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Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Maria de Fátima Pereira O combate à pobreza Do Programa Bolsa Família ao Brasil Sem Miséria: a pobreza institucionalizada na prática de técnicos e gestores públicos CAMPINAS 2016

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Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Maria de Fátima Pereira

O combate à pobreza Do Programa Bolsa Família ao Brasil Sem Miséria: a pobreza institucionalizada

na prática de técnicos e gestores públicos

CAMPINAS 2016

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Doutorado composta pelos

Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 21 de

Março de 2016, considerou a candidata MARIA DE FÁTIMA PEREIRA aprovada.

Prof. Dr. Valeriano Mendes Ferreira Costa – IFCH/Ciências Políticas – UNICAMP – Orientador. Prof. Dr. Wagner de Melo Romão – IFCH/Ciências Políticas – UNICAMP Profa. Dra. Luciana Ferreira Tatagiba – IFCH/Ciências Políticas – UNICAMP Profa. Dra. Carolina Raquel Duarte de Mello Justo – Universidade Federal de São Carlos – UFSCAR Profa. Dra. Milene Peixoto Ávila – Universidade Estadual de Santa Cruz-Ilhéus-BA A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna.

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Dedico esta tese aos meus irmãos e aos meus pais, Maria Grigório Lima e João Pereira Lima, pela vida, pelo amor, pela dignidade, por tudo que são e ensinam a mim e ao mundo.

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Agradecimentos

À expressão maior de amor e do bem nesta existência, Deus.

Agradeço a força e a serenidade de sempre me reinventar.

Amor maior que se reflete na capacidade de sermos humanos diante do outro.

A todos os meus amigos e amigas que me ensinam tanto em cada gesto.

Ao meu orientador, Valeriano Costa, que me marcou por sua imensa sabedoria e tamanha

simplicidade, qualidades tão raras de andarem juntas.

À Luciana Jaccoud, pelo acolhimento quando precisava de orientação e estímulo.

Ao meu amigo professor, Dr. João Batista, que de maneira tão delicada participou de minha banca,

mesmo que de maneira indireta.

A todos os amigos que fiz enquanto morei em Campinas, uma das melhores fases.

Ao CNPq, por me proporcionar a dedicação ao doutorado.

À Unicamp, por tudo.

Ao Marcos Costa, por tudo: pelo amor e pelo carinho tão recíproco em mim.

Ao Rogério Oliveira, um presente maior de amor em tudo!

À minha família, meu orgulho e exemplo de dignidade.

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Resumo

O debate sobre a pobreza e a intervenção estatal mediado pelo discurso de “combate à pobreza”, configura-se em um tema central na agenda política, econômica e social no Brasil. A discussão se consolida com a experiência do programa de transferência de renda condicionada, Bolsa Família, implantado há mais de 13 anos. O objetivo desta tese foi, por meio da discussão dos processos de institucionalização do combate à pobreza, descentralizar o foco dos usuários do Programa Bolsa Família (PBF) para um estudo que priorizasse uma pesquisa com os Street-level bureaucracts (LIPSKY, 2010) ou os técnicos burocratas de nível de rua do PBF, mais conhecidos no senso comum institucional como “técnicos que trabalham na ponta”. Trata-se de atores estratégicos responsáveis pela inferência direta na gestão, execução e atendimento aos considerados “pobres” nos municípios brasileiros. O olhar analítico da pesquisa buscou compreender como tais sujeitos, com base na racionalização de sua prática profissional, constroem suas percepções sobre o PBF, a pobreza e sobre o “pobre”. Com isso pretendeu-se investigar se a operacionalização cotidiana desses sujeitos é medida por valorações, julgamentos morais e sociais geradores de desqualificação social (PAUGAM, 2003) dos usuários atendidos. O recorte da pesquisa priorizou em sua metodologia trabalhar com entrevistas de roteiro semiestruturado com representação de técnicos e gestores de todas as regiões brasileiras, de forma que pudéssemos realizar uma análise comparativa dos dados sobre as diversas percepções encontradas. Fez parte do campo da pesquisa, a observação participante em reuniões, conselhos e capacitações voltados aos técnicos burocratas de nível rua realizados pelo Governo Federal em Brasília durante os anos de 2013 a 2015. A contribuição dos resultados neste texto final busca instrumentalizar, sob a ótica das Ciências Sociais, o debate sobre as políticas públicas de combate à pobreza e reflete a importância de uma abordagem qualitativa nessa esfera. Afasta-se, assim, de uma análise puramente avaliativa das políticas públicas e adentra nas interações sociais que ocorrem nos diversos campos das ações de combate à pobreza. O resultado ratifica o desafio encontrado nas ressignificações da pobreza, que emergem da relação estabelecida entre os técnicos burocratas de nível de rua versus pobres a partir de seus espaços de convergência e divergência. Nessa dinâmica, estão as estruturas normativas do Estado, por meio do PBF, que permeiam a construção e desconstrução de perspectivas e conceitos sobre os pobres.

Palavras-chave: Institucionalização da Pobreza. Pobre. Programa Bolsa Família. Técnicos Burocratas de Nível de Rua.

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Abstract

The debate on poverty and state intervention, mediated by the "poverty combat" discourse is a central theme in the political, economic and social agenda in Brazil. The discussion is strengthened by the experience of the conditional cash transfer program, Bolsa Família, established for more than 13 years. The purpouse of this thesis was to take focus away from BFP users, so that such a study would target specific research with street-level bureaucracts (LIPSKY, 2010) or the street-level technical bureaucracts, better known in institutional common sense as "technicians working on the end", while debating the fight against poverty institutionalization processes. These are strategic actors responsible for the direct inference in management, execution and service to those considered "poor" in Brazilian municipalities. The analytical research prospect sought to understand how these subjects, based on the rationalization of their professional practice, build their perceptions of the BFP, poverty and the "poor". Given this premise, the focal point was to investigate whether the daily operation of these individuals is measured by valuations, moral and social judgments generators of social disqualification (PAUGAM, 2003) of the enroled population. The research methodology approach focused on semi-structured interviews with representatives of technicians and managers from all regions of Brazil, in order to carry out a comparative analysis of data on the many diverse perceptions encountered throughout the process. The research field combined participant observation in meetings and councils, as well as training focused on street-level technichal bureaucrats conducted by the federal government in Brasilia during the years 2013 to 2015. The contribution of the results on this final text seeks to instrumentalize the debate on public policies to combat poverty, under the perspective of Social sciences and, therefore, reflect the importance of a qualitative approach in this sphere. Hence, the concept allows us to move away from purely evaluative analysis of public policies and enter in social interactions that occur in the various fields of anti-poverty actions. The result confirms the challenge found in poverty reinterpretations, that emerge from the relationship established between the street-level technical bureaucrats versus the poor, each from their areas of convergence and divergence. Within these dynamics, are the regulatory frameworks of the state, through BFP, which permeate the construction and deconstruction of concepts and perspectives on the poor.

Keywords: Institutionalization of Poverty. The Poor. Bolsa Família Program. Street-level Technical Bureaucrats.

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Lista de Siglas

ACESSUAS Programa Nacional de. Promoção do Acesso ao Mundo do Trabalho

ACS Agente Comunitário de Saúde

ANATEL Agência Nacional de Telecomunicações

APS Agente de Proteção Social

BA Estado da Bahia

BID Banco Interamericano de Desenvolvimento

BIRD Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento

BM Banco Mundial

BNB Banco do Nordeste

BPC Benefício de Prestação Continuada

BSM Plano Brasil Sem Miséria

BSP Benefício para Superação da Extrema Pobreza

BV Benefício Variável de 0 a 15 anos

BVCE Benefício Variável de Caráter Extraordinário

BVG Benefício Variável à Gestante

BVJ Benefício Variável Vinculado ao Adolescente

BVN Benefício Variável Nutriz

CadÚnico Cadastro Social do Governo Federal para Programas Sociais

CAP Caixas de Aposentadoria e Pensão

CAPs Centro de Atendimento Psicossocial

CASDF Conselho de Assistência Social do Distrito Federal

CE Estado do Ceará

CEAS Centro de Estudos e Ação Social

CEAS Conselho Estadual de Assistência Social

CEDEPLAR Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional

CEPAL Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe

CFB Constituição Federal Brasileira

CGB Coordenadoria Gestão de Benefícios

CGPAN Coordenação Geral da Política de Nutrição e Alimentação

CGSSF Coordenação Geral de Serviços Socioassistenciais às Famílias

CGU Controladoria-Geral da União

CIB Comissão Intergestores Bipartite

CIT Comissão Intergestores Tripartite

CLT Consolidação das Leis Trabalhistas

CMAS Conselhos Municipais de Assistência Social

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CNAS Conselho Nacional de Assistência Social

CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

COFINS Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social

CONSEA Conselho de Segurança Alimentar

CPMF Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira

CRAF Centro de Referência Ação Família

CRAS Centro de Referência e Assistência Social

CREAS Centro de Referência Especializada de Assistência Social

DAB Departamento de Atenção Básica

DASP Departamento Administrativo do Serviço Público

DF Distrito Federal

EITC Eamed Income Tax Credit

ENAP Escola Nacional de Administração pública

FAO Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação

FGTS Fundo de Garantia do Tempo de Serviço

FGV Fundação Getulio Vargas

FHC Fernando Henrique Cardoso

FMI Fundo Monetário Internacional

FSE Fundo Social de Emergência

FUNDEF Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e

Valorização do Magistério

GAEP Grupo de Avaliação e Estudo da Pobreza e de Políticas direcionadas à

Pobreza

GP Grande Porte

HIV Vírus da Imunodeficiência Humana

IA Insatisfação Alimentar

IAPM Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Marítimos

IBASE Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

ICS Instâncias de Controle Social

IDH Índice de Desenvolvimento Humano

IGD Índice de Gestão Descentralizada

IGD-E Gestão Descentralizada Estadual

IGD-M Gestão Descentralizada Municipal

INPC Índice Nacional de Preços ao Consumidor

IPASE Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado

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IPC International Poverty Centre

IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

IPI Imposto sobre Produtos Industrializados

IPVS Índice Paulista de Vulnerabilidade Social

JK Juscelino Kubistchek

LBA Legião Brasileira de Assistência

LI Linha de Indigência

LOAS Lei Orgânica de Assistência Social

LP Linha da Pobreza

MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário

MDS Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome

MEC Ministério da Educação

MG Estado de Minas Gerais

MP Médio Porte

MS Ministério da Saúde

MTE Ministério do Trabalho e Emprego

NEPP Núcleo de Estudos de Políticas Públicas

NIS Número de Identificação Social

NOB Norma Operacional Básica

ODM Objetivos de Desenvolvimento do Milênio

OMC Organização Mundial do Comércio

OIT Organização Internacional do Trabalho

ONGs Organizações Não Governamentais

ONU Organização das Nações Unidas

PA Estado do Pará

PBF Programa Bolsa Família

PAC Plano de Aceleração do Crescimento

PAF Programa Ação Família

PAIF Serviço de proteção e Atendimento Integral à Família

PBF Programa Bolsa Família

PEAFI Serviço Especializado de Proteção Integral às Famílias

PETI Programa de Erradicação do Trabalho Infantil

PGRFMM Programa de garantia de Renda Familiar Mínima Municipal

PGRM Programa de Garantia de Renda Mínima

PIB Produto Interno Bruto

PIS Programa de Integração Social

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PLANSEQ Plano Setorial de Qualificação e Inserção Profissional

PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios

PNAS Política Nacional de Assistência Social

PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

PPA Plano Plurianual

PPI Pequeno Porte I

PPII Pequeno Porte II

PR Estado do Paraná

PRONAF Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar

PRONATEC Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego

PSC Partido Social Cristão

PSDB Partido da Social Democracia Brasileira

PSF Programa Saúde da Família

PT Partido dos Trabalhadores

PTR Programas de Transferência de Renda

RENMAS Rede Nacional de Monitoramento da Assistência Social

RIDE Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno

RJ Estado do Rio de Janeiro

RMI Renevu Minimum D’Insertion

RN Estado do Rio Grande do Norte

RPF Rede Pública de Fiscalização do Programa Bolsa Família

RS Estado do Rio Grande do Sul

SAGI Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação

SAS Secretaria de Atenção à Saúde

SC Estado de Santa Catarina

SECAD Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

SENAI Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial

SENARC Secretaria Nacional de Renda de Cidadania

SESAN Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

SESEP Secretaria Executiva de Superação da Extrema Pobreza

SESEP Secretaria Extraordinária para Superação da Extrema Pobreza

SESI Serviço Social da Indústria

SGB Sistema de Gestão de Benefícios

SIBEC Sistema de Benefícios ao Cidadão

SICON Sistema de Condicionalidades do Programa Bolsa Família

SIGPBF Sistema de Gestão do Programa Bolsa Família

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SISVAN Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional

SLU Sistema de Limpeza Urbana

SMADS Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social

SNAS Secretaria Nacional de Assistência Social

SP Estado de São Paulo

SUAS Sistema Único de Assistência Social

SUS Sistema Único de Saúde

TCU Tribunal de Contas da União

TMC Transferências Monetárias Condicionadas

UBS Unidade Básica de Saúde

UFSCar Universidade Federal de São Carlos

UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação

USP Universidade de São Paulo

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Lista de Quadros

-

1945 no Brasil ....................................................................................

45

Quadro 2 – Governo FHC: Estratégia de Desenvolvimento Social .. 67

Quadro 3 – Tipos de neoinstitucionalismo ........................................ 103

Quadro 4 – Programas de Transferência de renda em países da

América Latina, América Central, Caribe e México.

118

Quadro 5 – Tipos de benefícios concedidos pelo Programa Bolsa

Família/Maio 2015 .............................................................................

126

Quadro 6 – Efeitos Gradativos para descumprimento do Programa

Bolsa Família pelas Famílias .............................................................

131

Quadro 7 – PBF e BSM: semelhanças e diferenças eixos e

objetivos .............................................................................................

140

Quadro 8 – Programas e Serviços que compõem as ações do BSM. 141

Quadro 9 – Planos estaduais de superação da extrema pobreza

(até ago/2014).....................................................................................

143

Quadro 10 – Estados que complementam de renda do Bolsa

Família (Agosto 2014) .......................................................................

145

Quadro 11 – Porte de Municípios PNAS (2005)/MDS........................ 158

Quadro 12 – Classificação de Municípios por porte (2005)/MDS 159

Quadro 13 – Competências dos entes federativos nos Programas e

Serviços da Assistência Social............................................................

169

Quadro 14 – Competências dos entes federativos no Programa

Bolsa Família.......................................................................................

171

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Lista de Tabelas

Tabela 1 – América Latina (18 países) pessoas em situação de

pobreza e extrema pobreza em torno de 2005, 2012 e 2013. (Em

porcentagens) ..................................................................................

111

Tabela 2 – Total de Famílias Cadastradas por Faixa de Renda /

Março 2015 .......................................................................................

127

Tabela 3 – Total por Pessoas Cadastradas por Faixa de Renda/

Março 2015 ........................................................................................

128

Tabela 4 – Total de População por Faixa Etária em Extrema

Pobreza – Critérios CadÚnico/Março 2015 ........................................

128

Lista de Esquema

Esquema 1 – Programas, serviços e o pobre..................................... 176

Lista de Figuras

Figura 1 – Evolução da pobreza e extrema pobreza, 1980-2014 ... 110

Figura 2 – Divulgação de dados sobre Programa Bolsa Família................................................................................................

205

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Sumário

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................................... 18

Capítulo I A constituição da pobreza e do “ser pobre”: o amparo à pobreza, história e transições ..... 31

1.1 De 1850 a 1930: a institucionalização da pobreza no contexto do Regime Escravocrata à

República dos Coronéis ........................................................................................................................... 33

1.2 Aparato filantrópico da pobreza: a igreja e a institucionalização da caridade ............................. 38

1.3 De 1930 a 1980 – Primeira Ruptura: a institucionalização da pobreza, os aptos e não aptos e a

emergência da assistência social como principal intervenção entre os pobres ...................................... 41

1.4 Da década perdida à constituição de direitos (1980-1988) ............................................................... 50

Capítulo II Constituição de 1988: a transição democrática e políticas sociais ..................................... 56

2.1 Anos 90: o desafio da estabilidade econômica e a focalização das políticas de combate à

pobreza ..................................................................................................................................................... 58

2.2 As intervenções do Estado Democrático pós-ditadura: da eleição de Fernando Collor a Itamar

Franco (1993-1994), a reestruturação do Estado a partir da agenda neoliberal e ajustes estruturais ... 59

2.3 A gestão da pobreza e intervenção estatal na gestão de FHC (1995 – 2002) ............................ 63

2.3.1 Na Educação ............................................................................................................................ 68

2.3.2 Na Saúde ................................................................................................................................. 69

2.3.3 Na Assistência Social ............................................................................................................... 70

2.4 O Fundo de Combate à Pobreza – Ano de 2000 ......................................................................... 73

2.5 A gestão da pobreza e intervenção estatal na gestão de Luis Inácio da Silva – Lula (2003 –

2010) .....................................................................................................................................................75

Capítulo III – A condição social reconhecida de pobreza frente aos técnicos burocratas de rua do

Estado ...................................................................................................................................................... 80

3.1 Base teórica........................................................................................................................................ 80

3.2 A construção social da categoria de pobreza com base na realidade ......................................... 85

3.3 A Delimitação da “pobreza” e do “pobre” ..................................................................................... 89

3.4 Burocratas de rua: atores do Estado no combate à pobreza ...................................................... 92

3.5 A burocracia e os street-level bureaucrats ................................................................................... 94

3.6 As instituições e os indivíduos ..................................................................................................... 98

3.7 Sobre a institucionalização da pobreza ..................................................................................... 106

Capítulo IV – As formas de intervenção institucionalizada no combate à pobreza: o debate sobre os

programas de transferência de renda .................................................................................................... 109

4.1 Uma breve contextualização do debate sobre os Programas de Transferência de Renda

(PTRs)....... ............................................................................................................................................. 112

4.2 Programa de Bolsa Família: sobre características da institucionalização da pobreza pela renda

e das regras de acesso .......................................................................................................................... 122

4.3 Plano Brasil Sem Miséria (BSM): perspectiva do tratamento aos pobres ................................. 136

Capítulo V – O campo de pesquisa........................................................................................................ 148

5.1 O contato com o tema ................................................................................................................ 150

5.2 Percurso metodológico ............................................................................................................... 153

5.3 Delimitação do locus do objeto de estudo ................................................................................. 162

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5.3.1 Desafio da prática: a responsabilização do outro ......................................................................... 179

Capitulo VI – Os técnicos burocratas de rua: a percepção sobre o pobre e a pobreza ........................ 109

6.1 A trajetória: quem são os técnicos burocratas de rua que combatem a pobreza ...................... 183

6.2 Diante do pobre: entre o antes e o depois ................................................................................. 193

6.3 Entre o julgamento e a objetividade ........................................................................................... 197

6.4 A pobreza para quem recebe os pobres .................................................................................... 201

6.5 Enfim: “O Programa Bolsa Família é bom, mas precisa melhorar!”. ......................................... 204

VII. Considerações Finais ...................................................................................................................... 214

REFERÊNCIAS ...................................................................................................................................... 221

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18

INTRODUÇÃO

A erradicação da pobreza continua a ser, no século XXI, um dos grandes

desafios para a intervenção estatal. Integrado a esse propósito, após oito anos de

efetivação do Programa Bolsa Família (PBF), o governo brasileiro, por meio do

Decreto nº 7.492, de 2 de julho de 2011, lançou o Plano Brasil Sem Miséria. O Plano

estabeleceu como meta, até o final do ano de 2014, que correspondeu ao final do

primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff, erradicar a extrema pobreza1 no

país. Na oportunidade de lançamento do Plano, segundo dados do governo, mais de

16 milhões de brasileiros viviam com renda per capita inferior a R$ 77,002, ou seja,

em estado de pobreza extrema pelo recorte de renda auferido.

A corrida institucional em busca do “pobre3” ratifica a relevância da temática,

como também mostra as recorrentes investidas na organização do aparato estatal

brasileiro em direção ao combate à pobreza. Reflete ainda o caráter

multidimensional das construções sociais sobre o que são a pobreza e os pobres e

como elas são ressignificadas nos diferentes momentos históricos. Nas últimas

gestões presidenciais brasileiras, a institucionalização do combate à pobreza se

tornou questão central, sendo, inclusive, incorporada aos slogans de governo nos

dois mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006 e 2007-2010),

com o slogan “Brasil, um país de todos”, e no primeiro mandato de sua sucessora

1 O Estado brasileiro cria a definição da pobreza extrema por meio do Decreto nº 7.492, de 2 de junho

de 2011, que considerou em extrema pobreza a população com renda per capita mensal de até R$ 77,00 (setenta e sete reais). Mais do que um recorte de renda, em termos operacionais, a designação da extrema pobreza classifica os “pobres” que não conseguiram ser localizados e cadastrados pelo governo federal no Programa Bolsa Família. O governo criou a Linha da Extrema Pobreza como método de classificação e alcance das famílias dentro de tal definição. Para isso, foi mobilizada uma verdadeira força-tarefa pactuada entre os órgãos do governo federal, estados e municípios para localizar e cadastrar os “extremamente pobres” caracterizados nesse recorte de renda. O objetivo da mobilização era deslocar equipes para ir até onde os pobres estivessem, inseri-los na base de dados (CadÚnico) para que passassem a ser atendidos pelas ações de combate à pobreza existentes.

2 FALCÃO, T.; COSTA, P. V. A linha de extrema pobreza e o público-alvo do Plano Brasil Sem Miséria.

In.: CAMPELLO, T.; FALCÃO. T.; COSTA, P. V. (Org.). Brasil Sem Miséria. Brasília: MDS, 2014. 3 As aspas utilizadas no termo “pobre” é um aporte de singularização para designar a dualidade de percepção

acerca do conceito do que é ser pobre. Essa dualidade acompanhará todo o desenvolvimento da pesquisa mostrando a diferente percepção entre o conceito institucional do que seja ser pobre e a percepção que os próprios pobres têm de si mesmos.

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19

Dilma Rousseff (2011-2014)4, em que foi adotado como slogan “País rico é país sem

pobreza”. As questões da presente pesquisa se inserem na problematização desse

ousado e árduo desafio do Estado brasileiro de executar políticas públicas com o

objetivo de por fim a pobreza e a extrema pobreza no Brasil.

Diante desse cenário de construção social e institucional para os mais

“pobres”, no caso brasileiro, não se pode negar a contribuição da focalização dos

programas de transferência de renda desde as primeiras experiências com o

presidente FHC, indo até o Bolsa Família, no governo Luiz Inácio Lula da Silva. É

inegável também que a partir da implantação do Bolsa Família, apesar do

enfrentamento das severas críticas, o modelo de intervenção de transferência da

renda consolidou uma nova forma de organização ou uma nova base institucional e

operacional (ROCHA, 2013)5.

No ano de 2006, um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

(Ipea) identificou a tendência de queda na desigualdade nos resultados

socioeconômicos do Brasil6 (IPEA, 2007). Pelos dados do Instituto, o grau de

concentração de renda no Brasil caiu 4% entre os anos de 2001 e 2004, passando

de 0,593 para 0,569. Sob o ponto de vista do Ipea, por mais que a taxa possa

parecer modesta, em se tratando de uma medida de desigualdade, ela representou

uma queda substancial no caso brasileiro. E faz uma comparação importante: ao

longo da década de 1990, entre os 75 países para os quais havia informações

4 Um balanço sobre as principais ações que direcionaram os anos dos mandatos de Luiz Inácio Lula

da Silva (2003-2010) e os anos iniciais do primeiro mandato da presidenta Dilma (2011-2014) pode ser pesquisado no livro destinado a esse objetivo: SADER, E. (Org.). 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma. São Paulo: Boitempo, 2013.

5

Sônia Rocha aponta como fatores que contribuíram para essa nova base: a unificação dos programas preexistentes sob o BF, a eliminação da superposição de benefícios de diversos programas nas mesmas famílias, a ampliação da clientela atendida e o aperfeiçoamento de procedimentos, inclusive no diz respeito ao Cadastro Único (2013, p. 18). 6

Os resultados podem ser pesquisados nos volumes lançados pelo Ipea no ano de 2007 intitulado:

Desigualdade de renda no Brasil: uma análise da queda recente (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA – IPEA. Desigualdade de renda no Brasil: uma análise da queda recente. Brasília, 2007. v. 1). A Nota Técnica divulgada em 2006 com o mesmo nome da publicação acima, Recente Queda da Desigualdade de Renda no Brasil, foi disponibilizada em versão eletrônica em: <www.ipea.gov.br>.

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relativas à evolução da desigualdade de renda, menos de ¼ apresentou taxas de

redução da desigualdade superiores à então taxa brasileira.

Ainda na análise do Instituto, isso representou, ao longo do período estudado,

que a renda média dos 10% mais pobres cresceu a uma taxa anual média de 7%,

enquanto a renda média nacional declinou 1% ao ano (a.a). Tomando-se o período

como um todo, o crescimento da renda média dos 20% mais pobres foi cerca de 20

pontos percentuais (p.p.) acima do observado entre os 20% mais ricos. Portanto, a

percepção dos mais pobres no Brasil foi a de estarem vivendo em um país com alta

taxa de crescimento econômico, enquanto os 20% mais ricos tiveram a percepção

de estarem vivendo em um país estagnado.

Seguindo o mesmo campo de análise, a pesquisadora Rocha (2013), ao

levantar dados sobre a evolução da pobreza no Brasil entre os anos de 2003 e 2011,

aponta como responsável pelo impacto na redução da desigualdade e pobreza

nesse período o que denominou de os novos programas de transferência.

Os números apresentados pela autora indicam que, entre 2003 e 2011, a

proporção de pobres caiu praticamente à metade, de 22,6% para 10,1%, e que

esses números declinaram sistematicamente ao longo desse período. A autora

ressalta que essa tendência ocorreu, inclusive, no ano de 2009, quando países

considerados desenvolvidos enfrentavam o auge de uma crise financeira

internacional.

Se, por um lado, os dados apresentam o avanço na mobilidade da

desigualdade entre os considerados “pobres” e outros estratos da sociedade, por

outro, oculta dimensões qualitativas e simbólicas que ocorrem como pano de fundo

na operacionalização das relações institucionalizadas pelo Estado. Esse vácuo

também é observado por Cohn (2012), quando avalia que apesar de o Brasil ser

reconhecido pela qualidade dos dados dos seus institutos de pesquisa nos trabalhos

voltados a localizar e identificar os pobres, pouco se sabe ainda sobre a vida e a

vivência desses sujeitos.

Nesse contexto, a questão direcionadora da presente pesquisa foi

compreender como tem se concretizado na prática dos atores sociais o desafio do

combate à pobreza e entender como estão institucionalizadas e operacionalizadas

as ações de combate à pobreza na execução cotidiana de programas de

transferência de renda, como o Bolsa Família e ações de assistência social

ofertadas aos pobres.

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Assim, o objetivo da pesquisa foi investigar a prática institucionalizada do

combate à pobreza no trabalho e na percepção dos técnicos burocratas de rua – os

street-level bureaucrats (LIPSKY, 2010),7 acerca da pobreza e dos pobres por eles

atendidos. Trata-se de servidores públicos do Estado também conhecidos no senso

comum institucional como “técnicos que atuam na ponta”8. Esses profissionais são

responsáveis por fazer a gestão ou atuar na operacionalização dos programas e ou

no atendimento cotidiano dos pobres para cadastramento, inserção e

acompanhamento diversos em programas e serviços. Pretendeu-se, com os

resultados alcançados, analisar a presença ou não de categorizações e valorações

morais construídas no cotidiano desses técnicos em relação aos sujeitos atendidos.

Partimos da hipótese de que a prática desses profissionais é peça chave para

entender as nuances do combate à pobreza norteado pelo Estado brasileiro. Não se

trata de um desafio qualquer, mas de estar diante de um ranço histórico que delega

o lugar dos pobres como sendo o da “caridade” e da “esmola”. Esse fato ganha

relevância analítica se pensarmos que, a partir dos pressupostos do texto

Constitucional de 1988, toda ação do Estado voltada ao sujeito que necessita do

atendimento e assistência deve ser ordenado no direto constitucional. O que está

em pauta nos resultados da pesquisa aqui apresentada é problematizar em que

medida essa orientação legal tem se efetivado na prática do combate à pobreza

desenvolvida atualmente.

7 O conceito de Street-Level Bureaucrats, apresentado nos anos de 1980, pelo autor Michel Lipsky

tem destaque como a referência nas análises sobre as funções e o papel dos técnicos servidores públicos que trabalham com discricionaridade burocrática e política pública. Em nosso caso, o objetivo foi imergir esse conceito no universo das ciências sociais. Aproveitar da amplitude do conceito e mediá-lo para uma análise sociológica atentando para a prática desses sujeitos e as construções sociais que dela decorre em relação aos atendimentos aos usuários considerados pobres. Michel Lipsky (2010) conceitua os Street-Level Bureaucrats como trabalhadores do serviço público que interagem diretamente com os cidadãos no curso do desenvolvimento de suas atividades e que dispõem de poder discricionário na execução dessas atividades. (Tradução nossa) – texto original. (LIPSKY, 2010, p. 3). 8

Classificamos dois tipos de técnicos burocratas de rua: os técnicos e os gestores. As duas

categorias denominam o perfil dos técnicos burocratas de rua entrevistados. Os técnicos são os profissionais que desempenham atividades operacionais como atendimento, cadastramento e acompanhamento dos “pobres”. Os gestores são os profissionais que desempenham atividades de ordem gerencial do Programa, o trabalho e ações dos técnicos. Essa diferenciação também é utilizada formalmente pelo governo federal para identificação das funções dos profissionais nos municípios. Porém uma das constatações de campo foi a de que a divisão de atribuições é mais comum em municípios de grande porte e metrópoles, pois em municípios de pequeno porte os gestores e técnicos dividem e realizam praticamente as mesmas funções, devido ao número reduzido de servidores.

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Afinal, de que combate à pobreza estamos falando e concretizando no dia a

dia do atendimento institucionalizado ao pobre? A rotina de interação entre os

técnicos burocratas de rua versus pobres tem contribuído para a reprodução ou

ruptura do ciclo de estigmas e valorações morais sobre os pobres que precisam do

Estado para acessar a busca por assistência?

A motivação para o recorte do tema de pesquisa partiu do percurso

profissional da pesquisadora. Durante mais de dez anos atuando com gestão de

política pública nas três esferas (União, Estado e Município) observou-se a

existência de uma dimensão do microssocial in loco das políticas, programas e

serviços. No entanto esse ainda é um campo preterido e invisibilizado pelos próprios

métodos de intervenção dos programas e serviços. É a essa dimensão que a

presente pesquisa se propôs chegar. Onde o Estado está presente cotidianamente,

porém não consegue “se ver”, “enxergar-se”.

Nesse intuito, a pesquisa e os resultados obtidos conduzem à reflexão de que

o estudo de uma política pública vai além dos estágios formalizados como os passos

preconizados nas referências bibliográficas (agenda, elaboração, formulação,

implementação, execução, acompanhamento e avaliação – ENAP, 2006). Os dados

que serão aqui expostos reforçam a ideia de que a intervenção estatal requer ser

entendida não apenas a partir dos elementos trazidos em macroanálises, mas

também requer uma aproximação com o campo simbólico (BOURDIEU, 2001) dos

agentes humanos (GIDDENS, 2009) que a compõem. Requer, ainda, a

contextualização dos programas como espaços onde as interações acontecem.

Essa contribuição amplia a análise para onde possam ser observadas as diversas

dimensões simbólicas de disputas, conflitos e rearranjos construídos pelos atores

sociais envolvidos.

É na construção cotidiana dos atores sociais que o combate à pobreza é

concretizado, de forma que a interação entre técnicos burocratas de rua versus os

pobres faz inferência na vida social dos sujeitos. É nesse espaço de representação

que estão dispostas as perspectivas construídas em relação à pobreza. Foi assim

que nos deparamos com o outro lado do Programa Bolsa Família. Nesse espaço, as

construções técnicas e normatizadas pelo Programa Bolsa Família têm implicâncias

na maneira como a pobreza é significada socialmente pelo olhar do outro e, a

depender das experiências e contextos, ela é significada e sentida de maneiras

diferenciadas.

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Por esses motivos, concordamos que as abordagens multidimensionais que

incluem a apreciação dos processos de subjetividade dos sujeitos acerca das

próprias situações são indispensáveis. Em nosso ponto de vista, a pobreza é

configurada, assim, ao mesmo tempo, um fato e um sentimento (SALAMA e

DESTRMAU, 1999).

Partindo desses pressupostos é que o recorte teórico que conduziu a

pesquisa primou pelo diálogo com algumas escolas que podem trazer contribuições

inovadoras, porém nem sempre inéditas, para a análise e compreensão da

intervenção estatal nas políticas públicas de combate à pobreza. A perspectiva de

tradição microinteracionista faz parte do recorte teórico feito, por defender que

nossas conversas e experiências cotidianas são fundamentais na construção da

percepção acerca da realidade social (COLLINS, 2009). Os ensinamentos da escola

construtivista social também se inserem na discussão quando considera como um

dos objetos das ciências sociais o sujeito, conceituado como o “homem de rua”

(BERGER; LUCKMANN, 2012, p. 12). O “homem de rua” é aquele que interage com

a sua realidade, e o conhecimento adquirido dessa realidade constitui a ação que

ele acredita ser a verdade para sua conduta na relação com as instituições sociais e

demais sujeitos9.

Vale deixar claro que essas influências teóricas não significaram, em

momento algum do trabalho, uma segregação teórica com outras perspectivas. Em

nosso ponto de vista, a arte de pesquisar, por mais que “exija” um ponto de partida

para a inserção na problemática observada, é com a inserção em campo que

descobrimos o quanto a pesquisa se transveste de forma demasiadamente

desafiadora. E, assim, somos apresentados a elementos diversos e inesperados que

nem sempre o nosso “suporte” teórico alcança. É nesse momento que o diálogo com

outras formas de produção do conhecimento é necessário, mesmo que seja como

um contraponto ao que vemos da realidade.

9 Berger e Luckmann (2012) fazem referências sobre a delimitação do papel do pesquisador quando

ele lida com os aspectos da “realidade” e do “conhecimento”. Para os autores o interesse sociológico nas questões da “realidade” e do “conhecimento” justifica-se inicialmente pelo fato de sua relatividade social. Por exemplo: o que é real para um monge não pode se real para um homem de negócios americano; o conhecimento de um criminoso é diferente do conhecimento do criminalista. Assim, aglomerações específicas da realidade e do conhecimento referem-se a contextos sociais específicos e estas relações terão de ser incluídas numa correta análise sociológica desses contextos. A necessidade da sociologia do conhecimento tem de tratar não somente da multiplicidade empírica do conhecimento nas sociedades humanas, mas também dos processos pelos quais qualquer corpo de conhecimento que chega a ser socialmente estabelecido como realidade. (Idem, p. 13).

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Nesse sentido, não seria possível pesquisar os sujeitos considerados pobres

sem contextualizar as teses que inserem a análise da pobreza como consequências

de fatores e transformações macroeconômicos ocorridos em escala global.

Consideramos que não se trata de uma novidade no campo de discussão teórica a

pobreza historicamente ser reconhecida socialmente como uma espécie de

“fracasso social” (PAUGAM, 2003; CASTEL, 1998).

Os fatores para o reconhecimento desse “fracasso” advêm de diferentes

argumentos quase sempre relacionados à economia e à inserção no mundo de

trabalho. Aqui uma questão que não pode ser negligenciada é a não inserção ou

inserção precária dos sujeitos considerados “pobres” nas funções produtivas

formais. Na leitura teórica de Castel (1998), o processo de inserção precária decorre

de uma desmontagem dos sistemas de proteções e garantias que foram fortemente

vinculados ao emprego em determinadas sociedades. Decorre também da

desestabilização na ausência dessas proteções,10 causando um choque em

diferentes setores da vida social, que passam a repercutir para além do mundo do

trabalho.

Castel et al (2008) ainda aponta três fatores que perpassam a discussão

sobre a questão social, incluindo os processos geradores de pobreza: 1) a

irregularidade de acesso à renda, no caso dos indivíduos que ocupam postos

informais de trabalho; 2) o não acesso a direitos trabalhistas assegurados por lei; e

3) submissão a condições precárias na relação de trabalho. Afirma que, diante do

aumento de desempregados e do aumento dos considerados em situação de

pobreza nos últimos anos, cresce a pressão da sociedade para que o Estado adote

medidas de contenção desse processo. Nesse sentido, as políticas e programas

sociais emergem como uma forma de intervir junto aos sujeitos considerados pobres

10

Para a pesquisadora Luciana Jaccoud (2009), o surgimento de programas de transferência de renda voltados à população pobre faz com que a proteção social brasileira tenha sido objeto de mudanças nos últimos anos. A autora reconhece a ampliação da cobertura de benefícios e o movimento de inclusão de novos grupos após os ganhos da seguridade social e a proteção social brasileira. A pesquisadora avalia ser um momento tensionado por dois motivos: primeiro, a vinculação ao contexto precário da configuração do mercado de trabalho, e, segundo, as dificuldades em garantir a articulação entre as políticas de combate à pobreza e a consolidação da seguridade social. A hipótese da autora é que a extrema pobreza de parcela da população e a desigualdade que marcam a sociedade impõem dificuldade na coesão social como também da reprodução da estabilidade e legitimidade do regime democrático.

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e sobre as novas formas de pobreza que continuam em pauta na agenda das

políticas públicas11.

Dentre os estudiosos aqui citados, tem destaque no corpo analítico do texto

de pesquisa aqui apresentada o sociólogo francês Serge Paugam (2003). O autor

acredita que o entendimento da pobreza como traduzindo uma dualidade que

identifica comportamentos e características entre os “pobres” e os “outros” é

equivocado. Por isso, o propósito de obter uma teoria global que se pretenda ser

universal sobre a pobreza seria um exercício inócuo. Nesse sentido, o pesquisador

defende o estudo científico tendo como base as especificidades da construção social

da pobreza.

Por concordar com tal perspectiva é que trabalhamos em nossa análise o

conceito de pobreza como uma condição reconhecida socialmente e os pobres

como um conjunto de pessoas cujo status social é definido por instituições

especializadas de ação social que assim as designam (PAUGAM, 2003, p. 55)12.

11

Robert Castel (2012), em seu livro As metamorfoses da questão social, traz contribuições sobre processos sociais e intervenções estatais sobre a pobreza. Na primeira metade do século XIX, nos primórdios da industrialização, segundo o autor, a questão social era constituída com base na situação dos proletários que se encontravam na sociedade industrial, presentes nas grandes concentrações industriais sem estarem integrados. O pesquisador denominou de populações flutuantes, miseráveis, os indivíduos que tiveram cortados seus vínculos e configuraram-se numa ameaça a uma ordem social, muitas vezes sendo considerados como uma gangrena. Esse cenário, à época, apresentava-se sob forma do que o autor intitula de pauperismo (2012, p. 231). Por outro lado, a questão social hoje não se apresenta sob a mesma forma para Castel. Em nossa opinião, o argumento defendido pelo autor para o que chama de nova questão social não vai ao encontro da realidade brasileira. Mesmo considerando que, no caso brasileiro, pouco se pode falar em uma consolidação de uma plena sociedade salarial, como em alguns países europeus que experimentaram, de forma consolidada, essa correlação, ainda assim é plausível considerar a reflexão teórica do autor no que se refere à existência de consequências sociais decorrentes do processo de desmontagem das garantias conquistadas historicamente vinculadas ao emprego. O status do desemprego e da incapacidade de manter uma renda mínima de subsistência representa o público potencial brasileiro para estar nos programas de combate à pobreza. As formas precárias de acesso ao trabalho formal e suas garantias engendram uma série de fatores que aumentam a vulnerabilidade dos sujeitos, pois a maioria desses sujeitos, ao perder seu posto no mercado formal, não consegue mais retornar e, assim, passam a ocupar postos no mercado de trabalho informal, sofrendo severos impactos econômicos e sociais.

12

A contribuição de Anthony Giddens (2009) também faz parte do suporte teórico na observação da consciência reflexiva apresentada pelos técnicos burocratas de rua em suas construções cotidianas em relação aos pobres e à pobreza. Principalmente para entendermos o comportamento desses sujeitos como agentes humanos. Para o autor, todos os seres humanos são agentes cognoscitivos. Isso significa que todos os atores sociais possuem um considerável conhecimento das condições e consequências do que fazem em suas vidas cotidianas. Acredita que essa cognoscitividade inserida na consciência prática exibe uma extraordinária complexidade que, com frequência, permanece completamente inexplorada nas abordagens sociológicas, as quais denomina de “ortodoxas”, em sua maioria aquelas associadas com o objetivismo. O autor reforça que a maior parte da capacidade da consciência reflexiva se encontra incrustada no fluxo do dia a dia. Essa racionalização discursiva das razões apenas se converte em uma apresentação discursiva se eles forem solicitados de alguma forma, para que eles esclareçam por que atuam de tal forma (p. 332).

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De maneira consistente, o autor entende que se institui socialmente um

descrédito dos sujeitos que não conseguem participar plenamente da vida

econômica e social. Esse movimento Paugam (2003) chama de desqualificação

social. O processo de desqualificação social dos pobres inclui o estudo dos

sentimentos subjetivos acerca da própria situação que os considerados pobres

experimentam no decorrer das diversas experiências sociais. Nesse escopo,

especificamente em nosso caso, interessou um estudo sobre a experiência da

relação institucional13 construída com os pobres que procuram o Estado para serem

inseridos nas ações de combate à pobreza.

Entendemos que o enfrentamento da degradação moral (PAUGAM, 2003)

diante do rótulo de “pobre” socialmente é uma condição desafiadora para os

usuários dos programas de transferências de renda, como também para aqueles

que participam das ações de assistência social. Tanto que os estudos de Lima

(2003, p. 366) apontam que uma das preocupações morais das famílias pobres é

“encaminhar os filhos na vida”, para que eles tenham um “julgamento positivo”

daquilo que os pais não foram capazes de ter.

O desejo expressado por essas famílias não é aleatório. Ele é resultado do

cotidiano de diversas delas para as quais a sociedade “normatiza” tratar com

estigmas e julgamentos valorativos, pelo simples fato de estarem em condição social

de pobreza. Se a família pobre consegue se inserir no mercado de trabalho e

sobrevive sem a assistência do Estado, então ela é “pobre, mas é direitinha”. Porém

se o “pobre” ou sua família precisa da ajuda do Estado para sobreviver ou conviver

com a pobreza instituída socialmente, então eles são “aproveitadores que querem

viver à custa do Estado para sempre”.

A inserção analítica da pesquisa levou a uma diferenciação para compreender

o processo de desqualificação social dos considerados “pobres” no caso brasileiro.

Na abordagem de Paugam (2003) tem ênfase a desqualificação social em que o

sujeito experimenta o julgamento de uma degradação moral pelo próprio sujeito,

incorrendo na fragilização de seus laços sociais.

13 A discussão sobre relações institucionais mediadas pela burocracia, como é o caso dos

programas de combate à pobreza, exigiu uma imersão nos novos modelos institucionais, conduzidos pelo que a referência bibliográfica chama de reformas administrativas contemporâneas, tendo destaque para o modelo burocrático do Estado Gerencial (REZENDE, 2009) e o projeto de Reforma da Administração Pública por Bresser (1995). No capítulo III serão apresentadas as principais características das escolas, autores e projetos que discutem o tema.

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No caso da presente pesquisa, os resultados mostraram um processo inverso.

O julgamento da degradação moral do sujeito considerado “pobre” está centrado

mais em um processo de desqualificação exteriorizada pela sociedade e menos

pelos próprios sujeitos pobres. Assim, enquanto os considerados “pobres”

experimentam processos de subjetividade que giram em torno de sentimentos como

empoderamento, autonomia e protagonismo social, de forma contraditória,

socialmente, eles são reconhecidos como “aproveitadores”, “vagabundos” e como

aqueles que “não gostam de trabalhar”.

A inferência da relação institucional por meio da categorização dos técnicos

de nível de rua (LIPSKY, 2010), que trabalham cotidianamente com os considerados

pobres, mostrou a rotina de trabalho cotidiana desafiadora desses profissionais que

retrata a tensão existente entre os níveis de gestão federal, estadual e municipal na

implementação das ações.

Enfim, partilhando do mesmo olhar analítico para a relevância das

problematizações supracitadas é que alguns trabalhos de pesquisa têm se

debruçado numa perspectiva simbólica qualitativa das intervenções dos programas

de transferência de renda (REGO e PINZANI, 2013; ÁVILA, 2013; COHN, 2012;

JUSTO, 2009; PEREIRA, 2007; SPRANDEL, 2004; LIMA, 2003). E foi na busca de

agregar esse viés de produção do conhecimento que se desenhou a pesquisa aqui

desenvolvida.

Como já delimitado, o trabalho de campo da pesquisa optou por uma

abordagem metodológica qualitativa14 (MINAYO, 2007) do objeto de estudo. Ela foi

desenvolvida por meio de entrevista semiestruturada com os técnicos burocratas de

rua que trabalham no Programa Bolsa Família e nas ações de assistência social aos

considerados pobres. Foram entrevistados técnicos das cinco regiões brasileiras

(Norte, Nordeste, Sul, Sudeste e Centro-Oeste), e, com isso, tivemos a pretensão de

ampliar a análise para uma perspectiva comparativa. Ao todo, foram 14 entrevistas,

sendo 12 com técnicos burocratas de rua e duas com gestores federais do

Programa Bolsa Família. Assim conseguimos cumprir a organização de campo inicial

14

Entendemos metodologia a partir da abordagem de Minayo (2007) que a compreende como: a

discussão epistemológica sobre o caminho do pensamento que o tema ou o objeto de investigação requer; a apresentação adequada e justificada dos métodos, técnicas e dos instrumentos operativos que devem ser utilizados para as buscas relativas às indagações da investigação, e também como a “criatividade do pesquisador”, ou seja, a sua marca pessoal e específica na forma de articular teoria, métodos, achados experimentais, observacionais ou de qualquer outro tipo específico de resposta às indagações específicas (MINAYO, 2007, p. 44).

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que previa que tivéssemos na seleção dos técnicos todas as regiões brasileiras

contempladas15.

Vale ressaltar que a instrumentalização da pesquisa por meio da entrevista

apresentou-se como um rebuscamento técnico. A escolha fez parte de um estudo da

organização e do caminho a ser percorrido (FONSECA, 2002) considerando os

elementos disponíveis para a realização da pesquisa. A entrevista nos coloca diante

do discurso do outro. Segundo Bardin (apud QUIVY et al., 1995) o discurso não é a

transposição transparente de opiniões, mas um momento num processo de

elaboração com tudo que isso implica de contradições, incoerências e lacunas.

Assim, o discurso é um ato. O entrevistado nesse caso submete a sua palavra a

uma lógica socializada. É desse contexto que o pesquisador observa as

representações reais.

Foi esse o caminho que se buscou no momento das entrevistas. Um limite do

método que pode ser apontado é o fato de as entrevistas terem ocorrido, em sua

grande maioria, no ambiente de trabalho dos técnicos (CRAS ou secretarias

municipais). Com isso, correu-se o risco de um viés distorcido pela possibilidade do

sentimento de censura por parte do entrevistado por estar na presença de outros

colegas de trabalhos.

Consideramos também que fez parte do campo de pesquisa a técnica da

observação participante16, considerando o tempo de “interação” com os profissionais

que exercem funções de burocratas de rua nos estados e municípios brasileiros.

Tendo destaque para exercício do método o que denominamos de eventos

institucionais deliberativos e de capacitação técnica. São eventos promovidos em

Brasília pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) para

os técnicos e gestores das ações pesquisadas.

Os eventos institucionais se revelaram um campo rico de análise por

permitirem observar a interação entre as três esferas – municípios, estados e a

União – na constituição das normas e critérios que devem ser implementados e

executados na prática cotidiana do trabalho dos gestores e técnicos com os pobres.

15

O detalhamento dos critérios da seleção dos estados e cidades em que os técnicos foram

entrevistados estão detalhados no capítulo V, no tópico 5.2 do texto. 16

Como método de pesquisa, Minayo (2003) define observação participante um processo pelo qual

um pesquisador se coloca como observador de uma situação social, com a finalidade de realizar uma investigação científica. O que fundamenta a técnica é o exercício que todo pesquisador social tem de relativizar o espaço social de onde provém, aprendendo a se colocar no lugar do outro e, com isso, apreender o máximo possível dos sentidos e significados da realidade vivenciada.

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Nessas oportunidades sempre procuramos conversar com esses profissionais sobre

suas trajetórias e concepções sobre o combate à pobreza.

Seguindo esse percurso, a apresentação da pesquisa neste documento dar-

se-á da seguinte forma: o primeiro capítulo faz um levantamento de marcos para a

constituição da intervenção do Estado brasileiro junto aos considerados pobres.

Buscou-se demarcar como se deu a conformação da relação constituída entre o

Estado, as estruturas sociais de “amparo” à pobreza e os pobres. As demarcações

históricas são bases analíticas como meio de compreensão dos processos socais.

O segundo capítulo traz relevantes rupturas para o objeto de pesquisa, a

transição democrática que ocorreu a partir do ano de 1988. A discussão

apresentada remete a como esse momento se refletiu na gestão do Estado em

relação à institucionalização da pobreza. O terceiro capítulo foi dedicado à

apresentação das problematizações de base teórica a partir dos levantamentos

feitos nos capítulos anteriores e demarca o escopo dos conceitos que serão

utilizados nos demais resultados da pesquisa de campo.

O quarto capítulo registra a inserção em campo por meio da pesquisa

bibliográfica e documental sobre as ações de combate à pobreza. Fizeram parte da

pesquisa um levantamento e estudo detalhado das normativas (decretos e leis),

material de orientação técnica e documentos de pactuação entre as três esferas de

governo com objetivo de intervenção junto aos pobres atendidos.

E, finalmente, o quinto capítulo apresenta o resultado das entrevistas

realizadas com os técnicos burocratas de rua que representaram as cinco regiões

brasileiras. Em seguida são apresentadas as considerações finais acerca dos

resultados da pesquisa.

Como todo trabalho acadêmico, deparamo-nos com limites em seu percurso.

Em nosso caso, avaliamos que o número reduzido de referencial teórico que aborde

o recorte aqui apresentado no âmbito das políticas públicas seria um deles. A

maioria das referências encontrada se debruça, de maneira muito apropriada, sobre

processos de avaliação e monitoramento, porém a partir de uma objetividade

estatística e quantitativa por meio dos números alimentados eletronicamente nas

bases de dados do governo. Esse processo cada vez mais utilizado na gestão

pública cria um distanciamento de estudos qualitativos que abordem a interação dos

atores sociais com as políticas públicas, os programas e serviços implantados,

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restando ao pesquisador lidar com potentes e complexas bases de dados17 como

fonte.

Observar o pouco conhecimento18 que os atores têm do programa que

executam também pode ser mencionado como um limite para a impossibilidade de a

pesquisadora abordar questões mais estruturais da temática estudada (o combate à

pobreza) durante as entrevistas.

As consequências sociais de valorações de desqualificação social (PAUGAM,

2003), estigmas (GOFFMAN, 1988), discriminação negativa (CASTEL, 2008) e os

preconceitos decorrentes do rótulo social da condição social de “pobreza” pelos

requisitos preconizados pela sociedade moderna parecem seguir invisibilizados na

práxis da política pública.

Por esse motivo, espera-se que o resultado aqui apresentado possa somar e

contribuir não apenas na produção acadêmica, mas para visibilizar as questões

trazidas por esta pesquisa a todos os sujeitos que trabalham na gestão pública

brasileira. São eles que, de maneiras adversas, muitas vezes sem a condição

mínima de desenvolver suas ações, estão nos 5.570 municípios brasileiros

recebendo queixas diárias de quem, por circunstâncias diversas, foi negligenciado e

vivencia condições sociais precárias de sobrevivência, restando como uma das

possibilidades buscar a proteção social do Estado.

17

A referência a potentes e complexas bases de dados diz respeito ao número de variáveis e

capacidade de armazenamento e cruzamentos de informações dos sistemas eletrônicos que o governo federal tem usado para monitoramento das ações cofinanciadas, a exemplo do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico). O CadÚnico se configurou na maior base de dados, em volume de informações sobre as famílias consideradas em perfil de “pobreza” pelos critérios do Programa Bolsa Família. Atualmente, essas informações são utilizadas por outros programas da esfera federal, estadual e municipal como forma de monitoramento, classificação e inserção em outros programas e serviços além do Bolsa Família. 18

Essa dificuldade como limite também foi encontrada na Tese de Doutoramento de Ávila (2013), que trabalhou temática semelhante a proposta nesta pesquisa.

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Capítulo I A constituição da pobreza e do “ser pobre”: o amparo à

pobreza, história e transições

Este capítulo traz uma periodização com marcos importantes na constituição

do papel do Estado brasileiro na intervenção junto aos considerados pobres.

Consideraram-se, para isso, processos relevantes ocorridos historicamente, desde

as formas de regimes políticos experimentados nacionalmente e a forma de gestão

executada. Dessa maneira, buscou-se demarcar a relação constituída entre as

estruturas do aparelho estatal e as estruturas sociais no amparo à pobreza e aos

considerados pobres. As demarcações históricas são importantes bases analíticas

como meio de compreensão dos processos socais efetivados, como também pelo

viés metodológico comparativo.

O capítulo se encontra dividido por uma periodização considerando os

seguintes marcos: de 1850 a 1930, um período importante, que demarca a

finalização da escravidão no Brasil e o processo de transição para um novo modelo

de organização estatal, a Primeira República. Logo após, segue-se o período dos

anos 1930 aos anos 1980, fase que engloba a Era Vargas e a Ditadura Militar, que,

no âmbito das políticas sociais, trouxeram o legado histórico de um processo inicial

de lutas e conquistas de direitos civis e sociais, o qual permite novo direcionamento

ao Estado na forma de intervenção aos considerados pobres.

Dos anos 1980 a 1988, tem-se a considerada década perdida, período em

que culmina uma série de mobilizações sociais em prol de temas universais na

perspectiva de direito, tal como o movimento pela melhoria da qualidade de vida e,

com isso, inicia-se um processo de visibilização de fatores relacionados à condição

de pobreza, que aumentava em determinados segmentos sociais. Nesse período,

ocorre também a convocação da quarta Assembleia Constituinte no Brasil, a qual

pretendia fazer uma ruptura com a Ditadura Militar instaurada no Brasil no ano de

1964.

Para finalizar a parte proposta de periodização do capítulo I, trazemos o

ano da promulgação da Constituição Brasileira de 1988, que assegura a Seguridade

Social. Trata-se de um período significativo de ruptura no processo de intervenção

estatal da pobreza, pelo fato de o texto constitucional regulamentar a assistência

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social como integrante da seguridade social e torná-la direito a todo cidadão

brasileiro.

O teor da proposta da periodização é menos descritivo e mais um esforço

analítico, tendo como pano de fundo o olhar sobre a intervenção social e o

aparelhamento estatal na abordagem da temática pobreza no Brasil. Nesse âmbito,

serão considerados a institucionalização e os processos sociais de ressignificações

estabelecidos nas estruturas sociais inerentes a esse campo, como o Estado e os

atores sociais inseridos nas ações voltadas ao combate à pobreza.

1.1 De 1850 a 1930: a institucionalização da pobreza no contexto do Regime Escravocrata à República dos Coronéis

As formas de institucionalização da pobreza ocorridas durante o período de

1850 a 1930 deixaram legados centrais na concepção e intervenção junto à pobreza

pela sociedade e suas instituições. Nesse sentido, a escravidão é entendida nesta

reflexão com um fato isolado em si mesmo, caminho quase sempre seguido nas

análises de estudos que associam a pobreza com o legado da sociedade

escravocrata como a causa principal da pobreza. O olhar analítico proposto a

respeito da sociedade escravocrata evidencia um processo que legitimou e

perpassou estruturas sociais durante o período do Império19 no Brasil, em que a

desigualdade social, a dominação e a submissão dos sujeitos considerados pobres,

fossem eles homens livres, escravos, dentre outros segmentos sociais, deu-se de

maneira intensa.

Assim, a escravidão, na perspectiva de um estudo da pobreza, deve ser

entendida como uma instituição plurissecular que deixou legado de práticas sociais,

políticas e econômicas e atitudes morais em relação aos excluídos e dominados

(REGO et PINZANI, 2013). A prática social decorrente da escravidão esteve

19

A escravidão no Brasil tem início em 1500, por meio do processo de colonização dos Portugueses. Os escravos começaram a ser importados na segunda metade do século XVI e a escravidão continuou ininterrupta até o ano de 1850, ou seja, 28 anos após a independência do Brasil. Calcula-se que até 1822 tenham sido introduzidos na colônia cerca de 3 milhões de escravos. Importante ressaltar que se inclui nesses dados o número de índios. A abolição da escravatura foi feita bem mais tarde, no ano de 1888, num contexto de pressão por parte de países como a Inglaterra, que, em 1827, como preço do reconhecimento da independência, exigiu que o Brasil assinasse o tratado que proibia o tráfico de escravos. Porém apenas em 1884 o tema voltava ao parlamento brasileiro, e, quando o fez, o número de escravos já era pouco significativo (CARVALHO, 2012).

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presente em todas as classes sociais desde o período colonial (CARVALHO, 2012).

Embora concentradas nas grandes propriedades, a relação social extrapolava essa

fronteira física; os escravos e as relações escravistas estavam presentes em todas

as estruturas sociais.

A presença dos sujeitos na condição de escravidão e de pobreza estava tanto

na esfera privada quanto na esfera pública. Nas cidades, os escravos exerciam

atividades dentro e fora das casas. Nas ruas, os escravos trabalhavam para os

senhores ou eram por eles alugados para desenvolver alguma atividade pontual.

Trabalhavam como vendedores, carregadores, barbeiros, prostitutas, restando a

alguns, inclusive, o papel de ser alugado para mendigar. Assim, a marca das

relações escravistas extrapolava sua legitimação em determinada classe social da

época – ela fazia parte de forte cultura da escravidão arraigada socialmente.

Inclusive, ao serem libertos, os escravos livres, desde que pudessem, adquiriam

escravos para sua propriedade (CARVALHO, 2012).

Dessa forma, a condição de pobreza legitimada durante esse período não

esteve constituída apenas com base na condição de ser escravo ou da escravidão.

O historiador Lapa (2008), em sua pesquisa, com foco na prática da escravidão por

parte das classes populares e, entre os anos de 1850 e 1930, relata sua surpresa ao

verificar o número de pessoas consideradas pobres que eram proprietárias de

escravos. Lapa se defronta com dois cenários que constituem a pobreza no período:

o da pobreza livre e o da escravidão urbana.

