pobreza e desigualdade na favela: pesquisa … · território marcado pela violência,...
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POBREZA E DESIGUALDADE NA FAVELA: pesquisa etnográfica em
favela carioca
Aluno: Christian Boyer
Orientadora: Maria Sarah da Silva Telles
Introdução:
A favela tornou-se objeto de inúmeros estudos, em grande medida relacionado à
pobreza, à exclusão e à desigualdade. Ao longo das últimas décadas, multiplicaram-se as
pesquisas, associadas ao crescente interesse da universidade em conhecer essa realidade que
sempre foi permeada de inúmeros preconceitos e estereótipos. Embora a mídia tenha tido uma
enorme participação para a construção negativa desse universo, no seu conjunto, a produção
intelectual, a princípio, também desempenhou seu papel em representar a favela como um
território marcado pela violência, ilegalidades, bolsões de pobreza e exclusão social.
A crítica a essa questão não é negar as particularidades negativas que circundam a
favela, mas o esquecimento que se deu, na época, em salientar uma notável diversidade social
e espacial, bem como o dinamismo social e econômico que passaram a imperar nessas
comunidades. Sob esse crivo, a socióloga Lícia Valladares [11] - assim como muitos outros
profissionais da área - foi uma das autoras que contribuiu para quebrar essa figuração
homogeneizadora da favela, frente ao desconhecimento de uma realidade plural e
multifacetada. Destarte, a dificuldade em se estudar um tema como pobreza urbana e
desigualdade em favelas cariocas se dá não somente em conhecer efetivamente aquele
território, mas principalmente a cidade em que a mesma está inserida.
Sob essa perspectiva, este trabalho de pesquisa pretende contribuir para o
conhecimento das novas formas da pobreza e exclusão, muito além de estudar as dinâmicas
sociais existentes na favela, associada a uma melhor compreensão dos obstáculos e
possibilidades que rodeiam seus moradores. Uma análise da diversidade das condições de
vida dos moradores permite, sob esse contexto, um melhor conhecimento do quadro
relacionado à vulnerabilidade [6] das famílias nas áreas segregadas. Não se trata de negar, a
priori, uma ausência das clássicas formas de desigualdade e pobreza, mas sim de expandir
para uma visão mais transversal, com intuito de compreender com maior clareza os cenários
ligados às mesmas.
A importância de estudos sobre o processo de acúmulo de vantagens e desvantagens
vem ganhando peso na literatura contemporânea sobre pobreza. Como sabemos, a pobreza e a
exclusão social são fenômenos urbanos que possuem uma dinâmica distinta em cada
realidade. Embora haja similitudes em determinados ambientes, o conjunto multifacetado de
fatores pode levar a situações mais intensas de pobreza e vulnerabilidade - por meio de
“espirais de desvantagens”[8] - quanto a situações de superação da mesma. A perda do
emprego, a fragmentação das famílias e a desvinculação de redes de apoio (parentesco e
vizinhança), tendem a levar a um agravamento da pobreza e a situações de isolamento social.
De acordo com De La Rocha, esse processo não se constitui de maneira “linear”, mas sim em
forma de espirais. Em outras palavras, sob um contexto de crise, uma desvantagem
desencadeia outras desvantagens, acarretando um efeito dominó sem precedentes. A
importância, portanto, de pesquisar as trajetórias de vida familiar torna-se essencial para
perceber as nuances que ocorrem não somente em diferentes comunidades, mas, sobretudo, as
que ocorrem dentro da própria comunidade.
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Metodologia:
Para captarmos certas informações sobre a vida de cada morador entrevistado, uma
investigação sobre trajetórias era necessária. Esse tipo de ferramenta nos permitiu adentrar o
universo de cada indivíduo, explorando nas entrelinhas os processos de acúmulos de
desvantagens que costumam ocorrer em setores mais pobres e vulneráveis da população das
áreas mais afastadas. Destarte, nosso trabalho é orientado por uma metodologia que visa
destrinchar cada realidade, coletando o máximo de informações sobre a fragilidade nos laços
sociais que imperam na relação indivíduo-sociedade [9]. A vontade dos moradores em relatar
suas histórias de vida facilitava nosso trabalho de pesquisa, pois permitia identificar em seus
discursos os sinais de oportunidades, obstáculos, vulnerabilidade e exclusão.
Esclarecido este ponto, este trabalho, portanto, espelhou-se em um método etnográfico
para coleta de informações. Realizávamos uma vez por semana - entre agosto a dezembro de
2011 - uma visita ao morro do Alemão, no Complexo do Alemão. As entrevistas, de caráter
informal, foram efetuadas em diversos pontos da favela, tendo em vista a diversidade
socioeconômica existente entre a parte baixa e a parte alta do morro. Nossa estratégia na
primeira semana foi fazer um reconhecimento na comunidade. Ninguém do grupo - exceto o
informante principal, na qualidade de morador e bolsista na pesquisa - conhecia os arredores.
A escolha das famílias se pautou, nesse ínterim, pela facilidade de acesso em alguns locais. A
base do morro, ou parte baixa, foi nosso ponto de partida, para só depois subirmos até o ponto
mais elevado. Mesmo situados, a princípio, em um mesmo ambiente, o contraste social e
econômico se tornava cada vez mais evidente na medida em que subíamos.
