá. Para duplicar V, R podia ser reduzida a metade e F mantida constante; ou F dupli- cada e R mantida constante. Para reduzir Va metade, F podia ser reduzida a metade e R mantida constante; ou R duplicada e F mantida constante. Aristó- teles compreendeu que, ao reduzir a metade uma velocidade, F poderia ser reduzida ao ponto de ser menor do que R e, consequentemente, incapaz de imprimir o movimento. Nestas circunstâncias, insistiu em que as regras do movimento deixavam de se aplicar e que o movimento cessaria de imediato. Os seus críticos entenderam que, para preservar a sua lei do movimento, Aristóteles aceitara uma descontinuidade entre o processo físico e a função matemática contínua. Argumentaram que, ao reduzir a metade qualquer velocidade, a força, F, podia ser sucessivamente reduzida a metade, ou R podia ser sucessivamente duplicada, até que F fosse igual a ou menor do que R, altura em que se tornava evidente que o movimento cessaria. E, no entanto, em termos matemáticos, a função aristotélica V oe F/R indica uma velocidade positiva, porque F/R é representado por uma fracção, por mais pequena que seja. A postura de Aristóteles parecia obrigar os seus apoiantes

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COMO A IDADE MWIA TRATOU O LEGADO ARISTOTIUCO 1101

6. Como a Idade Média tratou o legado aristotélico

Muitos dos princípios e conceitos aristotélicos descritos no capitulo 4 foram

mantidos na Idade Média. Esses conceitos - elemento, composto, matéria,

forma, doutrina dos contrários, quatro tipos de mudança, incorruptibilidade

celeste e outros - eram demasiado fundamentais para serem abandonados ou

mesmo alterados de forma significativa. Contudo, numerosos outros argumen­

tos e ideias de Aristóteles foram modificados consideravelmente e, por vezes,

substituídos no seu todo. As transformações mais significativas na filosofia

natural aristotélica durante a Baixa Idade Média, sob o ponto de vista da histó­

ria da ciência, deram-se no modo como tratava o movimento. Aqui, os desvios

foram verdadeiramente dramáticos. As explicações de Aristóteles relativas ao

movimento natural e violento foram em grande parte abandonadas, em espe­

cial as respeitantes ao movimento violento.

Um desvio notável foi o que ocorreu em relação à formulação básica aris­

totélica, descrita no capítulo 4. Vimos que, para Aristóteles, Voe F/R, em que

V é a velocidade, F a força motriz e R a resistência total oposta à força apli­

cada, uma quantidade que, presumivelmente, inclui o sujeito ou o corpo

resistente mais a resistência do meio externo em que o movimento se dá. Para

duplicar V, R podia ser reduzida a metade e F mantida constante; ou F dupli­

cada e R mantida constante. Para reduzir Va metade, F podia ser reduzida a

metade e R mantida constante; ou R duplicada e F mantida constante. Aristó­

teles compreendeu que, ao reduzir a metade uma velocidade, F poderia ser

reduzida ao ponto de ser menor do que R e, consequentemente, incapaz de

imprimir o movimento. Nestas circunstâncias, insistiu em que as regras do

movimento deixavam de se aplicar e que o movimento cessaria de imediato.

Os seus críticos entenderam que, para preservar a sua lei do movimento,

Aristóteles aceitara uma descontinuidade entre o processo físico e a função

matemática contínua. Argumentaram que, ao reduzir a metade qualquer

velocidade, a força, F, podia ser sucessivamente reduzida a metade, ou R

podia ser sucessivamente duplicada, até que F fosse igual a ou menor do que

R, altura em que se tornava evidente que o movimento cessaria. E, no

entanto, em termos matemáticos, a função aristotélica V oe F/R indica uma

velocidade positiva, porque F/R é representado por uma fracção, por mais

pequena que seja. A postura de Aristóteles parecia obrigar os seus apoiantes

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1021 os FUNDAMENTOS DA C!~NCIA MODERNA NA IDADE MWIA

quer à posição fisicamente absurda de que qualquer força, por menor que

seja, poderia mover qualquer resistência, por maior que esta fosse, quer a uma

representação matemática que continuava a registar velocidades depois de ser fisicamente impossível produzi-las.

Para evitar este dilema, Thomas Bradwardine (ca. 1290-1349), em 1328,

propôs uma nova relação matemática baseada na proporcionalidade geomé­

trica, que veio a ser conhecida por "razão de razões". Nesta nova função, ou

"lei do movimento", para reduzir a metade uma velocidade produzida por

uma razão da força pela resistência, era necessário extrair a raiz quadrada da

razão F/R, ou (F/R)lI2. Nesta abordagem, se F é inicialmente maior do que R e

o movimento se verifica, F não poderia tornar-se igual a, nem menor do que,

R, porque a redução de V a metade deixa de ser conseguida pela redução a

metade de F ou duplicação de R. Para reduzir urna velocidade a um terço,

seria necessário extrair a raiz cúbica de F/R, ou (F/R)I!3, e assim sucessiva­

mente. A duplicação ou triplicação de velocidades era conseguida elevando

F/R ao quadrado ou ao cubo, ou seja, gerando uma razão igual a (F/R)2 ou

(F/R)3, respectivamente. Assim, já tal não era conseguido duplicando ou tri­

plicando apenas F, ou reduzindo a metade ou a um terço apenas R.

Nas razões descritas no parágrafo anterior, R, ou resistência, incluía tanto

o peso do corpo posto em movimento como o meio resistente através do qual

o corpo se movia. Uma crítica ainda mais importante desenvolveu-se a pro­pósito do conceito aristotélico de meio resistente. Num plenum, que papel

desempenhava a matéria que preenchia o mundo sublunar? Seria essencial

para o movimento ou seria o movimento possível sem ela? Encontrava-se

aqui um problema formidável que, aliás, já prendera a atenção de comenta­dores anteriores.

Região terrestre

Muito antes de a ciência física aristotélica alcançar o Ocidente Latino nos séculos XII e XIII, já os comentadores gregos e árabes tinham produzido um corpus literário em que o movimento local era muito discutido. Por vezes eram levantadas críticas significativas e postas em questão certas opiniões de Aristóteles, como quando João Filopão, um comentador grego do século VI d. c., contestou o papel que Aristóteles atribuíra ao meio externo. Filopão não só negou a necessidade de um ~el0 resistente ao movimento local, como tam­bém rejeitou a ideia do meio externo, principalmente o ar, como agente ou causa de movimento violento, sugerindo em seu lugar uma força impressa,

COMO A IDADE MWIA TRATOU O LEGADO ARISTOT~LlCO 1103

incorpórea. Os comentadores árabes, familiarizados com as obras de alguns dos

comentadores gregos, trabalhavam e ampliavam com frequência essas ideias, algumas das quais alcançaram a Europa da Idade Média em traduções latinas. Averróis, por exemplo, transmitiu uma breve crítica antiaristotélica de Avem­pace (a forma latinizada de lbn Badjdja), um árabe que viveu na Espanha e

morreu em 1138, tendo possivelmente sido influenciado por Filopão. No seu comentário à Física de Aristóteles, Averróis relata que Avempace

negou a tese de Aristóteles de que o tempo de queda de um corpo é directa­mente proporcional à densidade e, por conseguinte, à resistência do meio

externo através do qual cai. A tese de Aristóteles seria verdadeira, argumentou Avempace, apenas se o tempo necessário para o movimento de um lugar para outro se devesse unicamente à capacidade. resistiva do meio interposto. Neste

ponto crucial, o próprio Aristóteles proporcionou a Avempace um poderoso contra-argumento. Apesar de a sua observação lhe demonstrar que tanto pla­netas e estrelas como corpos terrestres não se movem instantaneamente de um lugar para outro, Aristóteles insistira também em que os corpos celestes se

movem sem esforço através de um éter celeste não resistente. Dado que a observação mostrava que os planetas se moviam nos céus com movimentos periódicos diferentes, concluía-se que velocidades planetárias finitas diferen­

tes podiam ocorrer sem a resistência activa de um meio. Avempace concluiu não só que um meio resistente não era essencial para a ocorrência de movi­mento, mas também que a única função de um meio material era a de retardar

o movimento. O movimento observável de um corpo num meio é um movi­mento retardado devido à resistência do meio. Daí, Avempace inferiu que, na ausência de um meio resistente, um corpo cairia necessariamente com um movimento, natural mais rápido. Esta velocidade hipotética não obstruída seria

reduzida em proporção ao retardamento causado pela resistência do meio. A imprecisão das considerações de Avempace - ou, talvez mais correcta­

mente, a imprecisão do registo feito por Averróis das suas considerações -

tornou impossível a determinação do movimento observável. Avempace não sugeria quais os meios a utilizar para medir o movimento num meio sem resistência, ou vácuo. Deveria ser medido pelo peso do corpo, pelas suas

dimensões, por uma energia intrínseca ou de outro modo qualquer? Como iria precisamente a resistência total do meio retardar o movimento natural e produzir a velocidade final de um movimento observável? Como deveria essa resistência ser medida? Só quando, no século XVI, Giovanni Battista Bene­

detti e Galileu adoptaram posições similarmente antiaristotélicas se fez um esforço genuíno no sentido de encontrar uma medida objectiva para a resis­

tência de um meio.

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1041 os FUNDAMENTOS DA Cli!:NCIA MODERNA NA IDADE MllDIA

Pouco depois de as obras de Averróis ficarem disponíveis em tradução

latina, a critica de Avempace tornou-se mais conhecida, dando origem a uma

controvérsia. São Tomás de Aquino (1225-1274) foi um dos primeiros a con­

siderá-la. Embora não mencionasse de forma directa Avempace, a sua argu­

mentação sucinta contra Aristóteles e Averróis não deixou dúvidas quanto ao

seu ponto de vista favorável a Avempace. Como prova empírica de que o

movimento num meio sem resistência seria finito, São Tomás de Aquino

retomou o modo como Avempace explicara o movimento através do éter

celeste, uma explicação que depressa se tornou um lugar comum. Mas a razão também nos diz que o movimento através do vácuo seria finito e sucessivo,

porque o espaço vazio, em não menor grau que o espaço preenchido com

matéria, é uma grandeza dimensional extensa. Para se mover de um determi­

nado ponto para outro, um corpo tem de atravessar o espaço intermédio,

cheio ou vazio. Para o fazer, terá de passar primeiramente pelas partes do

espaço que estão mais próximas do ponto de partida, antes de atingir aquelas

que estão mais longe dele. Se um corpo pudesse mover-se deste modo através

de um vácuo, alguns autores escolásticos sugeriram que, em virtude da sua

extensão, o próprio vácuo funcionava como uma resistência, dado que o seu

propósito é obrigar um corpo a mover-se de um ponto para outro num inter­

valo de tempo finito. As tentativas para conceber o espaço vazio como uma

resistência simplesmente porque os vazios eram tridimensionais e podiam ser

atravessados sequencialmente não tiveram êxito. Ao que parece, os filósofos

naturais tinham relutância em acreditar que o puro vazio pudesse funcionar

como uma resistência tisica, da mesma forma que o ar ou a. água. Contudo,

em termos puramente espaciais e temporais, dir-se-ia que o movimento no

vácuo podia ser finito e também sucessivo, ao invés de infinito e instantâneo

como pretendera Aristóteles. Cinematicamente, pelo menos, o movimento

num vácuo era inteligível e parecia realizável.

Causas do movimento

No mundo fisico aristotélico, os corpos não se limitavam a mover-se no

espaço e no tempo. Os seus movimentos tinham de ser explicados causal­

mente. Poderia o movimento em espaços vazios ser explicado pelos habituais

princípios dinâmicos associados aos movimentos comuns dos corpos tisicos?

Se um corpo real fosse colocado num vácuo real, supondo que este existia,

erguer-se-ia ou cairia com movimento natural? Se fosse lançado para longe,

COMO A IDADE MÉDIA TRATOU O LEGADO ARlSTOTUICO 1105

ou para fora, do seu lugar natural, poderia mover-se com um movimento vio­

lento, contínuo? Embora Aristóteles tivesse repudiado a possibilidade de

movimento num vácuo e não pudesse proporcionar directrizes aos que levan­

tavam tais questões, a resposta medieval não deixou, no entanto, de ser for­

mulada tendo em conta os princípios aristotélicos. Os filósofos naturais pres­

supuseram, pois, que o que quer que se mova é movido por uma entidade

distinta, independente e identificável, e que cada movimento implica a acção

de uma força operando contra uma resistência. Se o próprio vácuo não podia

representar qualquer papel, quer como força motriz, quer como resistência,

que poderia desempenhar essas funções? Que poderia ser identificado como

força motriz e que poderia ser identificado como resistência?

Resisth!cia interna e movimento natural num vácuo. A solução, no que se

refere ao movimento natural, seguiu-se à introdução, por volta do final do

século XIII ou principio do século XIV, de um novo conceito: resist~ncia

interna. Isto tornou-se possivel graças a uma nova interpretação da noção

aristotélica de um corpo misto, ou composto. Aristóteles distinguiu corpos

elementares puros (terra, ar, água e fogo), os quais eram meras entidades

hipotéticas, nunca verdadeiramente observadas na natureza, e corpos com­

postos ou mistos, que eram misturas, em proporções variadas, de todos os

quatro elementos, sendo estes os corpos realmente observados na natureza.

Aristóteles defendeu que, em cada corpo misto, um dos elementos seria

dominante e determinaria o seu movimento natural, isto é, determinaria se o

corpo se ergueria ou cairia naturalmente. Embora esta interpretação se tenha

mantido aceitável para muitos durante a Idade Média, outros vieram a acredi­

tar não só que um corpo misto podia ser composto de dois, três ou quatro

elementos, mas também que um elemento predominante não determinava o

seu movimento natural. Mais propriamente, a força total dos elementos leves

opunha-se à força total oposta dos elementos pesados. Se a leveza predominasse,

dai resultaria um movimento ascendente; se predominasse o peso, ter-se-ia um

movimento descendente. Nos corpos mistos, os elementos leves e pesados

eram concebidos como se fossem compostos de partes ou graus. Um somató­

rio das partes revelaria a predominância de qualidades motoras pesadas ou

leves e determinaria assim o sentido do movimento natural. Quanto maior a

razão entre as partes pesadas e as leves, mais aumentaria a velocidade descen­

dente; de igual modo, a velocidade ascendente aumentaria à medida que

aumentasse a razão de elementos leves para pesados.

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106 I os FUNDAMENTOS DA CIIlNCIA MODERNA NA IDADE MIlDIA

A partir desta interpretação, não era difícil dar o passo seguinte em direc­

ção ao conceito de resistência interna. Posto que, pela sua própria natureza,

os elementos pesados e leves se movem em sentidos contrários, e uma vez que

se desenvolvera a prática de atribuir graus a cada um dos elementos num com­

posto, o passo seguinte foi conceber o peso e a leveza como forças, ou qualida­

des, agindo em oposição dentro do mesmo corpo misto. A qualidade -leve ou

pesada - com o maior número de graus era designada como força motriz, fun­cionando a sua oposta como resistência. Assim, se dois corpos mistos fossem

comparados, e se num deles o peso excedesse a leveza na razão de oito para três

e no outro a excedesse em oito para cinco, seria razoável pressupor que, no

mesmo meio externo, o corpo com menos graus de leveza cairia com mais velo­

cidade. Isto explicava-se pelo facto de o corpo cujo movimento era mais rápido

ter menos leveza, ou resistência interna. Se ambos os corpos tivessem graus

iguais de leveza e as suas velocidades descendentes fossem diferentes, concluir­

-se-ia que o corpo de movimento descendente mais rápido tinha mais graus de

peso. Em termos gerais, num corpo em queda, o peso era identificado com a

força motriz e a leveza com a resistência; num corpo em ascensão, a leveza

actuava como força motriz e o peso como resistência. Dado que todos os corpos físicos potencialmente observáveis da região

sublunar eram corpos mistos, a resistência interna podia explicar o movi­

mento terrestre natural. Porém, era particularmente útil para justificar o

movimento num vazio hipotético, pois as condições prévias do movimento

estavam agora presentes, nomeadamente uma força motriz e uma resistência.