Nesse período, a pobreza é delimitada de maneira ostensiva, segundo o

autor. Porém ela ainda não era entendida como objeto de estudos científicos, e as

formas de registros sobre a pobreza se davam apenas em documentos, como

relatos literários e/ou romances de grandes autores para diversão da leitura dos

burgueses. Da mesma forma, a relação institucional do Estado e da pobreza ocorria

de forma precária e era assentada em procedimentos disciplinares voltados para o

controle e o confinamento. Havia, na realidade, um aparato filantrópico institucional

que fazia parceria com o Estado no período em que a pobreza se tornava um

problema social (LAPA, 2008, p. 25).

A institucionalização da pobreza nessa época passava pela articulação entre

o Estado e as instituições privadas (Santas Casas de Misericórdia, creches,

orfanatos, asilos de inválidos, albergues e recolhimentos diversos), que detinham

interesses quase sempre confluentes com os interesses do poder público, relação

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voltada apenas para um aparato filantrópico institucional aos pobres (LAPA, 2008, p.

25). Nesse momento, tem destaque a igreja, que se fortalece como a instituição líder

e mediadora da rede de instituições privadas direcionadas ao atendimento dos

pobres.

As poucas informações e registros sobre os pobres e as formas de pobreza

geralmente se encontravam nos arquivos hospitalares das Santas Casas de

Misericórdias, que registravam pobres e enfermos atendidos por meio dos arquivos

eclesiásticos que tinham acervo de muitas instituições de caridade. Cabia à

legislação municipal estabelecer as normas de convívio entre a sociedade e a

pobreza e, com isso, as câmaras municipais se destacaram no papel de exercer a

fiscalização dos cidadãos e de regulamentar a maneira como deviam ser tratadas as

situações relacionadas à pobreza no espaço público.

Vale ressaltar que o conhecimento científico na área de ciências sociais não

motivou muitas pesquisas nessa época. No entanto, a literatura de ficção era um dos

instrumentos que dava voz aos pobres por meio de seus personagens, e,

contraditoriamente, esses instrumentos eram escritos para o entretenimento dos

letrados (LAPA, 2008). Os romancistas, em suas obras, registraram a realidade

social dos pobres em seus contornos do aparato sobre a pobreza, o que podia ser

encontrado na leitura dos relatos dos viajantes transcritos para os livros.

Na constatação do historiador, a intervenção institucional voltada à pobreza

pelo Estado durante o período de 1850 a 1930 era caracterizada pela sua própria

ausência, ou seja, a ausência do Estado se dava de maneira precária. Não havia

intervenções estatais incisivas. A ausência do olhar crítico sobre a complexidade da

pobreza demonstrava o contexto sociopolítico em que ela estava inserida e as

maneiras como as estruturas sociais se constituíam. Nesse sentido, o autor localiza

analiticamente, num período mais adiante do Império (pós-1930), a existência de um

jogo de interesse ideológico elitista de dois dos principais segmentos sociais da

época. Primeiro, os interesses do senhoreado e, logo após, os interesses da

burguesia. Assim, o interesse pela pobreza se dava mais numa perspectiva de

interesses imediatos, do clientelismo político e de uma segurança interna das

oligarquias.

O Estado se encontrava à parte da constituição de um quadro organizacional

forte e centralizador das intervenções voltadas à pobreza, o pouco que articulava se

pautava em procedimentos disciplinares, de controle e confinamento. Eram essas as

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ações de conhecimento sobre a pobreza que bastavam ao Estado (LAPA, 2008). É

nesse momento que surge a parceria entre o Estado e a iniciativa privada, em que a

pobreza passa a ser reconhecida e se constitui num problema social.

Afinal, quem eram os pobres desse período? Eram considerados

passíveis de assistência do Estado e, assim, pobres: os incapazes de suprirem suas

subsistências por meio do trabalho por sua condição social, velhos, doentes,

mendigos etc. No entanto eram considerados pobres aqueles que desenvolviam

alguma atividade de trabalho em condição subumana, tal como uma condição de

escravos. Dentre os pobres da época estavam os considerados homens livres, que

desempenhavam vários afazeres, desde tarefas que poupavam os escravos até

atividades artesanais e manufatureiras. A condição do homem livre, porém pobre,

passou a constituir uma marca diferenciada da própria condição de liberdade a eles

resguardada, conforme passagem de texto a seguir:

um espaço social próprio para essa massa (homens livres), cuja qualificação maior era ser livre para poder ser dependente, o que significava dizer que seu valimento estava em sua disponibilidade, que lhe assegurava a sobrevivência com o mínimo de decoro, capaz de não confundi-la com os escravos. (LAPA, p. 28, 2008)

A disponibilidade desses “homens livres” os diferenciava dos escravos, era a

marca que assegurava sua sobrevivência. A citação retrata a diversidade das formas

de classificação da pobreza presentes já no início do século XX. Assim, a

identificação da condição de pobreza vai se constituindo entre as estruturas e

relações sociais de maneira diversa, e não apenas por meio da condição de

escravidão e/ou de escravo.

Vale ressaltar que o contexto brasileiro durante o período da escravidão é

bem distanciado da conjuntura de outros países. Enquanto, na primeira metade do

século XIX, França e Inglaterra introduziam em suas problemáticas sociais

discussões sobre as novas formas de relações de trabalho com o advento dos sinais

da sociedade industrial, o Brasil, até bem próximo do final do mesmo século (século

XIX), mantinha uma sociedade que se dicotomizava sobre abolir ou não a

escravidão a escravidão.

Para Carvalho (2012), a maior herança do período de escravidão para o Brasil

foi a de um país que negava a condição humana da massa de escravos, as grandes

concentrações de propriedade rural que se formaram e um Estado comprometido

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com o poder privado. Pode-se até suscitar, partindo das contribuições do autor, que

esses seriam elementos de legado da sociedade escravista que incidiram,

fortemente, na maneira de percepção da pobreza no caso brasileiro, o que culminou

no distanciamento do Estado das causas públicas, como a pobreza, e,

consequentemente, na construção de formas de reconhecer como cidadãos aqueles

que necessitassem da assistência estatal, que, durante esse período, ficou pautada

no âmbito do favor e da benevolência, como será visto mais adiante do texto.

O período de 1850 a 1930 configura também a transição de uma sociedade

escravista para uma sociedade que vislumbraria sua organização com base em uma

economia de mercado. Logo após o fim do período da sociedade escravista no

Brasil (1888), constitui-se o período conhecido historicamente como a Primeira

República (1889-1930). A intervenção do Estado, no âmbito social, durante esse

período, insere-se em contexto em que o poder Estatal se encontrava fragmentado e

regionalizado em detrimento do fortalecimento do poder oligárquico e político dos

coronéis. Por essa razão, a Primeira República ficou conhecida como a República

dos Coronéis.

Durante esse período, a economia brasileira foi determinada e dominada

pelas grandes propriedades e pela produção de café, tendo destaque para dois

estados brasileiros que revezariam o mando de poder do Estado – São Paulo e

Minas Gerais. Nesses estados, o coronelismo como sistema político atingiu sua

perfeição (CARVALHO, 2012) e existia por meio de uma forte aliança, estabelecida

entre os comerciantes urbanos e os coronéis, voltada à permanência e à

manutenção do poder destes.

Durante esse modelo político de gestão, pouco se deu a intervenção política

do Estado, seja nas ações dos próprios coronéis, enquanto governantes, ou nas

condições sociais em que se encontravam os seus governados. Nas fazendas e

grandes propriedades, reinava o poder e o mando dos coronéis com os seus

subordinados (escravos e trabalhadores), que, segundo Carvalho, não eram

cidadãos do Estado brasileiro, mas súditos dos coronéis. Mesmo quando o Estado

se aproximava desses cidadãos, ele o fazia de acordo com a vontade dos coronéis.

Configurava-se uma troca de favores entre o Estado e os coronéis. Estes

davam o apoio político aos governadores locais em troca de que pudessem fazer a

indicação de autoridades em suas regiões, como delegados de polícia, agente de

correio, professora etc. Até o final do período da Primeira República, a intervenção

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do Estado nas questões sociais se pautava nas práticas coronelistas do

paternalismo, corrupção e clientelismo constituídas na relação entre o governo e o

senhoreado. Assim, formava-se uma margem de indivíduos não cidadãos e pobres

destituídos de proteção institucionalizada pelo Estado e, não tendo outra opção,

passavam a se colocar sob a proteção dos coronéis.

Nesse sentido, Lapa (2008) identifica o que denomina de um amplo sistema

de favor que, para o autor, confere status e legitimou a reprodução da pobreza na

época. O sistema de favores seria constituído pelo Estado e outras instituições por

meio de uma rede que se formava, voltada à mediação dos considerados pobres por

meio de trabalhos de filantropia, tais como creches, orfanatos, santas casas,

albergues etc. O sistema de favor, segundo o autor, pode assumir exacerbadas

proporções numa sociedade estamental, como: permite acomodar econômica e,

socialmente, uma população caracterizada como semiociosa ou subempregada,

considerando aqueles não incorporados ao sistema de produção ou ao aparato

filantrópico.

O autor ainda observa que o aparato ao pobre tinha seu preço. Uma forma de

custeio pertencente ao sistema de favor era socializada por meio do trabalho

voluntário dos próprios pobres, meio a donativos e à solidariedade humana motivada

pela igreja. A filantropia cristã é observada como uma peculiaridade social da época,

uma maneira de projeção social que se dava por meio da caridade pública, uma

espécie de apelo ao espírito cristão. Durante toda segunda a metade do século XIX,

durante o período da sociedade escravista, o financiamento de trabalhos

filantrópicos se devia ao senhoreado agrário, que detinha muito interesse na

legitimação de seus valores e controle social por meio da sistemática de donativos.

Com base nas discussões apresentadas até então, alguns pontos podem ser

observados sobre o processo de institucionalização da pobreza. É notório que o

controle e o acompanhamento das situações da pobreza ocorriam mais na esfera da

sociedade civil e menos na esfera estatal. Dessa forma, a marca do Estado na

intervenção junto aos pobres era a sua ausência. As raras inserções do Estado, que

se davam de maneira precária, estavam focadas em perspectivas punitivas e

perigosas da pobreza, ou seja, o pobre tinha que ser disciplinado, controlado e

monitorado. Quando de ações interventivas pelo Estado, a relação era tratada com

base em características paternalistas e de caridade. E, finalmente, esteve presente

na intervenção junto à pobreza desse período a igreja, uma instituição de presença

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política forte, que pregava a intervenção aos pobres com valores e filantropia cristã.

A igreja liderou as ações de caridade por muitos anos com a rede de instituições

privadas como mediadoras junto ao Estado do aparato à pobreza.

1.2 Aparato filantrópico da pobreza: a igreja e a institucionalização da caridade

A igreja se insere na história do estudo da pobreza como um das primeiras

instituições a propagar e operacionalizar o conceito de pobreza e institucionalizá-lo

na mediação das ações de assistência aos pobres. Durante as periodizações

analíticas apresentadas neste estudo, a igreja sempre se manteve presente nos

processos que intermediavam a prática e os processos de transformação na

abordagem da pobreza, estando presente, inclusive, como braço da estrutura do

Estado e da sociedade como principal referência do tema. Dessa forma, é uma

instituição que merece atenção especial para compreensão de alguns aspectos que

balizavam a intervenção junto aos pobres.

Castel (2012), ao discutir os processos de instrumentalização e

especialização decorrentes da assistência à pobreza, argumenta que a caridade foi

um dos primeiros elementos usados para instrumentalizar os sujeitos e estruturas no

atendimento aos pobres. A pobreza era valorizada como uma espécie de

dignificação humana diante de Cristo, ao mesmo tempo em que era valorizada em

referência a Cristo. A caridade seria o elemento fundamental, quase uma missão

aos predestinados a ajudar os pobres. A caridade estaria relacionada, assim, a uma

virtude Cristã dentro do modelo de sujeitos e homens religiosos cristãos que

souberam despojar-se dos fardos terrestres a fim de se aproximarem de Deus.

Esse despojamento não pôde ser praticado por qualquer um e constituiu um

componente essencial da vocação religiosa. Porém, para o autor, a pobreza

reconhecida pela igreja não era qualquer forma de pobreza, ou seja, “a caridade

cristã não se mobiliza automaticamente para socorrer todas as formas de pobreza”

(CASTEL, 2012, p. 63). A condição social do pobre suscitava uma gama de atitudes

que iriam da comiseração ao desprezo e, com frequência, tinha uma conotação

pejorativa. Assim, a pobreza por opção, enquanto sublimação espiritual, era a

pobreza reconhecida e valorizada como sendo um componente da santidade.

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Para o autor, essa ambivalência seria uma contradição inerente à intervenção

histórica da pobreza pela representação cristã que procurou ser superada no plano

prático da intervenção por meio de dois modos específicos de gestão da pobreza: a

primeira, na forma inscrita numa assistência denominada por Castel (1998) de

economia de salvação e, a segunda, numa atitude cristã como a caridade e a

economia da salvação, fundamentada na classificação discriminante das formas de

pobreza.

A economia da salvação seria, nessa perspectiva, uma instrumentalização do

pobre, caracterizado como desgraçado e lastimado, enquanto um meio privilegiado

para que o rico praticasse a suprema virtude cristã, a caridade. A prática da caridade

cristã permitia ao rico caridoso a sua salvação. Tal prática foi a responsável, em

grande parte, pelo orçamento medieval da assistência, por meio de esmolas e de

doações às instituições de caridade.

Porém o fato de a pobreza ter sido um instrumento para obtenção da

salvação não significou uma aceitação e gosto pelo pobre como pessoa, nem pela

pobreza. Na verdade, foi estabelecida entre o rico e o pobre uma economia política

da caridade, ou seja, a caridade legitimou-se como um valor de troca que apagava,

num momento em que as especulações financeiras ainda provocavam sentimento

de culpa, o pecado e levava à salvação (CASTEL, 2012).

Por meio dessa correlação, no entanto, entre a caridade e a economia de

troca, ocorreu o que o autor chama de percepção discriminatória dos pobres, ou

seja, eram excluídos todos aqueles pobres que se revoltavam contra a ordem do

mundo desejada por Deus. Revoltar-se contra a condição de pobreza era um ato de

não aceitação da condição de santificação da pobreza diante Deus, o que

representava um ato de heresia por parte do pobre.

O pobre mais digno de mobilizar a caridade seria aquele que exibisse, em seu

corpo, a impotência e o sofrimento humano. Nesses termos, os sinais físicos da

pobreza eximiam e legitimavam o pobre a uma condição de indigência admitida, ou

seja, um passaporte à condição de assistido, da qual necessitaria de uma

exoneração fundamental, a da não obrigação para o trabalho. A incapacidade física,

a velhice, a infância abandonada, a doença, preferencialmente a incurável, as

mazelas insuportáveis que causassem impacto ao olhar, todas essas situações

eram as condições para ser um assistido e demonstravam que os sinais de

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decadência apresentados que levavam à incapacidade de trabalhar eram

involuntárias.

A esse movimento, Castel chama de derrelição do corpo para o acesso ao

auxílio à assistência. Essa teria sido a herança do cristianismo medieval, uma

versão da exaltação da pobreza baseada na consciência exacerbada da miséria do

mundo (CASTEL, 2012, p. 68), o que o autor denominará de uma referência por

meio de uma teoria da desvantagem. Nesse sentido, o autor dá uma pista analítica

importante a ser retomada mais à frente neste estudo, quando diz que a referência,

por meio da teoria da desvantagem, constitui uma coordenada básica de qualquer

política da assistência.

No caso do Brasil, a igreja católica foi forte aliada do Estado nas práticas de

assistência à pobreza, como liderança inquestionável (LAPA, 2008). Destacava-se

na coordenação de instituições privadas e no recebimento de doações dos

filantropos que, em troca da caridade, esperavam uma projeção social, por meio dos

nomes proferidos em sermões, registros, placas, nomes de ruas, praças etc. As

ações eram estabelecidas, assim, no âmbito de trocas para ascensão política e

legitimação do poder diante da sociedade. A intervenção quase isolada da igreja

durou até que o Estado brasileiro centralizasse em sua estrutura um modelo de

organização burocrática e a coordenação das ações institucionalizadas estatais de

intervenção da pobreza, processo que será iniciado após o ano de 1930.

As demarcações analíticas desse período histórico podem ser descritas com

as formas de assistência aos pobres pautada no âmbito da caridade e benevolência,

tendo, no ato cristão, mediado pela igreja, o grande motivador, seja como moeda de

troca, seja como forma de associação a ascensão social e poder. Ao mesmo tempo,

as transformações sociais foram indicando a necessidade de um aprimoramento e

apoderamento pelo Estado.

A necessidade do fortalecimento do Estado no atendimento aos pobres se

dava em torno da constituição de um campo de intervenções especiais constitutivas

do social-assistencial, ou seja, um campo de especialização particularizado aos

carentes. O atendimento ao carente historicamente foi se constituindo em objeto de

práticas especializadas (CASTEL, 2012, p. 57), o que daria origem, posteriormente,

a estruturas de atendimento assistencial cada vez mais sofisticada, a tendência que

será analisada a partir da segunda metade do século XX no Brasil.

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1.3 De 1930 a 1980 – Primeira Ruptura: a institucionalização da pobreza, os aptos e não aptos e a emergência da assistência social como principal intervenção entre os pobres

O período de 1930 a 1980 pode ser considerado um primeiro momento de

ruptura na configuração de ações institucionalizadas pelo Estado na intervenção da

pobreza no Brasil. Durante esse período, tem início uma transição da noção de

assistência ao pobre conforme dicionário clérigo, ou seja, uma intervenção por meio

da caridade, da benevolência, que predominou no século XIX, para um ensaio de

centralização e incorporação de ações voltadas aos pobres pela estrutura do

Estado. Esse movimento não significou o abandono da perspectiva de ações pela

caridade junto aos pobres, porém a caridade ganharia seus primeiros entornos

institucionais no papel do Estado, com a continuidade do apoio da igreja e de

instituições privadas.

O processo iniciado a partir dos anos de 1930 leva a uma tecnização da

assistência até então praticada, que passa a ser acrescida da especificidade, do

recorte dos pobres inserido no espaço social público, ou seja, aos pobres cabe uma

intervenção que considere a condição social dos sujeitos. Com isso, a forma

legitimada pelo Estado na intervenção da pobreza passa a ser conhecida como

assistencial e social. Anos mais tarde, a institucionalização e a tecnização das ações

de assistência social tornam-se um método de intervenção especializado, dando

origem a uma profissionalização. A prática aprimorada e tecnificada vai instituir o

curso de Serviço Social20 como profissão.

Sposati et al (1998), ao levantar elementos sobre a história da assistência,

analisa que esta sempre foi uma prática antiga na humanidade. Assim, a

solidariedade social foi uma constante diante de público identificado como pobres:

viajantes, doentes, incapazes, mais frágeis, e inscrevia-se sob diversas formas nas

normas morais de diferentes sociedades. Dessa forma, grupos filantrópicos e

religiosos foram conformando práticas de ajuda e apoio.

No contexto brasileiro, alguns marcos históricos e políticos contribuíram para

que fosse iniciado o processo de afirmação da institucionalização da pobreza pelo

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O Serviço Social foi implantado no Brasil, especificamente em São Paulo, em 1936, por meio do Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), que era um dos centros de promoção da Ação Católica de São Paulo (SPOSATI et al. 1998).

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Estado, tais como: a saída de um modelo de Estado Federalista Oligárquico

(Primeira República de 1889-1930) para um Estado de Modelo Corporativista (1930),

que via na tutela dos mais pobres uma de suas bandeiras; o aumento do número de

desempregados como consequência decorrente da Revolução Industrial (1930); a

experiência da Era Vargas (1930-1934/1934-1937/1937-1945), que introduziu as

primeiras medidas de institucionalização de ações voltadas aos pobres, como

também a institucionalização de direitos trabalhistas; e, por fim, a continuidade,

manutenção e aprimoramento das práticas e ações de assistência social iniciadas

durante o governo de Getúlio Vargas nos demais governos, incluindo o período da

Ditadura Militar, que vai do Golpe de 1964 a 1985.

Ao mesmo tempo em que as transições históricas desse período levaram o

Estado a centralizar as ações voltadas à pobreza, tal inferência era justificável pelo

aumento considerável da pobreza que ocorria. Dois fatores foram significativos

nesse momento: o contexto da Revolução Social no Brasil e a busca pelo

desenvolvimento e pelo progresso.

A transição da sociedade escravista à sociedade de economia industrial

burguesa se configura, no âmbito social, como a consolidação de mais uma frente

de pobreza. A Revolução Industrial de 1930 no Brasil trouxe como consequência a

não integração de milhares de indivíduos às novas exigências dessa sociedade.

Para um país eminentemente de economia agrícola, tendo no final da Primeira

República 70% do PIB nacional em torno da monocultura de café voltada para

exportação (BOSHETTI et al., 2011), por meio das grandes propriedades e do poder

dos coronéis, a transição da sociedade agrária para uma sociedade industrial

representou a ampliação das condições de pobreza da maioria dos trabalhadores

rurais como também de trabalhadores urbanos, pois estes não atendiam aos

critérios exigidos de mão de obra para industrialização.

A chegada do processo de industrialização põe o Brasil no rol da busca pelo

progresso e desenvolvimento. Isso tem consequências diretas na conceitualização e

intervenção junto aos pobres. Nesse momento, a discussão mundial sobre a

pobreza transitava do âmbito da ajuda e se inseria no viés das causas econômicas

estabelecidas com base nas necessidades criadas pela busca do processo de

desenvolvimento dos países.

O progresso social se configurava, assim, numa condição indispensável para

o alcance do desenvolvimento (ILLICH, 2000), o que cabia bem aos interesses da

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classe intelectual brasileira da época, como também do pensamento nacionalista

emergente Pós-Primeira República. A industrialização trouxe uma nova agenda, o

papel dos países considerados “desenvolvidos” como provedores de ajuda aos

países “subdesenvolvidos”. O desafio consistia em contribuir para que os países

subdesenvolvidos alcançassem o progresso social, e, dentre outras coisas, tal

condição exigia soluções eficazes para minimizar a situação de pobreza da

população. É nesse contexto que a necessidade dos sujeitos vai assumindo um

caráter cada vez mais institucionalizado sob o olhar dos Estados.

Para Illich (2000), esse contexto tem um custo aos sujeitos que estariam

inseridos num ciclo de raciocínio cujo entendimento era de que grande parte das

pessoas seria necessitada, e essas necessidades lhes dariam direitos, os quais

seriam traduzidos em habilitação para receberem assistência, e, por sua vez, a

assistência impunha determinadas obrigações aos ricos e aos poderosos. No caso

do Brasil, o progresso e a industrialização configura um divisor de águas na

abordagem da pobreza também pelas consequências de exclusão trazidas no

mundo do trabalho.

Nem todas as pessoas, antes acostumadas às dinâmicas e práticas rurais se

adaptavam às novas exigências de ocupação dos novos postos de trabalhos vindos

com a sociedade industrial. Assim, essa mão de obra, em sua maioria, não

conseguia ser inserida nas práticas industriais. Formava-se um aglomerado de

indivíduos desempregados e não “qualificados” destinados a serem trabalhadores na

sociedade industrial. Assim, a condição de pobreza desses indivíduos avançou

consideravelmente. A condição para identificação da situação de pobreza dos

sujeitos passa a ser ratificada e legitimada não mais apenas pela presença de

mendicância no espaço público, nem pela derrelição do corpo (CASTEL, 2012), mas

por uma diferenciação fundamental entre os pobres aptos e os pobres inaptos a

ingressar no mundo do trabalho.

Apesar da diferenciação entre pobres aptos e não aptos ao trabalho não ser

inédita, considerando que o aparato aos pobres estabelecido com a filantropia

institucional (LAPA, 2008) dos períodos anteriores já delimitada, é uma demarcação

importante para analisar os processos institucionalizados que passarão a ser

configurados pelo Estado e pelas estruturas sociais nas ações voltadas aos pobres.

Vale ressaltar que os ganhos institucionalizados em direitos sociais (CARVALHO,

2012) advindos a partir da década de 1930 no Brasil teve foco em um tipo específico

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de pobreza – os pobres que trabalhavam. Para os pobres não aptos ao mercado de

trabalho, que crescia em números consideráveis e inchava os centros urbanos,

continuava o atendimento de articulação entre a rede de atendimento privada, que

articulava o trabalho da igreja com o apoio do Estado. A diferença se encontrava no

fato de o Estado ter um maior controle da rede de atendimento e do olhar técnico

que foi sendo incorporado no atendimento aos pobres.

A tecnificação do olhar estatal sobre a pobreza foi uma perspectiva trazida

com a busca pelo progresso e pelo crescimento considerável da pobreza e sua

visibilidade nos espaços públicos, tais como os centros urbanos. Países como os

Estados Unidos, que vendiam seu modelo de desenvolvimento para os países

subdesenvolvidos, desde os anos 1960, segundo Illich (2000), já indicavam que a

pobreza tinha deixado de ser destino para tornar-se um conceito operacional, ou

seja, o resultado de condições econômicas e sociais injustas, ausência de um

sistema educacional moderno, a prevalência de uma tecnologia atrasada e

inapropriada. Assim, a pobreza passava a ser considerada uma epidemia, curável,

com a terapia adequada, ou seja, um problema a ser solucionado (ILLICH, 2000,

p.161).

A necessidade de aceitar a pobreza como um destino, sorte, providência,

vontade de Deus foi desmistificada e, já nos anos iniciais do século XX, ela perdeu

muito da sua legitimidade na medida em que o progresso passou a ser a luta e a

reivindicação política contra todas as formas de aceitação da necessidade como

naturalizada (ILLICH, 2000).

No entanto, no caso do Brasil, ainda em 1930, o país saía de um modelo de

Estado Federativo Oligárquico da Primeira República em decorrência de inúmeras

revoltas populares que refletiam acontecimentos exteriores e traduziam a

insatisfação interna com o mando dos coronéis. Nesse mesmo ano, o então

presidente da República Washington Luís foi deposto por um movimento armado

dirigido por civis e militares, o que ficou conhecido como Revolta de 1930

(CARVALHO, 2012).

Com isso, em 1934, após um período transitório de um governo

revolucionário, uma constituinte confirmou o nome de Getúlio Vargas para

presidente do Brasil. A bandeira política de Vargas defendia o fortalecimento do

governo central e um Estado intervencionista e propunha reformas econômicas e

sociais. Para Schwartzman (2004), o que houve nos anos 1930 no Brasil foi uma

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convergência de concepções e tendências positivistas e eugênicas culminando

numa nova visão em que observava a sociedade como um grande organismo em

que cada parte desempenhava suas funções para que todos vivessem em harmonia

sob a tutela de um poder magnânimo e protetor, esse era o modelo corporativista de

Estado.

Destacava-se como intelectual defensor desse modelo de Estado o intelectual

Oliveira Viana, responsável por elencar os eixos norteadores dos grandes problemas

que o governo brasileiro deveria pautar em sua estratégia de intervenção. Dentre os

eixos estava a oficialização da assistência social, elevando-a à condição de um

serviço público, mesmo quando realizada pela iniciativa privada (SCHWARTZMAN,

2004, p. 22). Isso significava que o Estado deveria aprimorar os serviços

organizados pela caridade e pela filantropia, no sentido de submetê-los à sua

disciplina, ao seu controle e à sua orientação. Além disso, deveria entrosar os

serviços para os pobres numa engrenagem das instituições oficiais e administrativas

do Estado para que se estabelecesse assim uma progressiva identificação da

assistência social privada com a assistência social pública.

O cenário de aquisições no âmbito de direitos sociais institucionalizados no

Brasil, a partir do ano de 1930, ocorreu, efetivamente, antes que Getúlio Vargas

assumisse a Presidência e não foi apenas uma delegação do Estado. Nesse

período, surgiam as primeiras organizações sindicais que, diante da sociedade

industrial no Brasil e diante do aumento do número de desempregados, iniciaram

movimentos reivindicatórios de segurança para aqueles que conseguiam ser

trabalhadores na sociedade industrial. Pode-se listar como resultado desse

movimento as aquisições no âmbito do Direito Trabalhista desse período:

Quadro 1: Institucionalização de Direitos Sociais – anos de 1930-1945 no Brasil

ANO DIREITOS SOCIAIS ADQUIRIDOS

1919 Brasil assina o Tratado de Versalhes (OIT) – Carvalho, 2012, p. 63

1923 Criado Conselho Nacional do Trabalho (permaneceu inativo)

Criação da Caixa de Aposentadoria e Pensão para os ferroviários

1926 Regulamentação do direito às férias de trabalho (regulamentado de

maneira efetiva para bancários, comerciários e industriários entre 1933 e

1934)

Criação do Instituto de Previdência para funcionários da União

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1930 Criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio

Criação do Ministério da Educação e Saúde Pública

1931 Criação do Departamento Nacional do Trabalho

1932 Decretada jornada de trabalho de 8 horas no comércio e indústria

Regulamentado o trabalho para menores

Criada a Carteira de Trabalho

1933 Criado Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Marítimos (IAPM)

Ampliação das Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAPs)

1938 Criado Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado

(Ipase)

1940 Instituído o salário mínimo

1941 Justiça do Trabalho entre em funcionamento

1943 Consolidação das Leis de Trabalho

Fonte: dados da pesquisa bibliográfica da autora.

Carvalho (2012, p. 124) considera que, apesar da efervescência do período,

os anos de 1930-1945, que incluem os anos da Era Vargas, foram os anos em que o

grosso da legislação trabalhista e previdenciária e dos direitos sociais foram

implantados. O que veio depois, para o autor, foram apenas aperfeiçoamento e

racionalização. Yazbek et al. (2012) também reconhecem que o Estado brasileiro no

período de 1930 a 1943 passa a assumir um papel de regulação ou de provisão

direta no campos da previdência, educação, saúde etc. Porém o padrão de

cidadania e da constituição dos direitos tinha por base o mercado do Estado

regidamente controlado pelo próprio Estado. Assim, ser cidadão significava ter

carteira assinada, pertencer a um sindicato, ou seja, uma cidadania restrita ao meio

urbano. Seria um processo que o professor Wanderley Guilherme dos Santos (1987)

chama da constituição de uma cidadania regulada.

Como se vê, há um grande aparato que se forma institucionalmente em torno

da temática da pobreza e do processo de cidadania para os pobres aptos ao

trabalho. Porém, nesse contexto, como o Estado institucionaliza as ações voltadas

aos considerados não aptos ao trabalho?

A resposta a essa questão pode ser iniciada com a percepção de que a

bibliografia que trata do período seja sobre assistência social, cidadania ou Estado,

invisibiliza o público até então denominado de pobres que, no fim do século XIX,

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passa a ter no foco a pobreza decorrente das relações de trabalho da época e a

transição para uma sociedade de modelo urbano-industrial (YAZBEK et al., 2012).

Assim, a institucionalização da pobreza, em suas primeiras medidas de aquisição de

direitos, ocorre, prioritariamente, para os pobres que conseguiam se manter em

postos de trabalho e/ou àqueles que estavam nele e foram excluídos.

As ações da assistência social, nesse momento, começam a ser incorporadas

às práticas institucionalizadas pelo Estado dentro do modelo de Estado paternalista

e clientelista, no período ditatorial, que correspondia ao Estado Novo, golpe de

Estado de Getúlio Vargas, em 1937 (SPOSATI et al., 1998), que teve o apoio dos

militares. Logo após, em 1938, foi instituído o Decreto (Lei nº 525) que criou a

organização do Serviço Social enquanto modalidade de serviço público. Logo na

construção do Serviço Social, existiu uma tensão pelo desejo de que a criação do

serviço negasse a prática da assistência tal qual aquela praticada anteriormente pelo

Estado e pela igreja. Porém parece ter sido uma tensão que esteve presente apenas

nos profissionais que passaram a compor tecnicamente as ações do serviço social

do que uma tensão presente nos objetivos do Estado. Poderia arriscar a hipótese de

que essa tensão entre o modelo de assistência aos pobres pretendido pelo Estado e

o modelo de assistência desejado pelos profissionais de Serviço Social continue até

hoje de maneira ressignificada, fato que a presente estudo pretende abordar com a

continuidade da pesquisa.

A primeira grande instituição de assistência social brasileira foi a Legião

Brasileira de Assistência (LBA), criada em 1942 e reconhecida com o status de

colaboradora do Estado. Ela foi criada para atender às famílias dos pracinhas

envolvidos na Segunda Guerra Mundial, tendo na coordenação a primeira-dama

senhora Darci Vargas. Estatutariamente, o Estado assegurava que a presidência era

restrita às primeiras-damas da República (SPOSATI, et al. 1998), movimento que

deu início ao que historicamente ficou conhecido como Primeiro Damismo.

Para Sposati, a LBA significou a simbiose entre a iniciativa privada e a

pública, como também a relação benefício/caridade e benefício/pedinte, o que

conformava a relação entre Estado e classes subalternas. Há um entendimento de

que existe uma dificuldade de estabelecer marcos em relação à política de

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assistência social na história do Brasil21 devido ao seu caráter fragmentado,

diversificado, desorganizado, indefinido e instável. Nesse sentido, a LBA

representou a primeira iniciativa das ações de centralização da assistência social no

âmbito federal. Boschetti et al. (2011) avaliam que essas características denotam o

teor de tutela, favor e clientelismo na relação entre Estado e sociedade no Brasil. A

LBA se configurou numa instituição responsável por articular a assistência social e a

rede de entidades privadas por meio de convênios. A marca assistencialista, seletiva

e o Primeiro Damismo continuarão a acompanhar o tratamento aos considerados

pobres pelo Estado brasileiro até os marcos da Constituição Federativa de 1988.

A institucionalização da assistência contou, em 1942, com a criação do

Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e, em 1946, o Serviço Social

da Indústria (Sesi). Esses órgãos foram criados e direcionados para a qualificação

dos trabalhadores. Diante dessas perspectivas aparentemente opostas entre

objetivo da LBA e os Serviços Sociais Sesi e Senai, Sposati et al. (1998) avalia que,

em termos técnicos e científicos, diante dessas instituições, o Serviço Social tomou o

caminho da dicotomia entre uma tendência que desenvolvia processos de promoção

social entre os pobres e a classe trabalhadora e a assistência social que continuava

mais próximas das ações da LBA e das primeiras-damas. Surge, assim, nova

dicotomia na racionalidade do tratamento da pobreza pelo Estado e pela sociedade.

Voltando ao contexto político, em 1945 ocorre a queda do governo de Getúlio

Vargas e seu legado de intervenção nos moldes de Estado corporativista e

paternalista chega ao fim. A partir daí, em 1946, tem início a constituição de um

período de características democráticas no Brasil (CARVALHO, 2012; BOSCHETTI

et al., 2011), em que o voto foi expandido a todo cidadão brasileiro. Mesmo assim

não evitou as intensas turbulências econômicas, políticas e sociais de um país que

já se caracterizava como urbano e com uma indústria de base forte.

Logo após a queda de Vargas, entre 1946 e 1964, ocorre a expansão das

políticas sociais, dentre elas a de atendimento à pobreza, que é considerada lenta e

seletiva, mantendo ainda a característica corporativista da Era Vargas, marcada por

aperfeiçoamentos institucionais e disputas de projetos (BOSCHETTI et al. 2011).

21

Ver: DRAIBE, S.M.; AURELIANO, L.A. Especificidade do “welfare state” brasileiro. In: MPAS/CEPAL. A política social em tempo de crise: articulação institucional e descentralização. Brasília: MPAS/CEPAL, 1989. v. 3.

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Os militares voltam ao poder com o golpe de 1964, e o Estado Nacional

Desenvolvimentista dá vez à perspectiva do Estado Tecnocrático em que a

internacionalização e a modernização foram mecanismos internamente apoiados

pela ação do capital estrangeiro, o que ficou conhecido como o período de uma

ditadura modernizadora conservadora (BOSCHETTI et al., 2011). A tendência do

novo modelo de Estado não trouxe significativas mudanças às intervenções técnicas

junto à pobreza a não ser pela maior racionalidade e sofisticação técnica que buscou

(SPOSATI et al, 1998). A racionalidade foi instrumentalizada no uso da técnica de

planejamento social como forma de “correção” das distorções trazidas pelo

planejamento econômico.

O caráter autoritário do Estado brasileiro pós-64 traz, assim, a forte tendência

de uma intervenção governamental pautada nas políticas sociais de caráter

assistencialista. Os programas governamentais muitas vezes foram usados como

forma de legitimação e desmobilização de setores sociais organizados no regime

ditatorial. Sposati et al (1998) chama esse movimento de um mecanismo de

combinação de repressão-assistência. Ainda nesse período se destaca o Milagre

Brasileiro, uma intensa produção industrial, como a de automóveis e de

eletrodomésticos, fabricados em massa para o consumo interno, o que acontecia

desde o Plano de Metas de JK. Nesse período, houve razoável expansão da

cobertura em política social conduzida sob forma tecnocrática e conservadora em

meio à restrição de direitos civis e políticos.

Muito mais que mudanças no modelo de intervenção estatal, localiza-se uma

nova tensão pautada no que se pode denominar de tensão interior Estado versus

assistência social. Trata-se de duas perspectivas de assistência social diferenciadas

nesse momento – a do Estado e a dos profissionais técnicos que executam a prática

da assistência social para o Estado. Como havia analiticamente apontado

anteriormente, uma das características fundamentais que marca a transição da

institucionalização da pobreza para o Estado é o próprio conflito interno existente na

prática profissional junto ao público da assistência social. O modelo de Estado

concebe uma forma de intervenção, enquanto os técnicos profissionais do Serviço

Social não a reconhecem e defendem outra abordagem. Tal fato pode ser percebido

na fala de Aldaíza Sposati:

a busca da transformação social nessa vertente é considerada incompatível com a prática institucional. Esta é negada a favor de práticas alternativas

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pautadas na militância política. Favorece esta negação a compreensão do Estado como comitê de classe, destinado irredutivelmente à reprodução ideológica, à manutenção da dominação de forma linear e pronta. As forças sociais continuam a ser lidas como bloco monolítico. (SPOSATI et al, 1998, p. 51).

Durante as décadas de 1970 e 1980, ainda sob a orientação do autoritarismo

da Ditadura Militar, Yazbek et al. (2012) avaliam que as políticas sociais refletiam o

binômio também apontado por Sposati (1998), da compensação da repressão frente

aos movimentos sociais, incluindo, nesse sentido, o movimento que ficou conhecido

como o movimento do sindicalismo autêntico.

Ainda na década de 1970, especificamente em 1974, foi criado o Ministério da

Previdência e Assistência e Social incorporando a LBA, a Fundação para o Bem-

Estar do Menor e a Central de Medicamentos. Tempos depois surgem outros

institutos, como INPS, INAMPS, IAPAS. Porém a institucionalização da saúde e da

previdência se deu de maneira diferenciada, pois a institucionalização da assistência

social se deu com menor importância e praticamente foi implementada pela rede

conveniada e de serviços prestados pela LBA.

Em contexto ampliado, o Estado brasileiro se insere, a partir da década de

1980, em período que ficará conhecido como a década perdida, que representará o

reflexo da crise do momento internacional vivida pelo capitalismo e de um processo

quase zero de crescimento interno, de um processo de aumento de endividamento e

recessão. Nesse cenário, a pobreza cada vez mais vai sendo reivindicada como

intervenção e ações mais concretas. A pobreza começa a ser, cada vez mais,

visibilizada nas ruas, as pessoas começam a protestar pelo alto custo de vida.

Diante dos caminhos traçados na economia brasileira na década de 1970, abre-se

um pano de fundo para a próxima década – as ações estratégicas na área social

orquestrada por um novo modelo de políticas, a perspectiva de um modelo

neoliberal (WANDERLEY, 2008).

1.4 Da década perdida à constituição de direitos (1980-1988)

A década referente ao período de 1980 e 1988 foi de mudanças significativas

no Estado brasileiro no que diz respeito às políticas sociais voltadas à intervenção

junto à pobreza. Podem ser apontados dois fatores fundamentais referentes a tais

mudanças: primeiro, o cenário econômico pelo qual passou o país, diante das

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restrições trazidas no papel do Estado enquanto papel regulador durante a “década

perdida”, e o segundo fator, a agudização das formas de pobreza com o crescimento

das desigualdades sociais.

A “década perdida” (WANDERLEY, 2008; BOSCHETTI et al., 2011) é

considerada a fase em que a inflação brasileira quase sem controle teve índices

elevadíssimos, associado ao fato de a dívida externa atingir níveis alarmantes. O

Brasil saltou de uma inflação de 91,2% em 1981 para 217,9% em 1985. Nesse

sentido, gerou-se uma crise de endividamento que ocasionou diversas

consequências. Foram efeitos da crise de endividamento: crise dos serviços sociais

públicos (aumento da demanda em contraposição à não expansão de direitos);

desemprego; aumento da informalidade na economia e um sistema de produção

para exportação em detrimento das necessidades internas (BOSCHETTI et al.,

2011, p. 139).

A saída encontrada diante da crise foi a inserção do Brasil no projeto de

medidas neoliberais, que significou, no âmbito das políticas sociais, ajustes e corte

de gastos na área social. Todo esse movimento esteve orquestrado e monitorado

com base no modelo econômico do Banco Mundial e do Fundo Monetário

Internacional, por meio das regras e indicações do Consenso de Washington22.

Para Wanderley (2008), essa transição, diante da crise deflagrada que

representou o aparente esgotamento do capitalismo de produção, o Estado passou

a ser concebido como o vilão responsável por todos os problemas existentes, o que

socialmente foi entendido como a incapacidade do seu papel regulador. Nesse

sentido, tem início a adesão para uma intervenção em que o mercado é concebido

como potencial regulador, enquanto o Estado vai assumindo um papel mínimo de

regulação. Para os neoliberais, o bem-estar está associado ao mérito individual e

não aos direitos de cidadania social, à produtividade capitalista livre de controles e

22

Consenso de Washington foi um encontro que ocorreu no ano de 1989, em Washington, nos Estados Unidos. O encontro teve o objetivo de, com a presença de representantes do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do governo norte-americano, pensar reformas econômicas para a América Latina a partir de uma visão neoliberal de intervenção, diante do cenário de crise e recessão instaurado. Assim, foram estabelecidas regras que buscavam um ajuste macroeconômico dos países considerados em desenvolvimento. As conclusões saídas desse encontro iriam condicionar a concessão de crédito aos países nessa condição. As regras principais do “consenso” estavam pautadas na perspectiva de abertura econômica e comercial, aplicação da economia de mercado e controle fiscal macroeconômico.

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não à redistribuição de bens e serviços coletivos, e à igualdade de oportunidades e

não à igualdade de resultados (PEREIRA, 2004).

No âmbito das políticas públicas, o modelo de Estado neoliberal terá severas

inferências no corte de gastos e controle por meio da concepção de programas de

austeridade de natureza deflacionista e de ajustes estruturais na máquina dos

Estados ( BOSCHETTI et al., 2011). Assim, as políticas públicas sociais voltadas ao

controle da pobreza se inserem num modelo de intervenção mais amplo, ou seja, a

intervenção do Estado junto aos pobres no Brasil passa a seguir o modelo

estabelecido pelo Banco Mundial, que concebe a pobreza como um problema social

que necessita de intervenções estatais focalizadas.

O critério de focalização levará a um método de identificação dos pobres por

meio da contagem dos pobres (LAVINAS, 2003). Assim, a abordagem da pobreza se

instrumentaliza de métodos para calcular e classificar os grupos desfavorecidos.

Isso ocorre com base na adoção de metodologias de organismos internacionais,

desde o fim da década de 1960, que tinha como objetivo a divulgação de formas de

estimar o fenômeno, dentre elas destacou-se, fortemente, a linha da pobreza23.

“Pobreza torna-se sinônimo de carência e, em lugar de pobre, passa a ser

denominada a expressão população de baixa renda. Isso vai permitir identificar e

classificar os pobres com o intuito de focalizar a ação social do no combate à

pobreza” (LAVINAS, 2003, p. 44).

23 A linha de pobreza é uma metodologia de classificação utilizada pelo Banco Mundial que demarca

uma posição da condição de pobreza dos sujeitos com base no recorte de renda apresentado. Assim, pode-se estar acima ou abaixo da demarcação do valor estabelecido pela linha de pobreza. O valor é calculado levando em consideração o mínimo (segundo aferição do Banco Mundial) para subsidiar a sobrevivência de uma família em termos de alimentação, habitação, vestuário, cuidados de saúde etc. Em outubro de 2015, o Banco Mundial anunciou uma atualização da linha de pobreza para o valor de US$ 1,90 por dia. Para o BIRD, a “nova” linha preserva o poder aquisitivo real da linha anterior, que era de US$ 1,25 por dia (valores com ano base de 2005) nos países mais pobres do mundo. No caso brasileiro, as ações de combate à pobreza passarão, a partir das reformas do Estado na perspectiva de ajuste econômico a adotar a linha de pobreza para focalizar os grupos específicos das ações. Outra linha demarcatória da pobreza será utilizada no caso brasileiro: a linha de extrema pobreza. Tal metodologia foi instituída pelo governo brasileiro (Ipea, IBGE, contribuições da Cepal), tendo como base o método de constituição da linha de pobreza internacional (Banco Mundial). O objetivo foi chegar aos grupos considerados no Brasil em situação de miséria, ou seja, vivendo muito abaixo da linha de pobreza. Essa foi uma proposta de elegibilidade técnica encontrada pelo governo para propor a expansão da transferência de renda do PBF a grupos que mesmo recebendo os recursos do referido programa não superavam a linha de pobreza. O valor da linha demarcatória da extrema pobreza para classificação dos pobres pelo governo brasileiro atualmente é de R$ 77,00 per capita por mês. Sugestão de consulta para aprofundamento: SOARES, S.; OSORIO, R; SOUZA, G.F. Erradicar a pobreza extrema: um objetivo ao alcance do Brasil. Brasília: Ipea, 2011 (Texto para Discussão, n. 1619). Disponível em: <http://ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/TDs/td_1619.pdf>.

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Nos anos 1980, o conceito de pobreza é entendido também como exclusão e

esteve relacionado com a desfiliação dos trabalhadores do mundo do trabalho.

Diante disso, surge uma nova categoria de denominação dos pobres, “novos pobres”

(LAVINAS, 2003). Para a autora, no caso do Brasil, existiu um modelo de exclusão

dos trabalhadores presentes em todas as fases de produção capitalista, o que levou

a um padrão de desigualdade extrema que levou à exclusão de milhares da classe

trabalhadora, que tiveram negada sua cidadania econômica e social. A pobreza é

entendida, assim como consequência da exclusão.

Para Lavinas (2003), a exclusão seria um dos determinantes da pobreza na

segunda metade dos anos 1970, como também ao longo da década de 1980. Isso

ampliaria o olhar sobre a pobreza como um tipo de vínculo, de uma inserção

precária, débil e instável. Apesar disso, Lavinas (2003) considera que pobreza e

exclusão constituem duas categorias associadas, porém diferenciadas, pois a

exclusão é o oposto de integração social, que pode ser dada por dois eixos: inserção

profissional e inserção nas redes de solidariedade e reciprocidade.

Nesse complexo campo de concepções analíticas, políticas, sociais e

econômicas é que se inserem as intervenções Estatais junto à pobreza na década

de 1980. Num cenário em que, cada vez mais, o modelo de Estado neoliberal

responde com agravamento e desencadeamento da desigualdade social. Uma

demarcação fundamental é o distanciamento estabelecido com essa mudança de

paradigma do modelo de intervenção estatal dos anos que se constitui no país das

tendências do Estado protetor, corporativista e tecnocrático até então experimentado

no país desde a presidência de Getúlio Vargas.

Draibe (1993) defende que esteve em constituição no Brasil no intervalo dos

anos de 1930 a 1970 aspectos claros definidores de um Estado de Bem-Estar Social

com as especificidades brasileiras. A autora observa uma tendência no final dos

anos 1970 de um esgotamento e crise no que ela chama de núcleo duro da

intervenção social do Estado brasileiro. Esse esgotamento estaria localizado: 1. no

aparelho centralizado que suporta intervenção social; 2. na identificação dos fundos

públicos e recursos que apoiam, financeiramente, os esquemas de políticas sociais;

e, 3. nas regras de inclusão-exclusão social que marcam o sistema. Assim, em

relação à classificação de Sônia Draibe para o que ela denomina de Estado de Bem-

Estar Brasileiro, o período que inclui 1964 a 1985 corresponde a uma consolidação

institucional e reestruturação conservadora, que é subdividida em:

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1964-1977 consolidação institucional: faz referência ao quadro geral da

ação social do Estado, como educação, saúde, habitação (DRAIBE, 1993, p. 21);

1977-1981 expansão massiva (associação para denominar o modo de

crescimento econômico e a cobertura da proteção social, como também

características de políticas de massas (Ibidem); e

1981-1985 reestruturação conservadora: referência à reestruturação a

partir de Regime Militar e da Nova República (Ibidem).

De maneira geral, a autora acredita que, desde os fins dos anos 1970, o

crescimento do espaço assistencial de políticas sociais significou o caráter de

reforço da dimensão clientelista, mesmo com a abertura política pós-1985. Seria um

período que ela ratifica na classificação acima como reestruturação conservadora.

Enfim, retomando o fio condutor da análise histórica da formação política do

Estado brasileiro, todo o processo vivenciado com a “década perdida” consolidou

uma deslegitimação dos governos militares e abriu espaço para uma transição

democrática. Por meio do movimento de trabalhadores e dos movimentos sociais, foi

estabelecido um congresso constituinte, em clima de tensões envolvendo interesses

políticos diversos. Ao mesmo tempo, o texto constituinte de 1985 representou

avanços na área de direitos sociais, seguridade social, direitos humanos e políticos e

manteve traços conservadores (BOSCHETTI et al., 2011; DRAIBE, 1993).

A “década perdida” finaliza esse período deixando herança de elementos

fundantes na intervenção junto aos pobres para os anos 1990. Em primeiro lugar,

pela crise da década ter fomentado mobilizações massivas de trabalhadores e

movimentos sociais nas ruas requerendo o olhar da pobreza como direito e não mais

como assistencialismo e/ou clientelismo, o que desencadeará a assistência social,

sendo reconhecida como direito constitucional e, em segundo, porque foram

iniciados os primeiros passos para inserção definitiva do Estado brasileiro no modelo

neoliberal de intervenção, o que irá pautar todo o aparato de políticas e programas

de combate à pobreza dos governos brasileiros posteriores a 1988, fato que será

analisado no capítulo seguinte.

Objetivou-se com esse capítulo realizar um levantamento dos marcos

históricos considerados relevantes para compreender o processo de configuração da

institucionalização da pobreza pelo Estado brasileiro.

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Com isso, destacamos como conclusão deste capítulo a confirmação da

presença sempre reguladora do Estado em relação à pobreza, mesmo quando ele

esteve ausente tratando-a como caso de polícia, de controle da ordem social. Outro

dado é observar que os processos de institucionalização por via burocrática ocorrem

tardiamente no Brasil, com o atendimento às classes mais pobres mediado pelas

conquistas de direitos trabalhistas. A partir de então os processos foram sendo

aprimorados às exigências decorrentes dos fatores socioeconômicos

transformadores da sociedade brasileira.

Importante destacar ainda que, paralelamente ao processo de racionalização

burocrática ocorrido durante esse período, para a pobreza e para o pobre ainda foi

se mantendo o espaço do “pedinte” e da “esmola”. Por conseguinte, mesmo

chegando a década de 1988 (CF/1988) com a proposta normativa da transição da

“caridade” para o “direito”, precisa ser problematizado se a institucionalização do

combate à pobreza tem conseguido superar esse processo desqualificado das

ações voltadas aos pobres. Esses serão os próximos passos dessa pesquisa.

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Capítulo II Constituição de 1988: a transição democrática e políticas sociais

No ano de 1986, o Brasil dá início a mais um processo de transição política no

país. Nesse ano, foi realizada mais uma eleição da Assembleia Nacional

Constituinte na história brasileira, a quarta da República (CARVALHO, 2012) que

teve como objetivo a constituição de minucioso documento, que, mais tarde, após

trabalho de mais de um ano, daria corpo ao texto que, no ano de 1988, promulgaria

a nova Constituição Brasileira. A nova Constituição passou para a história como: a

Constituição Cidadã, em virtude de ter, na sua estrutura, a tentativa de centralidade

na segurança da garantia de direitos a todo cidadão brasileiro. O referido texto

constitucional finalizou um período de ditadura militar no Brasil e iniciou o processo

de redemocratização que refletiu discussões e tendências que giravam em torno do

debate da cidadania e dos direitos universalizados a ser institucionalizados pelo

Estado brasileiro.

Nesse sentido, uma das principais garantias de direitos adquiridos está no

Artigo 194 sobre a Seguridade Social Brasileira. A Seguridade Social “compreende

um conjunto integrado de ações de iniciativas dos poderes públicos e da sociedade,

destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência

social” (CFB, Art.194, Cap. II, 2010). Assim se formam os três pilares da seguridade

social no Brasil, que têm como ponto principal a transferência normativa para o

Estado da responsabilidade de implementação de direitos universais. O acesso aos

direitos, porém, se divide em duas prerrogativas: os direitos contributivos e não

contributivos. Do tripé da seguridade, a previdência social mantém o caráter

contributivo e de filiação obrigatória, enquanto a saúde e a assistência assumem o

caráter universal e devem ser asseguradas pelo Estado de forma gratuita sem

obrigatoriedade de contribuição.

Diante dessas aquisições, a promulgação da Constituição Federal de 1988

representou um marco de ruptura no cenário até então instituído das políticas

públicas no diz respeito à intervenção estatal no combate à pobreza no Brasil. É a

partir do marco da constituição cidadã que se legitimará um conjunto de ações

estatais voltadas ao combate à pobreza no Brasil. Nesses termos, duas

demarcações analíticas se fazem importantes. A primeira refere-se ao processo de

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institucionalização da pobreza pelo Estado que passa a ser de maneira definitiva

uma marca da intervenção no combate à pobreza nos anos seguintes, tendo como

características fortes a tendência ao fortalecimento de políticas focalizadas,

descentralizadas em que o monitoramento e o controle das ações se configuram na

esfera federal, estadual e municipal.

Dos três entes, a esfera federal assume o papel centralizador das diretrizes

dadas aos demais entes federativos. Por outro lado, a relação entre as instituições

da sociedade civil que trabalham no atendimento aos pobres e o Estado adquire o

formato de parceria, o que significa ir além da execução dos diversos serviços e

programas. Em outras palavras, trata-se de uma parceria presente em todo o trajeto

da concepção da política pública, seja no papel de monitoramento conjunto das

ações pelo Estado e/ou pela sociedade, seja na constituição de conselhos e comitês

deliberativos. É nesse momento que surge fortemente conceitos de participação e

controle social por meio da constituição dos Conselhos Representativos.

Para Jaccoud (2010), a descentralização e a participação popular foram as

duas ideias maiores que atuaram na reorganização da forma de gestão das políticas

sociais a partir de 1988. Nesse sentido, a Constituição facilitou um redesenho do

sistema federal reconhecendo o papel de estados e municípios, esses últimos sendo

considerados autônomos com o mesmo status legal dos outros dois níveis de

governo. A pesquisadora analisa ainda que a descentralização está associada às

políticas sociais por meio do denominado federalismo cooperativo, caracterizado

pelas funções compartilhadas entre as três esferas de governo. Nesse novo formato,

os estados e municípios assumem funções de gestão de políticas públicas, tanto por

iniciativa própria, como por adesão à proposta apresentada pelos outros níveis de

governo (JACCOUD, 2010, p. 76).

Outro fator importante que marca esse período é o lugar assumido pela igreja

diante do novo cenário político de intervenção junto à pobreza. O processo histórico

de institucionalização da pobreza pelo Estado, iniciado a partir dos anos 30 do

século XIX, aos poucos foi distanciando a igreja do papel de mediadora e

interventora junto aos pobres, e, assim, a perspectiva da caridade foi substituída

pela perspectiva do direito e da cidadania. Essa transição retrata bem a

característica de uma segunda ruptura no tratamento da pobreza no Brasil, pela

regulamentação dos direitos trazidos pela Constituição. Analiticamente, observa-se

com o período constitucional de 1988 a continuidade e fortalecimento da assistência

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social como método de intervenção estatal, porém com marcante diferença, que é a

universalização da Assistência Social. A Constituição prevê que a “Assistência

Social será prestada a quem dela necessitar” (CFB, Art. 203, Cap. II, 2010), e não

apenas aos considerados pobres.

Assim, ultrapassa-se, em termos normativos, o reconhecimento histórico que

delimitava as ações da assistência social às pessoas rotuladas como “pobres” e ou

um direito para aqueles que estivessem inseridos em direitos da assistência social

vinculados ao trabalho formal. Dessa forma, a assistência social como instrumento

de intervenção estatal passa a ser operacionalizada pela universalização em que

todos podem ter acesso.

A Constituição Federal de 1988 além das mudanças significativas no papel do

Estado no campo social, tendo destaque a seguridade social, trouxe a

incrementação do Sistema de Proteção Social. Alargaram-se os direitos sociais e a

esfera da proteção social sob responsabilidade do Estado, com impactos relevantes

no que diz respeito ao desenho políticas públicas e a identificação de beneficiários e

benefícios. (JACCOUD, 2010). Tanto os aspectos relacionados à descentralização

por meio do modelo federativo cooperativo, como a institucionalização dos direitos

sociais pelo Estado trazido pela Constituição Federal serão os norteadores do

tratamento dado à temática da pobreza pelo Estado brasileiro.

Na perspectiva de Telles (2001), o texto constitucional de 1988 acenou com a

promessa de colocar o enfrentamento da pobreza no centro mesmo das políticas

governamentais e de retirar, portanto, os programas sociais de uma espécie de

limbo em que foram, desde sempre, confinados fora do debate público e da

deliberação política, aquém da representação política e dos procedimentos

legislativos já que se encontravam submersos a uma obscura trama construída

pelas organizações caritativas e filantrópicas.

2.1 Anos 90: o desafio da estabilidade econômica e a focalização das políticas de combate à pobreza

Os anos 90 marcam o Estado brasileiro por significativas iniciativas na gestão

e no debate do combate à pobreza. Adentrando no debate das transformações

ocorridas na década de 1990, Draibe (1993) classifica o Estado brasileiro da década

que antecede esse período como um Estado de Bem-estar de Reestruturação

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Conservadora e Reestrutura Progressiva. Isso porque, para a autora, desde o final

dos anos 1970, o crescimento do espaço assistencial de políticas sociais veio somar

e reforçar a dimensão clientelista, fato que se deixou transparecer com a abertura do

sistema político pós-85, em que se teve oportunidade de ver com maior nitidez essa

característica.

A autora situa que o processo de reestruturação ocorrida no Brasil com a

abertura pós-85, considerando o período constitucional esteve contextualizada por

uma crise econômica acentuada, em que as opções de concepções e

encaminhamentos de reestruturação estiveram entre os regimes militares e o

governo civil da Nova República (pós-constituição de 1988).

