memorial do convento

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Memorial do Convento” 1.As personagens Baltasar representa na obra um operário consciente dos objectivos do seu trabalho e por isso se dedica de forma apaixonada ao projecto de construção da Passarola. Baltasar, como elemento do povo, adquire características individuais. O seu trabalho é visto com dignidade e exercido de forma autónoma e voluntária. Nisto opõe-se aos operários que trabalham na construção do convento, que são tratados como escravos, realizando um trabalho forçado no qual não se envolvem. Como argumento para convencer Baltasar a colaborar no seu projecto, o padre Bartolomeu ajuda-o a ultrapassar o seu complexo da doença física comparando-o a Deus. Por outro lado, Baltasar representa o sonho – à medida que o seu trabalho progride, a sua expectativa e o seu entusiasmo aumentam, ou seja, Baltasar não pode ser considerado um mero trabalhador que se aliena da sua força de trabalho. Para concluir, podemos ainda dizer que Baltasar, juntamente com Blimunda, representa a totalidade da união amorosa. Blimunda apresenta a característica mais curiosa das personagens da obra que é a capacidade de ver os outros por dentro. Aproveitando este dom, Blimunda recolhe as “vontades” que permitirão fazer voar a Passarola; utiliza, também, no momento crucial em que Baltasar vai ser queimado pela Inquisição. É uma personagem cuja sabedoria a afasta do seu mundo de origem. Blimunda ajuda na construção da Passarola e partilha com Baltasar as alegrias, as tristezas e as preocupações da vida. A união de Blimunda e Baltasar confere-lhe um outro nome, um nome simbólico que representa uma identidade cósmica através da qual se projecta no Universo, cujas leis se confundem e se recriam, onde luas e sóis convivem harmonicamente. A história de amor entre Baltasar e Blimunda perdura no tempo, projectando-se para uma dimensão intemporal, uma vez que a “vontade” de Baltasar voa ao encontro da amada – “O amor existe sobre todas as coisas”. D. João V – personagem histórica, poderoso e rico mas insatisfeito por não possuir descendência. Este é o motivo que o leva a fazer a promessa que conduz à acção central do romance. A caracterização do rei é feita, essencialmente, de forma indirecta e de algum modo é desvalorizado em

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Memorial do Convento”

1.As personagens

Baltasar representa na obra um operário consciente dos objectivos do seu trabalho e

por isso se dedica de forma apaixonada ao projecto de construção da Passarola. Baltasar,

como elemento do povo, adquire características individuais. O seu trabalho é visto com

dignidade e exercido de forma autónoma e voluntária. Nisto opõe-se aos operários que

trabalham na construção do convento, que são tratados como escravos, realizando um

trabalho forçado no qual não se envolvem. Como argumento para convencer Baltasar a

colaborar no seu projecto, o padre Bartolomeu ajuda-o a ultrapassar o seu complexo da

doença física comparando-o a Deus. Por outro lado, Baltasar representa o sonho – à

medida que o seu trabalho progride, a sua expectativa e o seu entusiasmo aumentam,

ou seja, Baltasar não pode ser considerado um mero trabalhador que se aliena da sua

força de trabalho. Para concluir, podemos ainda dizer que Baltasar, juntamente com

Blimunda, representa a totalidade da união amorosa.

Blimunda apresenta a característica mais curiosa das personagens da obra que é a

capacidade de ver os outros por dentro. Aproveitando este dom, Blimunda recolhe as

“vontades” que permitirão fazer voar a Passarola; utiliza, também, no momento crucial

em que Baltasar vai ser queimado pela Inquisição. É uma personagem cuja sabedoria a

afasta do seu mundo de origem. Blimunda ajuda na construção da Passarola e partilha

com Baltasar as alegrias, as tristezas e as preocupações da vida. A união de Blimunda e

Baltasar confere-lhe um outro nome, um nome simbólico que representa uma identidade

cósmica através da qual se projecta no Universo, cujas leis se confundem e se recriam,

onde luas e sóis convivem harmonicamente. A história de amor entre Baltasar e

Blimunda perdura no tempo, projectando-se para uma dimensão intemporal, uma vez

que a “vontade” de Baltasar voa ao encontro da amada – “O amor existe sobre todas as

coisas”.

D. João V – personagem histórica, poderoso e rico mas insatisfeito por não possuir

descendência. Este é o motivo que o leva a fazer a promessa que conduz à acção central

do romance. A caracterização do rei é feita, essencialmente, de forma indirecta e de

algum modo é desvalorizado em relação às personagens fictícias.

