memorial do convento

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UNIVERSIDADE DE TRÁS- OS- MONTES E ALTO DOURO MESTRADO EM CULTURA PORTUGUESA MEMORIAL DO CONVENTO DE JOSÉ SARAMAGO (RETRATO DO PORTUGAL SETECENTISTA) 1

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Trabalho da disciplina de "Inquisição e Cultura", feito há mais de 10 anos. Por isso, não está segundo o novo acordo ortográfico e as referências bibliográficas também estão ultrapassadas. Mas o que importa mesmo é o conteúdo. Resultou numa das notas mais altas que tive durante o Mestrado.

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Page 1: Memorial do convento

UNIVERSIDADE DE TRÁS- OS- MONTES E ALTO DOURO

MESTRADO EM CULTURA PORTUGUESA

MEMORIAL DO CONVENTO DE JOSÉ SARAMAGO

(RETRATO DO PORTUGAL SETECENTISTA)

Lucinda Cunha

1

Page 2: Memorial do convento

ÍNDICE

I- Introdução..............................................................................................................4

II- Vida privada de D. João V: devoção e escândalo...................................................6

III- Convento de Mafra: majestade e decadência......................................................11

IV- Fausto da corte vs Mendicidade..........................................................................16

V- A festa dos autos- de –fé....................................................................................23

VI- Padre Bartolomeu de Gusmão, um génio perseguido.........................................28

(religião vs ciência.)

VII- Conclusão..........................................................................................................33

VIII- Referências bibliográficas................................................................................35

2

Page 3: Memorial do convento

“Há, porém, limites materiais e temporais

para a ambição, nem que ela seja a do senhor

das Índias e dos Brasis , que por vontade

levantaria no seu reino outra basílica de S.

Pedro de Roma. E assim, talhado o plano à

medida do orçamento e dos recursos humanos

disponíveis, vai nascer na planura de Mafra o

convento erguido pelo labor e sacrifício das

gentes anónimas de Portugal, mantidas na

pureza política e religiosa das suas

fidelidades, já que uma e outra são a mesma

coisa, pelo zelo e pela eficácia do Santo

Ofício. Sob o fulgor das pompas régias floreja

uma miséria colorida, que nenhum esplendor

logra esconder ou disfarçar.”1.

1 REBELO, Luis de Sousa, “Os rumos da ficção de José Saramago”, In SARAMAGO, José, Manual de

Pintura e Caligrafia, 4ª ed., Lisboa, Editorial Caminho, 1983, p. 15.

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Page 4: Memorial do convento

I- INTRODUÇÃO

Obra de referência na Literatura Portuguesa do século XX, o Memorial do

Convento de José Saramago reflecte toda uma lista de contrastes existentes na sociedade

lisboeta setecentista.

Tendo governado o reino durante a primeira metade do século XVIII, D. João V

não seguiu a melhor política, esbanjando o dinheiro do Estado em ornamentos, jóias,

vestes, manifestações religiosas, sumptuosos palácios e magníficos monumentos com o

objectivo de impressionar os restantes dirigentes da Europa e formar uma corte

sumptuosa e deslumbrante. Como diz Eça de Queiroz num texto intitulado

“Francesismo”, em Portugal desde sempre se venerou a França, chegando a ironizar

afirmando que “Portugal é um país traduzido do francês em calão.”2 Ora, o domínio de

D. João V coincidiu, sensivelmente, com o de Luís XIV, cujo país era o mais admirado

da Europa por toda a pompa e sumptuosidade que o caracterizavam.

Retratando o ambiente que se vivia na Lisboa de setecentos, Saramago traça as

cores de um quadro onde nem tudo é cor-de-rosa. O negro predomina nas aguarelas que

representam os mendigos, as crianças abandonadas, os criminosos, os soldados, os

prisioneiros, os escravos, os acusados pela Inquisição, os trabalhadores rurais e os

operários, enquanto o vermelho e a cor púrpura predominam no palácio real, nos

conventos, mosteiros e casas nobres.

Sendo o Memorial do Convento um romance histórico, o Autor recorre a várias

fontes para criar uma história onde nem tudo nasce da sua imaginação. São várias as

figuras a desfilar durante a obra e que, de facto, ocupam um lugar importante na nossa

História. Desde o Padre Bartolomeu de Gusmão a D. Maria Ana, desde Domenico

Scarlatti a D. João V e mesmo aos filhos e irmãos do soberano, todos eles apresentam

2 QUEIROZ, Eça, Últimas Páginas, Lisboa, Publicações Europa- América, s. d., p. 194.

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Page 5: Memorial do convento

características psicológicas comprovadas pelos inúmeros estudos que se têm feito do

reinado do Magnânimo.

Também Blimunda, personagem fictícia que possui o dom de ver para lá do

imediatamente perceptível3, possui um lado real, pois já na “Descrição da Cidade de

Lisboa” se faz referência a uma mulher de capacidades extraordinárias que “... possui

desde a mais tenra idade o dom de ver o interior do corpo humano bem como as

entranhas da terra.”4. Este dom apenas se concretiza quando está em jejum, excepto

“Nas mudanças de lua (em que) a sua visão é perturbada.”5.

Em suma, “Do exposto se deduz que a História é, neste universo saramaguiano,

submetida a um particular tratamento. Não se trata, com efeito, de reproduzir fielmente

os factos inabaláveis da História, mas pelo contrário, de aproveitar acontecimentos e

figuras reais que, mesclados com a imaginação (re)criadora do autor, viabilizam a

construção de uma História marginal à versão oficial.”6.

3 No capítulo VIII Blimunda desfaz o mistério que envolve a sua relação com Baltasar, já que este insiste

em saber qual o motivo que leva a companheira a não abrir os olhos ao acordar antes de comer uma

bocado de pão: “...vejo o que está dentro dos corpos, e às vezes o que está no interior da terra, vejo o que

está por baixo da pele, e às vezes mesmo por baixo das roupas, mas só vejo quando estou em jejum,

perco o dom quando muda o quarto da lua...”.SARAMAGO, José, Memorial do Convento, Lisboa, RBA

Editores, 1994, p. 74.

4 CHAVES, Castelo-Branco (trad., pref. e notas), O Portugal de D. João V visto por três forasteiros,

Lisboa, Biblioteca Nacional, 1989, p. 47.

5 Idem, Ibidem, p. 47.

6 ARNAUT,Ana Paula, Memorial do Convento. História, ficção e ideologia, Coimbra, Fora do texto,

1996, p. 58.

5

Page 6: Memorial do convento

II- VIDA PRIVADA DE D. JOÃO V

“Enfim, el-rei abriu os olhos, escapou, não foi desta, mas

fica com as pernas frouxas, as mãos trémulas, o rosto pálido,

nem parece aquele galante homem que derruba freiras com

um gesto, e quem diz freiras diz as que o não são, ainda o

ano passado teve uma francesa um filho da sua lavra, se

agora o vissem as amantes reclusas e libertas não

reconheceriam neste murcho e apagado homenzinho o real e

infatigável cobridor.”7

Filho de D. Pedro II e de Maria Sofia de Neubourg, D. João V nasceu a 22 de

Outubro de 1689.

Declarado herdeiro do trono em 1698, ano em que “...as cortes reuniram pela

última vez...”8, tomou posse da coroa com 17 anos. Era um jovem rei que, considerado

bonito pelos seus contemporâneos, não se privou em casado da “...vida de galã e de

estúrdia nocturna...”9.

