pobreza e desigualdade na favela: pesquisa … · território marcado pela violência,...

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Departamento de Ciências Sociais 1 POBREZA E DESIGUALDADE NA FAVELA: pesquisa etnográfica em favela carioca Aluno: Christian Boyer Orientadora: Maria Sarah da Silva Telles Introdução: A favela tornou-se objeto de inúmeros estudos, em grande medida relacionado à pobreza, à exclusão e à desigualdade. Ao longo das últimas décadas, multiplicaram-se as pesquisas, associadas ao crescente interesse da universidade em conhecer essa realidade que sempre foi permeada de inúmeros preconceitos e estereótipos. Embora a mídia tenha tido uma enorme participação para a construção negativa desse universo, no seu conjunto, a produção intelectual, a princípio, também desempenhou seu papel em representar a favela como um território marcado pela violência, ilegalidades, bolsões de pobreza e exclusão social. A crítica a essa questão não é negar as particularidades negativas que circundam a favela, mas o esquecimento que se deu, na época, em salientar uma notável diversidade social e espacial, bem como o dinamismo social e econômico que passaram a imperar nessas comunidades. Sob esse crivo, a socióloga Lícia Valladares [11] - assim como muitos outros profissionais da área - foi uma das autoras que contribuiu para quebrar essa figuração homogeneizadora da favela, frente ao desconhecimento de uma realidade plural e multifacetada. Destarte, a dificuldade em se estudar um tema como pobreza urbana e desigualdade em favelas cariocas se dá não somente em conhecer efetivamente aquele território, mas principalmente a cidade em que a mesma está inserida. Sob essa perspectiva, este trabalho de pesquisa pretende contribuir para o conhecimento das novas formas da pobreza e exclusão, muito além de estudar as dinâmicas sociais existentes na favela, associada a uma melhor compreensão dos obstáculos e possibilidades que rodeiam seus moradores. Uma análise da diversidade das condições de vida dos moradores permite, sob esse contexto, um melhor conhecimento do quadro relacionado à vulnerabilidade [6] das famílias nas áreas segregadas. Não se trata de negar, a priori, uma ausência das clássicas formas de desigualdade e pobreza, mas sim de expandir para uma visão mais transversal, com intuito de compreender com maior clareza os cenários ligados às mesmas. A importância de estudos sobre o processo de acúmulo de vantagens e desvantagens vem ganhando peso na literatura contemporânea sobre pobreza. Como sabemos, a pobreza e a exclusão social são fenômenos urbanos que possuem uma dinâmica distinta em cada realidade. Embora haja similitudes em determinados ambientes, o conjunto multifacetado de fatores pode levar a situações mais intensas de pobreza e vulnerabilidade - por meio de “espirais de desvantagens”[8] - quanto a situações de superação da mesma. A perda do emprego, a fragmentação das famílias e a desvinculação de redes de apoio (parentesco e vizinhança), tendem a levar a um agravamento da pobreza e a situações de isolamento social. De acordo com De La Rocha, esse processo não se constitui de maneira “linear”, mas sim em forma de espirais. Em outras palavras, sob um contexto de crise, uma desvantagem desencadeia outras desvantagens, acarretando um efeito dominó sem precedentes. A importância, portanto, de pesquisar as trajetórias de vida familiar torna-se essencial para perceber as nuances que ocorrem não somente em diferentes comunidades, mas, sobretudo, as que ocorrem dentro da própria comunidade.

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Departamento de Ciências Sociais

1

POBREZA E DESIGUALDADE NA FAVELA: pesquisa etnográfica em

favela carioca

Aluno: Christian Boyer

Orientadora: Maria Sarah da Silva Telles

Introdução:

A favela tornou-se objeto de inúmeros estudos, em grande medida relacionado à

pobreza, à exclusão e à desigualdade. Ao longo das últimas décadas, multiplicaram-se as

pesquisas, associadas ao crescente interesse da universidade em conhecer essa realidade que

sempre foi permeada de inúmeros preconceitos e estereótipos. Embora a mídia tenha tido uma

enorme participação para a construção negativa desse universo, no seu conjunto, a produção

intelectual, a princípio, também desempenhou seu papel em representar a favela como um

território marcado pela violência, ilegalidades, bolsões de pobreza e exclusão social.

A crítica a essa questão não é negar as particularidades negativas que circundam a

favela, mas o esquecimento que se deu, na época, em salientar uma notável diversidade social

e espacial, bem como o dinamismo social e econômico que passaram a imperar nessas

comunidades. Sob esse crivo, a socióloga Lícia Valladares [11] - assim como muitos outros

profissionais da área - foi uma das autoras que contribuiu para quebrar essa figuração

homogeneizadora da favela, frente ao desconhecimento de uma realidade plural e

multifacetada. Destarte, a dificuldade em se estudar um tema como pobreza urbana e

desigualdade em favelas cariocas se dá não somente em conhecer efetivamente aquele

território, mas principalmente a cidade em que a mesma está inserida.

Sob essa perspectiva, este trabalho de pesquisa pretende contribuir para o

conhecimento das novas formas da pobreza e exclusão, muito além de estudar as dinâmicas

sociais existentes na favela, associada a uma melhor compreensão dos obstáculos e

possibilidades que rodeiam seus moradores. Uma análise da diversidade das condições de

vida dos moradores permite, sob esse contexto, um melhor conhecimento do quadro

relacionado à vulnerabilidade [6] das famílias nas áreas segregadas. Não se trata de negar, a

priori, uma ausência das clássicas formas de desigualdade e pobreza, mas sim de expandir

para uma visão mais transversal, com intuito de compreender com maior clareza os cenários

ligados às mesmas.