D. Maria Ana – a rainha surge no romance desvalorizada no seu papel como mulher,

tendo como única função a de “dar” infantes a Portugal. É frágil, insegura e

doentiamente religiosa. Como não se permite uma existência própria como mulher, tudo

aquilo que possa remeter para o universo feminino lhe surge em sonhos e, portanto, de

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forma inconsciente.

Padre Bartolomeu Lourenço – personagem com fundamento histórico também, uma

vez que consta que veio do Brasil para Portugal pelo interesse por questões científicas.

As suas experiências no campo da aeroestática levam-no à construção da Passarola. É

perseguido pela Inquisição, o que o leva à fuga para Espanha.

O povo – é à custa do seu sacrifício que se constrói o convento. É gente humilde e

oprimida, servem de meio para que os privilegiados atinjam os seus fins.

2.O Destino Humano

O autor preocupa-se com a condição humana, levando-nos a reflectir sobre a miséria em

que vivem os homens e que lutam até à exaustão para alcançar um mundo melhor. Esta

luta revela-se difícil porque, sistematicamente, os poderosos exploram os mais frágeis.

Saramago coloca-se ainda a questão “Onde é que nos leva a razão?” e conclui, então,

numa visão realista, que esta não é impedimento para a falta de respeito pelo outro, a

injustiça e as desigualdades. Apesar de tudo, o sonho e a aliança entre pessoas que

partilham as mesmas vontades podem fazer deste mundo um mundo diferente. Podemos

então concluir que o autor faz uma caricatura da sociedade portuguesa da época, utiliza

a ironia para ridicularizar algumas situações, nomeadamente os elementos da corte,

opondo e valorizando a importância do povo que leva uma vida de trabalhos e

preocupações e ainda assim consegue manter-se fiel ao espírito que leva à mobilização

das vontades.

3.Elementos simbólicos

Os nomes Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas – complementaridade, união e

perfeição, magia e totalidade (isto reside na simbologia do número três, revelador de

uma ordem intelectual e espiritual traduzida na união do céu e da terra).

Os mutilados – luta desmedida na construção de algo demasiado grande em relação à

condição humana; a perda de parte do seu lado esquerdo (Baltasar) significa a

amputação da sua parte mais negativa e a aquisição de uma dimensão mais espiritual

marcada pela perseverança, pela força, pela luta e pelo sentido de futuro.

Riqueza interior de Blimunda – é representada pela sua capacidade de clarividência e

vista como um poder mágico.

As duas mil vontades – vontades humanas que ao longo do tempo originaram o

progresso; são metaforizadas pelas nuvens porque ocupam um lugar ascendente e

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intermédio em relação à terra e ao céu. As nuvens estão carregadas de um carácter

positivo mas de acesso difícil, por isso só Blimunda lhes consegue aceder.

Os números – número 9: simboliza a insistência e determinação (Blimunda procura o

homem amado durante nove anos); número 7: data e hora da sagração do convento;

sete anos vividos em Portugal pelo músico Scarlatti; sete vezes que Blimunda passa por

Lisboa; sete igrejas visitadas na Páscoa; sete bispos que baptizaram Maria Francisca;

sete sóis de ouro e de prata colocados no altar-mor.

4.Estatuto do narrador

O narrador assume vários pontos de vista, muitas vezes contraditórios. Torna-se assim

uma voz polifónica que se traduz como marca de modernidade do romance. A focalização

omnisciente do narrador provém da sua intemporalidade. O discurso que utiliza é um

discurso anti-épico quando rebaixa heróis que a História glorifica e nos apresenta como

heróis gente anónima em que se incluem personagens com defeitos físicos como

Baltasar ou homens andrajosos como os operários da construção do convento.

5.Acção

5.1.Construção do Convento:

Constrangimentos da relação entre o rei e a rainha que estão na origem da sua

construção;

Trabalho forçado dos trabalhadores que o construíram;

Denúncia da vaidade do rei e prepotência da Igreja; a exploração dos humildes e a

instauração de um clima de medo à custa da ignorância do povo e da injustiça da história

que serve o jogo de poder.

5.2.A passarola:

O amor livre de Blimunda e Baltasar;

O entusiasmo da construção do projecto;

A solidariedade da tríade construtora que conseguiu aliar a sabedorias do padre

Bartolomeu à arte de Baltasar e a magia de Blimunda;

Instrumento da transfiguração do real mobilizada por uma carga imaterial que são as

vontades recolhidas por Blimunda.