Na ausência de um meio resistente, como num vácuo, a resistência interna de

um corpo impediria uma velocidade instantânea. Dado que cada corpo misto

continha em si próprio a sua força motriz e a sua resistência, podia mover-se

em espaços vazios. Mas e quanto aos corpos elementares puros? Embora, como já notámos,

esses corpos hipotéticos não se encontrassem na natureza, os escolásticos con­

tinuavam a perguntar se os corpos hipotéticos se poderiam mover num

vácuo. Dadas as circunstâncias, a conclusão era óbvia: não podiam. Num

corpo elementar puro não existia a resistência interna no sentido descrito

para os corpos mistos. E dado que não podia haver resistência externa num

vazio, não era possível uma razão entre força motriz e resistência. Decorria

daí que o movimento de um corpo elementar num vácuo teria velocidade

infinita. Os corpos elementares puros, não mistos, tais como ar, água e terra,

só poderiam cair com velocidades finitas em meios materiais (um elemento

absolutamente leve, o fogo, não poderia cair através de nenhum meio). Ape­

sar de algumas tentativas esporádicas para conjecturar sobre os meios através

COMO A IDADE MIlDIA TRATOU O LEGADO ARlSTOTl'!UCO 1107

dos quais um corpo elementar se poderia mover com movimento natural

num vácuo, um tal movimento era geralmente considerado irrealizável.

No contexto da física medieval, a resistência interna parecia ser o modo

mais razoável de justificar o movimento natural num vácuo para corpos mis­

tos. Uma vez estabelecido este princípio, dele se deduziu um resultado inte­

ressante e significativo. Thomas Bradwardine, Alberto da Saxónia e outros

concluíram que dois corpos homogéneos de diferentes tamanhos e pesos cai­

riam num vácuo a velocidades iguais. Do ponto de vista da física aristotélica,

para o qual a velocidade é proporcional ao peso, relativo ou absoluto, quanto

mais pesado fosse um corpo, mais aumentaria a sua velocidade, de forma que

esta era uma conclusão surpreendente, uma conclusão só tornada possível

pela pressuposição da homogeneidade material. Dado que todas as unidades

de matéria em cada corpo misto homogéneo são idênticas, cada unidade de

matéria tem necessariamente a mesma razão entre elementos pesados e leves,

isto é, a mesma razão entre a força motriz e a resistência interna, F/R. Embora

um corpo possa conter mais unidades homogéneas iguais de matéria do que

outro e, por conseguinte, ser maior e pesar mais, esses dois corpos cairiam,

mesmo assim, a velocidades iguais; considerava-se que a velocidade era regida

apenas por um factor intensivo, neste caso a razão entre força e resistência

por unidade de matéria, e não por um factor extensivo, tal como o peso total,

como propusera Aristóteles.

Confrontando o mesmo problema mais de duzentos anos depois, Galileu

empregou uma abordagem semelhante (em Sobre o Movimento [De motuJ,

escrito por volta de 1590) ao rejeitar a explicação aristotélica da queda natu­

raL Em vez de uma razão de força para resistência interna por unidade de

matéria, Galileu baseou-se no peso por unidade de volume, ou peso especí­

fico. Argumentou que corpos homogéneos de tamanhos diferentes e, por

conseguinte, de pesos diferentes cairiam com igual velocidade num plenum e

no vazio, embora as suas velocidades respectivas no vazio fossem maiores do

que no meio. Foi levado a esta conclusão por entender que o peso efectivo, ao

contrário do peso bruto, era o motivo fundamental da velocidade. Para Gali­

leu, o peso efectivo era igual à diferença entre o peso específico de um corpo e

o meio através do qual ele cai. Na realidade era uma diferença entre pesos

específicos que determinava as velocidades. A velocidade de um corpo em

queda pode ser representada por V oe peso espedfico do corpo menos peso espe­

dfico do meio; a velocidade de um corpo em ascensão como Voe peso espedfico

do meio menos peso espedfico do corpo. No vazio, onde o peso especifico do

meio é zero, um corpo cairia com uma velocidade directamente proporcional

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1081 os FUNDAMENTOS DA Cll'lNCIA MODERNA NA IDADEMlIDlA

ao seu peso especifico, ou peso por unidade de volume. Obviamente, se os

pesos especificos de dois corpos diferentes forem iguais, os corpos cairão a velocidades iguais no mesmo meio ou no vazio. Galileu estendeu esta lei na

sua obra mais famosa, Discursos e Demonstrações Matemáticas sobre Duas

Novas Ciências (Discorsi e Dimostrazione Matematiche, intorno à due nuove

scienze) (1638), onde declarou que todos os corpos, qualquer que fosse o seu

tamanho e composição material, cairiam a velocidades iguais num vácuo,

uma generalização que iria tornar-se parte integrante da tisica newtoniana. A semelhança de abordagem e as conclusões quase idênticas a que chega­

ram Galileu e os seus predecessores medievais são extraordinárias, mas talvez

sejam apenas uma coincidência. Se bem que Galileu possa ter tido conheci­mento das discussões medievais, não existe qualquer prova específica que

fundamente essa hipótese. Na realidade, onde os aristotélicos medievais expli­

cavam o sentido do movimento em termos de leveza e peso absolutos funcio­nando como qualidades motoras, Galileu apoiava-se na relação entre o peso

do corpo e o peso do meio. Deixara de ser necessário distinguir o comporta­mento de corpos elementares simples ou puros do comportamento de corpos

mistos. A opinião medieval, geralmente aceite, de que só certos corpos (mis­tos) podiam cair a uma velocidade finita num espaço vazio hipotético, e que

todos os outros (corpos elementares puros) não podiam, passou a ser total­

mente destituída de sentido na tisica de Sobre o Movimento de Galileu. Ao aceitar o conceito fundamental de peso específico, Galileu encarou de igual

modo todos os corpos, independentemente da composição, e concluiu que todos os corpos podiam cair ou mover-se tanto no vazio como num plenum.

Com Galileu, as grandezas homogéneas arquimedianas substituíram os cor­

pos mistos elementares e pesados da Baixa Idade Média. A inadequação desta dicotomia para a análise do movimento de Galileu e ; rejeição das noções de

peso e leveza absolutos retiraram qualquer significado ao conceito de resistên­cia interna. Esta, que fora invocada na Idade Média a fim de permitir uma

explicação em termos dinâmicos do movimento finito no vácuo, dependia

das tendências contrárias de elementos leves e pesados num corpo misto. No movimento descendente, peso e leveza funcionavam como força motriz e

resistência interna, respectivamente. No movimento ascendente, as suas fun­ções eram invertidas. Para Galileu, contudo, não era a resistência, nem

interna nem externa, que produzia uma velocidade finita num vácuo; no

vácuo a velocidade de um corpo em queda seria directamente proporcional ao seu peso específico. A força e a resistência externa de um meio, que era

apenas um factor, eram medidas objectivamente pelo peso específico. Embora o peso específico viesse a revelar-se inadequado como forma de explicar a

COMO A IDADE Mf.DIA TRATOU O LEGADO ARISTOTllLlCO 11.,

queda livre, o seu uso nos finais do século XVI por Galileu, e um pouco antes por Giovanni Battista Benedetti, representou um avanço relativamente às

vagas noções de força e resistência que prevaleceram na Idade Média. Mas as teorias medievais ofereceram orientações novas e importantes relativamente

às ideias que tinham penetrado na Europa Ocidental. Constituíram esforços para dar solução a aspectos da física aristotélica antes negligenciados e tentati­

vas interessantes para chegar a explicações mais generalizadas e abrangentes.

A descrição de Galileu, mais consistente e simplificada, do movimento no vácuo e no plenum não deve, no entanto, obscurecer o facto histórico de que

ele herdou a própria ideia da inteligibilidade do movimento finito num vácuo de uma tradição que remonta directamente à Idade Média Latina, a Avem­

pace e, ainda antes, a Filopão. Certo é que, indirectamente, Galileu não dei­

xou de o reconhecer. Foi a partir dessa tradição antiaristotélica que ele dedu­ziu a ideia de que um meio resistente é apenas um factor de retardamento na

queda dos corpos, cujos movimentos reais naturais só ocorrem num vácuo, ainda que esse vácuo seja hipotético.

Ao concluir que os corpos homogéneos çaem com velocidades iguais num

vácuo e estendendo essa conclusão a todos os corpos, independentemente da sua composição, Galileu estava a estabelecer uma nova lei da fisíca. Os seus pre­

decessores medievais chegaram à mesma conclusão relativamente aos corpos homogéneos, mas não a levaram mais longe. Terá esta consequência impor­

tante tido alguma repercussão significativa para o estudo do movimento na filosofia natural medieval? Tal como noutras situações em que se afastaram de

Aristóteles, esta parece ter tido muito pouco efeito. Nunca ocorreu aos filósofos naturais medievais investigar as suas possíveis implicações em outros aspectos da filosofia natural aristotélica, uma atitude que era, aliás, típica da época.

Movimento violento num vácuo e teoria do impetus. Em contraste com as

longas e numerosas discussões sobre a possibilidade de movimento natural num vácuo, a possiblidade de movimento violento quase não foi considerada.

A dificuldade do problema era enorme porque nenhum dos dois aspectos essenciais ao movimento violento, nomeadamente a força motriz externa e a

resistência externa, estava presente num vácuo. Na ausência de um meio

físico, por exemplo o ar ou a água, não era possível invocar qualquer força motriz ou resistência externas, como na explicação aristotélica do movimento

violento. Leveza e peso, que funcionavam como força interna e resistência nos corpos mistos sujeitos ao movimento natural, de pouca utilidade se revestiam

no que respeitava ao movimento violento. Um corpo misto em que predo­

mine o peso tem, por definiçãO, de ser movimentado para cima (afastando-se

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r' !

110 I os FUNDAMENTOS DA ClBNCIA MODERNA NA IDADE MeDIA

do seu lugar natural) no movimento violento, ou na horizontal, pelo que o seu

peso enquanto qualidade dominante não podia actuar como uma força motriz.

Para além de negar a possibilidade de movimento violento num vácuo, a única

resposta racional consistente com os princípios físicos medievais é a que está

consubstanciada numa tese de Nicolau Boneto (f. ca. 1343), onde se pode ler

que "num movimento violento alguma forma não permanente e efémera é

impressa ao móvel pelo que o movimento num vácuo é possível enquanto essa

forma permaneça; mas logo que desapareça, o movimento cessa". 1

Nesta passagem, Boneto faz referência a uma força impressa, um dos mais

importantes conceitos físicos utilizados na Idade Média e que surgira séculos

antes a partir de uma divergência relativamente à explicação aristotélica do

movimento violento. Já na Baixa Antiguidade, fora atacada a proposta de

Aristóteles do ar externo como a força motriz continua no movimento vio­

lento. João Filopão observou que se o ar em contacto directo com um objecto

podia provocar e manter o movimento desse corpo durante algum tempo,

como Aristóteles pressupunha, então devia ser possivel, por exemplo, pÔr

uma pedra em movimento pelo simples processo de agitar o ar atrás dela. Na

medida em que isto era contrário à experiência, Filopão rejeitou o ar como

força motriz e, em vez disso, sugeriu que urna força motriz incorpórea, trans­

mitida por um motor inicial a uma pedra, ou a um projéctil, era a causa que

permitia à pedra continuar em movimento. Com a força impressa funcio­

nando corno força motriz e a pedra, ou objecto, funcionando como resistên­

cia, estavam encontrados os requisitos do movimento violento. Neste pro­

cesso, a contribuição do ar circundante era pouco ou nada relevante. Aliás,

seria até um obstáculo ao movimento contínuo. Filopão concluiu que o

movimento violento ocorreria com mais facilidade num vácuo do que num

plenum, porque naquele não haveria nenhuma resistência exterior a impedir a

acção da força impressa.

A explicação de Filopão foi levada mais longe por autores islâmicos, entre

os quais a força impressa era conhecida por mail (inclinação ou tendência).

Um dos principais proponentes da teoria do mail foi Avicena, que concebeu o

mail como um instrumento da força motriz original. O mail era susceptível

de continuar a acção num corpo depois de a força motriz original ter cessado

de actuar. Avicena distinguiu três tipos de mail: psíquico, natural e violento.

Deixando de parte o primeiro, que não é relevante para o nosso estudo, o

mail natural e o mail violento destinavam-se a proporcionar explicações cau­

sais para os correspondentes tipos de movimento distinguidos por Aristóteles.

De acordo com Avicena, um corpo era susceptível de receber mail violento na

COMO A IDADE MeDIA TRATOU O LEGADO ARISTottuco 1111

proporção do seu peso. Isto explicava, por exemplo, por que motivo uma

pequena bola de chumbo pode ser atirada a uma distância maior do que um

pedaço de madeira leve ou uma pena. Ontologicamente, Avicena concebeu o

mail como uma qualidade permanente que, na ausência de resistências exter­

nas, se manteria num corpo indefinidamente. Concluiu pois que, se um

corpo fosse movido violentamente num vácuo de extensão ilimitada, o seu

movimento seria de duração ilimitada, porque não haveria razão para se imo­

bilizar, uma conclusão a que também Aristóteles chegara (sem para tal invo­

car forças impressas), e que o levara, entre outras razões, a rejeitar a existência

do espaço vazio. Não tendo encontrado provas de que movimentos desse tipo

existissem, Avicena negou também a existência de espaço vazio.

No século seguinte, Abu'l Barakat (f. ca. 1164) propôs um tipo diferente de

mail, um que se autodissipava, o que foi mais tarde descrito por Nicolau

Boneto. Assim, mesmo num vácuo, um corpo em movimento violento acabaria

eventualmente por parar em virtude da exaustão natural e inevitável da sua

força impressa, uma consequência que não podia ser usada como argumento

sério contra a existência do vazio. Os autores árabes tinham pois descrito duas

formas diferentes de força impressa ou impetus. Uma podia apenas ser des­

truída por forças e obstáculos exteriores, noutras circunstâncias sendo perma­

nente; a outra era transitória e autodissipativa, diminuindo gradualmente com

o tempo, mesmo na ausência de forças externas. Forças correspondentes a estes

dois tipos de força impressa acabariam por surgir no Ocidente Latino. Não há

certeza se foram transmitidas através das traduções latinas de obras árabes ou se

foram desenvolvidas independentemente no Ocidente Latino.

A teoria da força impressa era já conhecida no século XIII, dado que

alguns autores latinos, tais como Roger Bacon e São Tomás de Aquino, rejei­

taram a ideia de que o movimento continuo violento de um corpo pudesse

ser atribuído a uma força incorpórea impressa. Contudo, só no século XN se

tornaram populares formulações da teoria da força impressa, principalmente

em Paris. Já em 1323, Francisco de Marchia propÔs uma versão em que a

força incorpórea impressa, ou virtus derelicta (força abandonada), como a

designou, era uma força autodissipativa temporária susceptível de mover um

corpo contrariamente à sua tendência natural. Neste processo, o ar conti­

nuava a desempenhar urna função secundária, pois, segundo Francisco, o ar

que rodeava o corpo recebia também uma força impressa que lhe permitia

auxiliar o movimento do corpo.

