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O Legado de Ricœur

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Universidade Estadual do Centro-Oeste Guarapuava - Irati - Paraná - Brasil

Fone (42) 3621 1019www.unicentro.br

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Ruth rieth leonhardtElsio José Corá

(Org.)

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CENTRO-OESTE UNICENTROReitor: Vitor Hugo Zanette

Vice-Reitor: Aldo Nelson Bona

Copyright © 2011 Editora UNICENTRONota: O conteúdo desta obra é de exclusiva responsabilidade de seus autores. É permitida a reprodução desde que indicada a autoria.

Editora UNICENTRODireção: Beatriz Anselmo Olinto

Assessoria Técnica: Bruna Silva, Luciano Farinha Watzlawick, Luiz Gilberto Bertotti, Ruth Rieth Leonhardt e Waldemar Feller

Divisão de Editoração: Renata DaleteseDiagramadores: André Justus Czovny, Fernanda Nabas Gongra,

Lucas Silva Casarini, Marcio Fraga de OliveiraDiagramação: Eduardo Alexandre Santos de Oliveira e Marcio Fraga de

OliveiraCapa: Lucas Silva Casarini e Marcio Fraga de Oliveira

Imagem da Capa: Paul Ricœur 1999, (copyright: C.Goldenstein)Correção: Dalila Oliva de Lima Oliveira

Impressão: Gráfica UNICENTRO

Publicação aprovada pelo Conselho Editoria da UNICENTRO

Ficha CatalográficaCatalogação na Publicação

Regiane de Souza Martins -CRB9/1372

L496 O Legado de Ricoeur / Organização de Ruth Rieth Leonhardt, Elsio José Corá. – – Guarapuava: Unicentro, 2011.

408 p.

BibliografiaDiversos autoresISBN 978-85-7891-116-4

1. Filosofia. 2. Filosofia Francesa. 3. Filósofos Franceses – Biografia. 3. Paul Ricoeur, 1913-2005 – Filósofo Francês. I. Autores. II. Organizadores. III. Título.

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AGRADECIMENTOS

A todos os autores que, com sua produção intelectual e pesquisas sobre Paul Ricœur contribuíram para a consecução deste livro;

À reduzida mas eficiente equipe da Editora da UNICENTRO, sob a orientação da Profª Drª Beatriz Anselmo Olinto que transformam textos em obras de arte;

Ao Fonds Ricœur, na pessoa de Catherine Goldenstein Conservadora dos arquivos Fonds Ricœur e membro do Comitê Editorial.

O sincero agradecimento dos organizadores.

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Je crois à l’efficacité de la réflexion, parce que je crois que la grandeur de l’homme est dans la dialectique du travail et de la parole: le dire et le faire, le signifier et l’agir sont trop mêlés pour qui une opposition durable et profonde puisse être instituée entre «théoria» et «praxis».

Paul Ricœur

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APRESENTAÇÃO

Organizado por Ruth Rieth Leonhardt e Elsio José Corá, O Legado de Ricœur aborda a contribuição do filósofo francês em 14 capítulos, que partem de um exame do seu percurso filosófico e se encerram com um balanço crítico do problema da ação.

O livro é, a nosso ver, uma das mais relevantes publicações sobre Ricœur editadas no Brasil recentemente. Congrega autores de diferentes universidades do país e estudiosos importantes da Itália e Espanha, como Domenico Jervolino e Marcelino Agis de Villaverde; conta também com autores do Chile, Canadá e Argentina, representados por Patricio Mena Malet, Gaëlle Fiasse e Aníbal Fornari, respectivamente.

Aldo Nelson Bona expõe o “percurso dialógico do pensamento de Paul Ricœur”, estudando a investigação do autor francês a respeito do sujeito humano. Texto que abre o livro, põe ao alcance do leitor uma biografia crítica que mostra, de um lado, a trajetória intelectual do filósofo e de outro, a progressiva construção de um pensamento original, nas suas diferentes etapas.