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CONCLUSÃO: a construção da passarola é uma actividade transgressora tal como o

romance porque nem a sua estrutura obedece às normas da construção do romance

clássico nem o seu discurso respeita as normas de pontuação.

Ao contrário do que nos fazem supor as falsas pistas, não é a história do convento que se

pretende contar mas a história dos sonhos materializados pela vontade dos homens que

permitem criar um espaço de evasão e de liberdade. A construção do convento

representa a repressão do homem, enquanto a construção da passarola representa a sua

capacidade de libertação.

6.O Espaço

Espaço Físico – em termos físicos, os espaços privilegiados são Lisboa e Mafra, locais que

correspondem à construção dos dois projectos impulsionadores da acção e de

observação privilegiada dos autos-de-fé como autoridade reguladora que representa o

poder da Igreja;

Espaço Social – corresponde à recriação de ambientes da época, neste caso o portugal do

século XVIII marcado pelo Iluminismo trazido pelos estrangeirados e ao mesmo tempo

pelo obscurantismo da população e o medo do poder da Inquisição.

É esta recriação de ambientes que aproxima o romance do romance histórico enquanto

que a situação do narrador num tempo que não corresponde ao tempo cronológico, o

distancia desse mesmo género litarário.

7.Referências temporais:

Idades das personagens que funcionam como protagonistas;

A história de amor;

A batalha de Jerez de Los Caballeros;

A chegada da nau de Macau;

O nascimento e baptizado de D. Maria Bárbara e D. Pedro.

7.1.O tempo da História

Decorre entre 1711 e 1739 (28 anos), não é um tempo contínuo uma vez que o discurso

do narrador cria espaços dentro desse período cronológico para o integrar num tempo

uno em que passado, presente e futuro se misturam.

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8. Visão Critica

Tendo como pretexto a construção do convento de Mafra, Saramago, adoptando a perspectiva de um narrador distanciado do tempo da diegese, apresenta uma visão crítica da sociedade portuguesa da primeira metade do século XVIII. É neste sentido que Memorial do Convento transpõe a classificação de romance histórico, uma vez que não se trata de uma mera reconstituição de um acontecimento histórico, mas é antes um testemunho intemporal e universal do sofrimento de um povo sujeito à tirania de uma sociedade em que só a vontade de el-rei prevalecem o resto é nada (XXII).Logo desde o início do romance é visível o tom irónico e, até mesmo, sarcástico do narrador relativamente à hipotética esterilidade da rainha e à infidelidades do rei. Esta atitude irónica do narrador mantém-se ao longo da obra, denunciando o comportamento leviano do rei, a sua vaidade desmedida e as promessas megalómanas de que resulta o sofrimento extreo de homens que não fizeram filho nenhum à rainha e eles é que pagam o voto, que se lixam (XIX).O clero, que exerce o seu poder sobre o povo ignorante através da instauração de um regime repressivo entre os seus seguidores e que constantemente quebra o voto de castidade, também não escapa ao olhar crítico e sarcástico do narrador. A actuação da Inquisição que, à luz da fé cristã, manipula os mais fracos é de igual modo criticada ao longo do romance, nomeadamente, através da apresentação de diversos autos-de-fé e uma crítica às pessoas que dançam em volta das fogueiras onde se queimaram os condenados.Assim, são sobretudo as personagens de estatuto social privilegiado o alvo da crítica do narrador que denuncia as injustiças sociais, a omnipotência dos poderosos e a exploração do povo – evidenciada nas miseráveis condições de trabalho dos operários do convento de Mafra; ao mesmo tempo que denota empatia face aos mais desfavorecidos, cujo esforço elogia e enaltece.A crítica estende-se, ainda: à Justiça portuguesa que castiga os pobres e despenaliza os ricos, ao facto de se preterir os artífices e os produtos nacionais em defesa dos estrangeiros, bem como ao adultério e À corrupção generalizados.Em suma, Memorial do Convento constitui acima de tudo uma reflexão crítica – ao problematizar temas perfeitamente adaptáveis à época contemporânea do autor – conducente a uma releitura do passado e à correcção da visão que se tem da História.

9. Resumo da obra

A obra de José Saramago Memorial do Convento foi publicada em 1982. Foram-lhe atribuídos o Prémio Pen Clube e o Prémio Literário Município de Lisboa.