A importância de estudos sobre o processo de acúmulo de vantagens e desvantagens

vem ganhando peso na literatura contemporânea sobre pobreza. Como sabemos, a pobreza e a

exclusão social são fenômenos urbanos que possuem uma dinâmica distinta em cada

realidade. Embora haja similitudes em determinados ambientes, o conjunto multifacetado de

fatores pode levar a situações mais intensas de pobreza e vulnerabilidade - por meio de

“espirais de desvantagens”[8] - quanto a situações de superação da mesma. A perda do

emprego, a fragmentação das famílias e a desvinculação de redes de apoio (parentesco e

vizinhança), tendem a levar a um agravamento da pobreza e a situações de isolamento social.

De acordo com De La Rocha, esse processo não se constitui de maneira “linear”, mas sim em

forma de espirais. Em outras palavras, sob um contexto de crise, uma desvantagem

desencadeia outras desvantagens, acarretando um efeito dominó sem precedentes. A

importância, portanto, de pesquisar as trajetórias de vida familiar torna-se essencial para

perceber as nuances que ocorrem não somente em diferentes comunidades, mas, sobretudo, as

que ocorrem dentro da própria comunidade.

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Metodologia:

Para captarmos certas informações sobre a vida de cada morador entrevistado, uma

investigação sobre trajetórias era necessária. Esse tipo de ferramenta nos permitiu adentrar o

universo de cada indivíduo, explorando nas entrelinhas os processos de acúmulos de

desvantagens que costumam ocorrer em setores mais pobres e vulneráveis da população das

áreas mais afastadas. Destarte, nosso trabalho é orientado por uma metodologia que visa

destrinchar cada realidade, coletando o máximo de informações sobre a fragilidade nos laços

sociais que imperam na relação indivíduo-sociedade [9]. A vontade dos moradores em relatar

suas histórias de vida facilitava nosso trabalho de pesquisa, pois permitia identificar em seus

discursos os sinais de oportunidades, obstáculos, vulnerabilidade e exclusão.

Esclarecido este ponto, este trabalho, portanto, espelhou-se em um método etnográfico

para coleta de informações. Realizávamos uma vez por semana - entre agosto a dezembro de

2011 - uma visita ao morro do Alemão, no Complexo do Alemão. As entrevistas, de caráter

informal, foram efetuadas em diversos pontos da favela, tendo em vista a diversidade

socioeconômica existente entre a parte baixa e a parte alta do morro. Nossa estratégia na

primeira semana foi fazer um reconhecimento na comunidade. Ninguém do grupo - exceto o

informante principal, na qualidade de morador e bolsista na pesquisa - conhecia os arredores.

A escolha das famílias se pautou, nesse ínterim, pela facilidade de acesso em alguns locais. A

base do morro, ou parte baixa, foi nosso ponto de partida, para só depois subirmos até o ponto

mais elevado. Mesmo situados, a princípio, em um mesmo ambiente, o contraste social e

econômico se tornava cada vez mais evidente na medida em que subíamos.

O planejamento do roteiro da entrevista, embora possuísse palavras chaves, não havia

necessariamente a obrigação de seguir uma ordem. Perguntas relacionadas à migração, à

escolaridade, à ocupação profissional, à habitação, à vizinhança etc, serviam com intuito de

estimular os entrevistados em uma reflexão sobre suas vidas, seus percursos e suas condições

sociais frente àquele universo. Dependendo da família, do contexto e do horário, as perguntas

podiam seguir por um determinado caminho sem a preocupação de “cercar” as respostas. Ao

final do trabalho de pesquisa, parte do tempo restante ficou destinada à transcrição das

entrevistas realizadas e reuniões para discutir bibliografias ligadas ao tema.

Desenvolvimento:

Do cortiço à favela

Antes de abordarmos alguns resultados frente à situação real dos moradores

pesquisados, precisamos, a princípio, compreendermos como a pobreza urbana e a

desigualdade social no Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro, foi tomando a forma que a

conhecemos nos dias de hoje. O artido “Cem Anos Pensando a Pobreza (Urbana) no Brasil”,

da Lícia Valladares [10], nos ajuda a compreender a evolução das categorias de “pobreza” no

Brasil enquanto nação moderna e urbana, retratando em cada tempo suas singularidades. Para

a autora, podemos circundar o tema da pobreza urbana no Brasil em três períodos distintos: na

virada do século (o cortiço), nas décadas de 50 e 60 (a favela), nas décadas de 70 e 80 (a

periferia).

Virada do Século - O Cortiço

Para Valladares, quando refletimos sobre a virada do século, uma das primeiras

questões que tende a nos chamar a atenção é o reconhecimento de uma pobreza frente aos

olhos da elite nacional. Embora haja ocorrências de segmentos pobres no Brasil na época

colonial, foi somente no advento da república que a pobreza urbana começou a ganhar

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relevância para elite no cenário brasileiro. Nesse período, foram os sanitaristas que

começaram a questionar as precárias condições de vida existentes nos centros urbanos.

Impulsionados pela indústria, o Rio de Janeiro, com mais de meio milhão de habitantes, se

tornava a capital das epidemias, tendo como casos a febre amarela, tuberculose, peste, cólera

etc. De acordo com a autora,

“[...] a propagação das doenças relacionava-se diretamente às catastróficas

condições de higiene às quais estava submetida grande parte da população. Vivendo em

habitações coletivas precárias - estalagens, casas de cômodos e sobretudo em cortiços - era

diário o convívio com sérias falhas no abastecimento d’água e com péssimas condições de

saneamento básico” (VALLADARES,1991, p. 84).