O retrato físico que César de Saussure pintou deste monarca contrasta com o

intelectual, como podemos constatar pela apreciação que aquele faz do rei10 ao afirmar

que “...tem boa figura , rosto comprido e é moreno (...) Usa grande cabeleira negra,

7 SARAMAGO, José, op. cit., p. 108.

8 SARAIVA, José Hermano, História Concisa de Portugal, 20ª ed., Lisboa, Publicações Europa- América,

1999, p. 227.

9 DOMINGUES, Mário, D. João V, o homem e a sua época, Lisboa, Livraria Romano Torres, 1964,

p.161.

10 César de Saussure tece estes comentários em “Cartas escritas de Lisboa no ano de 1730”.

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Page 7: Memorial do convento

empoada, e veste habitualmente com grande magnificência. (...) O Rei é tido por pessoa

espirituosa e de engenho, mas é completamente destituído de cultura.(...)Ama

excessivamente a magnificência e a ostentação.”11. O rei é apresentado, de forma

idêntica na “Descrição da Cidade de Lisboa”: “Este príncipe é de estatura acima do

vulgar e de muito boa presença, rosto agradável ainda que moreno, majestoso,

trajando à francesa, recebendo todo o seu guarda- roupa, que é esplêndido, de

Paris.”12.

Nesta última frase ressaltam três palavras- “excessivamente”, “magnificência” e

“ostentação”. De facto, o nosso rei, adepto fervoroso de Luis XIV, o “Rei- Sol” que

ofuscava os restantes governantes da Europa com o seu esplendor, tudo fez para

“afrancesar” a sua corte13. Uma das medidas que tomou foi a de ter acabado com a

separação, pelo menos no seu palácio, entre os sexos e permitindo o contacto mais

próximo entre homens e mulheres14.

11 CHAVES, Castelo- Branco, op. cit.,p.267.

12 Idem, Ibidem, p. 50.

13 Sobre o gosto dos portugueses pelo vestuário francês e os efeitos desta preferência na economia

nacional, diz José Hermano Saraiva: “ O apreço pela moda estrangeira tinha- se entretanto difundido em

Portugal, o que aumentava a importação. Tudo quanto exigisse uma técnica mais evoluída tinha de se

importar, porque não se fabricava em Portugal. Os economistas da época viam nesse progressivo

desequilíbrio da balança comercial portuguesa uma causa (e não um efeito) da pobreza nacional: para

pagar a importação saía ouro, e isso deixava o País mais pobre.

Nos primeiros anos do século XVIII chegou- se a importar roupa velha (casacas, lençóis,

camisas, cabeleiras), com indignação da câmara de Lisboa, que dizia que era roupa que podia ter

pertencido a tísicos e leprosos e representava portanto um perigo para a saúde.” In SARAIVA, José

Hermano, op. cit., p. 233.

14 Cf. DANTAS, Júlio, O amor em Portugal no séc. XVIII, 3ª ed., Lisboa, Portugal- Brasil, Sociedade

Editora, 1915,pp 67 a 73.

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Page 8: Memorial do convento

Muito religioso, D. João V passava os seus dias nas igrejas e conventos da

cidade, mas cedo transpareceu para fora da corte a predilecção do rei em confraternizar

com madres, monjas e freiras, daí resultando filhos ilegítimos por todos os conventos de

Lisboa. Mas as preferências do monarca estendiam- se igualmente a elementos do povo

e da nobreza. Foram vários os filhos ilegítimos do “Magnânimo”: com a madre Teresa

da Silva teve D. José, Inquisidor- Mor; de D. Madalena Máxima da Silva Miranda

Henriques nasceria o arcebispo de Braga (D. Manuel de Baptismo, D. Gaspar do

Crisma); D. Luísa Inês Antónia Machado Monteiro deu-lhe D. António- a estes o povo

chamou “Meninos de Palhavã”, que William Beckford refere por várias vezes no seu

diário e apelida de “...suas Altezas Bastardas.” 15. D. Luísa Clara de Portugal, casada

com D. Jorge de Meneses , deu outra filha ao rei, D. Luísa.

O facto de serem filhos ilegítimos não os impedia de exercerem altos cargos na

corte, já que estes procedimentos imorais eram vistos com a maior naturalidade por

todos e até legitimados pelos séculos16.

No Memorial do Convento, sobre a leviandade das famílias reais diz- nos o autor

que “... a história das famílias reais está cheia destas acções.”17.

Relato curioso e divertido sobre as aventuras amorosas do monarca português é

o que Júlio Dantas faz no capítulo “As dobras de duas caras”18 onde, de um modo

mordaz e humorístico, ao falar dos amores do rei salienta que “...o dinheiro das

fêmeas...” não era igual ao restante que circulava pela cidade pois “Tinham, de ambos

15 BECKFORD, William, Diário de William Beckford em Portugal e Espanha, 3ª ed., Lisboa, Clássica

Editora, 1989, p. 43.

16 Charles Frédéric de Merveilleux nas suas « Memórias Instrutivas sobre Portugal », onde residiu de

1723 a 1726, a certa altura fala numa jovem, filha do Papa Inocêncio XIII, enclausurada num convento de

Lisboa. In CHAVES, Castelo- Branco, O Portugal de D: João V visto por três forasteiros, op. cit., p. 210.

17 SARAMAGO, José, op. cit., p. 186.

18 DANTAS, Júlio, op. cit., pp 77 a 83.

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Page 9: Memorial do convento

os lados, em ambos os cunhos, a efígie coroada, a efígie cesárea de D. João V. Eram

dobras de duas caras.”19.

Apesar de diferente e de representar as relações pecaminosas do soberano

ninguém o recusava. Das mãos do rei para as das amantes, do bolso destas para os dos

“...adelos e mercadores, ourives e algibesbes, genoveses e capelistas, bruxas e

pasteleiros, mestres de cravo e de solfa, de francês e de dança.”20, o dinheiro que o rei

cunhava especialmente para presentear as suas conquistas corria todas as bolsas da

cidade e eram o espelho perfeito da imoralidade e escândalo em que caíra, não só a

corte, mas a sociedade em geral21. A este propósito afirma Oliveira Marques:

“Como em tantas cortes do século XVIII, a depravação moral ocupou lugar

preponderante. O rei- e com ele muitos nobres- gerou diversos filhos em freiras de

diversos conventos, muitos dos quais se converteram em centros de prazer e numa

espécie de lupanares reservados à aristocracia.”22.

Na época a entrada para os conventos não se fazia , normalmente, por vocação,

mas por imposição. Nas famílias nobres os filhos primogénitos herdavam cargos e

fortunas, restando aos segundos enveredar pela vida religiosa. No entanto, a vida nos

mosteiros não significava o fim da liberdade a que vinham habituados, como, pelo

contrário, permitia uma verdadeira devassidão de costumes nada adequada a uma

existência supostamente celibatária23.

19 Idem, p. 80.

20 Idem, p. 82.

21 “...os costumes relaxaram- se até ao ponto que, não só a moralidade pública, mas também a familiar e

privada deixassem bastante a desejar.” In CRESPO, Ángel, Lisboa Mítica e Literária, Lisboa, Livros

Horizonte, 1987, p. 83.

22 MARQUES, Oliveira, História de Portugal, Do Renascimento às Revoluções Liberais, vol II, 13ª ed.,

Lisboa, Editorial Presença, 1990, p. 366.