O planejamento do roteiro da entrevista, embora possuísse palavras chaves, não havia
necessariamente a obrigação de seguir uma ordem. Perguntas relacionadas à migração, à
escolaridade, à ocupação profissional, à habitação, à vizinhança etc, serviam com intuito de
estimular os entrevistados em uma reflexão sobre suas vidas, seus percursos e suas condições
sociais frente àquele universo. Dependendo da família, do contexto e do horário, as perguntas
podiam seguir por um determinado caminho sem a preocupação de “cercar” as respostas. Ao
final do trabalho de pesquisa, parte do tempo restante ficou destinada à transcrição das
entrevistas realizadas e reuniões para discutir bibliografias ligadas ao tema.
Desenvolvimento:
Do cortiço à favela
Antes de abordarmos alguns resultados frente à situação real dos moradores
pesquisados, precisamos, a princípio, compreendermos como a pobreza urbana e a
desigualdade social no Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro, foi tomando a forma que a
conhecemos nos dias de hoje. O artido “Cem Anos Pensando a Pobreza (Urbana) no Brasil”,
da Lícia Valladares [10], nos ajuda a compreender a evolução das categorias de “pobreza” no
Brasil enquanto nação moderna e urbana, retratando em cada tempo suas singularidades. Para
a autora, podemos circundar o tema da pobreza urbana no Brasil em três períodos distintos: na
virada do século (o cortiço), nas décadas de 50 e 60 (a favela), nas décadas de 70 e 80 (a
periferia).
Virada do Século - O Cortiço
Para Valladares, quando refletimos sobre a virada do século, uma das primeiras
questões que tende a nos chamar a atenção é o reconhecimento de uma pobreza frente aos
olhos da elite nacional. Embora haja ocorrências de segmentos pobres no Brasil na época
colonial, foi somente no advento da república que a pobreza urbana começou a ganhar
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relevância para elite no cenário brasileiro. Nesse período, foram os sanitaristas que
começaram a questionar as precárias condições de vida existentes nos centros urbanos.
Impulsionados pela indústria, o Rio de Janeiro, com mais de meio milhão de habitantes, se
tornava a capital das epidemias, tendo como casos a febre amarela, tuberculose, peste, cólera
etc. De acordo com a autora,
“[...] a propagação das doenças relacionava-se diretamente às catastróficas
condições de higiene às quais estava submetida grande parte da população. Vivendo em
habitações coletivas precárias - estalagens, casas de cômodos e sobretudo em cortiços - era
diário o convívio com sérias falhas no abastecimento d’água e com péssimas condições de
saneamento básico” (VALLADARES,1991, p. 84).
Destarte, foram os médicos que tiveram papel preponderante junto aos poderes
públicos em alertar sobre as condições vigentes. Isso implicou não somente uma intervenção
sobre a “pobreza”, mas sobretudo em um combate às habitações insalubres. Em outras
palavras, o cortiço passou a ser o mal que deveria ser erradicado, uma vez que era
considerado pelos sanitaristas o foco das doenças, das sujeiras e, principalmente, da pobreza.
O famoso cortiço “Cabeça de Porco” foi completamente demolido para as campanhas
sanitárias em prol de um saneamento. A grande questão, para Valladares, foi como a saúde e a
eliminação do cortiço foi observada pela elite política nacional. Ao contrário dos sanitaristas
que enxergavam o cortiço como um foco de propagação de doenças, os políticos o
visualizavam como o berço principal dos criminosos e desordeiros Ou seja, encaravam aquele
ambiente como um local que agregava as “classes perigosas”. Essas classes, para esses
políticos, eram todos aqueles que não estavam inseridos na ordem industrial, ou no universo
fabril. Seres que pertenciam entre o cortiço e a rua, sempre tentando levar o caos à ordem.
Tornava-se assim, de maneira muito simplória, aqueles que eram considerados os
trabalhadores, daqueles que não eram; taxados como “vadios”. Uma dicotomia que se
estendia no discurso das elites, “[...] de um lado o mundo do trabalho, da moral, da ordem; de
outro, um mundo às avessas - amoral, vadio, caótico - que deveria ser reprimido e controlado
para não comprometer a ordem” (VALLADARES, 1991, p. 87). O pobre, ou o vadio, era
assim todos aqueles que permaneciam fora do mercado de trabalho formal. Uma vez fora da
nova ordem instituída pelas elites, esse pobre passava a carregar em sua pele estigmas de
improdutividade, ociosidade etc. Era assim considerado o “malandro”, que sob os olhos da
elite era aquele que se recusava a vender sua força de trabalho no mercado capitalista.
Sob essa perspectiva, a pobreza era encarada tanto pelos intelectuais, quanto pelas
elites, como um fator individual, cujo culpado era o próprio indivíduo que não se esforçava
para se inserir na ordem vigente. Havia assim, portanto, dois polos distintos, um que colocava
o trabalhador - fábrica, mundo do trabalho, mundo da ordem - no polo mais alto, e um que
colocava o vadio - rua e cortiço, mundo do não-trabalho, mundo da desordem - no extremo
oposto.