Destarte, foram os médicos que tiveram papel preponderante junto aos poderes

públicos em alertar sobre as condições vigentes. Isso implicou não somente uma intervenção

sobre a “pobreza”, mas sobretudo em um combate às habitações insalubres. Em outras

palavras, o cortiço passou a ser o mal que deveria ser erradicado, uma vez que era

considerado pelos sanitaristas o foco das doenças, das sujeiras e, principalmente, da pobreza.

O famoso cortiço “Cabeça de Porco” foi completamente demolido para as campanhas

sanitárias em prol de um saneamento. A grande questão, para Valladares, foi como a saúde e a

eliminação do cortiço foi observada pela elite política nacional. Ao contrário dos sanitaristas

que enxergavam o cortiço como um foco de propagação de doenças, os políticos o

visualizavam como o berço principal dos criminosos e desordeiros Ou seja, encaravam aquele

ambiente como um local que agregava as “classes perigosas”. Essas classes, para esses

políticos, eram todos aqueles que não estavam inseridos na ordem industrial, ou no universo

fabril. Seres que pertenciam entre o cortiço e a rua, sempre tentando levar o caos à ordem.

Tornava-se assim, de maneira muito simplória, aqueles que eram considerados os

trabalhadores, daqueles que não eram; taxados como “vadios”. Uma dicotomia que se

estendia no discurso das elites, “[...] de um lado o mundo do trabalho, da moral, da ordem; de

outro, um mundo às avessas - amoral, vadio, caótico - que deveria ser reprimido e controlado

para não comprometer a ordem” (VALLADARES, 1991, p. 87). O pobre, ou o vadio, era

assim todos aqueles que permaneciam fora do mercado de trabalho formal. Uma vez fora da

nova ordem instituída pelas elites, esse pobre passava a carregar em sua pele estigmas de

improdutividade, ociosidade etc. Era assim considerado o “malandro”, que sob os olhos da

elite era aquele que se recusava a vender sua força de trabalho no mercado capitalista.

Sob essa perspectiva, a pobreza era encarada tanto pelos intelectuais, quanto pelas

elites, como um fator individual, cujo culpado era o próprio indivíduo que não se esforçava

para se inserir na ordem vigente. Havia assim, portanto, dois polos distintos, um que colocava

o trabalhador - fábrica, mundo do trabalho, mundo da ordem - no polo mais alto, e um que

colocava o vadio - rua e cortiço, mundo do não-trabalho, mundo da desordem - no extremo

oposto.

Os Anos 50-60 - A Favela

Para entendermos a questão da favela, e como o termo “população marginal” se

propagou, precisamos, a priori, contextualizarmos os fatos daquela época. A partir da década

de vinte, o Brasil começou a passar por um forte processo de urbanização, devido à dinâmica

expansiva das industriais. Frente a esse cenário, de contínua urbanização e valorização das

cidades, importantes deslocamentos populacionais começavam a imperar do campo para os

centros urbanos. As principais cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte,

Curitiba etc, começavam a sofrer uma transformação que Valladares define como “inchação”.

Simplificando: era muita gente para pouca oferta trabalho. O ritmo desenfreado da

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urbanização começava a ultrapassar o desenvolvimento das indústrias; consequentemente, a

criação de empregos tornava-se um desafio. De acordo com a autora, é através desse contexto,

a partir dos anos trinta, que

“[...] a pobreza começa a se estampar, mais fortemente, sob outra forma especial - a

favela -, que sorrateiramente vai se impondo no cenário das cidades em expansão,

desde as capitais regionais até os centros médios e pequeno porte. Em cada cidade

um nome: “favela” no Rio, “mocambos” no Recife, “cafuas” em Belo Horizonte, [...]

a favela se torna a expressão mesma do modelo de desenvolvimento econômico

desigual, marcado por uma aceleradíssima urbanização, que prevaleceu no Brasil do

pos-30”. (VALLADARES,1991, p. 95).

A pobreza, devido a sua grande visibilidade através das favelas, passa a ser

questionada nos debates políticos. Enquanto a virada do século foi caracterizada pelo

reconhecimento de uma pobreza de caráter individual, cujo pobre era o próprio culpado pela

sua situação; nos anos cinquenta e sessenta, essa mesma pobreza urbana passara a ser

analisada como um fator social. Em outras palavras, passa a perpetuar nos discursos que os

fatores não são mais internos, mas sim externos. A recusa não era mais efetivamente do

indivíduo, era a própria indústria que excluía, uma vez que sofria de excesso de mão-de-obra.

A teoria da marginalidade social que já se perpetuava pela América Latina nos anos

sessenta, contribuiu em grande parte para a identificação do problema. Reconhecida a

marginalidade como inerente ao sistema capitalista, a pobreza passou a ser analisada como

um fenômeno estrutural. Destarte, percebe-se assim uma mudança drástica no paradigma da

pobreza. O pobre não é mais considerado o “vadio”, no entanto, ele passa ser agora parte de

uma massa de excluídos, de não-integrados, colocados na “periferia” do sistema, sempre

relegados a uma situação típica de subempregos. A marginalidade encontrava-se assim

“[...] sua expressão máxima na favela, relegada pelos poderes públicos nos anos 50-

60 e vista como síntese de não-integração de amplos segmentos da sociedade urbana.