Para refletir a demarcação de Draibe, serão apontadas no tópico 2.2 as

características edificadas no Estado a partir dos anos 1990, por meio das marcas de

gestão de cada governo na intervenção das políticas socais e combate à pobreza,

Será apresentado o percurso dos anos de 1993 a 2003, período que antecede o

locus que situa o objeto de análise deste trabalho, ou seja, os processos de

institucionalização da pobreza pelo Estado brasileiro a partir do Governo Lula (2003-

2010) com o Programa Bolsa Família até a implantação do Plano Brasil Sem Miséria

pelo Governo Dilma (2011-2014).

2.2 As intervenções do Estado Democrático pós-ditadura: da eleição de Fernando Collor a Itamar Franco (1993-1994), a reestruturação do Estado a partir da agenda neoliberal e ajustes estruturais

Em 1989, a gestão do Estado brasileiro passa para o primeiro presidente da

República eleito pelo voto direto pós-constituinte de 1985, Fernando Collor de Melo.

Caracterizado como representante de elites tradicionais, Fernando Collor buscou a

imagem de um Estado de caça à corrupção, de moralidade e de renovação da

política nacional (CARVALHO, 2012). Paradoxalmente, denúncias de esquema de

corrupção em seu governo e a mobilização de milhares de brasileiros nas ruas do

país levaram a seu impedimento (impeachment) no ano de 1992, ocasião em que

subiu à Presidência o seu vice, Itamar Franco.

A gestão do Estado no governo de Fernando Collor foi caracterizada pela

implementação de políticas públicas que geraram processos de desorganização

financeira ao país e uma ampla abertura da economia nacional à economia

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internacional (CASTRO, 2009). Essa opção teve como consequência a execução de

uma estratégia voltada à realização de um ajuste fiscal com objetivo de estabilização

da economia, de maneira rápida, sem que fosse considerado nesse processo o

contexto das novas demandas que despertavam das políticas sociais. Nesse

sentindo, ainda segundo Castro, a “Era Collor” deixa como herança a redução de

recursos para a área social, que ficou num patamar inferior ao que era executado

pelo Estado antes da aprovação da Constituição de 1988, “gastos que atingiam

cerca de US$ 50,0 bilhões caem para apenas US$ 43,0 bilhões em 1992” (CASTRO,

2009, p. 97). Outra herança da Era Collor foi a caracterização do conjunto de

programas e políticas implementadas pelo Estado sob o traço de fragmentação,

clientelismo, centralização dos recursos em nível federal, com baixo poder de

combate à pobreza e à desigualdade.

Porém, as características elencadas pelo autor supracitado não se

encontravam em cenário isolado ao restante do mundo. As ações de Estado, no

âmbito das políticas públicas que se efetivaram no governo de Collor de Melo,

estavam ligadas a um contexto maior implantado em países da América Latina no

início dos anos 1980, que ficou conhecido como projeto neoliberal de ajustes ou

programa de ajuste estrutural (CHOSSUDOVSKY, 1999) que teve na figura do

Fundo Monetário Internacional (FMI) e no Banco Mundial (BIRD) seus principais

agentes. Tratava-se de um conjunto de reformas macroeconômicas que visavam

regular o processo de acumulação capitalista do mundo novo diante da crise dos

anos 1980, desencadeada pelo mercado de dívidas públicas do sistema financeiro

global. Nesse sentido, foi estabelecido um pacote de medidas que deveriam ser

aderidas pelos países endividados para que assim houvesse um processo de

conversão da dívida24.

Sob a égide dos governos nacionais, as medidas de ajuste foram sendo

implementadas em troca da renegociação da dívida externa. São características

presentes em tais medidas: a busca de estabilidade financeira em detrimento de

privatizações de empresas estatais; a privatização parcial de serviços sociais

essenciais ao governo (o que excluiu parte considerável da população que não

podia pagar pelo aceso aos serviços como educação, saúde etc.) e o corte dos

gastos com a área social e de benefícios na área do bem estar social. Assim, o

24

Id. 1999.

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impacto do ajuste estrutural teve reflexo direto nos direitos sociais, o que culminou

em aumento considerável no número de milhares de pobres em esfera global.

Nesse sentido, estabelece-se uma espécie de nova forma intervencionista

entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento (CHOSSUDOVSKY,

1999). No âmbito social, a estratégia desse projeto tem alguns eixos de intervenção:

focalização, privatização e descentralização nas políticas sociais. Incluem-se a

esses eixos as estratégias de intervenções do Estado focalizadas no alcance dos

considerados pobres, ou nas ações de combate à pobreza. Pode-se considerar que

nesse período houve uma espécie de reorientação do gasto social voltado a

responder a distorções de sua alocação (DRAIBE, 1990).

Na análise de Yazbek (2012), uma das características que se encontra no

início do processo de construção da Seguridade Social Brasileira, no período pós

1988, foi o tensionamento gerado pela consolidação do modelo neoliberal adotado

pelo Brasil por meio das estratégias de mundialização e financeirização do capital,

com sua direção privatizadora e focalizadora das políticas sociais, que enfrentou

uma rearticulação de um bloco considerado pela autora de conservador que veio

com a eleição de Fernando Collor de Mello. Para a autora, a gestão do Estado por

Fernando Collor buscou diversas formas de obstruir a realização dos novos direitos

Constitucionais de 1988. Por isso, naquele momento a emergente proposta da

seguridade social mostrou-se incapaz de se consolidar.

Com o impeachment de Fernando Collor, sobe ao poder o seu vice, Itamar

Franco. No âmbito econômico, o aparelho do Estado deu continuidade à abertura

internacional e ao financiamento externo na busca da redução da inflação cumprindo

as exigências do FMI e do BIRD no pacote neoliberal de reestruturação nacional.

Em termos gerais, o governo de Itamar seguiu a tendência política das reformas

macroeconômicas já apontadas, tendo destaque para a figura de Fernando Henrique

Cardoso (FHC) que ocupou o posto de ministro da Fazenda e, logo após, lançou-se

candidato à Presidência da República governando o Brasil por dois mandatos

consecutivos.

Quanto à seguridade social, vale ressaltar que, nesse período,

especificamente no ano de 1993, uma crise no financiamento da saúde,

desencadeada por restrições fiscais e aumento das despesas da previdência social,

fez com que os recursos originários antes utilizados no financiamento da saúde

deixasse de ser repassado ao Ministério da Saúde. A saída para esse problema

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adotado pelo governo foi criar uma espécie de Fundo de Contribuição Provisória

sobre Movimentação Bancária (CPMF), em 1996, em que os recursos arrecadados

se destinassem aos gastos com a saúde.

Já na área social, o Estado enfrentava grande desafio diante o crescimento

da desigualdade social. Avaliava-se que as vinculações de recurso à área social

eram obstáculos à busca de equilíbrio orçamentário e a estratégia encontrada foi a

flexibilização da alocação de receitas públicas. Dessa forma, no ano de 1994, sob a

liderança de FHC na coordenação econômica, é adotado o Plano Real e a

Instituição de um fundo, o Fundo Social de Emergência (FSE).

Na percepção de Castro (2009), a constituição do FSE não obteve resultado

satisfatório para a política social, pois algumas áreas como a educação e o apoio ao

trabalhador perderam recursos. Como também, na avaliação do autor, os estados e

os municípios passaram a ficar mais dependentes do governo federal via repasse de

recursos. Além do mais, para Castro, o referido Fundo não cumpriu com objetivo de

resolver o problema do déficit público que havia justificado a sua criação.

Durante a gestão do governo Itamar Franco, houve grande mobilização

popular que trouxe ao espaço público algumas pautas como a fome e a miséria. A

reivindicação era de que o tratamento dessas temáticas fosse inserido no debate da

agenda social como responsabilidade e dever do Estado. Ainda no ano de 1992,

teve início a Campanha Nacional da Ação da Cidadania Contra a Fome e a Miséria e

pela Vida, ficando conhecida como a Campanha da Fome ou Campanha do Betinho,

liderada pelo sociólogo Herbert José de Sousa, conhecido por Betinho. Em função

da Campanha, foi criado em abril de 1993 o Conselho de Segurança Alimentar

(Consea), com representações do Estado e da Sociedade Civil, com objetivo de

elaborar uma proposta de combate à fome (SPRANDEL, 2004). Mais tarde, a

Campanha da Fome foi incorporada no Governo Itamar Franco, inserida no Plano de

Combate à Fome e à Miséria (SILVA; YAZBEK, GIOVANNI, 2012).

Para Telles (2001), a Campanha da Fome não se tratou de um acontecimento

menor. A autora aponta que, durante os anos de 1993 e 1994, os comitês da

campanha se multiplicaram por todo o território nacional, organizando em torno de

três milhões de pessoas. Além disso, mobilizou cerca de trinta milhões de brasileiros

em alguma forma de apoio e contribuição. Os diversos comitês da ação da cidadania

constituídos nos estados e municípios brasileiros se reuniam para discutir não

apenas a alimentação como bem público e universal, mas também as formas

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estruturais de superação dessa e de outras situações que ratificavam a pobreza na

perspectiva de intervenção estatal e pregava a implementação de acesso a direitos

tal como preconizava o texto constitucional de 1988 (TELLES, 2001). Assim, a

importância da Campanha do Betinho foi além do cunho solidário e trouxe à tona a

reivindicação da sociedade civil ao Estado sobre a necessidade de superar

alternativas emergenciais até então tomadas para o tratamento da pobreza.

Como visto, pode-se considerar como um dos feitos importantes da

Campanha a projeção da pobreza no centro do debate político da época. Diversos

atores sociais, diversos fóruns constituídos por universidades, ONGs, empresários,

técnicos, funcionários públicos e profissionais liberais se mobilizaram em torno das

pautas centrais do movimento. O debate colocava em pauta a dimensão ética

envolvida no problema da miséria, interpelando a opinião pública no seu senso de

responsabilidade pública e obrigação social.

No mesmo ano, em 1993, outro fato importante se consolidou para a

intervenção estatal junto à pobreza, a sanção da Lei Orgânica de Assistência Social

(LOAS) que regulamentou a Assistência Social como direito e obrigação do Estado

tal como previa o texto constitucional. Foi no governo de Itamar Franco que Castro

(2009) avalia ter início a montagem de legislação social do conjunto de Leis

Orgânicas, além da LOAS, a Previdência Social, como também foram assumidos

alguns compromisso em torno da educação básica.

Todos esses processos abrem espaço para que a gestão seguinte, tida como

continuidade da proposta de intervenção estatal iniciada durante o governo de

Itamar seja consolidado.

2.3 A gestão da pobreza e intervenção estatal na gestão de FHC (1995 – 2002)

As diretrizes estruturais das intervenções do Estado brasileiro no período

Fernando Henrique Cardoso (FHC) não se deram diferenciadas das iniciadas no

governo anterior, ou seja, evidencia-se uma agenda de continuidade da agenda

neoliberal e uma adequação das políticas sociais, incluindo, assim, as políticas de

combate à pobreza aos ajustes. O Estado brasileiro ficou durante o período de dois

mandatos consecutivos (1995-2002) sob a gestão do sociólogo Fernando Henrique

Cardoso. Ex-ministro do presidente Itamar Franco, FHC foi o responsável por

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conduzir a implantação do plano de estabilização monetária conhecido como Plano

Real, conseguindo uma diminuição do processo inflacionário que, à época,

alcançava alarmantes índices, fato que o legitimou FHC significativamente na

ascensão à Presidência da República.

Num texto que tem como objetivo analisar as inovações e reformas ocorridas

nos dois mandatos presidenciais de FHC na constituição das políticas sociais,

Draibe (2003) associa o processo de mudança ocorrido durante esse período à

reforma ocorrida no modelo de Estado de Bem-Estar Brasileiro, a autora caracteriza

o tipo de Estado de Bem-Estar construído no Brasil como o modelo conservador

pautado na distribuição primária da renda e da riqueza. Para Draibe (2003), o

processo motivador dessas reformas são as transformações ocorridas no sistema

capitalista que incidiram nos sistemas de proteção social contextualizadas

mundialmente, tal como: a insurgência forte do desemprego estrutural, a piora na

distribuição de renda, o aumento e a diversificação da pobreza e a redução dos

recursos fiscais.

Analiticamente, a autora apresenta três linhas de abordagem pelas quais se

podem compreender as mudanças ocorridas no Estado de Bem-Estar Brasileiro

nesse período. A primeira abordagem, uma geração de estudos que examinou as

mudanças pelo viés das relações com os fenômenos da globalização e da

hegemonia do neoliberalismo, declarando-as destrutivas ao Estado de Bem-Estar

Social. A segunda abordagem seria uma geração de estudos que desloca o foco da

discussão anterior, tendo como diretriz a seguinte indagação: em que medida as

alterações ocorridas mantiveram algum padrão e como se comportam os padrões

reformistas ao regime dos tipos de Estado de Bem-Estar até então constituídos, o

modelo liberal, o modelo conservador ou o modelo social democrata.

A autora analisa que as reformas estudadas na segunda linha analítica

atestam que, mesmo diante aos processos de reformas, permanecem as mesmas

instituições da proteção social, sendo escasso o caso em que se efetiva mudança

significativa. Dessa forma, o modelo de Estado de Bem-Estar adotado no Brasil

sofreu poucas interferências diante essas reformas. Com isso, as mudanças

ocorridas nesse período tiveram cunho desenvolvimentista, apoiadas pelos fundos

sociais, pouco inclusivos na perspectiva da autora e não seletivo, ou seja, mal

focalizado nas camadas mais necessitadas.

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A terceira abordagem seria a vertente que apontou para a compreensão da

relação entre as reformas dos sistemas de proteção social e a política econômica e

política social. O entendimento buscado por esse viés é o lugar e papel reservado às

políticas sociais no modelo de desenvolvimento econômico, ou seja, quais “as

potencialidades e as capacidades da política social em promover e facilitar o

crescimento econômico” (DRAIBE, 2003, p. 65).

Retomando a análise da gestão governamental nesse período, para Castro

(2009), o principal desafio de FHC ficou localizado em seu primeiro mandato (1995-

1998) com a tensa conciliação dos objetivos macroeconômicos da estabilização e as

metas de reformas sociais voltadas à melhoria da eficiência das políticas públicas.

Nesse contexto, a intervenção estatal junto à pobreza no governo FHC se deu no

limite das metas de reformas sociais previstas pelo ajuste estrutural. O autor analisa

que se agravava a crise fiscal do Estado com o entendimento de que, dentre as

causas, estariam os altos gastos públicos sociais “excessivos” causando desperdício

de recursos.

Partindo dessa perspectiva, Castro elenca como problemáticas das políticas

sociais à época: a falta de planejamento e coordenação das ações, superposições

de competências entre os entes da Federação, indefinição de prioridades, pouca

capacidade redistributiva das políticas sociais e carência de critérios transparentes

para a alocação de recursos e de mecanismos de fiscalização e controle mais

modernos (CASTRO, 2009, p.100-101). Foi com base nos pontos identificados como

as problemáticas na política social que o governo de FHC deu curso da reforma na

área social, que teve como diretrizes três focos de intervenção estatal proposta aos

países que adotaram um modelo neoliberal: a descentralização, a focalização e a

parceria com o setor privado.

Draibe (2003) analisa, durante o período de 1985 a 2002, dois ciclos de

reformas das políticas que constituíram o Sistema de Proteção Social Brasileiro. O

primeiro de 1985 a 1988 e o segundo que vai de 1995 a 2002, período este

correspondente à gestão do Estado pelo governo de FHC. Para a autora, no

primeiro ciclo de reformas na proteção social brasileira (1985 a 1988), duas áreas

sofreram reformas significativas, a Saúde com o Sistema Único de Saúde (SUS) e a

Assistência Social com a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS).

Para avaliar as intervenções do Estado brasileiro nas políticas sociais durante

as duas gestões de Fernando Henrique Cardoso (FHC), Draibe analisou o

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documento de programa de governo do então presidente chamado “Uma estratégia

de Desenvolvimento Social”, publicado no ano de 1996. O documento apontava três

eixos de programas que seria o núcleo para a política social do Estado brasileiro

durante aquele período: 1 os serviços sociais básicos de vocação universal e de

responsabilidade pública; 2 os programas sociais básicos e 3 o programa de

enfrentamento da pobreza.

O primeiro eixo de programa tratava-se de políticas como: previdência social,

educação, saúde, habitação, saneamento básico e assistência social, em que sua

reestruturação é apontada no documento como eixo central e necessário à

estratégia global de mudanças. Elementos como universalização, eficácia e

qualidade, aumento do impacto redistributivo e diretrizes de descentralização faziam

parte da estratégia prevista para o papel do Estado em sua intervenção no âmbito

das políticas sociais.

O segundo eixo apontado pelo documento, denominado programas básicos,

traz quarenta e cinco programas considerados prioritários devido ao caráter

estratégico destes diante a pobreza e a desigualdade social e do novo padrão de

crescimento. Finalmente, o terceiro eixo se articula com o segundo eixo e foi

intitulado de programas de enfrentamento pobreza, no qual esteve estruturada a

liderança do Programa Comunidade Solidária. Os princípios da descentralização e

solidariedade se destacavam como as diretrizes do programa, sendo tidos como

uma articulação inovadora entre as coordenações das ações federais, estaduais,

municipais e sociedade em que se estabeleceu a parceria nas ações. Assim, foi

implementado o Conselho do Programa Comunidade Solidária que materializava o

espaço de diálogo e cooperação entre as três esferas governamentais, e tendo com

uma das finalidades ser o mecanismo da articulação proposta ente governo federal e

a sociedade civil de mobilização e implementação de experiências inovadoras.

Faziam parte das ações que integravam o eixo de enfrentamento da pobreza

como prioridades: redução da mortalidade infantil; desenvolvimento da educação

infantil e do ensino fundamental, geração de ocupação e renda; qualificação

profissional; melhoria das condições de alimentação dos escolares e das famílias

pobres e fortalecimento da agricultura familiar.

A seguir, temos um quadro resumo do projeto de estratégia de

desenvolvimento social descrito no texto de Draibe sobre política social e gestão do

Estado durante o período de FHC:

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Quadro 2: Governo FHC – Estratégia de Desenvolvimento Social

Objetivos Condições Necessárias Desafios

Garantia de direitos sociais Estabilidade

macroeconômica

Crescimento econômico

Igualdade de oportunidades

Reforma de Estado

Geração de emprego

Proteção aos grupos

vulneráveis

Retomada do crescimento

econômico

Reestruturação dos

programas sociais universais

Melhora da distribuição de

renda

Fonte: Draibe (2003)

Uma grande mudança ocorre no Estado brasileiro para Draibe (2003), durante

o período de 1999 a 2002, que apontará uma nova perspectiva e diretrizes na

execução de política social. A grande mudança ocorre no campo da política de

enfrentamento da pobreza e em relação à ênfase posta agora nos programas de

transferência de renda para famílias pobres (DRAIBE, 2003, p. 75). De maneira

geral, a autora avalia que não houve reformas radicais das políticas sociais nos dois

ciclos reformistas da história brasileira até o ano de 2003. Assim, no período de

FHC, as reformas foram parciais e, inicialmente, introduzidas em áreas como a

educação, inclusão produtiva e programas de combate à pobreza.

O controle das ações e programas voltados à pobreza até então, após

transitar por um processo e esforço de centralização pelas instituições estatais, sofre

um processo de descentralização que converge para um fundamento central da

concepção de política pública do Estado brasileiro nos anos 90, a participação social

que se configura por meio de ações como, a descentralização, a implementação de

práticas de avaliação das ações e democratização de informações (DRAIBE, 2003).

Além desses aspectos, houve um fortalecimento da participação social enquanto

controle por meio da formação e instrumentalização dos conselhos nacionais que

acompanhavam os diversos programas, constituídos com a parceria da sociedade

civil e do terceiro setor. Outros elementos, como o incentivo e a participação dos

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beneficiários dos programas e da comunidade, também passaram a compor o

controle social.

A sistemática de repasses aos entes federados na alocação de recurso do

Estado no período FHC também teve aspectos relevantes para a configuração de

uma visão tecnicista na intervenção do Estado junto à pobreza. A utilização do per

capita para o cálculo de valor de repasse aos entes federados, associado a margens

de valores que priorizavam, por exemplo, os índices de carência, efetiva uma

mudança que representou uma ruptura nos rumos do financiamento público de

projetos e políticas sociais. Tratado muitas vezes por um traço do mando clientelista

de relações políticas e de poder com a adoção dessas medidas, cada vez mais o

Estado se instrumentaliza rumo a uma intervenção tecnocrata na intervenção no

combate à pobreza, o que representa distanciamento significativo com as práticas

adotadas do início ao final da primeira metade do século XX.

Como forma de sistematizar quais foram os principais arranjos feitos no

Estado brasileiro durante esses anos, diante da nova proposta de intervenção

pública institucionalizada de combate à pobreza, elencaram-se, resumidamente,

quatro áreas das políticas públicas que concentraram a maioria das reformas e

redesenhos que tiveram implicações na maneira como o Estado iria tratar o tema da

pobreza e sua perspectiva de intervenção. São elas as mudanças ocorridas na

política de educação, de saúde e de assistência social.

2.3.1 Na Educação

Destaca-se a experiência do Fundo de Desenvolvimento do Ensino

Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), que representou a reforma no

financiamento e na sistemática de gastos do ensino fundamental. O Fundef trouxe

contribuições fundamentais na gestão das políticas públicas para o Estado. Nesse

sentido, podem-se apontar: o fortalecimento da ideia de garantia de recursos

mínimos para a ação desenvolvida, no caso, o ensino fundamental; a tentativa de

diminuição das disparidades de financiamento entre os estados e municípios rumo a

uma meta de equalização; e a transferência dos recursos diretamente para as

escolas. Foram marcas na experiência do Fundef: a descentralização, a

redistributividade e o repasse direto às instituições escolares, ocasionando um

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processo de autonomia desses atores na gestão local de seus recursos. Esse

formato foi relevante pelo fato de experimentar uma proposta de alterações na

partilha federativa de recursos, proporcionando uma proximidade maior da gestão

municipal e da responsabilização na gestão local das políticas25.

2.3.2 Na Saúde

Na área da saúde, a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) e o

direito universalizado ao acesso à saúde pelos mais pobres trouxe ao Estado a

criação de “capacidades administrativas gerenciais e de prestação de serviço de

saúde em todo o país, especialmente nas regiões mais pobres” (DRAIBE, 2003). As

características gerenciais no âmbito dessa intervenção se reproduzem:

descentralização, autonomia e redistribuição de recursos, considerando a carência

dos municípios atendidos; diversificação de fontes de financiamento (CPMF em

1996); introdução do per capita individual como um dos parâmetros para

transferência entre os entes federativos.

Nesse contexto, as políticas de combate à pobreza tiveram alguns

indicadores de gestão fortes. O primeiro, a funcionalidade de priorização de público

no atendimento e ações do SUS, tal como ao atendimento ao público infantil,

vislumbrando o combate à mortalidade infantil, como preconizavam as ações de

combate à pobreza previstas no Plano de governo do então presidente FHC, e,

também, a saúde da mulher, a focalização das ações básicas de saúde à população

considerada carente por meio da constituição do Programa Saúde da Família (PSF),

o qual teve grande aceitação, tendo destaque a figura dos Agentes Comunitários de

Saúde.

Nesse período também tiveram início as primeiras medidas relacionadas à

transferência de renda, associada a temáticas específicas, como podemos citar o

exemplo da transferência de renda feita direta às famílias consideradas em risco

25

A referência ao Fundef para o objetivo da presente tese é caracterizá-lo como um dos instrumentos de gestão, dentre outros, que iniciou um processo de descentralização de responsabilização no âmbito das políticas públicas entre os entes federados, com isso situando-o como um momento diferenciado na política pública brasileira. Para aprofundamento da discussão, sugerimos a leitura dos seguintes textos: DOURADO, Luiz Fernandes. Financiamento da educação básica. Campinas: Autores associados, 1999. MONLEVADE, João. O Fundef e seus pecados capitais. Ceilândia/DF: Ideia Editora, 1997. REZENDE, José Marcelino. Os recursos para a educação no Brasil no contexto das finanças públicas. Brasília: Editora Plano, 2000.

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nutricional, no ano de 2001, que recebeu o nome de Bolsa Alimentação. Vale

ressaltar, também, a título de informação, que, nessa ambiência de gestão, esteve

presente a constituição das Agências Nacionais Reguladoras, que incrementaram o

cenário de regulação e controle social e institucional do Estado.

2.3.3 Na Assistência Social

A intervenção do Estado na assistência social sofreu grandes mudanças com

a Constituição de 1988. No período entre os anos de 1993 e 2005, especificamente

em 1993, houve a implantação da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), que

materializou a assistência social como direito social e alcance universal para todos

os que necessitassem de atendimento, rompendo, assim, um ciclo histórico até

constituído de estigmas da assistência social como uma intervenção assistencialista

aos pobres. Outro marco importante nesse sentido foi a extinção da Legião da Boa

Vontade, a LBA. Como já apresentado no capítulo anterior, a LBA foi fundada no

ano de 1942, com objetivo inicial de prestar assistência às famílias dos pracinhas

que foram à guerra pelo Brasil, transformando-se, em seguida, numa instituição que

consolidou práticas e ações de institucionalização de atendimento aos considerados

carentes e pobres. A LBA representou por muito tempo e foi historicamente

identificada como espaço de prática do primeiro-damismo e do clientelismo que

mediava as suas ações.

No âmbito da intervenção estatal junto aos considerados pobres, a extinção

da LBA significou, assim, uma transição simbólica e institucional das práticas

assistencialistas e clientelistas a um reconhecimento do dever do Estado no

atendimento dos pobres na premissa do direito social e não mais na perspectiva das

esmolas e favores praticados do final do século XIX. Essa transição delimita a

constituição de um Estado que passa a ter uma perspectiva de intervenção junto à

pobreza de maneira tecnificada em busca de padrões de identificação e resultados

focados. Apesar de essa tendência ter sido iniciada no Brasil na gestão anterior a do

sociólogo Fernando Henrique Cardoso, é com FHC que ela começa a tomar forma.

Outro fator importante relativo à intervenção estatal via assistência social

nesse período foi o início de transferência de renda via benefício decorrente da

implantação da LOAS, por meio do Benefício de Prestação Continuada (BPC)

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destinado a idosos carente e pessoas com deficiência. Em 2002 o referido benefício

atendia a 1,5 milhão de pessoas (DRAIBE, 2003), chegando no ano de 2012 a 3,6

milhões, e no ano de 2015 a 4,2 milhões26. Assim, a assistência social passou a

consolidar instâncias enquanto política pública, e podem-se destacar o Conselho

Nacional de Assistência Social, o Fundo Nacional de Assistência Social e os

diversos conselhos nos municípios e estados.

Cabe destaque, ainda, ao Programa Comunidade Solidária como uma ação

relevante no combate à pobreza iniciado no primeiro período de FHC, criado no ano

de 1995. O Comunidade Solidária representou uma nova abordagem de uma

proposta de gerenciamento de ações públicas de forma integradora e

descentralizada, tendo a sociedade como parceira na busca de soluções mais

adequadas para a melhoria das condições de vida das populações mais pobres no

combate à fome. Com seu desenvolvimento, o Comunidade Solidária sofreu um

redirecionamento de eixo, transformando-se no Comunidade Ativa, criando

programas de desenvolvimento local em município carentes. Outra frente de

combate à pobreza foi liderada pelo Projeto Alvorada, um plano de apoio aos

estados de menor desenvolvimento humano, que focava no IDH dos municípios e

abrangia iniciativas nas áreas de saúde, educação e renda.

O Projeto Alvorada teve continuidade com reorientação para um novo

programa, já no final do mandato de FHC, o Programa Rede Social, anunciado na

proposta de reeleição de FHC, que agrupou os programas de transferência de renda

às famílias mais pobres. Segundo Draibe (2003), havia naquele momento um

contexto que fortaleceu a proposta e ação do Programa Rede Social. Um primeiro

elemento era a renegociação de empréstimo com o BID (Banco Interamericano) no

ano de 1999, em que o programa entrava como negociação, com a proposta de

focar num conjunto de 22 programas selecionados para intervenção no Brasil,

envolvendo o atendimento e a prestação de serviços básicos (educação, saúde,

previdência e trabalho) nas áreas habitadas por grupos de baixa renda. Além dos

serviços básicos, estava prevista a transferência de renda, que mais tarde iria se

configurar em ações como o Bolsa-Escola. Mantendo-se presente, ainda, neste

26

Os números e dados sobre o Benefício Prestação Continuada podem ser acessado em relatórios descritivos disponibilizados no endereço eletrônico do Ministério do Desenvolvimento Social: <http://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/RIv3/geral/relatorio.php#>.

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contexto, a tendência antes adotada pelo Estado da intervenção via programas

universais focalizados.

Outro elemento responsável por alavancar a ideia do Programa Rede Social

foi a aprovação do Fundo de Combate à Pobreza, no ano de 2000, por meio da

Emenda Parlamentar de iniciativa do senador do estado da Bahia Antônio Carlos

Magalhães, com o apoio do Partido dos Trabalhadores (DRAIBE, 2003). O Fundo de

Combate e Erradicação da Pobreza foi criado pela Emenda Constitucional 31, de

2000, com o objetivo de “viabilizar a todos os brasileiros acesso a níveis dignos de

subsistência”. Para isso, foram previstas ações suplementares de nutrição,

habitação, educação, saúde, reforço de renda familiar e outras27. O Fundo de

Combate à Pobreza teve papel fundamental para garantir a consolidação das

primeiras experiências brasileiras de programas de transferência de renda, como

também para garantir a continuidade desse modelo de intervenção do Estado junto

aos considerados pobres, como veremos no tópico a seguir.

Esse é o contexto em que tem início a consolidação do país rumo a um

modelo de focalização e descentralização das políticas de combate à pobreza.

Nesse trajeto está a consolidação, a partir do ano de 2003, do modelo de

transferência de renda condicionada, Bolsa Família, e sua proposta de

institucionalização da pobreza como ação central de intervenção junto aos pobres.

Antes de tratar dessa temática específica, é importante destacar pontos sobre o

papel do Fundo de Combate à Pobreza.

27

Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/ASSISTENCIA-SOCIAL/192054-CONGRESSO-PROMULGA-PRORROGACAO-DO-FUNDO-DE-COMBATE-A-POBREZA.html>. Acesso em: 9 set. 2013.

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2.4 O Fundo de Combate à Pobreza – Ano de 2000

O Fundo de Combate à Pobreza foi uma das principais ferramentas que

instrumentalizou o Estado na intervenção junto à pobreza, com base em sua

constituição em dezembro de 2000, período que correspondia à metade do segundo

mandato da gestão de FHC. Como mencionado antes, a proposta de constituição do

Fundo foi apresentada por meio de emenda parlamentar de um senador do estado

da Bahia, Antônio Carlos Magalhães. O documento preconizava o acesso à

população de baixa renda a subsistência mínima por meio de ações consideradas

suplementares, que reuniam habitação, nutrição educação, saúde, reforço de renda

familiar etc.

É oportuno salientar que a criação do Fundo responde ao cenário de inserção

do país numa agenda política mais ampla, que insere a relação e os compromissos

fiscais com países e fundos financiadores do deficits internos Brasileiros. O Fundo

teve papel essencial não apenas para manter o cofinanciamento e as dotações

orçamentárias das ações de intervenção à pobreza do Estado, como também para

que o pacto federativo pudesse ser implementado por meio das ações articuladas

entre a União, estados e municípios.

Com isso, o Fundo de Combate à Pobreza passa a ser incorporado

constitucionalmente no Título IX, que trata das Disposições Constitucionais Gerais,

especificamente no texto do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, art.

80.

Art. 81. É instituído Fundo constituído pelos recursos recebidos pela União em decorrência da desestatização de sociedades de economia mista ou empresas públicas por ela controladas, direta ou indiretamente, quando a operação envolver a alienação do respectivo controle acionário a pessoa ou entidade não integrante da Administração Pública, ou de participação societária remanescente após a alienação, cujos rendimentos, gerados a partir de 18 de junho de 2002, reverterão ao Fundo de Combate e Erradicação de Pobreza. § 1º Caso o montante anual previsto nos rendimentos transferidos ao Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, na forma deste artigo, não alcance o valor de quatro bilhões de reais, far-se-á complementação na forma do art. 80, inciso IV, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. § 2º Sem prejuízo do disposto no § 1º, o Poder Executivo poderá destinar ao Fundo a que se refere este artigo outras receitas decorrentes da alienação de bens da União. § 3º A constituição do Fundo a que se refere o caput, a transferência de recursos ao Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza e as demais disposições referentes ao § 1º deste artigo serão disciplinadas em lei, não se aplicando o disposto no art. 165, § 9º, inciso II, da Constituição.

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Num primeiro momento, as receitas do Fundo de Combate à Pobreza eram

provenientes do índice da Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras

(CPMF), equivalente a 0,02% no período de junho de 2000 a junho de 2002. Em

2003 e 2004, esse adicional subiu para 0,08%. Em 2007, com a extinção do CPMF,

o Fundo perdeu sua principal fonte de recursos. As outras receitas previstas para o

Fundo pela Constituição Federal são um adicional de 5% do imposto sobre produtos

industrializados (IPI) incidente sobre produtos supérfluos; toda a arrecadação do

imposto sobre grandes fortunas, quando for criado; e dotações orçamentárias.

Em outubro de 2010, foi promulgada uma nova Emenda Constitucional

67/2010, apresentada por Antônio Carlos Junior, neto do Antônio Carlos Magalhães,

senador do estado da Bahia, que prorrogou por tempo indeterminado o prazo de

vigência do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, que tinha prazo de

finalização para dezembro desse mesmo ano.

No ano seguinte à aprovação do Fundo, ano de 2000, o Programa Rede

Social foi ampliado ainda sob a liderança do Projeto Alvorada e foram criados os

seguintes programas que envolviam transferência de renda: Programa Bolsa-

Alimentação (área da saúde); Programa Agente Jovem (área assistência social);

Auxílio-Gás; Bolsa-Escola Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti).

Draibe (2003) atribui a criação desses diversos programas à origem da Rede

Social Brasileira de Proteção Social, concebida pela autora como um conjunto de

transferências montarias a pessoas ou famílias de mais baixa renda. A Rede

formada teve viés protetivo voltado às distintas circunstâncias de risco e

vulnerabilidade social. Um instrumento facilitador para o Estado na unificação e no

controle da intervenção junto aos pobres pensado nesse período foi a constituição

de um cadastro unificado, proporcionando um controle unificado diante da

diversidade de programas que iam surgindo. Assim, constituiu-se o Cadastro Único

(CadÚnico), que começou a ser implantado nesse período. Porém ele se consolidou

na gestão seguinte, sendo destacado como o Cadastramento Único para Programas

Sociais do Governo Federal, tema que será visto em capítulos posteriores. O

Cadastro Único teve o objetivo de ser um instrumento de unificação e identificação

de todos os beneficiários e para gestão de órgãos governamentais.

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Finalmente, foi no período FHC que ocorreu a aprovação da Emenda

Constitucional nº 29/2000,28 que estabeleceu patamares mínimos de utilização de

recursos financeiros dos estados, municípios e União na saúde. Esse fato se

destaca pela precedência na discussão para estabelecer patamares mínimos a

outras áreas, significando, assim, uma conquista que culminou na regularidade e na

garantia regulamentada da aplicação de recursos em áreas específicas e essenciais.

O fato assegurou a manutenção do orçamento estatal independentemente da crise

de contenção de despesas enfrentadas pelo Estado. É dessa maneira que a saúde e

a educação constituem-se garantidas, obrigatórias e minimamente orçada pelo

Estado.

2.5 A gestão da pobreza e intervenção estatal na gestão de Luis Inácio da Silva – Lula (2003 – 2010)

O Estado brasileiro, no período correspondente aos anos de 2003 a 2010,

pode ser caracterizado pela consolidação das ações na área social iniciadas nos

anos anteriores. Durante esse período, tem início o governo de Luis Inácio Lula da

Silva. Vindo de uma trajetória sindicalista como líder do Partido dos Trabalhadores

(PT) desde a década de 1980, vence sua primeira eleição para presidente no ano de

2002. A origem de Lula leva o país, num primeiro momento de sua gestão, a

experimentar o que o professor Wanderley (2008) chama de expectativas

dicotômicas, em que setores expressivos do país, como mídia, partidos de oposição

ansiavam mudanças estruturais no âmbito das políticas sociais, ao mesmo tempo

em que criou um temor sobre a emergência de fortes conflitos com as agências até

então parceiras das gestões anteriores como, Banco Mundial, OMC, BID e FMI. O

28 A Emenda Constitucional nº 29 é datada de 13 de setembro de 2000. Teve como objetivo alterar os arts. 34, 35, 156, 160, 167 e 198 da Constituição Federal e acrescentar mais um artigo ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. A EC nº 29, de 2000, estabelecia a participação mínima de cada ente federado no financiamento das ações e serviços públicos de saúde. A pretensão foi assegurar os recursos mínimos para o financiamento das ações e serviços públicos de saúde. O documento original pode ser consultado no site do Planalto, no endereço eletrônico <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc29.htm>. Pode ser consultada também a Nota Técnica elaborada por Núcleo de Saúde da Câmara dos Deputados Federais: [Câmara dos Deputados. Nota Técnica nº 014/2012: Regulamentação da Emenda Constitucional nº 29 de 2000 (piso constitucional de aplicação em saúde). Núcleo de Saúde da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados (CONOF/CD). Versão Preliminar – Brasília: 26 jun. 2012.].

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temor se justificava pelas divergências acaloradas e públicas com a gestão anterior,

do presidente Fernando Henrique Cardoso.

Por outro lado, havia a expectativa da sociedade civil representada

principalmente pelos movimentos sociais, terceiro setor, pastorais sociais e outros

que estavam convictos do processo de mudança que viriam pela gestão que a

eleição de um líder de esquerda traria ao Estado brasileiro. Diante desse cenário de

expectativas, os primeiros resultados foram pessimistas, pois não apontavam para

um novo rumo permeado de mudanças. Para Wanderley, o governo de Lula não

apenas manteve as medidas substantivas e a orientação central da gestão anterior,

como também trouxe novas medidas de sua sustentação e até de potencialização.

Castro (2009), avaliando a política social na gestão do governo Lula, aponta

que, desde o primeiro momento, houve um reconhecimento dos problemas sociais a

serem enfrentados. O destaque foi dado a alguns desafios: o combate à fome e à

miséria; o combate ao racismo e às desigualdades raciais; a preservação e o

aprofundamento dos avanços na área de saúde e de assistência social; o

crescimento da taxa de cobertura da previdência social; maior integração entre as

políticas de desenvolvimento e de mercado de trabalho; a implementação de uma

efetiva política de desenvolvimento urbano; e a contínua melhoria da qualidade do

ensino (p. 102).

Para enfrentar esses desafios, o governo Lula adotou uma série de medidas

político-administrativas que o autor agrupa da seguinte forma: 1 estruturação de

novas políticas ancoradas em novas instituições (política nacional de segurança

alimentar; política promoção e igualdade racial; política de igualdade de gênero etc.);

2 racionalização de recursos públicos por meio da unificação dos programas de

transferência de renda; 3 multiplicação de fóruns democráticos de deliberação

coletiva (convocações de conferências nacionais, como: cidades, segurança

alimentar), a criação do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, o Fórum

Nacional do Trabalho e os Fóruns Estaduais para debater o Plano Plurianual (PPA)

anos de 2004/2007 de governo; e 4 promoção de reformas estruturais, iniciada pela

previdenciária e tributária.

No campo das políticas sociais, a avaliação é a de que o governo esteve

tímido em razão das restrições orçamentárias devido à manutenção da estratégia de

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geração de superavit fiscal29. Nesse contexto, um dos pontos de maior tensão entre

Estado e sociedade civil se deu durante a reforma previdenciária e tributária prevista

e temida durante o governo de FHC, que se efetivou na gestão de Lula. No âmbito

das reformas tributárias, pode-se apontar como relevante, por suas possíveis

consequências nas políticas sociais, a proposta que previa a adoção de mecanismos

de redução da base de cálculo que incidiam as vinculações constitucionais para a

educação e a saúde adquiridas até então30.

Na análise de Carmelita Yazbek (2012), o enfrentamento da pobreza na

gestão de Lula teve nova abordagem, e aponta como referência desse fato o

Programa Fome Zero, lançado em 2003, com o Cartão-Alimentação. Anos depois, o

que marcaria o governo Lula no combate à pobreza seria lançado com a proposta de

unificação de quatro programas federais: Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Vale-

Gás e Cartão-Alimentação. É constituído, assim, o Programa Bolsa Família (PBF)

que tinha como objetivo: 1 combater a fome, a pobreza e as desigualdades por meio

de transferência de um benefício financeiro associado à garantia do acesso aos

direitos sociais básicos como: saúde, assistência social e segurança alimentar; e 2

promover a inclusão social, contribuindo para a emancipação das famílias

beneficiárias proporcionando meios para superação da situação de vulnerabilidade

vivenciada. Após unificar os programas de transferência de renda, a relação

intersetorial da ação junto ao usuário incorpora ideias de parceria, e são criados

critérios de condicionalidade de permanência no recebimento para o usuário. Nessa

esfera, entram como intersetorialidade a saúde (cartão de vacinação, pré-natal,

nutrizes) e a educação (frequência escolar)31.

O Programa Bolsa Família é o programa de maior visibilidade na esfera do

combate à pobreza do governo Lula, inclusive sofrendo severas críticas por alguns

setores da sociedade, de ser um programa eleitoreiro diante a legitimação em

massa dos usuários e famílias que recebem a transferência de renda. Apesar das

29

Ibid., p. 102. 30

A proposta fazia referência a patamares mínimos para gastos na saúde e na educação. Setores das áreas se mobilizaram e a proposta não foi aprovada, ficando a desvinculação de recursos apenas no âmbito Federal. 31

O tema sobre os programas de transferência de renda será detalhado e retomado a discussão no Capítulo IV.

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críticas, estudos de institutos de pesquisa no Brasil32 mostraram que a transferência

de renda realizada pelo programa foi responsável pela mobilidade de milhares de

famílias que saíram do corte da linha de pobreza, considerando o recorte por renda.

A ação proposta pelo programa será a diretriz na área social, apontada pela

sucessora de Lula, a presidenta Dilma Rousseff, que assume o mandato em 2011.

Podemos resumir que a gestão do governo Lula33 se caracterizou pela

habilidade política do governo em alcançar uma agenda de mediação de interesses.

De um lado, contemplando uma ala desejosa da continuidade do modelo econômico

anterior e, de outro, a focalização em ações que atendessem a área social. Dessa

forma a herança da gestão do combate à pobreza no governo Lula se destaca a

consolidação das iniciativas anteriores de programas de transferência de renda que

será a grande marca do seu governo.

De maneira geral, este capítulo esteve dedicado a levantar rupturas que em

nossa análise se destacaram na gestão e diretrizes voltadas às ações de combate à

pobreza nos governos brasileiros entre 1993 a 2003. Por meio da análise,

concluímos que a gestão da pobreza durante esse recorte temporal ocorreu

conforme critérios de institucionalização resultante de uma agenda internacional de

interesses econômicos. A experiência do combate à pobreza, a partir dos anos 1990

não apontou alternativa às exigências dos organismos internacionais (BIRD, FMI

etc.). Isso significa dizer que o combate à pobreza se institucionaliza com a

implantação das medidas previstas por esses órgãos.

Em termos analíticos, podemos afirmar que as ações desse período

sedimentaram o fortalecimento dos programas de transferência de renda como eixo

principal na diretriz da intervenção estatal para a pobreza no Brasil. Isso

representou, no aspecto técnico-burocrático, a tentativa do aparelhamento do

Estado para um modelo de institucionalização da pobreza priorizada na focalização

dos sujeitos classificados como os mais pobres e vulneráveis pelo critério de renda.

32 [IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Desigualdade de renda no Brasil: uma análise da queda recente. Brasília: Ipea, 2007. v. 1.]. A Nota Técnica divulgada em 2006 com o mesmo nome da publicação acima, Recente Queda da Desigualdade de Renda no Brasil, foi

disponibilizada em versão eletrônica em: <www.ipea.gov.br>. 33 Um balanço sobre as principais ações que direcionaram os anos dos mandatos de Luis Inácio Lula (2003-2010) e os anos iniciais do primeiro mandato da presidenta Dilma (2011-2014) pode ser pesquisado no livro destinado a esse objetivo: [FLACSO. 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma. São Paulo: Boitempo, 2013].

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79

Nesse arcabouço, desenvolveu-se um esforço de qualificar para a capacidade

técnica das equipes como forma de garantir o êxito na execução dos programas e

serviços implantados.

Em nossa opinião, o desafio do Estado esteve na organização estrutural

desse aparato diante da proposta qualificadora de uma proteção social aos pobres

sob o ponto de vista da oferta de direitos. Como descrito no texto do capítulo, muitas

iniciativas estiveram em curso, porém isso não significou uma mudança na

percepção ou nas práticas adotadas no atendimento ao pobre pelo Estado nos

equipamentos, como por parte das equipes técnicas, ou seja, os técnicos burocratas

de rua.

Resta problematizar, nas partes seguintes da pesquisa, a discussão sobre as

experiências propostas e implantadas decorrentes do recorte temporal apresentado.

Em que bases conceituais podemos analisar a prática do processo de atendimento

ao pobre no combate à pobreza institucionalizado. Enfim, discutir como se constrói a

percepção técnica do Estado no atendimento aos pobres que buscam os programas

e serviços implantados.

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Capítulo III – A condição social reconhecida de pobreza frente aos técnicos

burocratas de rua do Estado

3.1 Base teórica

Este capítulo é dedicado à apresentação da base teórica e reflexões que

embasaram o olhar sobre os elementos do combate à pobreza aqui estudados e a

pesquisa de campo. As reflexões foram organizadas a partir das inquietações do

que foi construído na preparação para a inserção na pesquisa, como também do

arcabouço de observações que vieram com o trabalho de campo.

O esforço empreendido será no sentido de dialogar com conceitos e

categorias considerados pela pesquisadora relevantes à compreensão da atuação

dos técnicos que atuam no atendimento aos “pobres” nos municípios brasileiros

visitados. Diante de uma bibliografia vasta sobre o tema pobreza de renda, mas

escassa sobre aspectos mais específicos, tal como os profissionais e técnicos que

operacionalizam o “combate à pobreza”, procurou-se trilhar um caminho teórico que

mediasse autores que, de alguma forma, discutem a temática com olhar relativo e

não absoluto.

O trabalho aborda a discussão sobre pobreza com base em perspectiva

multidimensional de fatores, considerando como resultado de uma construção e de

uma condição social inserida em determinados contextos histórico, econômico,

cultural e social.

Partindo dessa perspectiva, entende-se que a contribuição das ciências

sociais no campo de pesquisa voltado às políticas públicas (especificamente de

combate à pobreza) ocorre pelo distanciamento de um tratamento puramente

técnico e burocrático geralmente dado às políticas. Ao abranger os meandros das

relações entre os atores e as estruturas, o método das ciências sociais evidencia os

processos de conflito, de poder e construções simbólicas inerentes à dinâmica

interna e externa das políticas públicas, na maioria das vezes negligenciada em

trabalhos que privilegiam apenas uma abordagem de teor avaliativo.

Vislumbra-se que a política pública é consequência de inquietudes e questões

sociais na maioria das vezes complexas que, conforme faz referência Wanderley

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(apud BOGUS et al., 2008), são questões que adquirem um conteúdo de

multidimensionalidade das relações sociais no qual os sujeitos, individuais e

coletivos são determinados pelos processos e estruturas sociais, ao mesmo tempo

em que instituem processos e estruturas.

A interação existente entre os atores que compõem e executam as políticas

de combate à pobreza e os usuários é um fator relevante no que diz respeito à

construção do conceito de pobreza institucionalizado pelas estruturas sociais. Para

compreender os meandros dessa relação, compartilha-se, neste trabalho, das

contribuições de Giddens (2009) em sua teoria da estruturação social em relação ao

comportamento humano não pode ser compreendido como um resultado de forças

que os atores não controlam, mas se relacionar com a natureza da ação humana e

do self atuante no modo como a interação é conceituada na relação com as

instituições.

Para o autor, as propriedades estruturais dos sistemas sociais apenas

existem na medida em que formas de condutas sociais são reproduzidas através do

tempo e do espaço. Assim a estruturação de instituições é entendida em função de

como acontece de as atividades sociais se alongarem. Considerando esses

argumentos, Giddens define o conceito de estrutura como,

o conjunto de regras e recursos implicados, de modo recursivo, na reprodução social; as características institucionalizadas de sistemas sociais que têm propriedades estruturais no sentido de que as relações estão estabilizadas através do tempo e do espaço. (GIDDENS, 2009, p. XXXV).

Quando o autor se refere ao modo recursivo na reprodução social,

acreditamos ser necessário acrescentar a noção motivação da ação e interesse

como forma de impulso das relações institucionalizadas. Tomemos por exemplo a

forma que os atores sociais assumem o papel de agentes na instituição Estado e

como os atores e corpo técnico desse Estado assumem interna e exteriormente a

sua representação e reprodução.

Giddens, em sua teoria da estrutura social, reconhece o poder como conceito

básico das ciências sociais e sua motivação seria a disputa por subdividir recursos

para obtenção de controle. Porém, parece se deter mais no estudo da ação de uma

consciência prática e/ou reflexiva e suas consequências do que aprofundar o conflito

no ato da ação. Em nosso ponto de vista, a dimensão do conflito presente na

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interação dos atores sociais ou agentes humanos nos diversos campos é

fundamental.

Ainda segundo o autor, os seres humanos são agentes cognoscitivos, ou

seja, todos os atores sociais possuem considerável conhecimento das condições e

consequências do que fazem em suas vidas cotidianas. Assim como eles são

plenamente capazes de dizer, em termos discursivos, o que fazem e as razões por

que o fazem por meio de uma consciência reflexiva.

Se pensarmos a consciência reflexiva, considerando a atuação dos atores

sociais que integram o campo das políticas públicas, o conflito existente é inerente

às próprias regras com os quais os técnicos representantes do Estado exercem suas

atividades cotidianas. O discurso e as razões se apresentam, em geral, por meio de

um cunho ideológico e/ou simbólico, em detrimento da formalidade burocrática.

Muitos dos técnicos burocratas de rua discordam das regras de inserção dos pobres

nos programas de combate à pobreza, poucos têm uma avaliação positiva. São

pontos divergentes com base em mesmo ângulo que tencionam e constituem as

práticas de atendimento dos usuários da política.

Nesse caso a consciência reflexiva se estabelece não na regra estatal, mas

na subjetividade construída na visão particular de cada indivíduo sobre o objeto da

sua função pública, que exercem enquanto ente público. Arriscaria a dizer, pela

experiência de campo, que exercer uma função pública configura nesses atores um

ranço de autoridade sobre os sujeitos atendidos, ainda mais, se esses sujeitos são

de classe social inferior, como os considerados “pobres”.

Giddens trabalha com noção de pontos de transformação. Esses pontos

estariam presentes nas relações rotinizadas das práticas e, no modo como essas

práticas, que acabam sendo institucionalizadas, estabelecem conexão entre a

integração social e a integração do sistema. A pergunta norteadora do autor nesse

caso seria: até que ponto as práticas localizadas e estudadas numa determinada

gama de contextos convergem entre si de modo a ingressarem diretamente na

reprodução do sistema?

A pesquisa com os técnicos burocratas de rua do Estado mostra isso. Ela

demonstrou que a prática cotidiana mantém pontos de interação entre esses atores

é o instrumento significativo para a construção de parâmetros, consequentemente

também de reprodução da ideia sobre a pobreza e o pobre. Na maioria das vezes,

tal concepção pode ser instrumentalizada no sentido de ratificar preconceitos

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históricos. No caso dos considerados “pobres”, entendimentos como: “eles não

gostam de trabalhar”, “eles querem viver recendo dinheiro do Estado”.

Apesar de relevantes mudanças na instrumentalização das políticas

disponibilizadas pelo Estado no atendimento à condição de pobreza, o pobre

continua a ser visto a partir de olhares pejorativos. Evidencia-se um movimento de

intervenção de políticas de combate à pobreza se construindo, nos termos de

Ervining Goffman (1988), de forma estigmatizadora, de maneira que esse olhar pode

ser encontrado, inclusive, dentre o corpo técnico estatal. A experiência de campo

apontou a possibilidade de encontrar sujeitos com posturas técnicas que reforçam

práticas históricas que o Estado tenta evitar. O que significa um paradoxo para uma

intervenção com base em conquistas de direitos.

Quando Goffmann (1988) trabalha o conceito de estigma social, retrata o

poder que a sociedade, por meio da convivência social, tem de categorizar as

pessoas por meio de atributos. Nesse caso, atribui-se a determinado indivíduo uma

característica considerada como defeito, um descrédito, uma fraqueza, uma

desvantagem.

Nesse sentido, o que se observa, no caso do tratamento da pobreza, é que a

realidade não diverge do período das intervenções do Estado oligárquico quando os

pobres socialmente foram denominados de “vagabundos” e os responsáveis por

onerar de custos à nação. Eram os inúteis e imprestáveis. Esse entendimento

parece ser continuado pelo longo da história do atendimento aos pobres no Brasil.

A herança de uma reprodução depreciativa sobre o pobre e a condição social

de sua pobreza se encontra sem sutilezas arraigada no aparato estatal. Fato que

surpreende diante o projeto de cidadania sonhado para todos os cidadãos que

precisam em algum momento do atendimento de sistema de proteção social no país.

A reflexão levantada neste trabalho é que a visão dos técnicos representantes do

Estado em muitas experiências de combate à pobreza nos municípios brasileiros

compreende com bastante restrição os programas de transferência de renda e as

formas de assistência voltadas aos seus “pobres”, porém sendo uma crítica apenas

depreciativa dos sujeitos atendidos.

Castel (2008) denomina de discriminação negativa o cenário em que os

sujeitos, em determinado contexto social, são discriminados por alguma diferença

considerada “menor” em referência a outras. O autor cita como exemplo os sujeitos

moradores de periferia, diferenças étnicas, religiosas, dentre outros tipos de

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diferenciações. O autor também aponta a possibilidade de uma discriminação

positiva o seria a motivação oposta ao de discriminação negativa.

Paugam (2003), além de tratar sobre o conceito de desqualificação social que

ocorre com os pobres, defende que, para entender a relação entre os sujeitos

pobres e as instituições públicas que prestam assistência, deve-se partir da crítica a

determinadas escolas teóricas. Cita o autor a escola da cultura da pobreza e a da

abordagem estrutural. A primeira escola, por acreditar na existência de uma cultura

específica da pobreza, numa lógica própria de comportamento incorporado às

experiências vividas pelos pobres.

A segunda escola, de abordagem estrutural, tem tese contrária à cultura da

pobreza. Ela considera que os pobres mantêm a condição social não por uma

estratégia lógica do comportamento no meio social, mas por pressões externas que

fogem ao seu controle. Os comportamentos dos pobres seriam, assim,

consequências e não causas de um conjunto de estruturas e fatores externos

(organização econômica, social etc.).

Apesar de a grande parte dos estudos sobre pobreza se pautarem em uma

dessas duas teorias, ou seja, nos fatores internos (abordagem cultural) e externos

(abordagem estrutural), Paugam traz a crítica de que ambas constroem uma espécie

de “universo dos pobres” dissociado de uma relação com os demais segmentos da

sociedade. Para o autor, os pobres não podem ser vistos como um grupo

homogêneo no qual apresenta limites e fronteiras bem definidas.

O autor defende que o caminho teórico nesse caso consiste em analisar o

processo que conduz à designação e à rotulagem das populações desfavorecidas

em determinada sociedade e meio, explicitando e explicando quais os mecanismos

que participam da construção social da pobreza. Assim, fugimos da armadilha

teórica de “que apenas legitimam no plano intelectual as definições e as

interpretações do senso comum” (PAUGAM, 2003, p. 53).

Em nossa percepção, o arcabouço analítico de Paugam se destaca na

contribuição teórica no estudo das políticas de combate à pobreza por trazer

elementos que trabalham a relação entre os sujeitos e as instituições públicas de

atendimento ao público que necessita de assistência do Estado. Em termos teóricos,

pretende-se, neste trabalho, partilhar do entendimento de Paugam, por compreender

tal como o autor, sob o olhar da sociologia, que o importante não é a pobreza em si,

mas as formas institucionais que esse fenômeno assume em uma dada sociedade

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ou em determinado meio. Assim, as categorias analíticas resultam da interação

existente na relação instituída (em nosso caso específico, a relação entre técnicos

burocratas de rua do Estado e os pobres atendidos).

As referências de Paugam partem das contribuições de Simmel (1971) e R.

Ogien (1978), pois o autor acredita que ambos trabalham com uma categoria que

para ele marca a transição do status social de um sujeito pobre para um sujeito

reconhecido socialmente como pobre, que é a figura do assistido. Trata-se de

um status específico que a sociedade reconhece. Para os autores, é a partir do

momento em que o pobre passa a ser assistido ou ter direito a assistência do

Estado, que eles se tornam parte formalmente de um grupo caracterizado pela

pobreza.

A condição de ser um pobre assistido não significa dizer que esses pobres

estão unificados em um grupo homogêneo, como refuta Paugam, e sim retrata a

existência de uma atitude coletiva que a sociedade passa a ter em relação a eles. O

trabalho dos técnicos que desempenham funções de atendimento dos considerados

pobres é um desses instrumentos que forma um olhar institucional em relação aos

assistidos, ou seja, de reprodução de definições práticas e julgamentos sobre os

pobres que infere socialmente numa atitude coletiva em relação a esses sujeitos.

3.2 A construção social da categoria de pobreza com base na realidade

O processo de construção social na perspectiva da sociologia do

conhecimento tem no construtivismo social uma forma de refletir sobre a realidade

onde o foco é a vida cotidiana dos atores sociais. Por isso, o diálogo com essa

escola ocorre no sentido de compreender como a realidade social inserida na rotina

do trabalho dos técnicos burocratas de rua que executam os programas e serviços

aqui estudados influencia na construção, instrumentalização e percepção que estes

têm do pobre e da pobreza.

Na perspectiva de Collins (2009), a referida escola recebe críticas por ser

considerada uma abordagem altruísta em que as suas ideias apenas proporcionam

análise de espaços de conflito ou dominação, o que seria entendido por muitos

como um idealismo ingênuo. Contudo, a sociologia do conhecimento não trata

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somente da multiplicidade empírica do conhecimento nas sociedades humanas, mas

também dos processos pelos quais qualquer corpo de conhecimento chega a ser

socialmente estabelecido como realidade (BERGER; LUCKMANN, 2012).