Os Anos 50-60 - A Favela
Para entendermos a questão da favela, e como o termo “população marginal” se
propagou, precisamos, a priori, contextualizarmos os fatos daquela época. A partir da década
de vinte, o Brasil começou a passar por um forte processo de urbanização, devido à dinâmica
expansiva das industriais. Frente a esse cenário, de contínua urbanização e valorização das
cidades, importantes deslocamentos populacionais começavam a imperar do campo para os
centros urbanos. As principais cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte,
Curitiba etc, começavam a sofrer uma transformação que Valladares define como “inchação”.
Simplificando: era muita gente para pouca oferta trabalho. O ritmo desenfreado da
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urbanização começava a ultrapassar o desenvolvimento das indústrias; consequentemente, a
criação de empregos tornava-se um desafio. De acordo com a autora, é através desse contexto,
a partir dos anos trinta, que
“[...] a pobreza começa a se estampar, mais fortemente, sob outra forma especial - a
favela -, que sorrateiramente vai se impondo no cenário das cidades em expansão,
desde as capitais regionais até os centros médios e pequeno porte. Em cada cidade
um nome: “favela” no Rio, “mocambos” no Recife, “cafuas” em Belo Horizonte, [...]
a favela se torna a expressão mesma do modelo de desenvolvimento econômico
desigual, marcado por uma aceleradíssima urbanização, que prevaleceu no Brasil do
pos-30”. (VALLADARES,1991, p. 95).
A pobreza, devido a sua grande visibilidade através das favelas, passa a ser
questionada nos debates políticos. Enquanto a virada do século foi caracterizada pelo
reconhecimento de uma pobreza de caráter individual, cujo pobre era o próprio culpado pela
sua situação; nos anos cinquenta e sessenta, essa mesma pobreza urbana passara a ser
analisada como um fator social. Em outras palavras, passa a perpetuar nos discursos que os
fatores não são mais internos, mas sim externos. A recusa não era mais efetivamente do
indivíduo, era a própria indústria que excluía, uma vez que sofria de excesso de mão-de-obra.
A teoria da marginalidade social que já se perpetuava pela América Latina nos anos
sessenta, contribuiu em grande parte para a identificação do problema. Reconhecida a
marginalidade como inerente ao sistema capitalista, a pobreza passou a ser analisada como
um fenômeno estrutural. Destarte, percebe-se assim uma mudança drástica no paradigma da
pobreza. O pobre não é mais considerado o “vadio”, no entanto, ele passa ser agora parte de
uma massa de excluídos, de não-integrados, colocados na “periferia” do sistema, sempre
relegados a uma situação típica de subempregos. A marginalidade encontrava-se assim
“[...] sua expressão máxima na favela, relegada pelos poderes públicos nos anos 50-
60 e vista como síntese de não-integração de amplos segmentos da sociedade urbana.
O termo “favelado” passa ser sinônimo de “pobre” e o espaço-favela ganha atributos
muitos semelhantes àqueles associados, década antes, ao cortiço”. (VALLADARES,
1991, p. 98)
As décadas de 70-80 - Periferia
Na década de setenta, o Brasil vai passar por grandes transformações no campo
econômico, social e urbano. Sob uma perspectiva econômica, a indústria continuava a crescer,
agora baseada em um novo padrão de grande empresa. No aspecto urbano, o processo
continuava acelerado, superior ao ritmo do crescimento demográfico. A grande questão,
porém, era de cunho social. A desigualdade social chegava a níveis alarmantes, mesmo diante
do “milagre econômico”. De acordo com a autora, a pobreza se estendia por toda rede urbana,
acompanhada de um processo de metropolização. Esse processo - que podemos chamar de
periferização - já vinha sendo construído, no entanto, passou a ganhar ênfase na década de
setenta quando as taxas de crescimento que registravam nos municípios das periferias
metropolitanas superaram as taxas dos grandes centros metropolitanos. Havia um
deslocamento contínuo das massas de trabalhadores, não somente devido à expulsão das áreas
centrais, mas sobretudo frente às leis oscilantes que marcavam o mercado imobiliário. A
periferia tornava-se, portanto, uma espaço de segregação espacial. Para a elite, era sempre
cômodo fechar os olhos para a pobreza e empurrá-la para longe. Para piorar, começou-se
também a assistir no Rio, em meados da década de setenta, um “declínio da favela”. Esse
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declínio fazia parte de um plano político de remoção que eliminou cerca de oitenta favelas.
De acordo com a autora,
“[...] muito embora as favelas antigas, que foram poupadas da remoção, tenham
continuado a crescer por meio da verticalização [...] o custo de moradia na favela,
com o mercado de aluguéis se desenvolvendo, acompanhando a inflação,
praticamente inviabilizou a permanência de muitos, bloqueando por outro lado a
entrada de migrantes recém-chegados. O destino mais frequente do pobre tornou-se a
periferia” (VALLADARES, 1991, p. 103).
Quanto à questão relativa ao emprego, o Estado continuava a reconhecer a existência
de dois setores, agora denominados “formal” e “informal”. O subemprego passou, assim, a
cair em desuso, uma vez que o setor informal preencheu uma lacuna importante na economia
urbana. Para Valladares, mesma que a atividade do setor informal fosse “irregular” e “mal
paga”, ainda sim havia uma função de inclusão importante para aqueles que estavam
excluídos da rede do mercado formal. Não era o ideal, evidentemente, mas ao menos oferecia
uma oportunidade de trabalho. Destarte, Valladares analisa na década de oitenta o
reconhecimento do termo “trabalhador pobre”. Esse termo passou a imperar após uma
pesquisa que constatou que a pobreza encontrava-se presente até mesmo entre os
trabalhadores regularmente empregados. Nas palavras da autora,
“[...] de 4,4 milhões de famílias classificadas como “miseráveis”, 3,2 milhões tinham
todos os seus membros incorporados ao mercado formal de trabalho [...] a família
pobre, trabalhadora, se viu cada vez mais obrigada a apelar para as chamadas
“estratégias de sobrevivência”” (VALLADARES, 1991, p. 106).