A teoria mais bem formulada foi a apresentada por Jean Buridan, que terá

sido igualmente responsável pela introdução do impetus como designação

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1121 os FUNDAMENTOS DA CIJ':NCIA MODERNA NA IDADEM~DIA

técnica de força incorpórea impressa. Buridan considerou o impetus como

uma força motriz transmitida do motor inicial ao corpo posto em movi­

mento. A velocidade e a quantidade de matéria de um corpo eram considera­

das como medidas da intensidade do impetus produtor do movimento. A par­

tir do pressuposto correcto de que há mais matéria num corpo pesado e

denso do que num corpo leve, mais rarefeito, com o mesmo volume e forma,

Buridan concluiu que se um pedaço de ferro e um pedaço de madeira, de

forma e volume iguais, fossem postos em movimento à mesma velocidade, o

ferro percorreria uma distância maior, porque a sua maior quantidade de

matéria poderia receber mais impetus e mantê-lo durante mais tempo contra

resistências externas. Foi assim que Buridan tomou a quantidade de matéria e

a velocidade como meios de determinar o valor do impetus. Foram estas mes­

mas quantidades que definiram o momento na física de Newton, embora aqui

o momento fosse geralmente concebido como uma quantidade de movi­

mento, ou a medida do efeito do movimento de um corpo, ao passo que o

impetus era uma causa de movimento. Na realidade, o impet:us foi encarado

como uma interiorização da força motriz externa de Aristóteles. Parecia ser a

melhor forma de aderir à máxima do próprio Aristóteles segundo a qual tudo

o que se move, move-se por efeito de outra coisa.

Tal como Avicena, Buridan atribuiu ao impetus uma qualidade de perma­

nência e pressupôs que duraria infinitamente a não ser que fosse diminuído

ou corrompido por uma resistência externa. A partir do momento em que

um motor transmitisse impetus a um corpo e este se afastasse e perdesse con­

tacto com a força motriz original, não era possível que se produzisse qualquer

impetus adicional na ausência de uma causa identificável. A quantidade inicial

do impetus permaneceria constante desde que não fossê corrompida por resis­

tências externas agindo sobre o corpo, ou pela tendência natural do corpo

para se mover em direcção ao seu lugar natural. Buridan sugeria pois que, se

todas as resistências ao movimento pudessem de algum modo ser eliminadas,

um corpo posto em movimento continuaria, presumivelmente, a mover-se

infinitamente em linha recta e a uma velocidade uniforme. Não haveria qual­

quer motivo para que mudasse de direcção ou alterasse a sua velocidade ini­

cial, já que nem sequer a tendência para se dirigir para o seu lugar natural se

faria sentir desde que tudo o que contrariasse o movimento forçado tivesse

sido eliminado. Na verdade, enquanto o impetus produzisse um movimento

violento que afastasse o corpo do seu lugar natural, a tendência de o corpo

se deslocar para o seu lugar natural estaria, presumivelmente, inoperante.

Buridan não chegou a desenvolver esta ideia de uma inércia potencial a partir da

COMO A IDADE mDIA TRATOU O LEGADO ARISTOTeLICO 1113

teoria do impetus, talvez porque a própria ideia de um movimento rectilíneo

infinito sob as condições ideais acabadas de descrever teria parecido absurda

no mundo finito aristotélico. Se ele tivesse imaginado que um tal movimento

rectilíneo infinito era realmente possível, teria com certeza imaginado um

mecanismo que o interrompesse. Na verdade, Buridan evitou dilemas deste

género negando a possibilidade de movimento finito, consecutivo, num

vazio. No entanto, em consequência da Condenação de 1277, admitiu que

Deus poderia originar sobrenaturalmente tais movimentos num vácuo. Se

Buridan tivesse adoptado uma variedade de impetus não permanente, ou

autodissipativo, tal como foi descrito a propósito de Nicolau Boneto e aceite

durante algum tempo por Galileu, poderia ter aceitado o movimento num

vazio hipotético. Com um impetus não permanente, o movimento num vazio

só poderia ter duração finita.

Se bem que o çonceito de um movimento rectilíneo infinito e uniforme -

um ingrediente essencial do princípio da inércia fosse incompatível com a

física medieval, o impetus permanente de Buridan possuía características e pro­

príedades das quais era possível deduzir esse movimento. Antes de conceber a

inércia como uma força interna que permitia aos corpos resistirem a altera­

ções ao seu estado de repouso ou de movimento rectilíneo uniforme (a ideia

de que repouso e movimento rectilíneo uniforme são estados idênticos de um

corpo nunca foi sugerida na Idade Média, período em que repouso e movi­

mento eram considerados atributos, ou estados, contrários), Newton conce­

bera a inércia quase como Buridan concebera o impetus, nomeadamente,

como uma força interna que, na ausência de forças externas ou resistências,

seria a causa de um movimento rectilíneo infmito.

De modo semelhante ao dos anteriores teóricos islâmicos do mail, Buri­

dan serviu-se também do impetus para explicar a aceleração,. dos corpos em

queda. Em toda a história da física até Galileu, o problema da queda era tra­

tado de duas maneiras diferentes: a primeira consistia em explicar a causa da

queda sem considerar a sua suposta aceleração; a segunda levava em linha de

conta a aceleração. Já se fez referência atrás que Aristóteles sugeriu que o

gerador de uma coisa era a causa da sua queda natural mas, em discussões

subsequentes considerou o peso como determinante da velocidade uniforme

descendente de um corpo pesado. A aceleração do corpo foi virtualmente

ignorada. No Ocidente Latino da Idade Média, alguns autores identificaram a

forma substancial de um corpo como a causa da sua queda, enquanto outros,

particularmente no século XIV, consideraram o peso de um corpo como a

causa primeira da queda. Por vezes, para incluir a aceleração, era acrescentada

uma segunda causa, totalmente distinta.

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1141 os FUNDAMENTOS DA C~NCIA MODERNA NA IDADE M~DIA

Buridan abordou o problema da seguinte forma. Dado que o peso de um

corpo se mantinha constante enquanto caía, identificou o peso do corpo, ou

gravidade (gravitas), como a causa da sua queda natural uniforme. Depois de

eliminar algumas causas possíveis da aceleração, frequentemente discutidas

(tais como a proximidade em relação ao lugar natural, rarefacção do ar pelo

calor produzido pelo corpo em queda e o decréscimo da resistência do ar à

medida que o corpo descia), Buridan explicou a aceleração através de aumen­

tos acumulados do impetus. O peso de um corpo não só iniciava a sua queda

como produzia também um aumento do impetus, ou "peso acidental", como

era por vezes chamado, em cada instante sucessivo. Os aumentos sucessivos e

cumulativos do impet'.lS geravam depois aumentos de velocidade sucessivos e

cumulativos, produzindo assim um movimento acelerado.

Neste processo da queda podemos distinguir três elementos: (1) peso do

corpo, P; (2) impetus, I; e (3) velocidade, V. Inicialmente, Ií.o fim do primeiro

instante de tempo, At, o peso, P, produz uma velocidade inicial, V. Durante o

mesmo intervalo de tempo, o peso do corpo, que permanece constante, produz

simultaneamente uma quantidade de impetus, I, que actuará no segundo inter­

valo de tempo e produzirá um aumento de velocidade, ~ V. Assim, no final do

segundo intervalo de tempo, 2 At, o peso do corpo e o aumento do impetus, P + I, provocam um aumento da velocidade do corpo para V + ~ V. Durante o

segundo intervalo de tempo, 2 At, é gerado um segundo aumento do ímpetus que

se acrescenta ao primeiro. Por conseguinte, no intervalo de tempo 3 At, P + 21

produzirão uma velocidade V + M V. No quarto intervalo, P + 31 aumentarão a

velocidade para V + 3~ V, e assim sucessivamente. A exposição de Buridan

ajusta-se com precisão à tradição aristotélica, dado que a força é sempre pro­

porcional à velocidade e não à aceleração, como seria na-fisica newtoniana. Isto

é óbvio pois cada aumento da velocidade é precedido de um aumento propor­

cional do impetus. Assim, se depois de a força P + 31 ter produzido V + 3~ V não fossem adicionados mais incrementos de impetus, a velocidade permanece­

ria constante e igual a V + 3~ V e proporcional à força, agora constante, dada

por P + 1. Só se o peso fosse encarado como uma força motriz constante produ­

zindo directamente incrementos de velocidade, em vez de incrementos de

impetus, se poderia defender que Buridan chegara a algo de semelhante ao con­

ceito de uma força proporcional à aceleração. Mas há pouca justificação para

esta interpretação - o peso do corpo deverá primeiramente produzir um

aumento do ímpetus antes que possa ser gerado um aumento proporcional da

velocidade. A relação entre peso visto como uma força motriz constante e o

aumento da velocidade é, na melhor das hipóteses, indirecta.

COMO A IDADE ~DIA TRATOU O LEGADO ARISTOT~LICO 1115

Apesar de alguma oposição, as teorias da força impressa exerceram uma

continua influência até ao século XVI, quando o próprio Galileu se tornou

seu entusiástico defensor no início da sua carreira na Universidade de Pisa.

Na obra Sabre a Movimenta, a qual permaneceu por publicar durante a sua

vida, Galileu tentou explicar o movimento forçado ascendente e a subse­

quente aceleração descendente dos corpos pesados. Como base da sua

explicação, adoptou a ideia de uma força residual, que colheu em Hiparco

(f. depois de 127 a. C.), cujos pontos de vista vinham descritos no Comentário

a sabre as Céus de Arist6teles, um tratado de Simplício bastante conhecido na

Idade Média. A esta ideia acrescentou Galileu o mecanismo de uma força

impressa autodissipativa e incorpórea, ou impetus, que terá colhido, em última

análise, em fontes medievais. Inicialmente, o motor transmite uma força

impressa a uma pedra que é lançada para cima. À medida que a força dimi­

nui, o corpo reduz gradualmente a sua velocidade ascendente até que a força

impressa é contrabalançada pela pressão descendente do peso da pedra,

momento em que a pedra começa a cair, lentamente a principio, e depois

mais depressa, à medida que a força impressa diminui e se dissipa de forma

gradual. A aceleração surge à medida que vai aumentando continuamente a

diferença entre o peso da pedra e o poder decrescente da força impressa.

Assim, na fase descendente do movimento, a força impressa funciona objecti­

vamente como uma resistência. Se o corpo caísse através de uma distância

suficientemente grande, toda a força impressa se desvaneceria, ponto a partir

do qual cairia a uma velocidade uniforme. Consequentemente, Galileu aban­

donou o conceito de uma força impressa autodissipativa e explicou a queda

acelerada por meio de um impetus que é conservado e cumulativo, explicação

que em pouco diferia da de Buridan.

Cinemática do movimento

Os filósofos naturais medievais afastaram-se espantosamente de Aristóte­

les no que se refere à dinâmica, ou às causas do movimento, na medida em

que abandonaram ou alteraram muitas das suas ideias, mas as suas contribui­

ções para a cinemática do movimento terrestre surgiram como desenvolvi­

mentos radicais de ideias que Aristóteles se limitara a sugerir ou, o que é mais

certo, em que nem sequer pensara. No entanto, foi Aristóteles quem primeiro

levantou a questão, a qual veio consequentemente a produzir resultados sig­

nificativos, embora não intencionais.

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1161 os FUNDAMENTOS DA CttNCIA MODERNA NA IDADE MllDIA

Movimento corno quantificação de urna qualidade: intensão e remissão das formas. No Capítulo 8 das Categorias, Aristóteles explicou que a variação gra­dativa não só se encontra entre as qualidades sensíveis mas também nas quali­dades abstractas, tais como a justiça e a saúde (uma pessoa pode ser mais sau­dável ou mais justa do que outra). Sugeriu duas alternativas, sem optar por nenhuma: ou a própria qualidade varia ou - e esta era a opinião geralmente atribuída a Aristóteles durante a Baixa Idade Média - o indivíduo participa em maior ou menor grau de uma qualidade ou forma invariante.

Tendo as Categorias de Aristóteles por base, o problema da variação quali­tativa adquiriu maior significado como resultado de uma questão teológica que foi colocada no século XII por Pedro Lombardo no primeiro livro das suas famosas Sentenças (distinção 17). Pedro Lombardo perguntava "se se deve­ria admitir que o Espírito Santo pudesse ser aumentado no homem, [isto é,j se se poderia ter ou receber [Dele) mais ou menos". Pedro Lombardo insistiu em que a caridade, ou a graça, que dimana do Espírito Santo, não poderia variar nos humanos porque isso implicaria uma alteração no Espirito Santo. A maioria dos teólogos supÔs que a caridade era uma entidade espiritual constante de que os indivíduos podiam possuir mais ou menos em virtude de uma maior ou menor participação nela, uma opinião análoga à tese aristoté­lica de que, embora a justiça permaneça constante, ela varia nas pessoas em virtude da sua maior ou menor participação nela.

Esta teoria pode ser caracterizada como a popular doutrina da participa­ção, adoptada por São Tomás de Aquino. Contudo, seria uma segunda teoria que viria a triunfar. A própria qualidade, não o grau de participação, era con­siderada como a variável. Depois de propostas numerosas variantes desta segunda teoria, uma versão amplamente aceite, associad!1 ao nome de João Duns Escoto (ca. 1265-1308), emergiu no século XIV. Uma qualidade podia ser aumentada pela adição formal de partes semelhantes, novas, reais e distin­tas a uma forma ou qualidade já existente. As partes preexistentes ligar-se-iam às novas partes para constituírem uma forma unificada de intensidade defi­nida. De modo semelhante, as qualidades podiam ser diminuídas pela perda de partes distintas. Nesta abordagem, cada qualidade podia aumentar ou diminuir, como se se tratasse de uma grandeza extensiva ou de um peso. Pre­cisamente do mesmo modo que um peso adicionado a outro peso produzia um peso novo e maior, também a adição de uma porção de uma qualidade a outra aumentaria a intensidade de qualquer qualidade variável.

Embora as qualidades não sejam grandezas em extensão, o tratamento matemático das intensidades das qualidades no século XIV, conhecid,o por "intensão e remissão das formas" ou "qualidades", foi influenciado pela

COMO A IDADE MmIA TRATOU O LEGADO ARISTOTÊUCO 1117

convicção de que tais operações eram conceptualmente significativas. Filóso­fos naturais escolásticos que trataram este tema interessaram-se sobretudo pelos aspectos matemáticos da mudança das qualidades e menos pelos aspec­tos teológicos e ontológicos que, anteriormente, haviam tido a primazia.

Um desenvolvimento significativo ocorreu por volta de 1330, quando o processo de intensão e remissão das formas foi ligado por analogia ao movi­mento, de modo que a velocidade, que era uma entidade sucessiva e não per­manente, passou a ser tratada como uma qualidade permanente mas variável, como a cor ou O sabor. Assim, tal como se pressupunha que uma sucessão de formas de intensidades diferentes explicava o aumento ou a diminuição con­tinuos da intensidade de uma qualidade, também a sucessão de novas posi­ções adquiridas em virtude de um movimento era encarada como uma suces­são de formas representando novos graus da intensidade desse movimento.

Durante o início do séculos XIV, no Merton College (Universidade de Oxford), um grupo de estudiosos ingleses - entre os quais os mais proemi­nentes eram William Heytesbury, John Dumbleton e Richard Swineshead -dedicou-se a tratar variações de velocidade, ou movimento local, do mesmo modo que variações na intensidade de uma qualidade. A intensidade de uma velocidade aumentava com a rapidez, precisamente como a vermelhidão de uma maçã aumentava com a maturação. Durante os trezentos anos seguintes, do século XIV ao século XVI, a analogia entre qualidades variáveis e veloci­dade constituiu um aspecto constante nos tratados sobre intensão e remissão das formas e qualidades. Se bem que o estudo das variações qualitativas per­sistisse durante muito tempo, os desenvolvimentos que daí surgiram e que foram significativos para a história da física foram todos formulados no século XIV, nas Universidades de Oxford e Paris, mas só depois de ter sido abandonado ou ignorado o contexto inicial, teológico e metafísico, em que tais problemas tinham sido originalmente debatidos.

A contribuição medieval centrou-se em definições originais e correctas de velocidade uniforme e movimento uniformemente acelerado. Essas definições foram trabalhadas por Galileu, mas não melhoradas. No Merton College, e um pouco por toda a parte, o movimento uniforme fui definido como aquele em que se percorrem distâncias iguais em quaisquer (ou todos) intervalos de tempo iguais. Tal como Galileu, alguns autores medievais acrescentaram, per­tinentemente, a palavra "quaisquer" a fim de evitar a possibilidade de distân­cias iguais serem percorridos em tempos iguais por velocidades não unifor­mes. Ao generalizarem a definição para quaisquer ou todos os intervalos de tempo, pequenos ou grandes, em que distâncias iguais são atravessadas, con­seguiram a uniformidade de movimento.