Argumentam, ainda, os autores que é assim que “os homens da rua” habitam

um mundo real, embora este seja composto por diferenças e graus variáveis de

certeza. Esses homens estariam imersos em um mundo que possui tais ou quais

características.

Nesse intuito, o construtivismo social se afasta de uma perspectiva apenas

epistemológica da ciência da sociologia, para adentrar em uma perspectiva teórica

da sociológica com viés em que a disciplina empírica em seus problemas concretos

não está relacionada somente à pesquisa filosófica dos fundamentos da disciplina.

Em outras palavras, a linha da sociologia do conhecimento ocupa-se daquilo que é

considerado conhecimento na sociedade contraponto a necessidade de focalizar em

tendência mais objetiva.

O conhecimento humano, assim, é dado na sociedade como um a priori à

experiência individual, fornecendo a esta a sua ordem de significação. Essa ordem,

embora relativa a uma particular situação socio-histórica, aparece ao indivíduo como

o modo natural de conceber o mundo. Esse fato Scheler (apud BERGER e

LUCKMANN, 2012) chamou de relativa e natural concepção do mundo.

Acreditamos que uma perspectiva naturalista sobre o conhecimento dos

sujeitos que considera a supremacia das estruturas sociais sobrepondo o poder de

agência dos sujeitos engessa uma dinâmica social inerente ao próprio indivíduo.

Vislumbra-se, antes, um sujeito agente de suas ações que interage com as

estruturas ocasionando um movimento de mão dupla de construção e desconstrução

de conceitos. Sendo todo esse processo decorrente dos sentidos que ocorre ao

meio social sempre a produzir novos arranjos sociais e formas de existência que

direcionam as ações.

Tomemos como exemplo os sujeitos pesquisados que pensam e

operacionalizam o combate à pobreza no Brasil. A sua consciência reflexiva

(GIDDENS, 2009) faz com que eles saibam onde e com quem atuam e o que podem

alcançar ou não na interação.

O contraponto latente nesse caso entre o fundamento e a prática da ação é

que esta última discorda sobrepõe ou desafia a primeira. A maneira de ver o mundo,

as construções decorrentes dela fazem com que, em muitos momentos no

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desenvolvimento de suas atribuições, as normas de conduta e protocolos de

atendimentos sejam tensionados com a opinião pessoal de cada um deles.

Mais do que isso, a interação social mediada por todo o conhecimento

empírico da realidade se aproxima da representação existente em cada papel, de

um lado o técnico, do outro o pobre. Tal discussão assenta-se nas discussões de

Goffmann (1988) em relação aos sentidos dados na metáfora teatralizada na

construção social da realidade. Cada sujeito atua em seu papel em que o jogo é a

tentativa de convencer ou ser convencido dos interesses em questão. Para o autor,

na vida real, “o papel que um indivíduo desempenha é talhado de acordo com os

papéis pelos outros presentes e, ainda, esses outros também constituem...”

(GOFFMAN, 1985, p. 9).

O Estado espera que, para a atuação do papel de técnico burocrata de rua, o

entendimento desses profissionais seja instrumentalizado pelas orientações técnicas

produzidas nacionalmente pelo MDS, órgão gestor dos programas em que atuam.

Muitos dos técnicos acreditam e defendem que a pobreza é um problema

social e do Estado, que deve ser combatida com acesso a direitos, tais como a

transferência de renda, inserção em políticas sociais etc. Por outro lado, uma grande

maioria acredita que o Estado faz um papel paternalista ao produzir políticas

públicas que concedem “benefícios” em troca de nenhum trabalho produtivo. Essa é

uma visão comum, principalmente dentre a equipe técnica nos municípios que é a

responsável pela execução direta dos programas e serviços.

Há uma constante tensão para os sujeitos nesse processo entre defender o

que os cadernos e normativas orientam e a defesa do que o técnico pessoalmente

acredita. Esse fato acaba por influenciar no desenvolvimento das ações orientadas.

Como forma de amenizar os impactos gerados por essa realidade, há um

esforço do Ministério responsável pelas ações, no caso estudado neste trabalho, em

manter em seu planejamento anual encontros de qualificação dos técnicos que

atuam nas políticas. Os encontros são voltados à capacitação sobre as orientações

técnicas e manuais produzidos pelo Ministério. Na oportunidade, são formados

grupos de no máximo 30 a 40 técnicos, geralmente durante cinco dias, oito horas

diárias.

O objetivo durante as capacitações consiste em buscar o nivelamento no

entendimento dos técnicos sobre os objetivos e normas e, dessa forma, proporcionar

a qualificação na execução dos programas e serviços, no que diz respeito às

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orientações, ao tratamento dado ao usuário em todos os atendimentos realizados,

para, assim, evitar qualquer resquício de subjetividade e pessoalidade nos

procedimentos e, assim, habilitá-los plenamente na operacionalização dos

programas e serviços.

A recorrente utilização da experiência particular de cada um dos técnicos na

construção da maneira como compreende e determina a concepção de pobreza não

anula a realização dos procedimentos normatizados para o seu cotidiano. A rotina

de trabalho dos técnicos é direcionada pelas orientações técnicas publicadas e

disponibilizadas pelo governo federal.

Vale ressaltar que a condição de trabalho dos técnicos nos municípios

também tem influência para que eles possam ou não implantar as ações previstas

nas orientações. Dentre as condições mais incidentes estão: excesso de demanda

para o número de técnicos; a precariedade da instrumentalização dos equipamentos

(falta de computadores acesso à internet, impressora etc.); rede intersetorial não

suficiente para encaminhar casos mais graves etc.

O limiar entre a percepção pessoal dos técnicos e os procedimentos

normatizados também tem reflexos na forma que os casos são encaminhados.

Quando julgam uma situação prioritária de atendimento em que a instrumentalização

disponibilizada pelo Estado não supre o necessário para atendimento do sujeito.

Para esse tópico, o importante é concluir dois aspectos: que todos esses

processos preenchem o cotidiano desses profissionais construindo o que pensam

sobre a pobreza. A pobreza e a concepção do ser pobre nesse caso estão

intrinsecamente ligadas à condição social de ambos os atores: os pobres atendidos

e dos técnicos burocratas de rua que atendem.

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3.3 A Delimitação da “pobreza” e do “pobre”

Partindo das reflexões teóricas expostas até o momento, abordar-se-ão, na

análise desta pesquisa, a pobreza como uma condição social reconhecida e o

pobre como um conjunto de pessoas cujo status social é também definido por

instituições especializadas de ação social que assim as designam (PAUGAM, 2003,

p. 55).

Trata-se de um caminho coerente para conduzir a análise de forma a

observar o conceito de pobreza sob o olhar de quem o constrói socialmente, ou seja,

o olhar de atores e segmentos sociais estudados (técnicos da burocracia estatal nas

três esferas de governo) em relação ao pobre e a pobreza.

Com a responsabilização no processo de institucionalização das ações

voltadas aos pobres, o conceito de pobreza utilizado pelo Estado como porta de

entrada às políticas passa a ser aquele institucionalizado pela burocracia estatal.

Consequentemente, o sentido e a compreensão dados pelos técnicos burocratas do

Estado devem ter como parâmetro a aplicabilidade e a reprodução de tal conceito.

Esse fato demonstra que a relação de técnicos e pobres transfigura-se em campo

prático e cotidiano em que se edifica a constituição social do conceito de pobreza

conforme resultado dessa interação.

Desde o planejamento até a execução de programas e serviços de

atendimento aos pobres, constituem-se espaços de intervenção, construção e

reprodução de conceitos normativos. É o que foi definido no tópico anterior como um

processo de institucionalização da pobreza pelo Estado.

É sabido que o critério para inserção dos pobres nas políticas públicas

executadas no Brasil está relacionado ao recorte de renda dos sujeitos. Porém, o

que está subliminar nessa inserção é que a renda constitui apenas uma ponte inicial.

O acesso às outras políticas, tal como assistência social, educação, saúde, inclusão

produtiva, qualificação profissional, faz parte do rol previsto em toda a trajetória

institucional do pobre. Essa é a dinâmica no maior programa em número de

beneficiários de transferência de renda, o Programa Bolsa Família34.

34

O conceito de pobreza do Programa Bolsa Família será tratado em tópico específico, mais à frente.

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A descentralização do tratamento da renda como conceito de pobreza deve

ser considerada como um esforço de mudança da construção do lugar do pobre na

sociedade. No momento em que as políticas públicas incluem em suas metas a

inserção das famílias em políticas estruturais como educação, saúde, assistência,

vê-se uma perspectiva de construção social surgindo em torno do entendimento da

pobreza.

Rego e Pinzani (2013), pesquisadores do PBF com usuárias do programa de

transferência de renda, o Bolsa Família, trazem grande contribuição em seus

estudos, que é desmistificar o papel “passivo”, muitas vezes atribuído ao pobre. Em

sua pesquisa, retrataram os resultados sobre o processo de autonomia e

protagonismo de usuárias a partir da inserção no Programa.

Ao incluir o beneficiário no corpo dos cidadãos, promove nele um sentimento

de identificação com a nação, devido ao reconhecimento de sua pessoa por parte

das instituições políticas de Estado (REGO; PINZANI, 2013, p. 75).

No caso, Rego e Pinzani (2013) mostram que a inserção no referido programa

proporciona acessos a direitos, a uma condição de cidadã com que as usuárias

superam muitas condições perversas de sua condição social de pobreza antes de

ingressar no programa. As entrevistadas apresentaram um ganho no processo de

autonomia nas relações de gênero, de domínio e submissão tão presente na

condição das mulheres relacionada ao contexto histórico. Assim, para os autores,

existe um nível de autonomia que pode ser atingido pelos sujeitos atendidos no

referido programa que diz respeito não somente à dimensão estritamente individual,

mas também à vida social e à dimensão política em geral.

Os apontamentos trazidos pelos autores não se diferenciam do que se

encontrou em campo em pesquisas anteriores. Considerando a experiência de

grupos de usuários, os sujeitos experimentam um processo de qualificação social

(PEREIRA, 2007) dentre os seus iguais. Nesse caso a qualificação social advém do

processo positivo de protagonismo e afirmação social e individual do pobre diante

um estigma social pejorativo decorrente de sua condição anterior de pobreza.

Protagonismo este percebido por meio da superação de uma condição social

precária de submissão, violência simbólica, baixa autoestima e não afirmação de

sua identidade social.

Resta saber se na relação com o outro representado por aqueles que não são

usuários do programa, o processo de qualificação também ocorre.

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As instituições estatais têm papel fundamental no reconhecimento da

condição social de pobreza dos cidadãos pobres. Nesse sentido, a capacidade

técnica na rotinização de atendimento é estruturante na efetivação do modelo

esperado pelo Estado no tratamento do pobre como cidadão.

Se fizermos uma análise comparativa retomando o contexto do século XIX

sobre o pobre, será visto que vários símbolos continuam arraigados na prática de

reconhecimento e identificação do pobre. Robert Castel (2012), em seu livro As

metamorfoses da questão social, retrata o tratamento dado aos pobres pelas

instituições cristãs. Ele destaca a existência de um conjunto de imagens da pobreza

e afirma que, à época, o pobre mais digno de mobilizar caridade é o que exibe no

corpo a impotência e o sofrimento humano. A piedade e esmolas aos pobres eram

elementos de barganha uma vez que eles rendiam o bom lugar nos céus.

Atualmente, os instrumentos da burocracia das instituições estatais tomaram

o lugar das chagas escritas no corpo e a caridade ao pobre nem sempre pode

significar a salvação, mas sim uma contribuição para viciar o cidadão em seu ciclo

de pobreza. Porém, ao certo, não se conseguiu inibir de todo a visão e estereótipo

do conceito de pobreza construído historicamente. Na sociedade moderna de regras

burocráticas, de identificação da pobreza, os pobres ainda são denominados de

“desocupados”, que “não querem trabalhar”.

No centro do aparato burocrático de institucionalização da pobreza no Brasil,

o grande desafio do pobre é provar-se pobre. Pelas contribuições de Castel (2012),

percebe-se que a busca de sinais nos pobres atendidos sempre foi um procedimento

utilizado pelos profissionais envolvidos no trabalho pelas diversas instituições.

É o olhar do Estado que julga e regulamenta a meritocracia do pobre a ser

pobre. Assim, o acesso à transferência de renda ou a assistência social está

condicionado ao crivo de um olhar técnico, treinado para identificar a veracidade dos

sinais de pobreza apresentados pelos candidatos a serem usuários dos programas e

serviços.

O cotidiano dos técnicos do Estado constrói, assim, mecanismos de

racionalização da prática do trabalho que reproduz regras próprias dos técnicos que

inferem em julgamentos e reprodução sobre o merecimento ou não merecimento de

inserção dos usuários nas ações de assistência social e/ou transferência de renda.

Esse processo acaba por ameaçar a legitimação das políticas públicas na

perspectiva de autonomia e cidadania que buscam proporcionar aos seus usuários.

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Nessa perspectiva, fomos buscar na teoria de Michael Lipsky (2010) a

contribuição e suporte analítico para compreender a atuação e papel desses

técnicos que, na burocracia estatal, desempenham funções estratégias na

estruturação, execução e concretização das políticas públicas estado junto aos

pobres.

3.4 Burocratas de rua: atores do Estado no combate à pobreza

Como forma de conceituar objetivamente os sujeitos pesquisados, encontrou-

se no cientista político Michel Lipsky grande contribuição. Como o autor, partilha-se

da opinião de que os resultados das organizações públicas e o desenvolvimento dos

programas e serviços envolvem o controle e o desempenho dos burocratas de rua

nos serviços (LIPSKY, 2010).

Busca-se na contribuição teórica lapidar o olhar para compreender a

inferência dos street-level bureaucrats no contexto das políticas brasileiras de

combate à pobreza partindo de um olhar analítico relacional. Assim, não está em

foco a ação do burocrata de rua em si, mas a percepção e interação que esses

sujeitos estabelecem com programas e serviços que acompanham usuários.

Lipsky, em seu livro Street-Level Bureaucracy, dilemmas of the individual in

public services, trabalha a tese sobre os dilemas individuais enfrentados na prática

de servidores públicos na execução de políticas públicas no nível de rua. A obra

aponta quais os desafios, as estratégias, as formas de racionalização e a

operacionalização que constituem a função de street-level bureaucracy ou

“burocracia de rua” ao desempenhar suas atividades.

Os street-level bureaucracy são servidores públicos, tais como professores,

assistentes sociais, policiais, dentre outros que interagem regularmente com

cidadãos no desenvolvimento de suas atividades cotidianas. O poder discricionário

na execução de programas e serviços exercidos por esses sujeitos, na análise do

autor, se efetiva meio a construção de uma racionalidade cotidiana na ação que

ocorre por meio da prática e dos recursos a eles disponibilizados.

Lipsky traz para a literatura a importância do papel desses burocratas nas

políticas públicas no nível de rua e também demonstra quais os limites de sua

função e seus dilemas. Para o autor, os referidos profissionais nem sempre

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conseguem realizar suas funções com excelência tal como previsto. Fato esse que

não tem relação com a capacidade ou responsabilidade dos burocratas de rua. Essa

observação é chave para compreender a atuação dos técnicos. Lipsky defende em

sua análise que as dificuldades enfrentadas pelos técnicos burocratas de rua diante

a escassez dos recursos necessários faz com que eles passem a assumir

responsabilidades com os casos dos usuários o que ocasiona dilemas pessoais no

trabalho.

the jobs typically could not be performed according to the highest standards of decision making in the various fields because street-level works lacked the time information, or other resources necessary to respond properly to the individual case. Instead, street-level bureaucrats manage their difficult jobs by developing routines of practice and psychologically simplifying their clientele and environment in ways that strongly influence the outcomes of their efforts. (LIPSKY, 2010,xii).

Quando o autor associa a ação dos profissionais na relação com o outro na

prática cotidiana e com a realidade instrumentalizada no que lhe é possível,

percebe-se um diálogo com o conceito de Serge Paugam que fala da condição

social construída para determinada conduta. Ou seja, constrói-se, também, uma

condição social de atuação desses técnicos, pela qual ele será identificado e

reconhecido socialmente na interação com o outro.

Essa perspectiva remete também ao conceito proposto na filosofia da ação de

Bourdieu (1996), quando o autor trata da propriedade relacional na interação entre

indivíduos por meio de uma exterioridade mútua associada ao espaço que ocupam.

Para Bourdieu, o espaço em que se dá o encontro das ações dos sujeitos seria

um conjunto de posições distintas e coexistentes, exteriores umas às outras, definidas umas em relação às outras por sua exterioridade mútua e por relações de proximidade ou de distanciamento e, também, por relações de ordem, como acima, abaixo e entre. (BOURDIEU, 1996, p. 18-19).

Ocupando um mesmo espaço desenhado por uma burocracia

institucionalizada de regras e condutas, tanto os burocratas de rua e seus

interlocutores (em nosso caso os “pobres”) experimentam suas diferenças e

contradições. Paradoxalmente, o espaço inter-relacional, nesse caso, não deveria

ser permeado de objetivos diferenciados, pois se trata de um interesse da burocracia

estatal, por meio do papel dos burocratas de cadastrar, atender e acompanhar,

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incluir o pobre em suas políticas. Porém, em diversas vezes a mutualidade dos

atores nessa interação acaba por adquirir teor de opositores, em seus interesses.

Em Lipsky, temos que o termo Bureaucracy significa o conjunto de regras que

estruturam uma autoridade na ação, enquanto Street-level significa o locus do nível

de rua, ou seja, o local em que os serviços públicos concretizam as suas ações. É

na articulação entre a burocracia e o que se encontra na realidade do nível de rua

que se constrói um espaço da exterioridade mútua preconizado por Bourdieu. Nas

políticas de combate à pobreza, os burocratas de rua e os pobres travam uma

disputa de desafios e simbologias. Por um lado, tem-se que provar-se pobre e, por

outro, há o olhar inquisidor do burocrata, que julga pautado nas regras burocráticas

do mérito que constitui característica da burocracia do Estado gerencial.

Vale ressaltar que a preocupação está voltada apenas para processos

burocráticos isoladamente. A preocupação é compreender as reformas e inferências

das políticas públicas tendo assim mais uma perspectiva de respostas pragmáticas

às situações cotidianas do que uma dimensão epistemológica sobre o conceito de

burocracia.

Nesse sentido, será utilizada a pesquisa sobre o conceito de burocracia com

o intuito de observar o que os preceitos conceituais de burocracia esperam do papel

do servidor público ou dos burocratas em suas ações.

3.5 A burocracia e os street-level bureaucrats

Max Weber é autor de referência na discussão conceitual de burocracia. Na

teoria de Weber, a burocracia surge como um modelo ideal de funcionamento do

Estado meio à exigência da modernidade na busca da racionalidade como centro de

suas ações e funções. A burocracia está diretamente relacionada a uma conduta

pautada em regras legais que compõem um processo de hierarquia e disciplina no

interior da instituição pública.

Em seu texto, Weber (1982), à época, caracterizou o surgimento da

burocracia moderna por meio dos seguintes pressupostos:

I. rege o princípio de áreas de jurisdição fixas e oficiais, ordenadas de

acordo com regulamentos, ou seja, por leis ou normas administrativas;

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II. os princípios da hierarquia dos postos e dos níveis de autoridades

significam um sistema firmemente ordenado de mando e subordinação, no qual

há uma supervisão dos postos inferiores e superiores;

III. a administração de um cargo moderno se baseia em documentos

escritos (“arquivos”), preservados em sua forma original ou em esboço;

IV. a administração burocrática, pelo menos toda a administração

especializada que é caracteristicamente moderna pressupõe

habitualmente um treinamento especializado e completo;

V. Quando o cargo está plenamente desenvolvido, a atividade oficial exige

a plena capacidade de trabalho do funcionário, a despeito do fato de ser

rigorosamente delimitado o tempo de permanência na repartição, que lhe é

exigido; e

VI. O desempenho do cargo segue regras gerais, mais ou menos estáveis,

mais ou menos exaustivas, e que podem ser aprendidas.

Dentre essas reflexões, Max Weber também pensou o papel dos funcionários

públicos na efetivação da prática cotidiana por meio do tipo ideal da ação racional-

legal do Estado moderno. Para o autor, o funcionário que serve ao governo público

deve estabelecer um vínculo de fidelidade aos pressupostos estruturais no Estado

burocrático, priorizando a especialização e o treinamento rígido de suas funções.

O cargo assumido pelo funcionário, na teoria de Weber, deve ser tido como

uma profissão, ou seja, uma relação pautada no aparato jurídico e não baseado no

mando e submissão. Assim, segundo o autor, o funcionário público não é e nem

deve se comportar como um servo do Governo. Na burocracia do Estado moderno,

a postura do servidor público, na teoria de Weber, detém-se, prioritariamente, na

impessoalidade e funcionalidade operacional das ações de caráter racional-legal.

É decisivo para a natureza específica da fidelidade moderna ao cargo que, no tipo puro, ele não estabeleça uma relação pessoal, como era o caso da fé que tinha o senhor ou patriarca nas relações feudais ou patrimoniais. A lealdade moderna é dedicada a finalidades impessoais e funcionais. (WEBER, 1982, p. 232). Toda forma de atribuição de usufrutos, tributos e serviços devido ao senhor pessoalmente, ou ao funcionário para a exploração pessoal, significa sempre uma derrota do tipo puro da organização burocrática.

35

35

Id,, p. 241.

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Os pressupostos básicos pensados por Weber continuam sendo alicerce na

compreensão do papel do servidor público. Ao mesmo tempo, outras contribuições

foram surgindo decorrentes da transformação dos modelos de Estados e a atuação

dos burocratas. No caso brasileiro, pode-se apontar mais recentemente que coincide

com as primeiras políticas do discurso do combate à pobreza, a reestruturação

burocrática proposta do Plano Diretor da Reforma do Estado, escrito pelo então

ministro da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE), Luiz Carlos

Bresser Pereira, no governo do presidente da República Fernando Henrique

Cardoso.

No referido documento, Bresser (1995) relembra a tentativa do Estado

brasileiro, em 1936, de modernizar a administração pública por meio da criação do

Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP). Nesse período, a tentativa

se pautou na administração científica proposta pelo engenheiro americano Frederick

Taylor, que recomendava a racionalização mediante simplificação, padronização,

aquisição racional de materiais, revisão de estruturas e aplicação de métodos na

definição de procedimentos.

O DASP, sob o ponto de vista de Bresser Pereira, com relação aos servidores

públicos, representou a tentativa de formação da burocracia nos moldes weberianos,

baseada no princípio do mérito profissional. Para o autor, apesar da tentativa, não foi

obtido resultado satisfatório. Isso porque resquícios da administração pública

patriarcal, o contraponto que estimulou a criação do modelo burocrático racional-

legal, ainda tinham força no quadro político público brasileiro. Para Bresser, apenas

havia uma transição do formato da submissão, nas palavras do autor “o coronelismo

dava lugar ao clientelismo e ao fisiologismo” (BRESSER, 1995, p. 19).

Na crítica feita por Bresser, esse modelo de burocracia implantado no Brasil a

partir de 1930, por ele denominado de modelo burocrático tradicional, privilegiou o

formalismo no excesso de normas e rigidez burocrática. Isso tudo sob ao argumento

de garantir a impessoalidade. Porém para Bresser, esse procedimento seria mais

um dificultador da transparência administrativa, inibindo o controle social, pois a

excessiva regulamentação é expressão da ênfase nas normas e processos e ocorre

em detrimento dos resultados.36

36

Id., p. 241.

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As mudanças que passou a exigir uma postura diferenciada na atuação do

servidor público na burocracia vieram com a proposta de implantação do modelo de

um Estado Gerencial com o Plano de Reforma do Estado de 1995. Esse modelo

pensado por Bresser tinha como objetivo levar a técnica gerencial burocrática para o

Estado. O foco do modelo gerencial era flexibilizar a rigidez burocrática tradicional,

descentralizar competências, todo esse processo orientado por planejamentos

estratégicos voltados a necessidade do cidadão e a busca de resultados.

Algumas características básicas definem a administração pública gerencial. É orientada para o cidadão e para a obtenção de resultados; pressupõe que os políticos e os funcionários públicos são merecedores de grau limitado de confiança; como estratégia, serve-se da descentralização e do incentivo à criatividade e à inovação; e utiliza o contrato de gestão como instrumento de controle dos gestores públicos. (BRESSER,1998, p. 28) Enquanto a administração pública burocrática é autorreferente (satisfaz seus próprios interesses) a administração pública gerencial é orientada para o cidadão

37.

Para Abrúcio (2010), o modelo proposto por Bresser não teve força suficiente

para ser implementado devido a alguns elementos como: o legado deixado por

governos anteriores (fazendo referência à gestão de Fernando Collor de Melo) e,

segundo, pelas mudanças propostas não se alinharem ao ajuste fiscal ocorrido nos

anos de 1990. Para o autor, a necessidade de uma nova gestão pública, à época,

trazia uma série de detalhe que retratava a urgência de ter novos instrumentos

gerenciais e democráticos para combater os problemas do Estado contemporâneo.

Ao mesmo tempo, se o formalismo e a rigidez burocrática deviam ser atacados como

males, alguns alicerces do modelo weberiano poderiam constituir-se numa alavanca

para a modernização, em prol da meritocracia, que seria e clara separação entre o

público e o privado (ABRUCIO, 2010, p. 543).

Nesse sentido, a ação dos street-level bureaucrats pode ser entendida com

maior proximidade de uma abordagem da perspectiva gerencial de burocracia do

que com a burocracia clássica tradicional weberiana. Em nossa perspectiva, Lipsky

apresenta uma flexibilidade da ação burocrática representada na margem de

liberdade existente no poder de discricionariedade desses sujeitos. Isso parece claro

quando no estudo do autor ele aponta os dilemas sofridos pelos servidores públicos

diante de situações práticas que, instrumentalmente, não tem como resolver e

37

Id., p. 21.

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mesmo assim eles são exigidos a tomar uma decisão. Nesse sentido é observado

um processo de responsabilização individual dos burocratas de rua com relação aos

cidadãos atendidos.

A discricionariedade pode ser definida como a margem de liberdade de um funcionário público para escolher um curso de ação ou inação, fundamentada na lei. A discricionariedade está envolvida pelos códigos legais e não se trata de ação ilegal, mas de liberdade para agir ou deixar de agir que um funcionário público tem diante do cidadão comum. (DAVIS; GALLIGAN apud ARANHA; FILGUEIRAS, 2011, p. 352).

Essa tomada de decisão muitas vezes implica consequências significativas

para a vida dos usuários, que é não ter suas necessidades atendidas da forma

adequada, suprimindo, assim, o seu direito de acesso às políticas públicas. Por essa

razão, o autor atribuir que estes momentos de tomada de decisão significam uma

“densidade” e carga emocional cotidiana na prática diária desses sujeitos.

Sob o olhar das Ciências Sociais, o objeto aqui proposto é abordado na

relação social entre os técnicos burocratas de rua que atendem os pobres. No caso

brasileiro, observa-se um misto entre discricionariedade (dentro da racionalidade-

legal estabelecida) e de uma categoria denominada na burocracia gerencial que

seria a confiança, ou seja, a possibilidade de o servidor público ser motivado em seu

poder criativo de tomada de decisão na resolução de problemas relacionados ao seu

cotidiano de trabalho, porém usando sempre de critérios racionais como os

princípios da impessoalidade e razoabilidade.

3.6 As instituições e os indivíduos

Dando continuidade à discussão sobre os elementos que constroem o

universo da institucionalização e das ações dos burocratas de nível de rua, serão

apresentadas algumas que escolas discutem hoje o referido conceito partindo do

tipo de relação constituída pelos sujeitos no interior dessas instituições. Discutem,

também, a forma como as instituições normatizam suas regras, e as diversas

maneiras como elas são assimiladas e exteriorizadas por esses sujeitos. Elementos

como interesses, processos políticos, normativos, poder, atores, mecanismos

institucionais permeiam essa temática.

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A institucionalização não pode ser um processo irreversível a despeito do fato

das instituições, uma vez constituídas, perdurar a rigidez de seus conceitos e

normas. Partilha-se, assim, do ponto de vista de Berge e Luckman (2012) de que as

instituições variam historicamente por uma multiplicidade de fatores. No cenário

atual, seria um pensamento equivocado se deter, apenas, na perspectiva linear e

coercitiva do conceito de instituição como algo que sobrepõe o indivíduo. Ampliar o

entendimento da instituição social foge ao padrão de controle, de programação da

conduta individual imposta pela sociedade.

Berger e Luckman (2012), ao estudarem a relação entre institucionalização e

conhecimento social, apontam que a atualização do conhecimento sob o ponto de

vista do processo de institucionalização, pode ser encontrada no desempenho e

significações institucionais relacionados à experiência individual trazida pelos

indivíduos.

O acervo inteiro do conhecimento social acha-se atualizado em cada biografia individual. Todos fazem tudo e sabem tudo. O problema da integração dos significados (isto é, da relação, dotada de sentido, entre as diversas instituições) é um problema exclusivamente subjetivo. O sentido objetivo da ordem institucional apresenta-se a cada indivíduo como dado natural e certo enquanto tal. Se há algum problema, deve-se a dificuldades subjetivas que o indivíduo pode ter na interiorização de significados a respeito dos quais existe acordo social. (BERGER; LUCKMAN, 2012, p. 110).

Um marco nas ciências sociais inicial sobre o conceito de instituição veio com

o sociólogo Émile Durkheim em um dos primeiros tratados sobre o objeto científico

das ciências sociais, As regras do método Sociológico. O autor trouxe o conceito de

instituição como categoria das ciências sociais. Ele denominou de “instituição todas

as crenças e todos os modos de conduta instituídos pela coletividade” (DURKHEIM,

2007, p. XXX).

Em relação ao pensamento durkheimiano, a reprodução e representação de

práticas sociais dos indivíduos passam pelo processo de coerção social, em que a

maneira coletiva de pensar e de agir socialmente tem uma realidade exterior

sobreposta ao indivíduo. Ao ingressarem nos processos de socialização, os

indivíduos, encontram um mundo com regras codificadas com base em uma

exterioridade dos fatos que exige uma conduta pautada nos valores já existentes.

Assim, constituem-se instituições como a família, o Estado etc.

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Com base nas contribuições durkheimianas, o conceito de instituição passou

a ser objeto de estudo de outras escolas. Mais recentemente têm destaque,

considerando-se o âmbito de organização e interação institucional, as escolas da

Teoria Institucional (Velho Institucionalismo) e a escola Neoinstitucionalista (Novo

Institucionalismo). Para o estudo da relação dos técnicos burocratas de rua e os

pressupostos construídos pela instituição Estado, o diálogo com essas escolas

merece atenção especial. De forma cada vez mais recorrente, a forma de

organização do Estado para pensar, estruturar e executar o rol de políticas públicas

busca, no âmbito da racionalidade corporativa, modelos para monitorar e avaliar as

metas e resultados do trabalho dos seus burocratas de rua.

A Teoria Institucional surge no final do século XIX, assentada na tradição

sociológica (Durkheim e Weber), direcionada a explorar o conceito de instituição no

âmbito das instituições e corporações (CARVALHO; VIEIRA, SILVA 2012. Os

institucionalistas trabalham categorias como os elementos regulativos da

normatização, mudança de comportamento, padrões ordenadores, com maior

ênfase no processo de institucionalização pelo Estado, como também no campo

organizacional e de controle das demais organizações. Para Silva, Fonseca e

Crubellate (2005), seria como uma “teoria das organizações”, que preconizava que a

maior sensibilidade aos elementos regulativos corresponde uma base legal, ou seja,

as organizações se legitimam mediante a conformação a leis estabelecidas em seu

âmbito da atuação. Esses elementos provêm predominantemente do Estado. A

ênfase normativa indica uma base essencialmente moral e a legitimidade

organizacional é definida em termos de sua adesão a normas definidas como

padrões de comportamento. As fontes dessas normas são preferencialmente, as

profissões e seus mecanismos de controle. (CARVALHO; VIEIRA; SILVA, 2012, p.

486).

Para a Teoria Institucional, ou Velho Institucionalismo, são os elementos

reguladores e normativos que regem o comportamento dos indivíduos na relação

com as organizações/instituições. Essa perspectiva interpreta as organizações como

uma expressão estrutural da ação racional que ao longo do tempo estão sujeitas às

pressões do ambiente social, podendo se transformar em sistemas orgânicos. A

transformação ocorre pelo processo de institucionalização, ou seja, quando os

valores substituem os fatores técnicos na determinação das tarefas organizacionais

(PECI, 2006).

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As instituições, a racionalidade, os atores e a tomada de decisão configuram-

se nos objetos de estudo da denominada escola. O foco se detém nos arranjos, na

cultura organizacional e institucional, nas mudanças e no comportamento dos

indivíduos no interior de corporações e organizações (RUA; ROMANINI, 2013).

Os primeiros estudos organizacionais adotam o conceito de instituição de modo prescritivo, preocupados com as formas como uma organização pode torna-se uma instituição; ou seja, ganhar legitimidade perante a sociedade e tornar-se permanente, sobrevivendo ao ambiente de negócios. Desenvolve-se, então, a chamada corrente de desenvolvimento institucional (ou institucional building), que causou grande impacto nos estudos organizacionais, especialmente, devido a seu caráter aplicado. (PINTO apud PECI, 2006).

Mais tarde, na década de 1970, o Neoinstitucionalismo faz uma releitura da

Teoria Institucional. Assim, as pesquisas sobre institucionalização passam a ser

classificadas por dois viés: o velho institucionalismo, que faz referência à teoria

institucional, e o novo institucionalismo, que se refere à teoria Neoinstitucionalista.

O Neoinstitucionalismo, ou Novo Institucionalismo, parte de uma alternativa

teórica ao funcionalismo e ao behaviorismo (RUA; ROMANI, 2013) com forte

influência da Teoria Cognitiva (CARVALHO; VIEIRA; SILVA, 2012). Essa nova

releitura da escola institucionalista desloca o foco do estudo do conceito de

instituição dos elementos normativos e reguladores até então trabalhados para os

elementos cognitivos. Dessa forma, o processo de interação entre instituição e

indivíduo passa a considerar que a cognição como base para legitimação das

normas constituídas.

Quando a ênfase recai sobre os elementos cognitivos, valoriza-se na teoria institucional, a representação que indivíduos fazem dos ambientes configuradores de suas ações, incluindo as interpretações subjetivas que fazem. Sob esse ângulo, são os significados atribuídos pelos indivíduos à realidade em que se acham inseridos que se conformam seu contexto institucional de referência, ou seja, que definem estruturas e orientam ações organizacionais. A interpretação dos elementos institucionais é mediada por indivíduos, grupos e organizações que selecionam aqueles que mais se coadunam com sua lógica interior

38.

Algumas críticas são direcionadas ao Neoinstitucionalismo. Segundo

Immergut (2007), durante o surgimento dessa perspectiva, houve certo ceticismo por

parte da comunidade científica ao questionar o que ela trazia de novo, uma vez que

as instituições têm sido o foco das ciências políticas desde o seu nascimento. Sob o

38

Id.

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ponto de vista da autora, as variedades dos novos institucionalistas trazem e tratam

de um conjunto comum de problemas que podem ser considerados apenas como

uma perspectiva unificada.

As três premissas básicas do novo institucionalismo para a autora são: 1 as

preferências ou os interesses expressos em ações que não devem ser confundidos

com “verdadeiras” preferências; 2 os métodos de agregação de interesses

inevitavelmente trazem distorções; 3 as configurações institucionais podem

privilegiar conjuntos específicos de interesse e, portanto, poderão necessitar de

reformas.

Ainda segundo a autora, a discussão trazida pela teoria de tradição

institucionalista é voltada para a ação, as escolhas e as preferências do ser

indivíduo e como elas se relacionam com as instituições políticas, sociais etc. Os

institucionalistas, ao partirem da crítica ao movimento behaviorista, por esses

pressuporem que as preferências são dados subjetivos revelados pelo

comportamento, acreditam em outro viés. Assim, as preferências manifestadas pelo

comportamento dos sujeitos são as verdadeiras preferências dos sujeitos

(IMMERGUT, 2007). Para os institucionalistas, o interesse se distinguir entre as

preferências expressas e as reais, ou seja:

pode haver inúmeras razões para que, dado um conjunto particular de circunstâncias, uma pessoa faça uma escolha política daquela que ela mesma faria, com as mesmas preferências, em outras circunstancias. Por exemplo, por acreditar que o resultado que deseja ver alcançado não seja factível, um indivíduo pode votar numa alternativa que não seja a sua primeira opção, mas que tenha a vantagem de poder realizar-se. Os institucionalistas visam analisar os motivos que levam esses atores a escolher uma definição particular de seus interesses, e não outra plausível. As definições de interesses são vistas como resultados políticos que devem ser analisados, e não como pontos de partida para ações políticas, a serem aceitas de per si. Dessa forma, a teoria institucionalista visa expor e analisar a discrepância entre os interesses “potenciais” e aqueles que se expressam no comportamento político. (IMMERGUT, 2007 p.157).

A escola Neoinstitucionalista pode ser dividida em três tipos de

institucionalismo. O quadro a seguir apresenta resumidamente cada um dos tipos,

permitindo observar as semelhanças e diferenças entre eles.

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Quadro 3: Tipos de Neoinstitucionalismo

Escolha racional Teoria da organização Institucionalismo histórico

Interesses

Fatores estratégicos levam atores racionais a escolher equilíbrios subótimos.

Os atores não conhecem seus interesses; limites de tempo e informação levam-nos a depender de sequências e outras regras de processamento (racionalidade limitada).

As interpretações dos atores de seus interesses são moldadas por organizações coletivas e instituições que carregam traços da própria história.

Processo político

Sem regras para ordenar, não consegue alcançar o interesse o público; regras para a sequência de votação no Congresso, divisão em jurisdições etc. afetam os resultados.

Os processos inter e intraorganizacionais moldam os resultados, como no modelo lata de lixo, o trabalho para alcançar a reorganização administrativa e a implementação de políticas.

Processos políticos estruturados por Constituições e instituições políticas, estruturas de Estado, relações entre Estado e grupos de interesse, redes de políticas e contingências de timing.

Normativo

*Os fins substancialmente racionais são inúteis, sem meios formalmente racionais; *Maximizar a eficiência por meio da regra de unanimidade e compra de votos; *Vontade popular insondável, a democracia é controlada por efeito e contrapesos.

Implicações do poder burocrático e da racionalidade limitada.

Democracia jurídica baseada no fortalecimento do Congresso, deliberação sobre regras e não com base em resultados específicos, necessidade de filosofia pública.

Atores Racionais Cognitivamente limitados

Autorreflexivos (normas sociais, culturais e históricas, mas reinvenção da tradição).

Poder Capacidade de agir unilateralmente.

Depende de posição na hierarquia organizacional.

Depende do reconhecimento pelo Estado, do acesso à tomada de decisões, da representação política e das

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construções mentais.

Mecanismos institucionais

Estruturação das opções por meio de regras (dependência de normas controversas).

Estruturação das opções e dos cálculos de interesse por meio de procedimentos, rotinas roteiros, quadros (implica normas).

Estruturação de opções, cálculo de interesses e formação de metas por regras, estruturas, normas e ideias.

Fonte: Immergut (2007).

Em nosso ponto de vista, os elementos encontrados na tradicional e na

neoteoria institucional se complementam no campo prático de execução da

estruturação e avaliação dos sujeitos que atuam nas políticas de combate à

pobreza. A ação desses sujeitos da relação normatizada pelo Estado, porém não

fogem de um comportamento em que os indivíduos fazem dos ambientes em que

executam suas ações, incluindo para tanto as suas interpretações subjetivas.

A interpretação das normativas institucionalizadas toma distância de uma

concepção pura, ou seja, tal como idealizada apenas nos critérios institucionalizada

pelo Estado. No campo de atuação dos técnicos, em determinado momento do

poder discricionário de que dispõem, prevalecem mais a interpretação que os

burocratas de rua fazem das situações e da política do que a técnica normatizada.

Os processos subjetivos dos sujeitos de tais políticas no momento do

atendimento aos pobres são tão determinantes quanto aos demais fatores. Os

valores interiorizados pelos técnicos (burocratas de rua), os desafios e dificuldades

cotidianas no trabalho (LIPSKY, 2010) constroem responsabilidades individualizadas

dos sujeitos em relação aos usuários e às políticas. Isso significa dizer, por mais

paradoxo que seja para um Estado que busca racionalidade nos procedimentos

normatizados, as perspectivas subjetivas de construção dos sujeitos representam e

integram o conjunto das políticas públicas e a maneira como elas chegam aos

usuários.

Por essas influências, observa-se um importante movimento relacionado à

potência de ação dos sujeitos na interação e nas escolhas racionais no interior das

instituições sociais, especificamente nas políticas públicas de combate à pobreza

elaboradas pelo Estado. Ao mesmo tempo em que a instituição Estado busca a

legitimação social de seus conceitos normatizados na prática dos técnicos que

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trabalham com a pobreza, a prática também estabelece seus processos de

institucionalização, num movimento de duplo sentido entre instituição e sujeito.

Nesse sentido Carvalho, Vieira e Silva (2012) acreditam que existe

significativa contribuição do enfoque sociológico no campo das escolas

instuticionalistas envolvendo as políticas públicas. O olhar sociológico valorizou as

propriedades simbólico-normativas das estruturas, abrindo novas possibilidades na

pesquisa empírica para compreensão das dimensões do ambiente e as relações

interorganizacionais.

Sobre a relação entre sujeito, ação e estrutura, Giddens (2009), considerando

a contribuição de Durkheim, de que as propriedades estruturais se constituíram

apenas nas influências coercitivas sobre a ação, propõe outra perspectiva sob o

ponto de vista da teoria da estruturação, uma releitura de tal perspectiva inferindo a

ela que a estrutura tanto é facilitadora como também coercitiva. Em outras palavras,

Giddens defende que a associação das categorias como o tempo-espaço, que

decorrem nas estruturas, fecha algumas possibilidades de experiência humana, ao

mesmo tempo em que traz outras. O teor facilitador das estruturas advém da relação

inerente entre a estrutura e agência.

Na teoria da estruturação, o essencial desse ponto pode ser assim apresentado. As sociedades humanas ou os sistemas sociais, não existiriam em absoluto sem a agência humana. Mas não se trata de que os agentes, ou autores, criam sistemas sociais: eles os reproduzem ou transformam, refazendo o que já está feito na continuidade da práxis. (GIDDENS, 2009, p. 201).

Partilha-se neste trabalho com o que preconiza a Teoria da Estruturação de

Giddens de que as mudanças ocorridas nas estruturas acontecem com base em um

sujeito agente, em relação às representações coletivas e sociais da agência dos

indivíduos sobre sua realidade aos aspectos simbólicos cotidianos das relações

sociais estabelecidas. Atualmente mais do que compreender a coerção das

estruturas sobre o indivíduo, exige-se investigar sobre o poder de agência dos

atores no interior das estruturas e instituições como integrante ativo num movimento

de construção e desconstrução, transformando os sentidos e regras por meio do

sentido que eles constroem de suas ações e na interação com demais sujeitos.

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106

3.7 Sobre a institucionalização da pobreza

As formas de institucionalização da pobreza se aprimoraram conforme as

necessidades de intervenção do Estado em decorrência das transformações sociais

ocorridas historicamente, o que vem desde a prática da caridade à necessidade de

exclusão e isolamento dos mendigos pobres. Considerando um passado mais

recente, a Revolução Industrial associada às mudanças ocorridas no mundo do

trabalho e a explosão da urbanização em massa inicia um ciclo que incrementaram

o quadro de políticas de combate à pobreza. Após esse processo, com a discussão

do Estado de Bem-Estar e Direito passa a valer uma intervenção junto aos pobres a

partir do discurso do direito e da cidadania.

É nesse momento que emergem diversas formas racionalizadas e normativas

de institucionalização da pobreza para conter o número crescente de pobres e

mendigos que se acumulavam nos centros urbanos. O levantamento histórico feito

pelo capítulo I trata do breve relato histórico sobre os modos de intervenção no

atendimento aos pobres, nas diferentes formas de governo que passaram pelo

Estado brasileiro, aponta que no Governo de Getúlio Vargas, na década de 1930,

ocorreram as primeiras iniciativas para regulamentações de ações

institucionalizadas direcionadas ao público denominado pobre.

A maioria dessas iniciativas dos anos de 1930, época da Revolução Industrial,

no caso brasileiro, concentraram-se em conceder alguns direitos trabalhistas como

forma de que a inserção no mundo do trabalho superasse a condição de pobreza de

muitos trabalhadores que se acumularam nas grandes cidades. Porém, isso não era

o suficiente, uma vez que o acesso aos “benefícios” apenas eram alcançados pelos

que conseguiam postos de trabalho, excluindo os demais. Restava aos que não

conseguiam trabalho buscar ajudar das entidades prestadoras de assistência social

aos pobres ainda sob o título de caridade social.

Uma das mais significativas formas de controle é a criação dos conceitos e

critérios para classificação ou tipificação dos sujeitos pobres entre aptos e não aptos

a serem inseridos nos programas e serviços de combate à pobreza. A prática do

controle pelo Estado e seu corpo de técnicos sempre esteve e está ligado ao

processo de institucionalização da pobreza. A institucionalização ocorre sempre que

há uma tipificação recíproca de ações habituais por tipos de atores, dito de maneira

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diferente qualquer uma dessas tipificações é uma instituição (BERGER;

LUCKMANN, 2012, p. 77).

As tipificações institucionais seriam a reciprocidade e um caráter típico não

apenas na constituição das ações habituais, mas também nas ações dos atores

inseridos nos processos de instituições. Elas são acessíveis a todos os membros de

um grupo social particular em questão, que trabalha com determinadas concepções.

É o processo de formação de hábito, ou seja, a experiência biográfica do sujeito em

um mundo de instituições sociais, que precedem seu estado de solidão que

precederá a institucionalização.

A institucionalização ocorre sempre que há uma tipificação recíproca de ações habituais por tipos de atores, dito de maneira diferente qualquer uma dessas tipificações é uma instituição. (BERGER; LUCKMANN, 2012, p. 77).

Implicam a construção das ações institucionalizadas a historicidade e o

controle social. Assim, para se compreender a construção de uma conduta

institucionalizada, é mister considerar o contexto social em que ela foi constituída. É

nesse sentido que as questões apresentadas abordarão o conceito de

institucionalização. Será estabelecida a relação sobre o que se denominará

institucionalização do conceito de pobreza pelos “gestores locais” ou burocratas de

rua que executam, em alguns estados e municípios, os programas de atendimento

aos considerados pobres e suas implicações no cotidiano da prática profissional

desses sujeitos.

Assim como a biografia histórica dos sujeitos é elemento fundamental na

institucionalização dos processos em que ele vive, no campo das políticas públicas

de combate à pobreza isso também acontece. Ou seja, os profissionais pesquisados

utilizam das referências de hábitos e significados sobre pobreza para inserir na sua

inserção cotidiana no trabalho.

A prática de determinadas categorias que envolvem a pobreza e o pobre

passam por um processo de institucionalização necessário para qualificação das

políticas públicas de combate à pobreza. Nesse sentido, o Estado conta com a

operacionalização da pobreza por meio de sua equipe técnica, os técnicos street-

level bureaucrats, para implementar tais regras. Os recursos técnicos de

institucionalização da pobreza produzidos pelo Estado, tais como leis, portarias,

decretos, manuais de orientações técnicas, capacitações etc. são os recursos

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utilizados como parâmetros para a execução das políticas de combate à pobreza

pelos técnicos.

Diante dos argumentos expostos neste capítulo, cabe delimitar que, para fins

analíticos, tratar-se-á neste trabalho de institucionalização da pobreza para

denominar o processo de intervenção do poder público, no caso o Estado, na

normatização, regulamentação e controle de ações voltadas à pobreza e aos

considerados pobres. Processo este mediado pela constituição de um arcabouço de

conceitos, critérios, definições e regras voltadas à identificação dos pobres para

inclusão nos programas e serviços que compõem as políticas públicas de combate à

pobreza.

Este capítulo objetivou delimitar o escopo conceitual do objeto de pesquisa, o

que denominamos de “pobreza”, de “pobre” e de “institucionalização da pobreza”.

Fizemos opção por um recorte teórico conceitual que conduzisse a análise numa

perspectiva construtivista social por acreditar que o nosso objeto constrói sua

condição de atuação a partir da prática.

Mesmo diante de tantas possibilidades de suporte analítico sobre implantação

de políticas públicas, sempre tivemos claro que a imersão da pesquisa seria por

situar o sujeito no interior de uma ação pública estatal, por isso em nosso arcabouço

teórico não estamos trabalhando diretamente com análise de política pública, mas

do poder de agência, do poder simbólico e das formas de institucionalização

constituídas pelos sujeitos que a compõem.

Por isso vimos nos conceitos de desqualificação social relacionado a

processo sociais decorrentes da condição dos sujeitos classificados ou atendidos

pelas instituições estatais, do sociológico Serge Paugam (2003) e de street-level

bureaucrats, de Lipsky (2010), que elucida a atuação dos técnicos burocratas de

nível de rua que trabalham diretamente com os sujeitos atendidos pelo Estado um

diálogo frutífero para chegar em nossa proposta de estudo.

Nesse percurso, o aspecto primordial foi nos instrumentalizar para analisar no

presente trabalho como atualmente se institucionaliza a pobreza no principal eixo de

ação do combate à pobreza, concretizado no programa de transferência de renda

condicionada, o Programa Bolsa Família.

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CAPÍTULO IV – As formas de intervenção institucionalizada no combate à

pobreza: o debate sobre os programas de transferência de renda

O capítulo quatro inicia a inserção nos resultados da pesquisa empírica.

Inicialmente serão apresentadas as discussões acerca das iniciativas das ações de

transferência de renda, como se deram e, a partir daí, como se contextualiza o

debate entre os autores brasileiros. O objetivo é ter contato com as ideias iniciais

sobre os propósitos da transferência de renda, as suas tendências e objetivos. Com

isso, pretende-se obter subsídios para compreender a experiência da transferência

de renda no Brasil, via programa Bolsa Família e, consequentemente, o papel

esperado dos atores envolvidos na sua execução, com destaque para o papel os

técnicos burocratas de rua que realizam o atendimento aos pobres.

O processo de redemocratização ocorrido em vários países latino-americanos

na década de 1980, dentre eles o Brasil, associado a uma nova ordem econômica

que surgia internacionalmente, fez com que os países mais pobres reordenassem

suas economias internas para dar respostas ao crescimento elevado dos índices de

pobreza no mundo. O endividamento elevado dos países latino-americanos com o

Fundo Monetário Internacional (FMI) na referida década junto aos interesses

econômicos e quase metade da população desse continente na linha de pobreza

suscitaram o debate para a reestruturação das políticas sociais. De acordo com os

números, na América Latina, no ano de 1990, 48% dos habitantes estavam abaixo

da linha de pobreza e 22,6% viviam na extrema pobreza (THOMÉ, 2012).

O relatório da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal),

Panorama Social da América Latina 2014, revela que a situação da pobreza

manteve-se estável entre os anos de 2012 e 2013, chegando a 28,1% da população.

Em 2014, a estimativa foi de que a pobreza entre a população seria em torno de

28%, significando em números absolutos de 167 milhões de pessoas39.

Tal fato significa como um processo de estabilidade nos números da pobreza

na população da América Latina, o que para o relatório vem ocorrendo desde o ano

de 2012. Por outro lado, a ocorrência de um processo de desaceleração econômica

39

Disponível em: <http://www.cepal.org/pt-br/comunicados/reducao-da-pobreza-e-da-extrema-

pobreza-se-estanca-na-maioria-dos-paises-da-america>. Acesso em: 7 maio 2015.

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aponta os dados de que a extrema pobreza ou indigência aumentou de 11,3% em

2012 para 11,7% em 2013, o que supõe um aumento de 3 milhões para 69 milhões

de pessoas. As projeções apontam que em 2014 se registraria um novo aumento,

até 12%, ou seja, dos 167 milhões de pessoas em situação de pobreza no ano de

2014, 71 milhões se encontravam em condição de extrema pobreza ou indigência40.

O gráfico abaixo traz um comparativo da evolução da pobreza na América

Latina entre as décadas dos anos de 1980 a 2014.

Figura 1: Evolução da pobreza e extrema pobreza, 1980-2014

Fonte: banco de dados da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal):

Panorama Social Para a América Latina, 2014.

Num cenário de comparação mais amplo, ao final da década de 1990,

especificamente no ano 2000, o Brasil, pelos dados de Pochmann (2006) era a 13ª

economia do mundo, o desemprego atingia cerca de 11 milhões de pessoas. O

rendimento do trabalho respondia por 39% da renda nacional enquanto, na década

de 1980, ou seja, em vinte anos antes, a economia brasileira era a 8ª do mundo,

tendo a renda advinda do trabalho representando 50% da renda nacional.

A mesma década ainda representou a inserção do Brasil na economia

mundial rumo a um padrão de competitividade para concorrer no cenário da

economia globalizada. Para Silva, Yazbek e Giovanni (2012), esse fato representou

a prioridade para dinamização de setores econômicos em detrimento de

40

Disponível em:< http://www.cepal.org/pt-br/comunicados/reducao-da-pobreza-e-da-extrema-

pobreza-se-estanca-na-maioria-dos-paises-da-america>. Acesso em: 7 maio 2015.

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investimentos que considerassem a dinâmica interna do país. Na discussão sobre

consolidação de um Sistema de Proteção Social brasileiro, Draibe (1990)

denominará a esse processo de uma construção de um Estado de Bem Estar Social

marcado por uma base meritocrática com traços corporativistas e clientelistas.

Como uma forma de não andar na contramão das reformas e ajustes

econômicos da década de 1990, que aprimoravam o processo de globalização da

econômica, organismos internacionais passaram a focar em financiamento e

incentivos nos países em desenvolvimento voltado à implantação de políticas sociais

compensatórias. O objetivo era minimizar o impacto que a internacionalização do

capital trazia a esses países. O aumento considerável do desemprego, o avanço da

desigualdade social e as formas de pobreza faziam parte do cardápio de

consequências desse processo. A Tabela 1 apresenta a situação da pobreza entre o

Brasil e demais países da América Latina após a década de 1990, considerando os

anos de 2005, 2012 e 2013.

Tabela 1 – América Latina (18 países) pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza em torno

de 2005, 2012 e 2013. (Em porcentagens)

Segundo Silva, Yazbek e Giovanni (2012), o arcabouço de políticas públicas

surgidas no Brasil, a partir do ano de 1990, esteve pautado nas regras da agenda da

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política neoliberal. Isso fez com que as marcas das intervenções de proteção social

tivessem teor compensatório e residual, direcionadas pela agenda de reforma dos

programas sociais na América-Latina sob a orientação dos organismos

internacionais iniciados nos anos de 1980.

É nesse contexto de aumento do número de pobres na América Latina meio a

intervenções de organismos internacionais “preocupados” com as mudanças

estruturais econômicas, que o Estado brasileiro inicia a intervenção de seu combate

efetivo à pobreza. Isso por meio de diversas políticas públicas, tendo destaque para

as iniciativas de transferência de renda focalizadas na pobreza e extrema pobreza.

Os programas, Bolsa Família, na gestão do presidente Lula, e o Brasil Sem Miséria,

na gestão de Dilma Rousseff passam a integrar inúmeros atores sociais no processo

de institucionalização das ações de programas e serviços para os pobres.

4.1 Uma breve contextualização do debate sobre os Programas de Transferência de Renda (PTRs)

O Programa Bolsa Família (PBF) faz parte do grupo de iniciativas

caracterizadas como transferência de renda condicionada direcionada às famílias

consideradas pobres ou extremamente pobres criado no início dos anos 2000. No

Brasil, configura-se atualmente, em número de usuários, no maior programa

brasileiro de combate à pobreza. Os atores sociais entrevistados para esta pesquisa

entre técnicos e gestores, de maneira direta ou indireta trabalham no atendimento

em nível de rua dos “pobres” inseridos no PBF. Esses profissionais lidam

cotidianamente em suas funções com o conceito constituído e institucionalizado

sobre o combate à pobreza por meio dos objetivos da transferência de renda de

pobreza.

Algumas reflexões de teor estruturais relacionadas à concepção do combate à

pobreza na sociedade contemporânea associada ao modelo de estrutura dos

programas de transferência de renda são responsáveis por normatizar o conceito de

pobreza assimilado pelas equipes técnicas do Estado.

Para alguns estudiosos, nem sempre as medidas adotadas para combate à

pobreza são compreendidas como formas eficazes para afetar causas estruturais da

pobreza e desigualdade, pois, algumas causas que ocasionam processos de

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precarização da condição social da população mais pobre são decorrentes das

readequações ou transformações do sistema capitalista. Um exemplo disso é o

crescente índice de desemprego entre os sujeitos em idade ativa para estar no

mercado de trabalho.

Para Antunes e Pochmann (2007), isso decorre de forças destrutivas do

trabalho vivo que emergiram no último quartel do século XX. Com a intensificação do

processo de acumulação pós-fordista, constatou-se uma inversão das bases de

garantia da segurança do trabalhador. Passou-se a assistir ao retorno do

desemprego estrutural, que logrou mais força à medida que ganhou maior dimensão

a globalização neoliberal. Esse fato se transformou numa realidade generalizada nas

economias centrais, enquanto que na periferia do capitalismo mundial, em que o

grau de seguridade social não havia avançado tanto durante os anos dourados,

ocorreu uma ampliação ainda mais intensa nos níveis de precarização e

desemprego.

Diante de tal realidade, os autores reconhecem que o avanço no gasto social

com ações voltadas ao público mais vulnerável, frente à crise da precarização de

trabalho e o alto índice de taxa de desemprego foi fundamental para o não

agravamento da situação.

Desde a década de 1990, a queda na proporção de pobres no total da população tornou-se somente possível com o avanço do gasto social, estimulado fundamentalmente pela Constituição Federal de 1988. Não há dúvida de que a estabilização monetária contribuiu para aliviar a situação de pobreza, mas, em frente ao desempenho desfavorável do mercado de trabalho, o segmento ativo da população tornou-se bem mais vulnerável ao rebaixamento das condições de vida e trabalho. Mesmo assim, a taxa de pobreza no País declinou. Mas isso se deveu principalmente ao papel ampliado das políticas sociais de atenção tanto aos inativos de mais idade (previdência social, LOAS, entre outros), como aos inativos de menos idade (PETI e programas de transferência de renda vinculada à educação). Dessa forma, os inativos deixaram de responder pela maior participação no total dos pobres do País, a qual se concentrou na população ativa, em especial nos desempregados e ocupados precariamente no mercado de trabalho. (ANTUNES; POCHMANN, 2007, p. 208).