Essa estratégia que a autora se refere está ligada não somente a uma volta da jornada
de trabalho por parte dos aposentados, mas sobretudo ao trabalho de jovens e crianças na rua.
Essa estratégia de sobrevivência, como muitos sabem, ainda se perpetua em muitas cidades
brasileiras. No Rio de Janeiro, é comum enxergamos crianças trabalhando em sinais de
trânsito, com intuito de elevar a renda familiar. Embora o salário mínimo brasileiro tenha
aumentado nos últimos anos, ainda se encontra muito aquém para as necessidades básicas de
cada família. O que vale salientar, porém, é a percepção, sobretudo da elite, em perceber a
realidade do trabalhador pobre. A década de 90 marca o inicio de um novo tratamento dado
aos pobres. Relatórios do Banco Mundial defendem que
“[...] o meio mais eficiente de obter avanços rápidos e politicamente sustentáveis na
qualidade de vida dos pobres tem sido a adoção de uma estratégia de dois elementos.
O primeiro elemento dessa estratégia é a busca de um modelo de crescimento que
garanta o uso produtivo do bem mais abundante entre os pobres – o trabalho. O
segundo elemento é o provimento amplo de serviços sociais básicos aos pobres,
sobretudo de educação primaria, assistência medica básica e planejamento familiar.
O primeiro elemento cria oportunidades; o segundo, capacita o pobre a tirar proveito
das oportunidades[...] Se as famílias tiverem oportunidades seguras de usar
proveitosamente sua mão de obra e seus membros forem capacitados, instruídos e
saudáveis, certamente estará assegurado um padrão de vida mínimo e a pobreza
desaparecerá.” [1]
Embora exista um esforço em delimitar quais seriam os fatores que poderiam
contribuir para uma melhor qualidade de vida dos pobres, ou até mesmo uma superação, ainda
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assim é um discurso que está longe de se perpetuar na prática. No Brasil, ter acesso ao
trabalho não garante uma boa qualidade de vida; e para piorar, os serviços públicos que
poderiam auxiliar para uma mobilidade social estão “quebrados”. A educação pública, de um
modo geral, encontra problemas sérios na qualidade de ensino, obtendo percentual no IDEB
muito abaixo em relação às escolas privadas. O quadro baixo [12], apenas corrobora esse
discurso.
Por fim, nosso objetivo era apenas fomentar um panorama do percurso da pobreza
urbana no Brasil. Torna-se importante frisar, no entanto, apoiado na visão de Valladares,
como a favela deixa de ser um único espaço em que se pode encontrar situações de pobreza.
O morro do Alemão, que faz parte do Complexo do Alemão, por exemplo, pode abrigar tanto
aquele morador com um maior grau de qualificação profissional e educacional, quanto àquela
família em extrema vulnerabilidade e miséria. Embora o processo de “periferização”
demonstre que há bolsões de pobreza nos mais diversos espaços urbanos e que a favela seja
um lugar heterogêneo, com dinâmicas socioeconômicas bem distintas, ainda assim ela é
estigmatizada, uma vez que ainda podemos encontrar concentrações de famílias de baixa
renda, de baixa escolaridade, que vivem na informalidade no mercado de trabalho. A ruptura
com a velha história, que Valladares sublinhou magistralmente, não é uma tarefa simples,
principalmente quando ainda é mantido o velho discurso elitista. Infelizmente, um indivíduo
com baixo “capital cultural, social e econômico” [2] que queira se fazer presente, precisará de
um esforço demasiadamente grande - e sem garantias - para se incluir nos “jogos sociais” [2].
Destarte, sob a forma mais sutil de uma violência simbólica [2], o espaço é um dos lugares
onde o poder se afirma.
Exclusão e trajetórias
O termo exclusão social foi exposto pela primeira vez na França em meados dos anos
oitenta [4], ganhando força nos debates públicos e políticos devido à crise de desemprego que
assolava o país. Naquela época, o processo de pauperização começou a atingir não apenas
grupos tradicionalmente marginalizados como imigrantes ou moradores de periferias, mas
também aqueles que pareciam estar inseridos dentro da lógica do mercado. Foi nesse ínterim,
em solo francês, frente ao aumento das desigualdades e de mudanças no perfil da pobreza que
o tema adquiriu força e relevância no cenário mundial.
Quando analisamos a palavra exclusão, tendemos associá-la imediatamente a uma
dicotomia entre aqueles que estão inseridos, daqueles que não estão. A realidade, no entanto,
é mais densa e demasiadamente mais complexa. Sua base se funde na ideia de uma fratura nos
laços que tecem a relação indivíduo-sociedade [9]. Sob essa perspectiva, sua dimensão atinge
todas as esferas, transitando nos campos sociais, econômicos, políticos, culturais. A
integração social, portanto, faz parte de um processo dinâmico, multidimensional, em que há
polos de maior e menor integração frente a determinadas áreas.