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Page 10: Memorial do convento

No Memorial o narrador inicia o seu relato referindo-se à preocupação que os

reis_ D. João V e D. Maria Ana- sentiam pelo facto de, apesar de casados há quase três

anos, ainda não possuírem um herdeiro. Posta a hipótese de esterilidade, esta nunca

poderia ser do rei já que “...abundam no reino bastardos da real semente e ainda agora

a procissão vai na praça.”24.

Saramago, no mesmo tom acutilante que caracteriza todo o romance, ironiza

dizendo que “... tão moço ainda gosta de brinquedos,(...) por isso se diverte tanto com

as freiras nos mosteiros e as vai emprenhando, uma após outra, ou várias ao mesmo

tempo, que quando acabar a sua história se hão- de contar por dezenas os filhos assim

arranjados...”25. Algumas páginas adiante, e no seguimento de uma sumptuosa

procissão, D. João V surge- nos como representante de Cristo na Terra e, durante um

hipotético discurso mental afirma: “E eu, vosso rei, de Portugal, Algarves e resto, que

devotamente vai segurando uma destas sobredouradas varas, (...) ajoelhai lá, porque

vai passando a custódia e eu vou passando, Cristo vai dentro dela, dentro de mim a

graça de ser rei na terra (...) bem sabeis como as monjas são esposas do Senhor, é uma

verdae santa, pois a mim como senhor me recebem nas suas camas...”26.

Nestas passagens realça- se novamente a predilecção do rei por freiras, apesar de

ele não excluir nenhuma classe social. Beato fervoroso, D. João V perseguiu ferozmente

o freirático, o adorador de freiras, tipo no qual o próprio se incluía , dando razão ao

velho ditado popular “Olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”. Assim,

23 “No início de século XVIII acentua- se a degradação da vida conventual, por razões que mergulham na

quebra do ideal religioso ou numa visão diferente da mensagem cristã que fora duramente sujeita à

crítica filosófica.” In SERRÃO, Joaquim Veríssimo, História de Portugal, 2ª ed., Lisboa, Editorial Verbo,

1982, vol. V, p. 360.

24 SARAMAGO, José, op. cit., p. 2.

25 Idem, p. 87.

26 Idem, p. 152.

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Page 11: Memorial do convento

em decreto de 16 de Março de 1725, mostra- se profundamente descontente com o

convívio entre as reclusas e as pessoas de fora, aplicando pesadas penas a quem ousasse

desobedecer- lhe e obrigando o freirático a assinar um documento onde se comprometia

a nunca mais visitar nenhum convento, nem dirigir a palavra a uma freira.

Verdadeira enciclopédia social, política, económica e cultural do Portugal de

setecentos , O Memorial do Convento não esquece esta fase da vida lisboeta referindo-

se à revolta das reclusas quando vêem ser- lhe retirado tal prazer legitimado pelos

séculos: “Agora sairão as freiras de Santa Mónica em extrema indignação,

insubordinando- se contra as ordens de el- rei de que só pudessem falar nos conventos

a seus pais, irmãos e parentes até segundo grau...”27.

Como se viu, este “...pio monarca...”28 não primava pela fidelidade à esposa.

Apesar de não se esquecer das suas orações, também não dispensava as aventuras

amorosas que eram o seu pão- nosso de cada dia. Como representante supremo do reino,

D. João V personificava igualmente a imoralidade exposta sem reservas de uma

sociedade piedosamente hipócrita.

27 Idem, p. 89.

28 BECKFORD, William, op. cit., p. 44.

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Page 12: Memorial do convento

III-CONVENTO DE MAFRA: MAJESTADE E DECADÊNCIA

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Page 13: Memorial do convento

“Corriam as mulheres, choravam, e as crianças

acresciam o alarido, era como se andassem os corregedores

a prender para a tropa ou para a Índia.(...)os homens, atados

como reses, folgados apenas quanto bastasse para não se

atropelarem, viam as mulheres subornar os quadrilheiros

com alguns ovos, uma galinha, míseros expedientes que de

nada serviam, pois a moeda com que el- rei de Portugal

cobra os seus tributos é o ouro, é a esmeralda, é o diamante,

é a pimenta e a canela, é o marfim e o tabaco, é o açúcar e a

sucupira, lágrimas não correm na alfândega.”29

Segundo o Dicionário de Língua Portuguesa “memorial” é “um livrinho de

lembranças; memória particular que serve para esclarecer uma questão; escrito que

relata factos memoráveis...”. Assim, a obra em estudo concorda em tudo com a

definição dada, já que nela se relatam feitos magníficos da nossa História, sendo o

motivo central a edificação do Convento de Mafra.

A obra inicia- se com a contextualização espaço- temporal, no Palácio de D.

João V , em que o rei se mostra deveras preocupado com o facto de, apesar de estar

casado há quase dois anos, ainda não possuir um herdeiro do seu esplendoroso

posto. Contudo, surge na trama um frade leigo da Província da Arrábida, frei

António de S. José30, a prometer ao rei descendentes se ele mandar erigir um

29 Idem, p. 287/8.

30 “Perguntou el- rei, É verdade o que acaba de dizer- me sua eminência, que se eu prometer levantar um

convento em Mafra terei filhos, e o frade respondeu, verdade é, senhor, porém só se o convento for

franciscano...”, Idem, p. 10.

13

Page 14: Memorial do convento

convento em Mafra. Ninguém sabe se foi obra divina ou mera casualidade, mas o

certo é que a rainha engravidou, deixando o soberano ainda mais convencido da sua

comunhão com Deus.

Logo em 1711 ordenou que se iniciassem os planos, devendo a obra ser de

extrema grandeza e magnificência. Para se elevar o dito palácio, os caminhos

percorridos foram sinuosos e escorregadios. “...muitos viram as suas terras

expropriadas para a abertura de caminhos e não tiveram a indemnização devida.

Por tudo isso correu um escrito a criticar o monarca pelos gastos excessivos de

Mafra, que se traduziam em vexação dos povos.”31.

Como o país não dispunha de técnica nem de pessoal habilitado, foi preciso

recorrer à importação maciça de artistas estrangeiros e de obras de arte inteiramente

produzidas fora de Portugal: o plano seguido foi o de Ludwig, arquitecto alemão; a

maior parte das estátuas foram trazidas de Itália; “...paramentos, alfaias de culto,

tocheiros, carrilhões, foram encomendados em Roma, Veneza, Milão, na França, na

Holanda, em Génova e em Liège. Mesmo a madeira de pinho para andaimes e

barracos dos trabalhadores veio do Norte da Europa.”32.

Apenas a pedra era nacional e os mármores de Pêro Pinheiro ficaram famosos

desde então. O transporte da pedra destinada à varanda que ficaria sobre o pórtico

da entrada relata- se ao longo do capítulo XIX33. Este revela- se dos mais longos da

obra, como longa e penosa foi a tarefa de carregar o referido colosso.

Segundo reza a História, partiram para Pêro Pinheiro, com o objectivo de

transportar a pedra, quatrocentos bois, muitos dos quais morreram exaustos, para

31 SERRÃO, Joaquim Veríssimo, História de Portugal (1640- 1750), vol V, 2ª ed., Lisboa, Editorial

Verbo, 1982, p. 262.

32 SARAIVA, José Hermano, op. cit.,p. 242.

33 SARAMAGO, José, op. cit., pp 234 a 259.

14

Page 15: Memorial do convento

puxarem o carro e ainda vinte carros “...que levam os petrechos para a condução,

convém saber, cordas e calabres, cunhas, alavancas, rodas sobresselentes feitas

pela medida das outras, eixos para o caso de se partirem alguns dos primitivos,

escoras de vário tamanho, martelos, torqueses, chapas de ferro, gadanhas para

quando for preciso cortar o feno dos animais...”34.