O capítulo seguinte é de Domenico Jervolino, professor da Universidade de Nápoles, que estuda o laço entre “discurso filosófico e existência”, no pensamento ricœuriano

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pós Kierkegaard. Está centrado na contraposição Hegel-Kierkegaard, que Ricœur tenta solucionar, respondendo à indagação : “como é possível filosofar depois de Kierkegaard?”.

O terceiro capítulo é assinado por Patricio Mena Malet, da Universidade Alberto Hurtado, do Chile e focaliza o problema da hospitalidade e suas relações com o problema da ação, da superabundância e da tradução. O autor defende a tese de que a hospitalidade é um dos paradigmas através dos quais se pode compreender a obra do pensador francês, seguindo hipótese levantada por Domenico Jervolino.

Noeli Dutra Rossato e João Batista Botton, da Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, abordam a correlação entre tempo e narrativa em Ricœur e Agostinho, em dois momentos do texto Temps et récit, examinando, no primeiro volume, as aporias do tempo no Confissões; e no terceiro volume, estudando a relação entre o tempo da alma e o tempo do mundo, também no Confissões. Mostram como o pensador francês equaciona os impasses das teorias da temporalidade, propondo uma solução original à dialética tempo-eternidade. Os autores fazem um balanço crítico da contribuição de Ricœur, destacando sua importância e seus limites.

Fernando Nascimento, da Pontífice Universidade Católica de São Paulo, estuda a compreensão de si na ética Ricœuriana, centrando a atenção nas últimas obras do filósofo: Sí–mesmo como um outro; A memória, a história, o esquecimento; O percurso do reconhecimento. Examina também as fontes aristotélicas da reflexão do pensador.

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O texto seguinte estuda a problemática do perdão, que emerge na obra tardia de Ricœur, A memória, a história, o esquecimento. É uma contribuição de Gaëlle Fiasse, da Universidade McGill, do Canadá, que conecta o tema do perdão com os da vida e do reconhecimento, bem como às questões do homem capaz, de seu agir e da felicidade, e aos temas da imputabilidade, responsabilidade. Assinala, ainda, os debates de Ricœur com as teses de Hartmann, de Arendt, de Jankélevitch.

Coube a Hélio Salles Gentil, da Universidade São Judas Tadeu, de São Paulo, considerar a relação entre ética e ficção, à luz da problemática da ação, proposta em Tempo e Narrativa, evidenciando analogias com as perspectivas de Gadamer, assim como suas fontes na tradição aristotélica.

O estudo da dívida de Ricœur no A metáfora viva com a herança aristotélica da Poética e da Retórica foi levado a efeito por Érico Fumero de Oliveira, doutorando em Filosofia pela Universidade de Santiago de Compostela. O escrito é muito interessante, na medida em que escrutina não só o diálogo com as obras de Aristóteles, mas também com a filosofia da linguagem e a hermenêutica. Apoiando-se no trabalho excepcional de Villaverde, Do símbolo à metáfora, Érico relaciona A metáfora viva com outros textos do pensador francês, Teoria da interpretação e Tempo e narrativa, mostrando o laço da meditação ricœuriana com a filosofia anglo-saxã contemporânea.

Agis de Villaverde, da Universidade de Santiago de Compostela, aborda os temas da morte e da alteridade em

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Ricœur, mostrando a importância do assunto no contexto mais amplo da filosofia existencial e das filosofias de Heidegger e Lévinas, onde temporalidade e finitude expõem a questão da morte como desafio e enigma. Mostra o desdobramento da reflexão do pensador francês sobre essa questão em Sí-mesmo como um outro e Percurso do reconhecimento. O último ponto do texto do estudioso espanhol está centrado na consideração da experiência da morte dos outros, que reconduz cada um à consciência da própria mortalidade.