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1181 os FUNDAMENTOS DA Cle:NCIA MODERNA NA IDADE MIIDIA

Aplicando a definição de movimento uniforme ao tipo mais simples de

velocidade variável, os estudiosos do Merton College chegaram a uma definição

precisa de aceleração uniforme como um movimento em que um aumento

igual de velocidade ocorre em cada um de quaisquer intervalos de tempo iguais,

independentemente de estes serem grandes ou pequenos. Tentaram também

definir a dificil noção de velocidade instantânea. Na ausência do conceito fun­

damental de um limite de uma razão, que só viria a ser desenvolvido séculos

mais tarde, com o cálculo infinitesimal, definiram a aceleração uniforme em

termos de velocidade uniforme. Assim, a aceleração uniforme foi expressa

como a distância que seria atravessada por um ponto ou corpo em movimento,

se esse ponto ou corpo se movesse uniformemente por um certo período de

tempo com a mesma velocidade que possuía no instante em questão. Embora a

definição seja irremediavelmente circular, na medida em que define "velocidade

instantânea" por uma velocidade uniforme igual à própria velocidade instantâ­

nea que se pretende definir, os estudiosos do Merton College são dignos de

apreço por reconhecerem a necessidade de tal conceito. Galileu utilizou-a sob a

mesma forma. Estes estudiosos não só se ocuparam directamente da velocidade

instantânea, embora de forma inadequada, por definição, como a abordaram

também indirectamente, através das suas definições de movimento uniforme e

uniformemente acelerado, onde está bem implícita a noção de velocidade em

intervalos de tempo infinitesimalmente pequenos.

Graças a uma utilização admirável e genial destas definições, os estudiosos

do Merton College chegaram ao que é hoje conhecido por teorema da veloci­

dade média, talvez a mais marcante contribuição medieval para a história da

física matemática. Em símbolos, pode exprimir-se como S = 1/2V,t, em que S

é a distância percorrida, Vr a velocidade final e t o intervalo de tempo asso­

ciado ao movimento acelerado. Dado que se considera que o movimento é

uniformemente acelerado, Vr at, em que a é a aceleração uniforme, obte­

mos, por substituição s = 1/2 ar, a fórmula habitual para distância percorrida

num movimento uniformemente acelerado a partir da situação de repouso.

Quando, em vez de partir do repouso, o movimento uniformemente acele­

rado se inicia a partir de qualquer velocidade específica Vo' uma situação

frequentemente discutida, a versão medieval pode ser representada como

S [V. + (V,- V.)/21', ou simplesmente S = V.t + 1/2 ar, dado que Vj- V. = ato

As expressões e símbolos matemáticos usados no parágrafo anterior não

existiam na Idade Média. As formulações simbólicas concisas aqui utilizadas

eram expressas retoricamente de um modo que poderia parecer pesado e

prolixo, talvez mesmo incompreensível, para os leitores de hoje. Apresentamos

COMO A IDADE MEDIA TRATOU o LEGADO ARISTOTEUCO 1119

seguidamente um exemplo retirado das Regras para Resolver Sofismas

(Regule solvendi sophismata) de William Heytesbury, uma obra escrita por

volta de 1335:

Porque quer ela seja, a latitude ou o aumento de velocidade]

comece em zero graus quer em algum outro grau [finito], cada lati­

tude, desde que termine num grau finito, e desde que seja adquirida

ou perdida uniformemente, corresponderá ao seu grau médio [de

velocidade]. Assim, o corpo em movimento, adquirindo ou perdendo

essa latitude uniformemente durante algunI determinado período de

tempo, percorrerá uma distância exactamente igual à que percorreria

em igual período de tempo se se movesse uniformemente com o seu

grau médio [de velocidade V A expressão verbal moderna deste importante teorema não pareceria tal­

vez menos difícil e palavrosa do que a versão medieval de Heytesbury. Por

exemplo, poderíamos exprimi-la como segue:

Um corpo, ou ponto, descrevendo um movimento uniformemente

acelerado partindo da situação de repouso, ou de uma situação com

uma velocidade inicial qualquer, percorre uma distância determinada

num determinado intervalo de tempo. Se o mesmo corpo se movesse

durante o mesmo intervalo de tempo com uma velocidade uniforme

igual à velocidade instantânea adquirida no instante médio do seu

movimento uniformemente acelerado, percorreria também uma dis­

tância igual.

Um movimento uniformemente acelerado é assim equiparado a um movi­

mento uniforme, tornando possível exprimir a distância percorrida pelo pri­

meiro em termos da distância percorrida pelo segundo. Durante os séculos XlV

e XV, foram propostas numerosas demonstrações arítméticas e geométricas

deste teorema vital. Entre elas, a mais conhecida é uma demonstração geomé­

trica de Nicole Oresme, formulada por volta de 1350 numa obra intitulada

Sobre as Configurações de Qualidades e Movimentos, de longe o mais original e

abrangente tratamento sobre intensão e remissão das qualidades.

Na Figura 2, tornemos a linha AB como representando o tempo e as per­

pendiculares erguidas a partir de AB como representando a velocidade de um

corpo, Z, partindo da situação de repouso em B e aumentando a sua veloci­

dade uniformemente até uma certa velocidade máxima em AG. A totalidade

das intensidades da velocidade contida no triângulo CBA foi concebida como

representando a distância total percorrida por Z ao deslocar-se de B para C ao

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120 I os FUNDAMENTOS DA CleNCIA MODERNA NA IDADE MeDIA

longo da linha BC no intervalo de AB. Tomemos a linha DE como represen­tando a velocidade instantânea que Z adquire no instante médio do tempo tal como é medido ao longo de AB. Se Z se movesse agora uniformemente com a velocidade que tivesse em DE, a distância total que percorreria ao mover-se de G para F ao longo da linha GF no tempo AB é representada pelo rectângulo AFGB. Se pudermos verificar que a área do triângulo CBA é igual à do rectân­gulo AFGB, ter-se-á demonstrado que um corpo uniformemente acelerado a partir da situação de repouso percorreria a mesma distância que um corpo que se movesse durante o mesmo intervalo de tempo a uma velocidade uni­forme igual à velocidade atingida no instante médio do movimento unifor­memente acelerado. Ou seja, S 1/2 Vjt, a distância percorrida por Z em movi­mento uniforme é igual a 1/2 ar, a distância percorrida por Z num movimento

uniformemente acelerado. Demonstramos que as duas áreas são iguais do seguinte modo: dado que LBEG = LCEF (ângulos verticalmente opostos são iguais), que LBGE = LCFE (são ambos ângulos rectos) e que GE = EF (a linha DE divide a linha GF em duas partes iguais), os triângulos EFC e EGB são iguais (segundo Elementos de Euclides, Livro I, proposição 26). Se a cada um destes triângulos se adiciona a área BEFA para formar o triângulo CBA e o rectângulo AFGB, torna-se de imediato óbvio que as áreas do triângulo CBA e do rectângulo AFGB são iguais.

A demonstração geométrica de Oresme, bem como as numerosas demonstrações aritméticas do teorema da velocidade média, foi muito difun­dida na Europa durante os séculos XIV e XV, sendo particularmente popular na Itália. É possível que, através de edições impressas de finais do século XV e princípios do século XVI, Galileu tenha tomado conhecimento desta demons­tração, então bem conhecida. O certo é que o teorema .da velocidade média é a primeira proposiçãO do terceiro dia dos seus Discursos sobre Duas Novas

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COMO A IDADE MeDIA TRATOU O LEGADO ARlSTOTllLIco 1121

Ciências, e serviu de base à nova ciência do movimento. A demonstração de

Galileu é não só notavelmente semelhante à de Nicole Oresme, como tam­bém a figura que a acompanha é idêntica, apesar de uma reorientação de

noventa graus, reorientação essa já anteriormente usada por alguns autores medievais.

Se os principais teoremas e corolários atribuídos a Galileu tinham já sido

enunciados na Idade Média, em que sentido, se é que existe algum, é possível

defender que Galileu fundou a moderna ciência da mecânica? A rectificação do registo histórico não diminuiu a grandeza de Galileu, nem lhe retirou o

direito a ser reconhecido como o fundador da mecânica. Embora Galileu

tenha sido precedido por algumas das contribuições medievais aqui descritas,

a sua originalidade nasce de uma excepcional capacidade para determinar e

extrair o que era directamente relevante para uma descrição matemática e

cinemática do movimento de entre a difusa, e destituída de um propósito

claro, doutrina medieval da intensão e remissão das formas e qualidades. Os

muitos teoremas e conclusões engenhosos presentes em tratados sobre inten­

são e remissão das qualidades e velocidades entre o século XlV e o século XVI

pouco mais eram do que exercícios intelectuais que reflectiam a imaginação

subtil e a perspicácia lógica dos pensadores escolásticos. Com uma pequena

excepção estes estudiosos contentaram-se em encarar as velocidades como qualidades variáveis, intensivas, divorciadas do movimento de corpos reais.

Nicole Oresme, por exemplo, caracterizou as representações geométricas de

variações de qualidade como ficções do espírito sem relevância na natureza.

Foi só no século XVI que um autor escolástico desconhecido pensou em

aplicar o teorema da velocidade média aos corpos em queda natural. Por

volta de 1545, Domingo de Soto declarou, nas suas Questões sobre a Física de

Aríst6teles, que um corpo caindo através de um meio homogéneo de uma certa altura aumenta o seu movimento "uniformemente disforme", ou seja,

cai com aceleração uniforme. Invocou o famoso exemplo, usado pela pri­

meira vez pelos estudiosos do Merton College, de que um corpo acelerando

uniformemente a partir de um grau zero de velocidade, ou repouso, até uma

velocidade de grau 8, percorrerá a mesma distância que um corpo que se

mova durante o mesmo tempo a uma velocidade uniforme de grau 4, que é a

velocidade média do corpo em aceleração uniforme. Embora Soto acreditasse

que o movimento uniformemente acelerado era ilustrado pelos corpos em

queda natural, não foi mais além. Pelo contrário, Galileu dedicou-se ao tema com grande vigor e genialidade.

Reuniu tudo o que havia de significativo a nível de conceitos, definições,

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1221 os FUNDAMENTOS DA CttNCIA MODERNA NA IDADE Mt!D1A

teoremas e corolários sobre o movimento e organizou-os num todo lógico e ordenado, que depois aplicou ao movimento de corpos reais. A aceleração uni­

forme não era já uma mera definição hipotética, mas uma verdadeira descrição

do modo como os corpos caem na natureza, como é exemplificado pela famosa

experiência de Galileu do plano inclinado. Galileu estruturou uma nova ciência

da mecânica e lançou assim os alicerces da fisica modema. O que ele forjou tor­

nou-se uma parte vital da ciência newtoniana. Essa realização basta para incluir

Galileu nesse pequeno número de cientistas extraordinários que, de tempos a tempos, alteram profundamente o carácter e o caminho da ciência.

As ideias de Aristóteles sobre movimento, tanto num plenum como no

vácuo, forneceram as bases para alguns dos desvios mais radicais da sua filo­

sofia natural que ocorreram no que respeita aos fenómenos terrestres. E

quanto à região celeste? Que tipo de desvios poderiam ocorrer relativamente a

uma região do mundo em que se pressupunha a ausência de mudança?

Região celeste

Dois grandes sistemas cosmológicos penetraram na Europa Ocidental no

século XII, o de Aristóteles e o de Ptolomeu. As ideias relevantes de cada um

estavam representadas em mais do que uma obra. O pensamento cosmoló­

gico de Aristóteles encontra-se expresso principalmente nas obras Sobre os Céus, Física, Metafisica e Meteorologia, ao passo que as ideias cosmológicas de

Ptolomeu aparecem sobretudo na obra Hipóteses dos Planetas, que só foi

conhecida indirectamente durante a Baixa Idade Média. Embora com uma

importância menos significativa, duas outras obras de Ptolomeu, o Almagesto, um tratado técnico, geométrico, sobre astronomia, e õ Tetrabiblos, uma obra

astrológica, merecem também referência. Aristóteles e Ptolomeu comparti­

lhavam alguns conceitos básicos. Ambos acreditavam que cada um dos sete

planetas estava incrustado na sua própria esfera etérea que o arrastava con­

sigo. Pressupuseram ainda que as estrelas fixas estavam localizadas numa

única esfera que rodeava e continha todos os orbes planetários. Finalmente,

ambos concordavam em que cada esfera planetária consistia numa plurali­

dade de subesferas, necessárias para explicar o movimento e a posição resul­

tantes do planeta que ia sendo arrastado. Com efeito, Aristóteles e Ptolomeu

idealizaram sistemas com uma pluralidade de esferas, ou melhor, anéis ou

camadas esféricas, encaixadas umas nas outras - em número de cinquenta e

cinco no sistema de Aristóteles e, dependendo das versões descritas, trinta e

quatro ou quarenta e uma ou mesmo vinte e nove no caso de Ptolomeu.

COMO A IDADE Ml'illIA TRATOU O LEGADO ARISTOTEuco 1123

P

Figura 3. Epíciclo em círculo excêntrico. A disMncía do planeta (P) relativamente à Terra varia com a sua pOsição no epiciclo. qo movimento do centro (L) do epiciclo que transportava o planeta (P) era encarado como uniforme não em relação ao centro (C) do deferente [isto é, a trajectória circular des­crita por (L)I ou da Terra (T), mas relativamente a um outro ponto (E), denominado 'equanto', ou seja, considerava-se que o L LEA aumentava uniformemente. Localizando correctamente os pontos E, C e T, determinando a razão dos ditimetros do epiciclo e do seu deferente e escolhendo direcções, velocidades e inclinações para os vários circulos, eram eliminadas as aparentes irregularidades." (Afigura e a legenda que a acompanha foram reimpressas, com permissão da Harvard Uníversity Press, de A Source Book in Greek Science de Morris R. Cohen e Israel Drabkin, Harvard University Press, 1958, p. 129. Acrescentei a descrição entre parêntesis rectos.)

Compromisso dos três orbes

Apesar de terem alguns pontos semelhantes, os sistemas de Aristóteles e de

Ptolomeu diferiam radicalmente. As esferas de Aristóteles eram concêntricas

em relação à Terra, ao passo que as de Ptolomeu eram excêntricas e epicíclicas.