Alguns analistas que estudam os alcances dos programas de

transferência de renda na experiência dos países da América Latina, como o Brasil

(los alcances de los programas de Transferências Monetarias Condicionadas (TMC)

– CLACSO), avaliam que os programas trabalham de forma residual alguns quesitos

da Segurança Social e ocultam problemáticas estruturais.

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Esas propuestas de acción son mecanismos de promoción y legitimación de un esquema residual de seguridad social, en la medida que esconde los conflictos de redistribución de la riqueza, favoreciendo La disociación entre protección vía mercado de empleo y obtención de bienestar. Planteado de otra forma, este tipo de acciones estatales garantiza mínimos sociales, desactiva la acción colectiva y por ende el conflicto capital-trabajo. En consecuencia “dualiza” artificialmente La estructura social, entre pobres, perdedores y destinatarios de la asistencia pública, y no pobres y ganadores, desconociendo que la actual estructura de vulnerabilidades trasciende a la extrema de pobreza. (CLACSO, 2013, p. 21).

Outras tendências intermediárias acerca do alcance das iniciativas de

transferência de renda conseguem visualizar avanços e restrições nesse processo.

Assim, defendem que tal formato de intervenção junto aos pobres representa uma

reestruturação de componentes estratégicos da assistência na proteção social em

países que a adotam.

esas medidas sociales, pese al reducido gasto público que insumen, el que se ubica en menos del 1% del PIB nacional, igualmente abren oportunidades para reestructurar componentes estratégicos de asistencia en el marco de los incompletos sistemas de protección regional. Asimismo, luego de casi quince años de ajuste y recorte de la intervención pública, la estabilización de los TMC parece indicar un reposicionamiento del Estado en materia social y más aún, de responsabilidad política en relación a la pobreza, que no se reduce mecánicamente a partir del crecimiento económico, sino que se requiere de políticas públicas, entre las que figuran estos programas.

41.

Como afirma Sen (2000), a pobreza deve ser entendida como

experiências de privação de liberdades que vai além da ausência de renda. O autor

acertadamente argumenta que os sujeitos experimentam situações de “pobreza” ao

ter limitada a sua liberdade de estar inserido em determinadas realizações sociais

importantes para si.

O que se apreende com políticas públicas e usuários de programas de

combate à pobreza no caso Brasileiro é que proporcionar meios de liberdade de

acesso, seja de direitos ou de elementos básicos como material escolar, enxoval

recebido pela adolescente grávida, uma vaga de alfabetização de adulto, enfim, de

um mínimo vital, seja ele qual for, representa no universo social desses sujeitos a

ruptura com privações sociais antes rígidas. O acesso a “liberdades” traz a sensação

41

Id., p. 21.

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de “pertencimento” de fazer parte de um todo em que as tomadas de decisões e

merecimentos faz parte da condição social do cidadão. A transferência de renda,

nesse caso, torna-se uma porta de entrada que proporciona aos outros tipos de

experiências e sensações aos usuários dos programas voltados ao pobre.

Para Sen (2000), várias foram as tentativas conciliatórias para a avaliação

das realizações sociais, considerando as funções agregativas e distributivas. O autor

cita como exemplo a busca pela renda equivalente e igualmente distribuída. E que

essa noção é guiada e determinada em cada sujeito por escolhas de parâmetro que

refletem nosso juízo ético.

Nesse sentido, para compreender as nuances analíticas, o autor

apresenta categorias denominadas de “escolha de espaço” ou “variável focal”. Elas

direcionam a análise para compreender o estudo da condição social de pobreza,

como o fato de os sujeitos “pobres” e suas necessidades serem multifacetárias.

Nos juízos sobre a desigualdade comparam-se aspectos específicos de uma pessoa com aspectos semelhantes de outra pessoa; a variável que “focaliza” os aspectos que embasam as comparações é a “variável focal” ; a escolha da variável focal especifica um domínio de valores (um espaço de avaliação) que servirão como parâmetro para pesar as vantagens e desvantagens relativas de diferentes pessoas. (SEN, 2000, p. 116).

Com isso o autor, quer afirmar que a desigualdade de rendas pode diferir

substancialmente em diversos outros “espaços” (ou seja, em função de outras

variáveis relevantes), como bem-estar, liberdade e diferentes aspectos da qualidade

de vida (incluindo saúde e longevidade). As realizações agregativas assumem

formas diferentes dependendo do espaço no qual a totalização é feita. Ele

exemplifica casos em que o ranking das sociedades que tem como base a renda

média pode diferir de outros em que o ranking é baseado nas condições médias de

saúde, por exemplo.

A substancial contribuição das reflexões de Sen para nossa análise é o fato

de a pobreza ou de o pobre, assim como todos os atores envolvidos em programas

e serviços de erradicação da pobreza, constituir um objeto complexo de análise pela

diversidade com que se constituem. Isso ocorre pela existência de aspectos

conjunturais exteriores, como também aspectos intrínsecos, simbólicos à experiência

de cada realidade local.

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É inegável que as iniciativas das políticas públicas de combate à pobreza

alicerçam o atendimento aos pobres. Um exemplo são mesmo os programas de

transferência de renda e serviços complementares. O impacto que eles

proporcionam no alívio imediato da pobreza é uma das vantagens de sua aceitação.

Como ressaltado antes, os programas de combate à pobreza por meio da

transferência de renda é uma continuidade à tendência dos Estados no final dos

anos de 1990 na América Latina. Faz parte da plataforma do pacto pela implantação

de políticas sociais e ações focadas no combate à pobreza nos países em

desenvolvimento.

Porém, a proposta de um abono universal foi pensada, pela primeira vez, no

final do século XIX, no Alasca no ano de 1981. Em meados dos anos 80, o debate

passa a ser pauta consolidada de discussão em toda a Europa chegando depois a

outros países. A experiência tratava do Fundo Permanente do Alasca. Funcionava

da seguinte forma, anualmente, com base no volume do Produto Interno Bruto, era

transferida uma renda para a conta bancária dos moradores (SUPLICY, 2002).

Em seu texto, Suplicy traz uma análise das iniciativas de renda mínima ao

redor do mundo e aponta que nos países da Europa essa discussão inicia em 1930

e nos Estados Unidos, em 1935. No caso da Europa, as ações estavam

direcionadas à garantia de benefícios a famílias, desde que com presença de

crianças dependentes, de suporte de renda aos idosos, aos inválidos, aos que

tinham poucos rendimentos de seguro-desemprego, ou de complexos sistemas de

seguridade social. (SUPLICY apud Silva, Yazbek e Giovanni., 2012).

Nos Estados Unidos a experiência foi criada no governo de Franklin

Roosevelt, com o Social Security Act, que instituiu o Aid for Families with Dependent

Children. O objetivo era complementar a renda de famílias cujas mães com baixa

renda eram viúvas, ou tinham dificuldade de cuidar ou oferecer educação aos seus

filhos. Mais tarde, no ano de 1974, também foi criado o Eamed Income Tax Credit

(EITC – Crédito Fiscal por remuneração Recebida). Essa iniciativa se destinou às

famílias que trabalhassem e tivessem crianças na sua composição. No caso, foi

constituído um corte de renda e abaixo desse valor as famílias recebiam uma

complementação de renda variável conforme a renda e o número de filhos.42

42

Idem.

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O debate trouxe ainda uma dicotomia de posições, uns favoráveis e outros

contrários. Os argumentos se estruturavam em questões como: a implicação da

iniciativa proposta no funcionamento da economia dos países, chegando até ao

questionamento sobre os valores que devem compor o funcionamento da sociedade.

Assim, formaram-se duas frentes: uma que acredita que o abono universal pode

amenizar algumas problemáticas sociais como pobreza, desemprego e outra que

defende que tal medida implica em inviabilidade econômica e agrega elementos de

concepção ética (VANDERBORGHT; PARIJS, 2006 p. 30).

O debate internacional sobre Programas de Transferência de Renda se firma

na década 1980, contextualizado meio a significativas transformações na economia

com consequências no mundo do trabalho. Dentre as consequências mais

marcantes estão maior número de desempregados, postos de trabalhos

precarizados para todas as faixas etárias, principalmente entre os jovens.

Coloca-se então a necessidade de reformas sociais e, nesse âmbito, os programas de transferência de renda são destacados como possibilidade para o enfrentamento do desemprego e da pobreza, ampliada na sua face estrutural e pelo que se convencionou denominar de a nova pobreza. (SILVA; YASBEK; GIOVANNI, 2012).

Para os autores, tomando como base a América Latina, as experiências de

transferência de renda estiveram condicionadas ao incentivo à complementação de

renda por consequências do mercado de trabalho escasso e como forma de garantir

a qualificação educacional, em primeiro momento, principalmente das crianças. Esta

seria uma das formas encontradas para romper o ciclo de pobreza nos países latino-

americanos.

No ano de 2012, havia implementados cerca de mais de vinte programas de

transferência de renda em países da América Latina, América Central, Caribe e

México. Dentre as diversas experiências existentes nos países latino-americanos,

têm destaque (SILVA et al., 2012; CUNHA, 2008; IPEA, 2013) conforme Quadro:

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Quadro 4: Programas de Transferência de renda em países da América Latina, América Central, Caribe e México.

Países Programas

Brasil Programa Bolsa Família

México Programa Oportunidades

Argentina Assignación Familiar por Hijo para el Bem Estar Social

Uruguai Nuevo Régimen de Assignaciones Familiares

Costa Rica Avancemos

Chile Chile Solidário

Colômbia Más Familias em Acción

Equador Bono de Desarollo Humano

Peru Programa Juntos

Nicarágua Mi Família

República Dominicana

Solidariedade

El Salvador Rede Solidária

Panamá Programa Bono Alimentario

Paraguai Programa piloto: Tekoporã

Honduras Programa Asiginación Familiar

Guatemala Mi Família Progresa

Fonte: Elaboração da pesquisadora a partir da revisão bibliográfica.

No caso do Brasil, o debate sobre renda mínima é suscitado de maneira

efetiva e nacionalmente pela apresentação (Abril/1991) e aprovação no Senado

Federal do Projeto-Lei nº 80, de dezembro de 1991, do Programa de Garantia de

Renda Mínima (PGRM). A proposta é apresentada pelo então senador do Partido

dos Trabalhadores de São Paulo (PT-SP) Eduardo Suplicy. O projeto propôs a

implementação de taxação negativa como forma de distribuição de renda e,

consequentemente, o enfrentamento da pobreza.

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119

A ideia do imposto negativo previa a constituição de um patamar de renda, tal

como a linha de pobreza. Quem ganhasse acima desse piso pagaria imposto de

renda e aqueles que ganhassem abaixo desse piso teriam uma renda mínima em

dinheiro. A ideia de taxação negativa que inspirou Suplicy teve como base os

trabalhos do economista Norte Americano Milton Friedman43.

Resumo da proposta segundo Silva, Yasbek e Giovanni (2012):

por meio do imposto negativo beneficiar todos os residentes no país

maiores de 25 anos que auferissem menos de, à época, 2,25 salários mínimos.

Haveria correção duas vezes ao ano sempre que a inflação atingisse 30% que

seria igual ao crescimento real por habitante do PIB do ano anterior;

o benefício seria uma complementação de porcentagem de 30%

visando manter o incentivo para o trabalho;

previa a complementação e criação de programas e projetos que

visassem à ampliação da oferta de serviços e bens de consumo popular tendo

em vista o aumento da demanda;

estava previsto para ser implantado gradualmente entre os anos de

1995 e 2002. Iniciando pelos sujeitos maiores de 60 anos e finalizando no

último ano com todos os indivíduos no perfil pensado, ativos e inativos maiores

de 25 anos de idade;

o financiamento do programa viria do Orçamento da União, porém o

custo não poderia ultrapassar 3,5% do PIB. A ressalva neste item é que as

ações do Programa não poderiam substituir as ações governamentais básicas

na área de saúde;

a transferência do benefício seria intermediada pela fonte pagadora ou

por devolução de imposto de renda. Entre os atores que efetuariam tais

trâmites estariam a Rede Bancária e a Empresa de Correios e Telégrafos.

Após o ano de 1991, a discussão sobre renda mínima se expande por todos

os estados e municípios. O projeto do senador não passou no Congresso Nacional,

porém pequenas iniciativas foram implantadas de maneira isolada em estados e

municípios brasileiros. Foram pioneiros nesse modelo de programas, o Programa

Bolsa Escola (1995-DF – Governo Cristóvão Buarque); o Programa de Garantia de

43

FRIEDMAN, M. Capitalism and freedom. Chicago: University of Chicago Press, 1962.

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Renda Familiar Mínima (PGRFM, de 1994 - Prefeito de Campinas-São Paulo José

Roberto Magalhães Teixeira (JUSTO, 2009).

Nesse contexto, a discussão sobre ações de transferência de renda pode ser

dividida em cinco momentos (SILVA; YASBEK; GIOVANNI, 2012). O primeiro

momento, em 1991, quando foi aprovado Projeto-Lei do senador Eduardo Suplicy,

propondo a instituição de um Programa de Garantia de Renda Mínima em nível

Nacional.

O segundo momento ocorreu a partir dos acontecimentos de 1992, com o

Movimento Ética na Política, impeachment do presidente Fernando Collor, trazendo

a temática da fome e da pobreza para a agenda pública do país. Nesse momento,

tem destaque a Campanha Nacional da Ação da Cidadania Contra a Fome, a

Miséria e pela Vida, liderada pelo sociólogo Herbert de Sousa. A campanha foi

realidade no governo do presidente Itamar Franco, que em 1993 idealizou o Plano

de Combate à Fome e à Miséria.

O terceiro momento da discussão ocorreu em 1995 (início do primeiro

mandato de FHC), com o desenvolvimento das experiências municipais dos

programas de transferência de renda (Campinas, Brasília, Ribeirão Preto, Santos

etc.). Com isso, a proposta política de renda mínima aponta para possibilidade de

concretude.

O segundo mandato do Presidente Fernando Henrique (1999-2002)

representa, para os autores, o quarto momento que caracteriza a discussão de

programa de transferência de renda no Brasil. Essa conjuntura é marcada pelo

aumento de programas por iniciativa do Governo Federal por meio de gestão

descentralizada para os municípios brasileiros. Foram criados o Bolsa Escola, o

Bolsa Alimentação, dentre outros. Vale ressaltar, também, a expansão de

programas, como o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) e Benefício

de Prestação Continuada (BPC), ambos instituídos em 1996.

E, finalmente, houve quinto momento que se deu com a eleição do presidente

Lula a partir do ano de 2003. Para os autores, o momento foi marcado por

mudanças quantitativas, porém tendo maior ênfase na fase qualitativa das ações de

política de transferência de renda com abrangência nacional. Vale destaque para

algumas mudanças importantes ocorridas nesse momento histórico para

compreender o direcionamento dos referidos programas no momento atual.

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Assim, são aspectos importantes de mudanças para destaque: 1. anúncio da

prioridade do Governo para enfrentamento da pobreza e da fome com a estratégia

do Programa Fome Zero; 2. iniciação de projeto de unificação de programas

nacionais de transferência de renda – Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Vale-Gás,

Cartão-Alimentação (julho de 2003) para constituição de um novo programa

(Outubro/2003), o denominado Programa Bolsa Família; 3. com base no Projeto-Lei

apresentado anteriormente pelo senador Eduardo Suplicy, foi sancionada pelo

presidente Lula em janeiro de 2004 a Lei de Renda Básica de Cidadania para

implementação a partir de 2005; 4. Criação, em janeiro de 2004, do Ministério de

Desenvolvimento Social e Combate à Fome, que representou o momento e esforço

de unificação de dois ministérios existentes anteriormente, o da Assistência Social e

o Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome.

Em suma, Silva, Yazbek e Giovanni (2012) apresentam três vieses teóricos

de discussão dos Programas de Transferência de Renda. O primeiro viés advém de

uma perspectiva denominada pelos autores de liberal-neoliberal. Essa perspectiva

considera os PTRs como mecanismos compensatórios e residuais eficientes no

combate à pobreza e ao desemprego e enquanto uma política substitutiva dos

programas e serviços sociais e como mecanismos simplificador dos Sistemas de

Proteção Social.

A segunda perspectiva progressista/distributiva considera os PTRs como

mecanismos de distribuição de riqueza socialmente produzida e política de

complementação aos serviços sociais básicos existentes e voltados para a inclusão

social. E, como terceira, a perspectiva em que os PTRs são vistos como

mecanismos provisórios de destinados a permitir a inserção social e profissional de

cidadãos em dada conjuntura com problemáticas como pobreza e desemprego44.

A seguir aprofundaremos a análise do formato da transferência de renda no

caso brasileiro. E, dessa forma, poder-se-á entender em qual desses vieses se

encontra a inserção do PBF.

44 Perspectiva referenciada pelos autores como a tese defendida pela professora Dra. Maria Ozanira Silva e Silva, registrada na obra: SILVA, Maria Ozanira da. Renda Mínima e reestruturação produtiva. São Paulo: Cortez, 1997.

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4.2 Programa de Bolsa Família: sobre características da institucionalização da pobreza pela renda e das regras de acesso

O campo das políticas de combate à pobreza constitui suas próprias regras

de classificação dos “seus” pobres. Dessa forma não basta se autointitular pobre

para estar nos programas e serviços. Essa conceitualização é dada, na maioria das

vezes, pelo Estado em suas orientações técnicas e normativas. Assim, a condição

de pobreza deve ser provada e comprovada pelos sujeitos que se consideram

pobre. Por sua vez, cabe ao Estado “julgar” se o indivíduo está apto ou não a ser

“pobre” conforme os critérios por ele constituídos.

Nesse preâmbulo, existe o papel primordial dos técnicos burocratas de rua

que atendem diretamente os pobres. Esses técnicos têm a função de avaliar se os

indícios apresentados pelos sujeitos são verdadeiros, coerentes ou não ao esperado

para estar na condição de pobreza estabelecida pelo Estado. O desafio nesse caso

é o aprimoramento na atuação desses profissionais para que os processos

individualizados de subjetividade não interfiram na sua função de avaliação dos

casos. Com tal intuito é que são construídas burocracias meritocráticas, ou seja, em

que se busque a total imparcialidade nos “julgamentos”.

No caso do Bolsa Família não é diferente. Como um programa voltado ao

combate à pobreza no rol das políticas públicas brasileiras, algumas regras foram

criadas e partilhadas com objetivo de classificar e ter foco no público “pobre”, que

necessitam da assistência do Estado.

O Programa Bolsa Família foi criado por Medida Provisória45 no primeiro

mandato do presidente Luis Inácio Lula da Silva, no ano de 2003, e tornou-se lei

federal no ano de 200446. O PBF representou a unificação dos programas de

transferência de renda condicionada até então existentes. Tais programas, em

primeiro momento, foram implementados em alguns municípios e estados e, em

seguida, passaram a ser implementados nacionalmente pelo então governo de FHC.

Porém eram executados em categorias diferenciadas. O Bolsa Família unificou os

45

Medida Provisória nº 132, de 20 de outubro de 2003. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/Antigas_2003/132.htm>. Acesso em: 5 maio 2015.

46

Lei nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.836.htm>. Acesso em: 5 maio 2015.

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seguintes programas: Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Cartão-Alimentação e

Auxílio-Gás.

Em números, o Programa Bolsa Família possui em maio de 2015, 13.732.79

famílias inseridas, que recebem transferência de renda. O valor médio do repasse foi

de R$ 167,95. O valor total transferido pelo governo federal em benefícios às

famílias atendidas alcançou R$ 2.306.454.411,00 ao mês.

Art. 18. O Programa Bolsa Família atenderá às famílias em situação de pobreza e extrema pobreza, caracterizadas pela renda familiar mensal per capita de até R$ 154,00 (cento e cinquenta e quatro reais) e R$ 77,00 (setenta e sete reais), respectivamente. (Decreto nº 8.232 de 30 de abril de 2014).

Para que as famílias se candidatem a receber a transferência de renda, elas

têm de estar cadastradas em um banco de dados, o Cadastro Único para Programas

Sociais do Governo Federal (CadÚnico). Esse banco de informações é o

instrumento que caracteriza uma das principais classificações para identificação das

famílias pobres, denominadas também de famílias de baixa renda.

São consideradas famílias de baixa renda pelas regras de cadastro no

CadÚnico aquelas que têm renda mensal de até meio salário mínimo por pessoa ou

renda mensal total de até três salários mínimos. Famílias com renda superior a meio

salário mínimo também podem ser cadastradas, desde que sua inserção esteja

vinculada à inclusão e/ou permanência em programas sociais implementados pelo

poder público nas três esferas do governo.

O Cadastro Único é coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e

Combate à Fome (MDS), deve ser obrigatoriamente utilizado para seleção de

usuários de programas sociais do governo federal, como o Bolsa Família. Trata-se

de um banco de dados que acumula informações sobre a realidade socioeconômica

das famílias inseridas, trazendo dados sobre a formação do núcleo familiar, tais

como características do domicílio, formas de acesso a serviços públicos essenciais

e, informações sobre cada membro da família. Assim, o governo federal47 formula e

47

O CadÚnico é regulamentado pelas seguintes normativas: pelo Decreto nº 6.135/2007, pelas Portarias nº 177, de 16 de junho de 2011, e nº 274, de 10 de outubro de 2011, e Instruções Normativas nº 1 e nº 2, de 26 de agosto de 2011, e as Instruções Normativas nº 3 e nº 4, de 14 de outubro de 2011. Ressalta-se também que atualmente pode ser considerado o maior banco de dados para consultas das famílias consideradas pobres, em extrema pobreza e baixa renda. Devido à articulação e ao número de informações, o CadÚnico extrapolou a utilização do órgãos do governo federal, passando a ser bastante utilizado pelos governos estaduais e municipais com objetivo de

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implementa políticas específicas, que visam contribuir para a redução das

vulnerabilidades sociais das famílias atendidas nos diversos programas a partir do

conhecimento detalhado de cada família.

Para estar apto a ser inserido no programa, os sujeitos devem se “enquadrar”

em uma das duas linhas de classificação, a linha de pobreza ou a de extrema

pobreza. Pelos critérios do programa, considera-se que a família é pobre quando

ela se encontra na linha de pobreza, quando apresenta renda mensal por pessoa

entre os limites de extrema pobreza e pobreza, ou seja, uma renda mensal per

capita entre R$ 77,01 e R$ 154,00, desde que possuam crianças e/ou adolescentes

de 0 a 17 anos na sua composição.

É considerada uma família extremamente pobre ou em situação de

extrema pobreza quando a renda mensal por pessoa é menor ou igual ao limite de

extrema pobreza, ou seja, uma renda per capita mensal de até R$ 77,00. Além

desses, existem vários outros conceitos importantes na institucionalização da

pobreza. Todos constituídos na tentativa de criar parâmetros niveladores de

entendimentos e práticas de execução em todo país, com objetivo de chegar a uma

racionalidade tecnocrata na conduta de todos os atores, ou seja, das equipes

técnicas e gestores que atuam na operacionalização das ações dos programas e

serviços.

Conforme Decreto nº 6.135 de 26 de junho de 2007 (dispõe sobre o Cadastro

Único para programas sociais do governo federal) e Portaria nº 177, de 16 de junho

de 2011 (define procedimentos para a gestão do Cadastro Único para Programas

Sociais do governo federal, revoga a Portaria nº 376 de 16 de outubro de 2008), os

principais conceitos norteadores para inserção no CadÚnico e PBF são:

Família: unidade nuclear composta por uma ou mais pessoas, eventualmente

ampliada por outras que contribuam para o rendimento ou tenham suas despesas

atendidas por ela, todas moradoras de um mesmo domicílio.

Morador: a pessoa que: a) tem o domicílio como local habitual de residência

e nele reside na data da entrevista; b) embora ausente na data da entrevista, tem o

domicilio como residência habitual ou c) está internada ou abrigada em

estabelecimento de saúde, instituições de longa permanência para idosos,

obter o diagnóstico socioeconômico das famílias cadastradas, possibilitando o desenvolvimento de políticas sociais locais.

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equipamentos que prestam serviço de acolhimento, instituições de privação de

liberdade, ou em outros estabelecimentos sumulares, por um período igual ou

inferior a 12 meses, tomando como referência a data da entrevista.

Responsável pela unidade familiar (RF): um dos componentes da família e

morador do domicílio, com idade mínima de 16 anos e, preferencialmente, do sexo

feminino.

Família de baixa renda: a) aquela com renda familiar mensal per capita de

até meio salário mínimo, ou b) a que possua renda familiar de até três salários

mínimos.

Renda familiar mensal: a soma dos rendimentos brutos auferidos por todos

os membros da família, não sendo incluídos no cálculo aqueles percebidos de

programas: PETI, Programa Bolsa Família e os programas remanescentes nele

unificados, programas emergencial financeiro e outros de transferência de renda

destinados à população atingida por desastres residentes em municípios em estado

de calamidade pública ou situação de emergência, e demais programas

condicionada de renda implementados por estados, Distrito Federal e municípios.

Os conceitos decodificam a classificação dos pobres e o determina a

meritocracia do direito que deve ser verificada dentre os pobres que se apresentam

como candidatos a serem inseridos nos programas e serviços. Para estar no banco

de acesso, é necessário passar por alguns procedimentos, como o cadastramento.

Este, por sua vez, deve ser composto por: 1 identificação do público/famílias a ser

cadastrado; 2 coleta de dados previstos; 3 inclusão dos dados no sistema

informatizado de cadastramento; e 4 atualização e revalidação dos dados cadastrais

que normalmente ocorre no intervalo de dois em dois anos.

Após a identificação do perfil da família cadastrada é que se efetivará ou não

a elegibilidade para ser inserido na transferência de renda ou como também o

acesso a outros serviços. Tudo vai depender do perfil de renda e composição

familiar. No caso da transferência de valores, denominada na estrutura do PBF de

“benefício”, ou seja, o valor em dinheiro repassado pelo programa às famílias. O

benefício é composto por vários fatores que combinados irão somar o montante a

que as famílias terão direito a receber. Os valores repassados consideram o número

de integrantes, o total de crianças e adolescentes de até 17 anos e a existência de

gestantes de nutrizes no grupo familiar. A regulamentação do programa estabelece

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os seguintes tipos de benefícios com seus respectivos valores, que podem ser

deferidos para as famílias:

Quadro 5: Tipos de benefícios concedidos pelo Programa Bolsa Família / maio 2015

Tipo do Benefício Valor do Repasse Pago para quem? Quantidade

Benefício Básico R$ 77,00

Famílias extremamente pobres (renda mensal por pessoa menor de até R$ 77,00) independentemente de sua composição.

1 benefício por família

Benefício Variável de 0 a 15 anos (BV)

R$ 35,00 Famílias com crianças e/ou adolescentes de até 15 anos de idade.

Até 5 por família

Benefício Variável à Gestante (BVG)

R$ 35,00

Famílias que tenham gestantes em sua composição; Pagamento em nove parcelas consecutivas, a contar da data do início do pagamento do benefício, desde que a gestação tenha sido identificada até o nono mês; A identificação da gravidez é realizada no Sistema Bolsa Família na Saúde. O Cadastro Único não permite identificar as gestantes.

Entre no limite do BV de até 5 benefícios por família

Benefício Variável Nutriz (BVN)

R$ 35,00

Famílias que tenham crianças com idade de até 6 meses em sua

composição; Pagamento em seis parcelas mensais

consecutivas, a contar da data do início do

pagamento do benefício, desde que o nascimento tenha sido informado até o sexto

mês de vida.

Entre no limite do BV de até 5 benefícios por

família

Benefício Variável Vinculado ao

Adolescente (BVJ) R$ 42,00

Famílias que tenham adolescentes de 16 e 17 anos pago até o

mês de dezembro em que o jovem completa

18 anos.

Até 2 por família

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Benefício para Superação da Extrema

Pobreza (BSP)

Calculado caso a caso até que a família em sua renda per capita

ultrapasse o valor de R$ 77,01.

Famílias que mesmo tendo os benefícios que faz jus listados acima

continuam em extrema pobreza. Passam a receber o valor que

falta para garantir que as famílias ultrapassem

o limite de renda da extrema pobreza.

(Renda mensal por pessoa de acima de R$

77,01).

1 benefício que leva em conta todos os

membros da família

Fonte: dados disponíveis em <www.mds.gov.br/bolsafamília>.

Tendo como base os critérios do CadÚnico, que estabelece o perfil de renda

para classificar o nível de pobreza das famílias cadastradas no CadÚnico, o quadro

das famílias brasileiras cadastradas que se encontram na faixa de renda prevista

para o programa seria o seguinte:

Tabela 2: Total de Famílias Cadastradas por Faixa de Renda / março 201548

Nº de

Famílias Mês

Referência

Total de famílias cadastradas 27.037.471 03/2015

Famílias cadastradas com renda per capita mensal de R$ 0,00 até R$ 77,00

13.149.251 03/2015

Famílias cadastradas com renda per capita mensal entre R$ 77,01 e 154,00

4.423.204 03/2015

Famílias cadastradas com renda per capita mensal entre R$ 154,01 e ½ salário mínimo

5.710.123 03/2015

Famílias cadastradas com renda per capita mensal acima de ½ salário mínimo

3.754.893 03/2015

Fonte: SAGI/MDS/Relatórios de Programas e Ações-informações sociodemográficas. Disponível em: <www.mds.gov.br/sagi>.

48

A estimativa de famílias de baixa renda no perfil para o CadÚnico foi calculada com base nos

dados do Censo IBGE de 2010 e em coeficientes de volatilidade de renda. O referido valor serve como referência para a quantidade de famílias que devem estar inscritas no Cadastro Único. A estimativa de famílias pobres com perfil de estar no cadastro de baixa renda foi feita a partir da combinação da metodologia de Mapas de Pobreza do IBGE, elaborados a partir do Censo Demográfico 2000, da PNAD 2006 e de outros indicadores socioeconômicos, levando em consideração a renda familiar per capita de até meio salário mínimo. (Disponível em:

<www.mds.gov.br/bolsa família>. Acesso em: 25 maio 2015.)

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Os números pelos mesmos critérios considerando pessoas cadastradas seria

o seguinte:

Tabela 3: Total por Pessoa Cadastradas por Faixa de Renda / Março 2015

Nº de pessoas Mês referência

Total de pessoas cadastradas 81.500.052 03/2015

Pessoas cadastradas com renda per capita mensal de R$ 0,00 até R$ 77,00

42.156.931

03/2015

Pessoas cadastradas com renda per capita mensal entre R$ 77,01 e 154,00

15.456.313

03/2015

Pessoas cadastradas com renda per capita mensal entre R$ 154,01 e ½ salário mínimo

17.334.556

03/2015

Pessoas cadastradas com renda per capita mensal acima de ½ salário mínimo

6.552.252

03/2015

Fonte: SAGI/MDS/Relatórios de Programas e Ações-informações sociodemográficas. Disponível em: <www.mds.gov.br/sagi>.

Como pode ser observado na tabela a seguir, das 81.500.052 pessoas

cadastradas, de acordo com a renda declarada, os índices de pobreza extrema se

encontram nas faixas etárias de crianças/adolescentes (5 a 14 anos) jovens/adultos

em idade de inserção no mercado de trabalho (20 a 39 anos), conforme dados:

Tabela 4: Total de População por Faixa Etária em Extrema Pobreza – Critérios CadÚnico / março 2015

Quantidade de Pessoas Total de pessoas cadastradas 81.500.052

0 a 4 1.953.646

5 a 14 4.533.901

15 a 17 1.173.007

18 a 19 605.638

20 a 39 4.496.268

40 a 59 2.681.884

65 ou mais 822.853

Total 16.267.197

Fonte: SAGI/MDS/Relatórios de Programas e Ações-informações sociodemográficas. Disponível em: <www.mds.gov.br/sagi>.

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Visando diminuir o índice de pobreza nas diversas faixas etárias atendidas

pelo programa, o Bolsa Família foi pensado com três eixos de atuação. Com esse

objetivo, as normativas regulamentam os atendimentos aos pobres prevendo ações

articuladas entre os eixos por meio de rede intersetorial. Os três eixos previsto na

formação do PBF são:

o Bolsa Família possui três eixos principais: a transferência de renda promove o alívio imediato da pobreza; as condicionalidades reforçam o acesso a direitos sociais básicos nas áreas de educação, saúde e assistência social; e as ações e programas complementares objetivam o desenvolvimento das famílias, de modo que os beneficiários consigam superar a situação de vulnerabilidade

49.

Dentre os três eixos, em nossa perspectiva, a dinâmica principal do programa

se dá por meio do eixo das condicionalidades. As condicionalidades são condutas

ou deveres exigidos pelo Estado aos usuários do programa como condição de que

eles permaneçam recebendo a transferência de renda. Para isso, foi constituído

meios de controle dessas condicionalidades visando ao acompanhamento e

monitoramento das obrigações que devem ser seguidas. As exigências estão

relacionadas à obrigatoriedade de frequência nos seguintes serviços públicos: de

educação, de saúde e de assistência social, conforme o perfil e a vulnerabilidade de

cada família atendida.

O conceito institucional criado pelo órgão responsável pela gestão nacional do

programa PBF, Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, para

definir condicionalidade é:

as condicionalidades são os compromissos assumidos tanto pelas famílias beneficiárias do Bolsa Família quanto pelo poder público para ampliar o acesso dessas famílias a seus direitos sociais básicos. Por um lado, as famílias devem assumir e cumprir esses compromissos para continuar recebendo o benefício. Por outro, as condicionalidades responsabilizam o poder público pela oferta dos serviços públicos de saúde, educação e assistência social.

50

São exigidas pelo PBF as seguintes condicionalidades principais para os

usuários:

49

Disponível em: <http://www.mds.gov.br/bolsafamilia>. Acesso em: 26 maio 2015. 50

Idem.

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Na área de saúde. As famílias beneficiárias assumem o compromisso de acompanhar o cartão de vacinação e o crescimento e desenvolvimento das crianças menores de 7 anos. As mulheres na faixa de 14 a 44 anos também devem fazer o acompanhamento e, se gestantes ou nutrizes (lactantes), devem realizar o pré-natal e o acompanhamento da sua saúde e do bebê. Na educação. Todas as crianças e adolescentes entre 6 e 15 anos devem estar devidamente matriculados e com frequência escolar mensal mínima de 85% da carga horária. Já os estudantes entre 16 e 17 anos devem ter frequência de, no mínimo, 75%.

Por meio de uma logística que envolve cruzamento de banco de dados e

geração de relatórios de informações acerca da frequência e acesso aos serviços

previstos é que se avalia a permanência da família ou não no programa. Se as

regras de condicionalidade forem prescindidas, ocorre um ciclo de sanções que vão

de uma simples advertência à suspensão do valor da renda transferida repassado a

família. Porém, existe um longo e gradativo caminho até que seja providenciado o

bloqueio do repasse. O objetivo do monitoramento é que a família siga no programa

e que não haja necessidade de bloquear o “benefício”.

Segundo orientação do MDS51, o poder público tem o deve de fazer o

acompanhamento gerencial para identificar os motivos do não cumprimento das

condicionalidades. Após do descumprimento da condicionalidade, é implementado

um plano de ação de acompanhamento que tem o objetivo de promover a superação

da vulnerabilidade enfrentada pela família que faz com que ela esteja em

descumprimento. São exemplos de descumprimento mais frequentes: ausência dos

filhos em idade escolar da escola, frequência escolar abaixo da porcentagem

exigida, não atualização do cartão de vacinação52 etc.

O descumprimento gera repercussões no repasse financeiro da transferência

de renda, porém de maneira gradativa. Esgotadas todas as chances da família voltar

a cumprir regularmente as condicionalidades, o benefício pode ser bloqueado ou

cancelado como pode ser visto nas possibilidades a seguir, após ser verificado o

descumprimento:

51

É orientado pelas equipes do PBF que as famílias que encontra dificuldades em cumprir as condicionalidades devem, além de buscar orientações com o gestor municipal do Bolsa Família, procurar o Centro de Referência de Assistência Social (Cras), o Centro de Referência Especializada de Assistência Social (Creas) ou a equipe de assistência social do município. Todas as informações relacionadas às condicionalidades das famílias podem ser encontradas no Sistema de Condicionalidades do Programa Bolsa Família (Sicon). 52

Vale ressaltar que o descumprimento das condicionalidades gera também a necessidade do acompanhamento da família. Esta ação é feita em articulação com a Assistência Social, por meio da equipe de Assistência Social dos equipamentos públicos, Cras e Creas. Essas equipes geralmente são compostas por assistentes sociais, psicólogos, pedagogos, advogados etc.

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Quadro 6: Efeitos gradativos para descumprimento do Programa Bolsa Família pelas Famílias

Nº Famílias BFA e BVJ Descrição dos efeitos de

condicionalidades Ação no benefício

1º Advertência

A família é notificada sobre o descumprimento da condicionalidade. Esse efeito fica registrado no histórico de descumprimento da família durante seis meses. Após esse período, se a família tiver um novo descumprimento, o efeito será uma nova advertência.

Nenhum efeito no benefício

2º Bloqueio (30 dias)

Se, no período de seis meses da última advertência, a família tiver um novo descumprimento, o efeito será o bloqueio.

O benefício é bloqueado por 30 dias, podendo ser sacado junto com a parcela do mês seguinte.

3º Suspensão (60 dias)

Se, no período de seis meses após o efeito de bloqueio, a família tiver um novo descumprimento, o efeito será a suspensão. Se a família continuar descumprindo as condicionalidades dentro do período de seis meses após a última suspensão, ela receberá novo efeito de suspensão e, assim, sucessivamente — ou seja, a suspensão será reiterada. Se a família passar seis meses sem descumprir as condicionalidades e, depois desse tempo, tiver um descumprimento, o efeito será uma nova advertência. O número de suspensões reiteradas da família será monitorado no Sistema de Condicionalidades (Sicon) e representará um indicativo de que a família está em situação de vulnerabilidade, necessitando de uma ação da Assistência Social.

O benefício é suspenso por 60 dias e não poderá ser sacado após esse período. Passados os dois meses, a família voltará a receber o benefício do PBF.

4º Cancelamento

O benefício somente poderá ser cancelado se a família: Estiver na fase da suspensão (período de seis meses após o último efeito de suspensão); For acompanhada pela Assistência Social, com registro no Sicon; e Continuar descumprindo as condicionalidades por um período maior do que 12 meses, a contar da data em que houver a coincidência de registro dos dois itens anteriores.

Cancelamento do benefício

Fonte: Disponível em: <www.mds.gov.br/bolsafamilia>.

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Sob a perspectiva de Pereira (2014), as políticas sociais contemporâneas

vivem um momento de ortodoxia política e moral constituindo uma ética da

proteção social básica. Essa ética estaria baseada numa autorresponsabilização dos

indivíduos atendidos nas políticas e traz consigo alguns objetivos concretos que,

Visa a esvaziar o Estado de seu papel de garante de direitos e de provedor de bens e serviços públicos. Ou melhor, construíram-se ortodoxias baseadas na velha doutrina do darwinismo social, concebida no século 20, segundo a qual os pobres devem autossatisfazer as suas necessidades; ou, então, pagarem pelos auxílios públicos recebidos. (PEREIRA, 2014, p. 20).

Uma das consequências do momento de ortodoxia moralista nas políticas

sociais vividos atualmente, (especuladores do capital em processo de

enriquecimento em detrimento da negação da proteção social pública aos

trabalhadores) segundo Pereira (2014), seria vincular a assistência pública ao mérito

individual em oposição ao direito social; o uso da política social como um

instrumento de ativação compulsória do pobre para qualquer atividade laboral, por

meio de condicionalidades ou contrapartidas que, na maioria das vezes, revelam-se

autoritárias e punitivas.

Sob o olhar do governo federal, a estratégia utilizada pelas condicionalidades

não têm caráter punitivo e sim de acesso a direitos sociais. Antes se trata de uma

oportunidade de o Estado acompanhar os casos em que as famílias em maior

situação de vulnerabilidade não conseguem superar a sua condição social que a faz

distanciar de serviços básicos como educação, saúde e assistência social.

Pode-se avaliar que a conduta condicionada exigida tem teor coercitivo para

que as famílias experimentem um processo de “cidadanização”. Isso significa incutir

um habitus nas famílias e sujeitos, quando este não existente. Com isso, busca-se

fortalecer o conhecimento sobre e a inserção nos serviços públicos básicos

(educação, saúde e assistência social etc.). O ponto de vista da maioria dos técnicos

entrevistados nessa pesquisa é o de que as condicionalidades fomentam um

processo de cidadania antes não experimentado pelas maiorias das famílias.

Percebe-se no papel do Estado um via de mão dupla. Por um lado, existe o

objetivo de que os sujeitos tenham uma reparação socioeconômica por meio de

contrapartida e, assim, justificar a permanência no programa de combate à pobreza.

Por outro, propor condicionalidades que consigam contribuir com índices de

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diminuição da defasagem escolar e analfabetismo nas classes mais vulneráveis;

elevar o número de acompanhamento de pré-natal; manter cartão de vacinação

atualizado; faz com que o Estado trabalhe em necessidades concretas apresentadas

pelas famílias e dessa forma melhorando os índices sociais por meio de uma

agenda preventiva.

Rego e Pinzani (2013) acreditam que o modelo do PBF está ligado com uma

ideia de responsabilidade social pela qual os indivíduos darão algo em contrapartida

à comunidade. Para os autores, a contrapartida tem caráter republicano e contribui

para o processo de formação de cidadãos e indivíduos responsáveis perante sua

comunidade política.

Distribuir renda monetária aos indivíduos visa precisamente emancipá-los não somente da miséria ou da pobreza, mas também de um ambiente social que pode ser causa ulterior de sofrimento. (REGO; PINZANI, 2013, p. 71).

Concordamos que, além da condição do acesso cidadão aos “pobres”

atendidos no programa, devem ser consideradas questões estruturais, às quais as

famílias continuarão a ter contato mesmo inclusas no programa.

Draibe (2014) afirma que desde o final dos anos 1970 o desemprego de longa

duração, a pobreza e a desigualdade voltaram à agenda social sob diferentes

formas e intensidades, e desafiam desde então os sistemas nacionais de bem-estar

social. Para a autora, os programas de inserção e reinserção produtiva e os

programas de renda mínima fazem parte das respostas institucionais a tais desafios,

tal como o exemplo utilizado no Brasil com os programas de renda mínima sob o

modelo de conditional cash transfer programes ou os programas de transferência de

renda com condicionalidades.

Para Draibe, as alternativas institucionais programáticas têm sido variadas e

insuficientes, muito embora tenham quase sempre deslocado o eixo da proteção

social em direção a programas e serviços focalizados e a formas assistencialistas,

nem sempre condizentes com cidadania social.

Concordamos com os argumentos da autora, de que as iniciativas de

transferência de renda são caminhos iniciais meio a problemáticas estruturais que

envolvem a discussão sobre um modelo de estado de bem-estar social. Por mais

que se trate de um cenário distante de uma perspectiva universalidade das políticas

sociais, a implantação de ações como o Programa Bolsa Família representa um

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mínimo que aponta na direção de assegurar alguma perspectiva de direito aos

considerados pobres diante a ausência do referido modelo de Estado.

A opção pela focalização não é isenta, ela traz consigo grandes desafios à

implementação da política no alcance dos mais pobres. Por exemplo, a diversidade

territorial e o processo de fragmentação das ações. Esses fatores concretizam a

variação da qualidade e efetividade dos programas e serviços no momento de sua

concretização. Sob o ponto de vista do regime de bem-estar, um novo desafio,

segundo Draibe (2014), seria o sentido da introdução de regras e resultados

desiguais onde anteriormente predominava uma orientação universalista própria do

respeito à cidadania.

Jaccoud (2014), numa perspectiva relativizadora, destaca a relação positiva

que pode ser observada na agenda social brasileira na relação entre as políticas

universais e as políticas seletivas. A autora acredita que é por meio do

aperfeiçoamento contínuo dessa relação, com predomínio das políticas universais e

apoio das demais políticas, é que a pauta da redução das desigualdades poderá se

consolidar. Assim, essa combinação não apenas tem garantido a oferta de atenções

primarias, mas também vem permitindo avançar em termos de resultados,

favorecendo a igualdade, a desconcentração de renda e de oportunidades, além de

apoiar a dinamização de um modelo inclusivo de desenvolvimento. A articulação

entre o teor universal e seletivo das intervenções dependerá,

assim, tanto dos instrumentos e metas especificas para garantir o acesso e a resolutividade da ação pública junto aos públicos marcados por mais expressivas desigualdades, quanto da continua qualificação das ofertas públicas universais. Assim, o prosseguimento na evolução dos indicadores sociais neste que ainda e um dos mais desiguais países do mundo sugere a operação do princípio da universalidade sem desprezar ações e políticas voltadas à equidade. (JACCOUD, 2014, p. 637).

Como reflete Sposati (2010), a diferença entre ricos e pobres ocorre em

decorrência da imensa desigualdade social existente na sociedade brasileira. A

pesquisa do centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV) nos anos

iniciais do programa, entre 2001 a 2008, mostraram que a renda per capita dos 10%

mais ricos cresceu 11,2% e a dos 10% mais pobres, 72%. Para a autora, cabe aos

programas como o PBF o fortalecimento das capacidades das famílias mais

vulneráveis.

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Para além dos imensos desafios que a experiência de combate à pobreza por

meio da política de proteção social no Estado brasileiro apresenta, a transferência

de renda se configura socialmente como o instrumento de maior alcance ao público

considerado pobre. É notório que, nesse contexto, as políticas sociais engendram

um arcabouço de autovalorização do capital (MEZÁROS apud PEREIRA, 2014)

quando a concretização do pleno emprego e a universalização do direito social na

sociedade cedem espaço ao interesse do mercado cada vez mais privativo exige um

elevado grau de competitividade e responsabilização dos indivíduos.

Se o valor da sociedade do capital gira em torno do poder aquisitivo para

obter o passaporte de pertencimento a determinado meio social, esse processo não

ocorre de maneira diferenciada com aqueles que se encontram em condição social

de pobreza. Na conjuntura dessa proposta é que estão alicerçados os acessos à

cidadania pelos eixos estruturantes do PBF para os pobres, de forma que os pobres

experimentem a sensação de estarem inseridos socialmente, inicialmente, por meio

da obtenção de uma renda regular. Na prática cotidiana dos usuários do programa

Bolsa Família, ter uma renda se constitui numa indiscutível diferença na qualidade

de vida e identidade dos considerados pobres diante os seus iguais.

Pereira (2014) acredita que a perspectiva e as mudanças propostas no âmbito

da proteção social culminam na utilização das políticas sociais nos interesses das

mudanças econômicas de determinados setores que especulam o capital como

forma de gerar lucro e riqueza. A autora denomina esse movimento de inversão

econômica privada.

Segundo esse ponto de vista, as políticas sociais (e demais ações

decorrentes desta) têm colaborado para “trabalhar” o capital humano de maneira

que os sujeitos venham a atender os interesses do mercado. Em outras palavras,

para que eles sejam mais competitivos, laboriosos e eficientes; ampliem o consumo

e o livre mercado. Com isso se estabelece a tendência de diminuir os custos do

Estado com proteção social, ou com atividades consideradas economicamente não

lucrativas. Tudo isso compõe, para a pesquisadora, um panorama de mudanças de

cunho predominantemente econômico.

Todas essas reflexões, independentemente de que viés defendam, remetem

à discussão de uma nova perspectiva no tratamento dado a institucionalização da

pobreza que teve início na década de 1980. Naquele momento as mobilizações para

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a redemocratização e uma nova Constituição para o país exigiam os anseios

populares diante do agravamento das problemáticas sociais, dentre elas a pobreza.

O objetivo consistiu em inserir o tema da pobreza e/ou os considerados

pobres numa agenda de acessos a direitos e não mais numa agenda

estigmatizadora de favores e caridade aos “vagabundos”, “imprestáveis” etc. Isso

preconizava diretrizes para uma ruptura importante com o estigma voltado aos

pobres. Criou-se um contexto político favorável à discussão de políticas estatais e

universalização de direitos que culminou em ações como a transferência de renda

como um início de combate à pobreza.

Assim, as ações tiveram continuidade após a implementação do Programa

Bolsa Família no Governo Lula. A gestão seguinte, apoiada politicamente pelo

referido presidente, faz o lançamento de um plano com o extraordinário desafio de

erradicar a extrema pobreza no país, considerando também todos aqueles que,

mesmo com a transferência de renda do PBF, não conseguiram sair da linha de

pobreza. Esse Plano foi denominado de Plano Brasil Sem Miséria.

4.3 Plano Brasil Sem Miséria (BSM): perspectiva do tratamento aos pobres

O governo Lula deixou como marca de seu combate à pobreza o Programa

Bolsa Família. Após sua gestão, o governo seguinte continua dando prioridade à

mesma temática. A presidenta Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT),

eleita para suceder Lula (primeiro mandato de 2011-2014)53 adota como slogan de

seu governo “país rico é país sem pobreza”. Assim, a bandeira de seu governo será

a erradicação da extrema pobreza no país.

No ano de 2011, é lançado pela presidenta o Plano Brasil Sem Miséria (BSM)

por meio do Decreto nº 7.492. O governo federal assume compromisso de erradicar

a extrema pobreza no Brasil até o final do ano de 2014, que configura o final do

mandato presidencial. Para tal objetivo, foi instituída, por meio do Decreto nº 7.493,

de 2 de junho de 2011, mesma data do Decreto nº 7.492, que criou o Plano Brasil

Sem Miséria, a Secretaria Extraordinária para Superação da Extrema Pobreza

(Sesep), ligada ao Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome.

53

Nas eleições presidenciais ocorridas no Brasil no ano de 2014, a presidenta Dilma Rousseff é reeleita para um segundo mandato, período de 2015-2018. O slogan em seu segundo mandato será “Brasil, pátria educadora” cuja proposta é ter a educação como prioridade do seu governo.

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O foco na continuidade do combate à pobreza com o BSM veio com a

avaliação do governo federal de que, mesmo com os avanços obtidos com a

transferência de renda proporcionada pelo PBF durante o período de 2003 a 2010,

ainda persistisse um número elevado de brasileiros que viviam em extrema pobreza

(linha de extrema pobreza renda mensal per capita de até R$ 70,00). Segundo

consta em dados do MDS, eram mais de 1 milhão de pessoas54 que não se

encontravam no banco de dados para programas sociais do governo federal, no

CadÚnico.

Com base nesse diagnóstico, o governo federal constituiu um plano de

articulação ampla, mobilizando parcerias nacionais entre os três níveis de gestão

com estados, municípios, sociedade civil e as mais diversas áreas. Constitui-se uma

verdadeira força-tarefa intersetorial, tecnicamente denominada de busca ativa, com

o objetivo de alcançar o “núcleo duro da pobreza”. Nas palavras da ministra Tereza

Campelo, trata-se da

parcela para a qual era mais difícil garantir mobilidade social e acesso à cidadania. Nem sempre as barreiras que impediam a melhoria da qualidade de vida eram visíveis ou transponíveis por meios tradicionais de enfrentamento a pobreza. Teríamos que nos dedicar a pobreza mais resistente, e isto exigiria um esforço redobrado do Estado brasileiro. O desafio de um Plano que trazia na sua insígnia o Fim da Miséria era ainda maior dados os resultados da trajetória de avanço das políticas sociais iniciada em 2003 (CAMPELO et MELLO, 2014, p. 34).

54

Segundo pesquisa em documentos do MDS, a base das informações do número de pessoas que se encontravam em situação de extrema pobreza foi construído a partir de informações sobre a pobreza brasileira contidas em três referencias: o Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os dados do Cadastro Único para Programas Sociais do MDS e as ações setoriais apresentadas pelo conjunto dos ministérios. O Censo 2010 apresentava um diagnóstico recente sobre o perfil dos 16,2 milhões de extremamente pobres distribuídos por todo o país. Segundo seus dados, a extrema pobreza era majoritariamente negra (71%), concentrada na Região Nordeste (60%) e composta por um percentual significativo de crianças e adolescentes de 0 a 14 anos (40%). Homens e mulheres estavam distribuídos de forma semelhante, embora as mulheres representassem um pouco mais da metade (51%). Além disso, a distribuição entre rural e urbano também apresentava percentuais próximos: 47% no meio rural e 53% no urbano. Ao ser observada a incidência da pobreza, a situação do campo chamava a atenção, porque, de cada quatro brasileiros que viviam no meio rural, um era extremamente pobre. Isso significava que, enquanto 5% da população urbana podiam ser caracterizados como extremamente pobres, 25% da população do campo encontravam-se nessa situação. Dessa forma, de posse do diagnostico oferecido pelo Censo 2010, cada um dos ministérios que fez parte do esforço de formulação do Plano trouxe para compor a proposta inicial do governo federal ações de sua competência, e foi construído o Plano.

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O depoimento da presidenta Dilma Rousseff no ano final de seu primeiro

mandato (2014) sobre o Plano Brasil Sem Miséria deixa claros os objetivos que

motivaram a meta da erradicação da extrema pobreza,

o compromisso que assumi em meu primeiro mandato foi o de mobilizar todas as forças e os instrumentos para a superação da miséria no país, tendo como sólido alicerce os avanços já conquistados. Nascia assim o Plano Brasil Sem Miséria, que criou, renovou, ampliou e integrou vários programas sociais, articulando ações do governo federal com estados e municípios. Por entender a pobreza como um fenômeno que vai além da renda, o Plano Brasil Sem Miséria foi concebido e implementado em uma perspectiva multidimensional, com estratégias articuladas entre si e diferenciadas para cada contexto, como o campo e a cidade, e para cada público, como os adultos e as crianças, para citar apenas alguns exemplos. O Plano criou oportunidades de inclusão para jovens, mulheres, negros, população em situação de rua, pessoas com deficiência, povos e comunidades tradicionais e vários outros grupos vulneráveis. (MDS, 2014, p. 17).

Como poder ser lido no depoimento acima, a pobreza no BSM remete a um

determinado segmento da população considerada pobre, porém uma pobreza

invisibilizada. Segundo Campelo (2014), a maioria dos extremamente pobres

apresentava endereço, local e cara. Eram eles nordestinos, negros e crianças. Com

o objetivo de alcançar esse público, o Estado aponta ter sido necessário partir de

cinco pontos que demarcaram um novo momento nas diretrizes de enfrentamento55

da pobreza.

As cinco “grandes inflexões” consideradas para o Plano Brasil Sem Miséria,

enumeradas pelo MDS foram, a saber: a primeira delas, o estabelecimento de uma

linha de extrema pobreza (per capita de até R$ 70,00 mensais), que passou a

organizar a priorização que o Estado faria para incluir e apoiar a população

extremamente pobre. A renda foi avaliada como um forte indicador da pobreza como

referência para eleger o público, mas a ação do Brasil Sem Miséria foi organizada

sob várias outras dimensões, em especial ampliando o acesso a bens, serviços e

oportunidades.

A segunda inflexão esteve relacionada à meta de universalização das

políticas voltadas para a pobreza, como no caso do Bolsa Família, que já havia

chegado à grande maioria do público pobre e extremamente pobre, mas que ainda

não tinha alcançado a todos que tinham perfil e direito de estar no programa. A

55

Durante o Plano Brasil Sem Miséria, a denominação “combate à pobreza” não é mais tão utilizada nos discursos e textos oficiais. Passa a ser proferida a denominação de “enfrentamento da pobreza”.

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terceira foi adotar a compreensão de que os mais pobres, exatamente pelo nível de

exclusão, abandono, desinformação e isolamento, eram os que tinham menos

condições de exigir seu direito a ter direitos.

Assim, para o Estado não bastava informar sobre as possibilidades de acesso

ao Plano, passou a ser responsabilidade do Estado ir aonde a população pobre

estivesse. Esse ato de deslocamento foi considerado pelo Estado um novo conceito

de abordagem da pobreza naquele momento. Teve início, assim, a Busca Ativa.

Dessa forma, o Estado chamou para si a responsabilidade de ir até o “pobre”,

localizar, cadastrar e incluir as famílias no conjunto de ações que seriam ofertadas.

A quarta mudança apontada na constituição do Plano foi a constatação de

que muitos beneficiários, mesmo recebendo Bolsa Família, continuavam com renda

familiar abaixo da linha de extrema pobreza. Com isso, no ano de 2012 foi

estabelecido um novo desenho para o repasse do PBF, passou-se a complementar

a renda das famílias de forma a garantir que todos os sujeitos inseridos no programa

(considerando a renda familiar mais o Bolsa Família) ficassem acima da linha de

extrema pobreza.

E, finalmente, a quinta mudança apontada nos rumos do combate à pobreza

por meio da transferência de renda e demais ações: foi criada uma estratégia

voltada para ampliar a inclusão produtiva dos adultos em situação de pobreza e

extrema pobreza, baseada na criação de oportunidades de emprego e

empreendedorismo, que teve no fortalecimento do Pronatec56 a maior ação.

Nesse novo cenário de “enfrentamento” à pobreza, o Programa Bolsa Família

passa a ser um dos instrumentos utilizados pelo Plano Brasil Sem Miséria57.

Resumidamente, ao BSM foi atribuído o papel de articular todas as ações de

combate à pobreza até então.

56

O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) é uma ação do BSM do

eixo Inclusão Produtiva. É uma ação em parceria com o Ministério da Educação (MEC). Oferta cursos de formação inicial e continuada voltados para a inserção no mercado de trabalho, com duração mínima de 160 horas. Os cursos são ofertados em instituições de ensino técnico e tecnológico, como as unidades do Senac, Senai, Sesc, Sesi, Senat ou os Institutos Federais. A oferta é gratuita e os beneficiários recebem alimentação, transporte e todos os materiais escolares. Para participar, o jovem deve ter idade mínima de 16 anos e estar cadastrado ou em processo de cadastramento no CadÚnico. O candidato não precisa ser beneficiário do Programa Bolsa Família ou do Benefício de Prestação Continuada (BPC). Adolescentes de 16 e 17 anos de idade não poderão se matricular em cursos de qualificação relacionados a atividades econômicas vedadas a menores de 18 anos, de acordo com o Decreto nº 6.481/2008, de 12 de junho de 2008. O Pronatec não oferece bolsa aos participantes. 57

Informação disponível em: <http://www.mds.gov.br/bolsafamilia>. Acesso em: 29 maio 2015.

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Abaixo será apresentado um quadro comparativo entre a estrutura de

“combate” à pobreza do PBF e o “enfrentamento” da pobreza pelo BSM.

Quadro 7: PBF e BSM: semelhanças e diferenças, eixos e objetivos

PROGRAMA BOLSA FAMILIA PLANO BRASIL SEM MISÉRIA

EIXOS58

EIXOS (Decreto nº 7.492 de 2/7/2011)

Eixo 1. Transferência de renda: promove o alívio imediato da pobreza;

Eixo 1. Garantia de renda: para alívio imediato da situação de extrema pobreza;

Eixo 2. Condicionalidades: reforça o acesso a direitos sociais básicos nas áreas de educação, saúde e assistência social;

Eixo 2. Acesso a serviços públicos: para melhorar as condições de educação, saúde e cidadania das famílias;

Eixo 3. Ações e programas complementares: objetiva o desenvolvimento das famílias, de modo que os beneficiários consigam superar a situação de vulnerabilidade.