As sequências narrativas a seguir apresentadas permitem-nos sintetizar os principais momentos da acção do romance.

· Frei António de S. José diz a D. João V que só terá um filho da rainha, D. Maria Ana, que viera de Áustria havia mais de dois anos para conceber infantes para a coroa portuguesa, se o rei mandar construir um convento em Mafra

· O desejo de D. Maria Ana Josefa e de D. João V realiza-se finalmente: a rainha encontra-se grávida da futura princesa D. Maria Xavier Francisca Leonor Bárbara

· Apresentação de Baltasar Sete-Sóis, mutilado, dirigindo-se para Lisboa, soldado numa "guerra em que se haveria de decidir quem viria a sentar-se no trono de Espanha, se um Carlos austríaco ou um Filipe francês, português nenhum (…) - trata-se da Guerra da Sucessão

· Em dia de auto-de-fé, o dia em que Sebastiana Maria de Jesus é condenada ao degredo para Angola, sua filha, Blimunda, conhece Baltasar Sete-Sóis

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· O padre Bartolomeu Lourenço pergunta a Baltasar se este o quer ajudar a construir a passa rola; Baltasar responde afirmativamente. Entretanto, dado que o padre não tem dinheiro para comprar os ímanes de que necessita para continuar a sua obra, Baltasar vai trabalhar num açougue

· A rainha dá à luz uma menina: Maria Xavier Francisca Leonor Bárbara

· Nasce o segundo filho do casal real, o infante D. Pedro, que morrerá com dois anos de idade

· D. João V cumpre a sua palavra e, apesar da morte de Frei António de S. José, vai a Mafra escolher o local onde será construído o convento

· Baltasar e Blimunda vão viver para S. Sebastião da Pedreira, para que o primeiro possa trabalhar na passarola do padre Bartolomeu Lourenço

· O padre Bartolomeu Lourenço parte para a Holanda, na esperança de conseguir éter para que a passa rola possa voar; Blimunda e Baltasar vão para Mafra, instalando-se em casa dos pais deste: João Francisco Sete-Sóis e Marta Maria

· O padre regressa passados três anos e, antes de ir para Coimbra, dirige-se a Mafra e pede a Baltasar e a Blimunda que voltem a Lisboa, para continuarem a construção da máquina voadora, na quinta abandonada, em S. Sebastião da Pedreira

· O rei D. João V, entretanto, procede à inauguração do início da construção do convento de Mafra, colocando a primeira pedra nos alicerces do edifício (no dia 17 de Novembro de 1717)

· O padre Bartolomeu Lourenço regressa de Coimbra, já "doutor em cânones, confirmado de Gusmão por apelativo onomástico" instalando-se no Terreiro do Paço em casa de uma viúva

· Em Lisboa, assiste-se à epidemia que "é vómito negro ou febre-amarela "; Blimunda, a pedido do padre Bartolomeu, vai "recolher as vontades dos moribundos" num frasco para que depois as possa transferir para as esferas da passa rola, de modo a que esta possa voar; Baltasar acompanha-a

· Blimunda adoece. Domenico Scarlatti toca cravo e, ouvindo a sua música, Blimunda sente-se melhorar até que "a saúde voltou depressa, se realmente faltara "

· A passa rola está concluída e pronta para voar. Mas, certo dia, o padre Bartolomeu Lourenço anuncia a Baltasar e a Blimunda que têm que fugir, pois o tribunal do Santo Ofício anda à sua procura. Decidem, então, utilizar a máquina que voa, passando por Mafra até Monte Junto, aterrando na serra do Barregudo. Entretanto, o padre tenta incendiar a passa rola, mas Baltasar impede-o de o fazer; o padre Bartolomeu desaparece

· Baltasar e Blimunda vão viver para Mafra; Baltasar trabalha na construção do convento e quando pode, vai ao Monte Junto ver a máquina que lá deixara coberta de ramagens secas

· D. João V diz a João Frederico Ludovice que quer ampliar o convento de oitenta para trezentos frades, ordenando que todos os homens sejam enviados para Mafra, independentemente da sua vontade, para participarem na construção do convento

· Cortejo real e casamento dos príncipes portugueses, D. Maria Bárbara e D. José com os infantes espanhóis, D. Fernando VI e Mariana Vitória

· Baltasar vai ver a passa rola ao Monte Junto. Está dentro dela quando, inesperadamente, esta sobe no ar