O escrito seguinte, de Monique Castillo, estuda a relação entre ética e moral , na reflexão de nosso filósofo. A dupla vertente dessa relação, exposta em Sí-mesmo como um outro, é examinada através da consideração das duas reivindicações essenciais da filosofia prática no século XX: a primeira retoma a tradição aristotélica da vida boa, expressa pela fenomenologia e hermenêutica de que Gadamer, Arendt, Lévinas, Jonas seriam os expoentes; a segunda remete a Kant e à sua redescoberta pela ética da discussão que visa refundar a moralidade das normas, no sentido apontado por Apel, Habermas, Rawls. Considerando os desafios que Ricœur discerne na distinção entre ética e moral, Castillo estuda a eticidade da vida boa, os laços entre moral e vida em Kant, bem como a questão da fundamentação da ética. Os temas do reconhecimento, da inter-subjetividade, da memória e da justiça lançam as bases, no entender de Castillo, de uma ética reconstrutiva, nos moldes da que será ulteriormente desenvolvida por J. M. Ferry, um dos exemplos da posteridade Ricœuriana.

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Pedro Paulo Alves dos Santos, da PUC do Rio de Janeiro, põe em relevo o “diálogo incipiente [entre] a exegese bíblica contemporânea e as teorias (do texto) hermenêuticas na obra de Paul Ricœur”, partindo da evolução da hermenêutica, na esteira de Greisch. Compreende o projeto de Ricœur como a elaboração de uma teoria geral da hermenêutica, nas perspectivas propostas, em ocasiões diversas, por Hahn e Villaverde. Estuda a possibilidade da inspiração em Ricœur com a finalidade de aprimorar a exegese contemporânea de textos sacros, na direção apontada pelos trabalhos de Vanni, Sequeri, Angelini e Bertuletti. Apoia-se ainda em Agamben, Castelli, Besançon, David, Blanchot, dentre outros.

Elsio José Corá, jovem doutor pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, com uma tese sobre os escritos do último Ricœur, comparece abordando, sob novo enfoque, a relação entre ética e moral, para estudar o “sujeito encarnado” ricœuriano. Examinando os conceitos do reconhecimento e inter-subjetividade, Corá expõe a contribuição original do pensador francês, perpassando a via longa da construção de uma ética, desde O voluntário e o involuntário, que marca a primeira fenomenologia de Ricœur, até os trabalhos tardios, nos quais a busca de uma sabedoria prática conduz à formulação em Sí-mesmo como um outro, da primazia da ética sobre a moral, mostrando a sua complementaridade.

Aníbal Fornari, da Universidade Católica de Santa Fé, na Argentina, e membro do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas, trata da “atestação e ampliação da

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razão em Paul Ricœur”. Explicitando o conceito de atestação, Fornari estabelece laços entre esse conceito e o de símbolo, de linguagem simbólica e caracteriza o horizonte da atestação à luz da dialética entre ipseidade e mesmidade, que o pensador francês aborda em Sí- mesmo como um outro. Estuda o estatuto antropológico da atestação, considerando-a à luz da polissemia da noção de alteridade. Para o autor argentino, a atestação é método para alcançar certezas existenciais, testemunho em nós e fora de nós da relação com o ser. Considera a raiz da atestação na dialética entre razão e sentimento, existência e conhecimento, bem como suas relações com a liberdade, a suspeita, o reconhecimento de si e do outro. Mostra, enfim, que a consciência é o lugar próprio da atestação.

O livro se encerra com o texto de Ruth Rieth Leonhardt, da Universidade Estadual do Centro-Oeste - Paraná, uma das organizadoras da obra. Seu tema é a correlação entre o dizer e o fazer, a palavra e a ação, na meditação sobre a linguagem, de Ricœur. Mostra o campo da linguagem como fulcral, na filosofia contemporânea, nos seus aspectos epistemológicos e antropológicos. Diversamente das escolas de Cambridge e Oxford, Ricœur, embora dialogando com os autores e textos da filosofia anglo-saxã, liga-se estreitamente à fenomenologia e à hermenêutica. Desse laço e desse diálogo, surge uma reflexão original, que caracteriza o homem como homem capaz, para o qual falar e agir seriam modos de expressão de suas aptidões. O discurso é fixado pelo texto e é investigando o problema dos atos do discurso, a ação no discurso, que o filósofo expõe a capacidade do homem de dizer e assim intervir no mundo.