Os orbes concêntricos, tendo a Terra como seu centro, não conseguiam expli­

car as variações observadas nas distâncias dos planetas. No Almagesto, Ptolo­

meu serve-se de circulos excêntricos e epicíclicos para explicar essas variações

(figura 3) e corrige assim a deficiência fundamental no sistema de orbes con­

cêntricos, do qual o de Aristóteles era um dos últimos ainda com alguma

importância. Os métodos geométricos utilizados por Ptolomeu no Almagesto

destinavam-se a explicar apenas as posições planetárias, não sendo encarados

como uma verdadeira representação do mundo fisico. Foi nas Hip6teses dos

Planetas que Ptolomeu tentou descrever o mundo fisico e as relações entre os

seus orbes celestes. Embora os filósofos naturais medievais apenas conheces­

sem indirectamente as Hipóteses dos Planetas de Ptolomeu, adoptaram a partir

dele um compromisso que era facilmente compatível com o sistema concên­

trico de Aristóteles. Esse compromisso girava em volta de uma distinção entre

o conceito de um "orbe total" (orbís totalis) e de um "orbe parcial" (orbis

partialis). O primeiro é um orbe concêntrico cujo centro é o centro da Terra,

ou o centro do Mundo, ao passo que o segundo é um orbe excêntrico, cujo

centro se encontra fora do centro do Mundo. Cada orbe total consiste em

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1241 os FUNDAMENTOS DA CIENClA MODERNA NA IDADE MIiDIA

menos três orbes parciais, razão pela qual o podemos descrever corno "sistema dos três orbes" (figura 4, onde estão representados os três orbes da Lua). As superfícies convexa e côncava de um orbe concêntrico total, ou anel, têm o centro da Terra, ou centro do Mundo, corno seu centro. Os três orbes

parciais encontram-se dentro destas duas superfícies concêntricas. Dentro do orbe parcial médio, denominado deferente excêntrico, existe um epiciclo

onde se localiza a Lua. Foi deste modo que se conjugaram as duas cosmologias, a de Aristóteles e

a de Ptolomeu. O conceito do orbe total permitiu a preservação da cosmolo­gia concêntrica de Aristóteles, enquanto o conceito do orbe parcial excêntrico consentia a variação das distâncias planetárias, sem a qual a cosmologia de Aristóteles teria sido inaceitável. A inclusão de orbes excêntricos no interior

D c

B

1'ipn4. Tomem05T COtIW o antro da Terra edo Mundo bem como centro do orbe lunar. O ·orbe total" da Lua encontra-se entre a circunferência convexa ADBC e a circunferência c6ncava OQKP, ambas concêntricas relativamente a T. Entre estas duas circunferências, e:cistem tris orbes excêntTÜ:05 "parciais" (a" b' e c') construidos com recurso à atribuição de um outro centro, V, deslacado no sen­tido do apogeu da Lua. Ao redor de V tomado como centro há duas circunferências, AGFE e HNKM, que encerram o deferente lunar e formam o deferente excêntrico ou orbe b'. Rodeando o orbe excên­trico encontra-se o orbe exterior, a', localizado entre as superflâes ADBC e AGFE; e rodeado pela orbe excêntrico encontra-se o orbe interior, c', lacalizado entre a superftâe c6ncava HNKM e a superftcie convexa OQKP. No interior da concavidade do deferente excêntrico encontra-se um epiciclo esféríco, o qual foi concebido quer como um glabo s6lido destituído de superftcie c6ncava, quer como um anel com duas 5uperftâes, uma convexa (KLF!) e a outra côncava (RYSe). Esta representação dos orbes concêntTÜ:o, excêntTÜ:O e epidclico da Lua vem descrita na Opus Tertium de Roger Bacon. O diagrama e o texto de Bacon figuram em Un fragment inédit de I' "Opus terrium" de Roger Bacon précédé d'une étude sur ce fragment, Pierre Duhem, ed., (Florença, 19(9), 129.

- ~ ........... "'fr'~".--

COMO A IDADE MIiDIA TRATOU O LEGADO ARlSTOTELlCO 1125

das esferas concêntricas de Aristóteles significava que a cosmologia aristoté­

lica tinha de aceitar algumas desagradáveis "realidades". Embora cada orbe

total concêntrico girasse em redor da Terra física tendo-a corno seu centro,

no seu interior os orbes excêntricos não tinham a Terra corno centro, antes

giravam em redor de um ponto geométrico, excêntrico relativamente à Terra.

A hipótese de orbes excêntricos ou de quaisquer outros orbes - movendo-se

em redor de pontos que se localizavam fora do centro do Mundo era contrá­

ria à cosmologia e à física aristotélicas. No entanto, neste caso, as exigências

da astronomia, sob a forma de variações planetárias ao nível da distância,

tinham precedência sobre a cosmologia, astronomicamente inaceitável, de

Aristóteles. As opções eram óbvias: ou os aristotélicos eram forçados a aban­

donar a centralidade da Terra, pondo assim em risco a física e a cosmologia

que Aristóteles erigira na pressuposição de que a Terra se situava no centro de

todos os orbes celestes, ou teriam de manter urna cosmologia que era astro­

nomicamente indefensável. Os filósofos naturais medievais resolveram o

dilema pela adopção de um compromisso de três orbes, desviando-se assim

significativamente da visão cosmológica de Aristóteles, mas sem qué urna

grande perturbação daí adviesse. Urna vez que eram em vasta medida igno­

rantes quanto à astronomia técnica, os filósofos naturais medievais menos­

prezaram em geral a funçãO astronómica desempenhada pelos orbes parciais

excêntricos que se localizavam entre as superfícies convexa e côncava de um

orbe concêntrico ou totaL Era preferível deixar essas dificuldades para os

astrónomos. O que interessava era a preservação dos fundamentos da cosmo­

logia aristotélica, ao mesmo tempo que se respeitavam os princípios básicos

da astronomia ptolomaica. O facto flagrante de que os orbes não tinham a

Terra corno seu centro tisico foi simplesmente ignorado.

Número total de orbes

Aristóteles não atribuiu existência a mais esferas para além das estrelas

fixas, que considerava corno o orbe exterior limite do Cosmo. Os progressos

subsequentes da astronomia e as necessidades da teologia cristã levaram os

filósofos naturais a considerar pelo menos mais três esferas totais para lá das

estrelas fixas (figura 5). Aristóteles só atribuíra o movimento diário à esfera

das estrelas fixas. No desenvolvimento posterior da astronomia grega e

islâmica, foram-lhe atribuídos mais dois movimentos: urna precessão dos

equinócios, que era um movimento de oeste para leste que ocorria à razão de

um grau em cada 100 anos e produzia urna revolução completa da esfera

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1261 os FUNDAMENTOS DA CUlNCIA MODERNA NA IDADE MllDIA

em 36 000 anos, e um segundo movimento de trepidação, um movimento

alegadamente progressivo e regressivo das estrelas proposto por Thabit ibn

Qurra, um astrónomo árabe do século IX. Segundo o princípio aristotélico de

que era necessária uma esfera específica para cada movimento celeste distinto,

tinha de ser atribuída uma esfera adicional para a precessão e uma para a tre­

pidação, num total de dez orbes. Nenhuma destas duas esferas transportava

um corpo celeste. A nona ou a décima esfera, mas por vezes ambas, eram em

geral identificadas com as águas bíblicas acima do firmamento, sendo este

último habitualmente equiparado à oitava esfera das estrelas fixas. Durante a

Alta Idade Média, essas águas passaram a ser denominadas cristalinas, um

termo que se aplicava tanto às águas fluidas como às congeladas, estas últimas

sob a forma de gelo ou cristal. Cada alternativa tinha os seus apoiantes. Para

São Jerónimo (ca. 347-419?) e para Beda, o Venerável (672-735), as águas

eram duras e semelhantes a cristal, ao 'passo que para São Basilio e Santo

Figura 5. Uma representaçao esquemática típica das esferas totais. Entre 1200 e 1600, a maioria dos diagramas que descrevíam o Cosmo representavam unicamente orbes totais. condntricos. ignorando os que eram parciais e exdntricos.

COMO A IDADE MiIDlA TRATOU O LEGADO ARISTOTÉLICO 1127

Ambrósio eram fluidas e macias. A décima esfera na figura 5 era denominada

"primeira esfera móvel" (primum mobile) porque era a primeira esfera que se

movia, envolvida pelo céu empíreo, externo e imóvel.

Pressupunha-se que os orbes de que falámos até aqui se deslocavam num

movimento circular, uniforme. Todos tinham alguma função astronómica. O

céu empíreo constitui uma notável excepção. Não só carecia de qualquer fina­

lidade astronómica, como era ainda concebido como imóvel, diferindo assim

de todos os outros orbes celestes. Tratava-se de uma criação puramente teoló­

gica, um produto da fé, não da ciência. No entanto, apesar da sua identifica­

ção ocasional com o céu criado no primeiro dia, não era sancionado biblica­

mente e nesse aspecto diferia das outras duas esferas teológicas, o firmamento

e a esfera cristalina. A esfera empírea só surgiu como esfera celeste distinta no

século XII, altura em que teólogos como Anselmo de Laon, Pedro Lombardo

e Hugo de S. Victor a descreveram como um lugar de deslumbrante lumino­

sidade, onde Deus, os anjos e os bem-aventurados habitavam por toda a eter­

nidade. Apesar do seu estado de perpétua irradiação, o céu empíreo não

transmitia nenhuma da luz que o enchia. Como esfera, era transparente, invi­

sível e incorruptível. Nada existia para além da sua superfície convexa.

Segundo as palavras de Campanus de Novara, no século XIII: «~ o 'lugar'

comum e mais geral para todas as coisas dotadas de posição, na medida em

que contém tudo, não sendo ele próprio contido por nada."3 Com a esfera

empírea imóvel, contendo tudo em si, chegamos a um total de onze esferas

concêntricas, ocupando e preenchendo o Cosmo.

Incorruptibilidade celeste e mudança

Como vimos, pressupunha-se que as esferas celestes fossem compostas de

um éter incorruptível cujas propriedades contrastavam radicalmente com as

dos quatro elementos em incessante mutação da região terrena. No esquema

de Aristóteles, a mudança era irrealizável nos céus em virtude de uma ausência

de qualidades contrárias, de modo que nenhum par de tais qualidades poderia

agir sobre o mesmo corpo celeste ou na mesma porção do éter celeste. Mas se

o éter celeste estava isento de qualidades contrárias, porque atribuíam os filó­

sofos naturais e os astrólogos qualidades contrárias aos corpos celestes? Por

exemplo, porque descreviam Saturno como frio e seco, Marte como quente e

seco, a Lua como fria e húmida, e assim por diante para os outros planetas? Se

estas qualidades estavam realmente ausentes dos corpos celestes, porque fala­

vam os astrólogos e os filósofos naturais como se estivessem presentes?

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""

128 I OS FUNDAMENTOS DA Cif.NClA MODERNA NA IDADE MllDIA

A resposta medieval típica a esta questão foi que o éter celeste possui essas

qualidades só virtualmente (virtualiter), não formalmente (jormaliter), ou verdadeiramente, Isto é, diz-se que um corpo celeste "possui" qualidades

como calor ou frio apenas no sentido de poder de algum modo ocasionar

mudanças no calor ou no frio de corpos abaixo da Lua, muito embora esse

corpo celeste não possua na realidade as qualidades que alegadamente produz

nos corpos terrestres. Por exemplo, dizer que Saturno é frio não corresponde a afirmar que a qualidade "frio" é verdadeiramente inerente à matéria etérea

de Saturno - na verdade, não o é significa antes que Saturno tem a capaci­

dade de produzir o efeito de frio na região terrestre. De igual modo, o Sol não

é realmente quente, mas tem a capacidade de originar calor em objectos na

região terrestre.

A existência celeste de um par de opostos - rarefacção e densidade - era,

contudo, mais do que virtual. Os filósofos naturais medievais pressupuseram frequentemente que algumas partes dos céus eram mais rarefeitas ou mais

densas do que outras. Estrelas e planetas eram capazes de reflectir luz, sendo

por isso visíveis, porque se acreditava que fossem mais densos que os orbes

celestes invisíveis que os transportavam. Os autores escolásticos estavam pois

preparados para admitir que o éter celeste fosse mais rarefeito nalguns lugares

e mais denso noutros. Contudo, teriam negado que qualquer parte individual do éter pudesse variar em densidade ou rarefacção. Nenhum planeta, estrela

ou orbe podia alterar a sua rarefacção ou densidade. Embora certas partes do

éter fossem mais densas ou mais rarefeitas do que outras, e por isso o éter de

toda a região celeste não podia ser homogéneo - contrariamente ao que acre­

ditava Aristóteles -, nenhuma dessas partes podia modificar a sua rarefacção

ou a sua densidade. O éter no seu todo permanecia l1um estado invariante. Assim, ainda que pressupondo que Saturno era na realidade, frio, e não ape­

nas virtualmente frio, e que o Sol era na realidade quente, e não apenas vir­tualmente quente, não podiam ocorrer geração nem corrupção porque nem

Saturno nem o Sol possuíam as qualidades contrárias, o calor e o frio respec­

tivamente. Nestas circunstâncias, calor e frio podiam estar presentes em

simultâneo nos céus, mas como nunca estariam juntos no mesmo corpo ou lugar, não podiam causar nem geração nem corrupção. De modo semelhante,

se a densidade existisse num lugar dos céus, ou num corpo celeste, e a rarefac­

ção existisse em simultâneo noutro, não se oporiam uma à outra. Assim, rare­

facção e densidade, calor e frio e outros pares de contrários podiam existir

isoladamente nos céus, desde que nenhum par estivesse incorporado no

mesmo objecto celeste. Como podia um éter alegadamente homogéneo ser

COMO A IDADE MllDIA TRATOU O LEGADO ARlsroTtiLICO 1129

diferenciável em sete planetas, cada um com diferentes propriedades, e uma

multidão inumerável de estrelas fixas é uma questão que parece não ter ocor­rido aos filósofos naturais medievais, ou se ocorreu, é óbvio que pouca preo­

cupação terá causado.

Causas do movimento celeste

O terna debatido com mais frequência na cosmologia medieval era o movi­mento celeste. As questões cobriam um vasto campo, mas aqui limitar-me-ei às

causas do movimento celeste. Qual a causa do movimento uniforme dos orbes celestes invisíveis à volta do céu? Como vimos no capítulo 4, Aristóteles

legou à posteridade duas explicações diferentes relativamente aos movimen­tos celestes, uma ligada a causas externas e a outra a causas internas. Se bem que alguns poetas e menestréis se possam ter deixado cativar pela ideia de Aristóteles de que é o amor que faz girar o mundo (capítulo 4), os filósofos

naturais da Idade Média idealizaram uma causa eficaz mais directa para essa finalidade. Contudo, não abandonaram as explicações causais externa e interna de Aristóteles do movimento celeste, mas elaboraram-nas muito para

além de tudo o que Aristóteles pudesse ter reconhecido como seu. Embora Deus, que era também o Primeiro Motor (Não Movido) pudesse

ser a causa eficiente do movimento dos orbes celestes, os filósofos naturais medievais acreditavam que, em vez disso, Deus escolhera delegar essa tarefa

numa causa segunda, por Ele próprio criada. A maioria supôs ainda que Deus tinha designado uma inteligência, ou anjo (os termos eram geralmente sinó­

nimos), externa e distinta, para mover cada orbe, embora uma minoria esti­vesse convencida de que Deus optara por uma força interna para manter os

orbes celestes em perpétuo movimento.

Motores externos. Como poderia uma inteligência imaterial fazer mover um enorme orbe cósmico, composto de éter celeste? Imaginava-se frequente­mente que o fazia por meio de três coisas: o seu intelecto, a sua vontade e uma terceira entidade espiritual que levava a cabo a ordem emanada do intelecto e da vontade, nomeadamente uma força motriz finita (virtus motiva finita)

também denominada "poder executivo" (potentia executiva). Esta terceira força era requerida porque o intelecto podia comandar a vontade, mas a von­tade não podia executar o acto que pretendia. Era pois necessário um poder executivo, ou terceira força imaterial, para executar uma ordem da vontade. Uma inteligência, ou anjo, tinha poderes limitados e a sua vontade não podia

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130 I OS FUNDAMENTOS DA CItJNCIA MODERNA NA IDADE MtlDlA

impor as suas ordens à distância. Contudo, apesar da sua falta de dimensão e

grandeza, pensava-se que um anjo ocupava um lugar finito, se bem que não

fosse forçosamente coextensivo com esse lugar. Isto é, tanto podia preencher

todo o lugar como contrair-se até qualquer fracção do mesmo. Dai que a inte­

ligência de um orbe tivesse de estar em contacto directo com o seu orbe e, por

conseguinte, algures nele ou sobre ele. A sua exacta localização raramente era

determinada com precisão, de modo que poderia encontrar-se em qualquer

parte dentro dos limites do orbe, quer nalgum ponto ou local específico, quer

estendido por sobre todo o orbe.

Dado que o intelecto e a vontade estavam associados a actos voluntários,

os movimentos celestes eram encarados como acções voluntárias. Parecia pois

plausível pressupor que cada inteligência ordenava voluntariamente ao seu

orbe que se deslocasse num movimento uniforme e circular. Além disso, dado

que cada movimento celeste uniforme e regular se destinava a continuar no

futuro infinito, pressupunha-se que cada inteligência motriz possuía uma

força infatigável (vir infatigabilis), proveniente do Primeiro Motor, toda de

urna vez, quando este a criou, ou fornecida por acréscimos, repartidos do seu

reservatório inesgotável à medida das necessidades.