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· Blimunda vai à serra do Barregudo procurar Baltasar, que não regressara

· Em Mafra, no dia 22 de Outubro de 1730, data do quadragésimo primeiro aniversário do rei, faz-se a sagração do convento

· Blimunda procura Baltasar, de terra em terra, durante nove anos. Finalmente, encontra-o em Lisboa, quando ali passa pela sétima vez: ardia na fogueira do Santo Ofício durante a realização de um auto-de-fé (juntamente com outros supliciados, entre os quais António José da Silva). As menções ao Alentejo evidenciam um espaço povoado de mendigos e de salteadores. Este espaço é percorrido por Baltasar quando regressa da guerra da sucessão e, mais tarde, pelo cortejo real, aquando do casamento de D. José e de D. Maria Bárbara com os príncipes espanhóis, realçando-se a miséria e a penúria dos que aí vivem.

10. O espaço social

O espaço social é construído, na obra, através do relato de determinados momentos (ou episódios) e do percurso de personagens que tipificam um determinado grupo social, caracterizando-o.

Ao nível da construção do espaço social, destacam-se os seguintes momentos:

Procissão da Quaresma

Síntese dos principais aspectos referidos ao longo do relato: · caracterização da cidade de Lisboa

· excessos praticados durante o Entrudo (satisfação dos prazeres carnais) e brincadeiras carnavalescas - as pessoas comiam e bebiam demasiado, davam "umbigadas pelas esquinas", atiravam água à cara umas das outras, batiam nas mais desprevenidas, tocavam gaitas, espojavam-se nas ruas

· penitência física e mortificação da alma após os desregramentos durante o Entrudo (é tempo de "mortificar a alma para que o corpo finja arrepender-se"

· descrição da procissão (os penitentes à cabeça, atrás dos frades, o bispo, as imagens nos andores, as confrarias e as irmandades)

· manifestações de fé que tocavam a histeria (as pessoas arrastam-se pelo chão, arranham-se, puxam os cabelos, esbofeteiam-se) enquanto o bispo faz sinais da cruz e um acólito balança o incensório; os penitentes recorrem à autoflagelação

O narrador afirma que, apesar da tentativa de purificação através do incenso, Lisboa permanecia uma cidade suja, caótica e as suas gentes eram dominadas pela hipocrisia de uma alma que, ironicamente, este define como "perfumada ".

Autos-de-fé (Rossio)

Neste relato, são de salientar os seguintes aspectos:

· o Rossio está novamente cheio de assistência; a população está em festa, porque é domingo e porque vai assistir a um auto-de-fé (passaram dois anos após o último evento deste tipo)

· o narrador revela a sua dificuldade em perceber se o povo gosta mais de autos-de-fé ou de touradas, evidenciando com esta afirmação a sua ironia crítica perante um povo que revela um gosto sanguinário e procura nas emoções fortes uma forma de preencher o vazio da sua existência

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· a assistência feminina, à janela, exibe as suas toilettes, preocupa-se com pormenores fúteis relativos à sua aparência (a segurança dos sinaizinhos ao rosto, a borbulha encoberta), e aproveita a ocasião para se entregar a jogos de sedução com os pretendentes que se passeiam em baixo

· a proximidade da morte dos condenados constitui o motivo do ambiente de festa; esta constatação suscita, mais uma vez, a crítica do narrador - na realidade, o facto de as pessoas saberem que alguns dos sentenciados iriam, em breve, arder nas fogueiras não as inibia de se refrescarem com água, limonada e talhadas de melancia e de se consolarem com tremoços, pinhões, tâmaras e queijadas; a família real jantaria na Inquisição depois do auto-de-fé, pois os castigados eram os outros

· sai a procissão - à frente os dominicanos; depois, os inquisidores

· distinção entre os vários sentenciados (através do gorro e sambenito), assim como o crucifixo de costas voltadas para as mulheres que irão arder na fogueira; é de salientar, neste momento, que a visão dos prisioneiros origina a violência verbal da assistência

· menção dos nomes de alguns dos condenados (inclusivamente, o de Sebastiana Maria de Jesus, mãe de Blimunda)

· início da relação entre Baltasar e Blimunda

· punição dos condenados pelo Santo Ofício - o povo dança em frente das fogueiras

Tourada (Terreiro do paço)

. o espectáculo começa e o narrador enfatiza a forma como os touros são torturados, exibindo o sangue, as feridas, as "tripas" ao público que, em exaltação, se liberta de inibições ("os homens em delírio apalpam as mulheres delirantes, e elas esfregam-se por eles sem disfarce")

. dois toiros saem do curro e investem contra bonecos de barro colocados na praça; de um saem coelhos que acabam por ser mortos pelos capinhas, de outro, pombas que acabam por ser apanhadas pela multidão

A ironia do narrador é ainda traduzida pela constatação de que, em Lisboa, as pessoas não estranham o cheiro a carne queimada, acrescentando ainda numa perspectiva crítica, que a morte dos judeus é positiva, pois os seus bens são deixados à Coroa.