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Embora a exclusão social integre o campo da pobreza e da desigualdade, não
necessariamente são indissociáveis. Existem casos possíveis em que uma pode atuar sem a
outra. No entanto, é inegável que a maior parte dos processos de exclusão costuma ocorrer no
âmbito econômico, em situações de intensa pobreza e desigualdade social. Um dos principais
motores para a exclusão é, por um lado, o desemprego e a precariedade relativa ao trabalho e,
por outro, a dificuldade que os jovens trabalhadores enfrentam para ingressar no mercado de
trabalho. Não se trata, evidentemente, de um simples problema de dinâmica de mercado, mas
sim de uma crise nos mecanismos da integração social. De acordo com Gonzalo Saraví [9],
“[...]la fuerza del vínculo entre la situación de empleo y otras dimensiones de la vida
económica y social – família, ingresos, bienestar y contatos sociales – sugere que
aquellas personas en situaciones de precariedade laboral tienen buenas chances de
ser/quedar excluídos. Las transformaciones estructurales en los mercados de trabajo,
y en particular sus efectos de desempleo y precarización, representan los
disparadores de un proceso de acumulación de desventajas que conduce a un estadio
final de desafiliación respecto a la sociedade, es decir, de exclusión social” (SARAVÍ,
2007, p.25)
Em suma, para Saraví, esse estágio final de desfiliação frente à sociedade não ocorre
de modo direto. São os pequenos percalços na vida que os conduzem, por fim, a uma ruptura.
Destarte, uma pessoa se exclui no “jogo social” de forma “fluída”, em processo. Migração
recente, perda de emprego, doença, velhice, carência de apoios sociais frente à vizinhança
tendem somente a aumentar o nível de risco e vulnerabilidade de indivíduos com escassos
recursos. Em outras palavras, o sentido pleno de exclusão social pode ser melhor visualizado
quando nos deparamos com um processo de acúmulo de desvantagens [8].
A partir desta constatação, tentaremos expor um quadro de nosso trabalho, através de
uma perspectiva centrada no curso de vida. Trabalhar com trajetórias nos permite a
possibilidade de vincular os eventos e processos dinâmicos que atuam na lógica do acúmulo
de desvantagens. As experiências biográficas aqui coletadas têm a preocupação em explorar a
prática das raízes dos processos que afeta negativamente as condições de vida dos setores
mais vulneráveis da população. Exporemos, a seguir, alguns recortes das entrevistas que
corroboram esse discurso.
Entrevistador: “como é que você sobrevive?”
Resposta: “Ué, o pastor me ajuda, a madrinha deles me ajuda. Minha ex-cunhada me
ajuda também. É assim. Eu lavava roupa para fora, né. Desde que começou esse
problema, fiquei uma semana de cama por causa da hérnia de disco. Aí foi ficando
tudo ruim.”
E: “Mas comida não falta, as pessoas te ajudam[...]”
R: “Mais ou menos, né. Outro dia estava meio brabo[...]A Renata de vez em quando
até me ajuda, mas a Carlinha, coitada, ela tem a mesma vida que eu. Não tem marido,
tem dois filhos que estão desempregados. Quando ela pode, ela ajuda. Ela perdeu a
Bolsa Família também, está bloqueado.”
Lidar com a situação desta moradora foi extremamente difícil. Desempregada, com
problemas sérios de saúde, mãe de dois filhos pequenos, seu único meio de sobrevivência era
contar com sua rede de vizinhança. Em diversos momentos da entrevista, mencionava que
somente Deus poderia salvá-la desta situação. Seu sonho era poder estar curada para poder
voltar a trabalhar e quando perguntada se sua família não lhe ajudaria, dizia que sua mãe não
se importava muito com sua situação. Havia em seu discurso certa mágoa em relação aos seus
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familiares. O ponto que queremos salientar, nesse ínterim, é como uma desvantagem acarreta
outras em larga escala. Não manter uma boa relação com seus familiares, sofrer uma doença
que a impossibilite de trabalhar, não ter o auxílio do Programa Bolsa Família são acúmulos de
desvantagens que geram um grave estado de vulnerabilidade. Nesse caso, sua rede de
vizinhança é a única linha - tênue por sinal - que a mantém sobrevivendo.
Outra questão importante que não estava em nossos planos, mas que surgiu ao longo
das entrevistas foi a questão do Bolsa Família. O problema relativo ao programa foi um dos
assuntos que mais circulou entre as entrevistas. Em alguns casos, o dinheiro destinado seria
essencial para manter um equilíbrio na renda mensal das famílias. Foram comuns os relatos
envolvendo bloqueio, burocracia, falta de informação e impossibilidade de reativação do
programa. Abaixo, segue uma passagem que ressalva esse problema.
Entrevistador: “Você recebe o Bolsa Família, alguma ajuda[...]”
Resposta: “Normalmente não, porque perdemos [...] é um dinheiro bom, uma ajuda
pra caramba. São uns 355 reais. Dá para comprar uma boa alimentação. Tanto é que
eles (os filhos) estão reclamando.”
E: “Mas eles estavam faltando mesmo?”