Mas a construção do convento mostrava- se demorada (só a abertura dos

alicerces levou quatro anos) e nem mesmo os 600 homens que aí trabalhavam

conseguiam adiantar a construção. Como tal, o rei decidiu fazer uma sumptuosa

celebração para se lançar a primeira pedra. O dia escolhido foi o dia 19 de Outubro

de 1717, mas a cerimónia foi adiada para o dia 17 de Novembro35 visto escassear o

tempo para revestir a festa de toda a solenidade pretendida pelo monarca36.Este

mandou erguer no local uma igreja em madeira ricamente ornada para que a

cerimónia se celebrasse com a grandiosidade devida e que seria posteriormente

destruída.

Só para esta celebração gastaram- se níveis ridiculamente estrondosos de

dinheiro. Parecia mesmo que a obra já estava concluída. “Mas em Lisboa, dirá o

guarda- livros a el- rei, saiba vossa real majestade que na inauguração do

convento se gastaram, números redondos, duzentos mil cruzados, e el- rei

respondeu, Põe na conta, disse-o porque ainda estamos no princípio da obra, um

dia virá em que quereremos saber, Afinal, quanto terá custado aquilo, e ninguém

34 Idem, p. 236.

35 “ ...dezassete de Novembro deste ano da graça de mil setecentos e dezassete, aí se multiplicaram as

pompas e as cerimónias no terreiro, logo às sete da manhã...”, Idem, p. 130.

36 Dados recolhidos em DOMINGUES, Mário, op. cit., pp 109 a 115 no capítulo “Dispendiosas festas só

para benzer a primeira pedra do convento de Mafra”.

15

Page 16: Memorial do convento

dará satisfação dos dinheiros gastos, nem facturas, nem recibos, nem boletins de

registo de importação, sem falar de motes e sacrifícios, que esses são baratos.”37.

Não satisfeito com a benção da primeira pedra, o soberano ordenou que se

estudasse o calendário de forma a saber quando o seu aniversário seria num

domingo, descobrindo- se que tal aconteceria em 1730, no seu quadragésimo

primeiro aniversário. Novamente se despenderam quantias absurdas durante a

sagração da obra, ainda inacabada38.

Além do grave prejuízo económico para o país, desta construção resultaram

muitos mortos, por queda de andaime ou esmagamento sob pedras gigantescas, e

graves deficiências físicas.

Como a necessidade de mão- de- obra não se satisfazia com os homens das

redondezas, D. João V ordenou que buscassem todos aqueles com força suficiente

para trabalhar. Como muitos não queriam participar em tal tarefa, era vê- los

amarrados, como escravos, e trazidos à força, de todo o reino, para Mafra.

A este êxodo de trabalhadores forçados assiste a família real, no Memorial,

quando se procede a viagem à fronteira espanhola39 com o objectivo de se efectuar

a troca das princesas, futuras rainhas de ambos os países da Península Ibérica. Em

oposição a toda a magnificência que rodeou o dito cortejo, composto por uma

comitiva de mais de 2000 participantes distribuídos por 229 carruagens, dezenas de

homens amarrados caminhavam com os rostos sofridos porque um rei caprichosos

37 SARAMAGO, José, op. cit., p. 132/3.

38 Idem, pp. 344 a 346.

39 “ O casamento tem lugar na fronteira do Caia, entre Elvas e Badajoz.”, In MONIZ, António, Para uma

leitura do Memorial do Convento de José Saramago. Uma proposta de leitura crítico- didáctica, Lisboa,

Editorial Presença, 1995, p. 41.

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Page 17: Memorial do convento

queria impressionar o mundo. Este contraste entre os forçados e a comitiva surge

bem exemplificado no seguinte excerto retirado do capítulo XXII:

“Ai as culpas de Maria Bárbara, o mal que já fez, só porque nasceu, nem é

preciso ir muito longe, bastam aqueles quinze homens que além vão, enquanto

passam as seges com os frades, as berlindas com os fidalgos, as galeras com os

guarda- roupas, as estufas com as damas, e destas as arcas com as jóias, e todo o

mais recheio...”40.

De facto, a construção do Convento de Mafra, elevado inicialmente para 80

frades, número depois aumentado para 300, é o símbolo perfeito do que foi a

política egocêntrica de D. João V, um rei deslumbrado e deslumbrante, que nunca

prescindia, em qualquer situação, de toda a pompa e luminosidade.

E como era visto o Convento pelos estrangeiros? Relatos interessantes sob

perspectivas diferentes chegam até nós.

Beckford compara- o a um gigante que devorou tudo em redor e deixou Mafra

absolutamente desolada41. O que mais o deslumbrou naquela obra foi a Biblioteca,

com cerca de 60 000 volumes, e os mármores brancos que revestiam o pavimento.

No entanto, não é muito simpático nos seus comentários acerca do estilo do

edifício42.

Charles de Merveilleux conta uma história acerca da edificação da Basílica que

nada tem a ver com o verdadeiro motivo. Diz ele que, estando à beira da morte, D.

João V prometeu fundar um convento para ajudar a comunidade mais pobre da

Europa. Depois de muito averiguar descobriu que o convento mais necessitado do

40 Idem, p. 308.

41 BECKFORD, William, op. cit., p. 88.

42 Idem, p.115.

17

Page 18: Memorial do convento

seu reino era o de Mafra. Assim, decidiu melhorar as condições daquele para

albergar os mais miseráveis43.

Também César de Saussure ficou impressionado com o edifício, ainda em

construção: “Presentemente (D. João V) está construindo numa alta e árida

montanha chamada Mafra um palácio, uma igreja e um convento que ficarão

soberbos e custarão quantias fabulosas.”44.

Carl Ruders visitou o monumento em 6 de Outubro de 1801 e, pelo caminho,

assiste “...a gente privada quase por completo das mais vulgares comodidades.”45.

Assim, no Memorial do Convento assistimos à elevação de um edifício

magnífico que, tal como a Inquisição, condenou homens à miséria e à morte das

quais nem Deus, em nome de quem trabalharam, os salvou.

IV-FAUSTO DA CORTE VERSUS MISÉRIA DO POVO

43 CHAVES, Castelo –Branco, O Portugal de D. João V visto por três forasteiros, Lisboa, Biblioteca

Nacional, 1989, p.187.

44 Idem, Ibidem, p. 267.

45 RUDERS, Carl Israel, Viagem em Portugal (1798- 1802), Lisboa, Biblioteca Nacional, 1981, p. 217.

18

Page 19: Memorial do convento

“Mas esta cidade, mais que todas , é uma boca que mastiga

de sobejo para um lado e de escasso para outro, não

havendo portanto mediano termo entre a papada pletórica e

o pescoço engelhado, entre o nariz rubicundo e o outro

héctico, entre a nádega dançarina e a escorrida, entre a

pança repleta e a barriga agarrada às costas.”46

A época em que D. João V reinou (1706/ 1750) coincidiu, aproximadamente,

com o período de maior fluxo, primeiro de ouro, depois de diamantes, vindos do Brasil.