Procissão do Corpo de Deus

Aspectos relevantes no relato da procissão do Corpo de Deus, realizada no Terreiro do Paço, em Lisboa.

- preparação da procissão:

· descrição dos "preparos da festa " feita pelo narrador, que assume o olhar do povo (as colunas, as figuras, os medalhões, as ruas toldadas, os mastros enfeitados com seda e ouro, as janelas ornamentadas com cortinas e sanefas de damasco e franjas de ouro), que se sente maravilhado com a riqueza da decoração (uma reflexão do narrador leva-o a concluir que não se verificam muitos roubos durante a cerimónia, pois o povo teme os pretos que se encontram armados à porta das lojas e os quadrilheiros, que procederiam à prisão dos infractores)

· referência do narrador às damas que aparecem às janelas, exibindo penteados, rivalizando com as vizinhas e gritando motes

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· à noite, passam pessoas que tocam e dançam, improvisa-se uma tourada

· de madrugada, reúnem-se aqueles que irão formar as alas da procissão, devidamente fardados

- realização da procissão:

· o evento começa logo de manhã cedo, descrição do aparato: à frente, as bandeiras dos ofícios da Casa dos Vinte e Quatro, em primeiro lugar a dos carpinteiros em honra a S. José; atrás, a imagem de S. Jorge, os tambores, os trombeteiros, as irmandades, o estandarte do Santíssimo Sacramento, as comunidades (de S. Francisco, capuchinhos, carmelitas, dominicanos, entre outros) e o rei, atrás, segurando uma vara dourada, Cristo crucificado e cantores de hinos sacros

· crítica do narrador às crenças e interditos religiosos; comentários; referência à forma como Blimunda e Baltasar vivem a procissão; crítica à vida dissoluta do rei com as freiras

· visão oficial da procissão como forma de purificação das almas, que tentam libertar-se dos pecados cometidos

· histeria colectiva das pessoas que se batem a si próprias e aos outros como manifestação da sua condição de pecadores

As procissões e os autos-de-fé caracterizam Lisboa como um espaço caótico, dominado por rituais religiosos cujo efeito exorcizante esconjura um mal momentâneo que motiva a exaltação absurda que envolve os habitantes.

A desmistificação dos dogmas e a crítica irónica do narrador ao clero subjazem ao ideário marxista que condena a religião enquanto "ópio do povo", isto é, condena-se a visão redutora do mundo apresentada pela Igreja, que condiciona os comportamentos, manipula os sentimentos e conduz os fiéis a atitudes estereotipadas.

A violência das touradas ou dos autos-de-fé apraz ao povo que, obscuro e ignorante, se diverte sensualmente com as imagens de morte, esquecendo a miséria em que vive.

A capital simboliza, assim, o espaço infecto, alimentado pelo ódio (aos judeus e aos cristãos-novos), pela corrupção eclesiástica, pelo poder repressivo e hipócrita do Santo Ofício e pelo poder autocrático do rei.

O trabalho no convento

Mafra simboliza o espaço da servidão desumana a que D. João V sujeitou todos os seus súbditos para alimentar a sua vaidade.

Vivendo em condições deploráveis, os cerca de quarenta mil portugueses foram obrigados, à força de armas, a abandonar as suas casas e a erigir o convento para cumprir a promessa do seu rei e aumentar a sua glória.

11. O espaço psicológico

O espaço psicológico é constituído pelo conjunto de elementos que traduz a interioridade das personagens. Nesta obra, o espaço psicológico é constituído fundamentalmente através de dois processos: os sonhos das personagens, que funcionam

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como forma de caracterização das mesmas ou que, num processo que lhes confere densidade humana, traduzem relações com as suas vivências; e os seus pensamentos.