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A reflexão sobre a linguagem, o discurso e os atos da fala são caminhos para determinar a ontologia do homem capaz. É a linguagem, enquanto palavra, que interessa a Ricœur: é por ela que o homem se constitui como um diálogo com o mundo, com os outros e consigo.

O Legado de Ricœur é um livro importante, porque sublinha, nos diferentes enfoques que apresenta da multiplicidade de temas e aspectos a obra do pensador francês, seu fio condutor: a ética.

Há muitos anos, visitando Ricœur em sua residência, em Châtenay- Malabry, nos arredores de Paris, e perguntando sobre sua trajetória intelectual, ele afirmou que seu ponto de partida fora o problema ético-ontológico, assim como seu ponto de chegada, nas últimas obras que então escrevera. Era a década de 80 e a obra essencial que despertara meu interesse: Temps et récit. Numa conversa iluminadora, de cerca de duas horas, Ricœur traçou um resumo de sua caminhada, lançando pontos de referência que nortearam minhas pesquisas ulteriores.

No livro que vem a público, vejo a fecundidade e o deslumbramento que a obra do mestre desencadeia: as interrogações que marcam os diferentes capítulos, estão entretecidas em torno do percurso, antes de mais nada dialógico, com a tradição filosófica e a contemporaneidade; um percurso que indaga sobre o homem e a finalidade de sua existência e expõe a uma imensa curiosidade, um permanente tateio visando compreender sempre, de modo cada vez mais

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agudo, palavra e símbolo, memória e perdão, mimesis e mythos, vida e morte, si-mesmo e o outro.

O legado de Paul Ricœur está presente nos textos cuidadosos, apurados e críticos que a atenção a seu pensamento fez vir à luz.

Constança Marcondes CesarUniversidade Federal de Sergipe

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SUMÁRIO

PREFÁCIO .................................................................................. 19

INTERROGAÇÃO SOBRE O SUJEITO: PERCURSODIALÓGICO DO PENSAMENTO DE PAUL RICŒUR ......... 25Aldo Nelson Bona

DISCORSO FILOSOFICO ED ESISTENZA IN RICŒUR:FILOSOFARE DOPO KIERKEGAARD ................................... 57Domenico Jervolino

LA DONACIÓN DE LA HOSPITALIDAD:UNITINERARIO POR LA ACCIÓN, LA SOBREABUNDANCIAY LA TRADUCCIÓN ............................................................... 71Patricio Mena Malet

TEMPO NARRADO: RICŒUR E AGOSTINHO ...................111

Noeli Dutra Rossatto João Batista Botton

PREMISSAS DA SUSTENTAÇÃO DE SI NA ÉTICA DEPAUL RICŒUR .........................................................................151Fernando Nascimento

PAUL RICŒUR E O PERDÃO COMO ALÉM DA AÇÃO .....167

Gaëlle Fiasse

ÉTICA E FICÇÃO: UMA RELAÇÃO A PARTIR DAHERMENÊUTICA DE PAUL RICŒUR ..................................195

Hélio Salles Gentil

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A HERANÇA ARISTOTÉLICA DA POÉTICA E DARETÓRICA NA OBRA A METÓFORA VIVA DE PAULRICŒUR ...................................................................................211

Érico Fumero de Oliveira

LA MIRADA DEL OTRO, MÁS ALLÁ DE LA MUERTE .......241

Marcelino Agís Villaverde

ETHIQUE ET MORALE SELON PAUL RICŒUR ..................265

Monique Castillo

UM DIÁLOGO INCIPIENTE: A EXEGESE BÍBLICACONTEMPORÂNEA E AS TEORIAS (DO TEXTO)HERMENÊUTICAS NA OBRA DE PAUL RICŒUR. ............289

Pedro Paulo Alves dos Santos

ENTRE A ÉTICA E A MORAL: O “SUJEITOENCARNADO” RICŒURIANO ............................................ 315

Elsio José Corá

ATESTACIÓN Y AMPLIACIÓN DE LA RAZÓN,DESDE P. RICŒUR ................................................................. 343

Aníbal Fornari

DIZER O FAZER: A PALAVRA E A AÇÃO ........................... 371

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PREFÁCIO

Este é um livro dedicado a estudos da filosofia de Paul Ricœur. É um tributo ao autor e um reconhecimento da validade de sua obra.