Segundo José Hermano Saraiva, “Foi em 1699 que chegou a Lisboa o primeiro

carregamento de ouro: 500 Kg. A quantidade foi subindo nos anos seguintes e em 1720

atingiu- se a marca mais alta: 25 000 Kg. (...) A partir de 1730 descobriram- se e foram

exploradas minas de diamantes, que até ao fim do século produziram mais de dois

milhões de quilates.”.47

A ostentação e riqueza da corte portuguesa e do seu rei foram um verdadeiro

atractivo para viajantes que esperavam, em Portugal, instalar- se, manter relações

comerciais e, quem sabe, até casar e constituir família. Foi o caso de Giuseppe Gorani,

um italiano que esteve em Portugal durante cerca de dois anos, quando o governo de

Pombal estava no auge do seu despotismo: “Foi em 25 de Outubro de 1765 que cheguei

a Castro Marim, em Portugal, na intenção de ir fixar residência em Lisboa.(...) estava

ainda fresca a minha admiração por um país que, apesar da sua pouca gente, havia

realizado as coisas mais espantosas e dilatado o seu domínio por todas as partes de

Mundo graças ao seu engenho, virtudes, valor e a uma plêiade de heróis que

46 SARAMAGO, José, op. cit., p. 23.

47 SARAIVA, José Hermano, op. cit., p. 238.

19

Page 20: Memorial do convento

sucessivamente o serviram.”48. Note- se a admiração que Gorani sentia pelas obras,

descobrimentos e conquistas empreedidas pelos portugueses, apesar de o tempo de

maior glória já pertencer ao passado.

Logo, não será de admirar o facto de Lisboa ter sido, no século XVIII, uma das

cidades mais populosas da Europa, sendo ultrapassada apenas por Londres, Paris e

Nápoles49.Para este crescimento demográfico contribuiu a grande expansão do comércio

com países dos quatro cantos do mundo.

No Memorial do Convento esta profusão de trocas comerciais surge explicitada

no início do capítulo XVIII durante uma conversa entre o rei e o seu guarda-livros em

que o leitor quase perde o fôlego, tão longa é a lista de produtos e lucros apresentada,

lista essa que passamos a transcrever:

“...D. João, quinto já se sabe de seu nome na tabela dos reis, sentado numa

cadeira de braços de pau-santo, para mais comodamente estar e assim com outro

sossego atender ao guarda-livros que vai escriturando no rol os bens e as riquezas, de

Macau as sedas, os estofos, as porcelanas, os lacados, o chá, a pimenta, o cobre, o

âmbar cinzento, o ouro, de Goa os diamantes brutos, os rubis, as pérolas, a canela,

mais pimenta, os panos de algodão, o salitre, de Diu os tapetes, os móveis tauxiados, as

colchas bordadas, de Melinde o marfim, de Moçambique os negros, o ouro, de Angola

outros negros, mas estes menos bons, o marfim, que esse sim, é o melhor do lado

ocidental da África, de São Tomé a madeira, a farinha de mandioca, as bananas, os

48 GORANI, Giuseppe, Portugal (A corte e o país nos anos de 1765 a 1767), Lisboa, Lisóptima Edições,

1989, p.36.

49 “Nesse tempo, as dez maiores cidades europeias eram Londres, com uma população que oscilava entre

900 000 e um milhão de habitantes; Paris (550 000- 600 000), Nápoles (400 000), Lisboa (350 000),

Constantinopla (mais de 300 000), Moscovo (300 000), São Petersburgo (270 000), Viena (230 000),

Amsterdão (220 000) e Berlim (170 000); a estas seguiam-se Roma, Dublin e Madrid.” RUDÉ, Georges,

A Europa no século XVIII, 1ª ed., Lisboa, Gradiva, 1988, p.87.

20

Page 21: Memorial do convento

inhames, as galinhas, os carneiros, os cabritos, o indigo, o açúcar, de Cabo Verde

alguns negros, a cera, o marfim, os couros, ficando explicitado que nem todo o marfim

é de elefante, dos Açores e Madeira os panos, o trigo, os licores, os vinhos secos, as

aguardentes, as cascas de limão cristalizadas, os frutos, e dos lugares que hão-de vir a

ser Brasil o açúcar, o tabaco, o copal, o indigo, a madeira, os couros, o algodão, o

cacau, os diamantes, as esmeraldas, a prata, o ouro, que só deste vem ao reino, ano por

ano, o valor de doze a quinze milhões de cruzados, em pó e amoedado, fora o resto, e

fora também o que vai ao fundo ou levam os piratas, claro está que este todo não é o

rendimento da coroa, rica sim, mas não tanto, porém, tudo somado, de dentro e de fora,

entram nas burras de el-rei para cima de dezasseis milhões de cruzados, só o direito de

passagem dos rios por onde se vai às Minas Gerais rende trinta mil cruzados...”50.

Onde o monarca gastou mais dinheiro foi em obras de cariz religioso51. No

capítulo atrás citado, deparamo-nos com a preocupação do rei em distribuir

sensatamente a riqueza acumulada pela coroa portuguesa. Assim, não esquecendo a

salvação da sua alma, decide “Vá pois ao frade e à freira o necessário, vá também o

supérfluo, porque o frade me põe em primeiro lugar nas suas orações, porque a freira

me aconchega a dobra do lençol...”52.

50 SARAMAGO, José, op. cit., p. 222/3.

51 CRESPO, Ángel, Lisboa Mítica e Literária, Lisboa, Livros Horizonte, 1987,p. 84: “Entre as

restaurações e melhoramentos de igrejas ordenadas por ele, figuram as obras efectuadas na de D.

Domingos e a instalação na de S. Roque da capela de S. João- Baptista, trazida de Itália.” . Sobre os

gastos de D. João V comenta Mário Domingues: “Nem têm conta as despesas enormes que D. João V

fazia com objectos de devoção, o que ele pagava para dotes de freiras, para missas pelas almas do

Purgatório, para reedificação, construções, consertos e paramentos de igrejas, tanto no reino como no

estrangeiro.” In D. João V, o homem e a sua época, op. cit., p.305.

52 SARAMAGO, José, op. cit., p. 223.

21

Page 22: Memorial do convento

Não será, pois, de estranhar toda a magnificência que revestia o Patriarca

quando este saía dos seus aposentos. Relatos de vários estrangeiros que estiveram em

Portugal no século XVIII provam a ostentação excessiva daqueles que exerciam altos

cargos na igreja e que contrastava escandalosamente com a miséria em que o povo

miúdo vivia e com a lição de humildade divulgada por Cristo (em nome de quem tantas

atrocidades se cometiam). Charles Frédéric de Merveilleux53 chega a indignar- e com a

opulência do Patriarca de Lisboa que “...ultrapassa a do Papa nos dias de maior

solenidade”54.Para este francês “Os paramentos preciosos e a prata destinados ao

serviço da igreja patriarcal absorveram as riquezas de muitas frotas do Brasil.”55.

Sobre o Patriarca realçamos os comentários tecidos no capítulo XII do Memorial

onde surge enfeitado“...com preciosos paramentos e mitra do maior custo, adornada de

pedras56 do Brasil...”57. Esta riqueza manifestava- se igualmente à mesa “... do

inquisidor-mor, soberbíssima de tigelas de caldo de galinha, de perdigões, de peitos de

vitela, de pastelões, de pastéis de carneiro com açúcar e canela, de cozido à castelhana

com tudo quanto lhe compete...”58, enquanto nas ruas sobejavam miseráveis pedintes.

Costigan realça que o clero e a nobreza portugueses “...fazem gemer o povo.”59

53 Num texto intitulado “Memórias instrutivas sobre Portugal- 1723-1726”.

54 CHAVES, Castelo- Branco (trad., pref. e notas), O Portugal de D. João V visto por três forasteiros,

Lisboa, Biblioteca Nacional, 1989,p. 222.