12. A dimensão simbólica das personagens

Baltasar Sete-Sóis / Blimunda Sete-Luas

O discurso ficcional de José Saramago, na obra em análise, evidencia a perspectiva histórica do narrador, enfatizando a ironia (ao nível do espaço, do tempo e das personagens) e a crítica social que advém de um retrato fiel, porém subjectivo, da realidade portuguesa, em pleno século XVIII.

A narrativa fundamenta-se numa estrutura poliédrica que reflecte e inflecte as várias e sucessivas imagens que se ligam entre si numa relação interdinãmica de continuidade e de completude.

Ao nível das personagens, mencionemos as personagens heróicas Baltasar e Blimunda: soldado regressado da frente de batalha, Baltasar apresenta uma "deformidade física" que, em termos simbólicos, o une a Blimunda, também ela diferente da maioria, pela sua capacidade de "olhar por dentro das pessoas". Com efeito, a diairese de Baltasar (a perda da mão esquerda) marca a sua entrada num universo saturnino (negativo, pela ideia de paralisação) e infernal do qual só sairá após a conclusão do seu percurso ascensional, conquistando, através do voo, a assunção da sua identidade. Enquanto herói, Baltasar revela características picarescas que fazem dele uma personagem simpática (ao leitor) e grada (ao narrador). A sua condição de homem simples e pragmático, aliada à incapacidade intrínseca de questionar os dogmas estabelecidos, faz dele o demiurgo, por excelência, aquele que cria a passa rola, partindo do esquema informe do padre Bartolomeu de Gusmão, conferindo-lhe a forma que, simbolicamente, a une à liberdade e à morte. De facto, podemos considerar que Baltasar, qual Ícaro, ousou aproximar-se demasiado do Sol sofrendo a queda definitiva que o conduziu à morte na fogueira. Se esta personagem evidencia contornos que a tornam um elo de ligação entre o universo simbólico e o universo judaico-cristão (não esqueçamos que Baltasar participa na criação da passa rola e na construção do Convento de Mafra), funciona também como elemento catalisador da loucura de Bartolomeu de Gusmão e da aceitação tácita de Blimunda. A sua relação amorosa com Blimunda é baseada no silêncio, no consentimento mútuo e implícito de ambos numa vida em comum, num insofismável "querer ser", isto é, a relação de completude que os une torna-os imunes ao meio que os rodeia, defende-os das superstições, fortalece-os contra medos e temores que se recusam a aceitar, mais por galhardia que por receio.

Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas simbolizam a dualidade cíclica que, harmonicamente, realiza a cosmogonia universal (o dia e a noite) e representam o andrógino primordial. De facto, se pensarmos nas personagens e nos nomes que as representam, podemos constatar que a complementaridade Sol/Lua, dia/noite, luz/sombra enfatiza a alternância do mundo, numa clara acepção de essência dicotómica que une os opostos, nomeadamente, o universo divino e o universo humano.

Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão

O padre Bartolomeu de Gusmão representa simbolicamente um ser fragmentário, dividido entre a religião e a alquimia.

Padre oratoriano, Bartolomeu de Gusmão simboliza, ao longo de dezoito capítulos, o conflito interior motivado pela constante demanda de um saber que o conduzirá à subversão dos dogmas religiosos e, posteriormente, à morte.

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Esta personagem, que assume, aliás, na verdadeira acepção da palavra, o mito prometeico, revela o seu pensamento dialéctico no plano da passa rola que congrega em si o princípio de um barco e o princípio da ave que voa. A busca incessante do "meio" que fará voar a passa rola leva o padre a enveredar pelo estudo das antigas teorias medievais da física, unindo-as às novas descobertas científicas que impregnam a Europa.

Humanista, o padre Bartolomeu de Gusmão procura aliar o pensamento científico à realidade religiosa que conhece e será na Holanda que os seus princípios escolásticos desaparecerão definitivamente (através da desmistificação da quinta essência - o éter), para dar lugar ao elemento espiritual divino, isto é, a vontade humana. Ao aplicar os co-nhecimentos mecanicistas da razão e da técnica, Bartolomeu de Gusmão ultrapassa a época a que pertence e evidencia, apesar da diferença

temporal de dois séculos, os princípios do existencialismo defendidos por Nietzsche e Heidegger. Com efeito, o padre Bartolomeu de Gusmão simboliza a aspiração humana que está subjacente ao voo da passa rola através das "vontades" que, numa perspectiva sociológica, substituem o dogmatismo religioso, e a sua atitude está na génese da evolução da humanidade. Ao substituir a vontade divina pela vontade humana, Bartolomeu de Gusmão humaniza a acção, conferindo sacralidade ao acto humano de construir e de sonhar.