O termo “favelado” passa ser sinônimo de “pobre” e o espaço-favela ganha atributos

muitos semelhantes àqueles associados, década antes, ao cortiço”. (VALLADARES,

1991, p. 98)

As décadas de 70-80 - Periferia

Na década de setenta, o Brasil vai passar por grandes transformações no campo

econômico, social e urbano. Sob uma perspectiva econômica, a indústria continuava a crescer,

agora baseada em um novo padrão de grande empresa. No aspecto urbano, o processo

continuava acelerado, superior ao ritmo do crescimento demográfico. A grande questão,

porém, era de cunho social. A desigualdade social chegava a níveis alarmantes, mesmo diante

do “milagre econômico”. De acordo com a autora, a pobreza se estendia por toda rede urbana,

acompanhada de um processo de metropolização. Esse processo - que podemos chamar de

periferização - já vinha sendo construído, no entanto, passou a ganhar ênfase na década de

setenta quando as taxas de crescimento que registravam nos municípios das periferias

metropolitanas superaram as taxas dos grandes centros metropolitanos. Havia um

deslocamento contínuo das massas de trabalhadores, não somente devido à expulsão das áreas

centrais, mas sobretudo frente às leis oscilantes que marcavam o mercado imobiliário. A

periferia tornava-se, portanto, uma espaço de segregação espacial. Para a elite, era sempre

cômodo fechar os olhos para a pobreza e empurrá-la para longe. Para piorar, começou-se

também a assistir no Rio, em meados da década de setenta, um “declínio da favela”. Esse

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declínio fazia parte de um plano político de remoção que eliminou cerca de oitenta favelas.

De acordo com a autora,

“[...] muito embora as favelas antigas, que foram poupadas da remoção, tenham

continuado a crescer por meio da verticalização [...] o custo de moradia na favela,

com o mercado de aluguéis se desenvolvendo, acompanhando a inflação,

praticamente inviabilizou a permanência de muitos, bloqueando por outro lado a

entrada de migrantes recém-chegados. O destino mais frequente do pobre tornou-se a

periferia” (VALLADARES, 1991, p. 103).

Quanto à questão relativa ao emprego, o Estado continuava a reconhecer a existência

de dois setores, agora denominados “formal” e “informal”. O subemprego passou, assim, a

cair em desuso, uma vez que o setor informal preencheu uma lacuna importante na economia

urbana. Para Valladares, mesma que a atividade do setor informal fosse “irregular” e “mal

paga”, ainda sim havia uma função de inclusão importante para aqueles que estavam

excluídos da rede do mercado formal. Não era o ideal, evidentemente, mas ao menos oferecia

uma oportunidade de trabalho. Destarte, Valladares analisa na década de oitenta o

reconhecimento do termo “trabalhador pobre”. Esse termo passou a imperar após uma

pesquisa que constatou que a pobreza encontrava-se presente até mesmo entre os

trabalhadores regularmente empregados. Nas palavras da autora,

“[...] de 4,4 milhões de famílias classificadas como “miseráveis”, 3,2 milhões tinham

todos os seus membros incorporados ao mercado formal de trabalho [...] a família

pobre, trabalhadora, se viu cada vez mais obrigada a apelar para as chamadas

“estratégias de sobrevivência”” (VALLADARES, 1991, p. 106).

Essa estratégia que a autora se refere está ligada não somente a uma volta da jornada

de trabalho por parte dos aposentados, mas sobretudo ao trabalho de jovens e crianças na rua.

Essa estratégia de sobrevivência, como muitos sabem, ainda se perpetua em muitas cidades

brasileiras. No Rio de Janeiro, é comum enxergamos crianças trabalhando em sinais de

trânsito, com intuito de elevar a renda familiar. Embora o salário mínimo brasileiro tenha

aumentado nos últimos anos, ainda se encontra muito aquém para as necessidades básicas de

cada família. O que vale salientar, porém, é a percepção, sobretudo da elite, em perceber a

realidade do trabalhador pobre. A década de 90 marca o inicio de um novo tratamento dado

aos pobres. Relatórios do Banco Mundial defendem que

“[...] o meio mais eficiente de obter avanços rápidos e politicamente sustentáveis na

qualidade de vida dos pobres tem sido a adoção de uma estratégia de dois elementos.

O primeiro elemento dessa estratégia é a busca de um modelo de crescimento que

garanta o uso produtivo do bem mais abundante entre os pobres – o trabalho. O

segundo elemento é o provimento amplo de serviços sociais básicos aos pobres,

sobretudo de educação primaria, assistência medica básica e planejamento familiar.

O primeiro elemento cria oportunidades; o segundo, capacita o pobre a tirar proveito

das oportunidades[...] Se as famílias tiverem oportunidades seguras de usar

proveitosamente sua mão de obra e seus membros forem capacitados, instruídos e

saudáveis, certamente estará assegurado um padrão de vida mínimo e a pobreza

desaparecerá.” [1]

Embora exista um esforço em delimitar quais seriam os fatores que poderiam

contribuir para uma melhor qualidade de vida dos pobres, ou até mesmo uma superação, ainda

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assim é um discurso que está longe de se perpetuar na prática. No Brasil, ter acesso ao

trabalho não garante uma boa qualidade de vida; e para piorar, os serviços públicos que

poderiam auxiliar para uma mobilidade social estão “quebrados”. A educação pública, de um

modo geral, encontra problemas sérios na qualidade de ensino, obtendo percentual no IDEB

muito abaixo em relação às escolas privadas. O quadro baixo [12], apenas corrobora esse

discurso.

Por fim, nosso objetivo era apenas fomentar um panorama do percurso da pobreza

urbana no Brasil. Torna-se importante frisar, no entanto, apoiado na visão de Valladares,

como a favela deixa de ser um único espaço em que se pode encontrar situações de pobreza.