A História da Filosofia se constitui em torno de grandes pensadores, suas ideias e obras, que marcaram significativamente a época em que viveram e contagiaram o mundo com suas concepções constituindo-se elos de uma sólida corrente, elos que retratam épocas e culturas e influenciam o espírito dos tempos e se transformaram em patrimônio indestrutível do pensamento. Antiguidade, Idade Média, Moderna ou Contemporânea, em píncaros estão inscritos os nomes daqueles que por suas reflexões e elaborações teóricas fizeram-se paradigmas para a explicação dos acontecimentos e balizamento dos fatos.

Questões como a natureza, a ética, a política, o homem e suas angústias, indagações e idiossincrasias são recorrentes em todos os tempos, pois, mesmo mudando o mundo e a característica dos problemas, o homem continua o mesmo ser, configurado por Aristóteles, naturalmente desejoso de saber e movido pelo assombro e a admiração.

A Filosofia Contemporânea pode ser dita eclética pela diversidade dos temas que afloram e as múltiplas linhas em que se ramifica, fugindo aos padrões de constituição de grandes sistemas que caracterizaram outros momentos da filosofia.

Dentre os muitos pensadores do século XX, um homem, protótipo do ser apontado por Aristóteles, é Paul

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Ricœur, um filósofo merecedor de respeito, consideração e apreço e que se encontra no panteão dos grandes filósofos. Olhando-se fotos de Ricœur, vê-se um senhor simpático, de olhar bondoso, sensível, denotando calma, tranquilidade, inspirando confiança. Quem lê sua biografia encontra ainda um homem sereno que ao fazer inventário e retrospectiva de seu trabalho mostra-se modesto, comedido e assombrado pelo alcance e a ressonância de suas reflexões. Se a foto não revela, a biografia descreve um sujeito resoluto, definido no seu existir como pessoalidade ativa e desnudando-se, tal como ele mesmo percebe-se, partícipe dos acontecimentos. Aí também homem sofredor, profundamente ferido pela vida, por fatos de ordem pessoal e profissional. Tais fatos, porém, não abateram o espírito forte, não o isolaram no enclausuramento pessoal pois não é possível apartar-se da vida. Mesmo quando fundamente golpeada, ainda assim continua e tem sentido vivê-la dignamente. As aflições esculpiram um homem alentado pela filosofia e pela religiosidade, presentes em seu pensar, mas sem interferirem uma na outra. Apesar dos percalços (ou deve-se dizer por causa deles?), Ricœur desenvolve uma filosofia sólida, desafiadora, aberta, com teses reveladoras de um pensar sendo instigado quando provocado ou ferido. A filosofia e a religião, em planos diferentes, são os bálsamos a mitigarem as dores implícitas ao ato mesmo do viver não imune às insídias do mundo.

Esta figura aqui descrita é o grande filósofo que movido pelas inquietações mergulha profundamente na filosofia de todos os tempos, estabelecendo com ela uma

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relação basilar, para encontrar respostas. É assim que dialoga com os filósofos e seus pontos de vista, aprende com eles, discute e obsta contra certas posições, expressa com clareza e mestria as próprias elaborações conceituais e nelas reponta e faz ressoar a fertilidade do seu pensar fundamentado e solidamente alicerçado nos ensinamentos dos mestres que são grandes. O filósofo, em toda sua obra, justifica pontos de vista, formula e define posições teóricas a produzirem o movimento dessa filosofia viva, contextualizada no mundo da vida a ser interpretado, e coerente com sua visão de mundo, com um modelo de pensar autônomo.

Paul Ricœur é um autor fascinante. Mas em primeiro lugar é um professor. Muitos de seus escritos são aulas e conferências. Produzir tão importante obra denota um homem aplicado, meticuloso e disciplinado no trabalho, portador de uma mensagem e empenhado em difundi-la.