R: “Três faltas. Se tiver mais que três faltas, cancela.”
E: “E quando corta, corta de todos?”
R: “Geral.”
O curioso nesse caso é o relato sobre o corte do programa. A família - que tem cinco
filhos - frisava que apenas uma de suas crianças havia faltado mais de três vezes, no entanto, o
corte atingiu a todos. Ou seja, o fato de uma criança ter faltado mais de três vezes acarretou
no cancelamento total do benefício, mesmo com as outras quatro crianças obtendo frequência
de 100%. O casal alegava que estava há quatro meses sem receber o Bolsa Família, dinheiro
que auxiliava na manutenção da alimentação da família. Ao contrário da outra moradora que
mantém sua sobrevivência com o auxílio de sua rede de vizinhança, essa família se ajusta com
o dinheiro que recebe do governo por possuir uma filha portadora de necessidade especial.
Como veremos abaixo, se dependesse somente de seus empregos (biscates), o próprio casal
afirmou que não haveria dinheiro suficiente.
Entrevistador: “E como é que vocês conseguem pagar?”
Resposta: “A gente aqui não. Essa aqui (a filha) é especial, então a gente tem a
pensão dela.”
E: “Ela ganha meio salário ou um salário?”
R: “550. Depois a gente faz as compras, ajeita tudo direitinho. Se a gente tivesse que
pagar aluguel, seria 350 para o aluguel e 150 para comer, né”
E: “Você não trabalha mais em casa de família?”
R: “Estou trabalhando na rua.”
E: “Você não tem carteira assinada?”
R: “Não.”
Relatos de miséria na infância preencheu boa parte das entrevistas. Era frequente
ouvirmos relatos sobre fome, habitação precária, necessidade de trabalhar cedo etc. Uma
infância marcada dificilmente era esquecida pelos entrevistados e muitos se orgulhavam de tê-
la superado, mesmo que essa superação não fosse aquilo que entendemos como ascensão
social. Uma família, em específico, reforçava a cada instante que sua vida estava muito
melhor do que antes, mesmo que ainda vivesse em condições extremamente precárias no que
concerne à habitação. Sob essa perspectiva, temos que ter cautela na dimensão do significado
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exposto pelos nossos entrevistados, uma vez que os paradigmas não são os mesmos. Ter uma
televisão, uma máquina de lavar, para certas pessoas, era uma forma de mostrar,
materialmente, que haviam ascendido economicamente. Essas pessoas não conseguiam
perceber que certos bens materiais se tornaram mais acessíveis ao longo do tempo e que uma
superação da pobreza - por mais relativa que seja - está muito além de ter objetos materiais
“básicos”. A educação, por exemplo, não era valorizada, em alguns casos, como possível
ferramenta para atingir maiores patamares. O trabalho, nesse contexto, era sempre mais
valorizado. Não é difícil imaginar o porquê, levando em consideração que muitos tiveram que
trabalhar desde muito cedo para ajudar no sustento da família.
Entrevistador: “Então, em relação a sua infância melhorou muito?”
Resposta: “Melhorou muito. Eu sou daquela época que não tinha televisão, não tinha
geladeira, não tinha nada. A gente não era nem pobre, era miserável[...]quando era
pequena era um cômodo só. Morava todo mundo junto, dormia um em cima do
outro[...]a casa era de madeira, vivia caindo. Toda vez que chovia, a casa
caia[...]meus filhos têm coisas que eu nunca nem sonhei em ter na minha vida,
entendeu. Eles têm coisas que podem escolher. Eu já não tive essa oportunidade.”
Outro caso que nos chamou a atenção foi de uma moradora que era esposa de um dos
gerentes do tráfico. Na época em que a entrevistamos, seu marido encontrava-se distante,
morando em outra favela, devido à entrada do Exército no morro do Alemão. Uma garota
jovem que teve toda uma ambição de vida posta de lado para atender as vontades/ordens de
seu marido. Sua liberdade ficou completamente comprometida. Dizia que em cada lugar que
ia, era vigiada pelos demais. Quando perguntamos se ela o amava, sua resposta era direta:
não. No entanto, havia contradições em seu discurso. Frisava que seu sonho era que ele
morresse, para que pudesse ter sua liberdade de volta, mas por outro lado, ressaltava que não
o desejava mal. O isolamento e vulnerabilidade, nesse caso, tomaram dimensões bem
diferentes. Não houve um processo de acúmulo de desvantagens, mas sim uma escolha,
pautada em uma “aventura” de uma jovem, que a levou à exclusão. Segue abaixo um
momento que ilustra essa passagem.
Entrevistador: “você tem que ir sempre visitá-lo?”
Resposta: “Tenho, porque eu tenho um filhinho, né. Eu tenho que levar ele. Se
pudesse nem ia.”
E: “Qual é a saída disso? É ir embora?”
R: “Aí ele vai atrás. Ou ele pega alguém da minha família, sei lá[...]só minha mãe
que sabe, todo dia eu falo com ela: aí que inferno, eu quero que ele morra logo. Aí eu
vou viver em paz, vou ter uma vida calma, sem ficar preocupada com as coisas que eu
posso fazer. Mas também eu vivo na preocupação de acontecer alguma coisa com ele
lá, entendeu. Se fosse acontecer, que acontecesse logo, para eu tirar isso da minha
mente.”