O morro do Alemão, que faz parte do Complexo do Alemão, por exemplo, pode abrigar tanto

aquele morador com um maior grau de qualificação profissional e educacional, quanto àquela

família em extrema vulnerabilidade e miséria. Embora o processo de “periferização”

demonstre que há bolsões de pobreza nos mais diversos espaços urbanos e que a favela seja

um lugar heterogêneo, com dinâmicas socioeconômicas bem distintas, ainda assim ela é

estigmatizada, uma vez que ainda podemos encontrar concentrações de famílias de baixa

renda, de baixa escolaridade, que vivem na informalidade no mercado de trabalho. A ruptura

com a velha história, que Valladares sublinhou magistralmente, não é uma tarefa simples,

principalmente quando ainda é mantido o velho discurso elitista. Infelizmente, um indivíduo

com baixo “capital cultural, social e econômico” [2] que queira se fazer presente, precisará de

um esforço demasiadamente grande - e sem garantias - para se incluir nos “jogos sociais” [2].

Destarte, sob a forma mais sutil de uma violência simbólica [2], o espaço é um dos lugares

onde o poder se afirma.

Exclusão e trajetórias

O termo exclusão social foi exposto pela primeira vez na França em meados dos anos

oitenta [4], ganhando força nos debates públicos e políticos devido à crise de desemprego que

assolava o país. Naquela época, o processo de pauperização começou a atingir não apenas

grupos tradicionalmente marginalizados como imigrantes ou moradores de periferias, mas

também aqueles que pareciam estar inseridos dentro da lógica do mercado. Foi nesse ínterim,

em solo francês, frente ao aumento das desigualdades e de mudanças no perfil da pobreza que

o tema adquiriu força e relevância no cenário mundial.

Quando analisamos a palavra exclusão, tendemos associá-la imediatamente a uma

dicotomia entre aqueles que estão inseridos, daqueles que não estão. A realidade, no entanto,

é mais densa e demasiadamente mais complexa. Sua base se funde na ideia de uma fratura nos

laços que tecem a relação indivíduo-sociedade [9]. Sob essa perspectiva, sua dimensão atinge

todas as esferas, transitando nos campos sociais, econômicos, políticos, culturais. A

integração social, portanto, faz parte de um processo dinâmico, multidimensional, em que há

polos de maior e menor integração frente a determinadas áreas.

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Embora a exclusão social integre o campo da pobreza e da desigualdade, não

necessariamente são indissociáveis. Existem casos possíveis em que uma pode atuar sem a

outra. No entanto, é inegável que a maior parte dos processos de exclusão costuma ocorrer no

âmbito econômico, em situações de intensa pobreza e desigualdade social. Um dos principais

motores para a exclusão é, por um lado, o desemprego e a precariedade relativa ao trabalho e,

por outro, a dificuldade que os jovens trabalhadores enfrentam para ingressar no mercado de

trabalho. Não se trata, evidentemente, de um simples problema de dinâmica de mercado, mas

sim de uma crise nos mecanismos da integração social. De acordo com Gonzalo Saraví [9],

“[...]la fuerza del vínculo entre la situación de empleo y otras dimensiones de la vida

económica y social – família, ingresos, bienestar y contatos sociales – sugere que

aquellas personas en situaciones de precariedade laboral tienen buenas chances de

ser/quedar excluídos. Las transformaciones estructurales en los mercados de trabajo,

y en particular sus efectos de desempleo y precarización, representan los

disparadores de un proceso de acumulación de desventajas que conduce a un estadio

final de desafiliación respecto a la sociedade, es decir, de exclusión social” (SARAVÍ,

2007, p.25)

Em suma, para Saraví, esse estágio final de desfiliação frente à sociedade não ocorre

de modo direto. São os pequenos percalços na vida que os conduzem, por fim, a uma ruptura.

Destarte, uma pessoa se exclui no “jogo social” de forma “fluída”, em processo. Migração

recente, perda de emprego, doença, velhice, carência de apoios sociais frente à vizinhança

tendem somente a aumentar o nível de risco e vulnerabilidade de indivíduos com escassos

recursos. Em outras palavras, o sentido pleno de exclusão social pode ser melhor visualizado

quando nos deparamos com um processo de acúmulo de desvantagens [8].

A partir desta constatação, tentaremos expor um quadro de nosso trabalho, através de

uma perspectiva centrada no curso de vida. Trabalhar com trajetórias nos permite a

possibilidade de vincular os eventos e processos dinâmicos que atuam na lógica do acúmulo

de desvantagens. As experiências biográficas aqui coletadas têm a preocupação em explorar a

prática das raízes dos processos que afeta negativamente as condições de vida dos setores

mais vulneráveis da população. Exporemos, a seguir, alguns recortes das entrevistas que

corroboram esse discurso.

Entrevistador: “como é que você sobrevive?”

Resposta: “Ué, o pastor me ajuda, a madrinha deles me ajuda. Minha ex-cunhada me

ajuda também. É assim. Eu lavava roupa para fora, né. Desde que começou esse

problema, fiquei uma semana de cama por causa da hérnia de disco. Aí foi ficando

tudo ruim.”

E: “Mas comida não falta, as pessoas te ajudam[...]”

R: “Mais ou menos, né. Outro dia estava meio brabo[...]A Renata de vez em quando

até me ajuda, mas a Carlinha, coitada, ela tem a mesma vida que eu. Não tem marido,

tem dois filhos que estão desempregados. Quando ela pode, ela ajuda. Ela perdeu a

Bolsa Família também, está bloqueado.”

Lidar com a situação desta moradora foi extremamente difícil. Desempregada, com

problemas sérios de saúde, mãe de dois filhos pequenos, seu único meio de sobrevivência era

contar com sua rede de vizinhança. Em diversos momentos da entrevista, mencionava que

somente Deus poderia salvá-la desta situação. Seu sonho era poder estar curada para poder

voltar a trabalhar e quando perguntada se sua família não lhe ajudaria, dizia que sua mãe não

se importava muito com sua situação. Havia em seu discurso certa mágoa em relação aos seus

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familiares. O ponto que queremos salientar, nesse ínterim, é como uma desvantagem acarreta

outras em larga escala. Não manter uma boa relação com seus familiares, sofrer uma doença

que a impossibilite de trabalhar, não ter o auxílio do Programa Bolsa Família são acúmulos de

desvantagens que geram um grave estado de vulnerabilidade. Nesse caso, sua rede de

vizinhança é a única linha - tênue por sinal - que a mantém sobrevivendo.