Eixo 3. Inclusão produtiva: para aumentar as capacidades e as oportunidades de trabalho e geração de renda entre as famílias mais pobres do campo e das cidades.

OBJETIVOS (Decreto nº 5.209 de 17/9/2004) OBJETIVOS (Decreto nº 7.492 de 2/7/2011)

Objetivo 1. Promover o acesso à rede de serviços públicos, em especial de saúde, educação e assistência social;

Objetivo 1. Elevar a renda família per capita da população em situação de extrema pobreza;

Objetivo 2. Combater a fome e promover a segurança alimentar e nutricional;

Objetivo 2. Ampliar o acesso da população em situação de extrema pobreza aos serviços públicos;

Objetivo 3. Estimular a emancipação sustentada das famílias que vivem em situação de pobreza e extrema pobreza;

Objetivo 3. Propiciar o acesso da população em situação de extrema pobreza a oportunidade de ocupação e renda por meio de inclusão produtiva.

Objetivo 4. Combater a pobreza;

Objetivo 5. Promover a intersetorialidade, a complementaridade e a sinergia das ações sociais do Poder Público.

Fonte: elaboração da pesquisadora a partir de pesquisa bibliográfica.

Fazendo uma análise do quadro 7, percebe-se que os objetivos e eixos do

BSM reforçam a continuidade aos eixos já previstos na transferência de renda do

PBF. A intenção parece que se deu no sentido de investir de maneira significativa

58

Os eixos do PBF estão dispostos nas orientações técnicas do programa, e não na Lei e no Decreto. As orientação podem ser acessadas no site do programa: <http://www.mds.gov.br/bolsafamilia>.

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nas múltiplas formas que a pobreza persistia em se apresenta para as famílias,

mesmo aquelas que já estão inclusas no programa Bolsa Família.

Assim, a força-tarefa de busca aos considerados pobres, pactuada para

execução do Brasil Sem Miséria, tem uma amplitude de ações para que nenhuma

família cadastrada no CadÚnico apresente uma renda mensal per capita abaixo de

R$ 70,00 (corte de renda para a linda de extrema pobreza). Além da insuficiência de

renda, a execução do programa apresenta o foco em insegurança alimentar e

nutricional, baixa escolaridade, na pouca qualificação profissional, fragilidade de

inserção no mundo do trabalho, acesso precário à água, à energia elétrica, à saúde

e à moradia são algumas delas.

No quadro 8 encontram-se registrados os programas cada eixo de ação do

BSM.

Quadro 8: Programas e Serviços que compõem as ações do BSM

Eixo Programas e Serviços

Eixo 1. Garantia de renda . Programa Bolsa Família . BPC

Eixo 2. Acesso a Serviços

. Brasil Alfabetizado

. Brasil Sorridente

. Olhar Brasil

. Programa Mais Educação

. Brasil Carinhoso – Ampliação do Acesso à Creche

. Brasil Carinhoso – Primeira Infância

Eixo 3. Inclusão Produtiva Urbana

. Catadores de material reciclável

. Institucional

. Mega Feirão de Emprego

. Programa Crescer

. PRONATEC

. Programa Mulheres Mil

Eixo 3. Inclusão Produtiva Rural

. Água para Todos

. Assistência Técnica e Extensão Rural

. Bolsa Verde

. Fomento

. Luz para Todos

. PAA

. Sementes

Fonte: Elaboração da pesquisadora a partir de pesquisa bibliográfica.

Pelos dados disponibilizados pelo Ministério, no ano de 2013, os brasileiros

do PBF que ainda se encontravam em situação de miséria transpuseram a linha da

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extrema pobreza. Em números, totalizaram 22 milhões de pessoas que haviam

superado tal condição desde o lançamento do Plano. Com esse número, é

considerado pelo governo federal que o objetivo do BSM, qual seja o alcance da

erradicação da extrema da pobreza, foi atingido. Segundo o governo federal, foi o

fim da miséria, do ponto de vista da renda, no universo do Bolsa Família.

A articulação federativa na pactuação de ações intersetoriais foi uma das

marcas forte no desenvolvimento do BSM. O plano celebrou Pactos Regionais entre

o governo federal e os 27 gestores governamentais com objetivo de selar o

compromisso e a responsabilidades para cada um, de forma coordenada na atuação

dos eixos previstos, principalmente de Garantia de Renda, Inclusão Produtiva e

Acesso a Serviços. A celebração desses compromissos em caráter regional trouxe

consigo a ideia de que a pobreza se manifesta de diferentes maneiras em todo o

Brasil e, para combatê-la, é necessário ter ações de enfrentamento que sejam

adequadas às realidades locais.

Uma das novidades ocorridas nos estados brasileiros após assinatura do

Pacto Regional de superação da extrema pobreza foi a construção dos seus planos

de superação da extrema pobreza localmente, tendo como referência o BSM. Dentre

os 26 estados e o Distrito Federal, 20 lançaram planos para a superação da pobreza

e extrema pobreza. Pelos dados pesquisados, mesmos os estados que não

formalizaram a constituição do plano local contaram com outras estratégias para

superar a pobreza.

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Quadro 9: Planos estaduais de superação da extrema pobreza (até ago./2014)

Estado Planos

REGIÃO NORTE

Acre Plano Acre Sem Miséria

Amapá Programa Família Cidadã

Rondônia Plano Futuro

Tocantins Plano Tocantins Sem Miséria

REGIÃO NORDESTE

Piauí Programa Mais Viver

Bahia Programa Vida Melhor

Paraíba Plano Paraíba Sem Miséria

Maranhão Programa Viva Oportunidades

Rio Grande do Norte Programa RN Mais Justo

Sergipe Programa Sergipe Mais Justo

REGIÃO CENTRO-OESTE

Goiás Programa Renda Cidadã

Mato Grosso Plano Mato Grosso sem Miséria

Distrito Federal Plano DF Sem Miséria

REGIÃO SUDESTE

Minas Gerais Programa Travessia

São Paulo Programa São Paulo Solidário

Espírito Santo Programa Incluir

Rio de Janeiro Plano Rio Sem Miséria

REGIÃO SUL

Santa Catarina Plano Santa Catarina Sem Miséria

Rio Grande do Sul Programa RS Mais Igual

Paraná Programa Família Paranaense

Fonte: Readaptado pela pesquisadora a partir de quadro disponibilizado Sesep/MDS.

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Antes do lançamento do Plano Brasil Sem Miséria, alguns estados criaram

seus próprios programas de transferência de renda. Com a constituição do BSM,

esses estados passaram a funcionar na lógica de complementação da diferença do

hiato de extrema pobreza dentre as famílias atendidas, ou seja, da diferença de

renda necessária para superar a linha da de extrema pobreza estabelecida por

esses estados. A estratégia funciona assim: o estado complementa o valor pago

pela União entre a renda mensal per capita da família calculada após o

recebimento do benefício do Bolsa Família e o piso que o estado definiu como

sua própria linha de extrema pobreza.

Em muitos casos, foi estabelecida uma linha de extrema pobreza estadual ou

distrital mais alta que os R$ 70,00 previstos na linha do Brasil Sem Miséria inicial

(reajustada para R$ 77,00 em junho de 2014). Em outros casos, optou-se pela

mesma linha do Plano. Tendo como referência o mês de agosto de 2014, sete

estados mantinham complementações ao Bolsa Família. Os estados são: Espírito

Santo, Mato Grosso, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, e

o Distrito Federal.

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Quadro10: Estados que complementam de renda do Bolsa Família (Agosto 2014)

Voltando ao objeto de pesquisa aqui proposto, o Plano Brasil Sem Miséria

não trouxe muitas novidades para a atuação dos burocratas técnicos de nível de rua

que trabalham com a pobreza. As ações continuaram eminentemente as mesmas.

As mudanças preconizadas com a nova diretriz federal de combater a pobreza

dizem mais respeito à caracterização da prioridade de perfil de pobreza que se

pretendia atingir do que à maneira a qual eles deveriam ser atendidos.

Com isso, as instruções técnicas de campo continuaram as mesmas, exigindo

um pouco mais nas articulações das redes locais na busca dos extremamente

pobres invisibilizados pela dificuldade de serem localizados ou visibilizados para as

políticas sociais.

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O capítulo IV fez a inserção na discussão do campo empírico da pesquisa. As

principais contribuições dessa parte do documento foram apresentar a inserção do

Brasil na principal estratégia utilizada pelo governo no combate à pobreza, sendo

esta estratégia a transferência de renda por meio do Programa Bolsa Família.

Contextualizamos a emergência dos programas de transferência de renda na

América Latina como uma tendência das políticas sociais no início da década de

1990, pautada em experiências anteriores de outros países. No caso brasileiro, fez-

se a opção por estruturar uma experiência de transferência de renda condicionada a

contrapartidas das famílias, relacionadas à saúde e à educação, com a intervenção

do acompanhamento da assistência social nos casos necessários.

Avaliamos que esse é um dos pontos positivos do desenho do programa por

induzir a superação de índices de desigualdade social que culminam geralmente

com o maior agravamento da situação de pobreza das famílias, tais como as taxas

de crianças fora da escola, o não acompanhamento das gestantes no pré-natal e

cuidado aos recém-nascidos. Nesse sentido, as condicionalidades apontam

resultados estruturais na vida dos sujeitos e ganhos para o país.

A crítica à estrutura apresentada da transferência de renda (PBF) no Brasil

pode ser feita à concretização dos eixos de ações pensados para o programa. Não

pondo em dúvida a relevância, mas pelo desafio da concretização do eixo de ações

e programas complementares. Isso devido às disparidades municipais presentes nas

regiões brasileiras e, mais grave, pela precariedade de funcionamento e do alcance

dos equipamentos estatais disponíveis.

Vale ressaltar que os dados apresentados neste capítulo reforçam a ideia de

completude e continuidade entre as ações do PBF e do Plano Brasil Sem Miséria. A

crítica que fazemos nesse caso vem do risco de sobreposições da agenda de

institucionalização do combate à pobreza. No quadro 7 (PBF e BSM: semelhanças e

diferenças eixos e objetivos), verifica-se a semelhança apresentada nas metas.

Ficam os desafios dos níveis de gestão local, os estados e municípios, de ter clareza

da estruturação de cada eixo do programa praticado.

Para concluir as observações sobre o capítulo, ratificamos que a experiência

de institucionalização da pobreza instrumentalizada pelo programa de transferência

de renda Bolsa Família traz um marco na história das intervenções voltadas ao

público pobre no país. Não apenas por ser o maior programa em número de

usuários “pobres” atendidos, mas, dentre muitos outros fatores, destacamos a

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popularidade e o impacto qualitativo em relação à melhoria de qualidade de vida dos

considerados “pobres”. É quase certo que, ao indagar alguém sobre as ações para

os “pobres” no contexto brasileiro, uma das referências mencionadas seja o

“Programa Bolsa Família”.

Descartadas para o objetivo desta pesquisa foram as causas, as polêmicas

políticas e as diversas formas da popularidade do programa. Vale ainda reforçar a

tese de que os programas de transferência de renda constroem uma dimensão

qualitativa e simbólica das relações sociais. E, que elas são constituídas e resultam

dos atores que compõem a interação no campo do combate à pobreza. E,

principalmente, que esse aspecto é invisibilizado aos olhos do Estado, como

também pela maioria dos estudos que tratam de políticas públicas. Apontamos este

fato como um dos limites a ser superado na experiência da política de combate à

pobreza no caso brasileiro.

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Capítulo V – O campo de pesquisa

Neste capítulo, serão apresentados os resultados do trabalho de campo. A

pesquisa teve como objeto os atores sociais conceituados como burocratas técnicos

de nível de rua (LIPSKY, 2010) que trabalham, compõem, executam e concretizam

as ações de programas e serviços de combate à pobreza em nível de rua. São eles:

gestores e técnicos estaduais e municipais. Fez-se tal recorte por esses profissionais

serem servidores públicos legitimados como representantes do Estado,

responsáveis por atuar cotidianamente no atendimento e acompanhamento direto

dos usuários considerados pobres nos programas de transferência de renda e de

assistência social nos diversos estados e municípios brasileiros.

Apesar de ponto focal na efetivação do combate à pobreza, estudos sob o

ponto de vista desses sujeitos representam uma abordagem peculiar e pouco

comum na literatura sobre os pobres e as políticas sociais.

O olhar dos técnicos burocratas de rua representa cotidianamente o Estado

no combate à pobreza. São profissionais chaves na execução das políticas sociais

que visam à ruptura do ciclo de pobreza tal como previsto na intervenção

institucionalizada no atendimento ao pobre. A prática desses sujeitos articulada à

sua função pública é a ponta do iceberg, a forma como o Estado chega, de fato, ou

como tem se concretizado junto aos pobres o combate à pobreza na experiência das

políticas sociais.

Nesse sentido, a pergunta que direcionou a pesquisa foi: qual a concepção

dos técnicos burocratas de nível de rua que trabalham diretamente no atendimento e

acompanhamento dos pobres sobre os programas em que atuam (programas de

transferência de renda e ações de assistência social) e sobre os pobres atendidos?

Com base nesse recorte analítico, procurou-se entender as concepções e as

categorias construídas presentes na prática da interação social burocratas de rua. E,

consequentemente, em que medida o trabalho desses técnicos está configurado em

um movimento de reprodução ou de ruptura com estigmas históricos no tratamento

dos pobres.

A pesquisa com os técnicos demonstrou ser um ângulo analítico diferenciado

para compreender, sob o ponto de vista das ciências sociais, a relação estabelecida

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entre os pobres e o Estado brasileiro. Contribui, também, para pensar um paradoxo:

se as políticas de combate à pobreza atualmente se constituem de fato e de direito

em um marco na promoção do acesso a direitos para os pobres, o que significaria,

assim, uma ruptura com estigmas e preconceitos. Ou, se, por outro lado, tal relação

é uma reprodução social de uma velha novidade no que diz respeito ao trato

institucionalizado das ações do Estado no atendimento aos usuários de políticas de

transferência de renda e assistência social.

Diz-se uma “velha” novidade, por se compreender que a discussão sobre

pobreza como problemática social, em regra, esteve arraigada em processos de

desqualificações social dos sujeitos pobres. Com isso, simbólica e culturalmente,

passou-se a edificar preconceitos e estigmas de que os pobres representam o “erro

social”, aquilo que não deu certo socialmente. Em outras palavras, são os sujeitos

“imprestáveis” que não conseguiram progredir e prover sua própria existência, nem

ser útil às tecnologias do mundo do trabalho, consequentemente não conseguindo

se adaptar às “regras” de inclusão social etc.

Nesse sentido, a superação da ideia do pobre como “coitado” ou “necessitado

da caridade” é desenhada por um movimento de reestruturação do papel do Estado

diante dos novos cenários econômicos e sociais. A proposta institucionalização da

pobreza com a emergência do Estado de Direito vem na perspectiva de um caminho

na relação Estado versus pobres, que surge com ações afirmativas no arcabouço de

políticas sociais. Por sua vez, sendo estas garantidoras de direitos constitucionais

previstos a todos os cidadãos que necessitarem da proteção social do Estado em

algum momento.

O debate trazido nesta pesquisa sobre o papel dos atores sociais

representantes do Estado que compõe as políticas de combate à pobreza analisa

um novo momento em que se busca um atendimento ao pobre pautado no direito e

não em estigmas. Dessa forma, cabe saber quais significados acerca dos pobres

estão sendo escritos nessa relação e se eles emancipam a condição de cidadão dos

pobres tal como previsto nas normativas.

Em nossa perspectiva, essas questões mostram a complexidade do tema da

pobreza que, mesmo recorrente, não passa despercebido pela academia. A

desigualdade social é um dos maiores desafios debatidos hoje em países de todo o

mundo e a garantia de direitos assistenciais aos mais pobres é uma bandeira

mundial. Elevar os pobres ao status de cidadãos é, antes de tudo, uma exigência

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democrática condicionada do fazer político. Significa estar incluso no topo das

discussões das grandes agendas econômicas e políticas mundiais.

5.1 O contato com o tema

O interesse pela temática das políticas públicas de combate à pobreza surgiu

a partir do percurso de experiência profissional da pesquisadora no serviço público.

O início da motivação e contato efetivo com a temática veio durante um estágio na

Secretaria de Ação Social do Estado do Ceará, no final dos anos de 1990. Na

oportunidade, a atuação se deu em um equipamento social de atendimento às

comunidades de alto índice de vulnerabilidade social e pobreza criado ainda no

formato de assistência social preconizado no governo dos militares, o Centro

Comunitário Luiza Távora.

O equipamento ficava localizado em um dos bairros mais violentos e pobres

na periferia de Fortaleza. O Centro Comunitário tinha o papel de prestar múltiplos

atendimentos, tais como: assistencial social, geração de emprego e renda,

capacitação profissional, lazer, orientações e encaminhamentos diversos,

distribuição de benefícios como cestas básicas, vale transporte etc. O Centro

Comunitário era procurado pelos moradores como referência para todos os

problemas, sem exceção. Tal como um suporte “existencial” para todas as

dificuldades enfrentadas pelas famílias. O trabalho realizado contemplava grupos de

todas as faixas etárias.

A rotina de trabalho no estágio permitiu ter contato com o complexo universo

em que se constrói a relação social entre os considerados pobres e o Estado. Como

ponte dessa interlocução, estavam as políticas sociais desenvolvidas no

equipamento. Minha função como estagiária consistiu em acompanhar a execução

dos programas e serviços financiados pelos governo federal e estadual para

atendimento aos pobres. A partir daquele momento, a minha percepção sobre a

pobreza e sobre os pobres ganharia novos olhares.

Dentre as experiências marcantes do trabalho, destacou-se o

acompanhamento ao atendimento individualizado feito às famílias. As motivações

que levavam os sujeitos a procurar o atendimento individual com a assistente social

eram diversas.

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Curiosamente, a maioria dos atendimentos mediava-se pelo verbo “pedir”, “eu

estou aqui para pedir”. Sobressaía o pedido por cesta básica. Os pedidos eram em

números bastante elevados e, para otimizar e atender o máximo de famílias, foi

criado pela profissional do serviço social um processo de racionalização com regras

para seleção das famílias que teriam prioridade para receber as cestas.

Uma segunda maior demanda era de pais e/ou responsáveis que se

deslocavam até o equipamento para “pedir” a inserção de filhos menores,

geralmente envolvidos com drogas e tráfico, em alguma atividade que os “tirassem

da rua”. Nesse caso, procuravam por um posto de trabalho ou curso

profissionalizante para os filhos, o que nem sempre era possível, devido à

indisponibilidade dos cursos e de encaminhamentos para postos de trabalho.

E, finalmente, outra demanda recorrente se referia ao processo de inserção

no mercado de trabalho dos responsáveis pelas famílias. Para os casos que

envolviam a inserção no mundo do trabalho quase não havia resolução. A atitude

que se tomava era informar sobre outros possíveis postos em que o sujeito pobre

pudesse se cadastrar e esperar vagas. Essas negações institucionalizadas eram

causa de muitas frustrações àqueles que procuravam o Centro Comunitário.

Todo esse contexto deixou claro que a presença de um equipamento ou de

profissionais representando o Estado em determinado território de áreas de alto

índice de pobreza representava para os sujeitos uma porta de resolução para toda

adversidade de problemas que enfrentavam, sejam eles econômicos, sociais,

culturais etc. Isso devido à escassez de redes de equipamentos estatais nas áreas

de alta vulnerabilidade, restando ao equipamento localizado no território receber

todas as demandas.

Diante da vulnerabilidade ou quase ausência de acesso a elementos básicos

para sobrevivência, como alimentação, saúde, educação, ter a presença do Estado

ao “lado de casa” representa uma referência que traz um pouco de esperança de

conseguir algo para aliviar a condição social de pobreza vivida.

Para além das dificuldades e precariedade do equipamento estatal em que

atuei, presenciar os atendimentos ocorridos significou entender como o considerado

pobre se representava diante o Estado para buscar aquilo de que precisava. Pela

limitação da “maturidade acadêmica”, não pude, naquele momento, ter dedicação

àquele objeto de pesquisa que inquietava: o fato de, em nenhum momento durante o

estágio, presenciar um sujeito se apresentando como cidadão, mas sim como

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“pedinte” diante do Estado. Por isso o uso incisivo do verbo “pedir” utilizado pelos

considerados pobre durante os atendimentos pelas assistentes sociais.

Essa experiência estaria latente durante toda a minha trajetória, e retornaria

com todo vigor, muitos anos após, quando me deparei com o desafio profissional, da

experiência de trabalho na gestão do governo federal.

No ano de 2009, o passaporte para um salto de conhecimento sobre as

estruturas do Estado na concepção, implementação e execução das políticas de

combate à pobreza veio com a minha aprovação numa seleção pública para prestar

consultoria técnica ao Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome

(MDS) do governo federal. A partir do ano 2000 até o presente momento, o MDS é o

Ministério responsável por coordenar duas das principais ações consideradas de

combate à pobreza no Brasil, são elas: a Política Nacional de Assistência Social e

Gestão das Ações de Transferência de Renda, o Programa Bolsa Família, e o

Benefício de Prestação Continuada (BPC).

Na oportunidade, trabalhei na Secretaria Nacional de Assistência Social

(SNAS), na Coordenação-Geral de Serviços Socioassistenciais às Famílias

(GGSSF). A CGSSF, por sua vez, tem a responsabilidade de coordenar, orientar e

monitorar nacionalmente a implantação dos Centros de Referência de Assistência

Social (Cras) em todos os municípios brasileiros.

Os Cras são equipamentos estatais de execução da política de assistência

social nos municípios. Faz parte das normativas de implantação dos Cras que eles

estejam localizados nas áreas de alto índice de vulnerabilidade social e risco, de

forma a facilitar o acesso dos considerados mais pobres ao equipamento. O público

atendido, em sua grande maioria, é o mesmo dos programas de transferência de

renda, benefícios socioassistenciais e outros que procuram por assistência do

Estado.

Por meio desses momentos, meu percurso acadêmico ganhou contornos

claros. Inquietava-me compreender a complexidade do debate sobre a pobreza, mas

por um ângulo diferenciado, o dos sujeitos que nela habitam, ou seja, os atores

sociais que estruturam a dinâmica interna dos programas de combate à pobreza no

Brasil.

A atuação no MDS permitiu ampliar o olhar analítico de um extremo a outro.

Vislumbrar a outra face da política de combate à pobreza, o lado de lá. O espaço de

“institucionalização da pobreza” que pensa, concebe e decide sobre a intervenção

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na vida de milhares de sujeitos e famílias. Dessa forma, oportunidades diversas

vieram, como a participação em espaços de deliberação das diretrizes nacionais,

reuniões e encontros com gestores e equipes técnicas de todo o país, conferências

nacionais, câmaras técnicas temáticas e atendimento presencial a prefeitos,

secretários, gestores e lideranças locais de todas as regiões brasileiras.

A prática profissional ratificou a complexidade do campo de pesquisa. Foi a

partir de então que os atores sociais que exercem o papel de representante das

instituições públicas executando serviço público se destacaram como um locus

privilegiado de observação da pesquisa, fecundo pelas reproduções que esses

atores têm sobre os pobres e a pobreza. São percepções mescladas entre uma

racionalidade adquirida na prática conduzida no dia a dia e por julgamentos

valorativos dela decorrente.

No aparato de proteção social de Estado que se propõe a um atendimento

aos pobres por meio da cidadania e do direito é instigante ainda subsistir relações e

tratamentos balizados por valores subjetivos e percepções individualizadas dos

pobres e da pobreza. Esse nos pareceu um caminho investigativo importante por

contribuir para compreender a estruturação das concepções sobre a pobreza e

sobre o pobre na experiência atual de combate à pobreza no Brasil.

5.2 Percurso metodológico

Duas diretrizes guiam a organização metodológica de investigação de campo

aqui adotada: a realização de uma análise qualitativa sobre a atuação de atores

estratégicos no combate à pobreza no Brasil, que são Street Level-Bureaucrats

(LIPSKY, 2010), os burocratas de nível de rua (ou ainda os “técnicos que atuam na

ponta”). E, concomitantemente, observar como as ressignificações e tensões

envolvendo a prática cotidiana, o que eles pensam sobre o conceito de pobreza e do

ser pobre, contribuem ou não para a reprodução ou ruptura de um ciclo de

preconceitos e estigmas nos programas e serviços estatais de atendimento ao

“pobre”.

Como recorte da pesquisa, consideram-se dois tipos de burocratas de rua. O

primeiro, os técnicos burocratas de nível de rua, que são os profissionais que

realizam atividades operacionais no atendimento direto e ou compõem equipes de

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intervenção junto aos usuários considerados pobres de programas e serviços de

combate à pobreza. São a esses técnicos que cabe desempenhar atividades de

atendimento, cadastramento ou acompanhamento individual ou familiar dos pobres.

O segundo tipo são os gestores burocratas de rua que ocupam cargo de

chefia nas funções burocráticas de gestão das ações do combate à pobreza nos

municípios, nos estados e no nível federal, tais como coordenadores, diretores e

secretários municipais. Os gestores, mesmo que de maneira mais rara e indireta,

mantêm contato com os usuários considerados pobres.

Não foram encontrados, durante o período da pesquisa, grande número de

trabalhos acadêmicos que tratem do conceito de burocratas de rua nas políticas

sociais de combate à pobreza. Os estudos encontrados tratam de abordagens

específicas, por exemplo: a contribuição dos assistentes sociais no programa Bolsa

Família; a atuação dos agentes de saúde na política de assistência social e outros.

Em campo, eles são identificados por suas diferenciadas categorias profissionais ou

pela política em que atuam. A forma de atuação bastante fragmentada desses

profissionais pode justificar tal ausência. As investigações nessa área costumam

realizar análises sobre os beneficiários dos programas.

Além de técnicos que trabalham nos municípios, fizeram parte da seleção

para as entrevistas técnicos e gestores das equipes federais e estaduais. Essas

esferas têm como responsabilidade na gestão da política pública o planejamento,

monitoramento, avaliação e controle dos programas e serviços. Mesmo não tendo

contato regular e direto com os “pobres”, eles acompanham, de maneira regular, as

ações dos técnicos e gestores municipais.

Considerando esse contexto, buscamos uma instrumentalização

metodológica que pudesse falar também sobre a caracterização do perfil dos

entrevistados. O esforço foi apreender as percepções de técnicos e gestores

imersas no processo de racionalização da rotina de trabalho, como também a

subjetividade de atuar como profissionais frente à interação com os usuários

considerados pobres e em uma estratégia ampla de combate à pobreza.

Acreditamos que, por meio das observações da pesquisa de campo

diretamente com técnicos e gestores, pode-se distanciar das tendências de

trabalhos científicos que dizem mais de quem fala do que de quem se fala, num

mecanismo que Sarti (2005) chama de projetivo, de ciências sociais que em suas

diversas imagens dos pobres trabalha em cima de uma identificação por contraste,

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fazendo do pobre um outro. Compreender a estrutura e a operacionalização do

conceito de pobreza é tratar suas ressignificações e implicações nas interações

sociais presentes nas políticas de combate à pobreza.

Vislumbrando tal perspectiva, dois momentos fizeram parte do trabalho. O

primeiro, uma pesquisa documental abordando as diferenças e interfaces da

proposta de combate à pobreza do governo brasileiro entre a instituição do

Programa Bolsa Família, no governo Lula, e o Plano Brasil Sem Miséria, no primeiro

mandato da presidenta Dilma Rousseff, apresentado no capítulo IV. O segundo

momento, uma pesquisa qualitativa de campo com os burocratas de nível de rua

(LIPSKY, 2010), técnicos e gestores estaduais e municipais responsáveis por pensar

e executar a ação das políticas de combate à pobreza.

A problematização que guiou a pesquisa foi compreender como técnicos de

nível de rua do Programa Bolsa Família e ações de Assistência Social elaboram

suas representações sobre o pobre e a pobreza. Interessou observar em que

medida a prática cotidiana desses atores sociais é um indicador para verificar a

hipótese de que a execução das políticas sociais voltadas aos sujeitos pobres não

têm conseguido romper com um passado de estigma social em relação à condição

social de pobreza e pobres, construído histórica e socialmente.

Trilhando esse objetivo, optou-se pelo desenvolvimento de um campo

representativo da diversidade das cinco regiões brasileiras, dessa forma podendo

realizar uma análise das perspectivas se elas guardam alguma especificidade de

olhares conforme características das regiões em que atuam.

Num primeiro momento, esse caminho não poderia ser percorrido devido ao

custo deslocamento da pesquisa. Restava uma alternativa: realizar as entrevistas

nos eventos nacionais que ocorrem em Brasília. Nesta opção algumas perdas para o

campo ocorreriam, por exemplo, os longos intervalos entre um evento e outro. Outro

limite seria a impossibilidade de entrevistar os técnicos de nível de rua que atendem

cotidianamente os pobres. Isso porque na maior parte as representações em Brasília

são feitas pelos secretários e coordenadores, e não por técnicos. O cenário mudou

quando surgiu a oportunidade de integrar um trabalho pelo Ministério de

Desenvolvimento Social (MDS) que culminou num planejamento de viagens a todas

as regiões brasileiras durante o ano de 2014. Dessa forma, a perspectiva de incluir

na pesquisar as entrevistas com técnicos localmente foi possível.

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Diante do novo cenário, passamos a delimitar os critérios metodológicos para

compor a seleção do campo. Os critérios utilizados foram os seguintes: 1. as

entrevistas conterem representação de técnicos das cinco regiões brasileiras; 2. de

cada região brasileira ter pelo menos dois estados59 representados nas entrevistas;

3. contemplar na seleção de campo a classificação por porte dos municípios. A

amostra final para análise contou com entrevistas realizadas com representação de

técnicos e gestores do Programa Bolsa Família e Assistência Social de todas

regiões do país.

Após a aplicação desses critérios, o campo de pesquisa ficou assim

representado: Região Norte: Pará; Região Nordeste: Bahia e Ceará; Região Centro-

Oeste: Distrito Federal60; Região Sudeste: Rio de Janeiro, São Paulo e Minas

Gerais; Região Sul: Paraná e Santa Catarina. Ao todo, foram realizadas 14

(quatorze) entrevistas, sendo 13 (treze) com gestores e técnicos trabalhadores

responsáveis por coordenar e/ou executar ações nos estados e ou municípios no

combate à pobreza (especificamente dos programas e serviços da assistência social

e transferência de renda – Programa Bolsa Família) e 2 (duas) entrevistas com

gestores federais.

O desenvolvimento da pesquisa também levou a outros campos de

observação do objeto, como o que categorizamos analiticamente de eventos

coletivos representativos. São encontros de nível nacional promovidos pelo

Ministério de Desenvolvimento Social, que podem ter objetivos diversos. Eles podem

ter caráter deliberativo, consultivo, de pactuação e ou de capacitação. Neles se

encontram representados os estados brasileiros por meio das equipes técnicas e

secretários municipais, gestores e técnicos estaduais, a depender do objetivo do

encontro. A oportunidade foi utilizada na realização das entrevistas e para a da

observação participante em campo61.

59

A Região Norte se destaca como aquela em que não conseguimos manter o critério de seleção de dois estados. A justificativa é o alto custo de deslocamento até a região, como também porque nem sempre nos eventos em Brasília a região é representada pelos seus diversos estados. 60

No Centro-Oeste, por sua configuração política diferenciada, optamos por realizar as duas entrevistas em cidades diferentes do Distrito Federal, sendo contempladas, assim, Brasília e a cidade satélite de Sobradinho. 61

“A técnica de observação participante se realiza através do contato direto do pesquisador com o fenômeno observado para obter informações sobre a realidade dos atores sociais em seus próprios contextos. O observador, enquanto parte do contexto de observações estabelece uma relação face a face com os observados. Nesse processo, ele, ao mesmo tempo, pode modificar e ser modificado

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A riqueza analítica dos eventos coletivos deliberativos de gestores e técnicos

de combate à pobreza está no fato de reunir, no mesmo espaço, técnicos e gestores

dos três níveis federativos – União, estados e municípios. Em regra, a discussão

nesses eventos fica sob a coordenação do MDS e trata dos rumos da execução das

principais ações de combate à pobreza. Resulta dos encontros a constituição dos

parâmetros institucionais e conceituais que dão diretrizes a gestão de programas e

serviços nos estados e municípios.

A metodologia empregada para obtenção dos dados de campo teve

abordagem qualitativa, com utilização do instrumental de entrevistas

semiestruturadas com roteiro aberto. Buscou-se explorar eixos como nas

entrevistas: a qualificação dos técnicos e gestores entrevistados; a trajetória

profissional que os levaram ao serviço público; campo de atuação profissional e

atividades desenvolvidas; conhecimento e concepção sobre os programas e/ou

serviços que acompanham; concepção sobre as políticas de combate à pobreza no

Brasil atualmente; concepção sobre os pobres que atendem; e, finalmente a

concepção que cada um tem sobre a pobreza.

Durante as viagens, as entrevistas foram realizadas no expediente de

trabalho dos técnicos nos equipamentos em que atuam, o que oportunizou uma

observação do equipamento onde as atividades são desenvolvidas. Mesmo que em

curto espaço de tempo, tornou-se um momento relevante da pesquisa por propiciar

o contato com a rotina de trabalho dos técnicos localmente.

O esforço metodológico priorizou, além das entrevistas, o olhar do esforço

técnico da observação participante, reforçou a maximização do microssocial como

instrumento de investigação. Assim, os resultados apresentados neste trabalho

perpassam aspectos simbólicos e culturais peculiares ao território de cada estado e

região. O mesmo rigor ocorreu nos momentos de contato e entrevistas com os

demais atores nos eventos nacionais.

Um dos critérios para compor o campo foi a classificação dos municípios por

porte. Esta é uma metodologia utilizada pelo MDS para planejar as suas ações de

intervenção. A classificação por porte de municípios apresenta o recorte por número

de habitantes. É uma ferramenta que, na gestão federal, tem objetivo de unificar

parâmetros e conduzir processos de organização para implantação, monitoramento

pelo contexto. A importância dessa técnica reside no fato de podermos captar uma variedade de situações ou fenômenos que não são obtidos por meio de perguntas[...]”.(MINAYO, 1993).

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de programas e serviços nos municípios. Assim, para cada porte se espera um nível

de organização. Este critério foi adotado pela Política Nacional de Assistência Social

(PNAS/2004), reforçada na Norma Básica do Sistema Único da mesma política. Ela

também é aplicada também na gestão do Programa Bolsa Família.

Quadro 11: Porte de Municípios PNAS (2005)/MDS

Porte de classificação dos Municípios

Número de habitantes

Pequeno Porte I PPI Com população até 20.000 habitantes

Pequeno Porte II PPII Com população entre 20.001 a 50.000 habitantes

Médio Porte MP Com população entre 50.001 a 100.000 habitantes

Grande Porte GP Com população entre 100.001 a 900.000 habitantes

Metrópoles Com população superior a 900.000 habitantes

Fonte: PNAS/2005.

O cofinanciamento federal para as ações da proteção básica, que inclui a

assistência social, considera o número Cras (Centros de Referência da Assistência

Social) implantados conforme o porte do município. Outra exigência é o número de

técnicos disponibilizados para prestar atendimento e acompanhamento aos

considerados em vulnerabilidade social e risco, dentre estes os considerados

pobres.

Nas ações da assistência social para cada porte de município, estão previstos

as seguintes condições como forma mínima de organização para atendimento aos

usuários.

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Quadro 12: Classificação de municípios por porte

Porte de classificação

dos municípios

Número de habitantes

Número de Cras previsto

Equipe técnica esperada

Número de famílias

referenciadas

Pequeno Porte I-PPI

até 20.000 habitantes

1 Cras para até 2.500 famílias

referenciadas

2 técnicos de nível superior, sendo um profissional assistente social e outro preferencialmente psicólogo. 2 técnicos de nível médio

Até 2.500 famílias

Pequeno Porte II- PPII

Com população de

20.001 a 50.000

habitantes

1 Cras para até 3.500 famílias

referenciadas

3 técnicos de nível superior, sendo dois profissionais assistentes sociais e preferencialmente um psicólogo. 3 técnicos nível médio

Até 3.500 famílias

Médio Porte-MP

Com população de

50.001 a 100.000

habitantes

2 Cras para até 5.000 famílias

referenciadas

4 técnicos de nível superior, sendo dois profissionais assistentes sociais, um psicólogo e um profissional que compõe o Suas. 4 técnicos de nível médio

A cada 5.000 famílias

Grande Porte-GP

Com população de

100.001 a 900.000

habitantes

4 Cras para até 5.000 famílias

referenciadas

4 técnicos de nível superior, sendo dois profissionais assistentes sociais, um psicólogo e um profissional que compõe o Suas. 4 técnicos de nível médio

A cada 5.000

famílias

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|Metrópoles

com população superior a 900.000

habitantes

8 Cras para até 5.000 famílias

referenciadas

4 técnicos de nível superior,

sendo dois profissionais assistentes sociais, um

psicólogo e um profissional que compõe o Suas.

4 técnicos de nível médio

A cada 5.000

famílias

Fonte: PNAS/2005.

Para além das orientações normativas, o campo demonstra uma relação

intrínseca entre assistência social e transferência de renda. Porém, essa articulação

é um dos pontos nevrálgicos existentes na prática dos técnicos burocratas de rua,

como veremos mais adiante.

A maioria dos profissionais entrevistados desempenha suas funções na

organização institucional supracitada, sejam os atendimentos de assistência sejam

os do PBF. No caso do Bolsa Família, diferentemente dos serviços e programas da

assistência social, não há legislação específica regulamentando o número mínimo

de técnicos ou em qual equipamento devem ser desenvolvidas as ações do

programa. Tal decisão é um ato discricionário de responsabilidade do gestor

municipal. Por esse motivo, em muitos casos, os técnicos de nível de rua dos Cras

exercem, além das ações de competência prevista na assistência social, as ações

do Programa Bolsa Família.

Nos municípios visitados, principalmente os de pequeno porte, devido à

escassez de mão de obra, foi comum gestores otimizarem as equipes técnicas já

efetivas para realizarem as ações do Bolsa Família. Nem todos os municípios

possuem uma equipe técnica específica para atendimento dos usuários do Bolsa

Família. Geralmente, os atendimentos são realizados no Cras pelos técnicos que

trabalham na assistência social.

Sobre as regras exigidas para implantação do PBF, o Decreto nº 5.209, de 17

de setembro de 2004, que regulamenta a Lei do PBF, preconiza dois critérios para

adesão dos estados e municípios ao Programa Bolsa Família: 1 existência formal e

o pleno funcionamento de instância de controle social na respectiva esfera

federativa, na forma definida no art. 29; e (incluído pelo Decreto nº 7.332, de 2010);

2 indicação de gestor municipal do Programa Bolsa Família e, no caso dos estados

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e do Distrito Federal, do coordenador do programa (incluído pelo Decreto nº 7.332,

de 2010), não existindo, assim, nenhuma referência à obrigatoriedade de equipe

técnica específica de atendimento apenas aos considerados “pobres” pelo Bolsa

Família.

A tendência de atendimento unificado pelas equipes técnicas aos pobres

retrata uma das tensões encontradas na prática dos burocratas de nível de rua.

Apesar de estar prevista nas normativas a articulação das ações nas entrevistas

com os gestores e técnicos entrevistados, não haver equipe específica para cada

ação (atendimento aos usuários do Programa Bolsa Família) foi apontado como

causa de sobrecarga de trabalho para as equipes que desenvolvem outras ações,

devido ser a grande demanda recebida nos postos de atendimento.

Com esse dado, percebemos o desafio da institucionalização na prática

ocorrer de maneira articulada resguardando a característica de cada uma das

políticas, sem sobreposições. Essa dificuldade foi um aspecto comum na gestão das

ações de combate à pobreza, assistência social e transferência de renda. A tensão

da articulação se encontra nos extremos: ou não existe uma articulação satisfatória

das ações, tal como previsto nas normativas orientadoras, ou há sobreposição de

uma ação sobre outra.

Essa observação é importante, pois a dificuldade acima relatada é um dos

elementos que compõem a construção social que os técnicos burocratas de nível de

rua têm de seu trabalhado e de suas responsabilidades relacionadas ao atendimento

aos pobres. Existe uma tendência entre os técnicos de qualificar as ações num nível

de hierarquia diferenciado. Os técnicos de nível de rua que atuam na assistência

social teriam “simbolicamente” uma obrigação profissional de estar à disposição das

atividades gerenciadas pelos técnicos e gestores do Programa Bolsa Família,

ficando num patamar inferior e de submissão a essas ações.

Do ponto de vista metodológico, a dinâmica de organização do trabalho para

o atendimento dos considerados pobres encontrada nos municípios (a mesma

equipe responsável por atender Bolsa Família e Assistência Social) facilitou a

entrevista com os técnicos e gestores. Isso porque os profissionais entrevistados

trabalham e atendem ambos os públicos, tanto da assistência social quanto de

transferência de renda.

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5.3 Delimitação do locus do objeto de estudo

Na delimitação do campo de pesquisa, cabe a demarcação metodológica do

“locus” de atuação dos técnicos burocratas de rua meio à organização pensada para

o combate à pobreza. Isso se faz relevante na temática discutida, para que

possamos analisar as tensões, os conflitos e os dilemas do aparato institucional em

que os técnicos atuam cotidianamente no atendimento aos pobres. A forma como se

constituem as disputas nesses espaços institucionais retrata nada mais do que a

estrutura da política que o Estado denomina de ações governamentais de combate à

pobreza.

Ao fazermos a opção por apresentar essa delimitação metodológica, situamos

e contextualizamos a realidade que insere os profissionais entrevistados e, dessa

forma, podemos ter maior clareza ao analisar de onde vem a fala de quem nos diz

algo sobre a pobreza, sobre as suas percepções e sua prática profissional.

O locus de atendimento ao pobre nas políticas públicas brasileiras de

combate à pobreza é normatizado com a previsão de rede de ações intersetoriais

interligadas. Porém, o desafio encontrado na prática é a sua característica de

segmentação. Como consequência, a gestão dos programas e serviços nem sempre

ratificam o percurso normatizado das ações racionais-legais pensadas no modelo

burocrático da eficiência gerencial proposta.

Faz parte do cotidiano dos técnicos burocratas de rua lidar com conflitos

relacionados à velada disputa de delegação de responsabilidades entre os entes

federados no que diz respeito ao trabalho com os sujeitos pobres usuários de

programas e serviços. Faz parte do cotidiano que a busca pela proteção integral do

sujeito em condição social de pobreza gere uma sobreposição de entendimentos e

compreensões entre as três gestões: federal, estadual e municipal.

Considerando o modelo de responsabilização federativo brasileiro, pode-se

ser problematizada a seguinte questão: a quem pertence o pobre? Como está

construída a gestão da pobreza no Brasil hoje? E como essas questões inferem na

prática cotidiana de gestores e técnicos burocratas de rua que operacionalizam as

ações de combate à pobreza?

A Constituição de 1988, em seu art. 18, diz que a organização político-

administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os estados, o

Distrito Federal e os municípios. Todos são autônomos nos termos da Constituição.

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163

Assim, os estados regem-se por suas Constituições e Leis, observados os princípios

da Constituição Federal vigente. Os municípios e o Distrito Federal regem-se por

suas respectivas Leis Orgânicas, de forma que atendam aos princípios

estabelecidos na Carta Magna.

Como aponta Abrúcio (2010) a Constituição traz três grandes marcos, em se

tratando do Federalismo. O primeiro, a democratização do Estado com o

fortalecimento do controle externo da administração pública, como o papel conferido

ao Ministério Público. O segundo marco, a descentralização, que, segundo o autor,

rompeu com a centralização política, financeira e administrativa e abriu a

oportunidade de maior participação dos cidadãos, com inovações no campo da

gestão pública.

Um terceiro e último elemento apontado por Abrúcio é a reforma do serviço

civil responsável pelo processo de profissionalização da burocracia, que trouxe,

dentre outras mudanças, a seleção por meritocracia. Meio a essa discussão, em

1986 foi criada pelo Poder Executivo a Escola Nacional de Administração Pública

(Enap), com objetivo de capacitar os processos burocráticos no nível de gestão

federal do governo.

Em seu trabalho, Abrúcio (2005) aponta que a descentralização na

redemocratização de 1988 não esteve acompanhada por um plano

intergovernamental de coordenação capaz de estimular as mudanças propostas.

Com isso, na relação dos estados e municípios ainda prevalecia ranços da velha

cooptação das elites locais. O autor argumenta que ocorreu uma considerável

indefinição no papel dos estados federados e a forma que estes se relacionariam

com os outros níveis de governo.

Todo esse movimento arregimentou na opinião de Abrúcio uma conformação

de um federalismo compartimentalizado, ou seja, cada nível de governo procurava

encontrar o seu papel específico e não havia incentivos para o compartilhamento de

tarefas e a atuação consorciada. Esse tipo de federalismo seria mais perverso no

âmbito das políticas públicas, decorrendo disso, nas palavras do autor, um jogo de

empurra entre as esferas de governo (2005, p. 49).

Nesse cenário, as mudanças ocorridas, para o autor, vieram com o governo

de FHC que trouxe avanços no sentido de superar as limitações do federalismo

compartimentalizado.

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A Era FHC teve um papel importante na mudança de alguns padrões federativos construídos ao longo da redemocratização. Em especial, teve grande êxito no ataque ao modelo predatório vinculado ao estadualismo, reduzindo as formas de repasse de custos financeiros entre os entes e colocando fortes limites à irresponsabilidade fiscal de governadores e prefeitos. Destaque deve ser dado também para outros quatro elementos positivos: o reforço do controle social vinculado à descentralização; a adoção de políticas de coordenação intergovernamental nas políticas de saúde (com o PAB) e de educação (com o Fundef); criação de programas nacionais de transferência direta de renda, com importantes impactos redistributivos e, em menor medida, montou programas de avaliação dos gastos públicos e dos resultados das políticas, fornecendo um feedback essencial à União para coordenar a descentralização. (ABRÚCIO, 2005, p. 49).

O governo Lula, pós-FHC, tenta consolidar e unificar um modelo de

articulação e combate à pobreza que perdura no modelo federativo brasileiro

atualmente. Nesse sentido, algumas atitudes são consideradas por Abrúcio como

ações positivas para o fortalecimento da articulação intergovernamental, tais como:

o revigoramento de alguns órgãos do governo federal que atuam nessa direção; o

revigoramento da Secretaria de Assuntos Federativos e a criação do Ministério das

Cidades. Este último, por unificar todas as políticas urbanas em um só local. E,

finalmente, a reestruturação da política regional, com o Ministério da Integração

Nacional.

Em nosso ponto de vista, as mudanças trazidas sobre a descentralização com

a Constituição e com seus respectivos governos trouxeram ganhos e desafios.

Assim, a descentralização no formato federativo brasileiro não apenas baliza o

processo político, mas também repercute no desenho das políticas públicas

brasileiras. Principalmente no que diz respeito à descentralização dos programas e

serviços. A realidade impõe muitos limites para prática da autonomia e

descentralização dos entres federados, especialmente nas responsabilidades

esperadas das gestões locais na implantação, qualificação e continuidade dos

programas e serviços previstos na política pública.

No depoimento de uma das gestoras entrevistadas, que teve a experiência de

trabalhar na gestão nos três entes federativos, exercendo cargo na gestão nacional

do MDS, logo após assumindo cargo de gestão no estado do Rio de Janeiro,

podem-se perceber os pontos nevrálgicos ao falar da relação federativa e da

autonomia existente na prática da execução de políticas de combate à pobreza.

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Por mais que se diga que os municípios e os estados são entes federados autônomos, mas não é bem assim. Quando você está trabalhando a lógica de um “sistema único” acaba gerando sempre movimentos e debates que se traduz muito em alinhamento. Então, assim, é sempre uma perspectiva. Por mais que se permita o debate, a busca, o objeto final é sempre de um alinhamento conceitual, de um alinhamento estratégico, de um alinhamento de agenda. Eu acho até que esse é o espírito de um “sistema único”, mas de alguma forma – e isso se repete muito nas falas dos gestores sobre suas perspectivas locais – que é muito difícil. Difícil aplicar (as normativas) nas realidades, porque se está em outro movimento, em outro local. É como se na instância federal estivesse o modelo ideal e na esfera municipal e estadual o real que aí não se traduz nem mesmo nessas normativas e preceitos. (Ex-gestora federal e atual gestora estadual, mar. 2013).

A fala da gestora retrata bem o distanciamento entre as normativas pensadas

no nível federal para implementação no nível local quando sugere que na instância

federal está um modelo ideal e na esfera municipal e estadual o real. É uma situação

que, como explica Abrúcio (2005), expande-se para além do embate entre o governo

federal e os demais entes por meio das políticas e estruturas de poder. Ela traz

como o foco para um momento que o autor chama de complexificação das relações

intergovernamentais.

É preciso acrescentar outro vetor analítico, pouco explorado no Brasil [...] trata-se da análise do problema da coordenação intergovernamental, isto é, das formas de integração, compartilhamento decisão conjunta presentes nas federações. Essa questão torna-se bastante importante com a complexificação das relações intergovernamentais ocorrida em todo o mundo nos últimos anos. (ABRÚCIO, 2005, p. 49).

Essa complexificação se deu na perspectiva do autor pela convivência de

tendências conflituosas e de intrincada solução, onde se destacam três aspectos

relevantes: 1 a manutenção de um modelo de Welfare State que convive com maior

escassez relativa de recursos, com fortes pressões por economia como cortes de

gastos e custos e efetividade; 2 um aumento das demandas por maior autonomia de

governos locais e/ou grupos étnicos, levando à luta contra a uniformização e a

excessiva centralização, o que acontece ao mesmo tempo em que governos e

coalizões nacionais tentam evitar problemas causados pela fragmentação, como a

elevação da desigualdade social, o descontrole das contas públicas de entes; e, por

último, 3 a interconexão dos governos locais com outras estruturas de poder que

não os governos centrais, tais como o empresas e organismos internacionais e,

concomitante a isso as parcerias com a sociedade civil.

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Por outro lado, na visão de Arretche (2014), a divisão de responsabilidades e

autonomia não foi algo tão simples. Para a autora, não se deve considerar que a

descentralização das políticas públicas no caso brasileiro significou apenas a

retirada da União para que os estados e municípios passem a assumir as novas

prerrogativas fiscais e políticas de modo espontâneo ou por competência de gestão.

A descentralização das políticas sociais não seria simplesmente um subproduto da

descentralização fiscal, nem das novas disposições constitucionais derivadas da

Constituição de 1988. Sob o ponto de vista da autora, ela ocorreu nas políticas e nos

estados em que a ação política deliberada operou de modo eficiente.

Os desafios da descentralização federativa apontados pela autora ocorrem

pela diferença da herança de centralização dos anos anteriores a 1988 e também

pelo fato de o formato de articulação que as políticas públicas passaram a adotar, o

processo de Adesão62 às políticas públicas. O problema não estaria na adesão

simplesmente, no processo que a autora chama de necessidade de estratégia eficaz

e de incentivo para que os governos locais possam aderir às propostas pensadas

nacionalmente. Para Arretche, existe uma dificuldade de a União induzir as diretrizes

das políticas públicas pelo método da adesão, e esse movimento se configura com

maior dificuldade do que antes.

No Estado federativo, tornam-se essenciais estratégias de indução capazes de obter a adesão dos governos locais. Ou, dito de outro modo, as dificuldades para que a União — ou um governo estadual — delegue funções a um nível de governo menos abrangente são maiores hoje do que sob o regime militar. (ARRETCHE, 2014, p. 115).

Por mais que o exercício federalista deixe rastro de dificuldades de rejeição e

de adesão aos programas e serviços de abrangência nacional, nota-se no caso

brasileiro que o exercício da racionalidade burocrática exigida com a autonomia

federalista contribuiu para afastar a concessão de financiamento dos programas e

serviços das históricas posturas clientelistas entre os entes. Porém, isso não

significa que tenha sido eliminada de tal prática qualquer disputa simbólica de

interesses inerente ao jogo político e existente localmente a partir de seus projetos

políticos.

62

A Adesão significa a forma pela qual, atualmente, os governos locais (estados e municípios) se vinculam às políticas criadas e propostas no âmbito federal. A marca da adesão no modelo atual é o voluntarismo. Não existe obrigatoriedade dos entes federativos participarem das políticas nacionais. Uma vez que aderem aos programas eles assinam termo de aceites de adesão com as regras previstas para a participação.

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O campo de pesquisa retrata bem esse fato: observa-se que o pacto de

responsabilidade assumido pelos entes diante da adesão aos programas de

combate à pobreza se associa aos diversos fatores locais, culminando em uma

diversidade de arranjos e formatos de execução da adesão aos programas. Existe

um jogo político de responsabilidades inerente a este processo, uma espécie de

subconjunto de articulações de interesses entre estados e municípios próprios ao

campo político que circunda. A lógica seria de quando mais o ente apresenta um

baixo grau de articulação ou cooperação intergovernamental, mais as

responsabilidades de gestão (principalmente com ações de combate à pobreza) são

atribuídas “ao outro”. No senso comum, traduz-se num jogo do “empurra, empurra”

na busca de definições de responsabilidades mediadas pelas relações políticas

existentes localmente.

As visitas de campo contribuíram para identificar alguns elementos

determinantes para a configuração de arranjos nas divisões de responsabilidades

entre os municípios: o porte do município; a relação custo-benefício da ação para o

ente; recursos financeiros disponibilizados na parceria; a prioridade dada a cada

ação pelos programas dos governos locais; a estrutura de equipamentos estatais de

atendimento presente no território; capacidade técnica e de gestão; e, muito

importante, o nível da articulação política existente entre as gestões dos entes.

Retomando a referência das reflexões de Arretche, temos que

No caso brasileiro, a responsabilidade pública pela gestão de políticas sociais passou a ser um dos elementos da barganha federativa. Dadas as dimensões da pobreza brasileira e, portanto, da população-alvo dos programas sociais, a gestão de políticas sociais em nosso país tende a ser simultaneamente cara e inefetiva, na medida em que tende a consumir um elevado volume de recursos e apresentar baixos níveis de proteção efetiva. Neste caso, nas situações em que os custos políticos e/ou financeiros da gestão de uma dada política forem avaliados como muito elevados, a barganha federativa consiste em buscar atribuí-los ou imputá-los a um outro nível de governo. Tais custos serão tanto maiores quanto mais elevados forem os recursos exigidos pela engenharia operacional de uma dada política e na medida direta da extensão legal do escopo de beneficiários. (ARRETCHE, 2014, p. 115).

Abrúcio (2005) chamará esse movimento de “jogo federativo”, a depender de

barganhas, negociações, coalizões e induções das esferas superiores de poder, que

para o autor é natural em uma federação democrática. Assim, o sucesso da relação

federativa estaria diretamente relacionado aos processos de coordenação

intergovernamental.

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No caso da definição das responsabilidades entre as ações de gestão do

combate à pobreza, os entes seguem as prerrogativas constitucionais da Federação

administrativa de autonomia com prevalência das diretrizes do âmbito federal. Cabe

à União propor diretrizes nacionais, orientar e monitorar nacionalmente. Cabe aos

estados monitorar e apoiar as execuções das ações nos municípios de seu território

e, finalmente, cabe aos municípios implementar e executar as ações conforme

diretrizes acordadas nacionalmente.

Na assistência social, a gestão é pautada na Norma Operacional Básica de

2012- NOB/Suas (Resolução CNAS nº 33, de dezembro de 2012). Segundo esse

documento, a responsabilidade de gestão é fundamentada na cooperação entre os

entes federados, considerando competências e responsabilidades comuns e

específicas. O § 1º do art. 8º, do capítulo II, da NOB/Suas, prevê como

responsabilidades para os entes:

As responsabilidades se pautam pela ampliação da proteção socioassistencial em todos os seus níveis, contribuindo para a erradicação do trabalho infantil, o enfrentamento da pobreza, da extrema pobreza e das desigualdades sociais, e para a garantia dos direitos, conforme disposto na Constituição Federal e na legislação relativa à assistência social. (MDS, NOB/SUAS, 2012, p. 19).

O quadro 13 traz apontamentos sobre a divisão de responsabilidades para

implementação de programas e serviços no caso dos usuários atendidos (incluindo

os considerados pobres) nas ações previstas na política de assistência social.

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Quadro 13: Competências dos entes federativos nos Programas e Serviços da Assistência Social

Ente Federado Assistência Social

União

. Regulamentar e cofinanciar, em âmbito nacional, por meio de transferência regular e automática, na modalidade fundo a fundo, o aprimoramento da gestão, dos serviços, programas e projetos de proteção social básica e especial, para prevenir e reverter situações de vulnerabilidade social e riscos;

. Realizar o monitoramento e a avaliação da política de assistência social e assessorar os estados, o Distrito Federal e os municípios para seu desenvolvimento;

. Regular o acesso às seguranças de proteção social, conforme estabelecem a

Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e esta NOB SUAS; VII – definir as

condições e o modo de acesso aos direitos socioassistenciais, visando à sua

universalização; VIII – propor diretrizes para a prestação dos serviços

socioassistenciais, pactuá-las com os estados, o Distrito Federal e os municípios e submetê-las à aprovação do CNAS;

. Orientar, acompanhar e monitorar a implementação dos serviços socioassistenciais tipificados nacionalmente, objetivando a sua qualidade;

. Apoiar técnica e financeiramente os Estados, o Distrito Federal e os Municípios na implementação dos serviços, programas, projetos e benefícios de proteção social básica e especial, dos projetos de enfrentamento da pobreza e das ações socioassistenciais de caráter emergencial;

. Coordenar em nível nacional o Cadastro Único e o Programa Bolsa Família.