E: “Esse é o seu sonho?”
R: “Esse é meu sonho. É meu sonho de verdade.”
Embora seja importante relatarmos essas situações delicadas que imperam no âmbito
da favela, torna-se importante demonstrarmos também trajetórias que souberam aproveitar as
oportunidades surgidas. O caso de um morador, um dentre muitos outros, que conseguiu
ascender através do trabalho, adaptando-se as exigências do mercado. Além de possuir um
bom emprego na parte administrativa de uma empresa de construção civil, o entrevistado
ainda pensa em se atualizar cada vez mais; voltou a estudar e pretende realizar uma faculdade
em engenharia civil.
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Entrevistador: “Então, você está pretendendo fazer faculdade?”
Resposta: “Pretendo[...]seria para o lado de contabilidade, administração, que é o
ramo que exerço na empresa. A vontade que eu tenho é [...] fazer engenharia civil.”
E: “Agora com ProUni é mais fácil. O pessoal daqui, a maioria, estuda na
UNISUAM. Lá tem engenharia civil, não tem?”
R: “Tem. Eu tenho um colega topógrafo que está fazendo lá, engenharia civil.”
E: “E você acha que para o mercado de trabalho melhora?”
R: “Melhora, com certeza. Você tendo um currículo legal, tendo quem indique
também, né. Esse “QI” é fundamental.”
Podemos notar, em seu discurso, uma importância em manter uma boa rede de
contatos, uma vez que o usufruto do “quem indique” (QI) ainda insiste em perdurar no
mercado de trabalho. Sua visão referente à importância da universidade apenas salienta sua
compreensão de um local rico para o surgimento de novas oportunidades. Eduardo Marques
[7], em seu livro “Redes Sociais, Segregação e Pobreza”, aponta para os perigos associados a
grupos sociais estritamente homogêneos, defendendo a importância de redes heterogêneas
para o aumento de desenvolvimento de oportunidades. Uma chance, portanto, de entrar em
uma universidade ofereceria um “ponto de encontro” extremamente rico e benéfico para seu
futuro profissional.
Sobre o PAC e o Exército
Nosso trabalho no morro do Alemão coincidiu com um recente processo de
implantação da política de pacificação das favelas do Rio de Janeiro. Como a Unidade de
Polícia Pacificadora (UPP) ainda não se encontrava instalada, o Exército permaneceu no local
para manutenção da ordem. Frente a essa nova dinâmica que imperou no morro, resolvemos
coletar informações para saber do posicionamento da população diante do ocorrido. Nossa
primeira impressão foi que a transição das formas tradicionais do poder do tráfico pela
entrada do Exército alterou, em alguns casos, a sociabilidade entre os moradores. Não
ocorreram relatos de violência associado ao Exército, no entanto, para muitos jovens, houve
um abuso de poder referente à vida na favela. As famosas festas que varavam a noite
passaram a ser controladas pelos soldados. Havia um limite de som permitido depois de certa
hora e qualquer barulho em excesso era motivo para o desfecho das atividades.
Outro caso curioso foi a divisão das opiniões em relação à entrada do Exército.
Enquanto os jovens se posicionavam contra, as pessoas mais velhas, geralmente, eram a favor
da permanência das forças armadas, frisando que os soldados trouxeram paz ao morro.
Todavia, vale ressaltar que essa paz que esses senhores se referiam estava associada à lei do
silêncio que era imposta arbitrariamente pelo exército. Havia outros casos também,
envolvendo questões acerca dos limites da liberdade e segurança. O relato de um morador
conseguiu deixar bem clara a mudança drástica que perpetuou de uma realidade para outra.
“Ouvia quatro a cinco por dia[...]era um tiroteio condenado, mas nunca mexeram
com o morador, podia deixar a porta aberta. Agora se deixar a casa aberta, eles (os
soldados) vêm e roubam[...] com eles não (os traficantes), se roubassem eles matavam
na hora. Era a lei do diabo. Agora, está muito calmo, está muito bom. Você não vê
briga, não vê bagunça [...] aqui, antigamente, era meio ruim. Antes do Exército estar
aqui, a senhora não podia passar aqui. Cinco ou seis homens armados. Se tivesse
alguma briga de casal, se vacilassem,[... ]já viu, ia para vala. Mas só se vacilasse.”
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Ao realizarmos a pesquisa de campo, nos deparamos com outro tema “delicado”, que
foi aquele relacionado ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Enquanto a mídia
e o governo alardeavam o sucesso do programa, a pesquisa apontou uma realidade bem
controversa. Em termos de projeto, a sua base era de fato interessante, uma vez que seu raio
de ação cobriria muitas áreas que realmente estavam necessitando de um atendimento
especial. No entanto, na prática, as extensões mais isoladas que deveriam ser cobertas pelo
PAC simplesmente não foram, deixando-as na mesma situação precária de antes. Após a
conclusão do programa, era comum chegarmos a algumas áreas mais afastadas e enxergarmos
casas e mais casas destruídas/desapropriadas. As reclamações frequentes dos moradores eram
que além do PAC não ter comprido com a proposta, muitas famílias foram deslocadas
desnecessariamente. Alguns moradores alegavam que o programa serviu apenas para cobrir a
área do teleférico, enquanto as áreas que realmente necessitavam de infraestrutura - ligada a
sistema de coleta e saneamento - foram deixadas de lado. Quando visitamos a parte mais alta
do morro, nos deparamos com outra realidade. Estrada de terra, casas de tabique e madeira,
lixo jogado na encosta eram apenas alguns dos elementos que preenchiam a paisagem deste
setor do morro do Alemão.