Outra questão importante que não estava em nossos planos, mas que surgiu ao longo

das entrevistas foi a questão do Bolsa Família. O problema relativo ao programa foi um dos

assuntos que mais circulou entre as entrevistas. Em alguns casos, o dinheiro destinado seria

essencial para manter um equilíbrio na renda mensal das famílias. Foram comuns os relatos

envolvendo bloqueio, burocracia, falta de informação e impossibilidade de reativação do

programa. Abaixo, segue uma passagem que ressalva esse problema.

Entrevistador: “Você recebe o Bolsa Família, alguma ajuda[...]”

Resposta: “Normalmente não, porque perdemos [...] é um dinheiro bom, uma ajuda

pra caramba. São uns 355 reais. Dá para comprar uma boa alimentação. Tanto é que

eles (os filhos) estão reclamando.”

E: “Mas eles estavam faltando mesmo?”

R: “Três faltas. Se tiver mais que três faltas, cancela.”

E: “E quando corta, corta de todos?”

R: “Geral.”

O curioso nesse caso é o relato sobre o corte do programa. A família - que tem cinco

filhos - frisava que apenas uma de suas crianças havia faltado mais de três vezes, no entanto, o

corte atingiu a todos. Ou seja, o fato de uma criança ter faltado mais de três vezes acarretou

no cancelamento total do benefício, mesmo com as outras quatro crianças obtendo frequência

de 100%. O casal alegava que estava há quatro meses sem receber o Bolsa Família, dinheiro

que auxiliava na manutenção da alimentação da família. Ao contrário da outra moradora que

mantém sua sobrevivência com o auxílio de sua rede de vizinhança, essa família se ajusta com

o dinheiro que recebe do governo por possuir uma filha portadora de necessidade especial.

Como veremos abaixo, se dependesse somente de seus empregos (biscates), o próprio casal

afirmou que não haveria dinheiro suficiente.

Entrevistador: “E como é que vocês conseguem pagar?”

Resposta: “A gente aqui não. Essa aqui (a filha) é especial, então a gente tem a

pensão dela.”

E: “Ela ganha meio salário ou um salário?”

R: “550. Depois a gente faz as compras, ajeita tudo direitinho. Se a gente tivesse que

pagar aluguel, seria 350 para o aluguel e 150 para comer, né”

E: “Você não trabalha mais em casa de família?”

R: “Estou trabalhando na rua.”

E: “Você não tem carteira assinada?”

R: “Não.”

Relatos de miséria na infância preencheu boa parte das entrevistas. Era frequente

ouvirmos relatos sobre fome, habitação precária, necessidade de trabalhar cedo etc. Uma

infância marcada dificilmente era esquecida pelos entrevistados e muitos se orgulhavam de tê-

la superado, mesmo que essa superação não fosse aquilo que entendemos como ascensão

social. Uma família, em específico, reforçava a cada instante que sua vida estava muito

melhor do que antes, mesmo que ainda vivesse em condições extremamente precárias no que

concerne à habitação. Sob essa perspectiva, temos que ter cautela na dimensão do significado

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exposto pelos nossos entrevistados, uma vez que os paradigmas não são os mesmos. Ter uma

televisão, uma máquina de lavar, para certas pessoas, era uma forma de mostrar,

materialmente, que haviam ascendido economicamente. Essas pessoas não conseguiam

perceber que certos bens materiais se tornaram mais acessíveis ao longo do tempo e que uma

superação da pobreza - por mais relativa que seja - está muito além de ter objetos materiais

“básicos”. A educação, por exemplo, não era valorizada, em alguns casos, como possível

ferramenta para atingir maiores patamares. O trabalho, nesse contexto, era sempre mais

valorizado. Não é difícil imaginar o porquê, levando em consideração que muitos tiveram que

trabalhar desde muito cedo para ajudar no sustento da família.

Entrevistador: “Então, em relação a sua infância melhorou muito?”

Resposta: “Melhorou muito. Eu sou daquela época que não tinha televisão, não tinha

geladeira, não tinha nada. A gente não era nem pobre, era miserável[...]quando era

pequena era um cômodo só. Morava todo mundo junto, dormia um em cima do

outro[...]a casa era de madeira, vivia caindo. Toda vez que chovia, a casa

caia[...]meus filhos têm coisas que eu nunca nem sonhei em ter na minha vida,

entendeu. Eles têm coisas que podem escolher. Eu já não tive essa oportunidade.”

Outro caso que nos chamou a atenção foi de uma moradora que era esposa de um dos

gerentes do tráfico. Na época em que a entrevistamos, seu marido encontrava-se distante,

morando em outra favela, devido à entrada do Exército no morro do Alemão. Uma garota

jovem que teve toda uma ambição de vida posta de lado para atender as vontades/ordens de

seu marido. Sua liberdade ficou completamente comprometida. Dizia que em cada lugar que

ia, era vigiada pelos demais. Quando perguntamos se ela o amava, sua resposta era direta:

não. No entanto, havia contradições em seu discurso. Frisava que seu sonho era que ele

morresse, para que pudesse ter sua liberdade de volta, mas por outro lado, ressaltava que não

o desejava mal. O isolamento e vulnerabilidade, nesse caso, tomaram dimensões bem

diferentes. Não houve um processo de acúmulo de desvantagens, mas sim uma escolha,

pautada em uma “aventura” de uma jovem, que a levou à exclusão. Segue abaixo um

momento que ilustra essa passagem.