Embora as inteligências fossem originalmente entidades incorpóreas espi­

rituais assumiram gradualmente o estatuto de forças impessoais. Ao intelecto

e à vontade era retirada importância, ao mesmo tempo que a força motriz

finita, ou poder executivo, era encarada como o verdadeiro motor. As inteli­

gências continuaram a desempenhar um papel como motores celestes até

meados do século XVII. Mesmo depois de terem sido rejeitados os orbes rígi­

dos, as inteligências foram simplesmente transferidas para os próprios plane­

tas e encaradas por muitos como os seus motores.

Motores internos. Alguns filósofos naturais rejeitaram as inteligências

como motores celestes e procuraram as causas dos movimentos celestes em

forças internas, impessoais. Já no século XlII John Blund e Robert Kilwardby

sustentavam que cada orbe celeste possuía uma capacidade intrínseca, natu­

ral, de se mover por si próprio, opinião que poderia ter vindo directamente de

Aristóteles. Em vez da vaga capacidade inata postulada por Blund e Kil­

wardby, Jean Buridan aplicou a sua bem quantificada teoria da força

impressa, ou ímpetus, à explicação dos movimentos celestes. Dado que a

Bíblia não fazia qualquer referência a inteligências como motores celestes,

Buridan abandonou-os e pressupôs que, na criação, Deus imprimira forças

incorpóreas, ou quantidades de impulso, a cada orbe. Estando as resistências externas e as tendências contrárias ausentes dos céus, o impetus impresso de

COMO A IDADE MJIDIA TRATOU O LEGADO ARISTOT.€UCO 1131

um orbe manter-se-ia constante e moveria para sempre o seu orbe num

movimento uniforme e circular.

Motores internos e motores externos combinados. Ainda antes de Jean Buri­

dan ter proposto a sua explicação, Francisco de Marchia (ca. 1290-f. após

1344) combinara anjos e forças impressas para explicar os movimentos celes­

tes. Por por volta de 1320, Francisco de Marchia pressupôs que cada anjo

fazia mover o seu orbe, imprimindo-lhe uma determinada força (virtU5

impressa). Assim, em vez de uma força motriz operando dentro do anjo ou

inteligência, Francisco de Marchia propunha o anjo a imprimir uma força

motriz ao orbe a que estava associado. A força impressa movia então directa­

mente o orbe. A solução de Francisco de Marchia estava destinada a ser deba­

tida por autores escolásticos nos séculos XVI e XVII. Os influentes Conimbri­

censes, jesuítas que leccionavam no Colégio das Artes de Coimbra, adopta­

ram-na para o seu comentário ao Sobre os Céus de Aristóteles, em 1592.

Terá a Terra uma rotação axial diária?

Embora antes de Nicolau Copérnico (1473-1543), astrónomo polaco e

cónego no capítulo da catedral de Frauenburg no Reino da Polónia, propor o

seu sistema heliocêntrico no século XVI, a localização central da Terra na cos­

mologia tradicional não tivesse sido seriamente contestada, a sua condiçãO de

repouso total no centro do Universo foi reexaminada com todo o cuidado no

século XIV. Dos tipos de movimento que podiam ser atribuídos à Terra, o mais

importante para a história da ciência dizia respeito a uma possível rotação axial

diária para explicar o nascimento e o ocaso de todos os corpos celestes.

A autoridade conjunta de Aristóteles, de Ptolomeu e da Bíblia garantira

a aceitação unânime da crença de que a Terra permanecia imóvel no centro

do Universo (isto era verdade apesar da necessidade de deslocar a Terra nos

sistemas excêntricos que os astrónomos utilizavam). No entanto, a possibi­

lidade de que a Terra rodasse sobre o seu eixo fora proposta e defendida na

Antiguidade Grega por Aristarco de Samos e registada por outros autores.

Na Europa, durante a Idade Média, esta opinião caíra em descrédito mas era

bem conhecida de todos os que estudavam e ensinavam nas universidades

ou dos simples interessados na leitura de obras de astronomia e cosmologia.

Embora permanecendo uma opinião inaceitável na Idade Média, obteve um

grau surpreendente de apoio por parte de Jean Buridan e Nicole Oresme, os

quais discutiram o problema nas suas questões e comentários a Sobre os

Céus de Aristóteles.

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1321 os FUNDAMENTOS DA CIBNCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA

Como o reconheceu Jean Buridan, tratava-se de um problema de movi­

mento relativo. Embora nos pareça que a Terra se encontra em repouso, e o

Sol se desloca à nossa volta na sua esfera, o inverso pode ser verdade, visto

que os fenómenos celestes observados permaneceriam os mesmos. Se a Terra

realmente girasse, não daríamos pelo seu movimento. A situação seria aná­

loga à de uma pessoa num navio em movimento que passa por outro navio

que se encontra em repouso. Se o observador no navio em movimento ima­

gina estar em repouso, o navio que está realmente em repouso parecer-lhe-á

estar em movimento. De modo semelhante, se o Sol estivesse verdadeira­

mente em repouso e a Terra girasse, teríamos a percepção contrária. Em ter­

mos estritamente astronómicos, Buridan acreditava que ambas as hipóteses

responderiam pelos fenómenos celestes.

Buridan acrescentou ainda alguns argumentos não astronómicos, ou

"persuasões" como lhes chamou. Esses argumentos não eram demonstrativos,

mas não deixavam de parecer plausíveis. Se o repouso é um estado mais

nobre do que o movimento, como frequentemente se pressupunha, não seria

mais apropriado que os corpos celestes mais nobres, incluindo a esfera das

estrelas fIxas, permanecessem em repouso enquanto a Terra, considerada

como o corpo mais ignóbil do Cosmo, girava? Dado que se considerava geral­

mente que a natureza agia do modo mais simples, não seria mais simples, e

por conseguinte mais apropriado, que a pequena Terra girasse com a mais

célere velocidade, enquanto os corpos celestes incomparavelmente maiores

permaneciam em repouso? A simplicidade seria ainda satisfeita porque a

Terra só precisaria de girar a uma velocidade diária muito menor do que a

dos grandes orbes celestes.

Apesar destes e de outros argumentos a favor de -ama rotação terrestre

diária, Buridan optou pela opinião tradicional. Ao rejeitar os argumentos

sobre repouso e movimento, explicou que, se todas as coisas fossem iguais,

seria realmente verdade que:

É mais fácil fazer mover um corpo pequeno do que [um] grande. Mas

as coisas não são todas iguais, porque os corpos terrestres, pesados,

não estão adaptados ao movimento. Seria mais fácil mover água do

que terra; e ainda mais fácil mover ar; e ao ascendermos assim, os cor­

pos celestes são, pela sua natureza, os mais fáceis de fazer mover.4

O principal argumento de Buridan contra a rotação axial da Terra assen­

tava na sua teoria do impetus e em determinadas consequências observáveis

dela derivadas. Argumentou que a rotação da Terra não podia explicar o

COMO A IDADE MÉDIA TRATOU O LEGADO ARISTOTILICO 1133

motivo pelo qual uma flecha disparada verticalmente para cima cai sempre no

mesmo ponto de onde foi projectada. Se a Terra girasse realmente de ocidente

para oriente, teria de girar cerca de uma légua para oriente enquanto a flecha

está no ar, de modo que a flecha cairia no solo a cerca de uma légua para oci­

dente. Posto que não detectamos tal consequência, parece obrigatório con­

cluir que a Terra não gira. Mas, e se a Terra girasse realmente e o ar que a

rodeia girasse com ela, arrastando consigo a flecha? Nestas circunstâncias, o

movimento giratório comum, partilhado pela Terra, pelo ar, pela flecha e

pelo observador, teria como resultado a queda da flecha no mesmo ponto de

onde fora disparada.

Em virtude da sua teoria do impetus, Buridan considerou esta explicação

inaceitável. Quando a flecha é disparada para cima, uma quantidade sufi­

ciente de impetus é comunicada à flecha, permitindo-lhe resistir à pressão

lateral do ar que acompanha a rotação da Terra. Ao resistir à pressão lateral

do ar, a flecha deveria atrasar-se relativamente à Terra e ao ar, caindo' percep­

tivelmente para ocidente do ponto de onde fora lançada. Dado que isto é con­

trário à experiência, Buridan concluiu que a Terra está em repouso. Para

Buridan, foi pois um argumento físico, não astronómico, a decidir a questão.

O desenvolvimento do mesmo tema por Nicole Oresme é ainda mais

extraordinário, em virtude da sua declaração enfática de que não é possivel

encontrar razões válidas para escolher uma ou outra alternativa, embora, no

fim, escolliesse a opinião tradicional devido a razões não científicas. Os seus

argumentos a favor da rotação axial da Terra são brilhantes. Em resposta ao

argumento de que, na experiência comum, "vemos" o nascimento e o ocaso

dos planetas e das estrelas e dai inferimos o seu verdadeiro movimento,

Oresme, tal como Buridan, recorre ao movimento relativo dos navios.

Oresme reforçou o argumento da relatividade ao acrescentar que, se um

homem fosse arrastado pelo movimento circular diário dos céus e pudesse

observar a Terra com algum pormenor, parecer-llie-ia que a Terra se movia

num movimento diário e que os céus estavam em repouso, tal como pareceria

aos observadores na Terra que os céus se moviam com esse movimento. Mais

ainda, à afirmação de que se aTerra girasse de ocidente para oriente sopraria

constantemente um vento forte e facilmente detectável do lado do Oriente,

Oresme opôs que o ar giraria juntamente com a Terra e, por conseguinte, não

sopraria vento algum. Outro recurso à observação, que Oresme atribui a Ptolomeu, é semelhante

à experiência da flecha de Buridan. Se uma flecha for disparada para cima, ou

uma pedra lançada para o alto, e considerando que a Terra gira de oeste para

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1341 OS FUNDAMENTOS DA CleNCIA MODERNA NA IDADE M~DlA

leste, será que a flecha ou a pedra cairiam para oeste do lugar de onde foi feito o lançamento? Dado que esses efeitos não são observáveis, Ptolomeu concluiu que a Terra permanece imóvel e Buridan, argumentando com base na sua teoria do impetus, concordou com Ptolomeu. Porém, Oresme não viu nada de incompatível entre o regresso da flecha ou da pedra ao mesmo lugar de onde fora lançada e a rotação axial da Terra. Para explicar a sua compatibili­dade, torna-se necessário distinguir os movimentos componentes de uma fle­cha ou de uma pedra que são lançadas para cima, a partir de uma Terra em rotação. Se pressupomos que a Terra, o ar ambiente e toda a matéria sublunar giram diariamente de oeste para leste, uma flecha lançada para o ar terá dois movimentos simultâneos: um vertical e outro circular, sendo este último par­tilhado com a rotação da Terra. Dado que a flecha partilha do movimento cir­cular da Terra e gira com ela à mesma velocidade de rotação, a flecha, ao ser disparada para cima, erguer-se-á directamente acima do lugar de onde foi ati­rada e cai depois para ele. Para um .observador, que participa também do movimento de rotação da Terra, a flecha parecerá estar apenas animada de um movimento vertical. Assim, a flecha comportar-se-ia exactamente da mesma forma, quer a Terra estivesse imóvel quer animada de movimento de rotação, Oresme concluiu que é impossível determinar pela experiência se o movimento diário deve ser atribuído aos céus ou à Terra.

Tal comO Buridan, Oresme também apresentou vários argumentos a favor de uma Terra em rotação, mas são meramente persuasivos e não demonstra­tivos. Por exemplo, uma rotação terrestre de oeste para leste contribuiria para um Universo mais harmonioso, dado que a Terra e todos os corpos celestes se moveriam na mesma direcção em períodos que iriam aumentando à medida que nos afastássemos da Terra. Esta seria uma solução melhor do que a alter­nativa tradicional, onde se atribuíam dois movimentos éontrários simultâ­neos aos céus, um de leste para oeste para o movimento diário, outro de oeste para leste para os movimentos periódicos. A semelhança de Buridan, Oresme recorreu também ao argumento da simplicidade. A rotação diária da Terra era cosmicamente mais simples, porque a velocidade rotativa da Terra seria muito mais lenta do que as velocidades requeridas pelos orbes celestes, as quais teriam de ter valores "muito para lá de qualquer convicção ou cálculo",5 Seria como se Deus tivesse feito tal operação em vão.

Oresme tentou ainda chamar Deus para o lado dos que defendiam a rota­ção axial da Terra, recordando aos seus leitores que Deus interviera em favor do exército de Josué (Josué 10.12-14), alongando o dia e ordenando ao Sol que se imobilizasse sobre Gabaão. Visto que a Terra é como um mero ponto em comparação com os céus, o mesmo efeito poderia ser obtido com um

COMO A IDADE Mtt>IA TRATOU o LEGADO ARISTOrtuCO 1135

mínimo de perturbação através do cessar temporário da rotação da Terra, em vez da interrupçãO dos movimentos do Sol e de todos os outros planetas. Oresme sugeriu que, tendo em conta a sua maior economia, Deus teria talvez realizado o milagre dessa maneira.

Servindo-se do raciocínio e da experiência, Oresme conduzia o debate a

um beco sem saída. Estava convicto de que não havia mais motivos para esco­

lher uma alternativa do que a outra. Na ausência de argumentos demonstrati­

vos para a rotação da Terra, Oresme acabou por adoptar a ínterpretação tra­

dicional de que são os céus, e não a Terra, que giram com um movimento

diário de leste para oeste. Não só acreditava que esta conclusão estava em

conformidade com a razão natural, como tinha ainda apoio bíblico. Na

ausência de argumentos demonstrativos para validar a rotação da Terra,

Oresme não podia abandonar argumentos tradicionais que eram confirmados

por numerosas passagens bíblicas. Embora nem Buridan nem Oresme aceitassem a rotação diária da Terra,

alguns dos seus argumentos surgem na defesa do sistema heliocêntrico de

Copérnico, onde se atribui à Terra não só uma rotação diária como também um movimento anual em redor do SoL Entre tais argumentos encontramos: a

relatividade de movimento, ilustrada pelo movimento dos navios; a Terra

completa uma rotação diária a muito menor velocidade do que a necessária

para os orbes celestes, que teriam de percorrer distâncias muito maiores no mesmo intervalo de tempo; o ar partilha da rotação diária da Terra; os movi­

mentos de corpos subindo e caindo relativamente a uma Terra em rotação

são o resultado de componentes rectilíneos e circulares; e, finalmente, acei­

tando o pressuposto de que o repouso é mais nobre do que o movimento, é

mais apropriado fazer girar a Terra do que os céus nobres.

Ao invocar o milagre de Josué, Oresme estabeleceu um precedente para o

seu uso em debates subsequentes sobre a rotação da Terra, principalmente

após a publicação de Sobre as Revoluções dos Orbes Celestes de Copérnico,

em 1543. Como Oresme, tanto Kepler como Galileu tiveram também o

ensejo de explicar como se podia reconciliar a afirmação bíblica de que o Sol

se imobilizou para prolongar o dia em favor de Josué com a afirmação de que

a Terra rodava diariamente sobre o seu eixo. Johannes Kepler (1571-1630),

um dos maiores cientistas do século XVII, tratou esta questão na sua Astronomia

Nova de 1609 e Galileu na sua Carta a Madame Cristina de Lorena, Grã-Duquesa

da Toscana de 1615. A argumentação de Kepler está mais próxima da de

Nicole Oresme do que a de Galileu, porque Kepler concordava com a versão

de Oresme de que, para prolongar o dia e parar o movimento aparente do

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1361 os FUNDAMENTOS DA ClflNCIA MODERNA NA IDADE MÉDIA

Sol, Deus suspendera a rotação axial da Terra. Pelo contrário, Galileu defen­

dia que Deus fez parar um Sol que rodava axialmente, movimento que ele

gava ser a causa de todos os movimentos planetários, imobilizando-se assim

todos os planetas e também a Terra. Mas Galileu estava de acordo com

Oresme ao afirmar que Josué falava na linguagem comum da sua época,

quando se tinha como certo que o Sol se movia em redor de uma Terra imó­

vel. Embora não se possam apresentar provas de que tanto Buridan como

Oresme tenham influenciado Galileu ou Kepler em qualquer dos aspectos

aqui mencionados, temos pelo menos de reconhecer a capacidade de estes

filósofos naturais do século XIV anteciparem alguns argumentos importantes

e de grande interesse.