O Programa de Aceleração do Crescimento é alvo das inúmeras controvérsias,
denúncias e irregularidades. Para os moradores, o tamanho do investimento para a criação do
teleférico foi completamente infundado. Primeiro, porque o teleférico não atende a demanda
da população em termos de circulação. Segundo, porque muitos moradores simplesmente não
utilizam o serviço, seja por medo, ou pela falta de praticidade de chegar até o local. Por fim,
quase todos concordam que o teleférico foi construído mais para um “turismo” propriamente
dito, do que para atender a população local.
Conclusão:
Em suma, diante dos fatos expostos, torna-se difícil ignorar o que está diante de nossos
olhos. A vulnerabilidade social – baseado no quadro dos acúmulos de desvantagens - em que
se encontram alguns moradores de favela apenas corrobora anos e mais anos de descaso das
autoridades frente a uma pobreza que sempre esteve a nossa volta. É inadmissível, nos dias de
hoje, ainda haver áreas em péssimas condições, seja em relação ao abastecimento d’água ou
condições de saneamento básico. Esses problemas não são de hoje, eles fazem parte de nossa
história e já deveríamos tê-los superado. Compreender que a pobreza e a desigualdade fazem
parte de um grande problema estrutural foi, efetivamente, um avanço; mas não podemos parar
por aí. Sabemos que em nosso país, investir em mínimos sociais é sempre mais cômodo do
que enfrentar os densos problemas referente às políticas universais como saúde, educação etc.
É inegável que o Programa Bolsa Família possui, mesmo diante de tantos problemas, uma
função e que esta é uma redução daquilo que se entende como pobreza no Brasil. O mínimo
social, frente a uma massa de miseráveis, será sempre melhor do que nada. Porém, a grande
questão é quando o investimento em políticas sociais universais é posta em segundo plano,
para atender um programa de “assistencialismo”, com potencial “clientelista”. Não somente a
renda transferida não faz parte de um direito social, como também pode ser cortada e retirada
a qualquer instante. Sob essa perspectiva, concordo com Filgueiras e Gonçalves [5]; a criação
do Programa foi uma maneira de amortecer as tensões sociais que se encontravam presentes
em relação à miséria que assolava o país, com intuito de “manejar” a pobreza. Ou seja, para
manter uma manipulação política, é sempre mais cômodo manter um estado de insegurança
constante, uma vez que o Programa Bolsa Família não é constitucional, trata-se de uma
política de governo.
Com a conclusão de parte do trabalho etnográfico junto às famílias no Morro do
Alemão, nosso trabalho, nesse ínterim, deve passar por uma nova fase, mas ainda é cedo para
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expormos os detalhes. Podemos apenas frisar que expandiremos nosso campo de ação no
próprio morro do Alemão, para tratarmos de temas referentes à educação, saúde, violência,
mas sem fugir do nosso foco principal que tem como base a pobreza e desigualdade.
Referências Bibliográficas:
1- BORGES, Ângela e KRAYCHETE, Elsa Souza. Mercado de trabalho e pobreza: discurso e evidencias na trajetória brasileira recente. Caderno CRH, salvador,v.20, No 50.
P. 231-243. Maio/ Agosto. 2007
2- BOURDIEU, Pierre. Efeitos do lugar. In: A Miséria do Mundo. Petrópolis: Vozes, 1997.
3- CASTEL, Robert. Desigualdade e a Questão Social. São Paulo: EDUC, 2000.
4- ESCOREL, Sarah. Vidas ao léu: trajetórias de exclusão social. Rio de Janeiro:
FIOCRUZ, 1999.
5-FILGUEIRAS, Luiz; GONÇALVES, Reinaldo. A Economia Política do Governo Lula.
Rio de Janeiro: Contraponto, 2007.
6 - KOWARICK, Lúcio. Viver em Risco: sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil.
São Paulo: 34 editora, 2009.
7- MARQUES, Eduardo. Redes Sociais, Segregação e Pobreza. São Paulo: UNESP, 2010.
8 - ROCHA, Mercedes. Espirales de desventajas: pobreza, ciclo vital y aislamiento social.
In.: (Org) Gonzalo Saraví. De la Pobreza a la exclusión: continuidades y rupturas de la
cuestión social en América Latina. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2007.
9- SARAVÌ, Gonzalo. Nuevas Realidades y Nuevos enfoques: exclusion social em
América Latina. In.: (Org) Gonzalo Saraví. De la Pobreza a la exclusión: continuidades y
rupturas de la cuestión social en América Latina. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2007.
10 - VALLADARES, Lícia. Cem anos pensando a pobreza (urbana) no Brasil, In:
BOSCHI, Renato. (org.). Corporativismo e desigualdade, a construção do espaço público no
Brasil. Rio de Janeiro: Rio Fundo / IUPERJ, 1991.
11 - ____________________. A Invenção da Favela: do mito de origem à favela. Rio de
Janeiro: FGV, 2005.
12 - http://ideb.inep.gov.br/ (acesso em 12/07/2012)