Entrevistador: “você tem que ir sempre visitá-lo?”

Resposta: “Tenho, porque eu tenho um filhinho, né. Eu tenho que levar ele. Se

pudesse nem ia.”

E: “Qual é a saída disso? É ir embora?”

R: “Aí ele vai atrás. Ou ele pega alguém da minha família, sei lá[...]só minha mãe

que sabe, todo dia eu falo com ela: aí que inferno, eu quero que ele morra logo. Aí eu

vou viver em paz, vou ter uma vida calma, sem ficar preocupada com as coisas que eu

posso fazer. Mas também eu vivo na preocupação de acontecer alguma coisa com ele

lá, entendeu. Se fosse acontecer, que acontecesse logo, para eu tirar isso da minha

mente.”

E: “Esse é o seu sonho?”

R: “Esse é meu sonho. É meu sonho de verdade.”

Embora seja importante relatarmos essas situações delicadas que imperam no âmbito

da favela, torna-se importante demonstrarmos também trajetórias que souberam aproveitar as

oportunidades surgidas. O caso de um morador, um dentre muitos outros, que conseguiu

ascender através do trabalho, adaptando-se as exigências do mercado. Além de possuir um

bom emprego na parte administrativa de uma empresa de construção civil, o entrevistado

ainda pensa em se atualizar cada vez mais; voltou a estudar e pretende realizar uma faculdade

em engenharia civil.

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Entrevistador: “Então, você está pretendendo fazer faculdade?”

Resposta: “Pretendo[...]seria para o lado de contabilidade, administração, que é o

ramo que exerço na empresa. A vontade que eu tenho é [...] fazer engenharia civil.”

E: “Agora com ProUni é mais fácil. O pessoal daqui, a maioria, estuda na

UNISUAM. Lá tem engenharia civil, não tem?”

R: “Tem. Eu tenho um colega topógrafo que está fazendo lá, engenharia civil.”

E: “E você acha que para o mercado de trabalho melhora?”

R: “Melhora, com certeza. Você tendo um currículo legal, tendo quem indique

também, né. Esse “QI” é fundamental.”

Podemos notar, em seu discurso, uma importância em manter uma boa rede de

contatos, uma vez que o usufruto do “quem indique” (QI) ainda insiste em perdurar no

mercado de trabalho. Sua visão referente à importância da universidade apenas salienta sua

compreensão de um local rico para o surgimento de novas oportunidades. Eduardo Marques

[7], em seu livro “Redes Sociais, Segregação e Pobreza”, aponta para os perigos associados a

grupos sociais estritamente homogêneos, defendendo a importância de redes heterogêneas

para o aumento de desenvolvimento de oportunidades. Uma chance, portanto, de entrar em

uma universidade ofereceria um “ponto de encontro” extremamente rico e benéfico para seu

futuro profissional.

Sobre o PAC e o Exército

Nosso trabalho no morro do Alemão coincidiu com um recente processo de

implantação da política de pacificação das favelas do Rio de Janeiro. Como a Unidade de

Polícia Pacificadora (UPP) ainda não se encontrava instalada, o Exército permaneceu no local

para manutenção da ordem. Frente a essa nova dinâmica que imperou no morro, resolvemos

coletar informações para saber do posicionamento da população diante do ocorrido. Nossa

primeira impressão foi que a transição das formas tradicionais do poder do tráfico pela

entrada do Exército alterou, em alguns casos, a sociabilidade entre os moradores. Não

ocorreram relatos de violência associado ao Exército, no entanto, para muitos jovens, houve

um abuso de poder referente à vida na favela. As famosas festas que varavam a noite

passaram a ser controladas pelos soldados. Havia um limite de som permitido depois de certa

hora e qualquer barulho em excesso era motivo para o desfecho das atividades.

Outro caso curioso foi a divisão das opiniões em relação à entrada do Exército.

Enquanto os jovens se posicionavam contra, as pessoas mais velhas, geralmente, eram a favor

da permanência das forças armadas, frisando que os soldados trouxeram paz ao morro.

Todavia, vale ressaltar que essa paz que esses senhores se referiam estava associada à lei do

silêncio que era imposta arbitrariamente pelo exército. Havia outros casos também,

envolvendo questões acerca dos limites da liberdade e segurança. O relato de um morador

conseguiu deixar bem clara a mudança drástica que perpetuou de uma realidade para outra.

“Ouvia quatro a cinco por dia[...]era um tiroteio condenado, mas nunca mexeram

com o morador, podia deixar a porta aberta. Agora se deixar a casa aberta, eles (os

soldados) vêm e roubam[...] com eles não (os traficantes), se roubassem eles matavam

na hora. Era a lei do diabo. Agora, está muito calmo, está muito bom. Você não vê

briga, não vê bagunça [...] aqui, antigamente, era meio ruim. Antes do Exército estar

aqui, a senhora não podia passar aqui. Cinco ou seis homens armados. Se tivesse

alguma briga de casal, se vacilassem,[... ]já viu, ia para vala. Mas só se vacilasse.”