55 Idem, Ibidem, p.222.

56 Os sublinhados são nossos.

57 SARAMAGO, José, op. cit., p. 130.

58 Idem, p. 47.

59 COSTIGAN, Arthur William, Cartas sobre a Sociedade e os Costumes de Portugal (1778- 1779), Trad.,

pref. e notas de Augusto Reis Machado, volumes I e II, Lisboa, Lisóptima Edições, 1989,volume I, p.194.

22

Page 23: Memorial do convento

ironizando com o nome dado a uma igreja do Porto- A Igreja do Clero Pobre 60- já que o

clero pode ser tudo em Portugal, menos pobre,

Vimos, pois, que Portugal era um país privilegiado no que concerne à riqueza

dos cofres do Estado61. No Memorial do Convento de José Saramago, D. João V afirma

mesmo que “...somos a nação mais rica da Europa, não devemos nada a ninguém e

pagamos a todos...”62.

Por oposição a toda a ostentação dos monarcas, seus familiares, corte e clero,

Lisboa formigava de pedintes de todas as idades e de ambos os sexos. Em Lisboa

Setecentista vista por estrangeiros, as autoras realçam a total ausência de asilos para

pobres, apesar da opulência da capital. No entanto, tal não significava que os pedintes

lisboetas passassem privações alimentares, pois a caridade, nem sempre generosa, era a

suficiente para os pobres sobreviverem sem grandes dificuldades63. Assim, a

mendicidade tornou- se legítima com o passar dos séculos e perfeitamente aceite pela

sociedade. Hans Christian Andersen, que no século XIX esteve no nosso país, ao ver a

quantidade de mendigos que existiam na cidade de Lisboa não se surpreendeu e

relembrou mesmo que o nosso grande poeta, Camões, tinha um escravo que pedia para

o seu amo, dado o estado de absoluta miséria em que aquele se encontrava64.

60 Idem, p. 200.

61 “Construindo palácios para aí alojar a sua corte, os seus ministros e as suas amantes, largas avenidas

para aí fazer desfilar os seus coches e os seus vistosos guardas, teatros para neles se divertir e se dar a

ver, igrejas para nelas se encomendar a Deus ou mais perfeitamente sacralizar a sua função, o monarca

dos séculos XVII e XVIII comporta- se como uma pessoa de desejos e de meios ilimitados.” In,

BEBIANO, Rui, D. João V, poder e espectáculo, Aveiro, Livraria Estante, 1987,p. 100.

62 SARAMAGO, José, op. cit., p.280.

63 SANTOS , Piedade Braga et alii , Lisboa Setecentista vista por estrangeiros, Lisboa, Livros Horizonte,

1987, p. 49.

23

Page 24: Memorial do convento

Um estrangeiro que passou pela capital e que se mostrou bastante crítico quanto

à quantidade de pobres que deambulavam por Lisboa foi o já referido Ruders que não

compreende o facto de um país que recebe inúmeras riquezas do Brasil poder ostentar

tamanha miséria. Este viajante faz- nos um relato bastante completo sobre o

funcionamento da caridade na Lisboa de finais do século XVIII. Diz- nos ele que “Toda

essa profusão de ouro e riquezas forma um contraste muito saliente com a miséria que

em muitos outros pontos da cidade não é raro fazer- se notar.(...) As ruas são

formigueiros de mendigos, e muitos deles estropiados, arrastando- se sem pernas.

Alguns deles são cegos, mas andam sós, munidos de uma grande bengala com que vão

tacteando o terreno. (...) Os estrangeiros dizem que os portugueses são duros para os

pobres (...) mas isto não é exacto; a grande multidão de pobres que, sem trabalho de

espécie alguma, vive exclusivamente da mendicidade basta para mostrar o contrário.

Existem aqui casas muito ricas, que, em certos dias de semana, à semelhança do

que se faz nos conventos, distribuem comida quente a numerosos pobres. E esse

espectáculo de cinquenta ou cem esfarrapados, mulheres e crianças na frente de uma

casa, devorando com sofreguidão uma tigela de caldo ou um prato de toucinho, é na

verdade comovedor.

De tarde, apenas escurece, certas pessoas percorrem a cidade cantando Avé-

Marias e recolhendo por caridade esmolas para os chamados “pobres honteux”65.

Como vemos, o erário público não destinava parte do seu orçamento a casas

destinadas à caridade, cabendo essa tarefa aos conventos, mosteiros e às casas mais

ricas.

64 ANDERSEN, Hans Christian, Uma visita em Portugal em 1866, 2ª ed., Lisboa, Instituto de Cultura e

Língua Portuguesa, 1984.

65 RUDERS, Carl Israel, op. cit., p.105.

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Page 25: Memorial do convento

A mendicidade é igualmente explorada com um elevado teor crítico na obra em

estudo neste trabalho, não fosse ela o espelho perfeito dos maus vícios e costumes da

época. O herói da obra, Baltasar Sete- Sóis, uma personagem fictícia que bem podia

representar toda uma classe de homens amargurados com os sonhos não alcançados,

surge na trama, inicialmente, como um ex-soldado que perdeu a mão esquerda na guerra

e, posteriormente, como consequência desta deficiência física, como pedinte. “Por ser

pouco o que pudera guardar do soldo, pedia esmola em Évora para juntar as moedas

que teria de pagar ao ferreiro e ao seleiro se queria ter o gancho de ferro que lhe havia

de fazer as vezes da mão.”66.

No entanto, quando já possuía o dito gancho usava-o para incentivar a

generosidade renitente dos transeuntes que contribuíam, com pouco agrado, para o seu

sustento67.

A caridade tornou- se, assim, um verdadeiro culto, fomentada pelos próprios

governantes. Esta realidade surge no capítulo XXII quando o cortejo real se dirige a

Elvas para se efectuar a “troca” das princesas, futuras rainhas de Portugal e Espanha. “À

estrada saía o povo miúdo daquelas terras e de joelhos implorava a piedade real,

parece que adivinhavam os míseros, porque a seus pés levava D. João V um baú cheio

de moedas de cobre, que ia lançando, às mãos cheias...”68.

Também Beckford faz uma antipática referência ao estímulo à mendicância pela

rainha, D. Maria I, quando esta estava de visita a Sintra. “Cardumes de mendigos

vinham ali desaguar de todos os quarteirões da cidade, na esperança de arranjarem

lugar junto dos portões do palácio para verem sair a Rainha. Sua majestade é uma

66 SARAMAGO, José, op. cit., p. 32.

67 Idem, p. 33.

68 Idem, p. 310.

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Page 26: Memorial do convento

grande mãe indulgente para estes rudes filhos da ociosidade e raramente sobe para a

sua carruagem sem antes ter distribuído consideráveis esmolas.”69.

Este inglês associa sempre a mendicidade à ociosidade o que, até certo ponto,

seria verdade. No entanto existiam verdadeiros seres decadentes que sobreviviam à

fome graças à caridade de gente mais rica, não conhecendo o significado de palavras

como abrigo, conforto ou higiene.

Os próprios presos, no século XVIII, não recebiam qualquer tipo de alimento,

tendo de pedir esmola para sobreviver. Há a realçar o relato de Charles Dellon, um

francês condenado pela Inquisição de Goa por heresia, que permaneceu na prisão em

Lisboa durante algum tempo, em 1677, antes de ser libertado e considerado inocente das

suas acusações. Este ex- “forçado” afirma que “Além da alimentação que lhes é dada

pelo príncipe, os forçados recebem frequentes esmolas, pelo que não passam fome.”70

No entanto, com o passar do tempo, a situação dos prisioneiros foi- se agravando.