Estado

. Destinar recursos financeiros aos municípios, a título de participação no custeio do pagamento dos benefícios eventuais de que trata o art. 22, da Loas, mediante critérios estabelecidos pelo Conselho Estadual de Assistência Social (Ceas);

. Cofinanciar, por meio de transferência regular e automática, na modalidade fundo a fundo os serviços, programas, projetos e benefícios eventuais e o aprimoramento da gestão, em âmbito regional e local;

. Estimular e apoiar técnica e financeiramente as associações e consórcios municipais na prestação de serviços de assistência social;

. Realizar o monitoramento e a avaliação da política de assistência social em sua esfera de abrangência e assessorar os Municípios para seu desenvolvimento;

. Apoiar técnica e financeiramente os Municípios na implantação e na organização dos serviços, programas, projetos e benefícios socioassistenciais;

. Apoiar técnica e financeiramente os Municípios para a implantação e gestão do Suas, Cadastro Único e Programa Bolsa Família;

. Municipalizar os serviços de proteção social básica executados diretamente pelos Estados, assegurando seu cofinanciamento, com exceção dos serviços socioassistenciais prestados no distrito estadual de Pernambuco, Fernando de Noronha, até que este seja emancipado;

. Instituir ações preventivas e proativas de acompanhamento aos Municípios no cumprimento das normativas do SUAS, para o aprimoramento da gestão, dos serviços, programas, projetos e benefícios socioassistenciais pactuados nacionalmente;

. Participar dos mecanismos formais de cooperação intergovernamental que viabilizem técnica e financeiramente os serviços de referência regional, definindo as competências na gestão e no cofinanciamento, a serem pactuadas na CIB;

. Elaborar plano de apoio aos Municípios com pendências e irregularidades junto ao Suas, para cumprimento do plano de providências acordado nas respectivas instâncias de pactuação e deliberação;

. Prestar as informações necessárias para a União no acompanhamento da gestão estadual;

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. Zelar pela boa e regular execução dos recursos da União transferidos aos Estados, executados direta ou indiretamente por este, inclusive no que tange à prestação de contas;

. Aprimorar os equipamentos e serviços socioassistenciais, observando os indicadores de monitoramento e avaliação pactuados;

. Alimentar o Censo do Sistema Único de Assistência Social (Censo Suas);

MUNICÍPIO

. Destinar recursos financeiros para custeio dos benefícios eventuais de que trata o art. 22, da Loas, mediante critérios estabelecidos pelos Conselhos Municipais de Assistência Social (CMAS);

. Efetuar o pagamento do auxílio-natalidade e o auxílio-funeral;

. Executar os projetos de enfrentamento da pobreza, incluindo a parceria com organizações da sociedade civil;

. Atender às ações socioassistenciais de caráter de emergência;

. Prestar os serviços socioassistenciais de que trata o art. 23, da Loas;

. Cofinanciar o aprimoramento da gestão e dos serviços, programas e projetos de assistência social, em âmbito local;

. Realizar o monitoramento e a avaliação da política de assistência social em seu âmbito;

. Aprimorar os equipamentos e serviços socioassistenciais, observando os indicadores de monitoramento e avaliação pactuados;

. Organizar a oferta de serviços de forma territorializada, em áreas de maior vulnerabilidade e risco, de acordo com o diagnóstico socioterritorial;

. Organizar, coordenar, articular, acompanhar e monitorar a rede de serviços da proteção social básica e especial;

. Alimentar o Censo Suas;

. Assumir as atribuições, no que lhe couber, no processo de municipalização dos serviços de proteção social básica;

. Participar dos mecanismos formais de cooperação intergovernamental que viabilizem técnica e financeiramente os serviços de referência regional, definindo as competências na gestão e no cofinanciamento, a serem pactuadas na CIB;

. Gerir, no âmbito municipal, o Cadastro Único e o Programa Bolsa Família, nos termos do § 1º do art. 8° da Lei nº 10.836 de 2004;

. Prestar informações que subsidiem o acompanhamento estadual e federal da gestão municipal;

. Zelar pela execução direta ou indireta dos recursos transferidos pela União e pelos Estados aos Municípios, inclusive no que tange à prestação de contas;

. Viabilizar estratégias e mecanismos de organização para aferir o pertencimento à rede socioassistencial, em âmbito local, de serviços, programas, projetos e benefícios socioassistenciais ofertados pelas entidades e organizações de acordo com as normativas federais.

DISTRITO FEDERAL

. Destinar recursos financeiros para custeio dos benefícios eventuais de que trata o art. 22, da Loas, mediante critérios e prazos estabelecidos pelo Conselho de Assistência Social do Distrito Federal (CASDF);

. Efetuar o pagamento do auxílio-natalidade e o auxílio-funeral;

. Executar os projetos de enfrentamento da pobreza, incluindo a parceria com organizações da sociedade civil;

. Atender às ações socioassistenciais de caráter de emergência;

. prestar os serviços socioassistenciais de que trata o art. 23, da Loas;

. Cofinanciar o aprimoramento da gestão, dos serviços, programas e projetos de assistência social em âmbito local;

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. Realizar o monitoramento e a avaliação da política de assistência social em seu âmbito;

. Aprimorar os equipamentos e serviços socioassistenciais, observando os indicadores de monitoramento e avaliação pactuados;

. Organizar a oferta de serviços de forma territorializada, em áreas de maior vulnerabilidade e risco, de acordo com o diagnóstico socioterritorial, construindo arranjo institucional que permita envolver os Municípios da Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno (Ride);

. Organizar, coordenar, articular, acompanhar e monitorar a rede de serviços da proteção social básica e especial;

. Participar dos mecanismos formais de cooperação intergovernamental que viabilizem técnica e financeiramente os serviços de referência regional, definindo as competências na gestão e no cofinanciamento, a serem pactuadas na CIT;

. Gerir, no âmbito do Distrito Federal, o Cadastro Único e o Programa Bolsa Família, nos termos do § 1º do art. 8° da Lei nº 10.836, de 2004;

. Instituir plano de capacitação e educação permanente do Distrito Federal;

. Zelar pela boa e regular execução, direta ou indireta, dos recursos da União transferidos ao Distrito Federal, inclusive no que tange à prestação de contas;

Por sua vez, os eixos de responsabilidade e execução relacionados às ações

de transferência de renda do Programa Bolsa Família, conforme decreto que

regulamenta a lei do programa (Lei nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004),

Art. 11. A execução e gestão do Programa Bolsa Família dar-se-á de forma descentralizada, por meio da conjugação de esforços entre os entes federados, observada a intersetorialidade, participação comunitária e o controle social. (Decreto nº 5.209 de 17 de setembro de 2004).

Sobre as competências e responsabilidades da União, dos estados, do

Distrito Federal e dos municípios na execução do Programa Bolsa Família, o referido

decreto traz o seguinte:

Quadro 14: Competências dos entes federativos no Programa Bolsa Família

Ente Federado Bolsa Família

(Decreto nº 5.209 de 17 de setembro de 2004)

União (MDS)

. Cabe ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome coordenar, gerir e operacionalizar o Programa Bolsa Família e, em especial, executar as seguintes atividades (Incluído pelo Decreto nº 7.332, de 2010):

I – realizar a gestão dos benefícios do Programa Bolsa Família;

II – supervisionar o cumprimento das condicionalidades e promover a oferta dos

programas complementares, em articulação com os Ministérios setoriais e demais

entes federados; III – acompanhar e fiscalizar a execução do Programa Bolsa

Família, podendo utilizar-se, para tanto, de mecanismos intersetoriais;

IV – disciplinar, coordenar e implementar as ações de apoio financeiro à qualidade

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da gestão e da execução descentralizada do Programa Bolsa Família; e

V – coordenar, gerir e operacionalizar o Cadastro Único para Programas Sociais do

Governo Federal.

Estados

. Constituir coordenação composta por representantes das suas áreas de saúde, educação, assistência social e segurança alimentar, quando existentes, responsável pelas ações do Programa Bolsa Família, no âmbito estadual;

. Promover ações que viabilizem a gestão intersetorial, na esfera estadual;

. Promover ações de sensibilização e articulação com os gestores municipais;

. Disponibilizar apoio técnico institucional aos Municípios; Disponibilizar serviços e estruturas institucionais, da área da assistência social, da educação e da saúde, na esfera estadual;

. Apoiar e estimular o cadastramento pelos Municípios;

. Estimular os Municípios para o estabelecimento de parcerias com órgãos e instituições municipais, estaduais e federais, governamentais e não governamentais,

. para oferta dos programas sociais complementares; e

. Promover, em articulação com a União e os Municípios, o acompanhamento do cumprimento das condicionalidades.

Municípios e Distrito Federal

. Constituir coordenação composta por representantes das suas áreas de saúde, educação, assistência social e segurança alimentar, quando existentes, responsável pelas ações do Programa Bolsa Família, no âmbito do Distrito Federal (item específico do DF);

. Designar área responsável pelas ações de gestão e execução do Programa Bolsa Família e pela articulação intersetorial das áreas, entre outras, de saúde, educação, assistência social e segurança alimentar, quando existentes; (Redação dada pelo Decreto nº 7.852, de 2012);

. Proceder à inscrição das famílias pobres do Município (ou Distrito Federal) no Cadastramento Único do Governo Federal;

. Promover ações que viabilizem a gestão intersetorial, na esfera municipal;

. Disponibilizar serviços e estruturas institucionais, da área da assistência social, da educação e de saúde, na esfera municipal;

. Garantir apoio técnico institucional para a gestão local do programa;

. Constituir órgão de controle social nos termos do art. 29;

. Estabelecer parcerias com órgãos e instituições municipais, estaduais e federais, governamentais e não governamentais, para oferta de programas sociais complementares; (No caso do DF apenas com o DF e União);

. Promover, em articulação com a União e os Estados, o acompanhamento do cumprimento das condicionalidades. (No caso do DF apenas com a União).

Fonte: Levantamento bibliográfico da autora.

De maneira geral, analisando as competências trazidas nos quadros acima,

as quais incluem as responsabilidades nas ações de combate à pobreza, cabe à

União o papel de conduzir o processo de diretrizes nacionais, disponibilizando o

suporte de orientações e apoio técnico aos estados e municípios, assim como o

financiamento das ações. Para os estados, cabe o apoio técnico e institucional local,

articulado a ações de monitoramento na implementação e execução dos programas

e serviços nos seus respectivos municípios. E, finalmente, aos municípios, fica o

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papel de executar, como também de promover articulações para garantir a

efetividade do previsto. É nessa instância que se encontra a concretização do

combate à pobreza.

É também no meandro dessas competências que se apresenta a real

construção das políticas públicas que torna complexa a indagação: a quem pertence

o pobre? Entram em cena assim elementos outros que fogem aos limites da

responsabilidade individual. Neste quesito, o jogo federativo (ABRÚCIO, 2005) ou a

barganha federativa (ARRECTHE, 1999) ficou evidente em campo, a começar pela

prioridade que os municípios e estados estabelecem. Dito em linguagem clara, as

“preferências” dos gestores locais por determinados programas e ou serviços mais

adequados para combater a pobreza.

Foi perceptível no campo de pesquisa a prevalência dos programas de

transferência de renda em detrimento das demais ações de combate à pobreza. A

ideia de que em curto prazo se obtêm resultados mais efetivos pode ser apontada

como causa desse fato. Os programas que oferecem retorno em longo prazo, no

caso da pobreza, não costumam ser prioridade nas gestões. Em se tratando de

políticas sociais, os gestores costumam pesar o custo-benefício decorrente da

implantação dos programas antes de realizar a adesão. Entra em jogo a barganha

federativa de obter um programa de transferência de renda no município.

Para se compreender a lógica das “prevalências” utilizada na escolha das

prioridades pelos gestores, pode-se apontar o exemplo do Bolsa Família. O PBF é,

na visão dos gestores, o que podemos denominar de uma espécie de programa

“limpo”, “enxuto”, ou seja, traz mais bônus do que ônus aos municípios para tê-lo

implantado e funcionando.

Contribui para isso o fato de ter um formato que estabelece fases de uma

relação direta, entre gestão federal e beneficiários, sem a necessidade da

intermediação da gestão municipal, tampouco uma estruturação física e logística

para tal. O aumento da promoção de meios de acesso à renda aos seus habitantes

é o maior atrativo. Com isso, é arregimentado um impacto quase imediato na

diminuição da pobreza relacionada à renda e, com consequências na dinamização

econômica para os municípios mais pobres, que não contam com a presença de

setores geradores de empregos em seus territórios.

A adesão e a implantação dos programas e serviços da política da assistência

social, que também tem como prioridade o atendimento aos sujeitos e famílias em

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situação de vulnerabilidade e pobreza, seguem, no entanto, um percurso de maior

morosidade e menos prioridade nas opções da gestão municipal. Em termos de

investimento, a implementação dos serviços e programas da assistência social

acarreta para a gestão local ônus superior ao do PBF, a saber.

Na assistência social, a gestão local fica responsável por: implantar e

construir o equipamento público estatal onde se executa os serviços e programas, o

Centro de Referência da Assistência Social (Cras); contratar a equipe mínima de

referência prevista na PNAS, preferencialmente por concurso público, e ter parte no

financiamento dos serviços. Como forma de incentivo, deliberou-se que até 60% dos

recursos recebidos pelos municípios podem ser utilizados para pagamento de

trabalhadores dos serviços e programas.

Apesar da predileção pelas ações de transferência de renda, as orientações

normatizadas de ambas as ações (assistência social e PBF) preconizam que elas

são complementares. Não deve haver sobreposição ou qualquer tipo de hierarquia

entre ambas. Porém as entrevistas com os técnicos burocratas de rua retratam o

oposto, são muitos relatos de insatisfações entre aqueles que atuam nos Cras e

aqueles que atuam no PBF. Há uma percepção dos técnicos que trabalham nos

Cras de que eles são utilizados pela gestão local para desempenhar prioritariamente

as ações relacionadas ao Bolsa Família, em detrimento de suas funções originárias.

Nesse caso, o processo simultâneo de articulação entre a implementação do

Bolsa Família e das ações da assistência social, por meio do Suas, pode ser

analisado em um duplo sentido para Jaccoud (2014). O primeiro, enquanto parceria

no enfrentamento da pobreza e das situações de mais grave vulnerabilidade social,

e o segundo, enquanto construção institucional, integrando e fortalecendo ambas as

iniciativas.

Fortalecida nos anos 1990, a inferência de consolidação de uma agenda

política para eliminação da pobreza em busca da igualdade social já preconizava a

existência de uma expectativa para um reordenamento das políticas sociais de modo

a fazer com que a democracia política pudesse ser acompanhada de uma base

indispensável, pautada na democracia social fundada em maior equidade. Para o

conjunto do sistema de proteção social, tal demanda se deu por meio da ampliação

dos direitos sociais que se traduziu em metas de elevação dos graus de

universalismo, extensão da cobertura dos programas e melhoria da efetividade

social do gasto (DRAIBE, 1997).

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Em nosso ponto de vista, com essa reflexão, depreende-se que, se por um

lado a expansão da democracia das políticas sociais ocorreu, por outro, as

capacidades de gestão e de instrumentalização do acesso a esses direitos não

avançaram da mesma forma. O que torna em certa medida, justificável a dificuldade

de execução e de articulação intersetorial sentida pelos técnicos burocratas de rua

diante das agendas para atendimento aos indivíduos e famílias considerados

pobres.

Os atendimentos voltados aos considerados pobres englobam uma vasta

agenda intersetorial de programas e serviços, o que, consequentemente, acarreta

sobreposições cotidianas nas responsabilidades e atividades cotidianas, e de

maneira mais ampla na organização das gestões locais. De maneira prática, ao

fazer adesão ao Programa Bolsa Família ou às ações de assistência social, o gestor,

indiretamente, passa a integrar um conjunto de outros programas e serviços. Faz-se

uma rede de articulação por vezes desconhecida pelo próprio gestor.

No centro da articulação se encontra o sujeito “pobre”, que é o foco prioritário

das políticas. O esquema a seguir retrata os principais programas e ações que estão

ou devem estar interligados no atendimento aos pobres, quando os usuários buscam

ações da assistência social (Cras) ou o Bolsa Família. Mostra também a

complexidade que está presente no cotidiano dos gestores e técnicos que executam

o combate à pobreza.

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Esquema 1: Programas, serviços e o pobre

Fonte: Elaboração da pesquisadora.

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Como pode ser visualizado no esquema, o aumento da oferta de serviços e

programas representa o fortalecimento no dever do Estado em levar proteção social

aos pobres, mas também representa o risco de uma proteção fragmentação do

sujeito pobre quando não se efetiva intersetorialidade meio a tantas variações de

ações. Os programas e serviços se apresentam de forma descentralizada entre

vários órgãos, entidades ou instituições. Assim, temos que um mesmo sujeito e/ou

família pode estar inserido em várias ações, sendo acompanhado por diversas

instituições ao mesmo tempo.

Dessa forma, concluímos que ser um pobre inserido nos programas e

serviços de combate à pobreza necessita de tempo e dedicação para cumprir uma

agenda “puxada” de contrapartidas exigidas para se manter neles. Todos os entes

querem e precisam da presença dos “pobres” para atingir metas e ter sucesso em

seus eventos. É comum os coordenadores de programas pactuar datas e horários

para suas ações de forma que os pobres possam estar em todas elas sem prejuízo

para nenhuma. Como garantir a presença dos “pobres" em todos os

acompanhamentos? Essa pauta é uma das dificuldades constantemente relatada no

cotidiano dos técnicos burocratas de rua que atendem aos pobres.

Nesse ínterim, as competências relacionadas aos pobres envolvem algumas

direções. Um percurso vindo da esfera federal até o sujeito pobre que representa a

centralidade de tudo, e um percurso inverso, do sujeito pobre até a esfera federal.

Ambos buscam a mesma finalidade, porém com olhares, tempos e percepções

diferenciadas, que levam a uma disputa simbólica de delegações e

responsabilizações. O que pode ser visto nos relatos dos técnicos pertencentes às

três instâncias (União, estado e município) a seguir.

Afinal a quem pertence o pobre?

Gestora do PBF MDS – Brasília sobre gestores estaduais e municipais:

O programa é um programa complexo. Tem muita coisa para se entender. Então a gente percebe que, por vezes, por eles (os gestores estaduais e municipais) não dominar direito a legislação e as nuances do programa, eles orientam as famílias errado. Acaba que o reflexo é muito grande para a família. Então a gente pensa nisso, de atuar de maneira pontual (nas capacitações) para que esse gestor possa trabalhar. Dar ferramentas para que ele trabalhe melhor.

A gente (MDS/Senarc) não vai até o gestor municipal. A gente não tem pernas. São apenas seis pessoas (na coordenação, aptas a capacitar) e a Senarc tem um pouco mais de 100 servidores, nem isso. Então a gente não consegue chegar até o gestor municipal. A gente monta estratégia de

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parceria com os gestores estaduais para que essas ações cheguem até os gestores municipais e técnicos.

Técnica do estado de São Paulo – sobre gestão da União: Então, uma coisa que a gente coloca muito lá (referência à discussão na gestão do estado de São Paulo) é que essa política que veio pensando os Cras da forma como eles estão para atender município de Pequeno Porte I não funciona, não tem como. Tanto é que a gente tá sofrendo uma pressão grande do MDS para implantar mais Cras, que é o correto, está nas metas de atingir, que em todo Brasil cada município tenha pelo menos 1 Cras. Mas como a gente vai pedir para um município de 2 mil habitantes, não tô falando nem de Porte I, tô falando até 10 mil (Porte II) para que ele tenha 1 Cras se ele nem tem um assistente social lá? Daí é uma responsabilidade muito grande do gestor de assumir uma coisa e não poder pagar o salário. Daí é uma coisa que a gente sempre foca: nossa, o MDS vai ter que repensar novas forma para o Pequeno Porte I, isso aí (referência às regras para ter um Cras) comporta para municípios de Pequeno Porte II, Médio, Grande Porte, mas não para Porte I. A gente tá tentando dar um apoio, tá gravando um material, vai lá dar apoio, mas são realidades muito distintas, mas não pelo fato de ser o estado de São Paulo a princípio, mas sim pelo fato de ser município de Pequeno Porte I.

Gestora estadual do PBF – estado Pará (Região Norte) sobre gestão dos municípios e União: Eu mudaria a questão do conhecimento do gestor da assistência sobre o que é política de assistência, pois a gente não tem gestor que conhece. Tem que haver capacitação do Suas para os técnicos. Informação pra mim é tudo. O próprio acesso e conexão de internet. Os municípios não conseguem acesso por falta da internet. O Ministério não vê o fator amazônico na questão de alimentação dos sistemas e prazos dos sistemas. O município não consegue nem cadastrar a senha. As equipes são mínimas. Gestor Municipal de Mesquita-RJ sobre gestão da União (MDS): Creio que o PBF deveria dialogar mais intersetorial. Por exemplo, pontos além da educação e saúde. É a qualidade de ensino, a condição do professor na sala de aula também. Daí vem de cima pra baixo e não de baixo para cima, daí não consegue (o êxito com o programa). Tem coisas que tem que trazer pra problematização. Não é aqui em cima (referência às diretrizes do MDS) resolver o que é bom pra eles (para os usuários do programa), e eles (os pobres e usuários) o que eles acham que é bom pra eles?

Apesar da existência formal dos fóruns de debate, construção coletiva de

diretrizes e entendimentos de serviços e programas, a fala dos gestores e técnicos

de nível de rua permite a visualização de um movimento que reproduz a perspectiva

da hierárquica dualizada de delegação, monitoramento e controle. Isso aparece

claramente nas falas dos entrevistados em expressões como “de cima para baixo e

não de baixo para cima”, “lá eles têm a realidade ideal e aqui temos a realidade real”

etc. Esses elementos perpassam todas as esferas, federais, estaduais e municipais

e variam conforme poder político de cada ente e sujeito político. Quanto menor

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poder de barganha política, maior a sensação de submissão. Quanto maior esse

poder, maior a sensação de controle das ações.

No nível de rua, tal fato pode ser entendido pela exigência de respostas

imediatas que se impõe aos técnicos e gestores que trabalham na linha de frente do

combate à pobreza nos municípios. Na gestão municipal, a realidade bate à porta

nua e crua, as demandas são diversas e, na maioria das vezes, compostas por

situações que exigem resoluções ou encaminhamentos rápidos. A característica dos

problemas que chegam para ser atendidos como demandas dos usuários são casos

de emergência. São necessidades como fome, extrema pobreza, abandono, casos

de violência, abusos sexual na família, dentre outros.

Os técnicos de nível de rua são os atores sociais que, no jogo de

competência e responsabilização, lidam diariamente com tal cenário que envolve os

usuários dos programas e serviços de combate à pobreza e as políticas públicas.

Cabe a eles a função de atender e qualificar as ações de atendimento aos

considerados pobres de maneira que proporcione uma ação pautada nos direitos

sociais desses sujeitos, distanciando-se, assim, da perspectiva histórica

estigmatizadora do atendimento ao pobre como esmola e favor. A indagação que se

faz nesta pesquisa é como tem se configurado esse cenário de atendimento e qual a

contribuição desses atores, pela importância que eles têm na concretização do

combate à pobreza.

5.3.1 Desafio da prática: a responsabilização do outro

Este tópico apresenta a parte conclusiva dos dados apresentados neste

capítulo, que delimitou o campo de pesquisa e a estrutura encontrada para a

articulação dos entes federativos na execução do combate à pobreza. Essa

estrutura significa também o locus de atuação dos técnicos burocratas de rua que

combatem a pobreza.

Em termos conclusivos vislumbramos que o locus de atuação dos técnicos

burocratas de rua e as suas implicações culminam numa tensão da deficitária

articulação e coordenação da rede intersetorial de equipamentos estatais

pertencentes aos três níveis de governo quando se trata das ações

institucionalizadas do combate à pobreza. A tensão não se encontra na construção

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de espaços plurais e deliberativos onde sejam pensadas e planejadas ações

conjuntas entre governo e sociedade civil. Esses espaços existem funcionando com

regularidade, tal como os conselhos locais que acompanham o desenvolvimento dos

programas e serviços.

A estruturação prática da coordenação intersetorial das ações do combate à

pobreza no PBF vista no campo de pesquisa apresenta elementos identificadores da

dificuldade de materialização das ações integradas conforme as diretrizes tomadas

nos espaços coletivos deliberativos.

Os dados de campo apontam para uma institucionalização da pobreza

composta por uma “disputa” da não responsabilidade. Nas falas dos técnicos, antes

apresentadas, a responsabilidade pelo “pobre” é sempre atribuída à

responsabilidade do outro. Na prática, esse “outro” se configura desde a

responsabilização da categoria profissional técnica mais próxima do cotidiano de

trabalho, podendo ir até instâncias como equipamento estatal ou ao outro nível de

gestão de governo.

A responsabilização do outro é configurada na prática em um jogo de

cobranças e delegação de responsabilidades entre os níveis hierárquicos de gestão,

neste caso o elemento delimitador perpassa quem detém maior poder político. Em

resumo: a União apoia e monitora os estados, que, por sua vez, apoiam e

monitoram os municípios, que, por sua vez, buscam dentre os seus iguais, ou seus,

“vizinhos”, os municípios que apresentem uma melhor estrutura e que possam

receber as suas demandas.

Nesse caso, as oposições político-partidárias têm forte peso na divisão de

responsabilidades. Pode ocorrer que um município fique isolado e tenha que buscar

parcerias em outros municípios mais distantes de seu território de atuação, caso não

pertença à mesma linha política de seus “vizinhos” mais próximos.

A maneira prática encontrada pelos técnicos burocratas de rua para lidar com

esse cenário é realizar um movimento de instrumentalização da gestão. Faz parte

dessa capacidade técnica: dispor de uma forte articulação interna entre órgãos das

prefeituras; forte articulação com municípios vizinhos para que se tenham

viabilizados encaminhamentos e os atendimentos dos casos enviados, dentre

outras.

Sobressai, nesse caso, além da capacidade técnica de gestores e técnicos do

nível de rua, o conhecimento pessoal com sujeitos que tenham significativa

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influência meio a esses órgãos. Seria o poder de acionar, nos casos mais críticos de

atendimento ao usuário, uma rede pessoal de conhecimento para resolução das

problemáticas que chegam aos equipamentos. É a esse movimento que uma das

gestoras entrevistadas chama de “a forma de aprimorar o jeito de gerir a coisa”.

Cada gestão aprimora uma maneira de gerir a coisa né? Apesar de ter uma orientação nacional, uma diretriz nacional, de ter tudo para fazer corretamente, o município tem a sua estratégia, ele tem a sua autonomia, né, para fazer da forma que acha, né? (Gestora municipal de assistência social de Ananindeua – Pará).

Assim, o êxito dependerá da experiência e conhecimento dos trâmites do

serviço público, como também da articulação política e do seu poder de barganha.

Aqueles que têm longos anos de experiência terão facilidade de se inserir nesse

cenário, enquanto os menos experientes apresentarão maior dificuldade.

É notório que o poder de barganha na estruturação prática da política não se

encontra somente entre as instituições, mas também passa pela sociedade civil. Um

fato curioso foi relatado na situação exposta pela mesma gestora municipal citada

acima, e ocorreu quando moradores de uma das áreas mais pobres do município

usaram da mesma estratégia de barganha política dos gestores locais para

conseguir a implantação de suas reivindicações. Os moradores, organizados,

impuseram como barganha ao prefeito que tinha um projeto de implantar um

equipamento público (Centro de Referência da Assistência Social – Cras) no local

a condição de que apenas aceitariam o Cras se antes recebessem o asfalto no

bairro.

O Distrito fica próximo ao Sairé. É uma área de extrema precariedade, que não tem equipamento público existente. Lá já foi colocada uma escola nova, foi colocado o Cras. Agora vai passar a via de asfalto lá porque as famílias lá já estão mobilizadas que só vai ficar o Cras se passar o asfalto. Eu acho isso ótimo, porque movimenta com o município a criar estratégia de mobilização mesmo dos serviços. Só vão deixar inaugurar o Cras se asfaltar a rua. Então, como o prefeito quer inaugurar, ele vai asfaltar a rua. (Gestora municipal de Assistência Social de Ananindeua – Pará).

Assim, podemos afirmar que, no campo da coordenação das ações

intergovernamentais no combate à pobreza, cada experiência de diálogo entre as

gestões, como disse a entrevistada, “aprimora um jeito de gerir a coisa”. Esse

espaço de “aprimoramento” ou “esse jeito” é a instrumentalização prática para driblar

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as dificuldades encontradas, pois as expectativas e diálogos entre as diversas

gestões e os considerados pobres se constroem a partir de suas necessidades reais

e cotidianas.

Concluímos, assim, que no âmbito da estruturação prática do combate à

pobreza nem sempre a forma de gestão acontece conforme o trâmite formal previsto

e institucionalizado. Ela escapa ao campo burocrático. Assim, os acordos não

decorrem de reuniões deliberativas, de planejamentos estratégicos. Pelo campo com

os entrevistados, pode-se inferir que os meandros cotidianos da prática técnica,

quando não julga a responsabilidade do outro para justificar ausências em sua

estrutura de gestão, trabalha com articulações diversas, muitas vezes, pactuadas

em uma esfera da informalidade de acordos em detrimento de uma burocracia

formalizada de procedimentos prevista na competência de cada ente federativo.

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Capítulo VI – Os técnicos burocratas de rua: a percepção sobre o pobre e a

pobreza

6.1 A trajetória: quem são os técnicos burocratas de rua que combatem a pobreza

No caso de um tema com histórico de estigmas e desqualificações como a

pobreza, identificar o perfil dos atores que operacionalizam cotidianamente as

atividades direcionadas aos pobres pelo Estado traz elementos esclarecedores.

Esse recorte analítico que envolve a atuação dos técnicos de nível de rua requer

que identifiquemos quem são esses profissionais, qual percurso os levam às

funções que exercem, quais construções sociais trazem consigo ao assumir a

função pública de trabalhar com os pobres.

O resultado da pesquisa de campo mostra que as trajetórias dos burocratas

de rua que combatem à pobreza são os mais diversos, como verificamos nos

depoimentos:

Sou estudante de Serviço Social, gestor do PBF, do Cadastro Único. Eu estou há um ano e meio lá. Entrei na gestão no início do ano e no meio do ano ingressei no curso de Serviço Social. Estou há um ano e meio atuando nessa área de combate à pobreza, nas áreas mais vulneráveis no município de Mesquita no Rio. (Coordenador do PBF, Mesquita-RJ).

Não sou concursada, aqui a gente trabalha por contrato. Foi um amigo de meu pai que me conseguiu a vaga, na época ele era vereador (amigo do pai) e aí eu consegui através dele. (Técnica do PBF, Feira de Santana-BA).

Sou formado em educação física (Universidade de Ribeirão Preto-SP) vim para cá a trabalho. Trabalhei em área competitiva esporte e rendimento até prestar o concurso da Secretaria para Educador Social e daí entrei como educador social na área de esporte e lazer. Eu fui lotado durante quatro meses no almoxarifado, aí fiz o que pude para ajudar lá até que se achassem as lotações certas. Aí vim direto para Sobradinho e fui convidado pela atual diretora de convivência. Trabalhei aqui no Serviço de Convivência em 2009, 2010, 2011 como educador social na área de esporte e lazer, fui criando uma relação com a diretoria em 2011, mostrando meu trabalho do serviço através de relatório qualitativo que nós fazíamos, não era uma obrigação, mas a unidade tinha uma vontade de tá mostrando, então essa gestão que entrou em 2010 veio com uma perspectiva muito boa de qualidade e não de quantidade e eu era uma pessoa que acabei me tornando um pouco líder aqui, porque eu era muito contra essa questão de quantidade. E aí eu comecei esse trabalho de coordenação que aqui que eles chamam de chefia, o cargo é chefe de centro de convivência. (Técnico da Assistência Social, Sobradinho-DF).

Tem cinco anos e meio que tô no programa. Antes eu só trabalhei em comércio. Sempre trabalhei com mercado da família. Aí eu estava

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desempregada quando fui convidada para trabalhar. (Técnica do PBF-, Simonésia-MG).

Os técnicos burocratas de rua municipais entrevistados, em sua maioria, eram

sujeitos que procuravam o ingresso no mercado de trabalho e conseguiram chegar

às suas funções por meio de indicação, com vínculo de contratação considerados

precarizados (contrato temporário, terceirização de mão de obra etc.), em outros

casos, por aprovação em concurso público. Para a maioria deles, trabalhar no

atendimento aos pobres foi o primeiro emprego formal. Esse fato se explicitou para a

pesquisadora tanto no depoimento quanto na dificuldade de os entrevistados

apresentarem nas suas falas experiências anteriores de trabalho e na falta de

conhecimento da área específica dos programas em que atuam.

Quando eu cheguei no Bolsa eu não tinha experiência e nem sabia na verdade o que era o Bolsa Família. Eu trabalho atendendo ao público, atualizando cadastro, lançando o cadastro no Sistema [...]. Foi muito fácil para mim aprender, porque eu sempre gostei de trabalhar. [...] Para mim é muito gratificante trabalhar com esse público do Bolsa Família, porque a gente vê vários tipos de famílias, vários problemas diferentes. (Técnica PBF, BA-Região Nordeste).

A mesma condição de falta de experiência foi identificada no depoimento

da gestora de um município de pequeno porte no interior do estado de Santa

Catarina na Região Sul do país.

Na verdade eu fui chamada só para resolver os problemas do Programa Bolsa família. E quando cheguei lá eu vi que era bem mais que resolver uma dúzia de problemas como o prefeito falava. Então agora ele me chamou para outro cargo, sou gestora de projetos, porém continuo com a gestão do Bolsa. Eu não tinha experiência nenhuma com isso. Já havia trabalhado em cargo efetivo na prefeitura, porém nunca na parte de assistência. (Gestora do PBF – SC- Região Sul).

Um dado relevante é a predominância nos municípios de um corpo técnico

com faixa etária jovem, apresentando uma média de idade em torno de 20 a 35

anos. A maioria deles estando em seu primeiro emprego, recém-formados ou

cursando faculdade. Também não apresentam experiência de trabalho com política

pública. Esse dado tem consequência direta na perspectiva que os técnicos

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burocratas de rua nesse perfil lidam e observam a prática com os pobres que

atendem.

O percurso dos técnicos estaduais se diferencia dos municipais. Em sua

maioria são servidores efetivos concursados de muitos anos. Quando não

concursados, ainda assim apresentam currículo com nível de qualificação

profissional elevado, como podemos ver no exemplo da trajetória da técnica da

secretaria de desenvolvimento social do estado de São Paulo.

Minha formação é em ciências sociais, fiz mestrado em sociologia urbana na área de violência na USP, graduação e pós. Entrei na secretaria de desenvolvimento social do estado em 2009, depois de um concurso público feito em 2007, estou há 5 anos na secretaria, na área de proteção social básica, na coordenadoria de ação social. Mas a minha vontade de entrar (no serviço público) foi que desde que cheguei em são Paulo, porque sou de Guaratinguetá, eu via pessoas na rua aí eu pensava “como que eu vou trabalhar em outra área que não seja essa, ligada a isso?”. Aliás, eu nem sabia da existência da secretaria de estado que trabalhava na área de assistência social. Eu nem sabia que tinha virado política nacional, porque na sociologia a gente não aprende as políticas públicas: SUS, Suas, o que é um absurdo em nossa formação. Daí o que aconteceu: dentro da USP fiz ciências sociais, depois trabalhei no núcleo de estudo e pesquisas, que é o NEEP, que estuda violência, daí fiz o mestrado orientada pelo Sergio Adorno. Quando eu concluí tudo, eu falei: “e agora? Para onde eu vou?” Cheguei no topo da montanha e olhei o horizonte e pensei: “vou fazer concurso público? Vou para a área de pesquisa? Vou dar aula?” Daí fui prestar concurso público.

Outras gestoras apresentam a qualificação pelo tempo de trabalho e atuação

na área de políticas públicas sociais e acompanham o percurso de combate à

pobreza no Brasil durante os anos.

Com cargo de gestão desde 2009 para cá (ano de 2014), porém tenho 31 anos de serviço público [...] passei a trabalhar na assistência social, passei a trabalhar nos programas a partir de 2006. Tive a oportunidade de trabalhar na implantação de um restaurante popular e desde então passei a trabalhar nos programas. (Gestora na Secretaria Estadual do Pará).

Sou formada em Serviço Social, tenho pós-graduação em gestão pública e trabalho há 9 meses como técnica da Secretaria de Renda e Cidadania do estado do Paraná. Anteriormente tive experiência no Ministério Público do Paraná, na promotoria de direitos humanos, onde se trabalha principalmente com políticas de assistência. (Técnica de assistência social do estado do Paraná).

Estou trabalhando há 14 anos na gestão pública da política de assistência. Inicialmente eu trabalhei na gestão pública em Brasília, no âmbito Federal, no Ministério de Assistência Social em 2003 e, a partir de 2004 a janeiro de 2011, no atual MDS. Na sequência eu fui convidada a assumir trabalho na gestão estadual no Estado do Rio de Janeiro. No Rio eu estou há três anos. (Gestora estadual do Rio de Janeiro.).

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Dentre os desafios que a prática do combate à pobreza traz aos técnicos e

gestores, está um eixo comum que perpassa todos os profissionais que trabalham

com os pobres, qual seja: desenvolver habilidades para enfrentar situações que

requerem resoluções rápidas. Assim, a pesquisa ratifica que a noção de política

pública de pobreza como espaço do alívio imediato das urgências não é

ultrapassada quando se considera a prática desses profissionais.

O combate à pobreza, prioritariamente, no nível municipal exige um perfil

técnico dos burocratas de nível de rua que esteja preparado para lidar com

situações de urgências e emergência no dia a dia. Esse é um dos principais

balizamentos conceituais da prática de trabalho com os pobres desses sujeitos, e

independe das características regionais, dos territórios de atuação e da qualificação

de cada técnico.

Os termos emergência e urgência63 são denominações utilizadas nos

protocolos de atendimento previstos na área dos serviços da Saúde. Na política de

assistência social e no Programa Bolsa Família inexistem protocolos metodológicos

empregando o uso dos termos. Porém, cabe adequadamente à realidade vivenciada

pelos técnicos que atendem aos pobres, e desse aspecto decorrem consequências

significativas.

Tal realidade faz com que predomine entre os técnicos o sentimento de

impotência, desânimo e descrédito no próprio trabalho que executam pelo fato de

não conseguirem resolver adequadamente os casos mais críticos que atendem pela

falta de infraestrutura ou articulação da rede intersetorial necessária. Na visita ao

município de Feira de Santana-BA, a conversa com técnicos da equipe de

atendimento do Cras localizado em área de alta vulnerabilidade e pobreza trouxe

relatos sobre a complexidade dos casos que chegam até eles:

63

Emergência é todo caso em que há ameaça iminente à vida, sofrimento intenso ou risco de lesão

permanente, havendo necessidade de tratamento médico imediato. Alguns exemplos de emergências são a parada cardiorrespiratória, hemorragias volumosas e infartos que podem levar a danos irreversíveis e até ao óbito. Urgência é uma situação que requer assistência rápida, no menor tempo possível, a fim de evitar complicações e sofrimento. São exemplos de urgência: dores abdominais agudas e cólicas renais. A avaliação sobre o que é emergência e o que é urgência é feita no momento da triagem médica, quando se avalia o quadro, os potenciais riscos, a dor e o sofrimento do paciente.

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CASO 1: uma mãe que no ano de 2013 teve um filho de 17 anos

assassinado. O filho de 16 anos cometeu um assassinato em fevereiro de 2014 e

está detido. O filho de 12 anos já se encontra envolvido no tráfico. Desesperada e

sem saber o que fazer, quando a mãe sai para ir ao Cras, deixa o filho de 12 anos

acorrentado em casa, pois ela não sabe como fazer para “segurar” o filho viciado.

CASO 2: uma adolescente de 16 anos foi deixada pela mãe no orfanato aos 4

anos. Saiu do orfanato aos 12 anos, engravidou de um rapaz usuário de drogas e,

no momento atual, tem um segundo filho que ela deu para outro familiar cuidar. O

pai da criança soube da doação e ameaçou matá-la. Ela vive com as duas crianças

e não tem para onde ir, dorme de favor na casa que aceita que ela passe a noite.

CASO 3: uma mãe com sete filhos mora à margem de uma lagoa existente no

local. O marido, pai de seis dessas sete crianças, encontra-se no presídio. Ela

recebeu uma casa de um programa de habitação, mas se recusa a mudar de

moradia, porque gosta de morar próximo à lagoa e teme que no outro local não

exista infraestrutura necessária (vizinhos, comércio etc.). Ela faz tratamento no

CAPs (Centro de Atendimento Psicossocial) e cuida dos filhos sozinha. Em

determinados dias, devido à dosagem alta de medicação que toma, ela não

consegue acordar. Diante da situação, as filhas de 14 e 15 anos são as cuidadoras

dos outros irmãos menores e, dessa forma, não frequentam a escola.

Em alguns casos outros, o que está posto na prática cotidiana desses

profissionais é o limiar da vida ou morte de um ser humano.

Houve um caso de uma líder comunitária aqui da comunidade que chegou na frente do Cras, me chamou e abriu a porta do carro para eu ver. Era uma senhora que tinha HIV e ela estava quase morrendo para que pudéssemos ajudar o caso. Essa senhora morreu há quinze dias. (coordenadora do CRAS/ Feira de Santana).

Operacionalmente, o cotidiano de trabalho com essas demandas faz com que

os técnicos racionalizem suas ações de duas maneiras principais: 1. Com a

apropriação e responsabilização pessoal pelos casos; e, 2. desencadeando um

processo de descrédito na efetividade dos programas e serviços que executam. O

primeiro modo ocorre nos casos complexos, em que os técnicos articulam sua rede

de contatos pessoais, como amigos, familiares ou conhecidos que trabalham em

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órgãos e instituições que geralmente são articulados para resolução dos problemas

atendidos. Esse mecanismo informal de mobilização de recursos para viabilizar o

atendimento dos usuários em casos graves demonstrou ser uma prática muito

presente na operacionalização cotidiana dos profissionais na execução do combate

à pobreza.

A segunda alternativa esteve presente em quase todas as equipes visitadas.

A constatação de que os burocratas de rua são, em sua maioria, desacreditados nas

ações que executam é um dado de pesquisa. Acreditam os burocratas de rua que

dificilmente contribuem ou serão capazes de dar viabilidade necessária aos casos

complexos atendidos. Esses sujeitos têm o ponto de vista de que não são

detentores do poder político relacionado ao capital político de mobilização no

território da rede de articulações. E dessa forma, sentem-se impotentes diante

algumas situações, como a ausência dos equipamentos estatais necessários para

um encaminhamento adequado aos usuários.

Assim, constatamos que a adequação da racionalidade na hora de agir no

combate à pobreza com o público atendido surge da realidade posta aos atores, de

maneira que a construção dos conceitos de pobreza emerge da práxis cotidiana.

O processo de responsabilização das situações remete a um dos traços

característicos do trabalho dos burocratas de rua nos programas e serviços de

combate à pobreza, que é a flexibilidade de exercer o seu poder discricionário tanto

de maneira formalizada quanto por iniciativa pessoal. A responsabilização é uma

tentativa de atender aos casos de maneira mais igualitária, mesmo quando não há

instrumentalização necessária.

Isso ocorre como forma de alcançar a resolução e encaminhamento de

questões repentinas que surgem no decorrer da rotina e exigem solução imediata

em decorrência da urgência do caso. A tomada de decisão nesses casos é uma

forma comum de lidar com o inesperado nos equipamentos públicos que trabalham

com pessoas em situações de vulnerabilidade social. Nesse momento de lidar com

as adversidades, a classificação de prioridades é realizada pela racionalização

pautada num social stereotypes, como relata Lipsky (2010).

At best, street-level bureaucrats invent modes of mass processing that more or less permit them to deal with the public fairly, appropriately, and thoughtfully. At worst, they give in to favoritism, stereotyping, convenience, and routinizing all of which serve their own or agency purpose. (LIPSKY, 2010, p. 29).

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Os limites relacionados ao poder de decisão, à maneira como veem a

responsabilidade e as expectativas, também foram verificados na teoria de Lipsky

(2010) na atuação dos burocratas de rua. Para o autor, lidar com a incerteza é um

dos maiores desafios para esses profissionais que partilham de uma rotina

constantemente desafiada pelo limite do tempo hábil e das informações corretas

para tomadas de decisões.

Bureaucratic decision making takes place under conditions of limited time and information. Decision makers typically are constrained by the costs of obtaining information relative to their resources, by their capacity to absorb information, and by unavailability of information. However, street-level bureaucrats work with a relatively high degree of uncertainty because of the complexity of the subject matter (people) and the frequency or rapidity with which decisions have to be made […]. (LIPSKY, 2010, p. 29).

No entanto, além dessas situações, desenha-se em campo a exigência do

perfil do burocrata de rua que os usuários pobres atendidos esperam. Um exemplo

interessante foi encontrado no município de Davinópolis, de pouco mais de dois mil

habitantes, localizado no estado de Goiás. Segundo relato da gestora entrevistada,

não existia morador do município com nível superior para ser contratado e atuar no

Cras. A solução encontrada foi buscar profissionais do município vizinho.

No referido município pelo pequeno porte que apresenta, ainda permanecem

as relações sociais de vizinhança e parentesco como a principal forma de

sociabilidade local. De maneira que todos conhecem todos. Com isso, ocorreu uma

espécie de “rejeição” às técnicas burocratas de rua contratadas do outro município

para atender no Cras. Os moradores passaram a não frequentar o Cras por “não se

sentirem à vontade”, nem queriam partilhar sobre suas questões com as pessoas

“estranhas” ou “desconhecidas” que trabalham por lá (no Cras).

O exemplo é claro para demonstrar que, na experiência atual da relação

estabelecida do atendimento às pessoas pobres nos programas e serviços, há uma

construção para além de dados meramente objetivos e materiais. Existe, sim, uma

expectativa, por parte dos usuários, de estabelecer uma relação de subjetividade e

acolhimento em que ele (o usuário pobre) seja entendido na sua integralidade de

sujeito. É o esperado que o “foco” seja na sua biografia de vida mediada pelas

dificuldades enfrentadas na vida e não que ele seja apenas atendido e contabilizado

como previsto nos procedimento formais dos manuais.

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Pela multidimensionalidade da pobreza e sua complexidade, não se espera

que o atendimento seja considerado sem traços reconhecimento das situações

vividas pelos pobres. Cada vez mais a relação prática cotidiana do combate à

pobreza tem exigido uma interação que ultrapassa o caráter burocrático e material

das ações e dos atendimentos.

Por mais paradoxal que seja sob o ponto de vista do objetivo burocrático,

quando os moradores de Davinópolis não utilizam os serviços do Cras por achar que

as pessoas que atendem são “estranhas” ou “desconhecidas” demonstra que os

usuários dos programas e serviços de combate à pobreza buscam no atendimento

um estabelecimento de vínculos entre as partes. Seria uma forma de aproximação e

sensibilização que significa um reconhecimento de suas necessidades e sofrimentos

e angústias por parte dos técnicos ou da equipe com os quais vai interagir.

Nessa perspectiva analítica, pesquisas sobre beneficiárias de programas de

transferência de renda (MELLO JUSTO; 2009; REGO; PINZANI, 2013; ÀVILA, 2013)

apontam que a inserção em tais programas significa adentrar em processos

subjetivos dos sujeitos. Dentre estes estão o fortalecimento de autoestima, a busca

pela autonomia e a valorização e constituição de vínculos.

Se o papel das técnicas (referência da autora aos profissionais que aqui nesta pesquisa são denominados burocratas de rua) para o desenvolvimento do programa se mostrou bastante importante, como foi indicado até agora, por outro lado não se pode negligenciar a participação das beneficiárias como tal, figuram como personagens centrais do PGRFM, sendo em si responsáveis pelos resultados do programa [...] as mudanças de caráter subjetivo e político-cultural que começaram a surgir entre as beneficiárias não poderiam existir se não houvesse por parte delas uma reelaboração de tudo o que é falado e passado pelas técnicas. (JUSTO, 2009 – grifos nossos).

Porém, vale problematizar que essa “nova” configuração exige dos técnicos

burocratas de rua um perfil cada vez mais qualificado para lidar cotidianamente com

o aspecto da “subjetividade” no atendimento aos pobres e suas famílias. Apesar da

tendência encontrada em campo do crescimento da presença de profissionais com

nível superior compondo as equipes, isso não significa conhecimento ou qualificação

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adequados64. Esse fato foi retratado pelos responsáveis que monitoram ou apoiam

as execuções em outros níveis de gestão:

Todo dia aqui na secretaria (secretaria estadual) atendemos gestores e técnicos dos municípios, viajamos para monitoramento e notamos que houve um retrocesso nos trabalhos. Muitos gestores com formação mínima para ter discernimento dos processos de trabalho, as equipes de trabalho absorvendo profissionais recém-formados sem ainda a experiência necessária. Porque também a política é muito dinâmica e daí não dá conta de acompanhar os conhecimentos. [...] A gente fica refletindo como vamos atender, porque, assim, o município pequeno ele tem um assistente social e um psicólogo. Isso quando consegue contratar. Mas e aí? É porque o município não quer contratar? Não. É porque o psicólogo não quer ir para esse município porque é longe. Na maioria das vezes ficam apenas dois técnicos de nível superior para dar conta de toda demanda do município. (Gestora estadual de Assistência Social, Pará – 2014).

Sob o ponto de vista da gestão federal, na opinião do técnico responsável por

viagens de capacitação dos gestores estaduais e municipais do Programa Bolsa

Família em todo o país, existe uma defasagem no conhecimento e na qualificação,

Pelo que a gente viaja, pela capilaridade que é o país e pela forma que são escolhidos os gestores, a gente vê que, às vezes, são pessoas de nível médio que não têm conhecimento profundo de assistência social como um todo. Às vezes têm (conhecimento), mas não são todos que têm. Os gestores costumam ser assistentes sociais, mas não é necessário que seja. Eles têm conhecimento das normas que a gente passa. Quer dizer, tem conhecimento que existem documentos, informes de gestores etc. Conhecem muito pouco da legislação específica do Programa Bolsa Família. Eles conhecem, sabem que existe, mas têm dificuldade de leitura, de compreensão mesmo. Então são pessoas que têm capacidade, têm muito interesse, fazem ótima gestão, têm ótimas ideias, mas muitos, realmente, também precisam ser capacitados. (Gestor no PBF/MDS, 2013).

Apontamos dois pontos de análise importantes a partir dos depoimentos. O

primeiro, a expectativa e centralidade nos técnicos burocratas de rua municipais

64 Vale ressaltar algumas singularidades sobre a tendência encontrada no aumento do número de

profissionais de nível superior atuando nos municípios de pequeno porte I (até 20.000 habitantes). A hipótese é de que o aumento da presença nos estados e municípios de universidades que trabalham por meio do formato EAD (educação a distância) venha impactando esse dado. Alguns cursos podem ser feitos 100% por meio virtual, em outros casos podendo ser realizados com encontros presenciais (1 vez por mês, quinzenalmente etc.). Assim é significativo o número de profissionais encontrados nos municípios que conseguiram concluir o curso superior por meio de estudo a distância. É um procedimento recorrente serem firmadas parcerias/acordos com as prefeituras locais com objetivo de “qualificar” o “corpo técnico”. Foi raro um município durante as visitas que não tivesse em sua área de abrangência a prestação de serviço de uma faculdade que ofertasse esse tipo de formação às equipes técnicas.

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como sendo uma peça chave para sucesso das ações. Em que a ausência desses

profissionais ou a falta de conhecimento e qualificação para o trabalho configura um

fator que põe em risco o desenvolvimento das ações de combate à pobreza

localmente. Recai, assim, sobre esses sujeitos um processo de responsabilização e

exigência de qualificação para o êxito das ações.

Confirma-se também, como um segundo ponto, a hierarquia estabelecida nas

relações federativas aqui já tratadas. Apesar da existência de um pacto de

integração no apoio mútuo e reconhecimento da autonomia dos entes, os municípios

parecem ser o foco do sucesso ou insucesso da ação. No momento em que a

técnica do estado identifica a “desqualificação” dos técnicos municipais, fala-se da

incapacidade de gestão ou da responsabilização do outro, que na maioria dos

discursos é tida como sendo uma responsabilidade do município.

Pontos como a “desqualificação” ou “falta de conhecimento” dos técnicos de

nível de rua acaba sendo um discurso recorrente ouvido no depoimento das equipes

estaduais para justificar a baixa otimização dos resultados dos programas e serviços

nos municípios. A responsabilização do outro da atuação dos burocratas de rua na

implementação de uma política pública é um ponto de tensão no cenário de combate

à pobreza.

Outro dado analítico relevante é o alto rodízio de profissionais nas gestões.

Isso causa implicâncias diretas na atuação dos técnicos burocratas de rua. Em

algumas regiões visitadas, observou-se dentre as queixas dos gestores e técnicos

entrevistados a dificuldade de encontrar técnicos para ocupar as vagas nos

municípios com distância geográfica maior. A Região Norte do país se destaca pela

grande dificuldade de quadro dos profissionais burocratas de rua65. Nas demais

65

A diversidade territorial Amazônica foi um dos fatores para a pesquisadora mais desafiadores para

atuação dos técnicos na execução e concretização do combate à pobreza, tendo destaque para as condições de deslocamento disponibilizadas. Segundo relato dos técnicos, para o deslocamento aos municípios de Regiões de Ilhas, comunidades indígenas e área de fronteira quase sempre é necessário a utilização dos três meios de transporte: carro, balsa e avião. Os voos têm custo alto para as secretarias do estado, dessa forma, na maioria das vezes, os técnicos se deslocam em balsas e, quando possível, de carro. As estradas não apresentam boas condições. Na grande parte dos territórios não existe acesso terrestre. As viagens de balsa para um acesso de distância média, duram em torno de 3 a 10 horas atravessando rios, e em alguns casos duram dias. O estado não dispõe de transporte aéreo oficial para deslocamento de suas equipes. Algumas vezes, em situações urgentes, é solicitado reforço e apoio logístico do exército. O receio das situações de risco durante as viagens fez com que reduzisse o número de técnicos da equipe da Proteção Social Básica que fazem visita aos municípios. No ano de realização da pesquisa no estado do Pará (2014), um avião de pequeno porte que fazia o deslocamento com uma equipe da Secretaria de Saúde do estado, que viajava a trabalho ao município de Jacareaganca, localizado a 900 km de Belém, desapareceu na floresta, sem sobreviventes. Conviver com essas situações, segundo depoimento da técnica

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regiões, os municípios afastados da capital e área metropolitana também sofrem a

dificuldade de manter equipes completas nas suas ações de atendimento aos

pobres.

O nível de habilidade e conhecimento que o técnico terá do território em que

atua é fator relevante para lidar com os elementos decorrentes do contexto social,

cultural, simbólico e econômico dos indivíduos. Nesse sentido, é preconizado nas

orientações técnicas dos programas de combate à pobreza que, partindo desse

conhecimento, haja por parte dos técnicos melhor desempenho das suas funções

como também do controle das situações de risco e vulnerabilidade enfrentados

pelos considerados pobres.

O fato de o técnico não ter familiaridade ou não conhecer a realidade social

vivenciada pelo “pobre” no território causa um desconhecimento dos principais

fatores de vulnerabilidade social existentes dentre os considerados pobres, como

consequência disso podendo ocasionar uma falta de habilidade de lidar com as

situações que chegam até os equipamentos sociais de atendimento.

Diante desses fatores, de exigências e responsabilidades, a performance dos

burocratas de rua se apresenta rodeada de limitações devido à escassez de

recursos para desenvolvimento dos trabalhos e suas limitações de conhecimento e

qualificação pessoais. O que eles pensam e reproduzem sobre os pobres que

atendem e os programas vem imerso em sua realidade diária.

6.2 Diante do pobre: entre o antes e o depois

Na discussão sobre processos e políticas públicas, Vaistsman et Paes-Sousa

(2011) argumentam que, no trabalho articulado, a cooperação e confiança,

pressupõem, dentre outras coisas, que as pessoas acreditem na relevância daquilo

que estão implementando, ou seja, significa a legitimidade e adesão dos membros

da organização, os trabalhadores.

entrevistada, faz parte da rotina de deslocamento dos técnicos burocratas de rua nas visitas de monitoramento e atendimentos as famílias vulneráveis e “pobres”. Esse exemplo demonstra o quanto as especificidades regionais não podem ser desconsideradas na constituição das políticas públicas. Por curiosidade, um departamento da assistência do estado fez os cálculos dos custos de deslocamento que um município realiza dentro de seu território para ir até as famílias realizar visita domiciliar e/ou acompanhamento familiar e chegou à conclusão de que os recursos, mesmo agregando o cofinanciamento federal, não cobriam, minimamente, o custo necessário para o deslocamento. Esse é outro dado que deve ser lavado em consideração.

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Conforme observado em campo, nem sempre foi possível verificar a

credibilidade ou identificação dos técnicos com a atividade desenvolvida, de maneira

que trabalhar com os pobres causa várias percepções aos burocratas de rua. Nesse

sentido, a primeira demarcação analítica relevante foi observar que o olhar que

esses sujeitos têm sobre o pobre e a pobreza está focado num processo de

transição temporal entre o antes e o depois.

A opinião sobre os pobres e a pobreza na experiência dos técnicos segue

uma demarcação temporal diretamente relacionada à sua prática profissional. O

contato profissional com os “pobres” e suas problemáticas é o que vai estruturar a

percepção.

Antigamente eu tinha uma visão bem distorcida, até mesmo da assistência como um todo, principalmente do Programa Bolsa Família. Eu avaliava totalmente errado pela concepção que eu tenho hoje. Eu achava que era uma transferência de renda indevida, que era feita “ao léu”... E hoje eu já tenho uma concepção totalmente diferente. Me sensibilizou muito trabalhar na assistência. (Gestora do PBF – SC- Região Sul).

A mesma gestora faz questão de frisar que “sempre foi sensível” tal como um

movimento de autodefender-se de sua posição anterior sobre a percepção do pobre.

A “sensibilidade” a que a gestora municipal faz referência veio com o contato

cotidiano com os diversos problemas trazidos pelos usuários e aos ensinamentos de

uma colega de trabalho.

Eu sempre fui uma pessoa sensível, mas me sensibilizou mais depois de ter trabalhado na assistência, porque os problemas são latentes, e a gente que tenta fazer de conta que eles (os problemas) não existem. Então mudou minha perspectiva a respeito disso. Quem me ajudou muito foi a própria assistente social que trabalhou comigo, porque tudo que eu tinha de dúvida sobre a assistência ela me ensinou. (Gestora do PBF – SC- Região Sul).

O mesmo processo de construção foi observado no percurso de um jovem

servidor público concursado, educador físico, técnico de nível de rua que coordena

programas e serviços de atendimento da assistência social na Região Centro-Oeste,

na cidade de Brasília. No centro coordenado pelo técnico, são desenvolvidas ações

da assistência social nas quais o público são usuários considerados pobres que se

encontram em elevado grau de vulnerabilidade social e econômica. O equipamento

fica localizado em uma cidade satélite do Distrito Federal, recorte territorial

correspondente à área considerada de alto índice de violência e baixa renda.

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Tal como a gestora do PBF do município do estado de Santa Catarina, a

delimitação de tempo também está presente na trajetória do referido técnico. O

coordenador de ações da assistência social, antes de ingressar no cargo, não tinha

conhecimento do que se tratavam as ações de combate à pobreza.

O antes,

Olha, antes de vir trabalhar, eu achei que era um público que não trabalhava. Eu tinha muito isso na cabeça, né? Um público que só dependia da assistência social. Mas o que eu vi é que esse público é nossa grande mão de obra, mão de obra de trabalhos, de obra civil, quase todas as mães são servidoras da SLU (Sistema de Limpeza Urbana), são mães de alunos nossos.