Mundo como um todo e o que pará além

dele poderá haver

Aristóteles argumentou vigorosamente contra aqueles que acreditavam em

algum tipo de existência para além do nosso mundo esférico, finito. Para o tipo

de tisica e cosmologia que desenvolvera, a possibilidade de existência extracós­

mica afigurava-se ininteligível. A seu parecer, nada existia para além do nosso

Mundo: nem matéria, nem tempo, nem vazio, nem lugar. Encarava como natu­

ralmente impossível a existência de tais entidades fora do nosso mundo. Porém,

numa extraordinária série de desvios, os filósofos naturais medievais transfor­

maram as impossibilidades naturais de Aristóteles em possibilidades divinas.

Dirigiram a sua atenção para três questões principais sobre o mundo como um

todo: era eterno ou criado; haveria outros mundos para além dele; e existiria

algum tipo de lugar ou espaço para lá dos seus limites finitos?

o mundo foi criado ou é eterno?

Entre os problemas com que se defrontaram os filósofos naturais cristãos

na Baixa Idade Média, nenhum foi mais difícil do que o da criação. Isto ficou

evidente no capítulo 5, onde vimos o papel desempenhado pela questão da

eternidade na Condenação de 1277 e nas controvérsias que grassaram entre

teólogos e filósofos naturais e entre os próprios teólogos. Neste momento,

parece profícuo debruçarmo-nos, sobre os argumentos usados.

A traços largos as alternativas são claras: será o mundo eterno, sem princi­

pio nem fim, como pretendiam Aristóteles e alguns autores gregos; ou será

COMO A IDADE MÉDIA TRATOU O LEGADO ARISTOTÉLICO 1137

que o mundo teve um principio e irá ter um fim? Durante a Alta Idade

Média, o apoio para a criação veio de algumas fontes pagãs, como o Timeu de

Platão ou o Comentário ao Sonho de Cipião de Macróbio. A doutrina da cria­

ção permaneceu por muito tempo incontestada. Com a introdução das obras

de Aristóteles nos séculos XII e XIII, foram disponibilizados poderosos argu­

mentos a favor da eternidade do mundo. Temendo que pudessem enfraque­

cer a fé numa criação sobrenatural a partir do nada, o bispo de Paris conde­

nou a ideia de um mundo eterno em 1270 e depois, como que para sublinhar

a sua importância, voltou a condená-la em vinte e sete proposições diferentes

na Condenação de 1277. Durante o século XIII e ao longo de toda a Idade

Média, os fiéis tiveram de aceitar a criação do mundo. Dentro deste contexto,

três opiniões obtiveram diferentes graus de apoio: (1) alguns, como São Boa­

ventura, insistiram em que a criação do mundo era susceptível de demonstra­

ção racional; (2) outros contrapuseram que a eternidade do mundo era

racionalmente demonstrável; e (3) São Tomás de Aquino argumentou que era

impossível demonstrar qualquer uma das teses e, mais ainda, sugeriu que o

mundo podia ser encarado ao mesmo tempo como criado e eterno.

São Boaventura, cujas demonstrações provinham de fontes islâmicas e,

fundamentalmente, de João Filopão,6 propôs um argumento característico

contra um mundo sem um principio e a favor de uma criação. Se o mundo

não tivesse início, um número infinito de revoluções celestes deveria ter ocor­

rido até ao presente. Dado que um tal número não pode ser completo nem

encurtado, a presente revoluçãO não podia ter ocorrido, o que é um absurdo.

Como prova suplementar do absurdo de um mundo eterno, sem princípio,

São Boaventura afirmou, como segundo argumento, que se um verdadeiro

número infinito de revoluções ocorreu até ao presente, então todas as subse­

quentes revoluções têm de ser adicionadas a um número já infinito de revolu­

ções. Porém, adicionar algo a um infinito não pode torná-lo maior porque,

como São Boaventura o diz, "nada é maior do que um infinito".1 Como ter­

ceiro tipo de argumento, São Boaventura tirou partido de diferenças aparen­

tes entre infinitos. Se o mundo tem um passado infinito, então a Lua terá feito

doze vezes mais revoluções do que o Sol. Portanto, o infinito da Lua seria

maior do que o do Sol, o que é impossível. Aqueles que reagiram contra a argumentação de São Boaventura não

defenderam a existência de um mundo eterno, nem negaram a criaçãO. limi­

taram-se a tentar demonstrar que os argumentos a favor de um mundo sem

princípio eram inteligíveis. Aqui, o conceito aristotélico de um infinito poten­

cial desempenhou um papel significativo. Contra o primeiro argumento de

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~

1381 os FUNDAMENTOS DA CltlNCIA MODERNA NA IDADE MIDIA

São Boaventura, os seus opositores demonstraram que não teria passado

necessariamente um número realmente infinito de dias. Num universo sem

princípio, não havia um primeiro dia a partir do qual se iniciasse o cômputo

de todos os dias. Não há um verdadeiro número infinito de dias, mas apenas

um infinito potencial. Ou seja, podemos aceitar que um número potencial­

mente infinito de dias decorreu até ao presente e que mais dias podem ser-lhe

infinitamente adicionados. Ou podemos imaginar que uma sequência infinita

de dias se estende para trás no tempo, porque não pode existir um primeiro

dia a iniciar a sequência. Assim, em todos os casos em que São Boaventura

baseava os seus argumentos num infinito real, os seus opositores defendiam a

sua posição recorrendo a um infinito potencial.

A fim de contrariar o argumento de São Boaventura relativo ao absurdo

de diferentes infinitos, uns maiores do que outros, os fIlósofos naturais esco­

lásticos do século XIV propuseram dois argumentos. Num demonstraram

que só pelo facto de a Lua descrever doze rotações por cada uma do Sol não

significa que, num mundo sem início, a Lua tivesse percorrido um infinito

doze vezes maior do que o do Sol. Jean Buridan e outros defenderam que um

infinito não é maior do que outro. Uma infinidade de anos não é maior do

que uma infinidade de dias. Cada infinito é igual a qualquer outro infinito.

A apoiar este ponto, alguns acrescentaram que não há mais partes em todo o

mundo do que num grão de milho, já que ambos são infinitamente divisíveis.

O segundo argumento contra São Boaventura demonstrava que os infinitos

podiam realmente diferir em tamanho, se um fosse um subconjunto do

outro, como é o caso do infinito de revoluções da Lua relativamente ao infi­

nito de revoluções do Sol.

Contudo, a maioria dos filósofos naturais escolástiGos estava de acordo em

que nem a criação do mundo nem a eternidade do mundo eram demonstrá­

veis. Na verdade, ambas eram igualmente prováveis. São Tomás de Aquino

insistia em dizer que: "Afirmar que o mundo teve um princípio é um artigo

de fé ... não de demonstração ou ciência."S Dispondo de duas alternativas

igualmente prováveis, mas com a fé a exigir que o mundo tivesse um início

por meio de uma criação divina, muitos - incluindo São Tomás de Aquino­

optaram por uma solução de compromisso: o mundo era, ao mesmo tempo,

criado e sem início. A criação do mundo era aceite com base na fé. Mas como

podia ser também eterno, isto é, não ter um início? Talvez Deus tivesse esco­

lhido que a existência de criaturas não tivesse um início temporal. Se Deus

agira realmente desse modo, então é porque devia ter decidido escolher uma

co-eternidade das coisas consigo próprio. São Tomás de Aquino demonstrou

COMO A IDADE MtlDIA TRATOU O LEGADO ARISTOTÉLICO 1139

que isso era possível ao declarar que «a afirmação de que algo foi feito por

Deus e, no entanto, nunca esteve sem existência, não implica qualquer con­

tradição lógica".9 Em virtude do Seu poder absoluto, Deus, como causa efi­

ciente do mundo, "não necessitava de fazer preceder o Seu efeito em duração

se fosse isso o que Ele Próprio desejasse".1O Deus podia ter criado um mundo

eternamente existente porque produz efeitos instantaneamente. Mas se Deus

e o mundo são co-eternos, significará isso também que são co-iguais? Essa

consequência inaceitável era evitada porque se considerava que o nosso

mundo mutável dependia totalmente da divindade imutável. Afinal, Deus

possui o poder de fazer desaparecer o mundo material, mas o mundo é impo­

tente para afectar Deus. O mundo depende totalmente de Deus.

A possibilidade de o mundo ter existido desde uma eternidade e também

de ter sido criado foi uma ideia surpreendentemente popular durante a Idade

Média e o Renascimento. Podemos encará-la como uma tentativa para pre­

servar um princípio fundamental da filosofia natural de Aristóteles, muito

embora esse princípio não fosse mais do que uma possibilidade para os filóso­

fos naturais cristãos.

Sobre a possível existência de outros mundos

Quando Aristóteles debateu a possibilidade de outros mundos, imaginou

que esses mundos existissem simultaneamente com o nosso e lhe fossem

idênticos. Mas rejeitou a existência de outros mundos, em grande parte

devido aos seus próprios argumentos que demonstravam a impossibilidade de

qualquer coisa - matéria, lugar, vácuo ou tempo - poder existir para além do

nosso mundo. O debate na Idade Média versou também em grande medida

acerca de mundos idênticos, isto é, mundos que possuíam elementos, com­

postos e espécies idênticos aos que se encontram no nosso mundo.

A resposta de Aristóteles ao problema da existência extracósmica revelou-se

insatisfatória e foi alvo de críticas no Mundo Antigo. No Comentário a sobre

os Céus de Aristóteles, no século VI, Simplício, um dos mais importantes

comentadores gregos da Baixa Antiguidade, descreveu a reacção dos filósofos

estóicos à negação aristotética de existência para além do nosso mundo. Os

estóicos imaginaram que alguém, colocado na extremidade do mundo, esti­

cava um braço para além dessa extremidade. Que aconteceria? S6 podiam

conceber duas hipóteses: ou o braço encontrava algum obstáculo e não podia

esticar-se mais; ou não encontrava nada e portanto podia esticar-se para além

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140 1 os FUNDAMENTOS DA CI~NCIA MODERNA NA IDADE MIDIA

do mundo. Se ocorresse a primeira hipótese, imaginaram ainda que o indiví­

duo subia para o obstáculo que o impedia de esticar braço e, uma vez mais,

esticava o braço. De novo, ou a pessoa encontrava outro obstáculo, ou esti­

cava o braço para um espaço vazio que estava para além do mundo. A impli­

cação do relato de Simplício é clara. Pode realmente existir matéria para além

do mundo mas, porque o nosso mundo é finito, a matéria não pode estender­

se indefinidamente. Por isso, é forçoso encontrar espaço vazio. O comentário

de Simplício ao Sobre os Céus foi traduzido para latim no século XIII e veio a

ser bastante conhecido. A sua breve discussão proporcionou um elo histórico

de ligação a uma importante tradição antiaristotélica que deu motivos para

que os filósofos naturais medievais acreditassem na possibilidade de existên­

cia de matéria ou de espaço vazio, ou talvez de ambos, para além do mundo.

A possibilidade de existência de matéria para além do nosso mundo, sob a

forma de outros mundos, tomou-se um dos mais importantes temas de dis­

cussão, em resultado da Condenação de 1277. Antes de 1277, a possibilidade

de existência de outros mundos não era seriamente considerada pelos autores

cristãos. Em última análise, Aristóteles e os seus seguidores cristãos estavam

de acordo sobre o facto de haver apenas um mundo. No entanto, não deixou

de surgir uma questão interessante: apesar de Deus ter criado um único

mundo, poderia ter criado outros mundos e poderia criar agora outros mun­

dos, se assim o desejasse? A Condenação de 1277 veio alterar dramaticamente

o contexto intelectual na Universidade de Paris e, depois de 1277, a questão

acerca de outros mundos tornou-se um lugar-comum. O artigo 34 foi conde­

nado porque negava que Deus pudesse criar mais do que um mundo. Conse­

quentemente, todos tiveram de admitir que Deus podia criar tantos mundos

quantos quisesse. •. Embora se distinguissem três tipos de pluralidade cósmica, só a um foi

dado tratamento detalhado, nomeadamente à possibilidade de existirem

mundos idênticos, simultâneos, distintos e separados num espaço vazio (os

outros dois tipos implicavam mundos individuais sucessivos e uma plurali­

dade de mundos concêntricos existindo simultaneamente). Ao suporem que

Deus criara realmente outros mundos idênticos, os filósofos naturais viram-se

confrontados com um problema sério, levantado aliás pelo próprio Aristóte­

les. Dado que assumiram que esses mundos existiam simultaneamente, tende­

riam os elementos de um mundo a mover-se para o centro e circunferência

de outro mundo, e não para o centro e circunferência do seu próprio mundo?

Mais especificamente, procuraria a terra de um mundo, ou qualquer parte da

Terra, o centro de um outro mundo? Por exemplo, procuraria uma partícula

COMO A IDADE M~DIA TRATOU O LEGADO ARISTOttuCO 1141

pesada da terra de um outro mundo o centro do nosso, erguendo-se primeiro

para cima no seu próprio mundo, contrariamente à sua tendência natural

para se mover unicamente para o seu próprio centro, e tendo alcançado o

nosso mundo, após ter, de algum modo, atravessado o espaço intermédio

entre os dois mundos, cairia em direcção a este centro? Se isto fosse possível,

os corpos pesados pareceriam ter dois movimentos naturais contrários, o que

Aristóteles considerava absurdo. Raciocínio semelhante se aplica ao fogo, que

poderia erguer-se no nosso mundo e, ao alcançar um outro mundo, descer

para o seu lugar natural entre o ar e a esfera lunar. O fogo seria então suscep­

tível de se erguer e de cair naturalmente. O mesmo corpo pesado ou leve seria

susceptível de movimentos naturais contrários, o que violava dois princípios

aristotélicos: que um corpo simples pesado ou leve só podia ter um movi­

mento natural; e que só podia existir um centro e uma circunferência do

mundo. Uma questão puramente hipotética, condicional, podia pois colocar

problemas sérios aos filósofos naturais. Ao rejeitar a opinião de Aristóteles, Ricardo de Middleton sugeriu uma

interpretação que foi largamente aceite. Mesmo com mundos idênticos, argu­

mentou Ricardo, nem a terra nem nenhuma das suas partes se ergueria no seu

próprio mundo a fim de alcançar o centro de um outro mundo. Pelo contrá­

rio, a terra de cada mundo permaneceria em repouso no centro do seu pró­

prio mundo. Quaisquer partes que fossem retiradas do centro voltariam sem­

pre, desde que não contrariadas, a esse mesmo centro. Cada mundo era enca­

rado como um sistema autónomo com o seu próprio centro e circunferência,

sem sofrer a influência de qualquer outro mundo. Assim, se fosse possível

retirar a terra de outro mundo e colocá-la no centro do nosso, essa terra per­

maneceria daí em diante no centro do nosso mundo. Reciprocamente, se a

terra do nosso mundo fosse deslocada para o centro de outro mundo, perma­

neceria em repouso no seu novo centro sem qualquer tendência para regres­

sar ao seu lugar anterior. Na sequência da Condenação de 1277, muitos ava­

liaram o que na filosofia natural de Aristóteles não podia ser possível nem

plausível. A física e a cosmologia de Aristóteles podiam funcionar em nume­

rosos mundos, se Deus os decidisse criar. Para aceitar esta possibilidade, a

ideia de Aristóteles de que apenas podiam existir um centro e uma circunfe­

rência foi abandonada em favor de uma possível multiplicidade de centros e

de circunferências - um par para cada mundo. Além disso, todos os centros

seriam iguais e nenhum seria único, lançando-se assim a dúvida sobre a dou­

trina de Aristóteles do lugar natural para os quatro elementos, que dependia

de um só mundo com um único centro e uma única circunferência.