A medula da obra de Ricœur, a unidade e organicidade desse pensar é a construção de uma ontologia que se configura no homem capaz. Eis o grande tema do autor: o homem capaz, capaz de agir, de falar, de narrar e de ser imputado por suas ações, tal como ele define.

Este livro é dedicado ao pensamento de Paul Ricœur. É um tributo ao autor e um reconhecimento da validade de sua obra e nesse sentido não se põe como um texto polêmico. Objetiva preservar vivo o seu legado e conquistar maior número de estudiosos de seu filosofar e contribuir para preservá-lo do esquecimento.

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A questão da memória é cara a Ricœur. Ele trata do tema e remonta a Platão ao considerá-la uma representação, um reavivamento de algo ausente, já desaparecido, fazendo-o novamente presente. E conclui que contar com alguém e contar para alguém, ou seja importar-se e ser considerado pelo próximo, pelo outro, é uma réplica da amizade a sobrepor-se à morte, o evento que interrompe todos os planos e intenções mas não consegue apagar a existência de alguém para aqueles que lamentam sua morte. A memória é pois de algo que deixa o domínio da indiferença e se inscreve em significação de algo que tem sentido conservar-se.

E a obra de Ricœur tem todo o sentido de ser conservada pois este é um modo de lembrar e de não deixar esquecer. Se em vida Ricœur fez muitos discípulos e foi reconhecido pela produção, depois de sua morte, em 2005, o círculo dos interessados na sua filosofia se amplia cada vez mais, o número de adeptos multiplica-se exponencialmente graças aos programas de pós-graduação cujos mestres transformam-se em propagadores, ao orientar pesquisadores na temática da obra ricœuriana descobrindo-a nas ricas e dinâmicas nuances que comporta.

O Fonds Ricœur, http://www.fondsRicœur.fr/intro.php constituído na França, guarda a biblioteca, os livros, artigos, manuscritos confiados pelo autor e tem como tarefa organizar os papéis de Ricœur e responsabilizar-se pela gestão editorial de seus textos. O Fonds objetiva a difusão da obra de Ricœur com a manutenção de uma biblioteca incentivando eventos como colóquios e jornadas de estudos sobre Ricœur

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e abriga em seu site trabalhos produzidos, disponibiliza textos e palestras raramente encontrados, preservando dessa forma a memória para que Ricœur permaneça vivo, para além da morte.

Usufruindo desse legado, este livro tem a ambição de também ser um porta-voz do pensar do forjador dessa aventura pelos caminhos da filosofia. É uma sala de exposições em que retratos da filosofia ricoueriana estão exibidos. É uma forma de lembrar, de não permitir esquecer. Nesse sentido é que se justifica a organização desse livro sobre o legado de Paul Ricœur.

Os textos aqui publicados foram reunidos graças ao esforço do Professor Elsio José Corá que, por seus contatos, conseguiu dos autores os trabalhos e a autorização para publicá-los. São pesquisadores de diferentes continentes, de várias universidades, mostrando um pequeno mapa do quanto se espalhou o interesse pelo pensador.

As construções discursivas estão feitas sob diferentes perspectivas, proporcionando um conhecimento do conjunto do trabalho de Paul Ricœur. Desta forma, espera-se que este livro seja mais um raio de luz a difundir e multiplicar o brilho do filósofo.

A publicação desse livro é resultado do esforço de muitos. É necessário fazer um agradecimento especial a cada um dos autores que disponibilizaram seus trabalhos e se estende à Professora Constança Marcondes Cesar, um dos principais nomes entre os pesquisadores de Ricœur no Brasil que aceitou fazer a apresentação da obra.

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Um muito obrigado ao Reitor da UNICENTRO Vitor Hugo Zanete, ao vice-Reitor Aldo Nelson Bona e à equipe da Editora da Universidade que desde o primeiro momento acolheu e incentivou a ideia dessa publicação.

A viabilização econômica desse livro é devida ao financiamento da Fundação Araucária, órgão de fomento à publicações do governo do Estado do Paraná.

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