Domenico Scarlatti

Scarlatti representa simbolicamente o transcendente que advém da música e que, ligado à clarividência de Blimunda, instaura o domínio do maravilhoso na obra Memorial do Convento.

Duplo especular de Bartolomeu Lourenço, Scarlatti simboliza a ascensão do homem através da música, numa clara união entre a acção e o pensamento. É, aliás, esta capacidade que lhe permite compreender o sonho de Bartolomeu Lourenço e aceitar o par Blimunda/ Baltasar. Pela sensibilidade criadora e pela técnica de execução, esta personagem liga-se ao mito órfico(1) e contribui para a criação do universo encantatório que cura Blimunda. Com efeito, Domenico Scarlatti partilhará o sonho do trio e morrerá, metaforicamente, após o voo da passa rola, uma vez que destrói o cravo que o ligava explicitamente à trindade construtora e, implicitamente, ao interdito, isto é, ao sonho de voar.Tornando-se ele próprio a melodia que executa, Scarlatti acompanhará espiritualmente o voo da passa rola e assistirá à reinstalação de uma realidade representada pela autoridade real e pelo poder da Inquisição.

13. Elementos simbólicos

Sete

Representando simbolicamente a totalidade do universo em movimento, o sete é o somatório dos quatro pontos cardeais com a trindade divina.

A sua presença, no nome das personagens Baltasar e Blimunda, tem um significado dual, uma vez que se liga à mudança de um ciclo e à renovação positiva, cujo resultado será a construção da passarola. Com efeito, o par representa, como foi referido, a alteridade cíclica que subjaz à harmonia cosmogónica (o dia e a noite); assim, a sua união perfeita simboliza o acesso a um outro Poder, que representa, metaforicamente, a Totalidade.

Nove

O nove representa, simbolicamente, a gestação, a renovação e o renascimento.

Se atentarmos no percurso de Blimunda, podemos constatar que esta procura Baltasar durante nove anos. A sua separação de Baltasar originou a fragmentação da

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unidade representada pelo par. Assim, a sua demanda pela completude corresponde não a um período de gestação, mas a um período de redenção, findo o qual será restabelecida a ordem cósmica e a Unidade - é a ela que pertence a "vontade" de Baltasar no momento em que morre, queimado na fogueira da Inquisição.

Passarola

Concebida como uma "barca voadora", a passa rola simboliza o elo de ligação entre o Céu e a Terra. Símbolo dual, a passarola encerra, na sua concepção, o valor de dois símbolos que, aparentemente, se opõem: a barca e a ave. Todavia, se pensarmos que a barca remete para a viagem e a ave remete para a liberdade, concluímos que a passa rola, pelo seu movimento ascensional, representa metaforicamente a alma humana que ascende aos céus, numa ânsia de realização que a liberta do universo canónico e dogmático dos homens.

Assim, a passa rola simboliza a libertação do espírito e a passagem a um outro estado de existência.

13.1 SIMBOLOGIA

A Construção da Passarola - uma experiência alquímica.

- Pela alquimia procura obter-se:

· o acabamento;

· a perfeição do homem neste mundo, visando a plenitude do conhecimento com esforço da fé e da vontade.

Passarola - esperança feita espaço.

Voar - conceder ao homem um espaço de liberdade.

Verbo - levantar, equacionar e tentar dar respostas às dúvidas do homem, ao seu desejo infinito de explicações: revelação da verdade, do conhecimento. É o conhecimento, porque é o mundo.

Blimunda e Baltasar - O homem e a mulher - representam a plenitude exemplar. Buscam o bem humano.

Silêncio - interrogação e resposta; canal que permite uma comunicação em profundidade.

Personagens: Bartolomeu de Gusmão e o músico Scarlatti - possibilidade de articulação entre a cultura e o humano, entre o saber e o sonho, entre o conhecimento e o desejo.

Sermão do Corpo de Deus - enigma entre Deus ( o Ser) e a Ciência.

Trindade Terrestre: Blimunda, Baltasar e Bartolomeu Lourenço – a capacidade do homem e a sua infinita capacidade de construir.

Espaço circular - a unidade, a perfeição, o tempo, a infinitude.

Nuvem fechada - distância entre a vida e a morte.

Sete - perfeição, totalidade.

Música - esperança feita som.

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