O depois,

Então, assim, a grande maioria trabalha de doméstica nas casas ou tem trabalho fora e não consegue ter o acompanhamento dos filhos. No caso, sair da escola, almoçar e depois tem o outro período contraturno. Então é um público com alguns filhos. A grande maioria trabalha, são beneficiários do Bolsa Família de alguma maneira, têm o cadastro, não sei se recebem transferência de renda, mas são todas beneficiárias, e as crianças naquela área bem vulnerável. A situação de risco social pela proximidade do tráfico, pela falta de esgoto, saneamento básico, asfalto, falta de moradia bem estruturada. Daí as crianças vão ficando nas ruas sozinhas. Pelos prontuários que eu leio, vejo que quase todos aqui, entre 13 e 14 anos, quando tinham entre 8 e 9 anos a mãe era chamada em conselho tutelar por abandono, existem muitos desses registros. Às vezes por violência doméstica, às vezes muitas crianças ficam com uma pessoa que não podia cuidar. Então, eu vejo que quase todas têm esse histórico lá atrás né. (Técnico da Assistência Social – coordenador do Centro de Atendimento da Assistência Social – Brasília – Região Centro-Oeste).

O entrevistado conclui,

E, sinceramente, não sabia o que era Cras, não sabia o que era um serviço de convivência, e vejo que outros amigos meus que ainda estão lá fora (referência ao ciclo social de amigos próximos que não são profissionais da área) ainda desconhecem completamente o sistema. Quando fazem a pergunta: “com o que você trabalha?” Eu falo: “olha, senta que vai demorar”. Mas eu procuro explicar, procuro informar e todo mundo acha maravilhoso. Eu não conheço ninguém que fala: “Ah isso é um absurdo!”, falam que isso é um trabalho maravilhoso, é por aí. E eu explico exatamente como a gente faz e como acontece. (Técnico da Assistência Social – coordenador do Centro de Atendimento da Assistência Social – Brasília – Região Centro-Oeste).

A análise que pode ser feita a partir dos depoimentos é que a percepção

moral e valorativa que reproduz o estigma negativo da pobreza como “vagabundo”,

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“aqueles que não querem trabalhar” é o ponto de partida desses profissionais

quando chegam para executar suas funções. É relevante observar que em nenhum

momento os entrevistados fazem referência a palavras como: direitos sociais ou

garantias de direitos em suas falas.

Uma diferença pode ser demarcada, nesse caso, nas entrevistas realizadas

com os técnicos que faziam parte de equipes de municípios de médio a grande

porte, pertencentes às regiões mais populosas do país. Os profissionais que atuam

nos municípios de grande porte apresentaram uma percepção contextualizada com

objetivos estruturais das ações que executam. A seguir, o gestor de um município de

médio porte do estado do Rio de Janeiro apresenta o seu ponto de vista sobre o

atendimento dos considerados pobres em uma das ações e a inclusão no cadastro

único.

Na questão do cadastro (CadÚnico) tem duas questões. Tem o estigma que elas têm (as pessoas-usuários pobres que procuram o cadastro) e tem também o papel do entrevistador nessas ações, então um influencia no outro. Porém é muito subjetiva essa questão da pobreza, né? Você vai me dizer que a pobreza é uma questão de renda, outro diz outra coisa. Eu acredito que é uma questão mais estrutural. E isso influencia na hora de estar estruturando as ações, na hora que está identificando a família. Porque se não for por questão da transferência de renda, pode ser para acessar outros programas, outras ações. Você faz esse cadastro e daí você pode identificar que ela (a pessoa-usuário) não tem um posto de saúde próximo, que não tem uma escola, o acesso que ela teve ao ensino também em determinadas áreas, você consegue ver isso. Os que são mais vulneráveis na área da saúde, questão do saneamento. Então tem que trabalhar e ter muito cuidado. Acho que é como porcelana mesmo, pode quebrar e você afasta o público e o usuário do seu trabalho, então fica difícil. E tem a questão de você julgar a pessoa, né? (Gestor do Programa Bolsa Família Município de Mesquita-RJ).

A nuance observada entre os técnicos que atendem aos pobres em

municípios de pequeno porte e de portes maiores pode ser entendida pela condição

territorial em que trabalham e pelas complexidades problemáticas que se

apresentam no dia a dia. Mostra também que a equidade de posturas e atuações

dos técnicos não pode ser considerada uma variável constante e regular, mesmo

que a burocracia busque isso. Apesar de as diretrizes nacionais dos programas e

serviços buscarem um ponto de partida minimamente nivelado em relação aos

procedimentos, qualidade e compreensão das ações, sobressai a realidade local, o

entendimento de quem executa.

Como conclusão deste tópico, pelos apontamentos das falas dos

entrevistados analisamos que a percepção dos técnicos é mediada pela busca da

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objetividade das normativas técnicas, porém associando a isso os fatores sociais e

subjetivos que constroem as percepções dos sujeitos antes de chegar a sua função.

Como vimos, existe uma opinião anterior que pode ser mudada ou não com o

decorrer da prática.

Assim, os técnicos apresentam um estágio de percepções até que a prática

conduza a uma construção dos seus próprios conceitos sobre o que é o pobre e a

pobreza atendida cotidianamente.

6.3 Entre o julgamento e a objetividade

Este tópico retrata um dos resultados da pesquisa de campo de maior

relevância na edificação da tese aqui proposta sobre a maneira institucionalizada do

combate à pobreza pela prática dos burocratas de rua. Trata-se da conduta

encontrada na atuação dos técnicos em que tem destaque o exercício do

“julgamento” e do “olhar inquisidor” como uma das técnicas de trabalho dos

burocratas de rua para o atendimento aos pobres.

Os “critérios” de julgamento não ocorrem de maneira aleatória. Eles partem

de impressões racionalizadas pela experiência prática. Esse processo é uma

espécie de instrumentalização na tentativa de obter objetividade e proporcionar

“justiça” no julgamento de quem merece ou não ser inserido nos programas de

combate à pobreza, no caso aqui específico, o programa de transferência de renda.

Essa prática constrói juízo de valor no ato do atendimento dos sujeitos que

apresentam a sua condição de pobreza ao técnico. Nas entrevistas com técnicos

burocratas de rua durante a pesquisa, ficou clara a evidência do julgamento moral e

de merecimento que adotados como procedimentos para exercer suas funções

técnicas:

A gente percebe as pessoas, quem realmente vive em vulnerabilidade. A gente percebe aqueles que querem se aproveitar para poder receber o programa. (Técnica PBF, BA – Região Nordeste).

Ao ser indagada sobre os procedimentos utilizados para identificar quais eram

as famílias e usuários que procuravam atendimento com o objetivo de “se aproveitar

do programa” a técnica argumenta:

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É porque, com o passar do tempo, a gente aprende a perceber quando uma pessoa tá sendo mais sincera ou está tentando omitir alguma informação. Até o curso ajuda a gente a perceber isso (referência ao curso de graduação em serviço social). A gente consegue perceber quando uma pessoa está sendo sincera ou não, de uma certa forma, né? E tem alguns que, realmente, quando a gente percebe que precisa de uma visita para averiguar se aquela informação é verdadeira. Quando a gente pede que a assistente social vá à casa daquela pessoa, muitas vezes a gente vê que a pessoa não tava falando a verdade.

Tipo assim, como tem hoje muitos programas voltados para habitação, aí alguns tentam ver se consegue receber a casa, a esposa e o esposo, sabe? Omitem informações para que eles consigam obter duas casas e não só uma. Aí a gente consegue perceber isso. Às vezes omite a gente pergunta: cadê o documento do esposo? “Ah, eu não tenho esposo”. Aí a gente vai apertando, apertando até que descobre que a esposo existe. (Técnica PBF, BA-Região Nordeste).

Analiticamente podemos denominar a tentativa de racionalizar por meio de

um “crivo próprio” os usuários dos programas que os técnicos burocratas de rua

desenvolvem em sua pratica de “juízo do merecimento da pobreza” ou “julgamento

do mérito da pobreza” sobre os pobres atendidos. O que pode ser entendido como

uma emissão de um julgamento valorativo adquirido por meio de processos de

racionalidade prática de percepções adquiridas com a experiência com os

atendimentos dos usuários “pobres”.

O julgamento do mérito é, em sua maioria, direcionado aos usuários de

programas de transferência de renda ou em outros programas em que o usuário

procura o atendimento com o objetivo de receber algum bem material.

O julgamento do mérito da pobreza dos técnicos que atuam no atendimento

direto aos pobres desenvolvido é aprimorado com a experiência cotidiana para

identificar se o sujeito é ou não pobre. Tais parâmetros se consolidam com base nas

referências da realidade em que esses profissionais atuam. Envolve, nesse sentido,

valores pessoais e culturais que fizeram ou fazem parte da vida dos técnicos sobre o

que é pobreza. É um procedimento que não é previsto nos critérios estabelecidos

nos manuais de orientação do programa.

Partindo de tal pressuposto, foi possível compreender no dia a dia de trabalho

dos burocratas de rua o compartilhamento sobre concepções dos usuários que

frequentam os equipamentos públicos de atendimento. Na maioria dos municípios

visitados, nas cinco regiões brasileiras, os técnicos pesquisados, em algum

momento da entrevista, embasam na sua fala a importância de acertarem no

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julgamento dos sujeitos e sua pobreza, ou seja, no merecimento de o sujeito ser ou

não atendido em programas de transferência de renda e ações de assistência social

conforme os critérios de julgamento que eles acreditam ser o que classifica a

pobreza.

Ao pesquisar processos de humilhação moral no dia a dia de um grupo de

beneficiárias do PBF na periferia do Rio de Janeiro, Marins (2014) traz dados

relacionados à postura dos técnicos burocratas de rua no atendimento aos “pobres”.

A pesquisadora observa o que denomina de experiências de preconceito e

humilhação. Pode-se verificar a seguir que, dentre as humilhações encontradas

durante a pesquisa, está a trajetória institucional desses sujeitos.

Como ao se tornarem beneficiários de um programa de transferência de renda, as pessoas passam a vivenciar experiências de humilhação e de preconceito, que marcarão suas trajetórias no âmbito institucional (relacionadas, de modo geral, ao Programa Bolsa Família) e na vida social do bairro. Aqui se torna importante mencionar que a função do cadastramento do PBF não e eleger beneficiários, mas somente incluir os candidatos a Bolsa no sistema federal chamado CadÚnico. (MARINS, 2014, p. 547).

Para Jaccoud (2014), nos últimos dez anos, houve um avanço nas políticas

sociais com a construção de sistemas integrando e fortalecendo iniciativas em

termos institucionais e de gestão, incluindo desde mecanismos de financiamento e

instâncias e procedimentos de pactuação federativa até a expansão de

equipamentos, recursos humanos e financeiros.

Dentre os desafios das políticas sociais apontados pela autora, alguns deles

se encontram no campo político. Jaccoud (2014) avalia que a constância dos

julgamentos morais desde a implementação sobre os beneficiários do Bolsa Família

é um dos desafios. Esse fato expressa, ainda segundo a autora, a influência limitada

de um ideário republicano tencionando a proteção social no sentido da igualdade.

Da mesma forma, o volume de resistências que em pleno século XXI ainda se levantam contra o Programa revela que a leitura neutralizadora da miséria e da desigualdade ainda se encontra operante na sociedade brasileira, com impactos também no formato e legitimidade das ofertas de serviços e benefícios sociais. (JACCOUD, 2014, p. 642-643).

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Dentre os aspectos instigantes do recorte de pesquisa pelos burocratas de

rua foi perceber que a resistência e leitura naturalizadora da pobreza é reproduzida

dentro dos aparatos estatais. Presenciar depoimentos carregados de estigmas

ratificadores de preconceitos vindos de gestores municipais, estaduais de programas

da política de Assistência Social, do Bolsa Família etc. causa profunda inquietação.

Um exemplo desse fato ocorreu durante a fala do então secretário da

Secretaria Extraordinária para Superação da Extrema Pobreza (Sesep), do

Ministério de Desenvolvimento Social (MDS), sobre o Programa Brasil Sem Miséria

(BSM) no Encontro Nacional de Novos Prefeitos, realizado em janeiro de 2013, em

Brasília. Enquanto o secretário descrevia o objetivo do eixo de inclusão produtiva

dos usuários dos programas de combate à pobreza, foi interrompido e questionado

por diversas vezes pelos gestores estaduais e municipais que relatavam sobre o não

interesse dos “pobres” de seus municípios em serem inclusos no mercado de

trabalho.

O olhar analítico, nesse caso, recai não no ato de contrariedade de ideias ou

do questionamento em si, mas nos sujeitos do ponto de partida onde surgem os

questionamentos:

[...] Senhor secretário, no meu município houve um curso do Pronatec para todos os usuários do Bolsa Família, para trabalhar numa fábrica que estava instalada lá próximo. Quando terminou o curso, nenhuma delas quis ir trabalhar, com medo de perder o Bolsa Família. Como a gente deve lidar com essa situação? Eles não querem trabalhar, não adianta!. (Intervenção de gestora municipal de programas e serviços de combate à pobreza durante o Encontro Nacional de Novos Prefeitos, realizado em Brasília, em janeiro de 2013, Diário de Campo da Pesquisadora).

Repetidas vezes a questão veio à tona dentre o público de gestores durante o

evento.

Com isso, não seria equívoco concluir, pelos exemplos registrados neste

tópico, que a reprodução de estigmas sobre a percepção da pobreza e dos pobres

se encontra presente dentre os responsáveis pela gestão e execução dos

programas de combate à pobreza. A gestão de políticas que busca a ruptura do ciclo

da pobreza guarda ranço histórico de estigmas sobre o pobre e a pobreza. Mesmo

entre integrantes da gestão federal, há apreços valorativos sobre que ao homem

deve-se “ensinar a pescar” e “não dar o peixe”. Diante dessas constatações, resta

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saber o que seria a pobreza no universo de perspectiva criado pelos técnicos

burocratas de rua.

6.4 A pobreza para quem recebe os pobres

O entendimento predominante sobre o conceito de pobreza para os técnicos

burocratas de rua entrevistados responsáveis pelo atendimento aos pobres é a

pobreza como falta ou ausência de acesso. A demarcação analítica nesse caso é

que a falta não está relacionada ao acesso dos sujeitos direto aos bens e serviços,

mas a um estágio anterior a esse acesso. Pobreza seria, assim, a falta de acesso a

informações necessárias que habilitem os sujeitos à condição de conhecedores de

seus direitos em todas as áreas, de forma que os instrumentalize a reivindicá-los e

buscá-los durante o curso de suas vidas, sempre que necessitar.

Eu acredito que pobreza é um conjunto de várias ausências. Ausências de renda, de acesso aos serviços e programas, ausência de conhecimentos, ausência de perspectiva, ausência de autonomia. Acredito que a pobreza não é apenas financeira é toda uma conjuntura que a pessoa vive. (Técnica da Gestão Estadual do PBF – Paraná).

Pobreza é, além de a pessoa não ter como se manter, como sobreviver, não ter como pagar os custos da sua alimentação, sua saúde e tudo o mais, é também a pobreza no sentido de ela não ter acesso, não ter como e não ter acesso. Porque ela tendo algum acesso a algum tipo de informação, ela pode não estar inserida nesse contexto de pobreza. Mas pobreza pra mim é não ter como se manter e sobreviver e não ter nem acesso a isso. (Técnica da Gestão PBF – Santa Catarina).

Essa demarcação se diferencia do entendimento da pobreza como falta

presente nos anos 1980 até início dos anos 1990, quando se discutia pobreza como

falta materializada no acesso direto aos bens ou elementos mínimos vitais à

sobrevivência, tais como alimentação, moradia, assistência etc.

Essa concepção não foi de todo descartada nos discursos dos técnicos,

porém, em nosso ponto de vista, a ela foi acrescentada um dado novo, que seria o

elemento da privação do sujeito a algo. A falta como privação de subsistência

mínima se transforma na falta como ausência ou acesso à informação, que leva o

sujeito a uma desqualificação para ser protagonista do seu papel de cidadão em

sociedade.

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Num primeiro momento, os sujeitos considerados pobres eram os “assistidos”,

os “descamisados”, necessitando de uma proteção em curto prazo. No contexto das

políticas atuais, a pobreza encontrada no discurso dos burocratas de rua configura

que os pobres saindo do status de “descamisados” e “desprotegidos” e iniciando

outro patamar para a institucionalização da pobreza, ou seja, o locus da autogestão

sobre suas vidas, da proatividade, do “não esperar pelo Estado”, do “não dar o

peixe, e sim ensinar a pescar”.

Nesse sentido, observou-se como exigência clara por parte dos técnicos

burocratas de rua que os pobres devem ter capacidade e proatividade diante da

condição social da sua pobreza. Isso significa dizer que eles devem ter acesso aos

conhecimentos necessários dos caminhos de seus direitos. É isso que os técnicos

burocratas de rua esperam que todos os programas e serviços proporcionem aos

“pobres”.

Eu acredito que pobreza é um conjunto de várias ausências. Ausências de renda, de acesso aos serviços e programas, ausência de conhecimentos, ausência de perspectiva, ausência de autonomia. Acredito que a pobreza não é apenas financeira, é toda uma conjuntura que a pessoa vive. (Gestora

estadual no PBF Paraná).

Os profissionais entrevistados esperam que o Estado atue não apenas

permitindo o acesso a benefícios e/ou renda, mas que “instrumentalize”, “ensine”,

“capacite” os “pobres” com conhecimento suficiente para que eles possam ser

protagonistas em qualquer momento de suas vidas na busca de seus direitos.

A pobreza como falta de acesso à informação encontrada em campo

guarda relação com a ideia emergente do sujeito bem informado, uma sociedade em

que os sujeitos estão postos aos múltiplos acessos aos conhecimentos, às múltiplas

possibilidades de estar no mundo. Não se admite, assim, o não conhecer como

condição social.

Nesse modelo, a acesso às múltiplas informações se configura em uma

condição legitimada socialmente de um sujeito emancipado. Essa visão se afasta de

uma pobreza atribuída apenas à condição financeira ou de renda do cidadão,

passando a ter foco na multidimensionalidade de fatores que levam a pobreza,

incluindo a inserção.

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É a ausência ou escassez de qualquer coisa. Eu não gosto de colocar a ideia de pobreza ligada ao fator econômico, e quando você incorpora a ideia do que é pobreza, você já incorpora a ideia da ausência de direito de tudo aquilo que prover o cidadão. Então como a ideia de pobreza tá muito ligada à renda, então é complicado você trabalhar o técnico de Cras que tem sempre um lugar muito enviesado à questão econômica: “então ele é pobre” (o técnico classificando o usuário) e é isso. Não que a pobreza que ele tá envolvido envolve toda a escassez que ele tá envolvido, mas porque é a única que pode encaixar em qualquer coisa, inclusive na pobreza de espírito (pode ser qualquer coisa). (Técnica São Paulo – Assistência social).

Diante de suas multifaces, a “pobreza pode ser qualquer coisa”, chega-se a

questionar se os critérios de recorte de inclusão nos programas são legítimos, uma

vez que comparada a condição social de determinados segmentos sociais sobre

alguns tipos de acessos em detrimentos de outros, os sujeitos podem se ver na

mesma condição de privação, como foi o caso do depoimento da assistente social

coordenadora de um Cras na cidade de Fortaleza,

acho que isso está tão relativo porque algumas vezes eu me vejo como usuária do Cadastro Único. Eu digo isso no meu trabalho e as pessoas acham graça. Eu pergunto: por que vocês estão achando graça? Eu estou no perfil do Cadastro Único. Eu e minha família estamos no perfil de Cadastro Único. Daí elas perguntam: por que você não se cadastra? Porque eu tenho dignidade. Eu sou servidora pública, eu acho que eu não posso estar lá. (Técnica de Cras, Fortaleza-CE).

Para além da imposição do limite moral de achar desonesto, a presença de

uma servidora pública no CadÚnico é apresentado e questionado o conceito de

pobreza,

assim, eu me olho e me pergunto “então qual o conceito de pobreza? Então eu sou pobre?” Eu não estou em vulnerabilidade social realmente, mas esse conceito dado pelo Cadastro Único, eu acho meio relativo. O que é pobreza? Pessoas que não têm acessos mínimos ou pessoas que têm acessos, mas o acesso é limitado? Eu tenho acesso limitado a muitas coisas. Eu gostaria de fazer muitas outras coisas, inclusive viajar, mas não posso. Eu gostaria de ter acesso a uma pós-graduação e muitas vezes em alguns meses volto atrás, porque não sobre grana e a pós-graduação é caro. O mestrado é caro, um doutorado profissional ainda é mais caro. Então o que é pobreza? É realmente ter o mínimo ou ter algo limitado e se limita a fazer muitas coisas. É muito complexa essa questão. (Técnica, CRAS, Fortaleza-CE).

Como servidora pública, a técnica identifica nos usuários que atende algumas

situações que ela também enfrenta, principalmente na perspectiva da pobreza como

ausência ou falta de acesso. Dessa forma, ela se sente legitimada à identidade de

pobre que é atribuída aos cadastrados no CadÚnico como forma de suas privações.

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Assim, o conceito de pobreza presente nas falas revela a complexidade de

interpretação que pode ser a ele dado. A perspectiva dos técnicos em relação à

pobreza é a de autorresponsabilização do indivíduo sobre sua própria pobreza. O

Estado é visto apenas como um instrumentalizador da condição de emancipar, e não

de proteger. Emancipar os pobres para sua autossuficiência por meio da

autossustentabilidade, de forma que rompa sua dependência com benefícios

recebidos pelo Estado.

6.5 Enfim: “O Programa Bolsa Família é bom, mas precisa melhorar!”.

Todas as entrevistas e observações com os técnicos e gestores

resguardaram um tom crítico relacionado ao Programa Bolsa Família. O pensamento

é de que o programa não ajuda em proporcionar autonomia aos pobres, mas, sim,

em viciá-los no próprio ciclo da pobreza, pois “eles não querem trabalhar, querem

viver do Bolsa Família”. O anseio dos técnicos é que o governo federal conseguisse

ser, nas palavras dos entrevistados, mais “duro”, “firme” e “criterioso”, de forma que

conseguisse induzir e inserir os usuários no mercado de trabalho.

Diante dos constantes questionamentos da opinião pública, como também

dos técnicos e gestores que trabalham no programa, a Secretaria de Avaliação e

gestão da Informação (Sagi/MDS)66 realizou uma pesquisa para investigar a máxima

de que o usuário do Bolsa Família não trabalha ou larga o trabalho para ficar no

programa. Como resultado, constatou-se que entre os beneficiários do Bolsa

Família, em idade ativa para o mercado de trabalho, aqueles com mais de 18 anos,

cerca de 75% trabalham ou estavam procurando trabalho. Segundo informações do

Ministério, no ano de 2015, essa taxa é semelhante à taxa da população que está na

mesma renda e não beneficiária do Bolsa. Ainda na mesma temática, segundo o

Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)67, 75,4% dos

beneficiários do Bolsa Família trabalham. Outro dado relevante é que, desde o

lançamento do programa, em 2003, 1,7 milhão de brasileiros deixaram de receber o

benefício por não precisar mais da ajuda do governo.

66

Informações disponíveis em: <http://mds.gov.br/assuntos/bolsa-familia>. Acesso em: 21 dez. 2015. 67

Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2014/05/bolsa-familia-75-4-dos-beneficiarios-estao-trabalhando>. Acesso em: 12 jan. 2016.

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Para além da tentativa científica, o MDS investiu em peças de campanhas de

publicidade sobre o tema. O cartaz abaixo é uma das ferramentas como forma de

desconstruir a ideia de que pobre do Bolsa Família não trabalha. Na mídia68 são

atualizados números das pesquisas realizadas e usuários que trabalham, além do

índice de afastamento do programa por uma autoavaliação de que não precisam

mais da renda recebida do programa.

Figura 2: Divulgação de dados sobre Programa Bolsa Família

Fonte: Disponível em: <www.mds.gov.br>.

Conforme concordam vários autores (COHN, 2015; MARINS, 2014; JUSTO,

2009; PEREIRA, 2007), o julgamento moral dos pobres que participam do programa

é uma das principais marcas dessa experiência de política pública. O curioso da

pesquisa neste documento apresentada foi constatar que o julgamento moral não

parte apenas da sociedade ou daqueles que não conhecem a estrutura do

programa, mas se encontra presente no interior e nas práticas das estruturas do

Estado e, muito significativamente, entre os técnicos de nível de rua que trabalham e

fazem atendimento aos usuários do Bolsa Família nos diversos municípios

brasileiros.

Na pesquisa desenvolvida por Marins (2014), com usuária da área de periferia

do estado do Rio de Janeiro, pode-se acompanhar por meio de um depoimento de

68

Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2014/05/bolsa-familia-75-4-dos-beneficiarios-estao-trabalhando>. Acesso em: 21 dez. 2015.

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uma usuária como ela vê e retrata a forma como se deu o atendimento com os

técnicos burocratas de rua.

Uma beneficiária [...] afirma que, no momento de realização do cadastro,

viveu a experiência da humilhação.“Naquele dia ali eu me senti humilhada.

Tem muita gente que desiste por isso, né? Falei que estava passando necessidade e eles já te tratam com desconfiança, acha que você está mentindo”. (MARINS, 2014, p. 547).

Outra usuária, segundo a pesquisadora, também afirma ter sofrido

constrangimento exercido pelos “atendentes”, ou seja, os técnicos burocratas de rua,

Afirmando sofrer constrangimentos, outra beneficiaria [...] salienta que a humilhação sofrida foi exercida, sobretudo, pelas atendentes do setor de cadastramento no âmbito da coordenação do Bolsa Família: Elas dizem: “É só isso mesmo, querida”. “O Governo não vai dar mais nada não!”. “Vocês têm que trabalhar!”. “Não tem mais nada não!”. Aí eu nem vou mais lá na casa amarela, porque não quero ser maltratada. Elas lá ficam falando para qualquer um ouvir: “Vocês ficam na farra e não querem nada, só ganhar dinheiro fácil!”. (MARINS, 2014, p. 548).

O depoimento da maioria dos técnicos entrevistados na presente pesquisa

ratificam os trechos acima registrados nas falas das usuárias do PBF, conforme

abaixo:

Não acredito no programa. Eu acho totalmente assistencialista e paliativo. (Técnica Coordenadora de Cras – Fortaleza-CE).

Tem pessoas que não querem que assine a carteira para não perder o PBF, então, acho que tem que se encontrar um meio para fazer com que essas pessoas entendam que o Bolsa é uma ajuda por um tempo determinado, mas que eles também precisam de alguma forma se engajar, financeiramente falando, numa área de trabalho. Se não tem como assinar carteira, mas que faça um bico, que tenha um sustento. Que não viva só disso. (Técnica PBF – Feira Santana-BA).

Para a maioria dos burocratas de rua, os usuários estabelecerem um círculo

vicioso com o programa. Eles acreditam que muitos usuários deixam de trabalhar

para viver apenas da transferência de renda numa situação de acomodação que

gera inércia no processo de emancipação esperado pelo programa.

[...] Ao meu ver, ele teria que dar o peixe, mas também a vara para pescar... tem pessoas que enxergam o Bolsa Família como um salário fixo que tem que viver daquilo ali, então como recebe o Bolsa não percebe que precisa viver de outra coisa, então: “eu não preciso fazer bico, eu não preciso trabalhar”, sabe? (Técnica PBF – Feira Santana-BA).

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[...] ele traz no seu aspecto, que não é muito positivo, a acomodação. Porque as pessoas acabam se acomodando nessa zona de conforto por ser um mínimo, sem perspectiva de melhorar. Então ele está lá na terra dele e “... não... eu vou receber o Bolsa e vou dando meu jeito aqui...”. Tem o lado positivo, que faz com que essa pessoa minimamente tenha acesso a uma aquisição. Mas pela nossa cultura ainda está muito longe dessa emancipação. (Técnica Coordenadora Proteção Social Básica – PA).

O apontamento dos técnicos é que a gestão federal tem que ser mais criteriosa

e firme na indução e inserção dos usuários no mercado de trabalho. O principal

argumento é de que: “eles não querem trabalhar, querem viver do Bolsa Família.” Os

gestores levam esse entendimento também para os espaços públicos, nos eventos

em que participam, como foi visto anteriormente no exemplo da interrupção da fala

do secretário do Brasil Sem Miséria e Erradicação da Pobreza do MDS.

Um dado relevante é o monitoramento sobre o que faz o pobre com a renda

recebida pelo Bolsa Família. Em uma experiência de capacitação de técnicos

municipais, a técnica do estado do Paraná relatou que outros técnicos questionavam

o porquê de algumas usuárias fazerem “chapinha” no cabelo para ir aos encontros

regulares de acompanhamento do Programa Bolsa Família.

“Porque que ela faz esmalte? Porque ela faz chapinha de cabelo?”... Então a gente vê situações bem extremas assim, mas você viu que ela veio de chapinha no cabelo? (Técnica do programa Bolsa Família – estado do Paraná).

A mesma técnica atribui a falta de conhecimento e de qualificação sobre os

programas à alta rotatividade de técnicos nos municípios.

Isso também ocorre pela alta rotatividade de profissionais que a gente não consegue dar conta de todas as capacitações no estado. Por conta dessa alta rotatividade também que acaba prejudicando o acompanhamento dos fluxos. E também acredito que isso é um reflexo da má gestão no município, não só a gestão do Cadastro e do Bolsa, mas a má gestão da política de assistência no município. Por não querer proporcionar qualificação profissional para os técnicos, não estimulá-los, pela importância que eles têm, não só pela assistência, mas enquanto cadastro e demais políticas públicas. Então isso é um problema gradativo, não é só da “ponta” (referência os profissionais), mas da gestão também. (Idem).

Dissensos existentes e o olhar estigmatizador dos atores que trabalham no

atendimento dos considerados pobres do Programa Bolsa Família geram, na rotina

desses profissionais, uma “ação de caça às bruxas”. Assim, soma-se a isso

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responsabilidade de atendimento, cadastro e ações com os usuários, a necessidade

de desenvolver o que pode ser denominado de “expertise” para saber se o “pobre”

está mentindo ou não sobre sua pobreza. As tentativas de “fraudes” também se

apresentam como uma constante no depoimento sobre o programa.

Se o programa existe pra ter este cruzamento de dados, como que é feito este cruzamento de dados? Eu queria saber isto. E se ele não está sendo feito corretamente tinha que melhorar. Porque se você chega aqui, me fala que você não mora com seu marido, ou melhor, fala que seu marido trabalha o dia a 20 reais, aí eu pergunto se tem carro, se gasta com combustível e tal e ela diz que não tem. Mas na real ele tem lá um caminhão, um carro de passeio, está no nome dele, como é que não cruza. Isto aí eu acho assim que deveria ser aperfeiçoado. (Técnica e coordenadora do PBF Simonésia-MG).

Omitir informações é outro traço atribuído aos “pobres” do PBF pelos técnicos,

é quase unanimidade falar que uma das principais características dos atendimentos

é que os usuários “mentem” para entrar e estar no programa. A gestora estadual que

capacita os técnicos municipais de seu estado faz referência ao fato.

Em muitas capacitações isso fica evidente na fala dos técnicos quando eles questionam que as informações (do CadÚnico) são autodeclaratórias, que todos omitem informações. Eles (os técnicos) acabam generalizando que todos fazem de má-fé, que todos querem ganhar mais. E a gente percebe que isso é muito negativo até porque eles não levam em consideração as diretrizes, os princípios e os objetivos os quais eles deveriam estar dispostos. (Técnica do programa Bolsa Família – estado do Paraná).

Mesmo quando o técnico relata ser a favor do programa e defende os

objetivos da transferência de renda, são observadas restrições ao usuário, por

exemplo: fazer crítica à forma como os usuários gastam a renda recebida no

programa. Nesse caso, geralmente eles apresentam regras para a maneira “correta”

com que o usuário deveria gastar os recursos para aliviar a sua situação de pobreza,

eu vejo essa pobreza querendo melhorar, as pessoas adquirindo mais renda e aí vem a diminuição da pobreza, mas não sabendo o que fazer com essa renda. Eu (referência aos usuários) poderia tá melhorando o sistema de esgoto da minha casa eu poderia tá melhorando uma geladeira, alguma coisa, mas não, eu prefiro comprar um carro. Então a pobreza tá em movimento sim. Estão saindo da pobreza muitas pessoas, mas sem qualidade. Eu acho que elas podem voltar facilmente, por exemplo, com a perda do emprego, a perda de um benefício por algum motivo, ela vai facilmente voltar àquela situação de pobreza. (Técnico coordenador da Assistência Social – Brasília-DF).

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Para o técnico burocrata de rua acima, o Estado se empoderou, mas não

orienta para o consumo.

A gente empoderou, mas falta um pouco da orientação, mas eu acho que existe programa, a informação taí. Mas, ao mesmo tempo, a velocidade da indústria do comércio de forçar o consumismo por consumismo. Eu não sei o que esses meninos (referência aos adolescentes e crianças com quem trabalham) veem num tal de chinelo Kenner, R$ 90,00 esse chinelo. Todos aqui, os servidores, usam chinelo de R$ 10,00 e R$ 15,00, que é havaiana. Eles só usam o tal do kenner de R$ 90,00. E tem mãe que vem aqui e fala – “pelo amor de Deus eu não tenho dinheiro, mas ele quer!”. Então, assim, eu vejo as crianças das classes mais favorecidas, assim também as classes B, C nesse consumismo, às vezes, deixando de comprar coisas que seriam mais essenciais dentro da casa para ter aqueles acessórios que estão na moda, essas coisas assim. (idem).

Quando indagados sobre o que poderia ser aprimorado diante das críticas

feitas ao PBF e a relação com os considerados pobres, as principais sugestões dos

técnicos burocratas de nível de rua guardam estreita relação com o papel de

fortalecer o julgamento do mérito da pobreza.

A perspectiva de efetivar meios de controle mais precisos é a principal

reivindicação, tais como: maior controle dos sistemas como o CadÚnico; inserção de

outras variáveis na pontuação geral recebida pelas famílias; mudar tipos de metas e

estratégias sobre as regras de permanência no programa; definir melhor o público,

ter mais controle, critério e monitoramento; avaliar melhor o real desenvolvimento

das famílias etc.

A partir dos dados apresentados no capítulo VI sobre a percepção do pobre e

da pobreza pelos técnicos burocratas de rua entrevistados, temos as seguintes

ponderações conclusivas.

Os conceitos para os técnicos burocratas de rua são construídos no campo

de racionalização da prática e ações desenvolvidas, em decorrência das demandas

de atendimentos rotineiros aos usuários. Esses profissionais não detêm um

conhecimento conceitual detalhado sobre o Programa em que atuam, e sim

apresentam um saber básico que subsidia a execução das suas funções.

Sobre o resultado da maioria das falas acerca do que é a pobreza: “pobreza é

estar em uma condição de não saber, de não ter acesso à informação, não saber

como conseguir as coisas” vale frisar algumas observações relevantes.

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Percebe-se que os elementos definidores de pobreza para os técnicos vêm

da “prática”, e não dos “manuais de orientação” da política. Os fatores citados, “o

acesso”, “não saber como acessar” e a “falta de informação” são a motivação

cotidiana da demanda que atendem. A maioria dos usuários “pobres”, quando

atendidos, vai em busca de ter acesso ou obter informações sobre que “benefícios”

pode obter para “aliviar” a situação de pobreza apresentada.

Ao conceber pobreza como falta de acesso e informação, está incutida nesse

critério uma exigência própria do entendimento desses técnicos sobre qual é o papel

do Estado como gestor que institucionaliza o combate à pobreza. A inserção em

ações estatais como o PBF pressupõe que o indivíduo será fortalecido em suas

capacidades para obter uma liberdade substantivas (SEN, 1999) de sua autonomia e

protagonismo em seus processos sociais. Ou seja, ao se desligar do Estado, os

pobres teriam que estar aptos a tocarem suas vidas de maneira proativa.

Os depoimentos dos técnicos demonstram que os burocratas de rua têm uma

visão cética e pouco otimista sobre o Programa Bolsa Família. Todos os

entrevistados veem o programa com ressalvas, para não dizer com descrédito. Eles

não acreditam que o programa proporcionará a autonomia dos indivíduos, muito pelo

contrário, acreditam que o programa vicia, traz dependência e propicia uma postura

passiva de viver a expensas do Estado. O conceito comum que os técnicos têm

sobre os “pobres” do Bolsa Família pode ser apontado como: “não gostam de

trabalhar”, “querem viver do dinheiro do Estado”, “não encontram emprego por medo

de perder o benefício” e outros.

Três fatores, em nossa análise, levam os sujeitos a construírem tais

percepções: 1. o fato de os profissionais não terem conhecimento suficiente do

programa e da política em que atuam – o conhecimento que adquirem é prático e

operacional, sem um alcance aprofundado que auxilie a contextualizar o locus do

programa dentro de uma estrutura política maior; 2. o processo de reprodução de

preconceitos inserido e presente na prática profissional dos técnicos; 3. a defesa de

uma lógica de autorresponsabilização individual pelos processos de superação das

adversidades, em que o Estado tem responsabilidade mínima e o sujeito (no caso o

pobre) tem que “se virar” para dar conta de superar sua pobreza.

Uma sutil diferença foi observada, sob esse ponto de vista, entre os técnicos

estaduais e municipais entrevistados. Os primeiros apresentam uma percepção mais

contextualizada sobre o programa, o que é justificável. Em regra, o técnico estadual

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é o responsável por monitorar e apoiar as ações nos municípios do seu território.

Compete a eles participar das capacitações realizadas pelo nível de gestão federal

que acontecem em Brasília e serem multiplicadores de informações para os

municípios. Dessa forma, eles se aproximam de uma discussão de teor mais

estrutural em que o programa é apresentado de maneira contextualizada, inserida

em um projeto geral, ressaltando que esse fato não isentou que, dentre os técnicos

estatais, também fossem encontradas durante a pesquisa menções

desqualificadoras, de preconceito e descrédito sobre os pobres, porém em menor

número.

Temos, entretanto, que registrar em termos analíticos que a competência dos

técnicos municipais de pôr a “mão na massa”, ou seja, operacionalizar o programa

cotidianamente é tarefa árdua. Eles são os que se encontram diante do que se

configura como a pobreza real. As situações batem à sua porta tal como são

vivenciadas na realidade e eles precisam ter resposta para resolvê-las. Essa “lida”

diária, em regra, não permite intervalos para se deter em questões estruturais sobre

o que fazer com aquela família que chega a sua unidade de atendimento sem

apresentar condição mínima de subsistência.

A convivência com essas situações desafiadoras aponta, para nossa

conclusão, a apresentação de uma categoria presente nos depoimentos dos

técnicos entrevistados, o tempo. Na função desempenhada no PBF, o tempo se

destacou como uma dimensão que divide a avaliação de atuação dos burocratas de

rua por eles próprios. Isso quer dizer que o “flerte” com o PBF não ocorre assim que

chegam para trabalhar no programa. É necessário um tempo de maturação para ter

início um processo mínimo de experimentação.

Podemos definir, analiticamente, que a linha demarcatória da categoria

tempo, nesse caso, seria a aproximação ou distanciamento do preconceito moral em

relação ao programa: “antes eu tinha preconceito, depois de trabalhar no programa

eu penso diferente”. Assim, na maioria dos casos, percebemos que o primeiro

exercício realizado pelos técnicos foi a tentativa de demarcar o preconceito adquirido

em suas percepções pessoais com o antes de entrar para o serviço público e depois

de trabalhar no Bolsa Família.

Aqui se apresenta, em nosso ponto de vista, um paradoxo dos resultados da

pesquisa que surgiram durante o campo. Se, por um lado, o ranço de preconceito

trazidos do senso comum em relação àquilo que, pejorativamente, costuma-se ouvir

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no meio social sobre o Programa Bolsa Família é demarcado por esses técnicos

como uma necessidade de ser descontruída com o tempo, por outro lado, em

movimento inverso, conclui-se que a percepção preconceituosa sobre os “pobres”

atendidos parece aumentar quando os técnicos passam a realizar os atendimentos.

Isso demonstra umas das principais problemáticas observadas em campo – a

tensão entre o que seria o entendimento de uma conduta profissional técnica

gerencial burocrática versus uma conduta técnica conduzida por critérios subjetivos

no exercício da função pública.

Dito de outra maneira, o paradoxo seria o técnico “problematizar” a

necessidade da desconstrução do preconceito sobre a visão geral que tem referente

ao PBF, porém não achar o mesmo sobre a necessidade de desconstruir estigmas

que tem em relação ao pobre por ele atendido.

Outro apontamento conclusivo é o que categorizamos chamar de julgamento

do mérito da pobreza. Trata-se do ato de uma autoatribuição constituída pelos

técnicos burocratas de rua a partir da racionalização da prática cotidiana em que

acreditam desenvolver um conhecimento aprimorado com o tempo para identificar

se o pobre atendido manipula ou omite informações para ser inserido no programa.

Diante da comprovação ou não da “manipulação”, há o julgamento se o usuário

merece ou não estar no programa.

Os elementos usados para compor o “julgamento” são pautados na

observação que ocorre durante o atendimento ao “pobre”. Para isso, o técnico

considera: o comportamento; o modo como o usuário está vestido; o depoimento

sobre a trajetória de sua pobreza; as contradições de informações, dentre outros

fatores. Pelos depoimentos dos burocratas de rua entrevistados, as “técnicas” que

aprimoram tal capacidade vão sendo aperfeiçoadas de acordo com o tempo de

experiência na função.

Nos casos em que o técnico “desconfia” e “evidencia” indícios de

“manipulação” ou “mentira” constatada por meio do julgamento do mérito da

pobreza, ele pode solicitar visita domiciliar de uma assistente social ou atendimento

por psicólogo, a depender da situação para verificar se o fato ou a situação relatada

é verídico. E apenas após as averiguações o cadastro do “pobre” poderá ser

finalizado. Pelos dados levantados em campo foi possível deduzir ser comum os

técnicos partirem do pressuposto de que a maioria dos “pobres” mente para entrar

no Bolsa Família.

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Porém, vale ressaltar que, com a criação de banco de dados informatizados,

no caso, o CadÚnico, a seleção do perfil das famílias que serão “beneficiárias” do

PBF passou a ser automática e sistematizada pelo sistema de informações. Os

critérios, para ser elegível ao programa dependem da inserção de dados

alimentados no CadÚnico e do recorte de renda exigido. Uma das funções dos

técnicos burocratas de rua, que seria a força do trabalho humano presente no

processo de seleção, é serem os responsáveis pelas entrevistas para obter os

dados e cadastrá-los no banco de informações.

Nos primeiros anos do PBF, os formulários eram preenchidos manualmente e

os técnicos emitiam parecer indicando se o “pobre” apresentava os requisitos

necessários e estavam aptos para a inserção no programa. Curiosamente, mesmo

com a informatização do processo, os técnicos ainda requerem para si a

autolegitimidade de julgamento sobre as situações.

Essa situação é, de fato, complexa para a gestão do programa, pois, não há

diretrizes ou orientação técnica do PBF que reconheça ser competência dos

técnicos desempenhar tal “julgamento” como função em suas práticas. Como

principal consequência desse dado, há a desmotivação de muitos usuários, que

desistem de obter o benefício pelo empecilho encontrado no atendimento dos

técnicos, assim como a ausência desse técnico que, em regra, deveria ser visto

como referência e apoio no acompanhamento da situação do usuário, pois, durante

todo o percurso institucional, os técnicos de nível de rua são os seus interlocutores.

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VII. Considerações Finais

A proposta central desta tese consistiu em, por meio da discussão dos

processos de institucionalização do combate à pobreza, descentralizar o foco dos

usuários para um estudo que priorizasse a investigação de atores, por vezes

preteridos, porém estratégicos por serem responsáveis pela gestão, execução,

operacionalização e atendimentos diretos aos considerados “pobres” nos municípios

brasileiros. No senso comum institucional, são conhecidos como “técnicos que

atuam na ponta” ou “técnico da ponta”, conceituados no percurso da pesquisa como

os Street-level bureaucrats (LIPSKY, 2010), em nossa tradução, “técnicos

burocratas de nível de rua”. Para o trabalho de campo, decidiu-se investigar os

técnicos que atuam com o público do Programa Bolsa Família, por esta ser, em

números de usuários, a maior ação de atendimento aos considerados pobres

atualmente no Brasil.

A análise desenvolvida teve o objetivo de compreender como tais sujeitos,

com base na racionalização de sua prática profissional, constroem suas percepções

sobre o programa em que atuam, sobre a pobreza e sobre o “pobre”. Nessa direção,

buscou-se pesquisar se os argumentos, os dilemas e a institucionalização da

pobreza presente na atuação cotidiana apontam analiticamente para vislumbrar

processos de ruptura ou de reprodução do histórico de valorações, julgamentos

morais e sociais desqualificadores em relação ao pobre e à pobreza.

O aporte metodológico-teórico orientou-se com base nas reflexões de Serge

Paugam (2003) quando discute a perspectiva da pobreza como uma condição

reconhecida socialmente construída, em muitos casos mediada pela intervenção

institucionalizada do Estado. Na visão de Paugam, um processo que pode culminar

numa abordagem valorativa de desqualificação social para os sujeitos que procuram

os programas e serviços de assistência estatais. Nessa perspectiva, insere-se a

teoria de Michael Lipsky (2010) sobre os dilemas enfrentados na prática dos

burocratas de nível de rua. A contribuição teórica de Lipsky lapidou o olhar para

compreender o papel dos técnicos burocratas de nível de rua que inserem, atendem

e cadastram os pobres nas ações de combate à pobreza.

Feitas as considerações iniciais, partiremos para a retomada das principais

questões construídas ao longo do texto, direcionando a exposição para um viés

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conclusivo. Ressalta-se que se optou por uma organização textual em que os

capítulos também trouxessem reflexões de mesmo teor. Assim, as considerações

finais apresentadas nesta seção terão abrangência de uma análise ampliada e

articulada com o objetivo geral da pesquisa e sua tese.

Os marcos históricos considerados durante o texto tiveram o objetivo de

apresentar pistas relevantes para compreender como se configurou e se configura o

combate à pobreza institucionalizado pelo Estado brasileiro.

Em termos conclusivos, nesta questão, as análises levantadas ratificaram que

a inserção moral e estigmatizadora que envolve o universo da pobreza e do “pobre”

está historicamente registrada nas experiências das intervenções voltadas a esse

público. Partindo de uma análise comparativa, confirma-se ainda que o ranço

histórico não ficou no passado, e, sim, trata-se de um processo continuado e

contemporâneo. O que foi constatado no campo de pesquisa tem intrínseca relação

com a afirmativa de Rego e Pinzani (2013), de que, no caso brasileiro, o debate

acerca do Bolsa Família é um bom exemplo da repetição histórica do preconceito e

da força de estereótipo.

Inferimos ainda que o Estado sempre se apresentou como regulador da

pobreza até mesmo quando foi expectador, tratando-a como caso de polícia, de

controle da ordem social ou de isolamento urbano. Naquele momento, a sociedade

civil era a protagonista e a responsável por tutelar a pobreza. Os pobres eram

assistidos pela caridade da igreja, que liderava um amplo sistema de favor (LAPA,

2008) tendo destaque para o papel dos homens ricos de “bom coração”. Com isso,

arregimentava-se uma espécie de economia da salvação (CASTEL, 2012) como o

locus da institucionalização da pobreza.

Como a maioria das ações ocorriam fora do aparato estatal, não havia, assim,

um processo de procedimentos institucionalizados efetivos da intervenção do Estado

voltado para a pobreza.

Outro fator relevante a ser abordado sobre o processo de institucionalização

refere-se ao fato de que, no momento em que ocorre a transição da “caridade” e da

“esmola” exercida pela tutela da igreja e da sociedade civil para a responsabilização

política do Estado sob forma de direitos conquistados, isso parece não ser

legitimado. Permanece um entendimento na maioria dos técnicos e gestores

burocratas de rua entrevistados de que a intervenção do Estado nas políticas de

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combate à pobreza, por exemplo, no caso da transferência de renda, é uma “ajuda”,

uma “bondade”, tal como uma “esmola”.

A caracterização do direito como “ajuda” é um dado analítico que tem

implicância direta na relação cotidiana institucionalizada entre os técnicos burocratas

de rua e os pobres. Nos relatos desses profissionais, o pobre costuma assumir o

lugar de “pedinte”, enquanto o técnico tem o papel de “inquisidor” sobre o

merecimento ou não do pobre em receber a “ajuda” do Estado. Evidencia-se ainda,

com as observações de campo, o caráter pejorativo que desqualifica socialmente

aquilo que é direcionado ao pobre, persistindo a visão de que o que é acessado pelo

“pobre” é “esmola” e não direitos.

A partir da promulgação da Constituição Federal do Brasil de 1988

consideramos que, se por um lado, houve avanços nas legislações garantindo ao

pobre o direito como cidadão e no número de programas e serviços disponibilizados

a esse público, por outro, ainda não conseguimos retratar o mesmo na

institucionalização prática das equipes estatais no atendimento aos pobres. Um dos

grandes desafios do Estado brasileiro com relação às ações do combate à pobreza

se traduz em efetivar e garantir o acesso de forma digna a esses direitos.

Com isso constatamos que a experiência do acesso às ações do combate à

pobreza no Brasil está longe de ter como consequência um retorno meramente

material. A inserção no Programa Bolsa Família proporciona aos atores

experimentações diversas que podem ser de processos de estigmas (GOFFMAN,

1988); desqualificação social (PAUGAM, 2003); humilhação (MARINS, 2014;

ARAÚJO, 2007) até um status de qualificação social entre seus iguais (PEREIRA,

2007). A construção dessas percepções pode partir da sociedade civil, mas também,

de forma recorrente, dos técnicos e gestores que fazem parte da rotina institucional

dos “pobres” atendidos nas ações que institucionalizam a pobreza.

Por todas essas análises é que a exploração dos dados da pesquisa de

campo foi guiada pela seguinte questão que consideramos a centralidade da

presente pesquisa: como tem se configurado a institucionalização do combate à

pobreza na prática dos técnicos burocratas de rua e se a política de combate à

pobreza, por suas experimentações locais, tem institucionalizado a pobreza que ela

mesma tenta combater.

A partir dos dados da pesquisa de campo, que trabalhou a percepção dos

técnicos burocratas de rua sobre o pobre e a pobreza, articulada à questão central

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da tese aqui proposta, que trata da institucionalização da pobreza por meio do

combate à pobreza na prática desses profissionais, apontamos a análise conclusiva.

Um primeiro apontamento conclusivo é que a institucionalização da pobreza

na atuação dos técnicos pesquisados ocorre mais por intermédio de elementos da

prática e da rotinização experimentada no dia a dia, e menos por modelos formais

de implantação das orientações técnicas elaboradas no nível de gestão do governo

federal.

Dessa forma, concluímos que os técnicos e gestores estabelecem consensos

(em torno de pressupostos formais), dissensos (relacionados à prática) num senso

comum institucionalizado pelo que eles observam na prática. Essa percepção é o

balizador da forma institucionalizada de ver a pobreza e os pobres em suas ações.

Paradoxalmente, nem sempre os consensos e dissensos representam o que

evidenciam as normativas pactuadas em nível federal. Percebemos uma inferência

direta da construção social que os técnicos vivenciam e partilham na estrutura do

que chamamos hoje de políticas de combate à pobreza.

Nesse sentido se constitui o que podemos denominar de antagonismo ou

tensão entre os níveis gerenciais da política, pois a orientação do nível de gestão

federal nem sempre se traduz no que é executado na prática dos técnicos de nível

de rua. Um exemplo disso é trazido nas falas transcritas sobre a percepção de quem

é o usuário “pobre” do PBF para os técnicos. O pobre atendido pelos técnicos é

retratado nas falas como àquele que nem sempre precisa de assistência do Estado,

por isso ele “mente”, “omite informações”, “não quer trabalhar”, tudo isso para não

romper um “círculo vicioso de dependência” de receber o “Bolsa Família” do

governo.

Na visão dos técnicos burocratas de rua a pobreza é a “falta de acessos” e a

“falta de acesso à informação”, diferentemente do Estado que classifica a pobreza

pelo método do corte de renda. Sobre o ponto de vista desses profissionais

concluímos que institucionalizar a pobreza significa “ensinar”, “capacitar” o “pobre”

para que ele supere a condição de dependência do Estado. O caminho que deve ser

trilhado pelo governo para esses técnicos e gestores seria realizar a inserção dos

“pobres” no mercado de trabalho, ou melhor, “dar um trabalho” para que eles

possam manter sua própria subsistência e não “dar dinheiro”.

Contraditoriamente, o Estado qualifica o sujeito pobre que busca se inserir no

Bolsa Família e, em condição de pobreza, como um público que, em sua maioria

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trabalha e tem renda (mesmo que de maneira informal) independentemente do

programa, mas que ainda não é suficiente para suprir as necessidades de

sobrevivência.

Sobre o ponto de vista de o Estado institucionalizar a pobreza passa pela

garantia do direito de o “pobre” receber uma transferência de renda para que

alcance um patamar mínimo de superação da sua pobreza. Essa assistência do

Estado é prevista por um período temporal até que ele supere a sua condição de

vulnerabilidade econômica e social e assim possa retomar a sua autossubsistência.

Considerando esse contexto de perspectivas, a partir dos dados da pesquisa,

visualizamos dois projetos de institucionalização da pobreza em pauta, de um lado o

Estado que institucionaliza a pobreza qualificada pela porta de entrada de ações do

combate à pobreza pelo PBF. De outro lado, a pobreza institucionalizada na prática

dos técnicos burocratas de rua, onde o critério de institucionalização se pauta no

julgamento do mérito da pobreza (ver tópico 6.3, entre o julgamento e a

objetividade), isto é, pelo julgamento moral e valorativo dos indivíduos que procuram

os equipamentos estatais se eles merecem ou não ser inseridos nas ações do

combate à pobreza.

Defendemos que não seja parte de um exercício científico tomar partido do

certo ou do errado, mas de compreender os fatores que podem apontar as causas

dessa dicotomia. Nessa direção podemos apontar que a condição de trabalho e a

exigência de respostas rápidas e práticas faz com que os técnicos burocratas de rua

busquem meio de fazer seu melhor e seu pior (LIPSKY, 2010) ao exercer suas

funções públicas. Ao racionalizar o critério de classificação pelo merecimento e não

pelo direito, por meio de um julgamento moral e valorativo, a tentativa desses

técnicos talvez seja de priorizar, diante do número elevado de demanda que chega

aos equipamentos públicos, aqueles que “mais precisem dentre os que precisam”.

Entretanto o caráter do julgamento do merecimento por eles assumido,

normatiza a institucionalização da pobreza na perspectiva estigmatizadora e

desqualificadora socialmente do pobre e da pobreza.

Por outro lado, fazemos a crítica de que essa postura não é condizente com o

conhecimento das diretrizes da Carta Constitucional quando se refere à assistência

e à proteção do Estado a todos que dele precisar (CF, 1988). Uma das

consequências dessa tensão dicotômica para a política é a não efetivação do projeto

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político do governo de proporcionar aos sujeitos considerados em condição social de

pobreza um acolhimento via política pública na perspectiva do direito.

Avaliamos que a perspectiva adotada na prática dos técnicos burocratas

entrevistados reforça a implicação de uma afirmação negativa de reprodução de um

ciclo de estigma e desqualificação social dos sujeitos “pobres” que procuram os

equipamentos estatais em busca da inserção nos programas de combate à pobreza

amplamente divulgado pelo governo federal.

E, por fim, em relação à questão central da pesquisa aqui proposta sobre o

processo de combate à pobreza na institucionalização da prática dos street level

bureaucrats (LIPSKY, 2010), os técnicos e gestores burocratas do nível de rua,

concluímos que o Estado hoje tem institucionalizado, por meio das percepções e

práticas aqui pesquisadas, o modelo de pobreza que ele mesmo deseja combater.

Ou seja, a pobreza entendida como um ônus ao Estado, um favor, uma esmola e

não uma condição social de pobreza vista como direito à assistência e à proteção

social do Estado.

Cabe ainda contextualizar como ponderações finais situar o fato de os

técnicos burocratas de rua pesquisados fazerem parte de um aparato de

instrumentalização de modelo de políticas sociais proposto com a implantação

neoliberal de reestruturação econômica dos países considerados em

desenvolvimento. Nesse sentido, muito de sua prática se deve à referência de

atuação desses projetos.

Certamente não cabe culpabilização nem responsabilização pela condição

estrutural da política em que esses profissionais executam a sua função pública.

Mas não se pode negar que a postura autoatribuída, de um papel de inquisidor ao

institucionalizar o mérito da pobreza dos usuários, mesmo na ausência de uma

consciência reflexiva (GIDDENS, 2009), sobre a consequência do ato contribui para

a persistência de processos de desqualificação social, estigmas e preconceitos com

aqueles que precisam da assistência do Estado em algum momento. De forma que

procurar assistência para conseguir a inserção em um programa de transferência de

renda como o PBF pode se transfigurar num ato indigno.

O que ocorre no Brasil com a experiência de institucionalização da pobreza,

via PBF, e a inferência dos técnicos burocratas de nível de rua, pode ser entendido

como a configuração de um projeto que reconhece o pobre mais como uma

autorresponsabilização pessoal e moral de sua condição imediata de pobreza e

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menos como um cidadão de direitos. Assim, esse projeto comete um equívoco por

não reconhecer ou vincular a condição de “pobre” a fatores estruturais que edificam

a condição social de pobreza experimentada pelos sujeitos.

Insere-se nessa discussão a especificidade da história brasileira da

desqualificação social da pobreza e do pobre. Assim, a particularidade do objeto de

pesquisa aqui apresentado foi ratificar, por método qualitativo, que esse ranço se

encontra constituído não apenas no senso comum da esfera social, mas também

nas estruturas de institucionalização do Estado, nos atos de intervenção voltados

aos considerados “pobres”.

Reconhecemos, indubitavelmente, o impacto e o papel fundamental na

melhoria de qualidade de vida que programas como o Bolsa Família proporcionaram

e continuam proporcionando às pessoas em condição de pobreza. Articular tais

ações a saídas estruturantes e universalizadas pela garantia de direitos e da

proteção social regular e não de maneira pontual associada ao empoderamento dos

“pobres” para que, ao buscarem a assistência do Estado, apresentem-se por sua

condição de “cidadãos” no acesso a direitos, e não no papel de “pedintes” é

primordial. Pensamos que ao Estado é necessário conhecer melhor suas políticas e

seus atores e como eles constroem o mundo real. Essa é uma condição que o

conhecimento das ciências sociais pode causar. Esse “desvendar dos olhos”

permitirá processos menos desiguais e mais estruturantes da condição humana de

todos que o contexto socioeconômico condena a viver de maneira intensa a sua

condição de pobreza.

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REFERÊNCIAS

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