Ruders, um século após a passagem de Dellon pelo nosso país, é, talvez, o autor que nos

dá um retrato mais pormenorizado sobre a Lisboa de finais de setecentos. Ao longo das

suas cartas mostra- se verdadeiramente indignado com a situação precária em que os

presos vivem. Para este, “...o pior de tudo é que aos presos se não fornece alimento de

espécie alguma se eles não têm dinheiro para o comprar.”71.

Estes recorriam, por isso, ao peditório aos transeuntes que, por sua vez, se não

contribuíssem, arriscavam- se a ser oralmente muito maltratados.

Urge fazer a distinção entre aqueles que pedem por necessidade e os que

mendigam por preguiça. Como esta é considerada a mãe de todos os vícios, não é difícil

69 BECKFORD, William, Diário de William Beckford em Portugal e Espanha....175/6

70 CHAVES, Castelo- Branco (apres., trad. e notas), Portugal nos séculos XVII e XVIII , Quatro

Testemunhos, Lisboa, Lisóptima Edições, 1989, p. 40.

71 RUDERS, Carl Israel, op. cit., p.107.

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Page 27: Memorial do convento

ver- se nesta Lisboa de outrora, “...pessoas bem vestidas, cavaleiros e frades, tanto

brancos como pretos, pedindo esmola.”72 .

Uma classe que, não sendo de mendigos, pois encontrava- se ao serviço da

coroa, mas vivia miseravelmente, era a dos soldados, na qual se inserira o já citado

Baltasar. “A tropa andava descalça e rota, roubava os lavradores, recusava- se a ir à

batalha...”73.Neste relato temos a miséria tristemente associada a crimes como roubos,

violações e mesmo homicídios, pois o país era abundante em Baltasares resultantes de

uma má governação em que o monarca apenas tinha em conta o luxo, a ostentação e a

vaidade.

Tal como os mendigos, igualmente abundante era o grupo dos bandidos que, a

cada esquina, fazia perigar a vida de cidadãos já suficientemente maltratados, numa

sociedade em que o crime raramente era punido.

Em suma, e tal como afirma Beckford, “...não há povo que mais estime o

aparato;”74 e esta insensatez do governante contribuiu para a propagação da miséria e

da imundice pelas ruas de Lisboa. Num país de exageros ridículos, o povo inocente

sofre as consequências da má gestão dos dinheiros públicos.

72 Idem, p. 106.

73 SARAMAGO, José, op. cit., p. 32.

74 BECKFORD, William, op. cit., p. 163.

27

Page 28: Memorial do convento

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Page 29: Memorial do convento

V- A FESTA DOS AUTOS- DE- FÉ

“Porém, hoje é dia de alegria geral, porventura a palavra

será imprópria, porque o gosto vem de mais fundo, talvez da

alma, olhar esta cidade saindo de suas casas, despejando- se

pelas ruas e praças, descendo dos altos, juntando- se no

Rossio para ver justiçar a judeus e cristãos- novos, a hereges

e feiticeiros, fora aqueles casos de menos correntemente

qualificáveis, como os de sodomia, molinismo, reptizar

mulheres e solicitá-las, e outras miuçalhas passíveis de

degredo ou fogueira.”75

O dia 23 de Maio de 1536 ficou fatalmente marcado, na História de Portugal,

pela concessão de uma bula pontifícia em que Paulo III reconhecia a independência da

Inquisição portuguesa em relação à espanhola, iniciando- se assim quase três séculos de

horrores76.

Em 1522, mal subiu ao trono, D. João III pediu ao papa Adriano VI a concessão

da Inquisição a Portugal, tentando obter o “privilégio” que Espanha detinha há 44

anos77. No entanto, sendo já papa Clemente VII, a primeira bula foi recebida apenas a

21 de Dezembro de 1531, tendo sido seguida de uma outra dois anos mais tarde. Mas

75 Idem, p. 46.

76 A extinção da Inquisição estabelece- se em 31 de Março de 1821.

77 Cf. MENDONÇA, José e MOREIRA, António, História dos Principais Actos e procedimentos da

Inquisição em Portugal, Lisboa, INCM, 1980, pp 115 a 129.

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Page 30: Memorial do convento

apenas em 1536 se concederam a Portugal os direitos a instituir tão ignóbil e repugnante

instituição que inúmeras vítimas viria a amedrontar, torturar, roubar e assassinar.

“No princípio procedia a Inquisição, no crime da heresia e apostasia, como no

de homicídio e furto, publicando os nomes das testemunhas aos réus, sem haver

confiscação de bens e conservando os presos em cárceres públicos. (...)Como, porém,

esta não era a melhor forma para se executarem livremente os preceitos inquisitoriais,

recorreu- se ao papa para haver confiscação de bens e ser o processo dos réus todo em

segredo, e tanto em segredo se fazia que grande parte deles ignorava o porque eram

presos e mesmo porque iam morrer.”78.

A tarefa de espiar e prender os suspeitos de heresia estava entregue aos

Familiares do Santo Ofício, cargo desprezível a que muitos aspiravam, desde Condes a

Duques. O próprio Marquês do Pombal desempenhou, antes de pertencer ao governo de

D. José, tal honroso posto. Muitos nobres, orgulhosos da sua condição de esbirros,

espiões malévolos que vigiavam tudo e todos79, chegavam a referir tal função na sua

árvore genealógica, tamanha era a falta de sensatez do português de então.

Contrariamente a todo o mistério que envolvia o processo de investigação, o

julgamento e a condenação dos réus, opunha- se a execução daqueles que era feita

durante um auto- de- fé, manifestação pública que pretendia dar a conhecer a toda a

sociedade os acusados de heresia.

Como se processava um auto- de- fé? A esta questão reponde Monsenhor Isaías

Rosa Pereira num artigo intitulado “Para a História da inquisição em Portugal: o que era 78 Idem, p. 121/2.

79 Gorani, já referido neste trabalho, apesar de ser próximo do Marquês do Pombal foi preso pela

Inquisição por ter sido visto a conversar com um suspeito. Cf. GORANI, Giuseppe, op. cit., pp 201 a 206:

“...por então, em Portugal, já o irmão se não fiava no irmão, que o podia denunciar e fazer prender; o

filho denunciava o pai e o pai delatava o filho; o que recebera benefícios traía o benfeitor e o criado

denunciava o patrão.”.

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Page 31: Memorial do convento

um auto- de- fé”: “Auto- de- fé era uma cerimónia que tinha por fim manifestar ao

público a autenticidade da fé católica e de apresentar e exemplo de pessoas que tinham

errado na fé mas que se tinham convertido e eram, por isso, publicamente reconciliadas

e reintegradas na perfeita comunhão eclesial.”80.

Na sociedade lisboeta de setecentos, época que nos propomos estudar, os autos-

de- fé eram verdadeiros entretenimentos em que os pobres penitentes desfilavam diante

de uma assembleia que vibrava com a celebração da cerimónia. “No verso e reverso da

medalha, o auto- de- fé é festa para o povo e angústia para os condenados e suas

famílias.”81.Enormes tribunas, os cadafalsos, com capacidade para três mil pessoas eram

erguidas no Rossio. Entre gritos e insultos, cada condenado que se havia declarado

arrependido era acompanhado por dois frades que rezavam por ele. Quanto aos

condenados à fogueira, os relaxados, levavam consigo um irmão de caridade que

procurava chamá- lo à razão. Se se declarassem arrependidos dos seus “crimes”, cujo

teor muitas vezes desconheciam, eram poupados ao lume, mas eram presos ou

degredados. Em ambos os casos era inevitável a confiscação dos seus bens que

revertiam a favor da coroa82. Charles de Merveilleux, no seguimento de um auto- de- fé

comenta que “ O que se apura líquido entre dois autos- de- fé entra realmente nos

cofres do rei, a menos que Sua Majestade entenda que deva premiar com qualquer dos

bens confiscados algum velho oficial que o tenha servido bem, um favorito, um ministro

ou pessoa de qualidade desamparada da fortuna.”83.