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Ao realizarmos a pesquisa de campo, nos deparamos com outro tema “delicado”, que

foi aquele relacionado ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Enquanto a mídia

e o governo alardeavam o sucesso do programa, a pesquisa apontou uma realidade bem

controversa. Em termos de projeto, a sua base era de fato interessante, uma vez que seu raio

de ação cobriria muitas áreas que realmente estavam necessitando de um atendimento

especial. No entanto, na prática, as extensões mais isoladas que deveriam ser cobertas pelo

PAC simplesmente não foram, deixando-as na mesma situação precária de antes. Após a

conclusão do programa, era comum chegarmos a algumas áreas mais afastadas e enxergarmos

casas e mais casas destruídas/desapropriadas. As reclamações frequentes dos moradores eram

que além do PAC não ter comprido com a proposta, muitas famílias foram deslocadas

desnecessariamente. Alguns moradores alegavam que o programa serviu apenas para cobrir a

área do teleférico, enquanto as áreas que realmente necessitavam de infraestrutura - ligada a

sistema de coleta e saneamento - foram deixadas de lado. Quando visitamos a parte mais alta

do morro, nos deparamos com outra realidade. Estrada de terra, casas de tabique e madeira,

lixo jogado na encosta eram apenas alguns dos elementos que preenchiam a paisagem deste

setor do morro do Alemão.

O Programa de Aceleração do Crescimento é alvo das inúmeras controvérsias,

denúncias e irregularidades. Para os moradores, o tamanho do investimento para a criação do

teleférico foi completamente infundado. Primeiro, porque o teleférico não atende a demanda

da população em termos de circulação. Segundo, porque muitos moradores simplesmente não

utilizam o serviço, seja por medo, ou pela falta de praticidade de chegar até o local. Por fim,

quase todos concordam que o teleférico foi construído mais para um “turismo” propriamente

dito, do que para atender a população local.

Conclusão:

Em suma, diante dos fatos expostos, torna-se difícil ignorar o que está diante de nossos

olhos. A vulnerabilidade social – baseado no quadro dos acúmulos de desvantagens - em que

se encontram alguns moradores de favela apenas corrobora anos e mais anos de descaso das

autoridades frente a uma pobreza que sempre esteve a nossa volta. É inadmissível, nos dias de

hoje, ainda haver áreas em péssimas condições, seja em relação ao abastecimento d’água ou

condições de saneamento básico. Esses problemas não são de hoje, eles fazem parte de nossa

história e já deveríamos tê-los superado. Compreender que a pobreza e a desigualdade fazem

parte de um grande problema estrutural foi, efetivamente, um avanço; mas não podemos parar

por aí. Sabemos que em nosso país, investir em mínimos sociais é sempre mais cômodo do

que enfrentar os densos problemas referente às políticas universais como saúde, educação etc.

É inegável que o Programa Bolsa Família possui, mesmo diante de tantos problemas, uma

função e que esta é uma redução daquilo que se entende como pobreza no Brasil. O mínimo

social, frente a uma massa de miseráveis, será sempre melhor do que nada. Porém, a grande

questão é quando o investimento em políticas sociais universais é posta em segundo plano,

para atender um programa de “assistencialismo”, com potencial “clientelista”. Não somente a

renda transferida não faz parte de um direito social, como também pode ser cortada e retirada

a qualquer instante. Sob essa perspectiva, concordo com Filgueiras e Gonçalves [5]; a criação

do Programa foi uma maneira de amortecer as tensões sociais que se encontravam presentes

em relação à miséria que assolava o país, com intuito de “manejar” a pobreza. Ou seja, para

manter uma manipulação política, é sempre mais cômodo manter um estado de insegurança

constante, uma vez que o Programa Bolsa Família não é constitucional, trata-se de uma

política de governo.

Com a conclusão de parte do trabalho etnográfico junto às famílias no Morro do

Alemão, nosso trabalho, nesse ínterim, deve passar por uma nova fase, mas ainda é cedo para

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expormos os detalhes. Podemos apenas frisar que expandiremos nosso campo de ação no

próprio morro do Alemão, para tratarmos de temas referentes à educação, saúde, violência,

mas sem fugir do nosso foco principal que tem como base a pobreza e desigualdade.

Referências Bibliográficas:

1- BORGES, Ângela e KRAYCHETE, Elsa Souza. Mercado de trabalho e pobreza: discurso e evidencias na trajetória brasileira recente. Caderno CRH, salvador,v.20, No 50.

P. 231-243. Maio/ Agosto. 2007

2- BOURDIEU, Pierre. Efeitos do lugar. In: A Miséria do Mundo. Petrópolis: Vozes, 1997.

3- CASTEL, Robert. Desigualdade e a Questão Social. São Paulo: EDUC, 2000.

4- ESCOREL, Sarah. Vidas ao léu: trajetórias de exclusão social. Rio de Janeiro:

FIOCRUZ, 1999.

5-FILGUEIRAS, Luiz; GONÇALVES, Reinaldo. A Economia Política do Governo Lula.

Rio de Janeiro: Contraponto, 2007.

6 - KOWARICK, Lúcio. Viver em Risco: sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil.

São Paulo: 34 editora, 2009.

7- MARQUES, Eduardo. Redes Sociais, Segregação e Pobreza. São Paulo: UNESP, 2010.

8 - ROCHA, Mercedes. Espirales de desventajas: pobreza, ciclo vital y aislamiento social.

In.: (Org) Gonzalo Saraví. De la Pobreza a la exclusión: continuidades y rupturas de la

cuestión social en América Latina. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2007.

9- SARAVÌ, Gonzalo. Nuevas Realidades y Nuevos enfoques: exclusion social em

América Latina. In.: (Org) Gonzalo Saraví. De la Pobreza a la exclusión: continuidades y

rupturas de la cuestión social en América Latina. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2007.

10 - VALLADARES, Lícia. Cem anos pensando a pobreza (urbana) no Brasil, In:

BOSCHI, Renato. (org.). Corporativismo e desigualdade, a construção do espaço público no

Brasil. Rio de Janeiro: Rio Fundo / IUPERJ, 1991.

11 - ____________________. A Invenção da Favela: do mito de origem à favela. Rio de

Janeiro: FGV, 2005.

12 - http://ideb.inep.gov.br/ (acesso em 12/07/2012)