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142 I os I'UNDAMENTOS DA CIf:NCIA MODERNA NA IDADE MeDIA

Durante a Idade Média, não houve verdadeiros defensores da existência de outros mundos. Aparentemente, era suficiente demonstrar que, se Deus

fizesse outros mundos - e admitia-se sempre que o podia fazer -, estes esta­riam sujeitos às mesmas leis que o nosso. Assim, quando Aristóteles encarara

a existência de outros mundos como absurda e impossível, os seus seguidores medievais pensavam que esses mundos eram possíveis e inteligíveis - embora só por mandato divino.

Haverá espaço ou vazio para lá do nosso mundo?

A possibilidade de Deus poder criar outros mundos, associada à definição

de Aristóteles de um vácuo como um lugar privado de corpo mas susceptível de o receber, implicava que o espaço vazio podia existir para além do nosso

mundo. Se outros mundos fossem criados, parecia plausível supor que haveria espaço vazio entre eles. Ao debater a existência de duas entidades extracósmicas

- mundos e espaço vazio -, tomava-se necessário fazer uma importante distin­

ção. A existência de outros mundos era uma mera possibilidade que deu origem a importantes debates sobre o mundo aristotélico. Porém, quanto ao espaço

vazio extracósmico, supunha-se por vezes a sua existência real, por vezes ao nível de argumentos naturais, mas mais frequentemente por razões sobrenatu­

rais. Os desenvolvimentos importantes acerca do espaço vazio na Idade Média estavam associados a Deus e ao sobrenatural. A mera possibilidade de Deus

poder criar um outro mundo foi utilizada por Robert Holkot (f. ca 1349), um

frade dominicano, para defender a existência de algo real para lá do nosso mundo. Holkot começou por inquirir se algo existe para além do nosso

mundo. Se existir, poderemos então declarar que algo :xiste realmente para além do nosso mundo. Mas se nada existe para além do nosso mundo e, no

entanto, há a possibilidade de algum corpo lá existir - dado que se partiu do ~r;~A~;~ de que Deus podia criar lá um outro mundo - conclui-se que "além

mundo existe um vácuo, porque onde um corpo pode existir mas não existe, encontramos um vácuo. Por conseguinte há [lá] agora um vácuo". Assim, a mera possibilidade de que Deus podia criar outro corpo, ou mundo,

para além do nosso mundo mesmo não o tendo realmente criado - implicava a existência de um vácuo reaL Holkot proporcionou uma brilhante explicação

de como uma proposição contrafactual podia ter consequências reais para um filósofo natural.

Foram os teólogos e não os mestres em artes que aceitaram a existência do vazio extracósmico. Os debates sobre o vazio extracósmico caíam obviamente

sob a alçada dos teólogos porque as ideias sobre o espaço infinito surgiam de

COMO A IDADE MI'IDIA TRATOU o LEGADO ARISTOT&lCO 1143

forma natural a partir das preocupações cristãs em relação à localização de

Deus no mundo e à sua imutabilidade. Entre os teólogos medievais que dis­correram sobre um vácuo extracósmico, nenhum foi mais importante do que

Thomas Bradwardine, que defendeu a existência de um espaço vazio infinito

e deduziu as respectivas propriedades dos atributos de Deus. No tratado Em Defesa de Deus contra os Pelagianos (De causa Dei contra Pelagium), Bradwar­

dine argumentou a favor da ubiquidade de Deus. Mas inquiriu ainda se essa

ubiquidade se confmava ao mundo, como Santo Agostinho e outros acredita­vam, ou se se estendia para lá dele. A ubiquidade de Deus não podia confinar­

-se ao mundo, porque, antes da criação, Deus deve ter existido eternamente no lugar onde o mundo ia ser criado. Caso contrário, Deus teria de ter vindo

de outro lado, o que é impossível, porque Deus é imutável e não se move de

um lugar para outro. Atribuir movimento a Deus seria reduzir a sua condição de perfeito a imperfeito. Dado que Deus podia ter criado o mundo em qual­

quer espaço vazio, e na medida em que não se move de um lugar para outro,

temos de admitir a existência de um número infinito de espaços vazios em qualquer dos quais Deus podia ter criado o mundo e nos quais ele existiria

eternamente. Encarados colectivamente, esses lugares constituem um espaço vazio infinito, imaginário, em que Deus é omnipresente. Para apoiar esta con~

clusão, Bradwardine argumentou que Deus seria mais completo e perfeito se

existisse em muitos lugares simultaneamente em vez de apenas num único

lugar, caso em que se confinava ao mundo que criara. Como idealizava Bradwardine a relação entre um espaço vazio, infinito,

existindo eternamente, e o Deus que o ocupava? Seria o espaço infmito inde­

pendente de Deus? Seriam Deus e o espaço infinito duas entidades indepen­dentes, co-eternas e coexistentes? Uma tal relação era inaceitável. Iria com­

prometer e diminuir a condição única de Deus. A solução residia em tornar o

espaço vazio infinito e Deus uma entidade una e inseparável, admitindo que o espaço vazio infinito era a infinita imensidade de Deus. A relação entre eles

definia o modo de Deus estabelecer a sua infinita omnipresença.

Como podia Deus estar "estendido" num espaço infinito sem ser, de algum modo, extenso? A omnipresença de Deus num espaço vazio infinito

implicará que ele seja um ser tridimensional extenso? Um tal pensamento

causava repugnância aos teólogos medievais. Consequentemente, Bradwar­dine insistiu na ideia de que Deus era "infinitamente extenso sem extensão nem dimensão".12 Mas se o espaço vazio infinito se identifica com a imensi­

dade de Deus, que é "infinitamente extenso sem extensão nem dimensão", dir-se-ia que Bradwardine pretendia negar extensão e dimensionalidade ao

espaço vazio infinito.

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'!"-

1441 os FUNDAMENTOS DA CIllNClA MODERNA NA IDADE MllDlA

Ao defender que Deus estava omnipresente num espaço vazio infinito,

Bradwardine opunha-se às posições de Santo Agostinho e de São Tomás de

Aquino, cujas opiniões concordavam com as de Aristóteles. Quando Brad­

wardine argumentava que Deus podia agir em qualquer lugar porque estava

em toda a parte, João Duns Escoto e os seus seguidores insistiam que era a vontade de Deus, não a sua omnipresença, que constituía a base da acção

divina. Deus não precisava de estar num lugar para agir sobre ele. Basta-Lhe a

vontade para que uma acção ocorresse e Deus podia exercer essa vontade

sobre um lugar afastado da Sua presença real. A presença de Deus no lugar

onde criou o mundo era desnecessária porque Ele podia ter exercido a Sua

vontade em qualquer lugar. Deste modo, Duns Escoto negou a necessidade da

presença de Deus num espaço vazio infinito.

O facto de o espaço vazio de Bradwardine não se -assemelhar a qualquer

outra descrição anterior de um vácuo torna-se evidente quando ele proclama

que "o vazio pode existir sem corpo, mas de maneira alguma poderá existir

sem Deus"Y Uma ideia bem diferente do vácuo infinito idealizado pelos ato­

mistas e pelos estóicos gregos, que pressupunham um espaço tridimensional

desprovido tanto de corpo como de espírito. A configuração cósmica adop­

tada pelos estóicos apresentava, contudo, uma notável semelhança com a

visão de Bradwardine: um mundo esférico, finito, que é um plenum e está

rodeado por um espaço vazio infinito. Os filósofos naturais escolásticos que

admitiam um espaço vazio infinito extracósmico adoptaram também a

mesma concepção do Universo.

Apesar de as ideias de Bradwardíne terem estado praticamente esquecidas

até à publicação da sua obra em 1618, aparentemente foi ele o primeiro a ligar

Deus ao espaço vazio infinito, e a considerar esse espaço Como real. Tal como a

imensidade de Deus, o espaço vazio infuúto tinha de ser real. Mas se Deus se

estendia por um espaço infinito, isso não implicaria que ele era de algum modo

divisível e composto de partes? Por exemplo, será que a parte de Deus locali­

zada numa parte do vácuo para além do mundo era idêntica à parte de Deus

associada a um planeta ou a um orbe? Era dificil falar da omnipresença de Deus

sem recorrer à linguagem da grandeza e da quantidade. A resposta a este pro­

blema incómodo não se encontrava em Bradwardíne mas fora já formulada no

século XIll (por volta de 1235) por Richard Fishacre, no seu comentário teoló­

gico às Sentenças de Pedro Lombardo. Richard argumentou que a infinita

imensidade de Deus permanece sempre indivisível porque Ele está total e

indivisivelmente em cada parte do espaço, uma interpretação que veio a ser

denominada por doutrina do "todo-em-cada-parte". Dado que Deus estava

COMO A IDADE MllDIA TRATOU O LEGADO ARISTOTID.ICO 1145

totalmente em cada parte do espaço, por menor ou maior que fosse, não era

divisível. Se o espaço, entendido como a imensidade de Deus, era também indi­visível é um aspecto que não fica claro, se bem que os corpos que ocupam par­

tes desse espaço infinito no nosso mundo fossem na verdade divisíveis.

O desenvolvimento do conceito de um Deus omnipresente num vazio infinito para além do mundo criado sem vácuo não pode ser entendido se o

isolarmos das_ poderosas correntes intelectuais que a Condenação de 1277

gerou. A ênfase dada ao poder absoluto de Deus influenciou o pensamento do

século XIV em teologia, filosofia e filosofia natural. No clima intelectual

gerado pela condenação, teria parecido estranho supor-se que a presença de

um Deus todo-poderoso se confinasse ao cosmo finito que criara, simples­

mente porque Aristóteles negara a possibilidade de existência exterior ao

mundo com base na lógica interna do seu sistema. Os seus argumentos contra

essa existência tinham sido profundamente desacreditados pelo pensamento

teológico e filosófico do século XIV. A ênfase dada a argumentos hipotéticos

veio frequentemente inspirar novas formas de encarar possibilidades que

estavam em conflito com a física e a cosmologia aristotélicas. Temos um bom exemplo, no que se refere ao espaço vazio para além do

mundo, no artigo 49 da Condenação de 1277, o qual declarava que "Deus não

podia mover os céus [ou mundo] num movimento rectilíneo; e o motivo era

a criação de um vácuo". Era agora necessário admitir que Deus podia real­

mente mover os céus, ou o mundo, num movimento rectilíneo. Contudo, se

Deus decidisse fazê-lo, três dos princípios fundamentais de Aristóteles seriam

simultaneamente violados: (1) o movimento rectilíneo do mundo deixaria

atrás de si um vácuo, o que era impossível no mundo de Aristóteles; (2) o

movimento não seria classificável como nenhum dos três movimentos natu­

rais que Aristóteles distinguira, nomeadamente os movimeritos rectilineos

ascendente e descendente e o movimento circular; e (3) o movimento rectilíneo

seria independente da noção de lugar, já que Aristóteles concluíra que, na

ausência de matéria para além do mundo, não podiam existir lugares. Se o movimento do mundo deixa atrás de si um vácuo, uma implicação

óbvia é a de que o mundo está localizado num vácuo, uma desagradável con­

sequência para os aristotélicos. Se bem que um movimento rectilíneo de todo

o mundo não fizesse sentido no sistema aristotélico, levantou questões

importantes quanto à possibilidade de ocorrência de um movimento na

ausência de lugares. Nicole Oresme acreditava que, se Deus decidisse mover

rectilinearmente o mundo, esse movimento seria absoluto, independente de

lugares. De acordo com as condições do artigo 49, o cosmo esférico era o

Page 24: 6. Como a Idade Média tratou o legado aristotélico...COMO A IDADE MWIA TRATOU O LEGADO ARISTOTIUCO 1101 6. Como a Idade Média tratou o legado aristotélico Muitos dos princípios

n

1461 os FUNDAMENTOS DA CI1'.NCIA MODERNA NA IDADE M1'.DIA

único corpo no Universo. Dado que o corpo em movimento não podia ser

relacionado com qualquer outro lugar ou corpo, o seu movimento seria absoluto num espaço vazio real, infinito adimensional. Em 1715, Samuel

Clarke insistiu, contra Gottfried Leibniz (1646-1716), em que, se Deus

moveu todo o mundo num movimento rectilíneo, esse movimento tem de

ser considerado um movimento real num espaço real absoluto, posição que

era praticamente a mesma que a de Oresme, com a excepção de o espaço de Clarke ser tridimensional.

As ideias medievais sobre espaço vazio infinito tiveram repercussão não só nos autores escolásticos dos séculos XVI e XVII, mas também em importantes

autores não escolásticos, tais como Otto von Guericke (1602-1686), Henry

More (1614-1687), Samuel Clarke (1675-1729), Sir Isaac Newton 0642-1727) e

Joseph Raphson (f. 1715 ou 1716). A cisão entre as interpretações medievais e

as interpretações escolásticas tardias acerca do espaço infinito, assim como as

dos autores não escolásticos acabados de mencionar, diz respeito à natureza

do espaço e à natureza do Deus que o preenchia: seriam dimensionais ou

adimensionais? As ideias sobre o vácuo colhidas no Mundo Antigo, em expe­

riências sobre pressão atmosférica e na construção de vácuos artificiais, leva­

ram inexoravelmente os cientistas e os filósofos não escolásticos a conceber o

espaço vazio como tridimensional. Por isso, muitos deles tiveram de ajuizar

da natureza de um Deus que era omnipresente nesse espaço vazio tridimen­sional. Alguns concluíram que Deus seria tridimensional tal como o espaço

que ocupava. Henry More, Isaac Newton, Joseph Raphson, Samuel Clarke e

Bento de Espinosa (1632-1677) fizeram parte do nÚmero dos que concluíram

que, a fim de preencher um espaço vazio infinito tridimensional, o próprio

Deus teria de ser forçosamente um ser tridimensional extenso. Por exemplo,

Joseph Raphson, um matemático e membro da Royal Society, acreditava que

Deus só poderia ser omnipresente se fosse verdadeiramente extenso no

espaço. Raphson referiu-se criticamente aos filósofos naturais escolásticos e

aos teólogos que atribuíam a Deus um sentido transcendente de extensão.

Mas como podem seres extensos, argumentava Raphson, vir de algo que só transcendentemente, e não verdadeiramente, é extenso? Para Raphson, e para

muitos outros autores que ele refere, Deus é um ser infinitamente extenso

cuja imensidade é o espaço vazio infinito. Embora Deus fosse caracterizado

como um ser tridimensional infinito, More, Newton, Raphson e outros con­

cebiam-no como imaterial. Foi Bento de Espinosa quem deu o passo final e converteu a divindade numa entidade corpórea, material, infinita e tridimen­

sional. A divinização do espaço, começada na Baixa Idade Média, encarou-o

COMO A IDADE MÉDIA TRATOU O LEGADO ARlSTOT1'.LICO 1147

inicialmente como adimensional, ou transcendente, como o exprimiria

Raphson. Na altura em que esse espaço vazio divinizado e infinito se transfor­mou no espaço da física de Newton, o Deus que o ocupava, e do qual esse

espaço era um atributo, foi transformado num ser corpóreo. Com base nos exemplos citados neste capítulo, podemos correctamente

concluir que os desvios em relação às ideias e aos principios de Aristóteles foram muitos e importantes. Os novos conceitos de espaço representavam, só por si, desvios radicais. No entanto, em vez de alterarem de forma significa­tiva a filosofia natural de Aristóteles, essas mudanças integraram-se nela. Sem análise crítica, os aristotélicos introduziram essas ideias no contexto mais vasto do Aristotelismo. Mas, que era o Aristotelismo? Agora que caracterizá­mos a filosofia natural de Aristóteles (capítulo 4) e o seu acolhimento no Ocidente (capítulo 5), e revelámos como é que os filósofos naturais medievais alteraram o legado aristotélico (neste capítulo), irei, no capítulo 7, descrever os aspectos essenciais da filosofia natural medieval e dos aristotélicos que a transformaram no fenómeno a que chamamos Aristotelismo.