80 PEREIRA, Isaías Rosa, “Para a História da Inquisição em Portugal: o que era um auto- de- fé”, Os

Portugueses e o Mundo, Conferência Internacional (Volume II, História, Filosofia e Direito), Porto,

Fundação Eng. António de Almeida, 1985 pp. 173 a 180.

81 MONIZ, António, op. cit., p. 47.

82 “... a actividade inquisitorial proporcionou aos monarcas portugueses lucros fabulosos.”, In

GRIGULÉVITCH, p. 314.

83 O Portugal de D. João V visto por três forasteiros, op. cit. p. 181.

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Page 32: Memorial do convento

Assim, a desgraça de uns era a sorte de outros que lucravam com a condenação

de gente que, quanto mais rica era, mais afortunados (em ambos os sentidos da palavra)

os fazia84.

Ora, durante a cerimónia os relaxados vestiam o hábito penitencial, o sambenito,

onde figurava o seu retrato entre umas insígnias de fogo viradas para cima. Se

eventualmente o condenado à fogueira fosse considerado menos culpado e a sua pena

fosse alterada, as chamas eram voltadas para baixo. Aos que o solicitavam, era

concedida uma benevolência: eram garrotados, estrangulados, antes de serem ateadas as

chamas. Nem os desgraçados que já haviam perecido se livravam de tal ritual, como

conta François de Tours, frade capucinho que assistiu a um auto- de- fé que se realizou

em Coimbra: “Na manhã de 14 de Junho de 1699, pelas 6 horas, vimos sair da

Inquisição a cruz dos reverendos padres dominicanos e logo após 86 prisioneiros e a

estátua de um outro que morrera na prisão impenitente ,acompanhada de uma caixa

onde estavam pintadas as chamas do inferno.(...) Os irmãos da misericórdia em número

de mais de 40, tinham na mão uma grande tocha de cera branca acesa e assim (...)

metiam- nos um em cada uma delas (barracas) de madeira que eu já tinha ido ver de

dia, metiam- nos um em cada uma delas, ficando sentados num pequeno banco. O cofre

onde estavam os ossos daquele homem que morreu impenitente na prisão, foi colocado

numa dessas barracas para também ser queimado.”85.

84 “Pelo facto de a Inquisição obter os seus proventos quase exclusivamente das confiscações, tinha o

cuidado de seleccionar as vítimas sobretudo nas classes médias de mercadores, artífices e membros das

profissões liberais pelas quais muitos dos judeus conversos e seus descendentes haviam sido absolvidos.”

In CAMELO, José António e PECANTE, Maria Helena, O Judeu de Bernardo Santareno, Porto, Porto

editora, 1988, p. 59.

85 CHAVES, Castelo- Branco, Portugal nos séculos XVII e XVIII, Quatro testemunhos, op. cit., pp. 68 a

72.

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Page 33: Memorial do convento

Tão ridículo era este protocolo como o facto de a multidão rejubilar com este

espectáculo vergonhoso. Contudo, não podemos esquecer a mentalidade da época,

intensamente ligada aos valores católicos que, por outro lado, não seguiam

propriamente a doutrina de tolerância e modéstia divulgada por Jesus. Como tal, “O dia

de publicação do auto era festivo no palácio do Santo Ofício, a julgarmos pela

quantidade de compotas e especialidades variadas de confeitaria(...). Segundo o rol das

despesas do auto de 1646 em Lisboa, gastaram- se nesses acepipes 64 820 réis...”86.

No texto atrás referido, François de Tours faz uma referência digna de nota. Diz

ele que “...os inquisidores somente condenam os criminosos a penas temporais, porque

são padres e a igreja tem horror ao sangue 87 ; mas como a justiça secular está na

mesma sala em que eles julgam aqueles que não pedem misericórdia e não confessam

os seus crimes, eles entregam- nos à justiça secular que (...) os condena ao fogo.”88.

Abstemo- nos de comentar esta passagem , tão grande é a nossa incredulidade perante

este pacto sórdido entre a justiça secular e a inquisitorial.

Tal como o dito frade capuchinho que foi presenciar o auto- de- fé porque lhe

“...afiançaram que era coisa digna de ser vista.”89, vários estrangeiros que passaram

por Portugal no tempo de D. João V assistiram, atónitos, às celebrações. Charles

Fréderic de Merveilleux, estando em Portugal há pouco tempo foi informado de em

Lisboa se estar a preparar um auto- de- fé: “Voltei a Lisboa para poder assistir à festa.

Chamo festa a essa horrível cerimónia por ela constituir para os portugueses um

verdadeiro divertimento.”90 .Mais adiante continua: “...os portugueses, nesses dias,

86 SARAIVA, António José, Inquisição e Cristão- Novos, 5ª ed., Lisboa, Editorial Estampa, 1985, p. 104.

87 O sublinhado é nosso.

88 CHAVES, Castelo- Branco, op. cit., p. 71.

89 Idem, Ibidem, p. 68.

90 Idem, O Portugal de D. João V visto por três forasteiros, op. cit., p. 168.

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Page 34: Memorial do convento

estão tão excitados com a glória da Inquisição como noutros tempos estavam as

bacantes com a glória do deus pagão.91”. De facto, “A população estava na rua

durante horas e dias para não perder um espectáculo incomparável.”92.

Também no Memorial se explora esta face obscura da História de Portugal. O

narrador não esquece a alegria dos espectadores que dramaticamente contrasta com os

rostos dolorosos daqueles que estão sob o dedo acusador da Inquisição. Os réus são

insultados, maltratados e agredidos fisicamente com paus e pedras, enquanto dezenas de

mulheres se colocam às janelas, ricamente vestidas e adornadas, para assistirem à

celebração: “...está o Rossio cheio de povo, duas vezes em festa por ser domingo e

haver auto- de- fé, nunca se chegará a saber de que mais gostam os moradores, se

disto, se das touradas (...). Nas janelas que dão para a praça estão as mulheres,

vestidas e toucadas a primor, à alemoa, por graça da rainha .(...) diante das fogueiras

armou- se um baile, dançam os homens e as mulheres, el- rei retirou- se, viu, comeu e

andou...”93.

Esta insensibilidade sádica e cruel dos observadores que assistiam à queima dos

condenados surge novamente no final da obra. O Memorial do Convento termina com a

cremação dos sentenciados onde se incluía Baltasar que Blimunda procurara, em vão,

durante nove anos, e António José da Silva, o Judeu94. O primeiro possuía sobre si a

acusação de feitiçaria e de pacto com o demónio. O segundo era suspeito de heresia95.

91 Idem, Ibidem, p. 178.

92 SARAIVA, António José, op. cit., p. 108.

93 SARAMAGO, José, op. cit., pp. 46 a 50.

94 Idem, p. 351.

95 “A 19 de Outubro de 1739, por sentença da Inquisição de Lisboa, foi garrotado com a idade de 34

anos e queimado depois António José da Silva, célebre autor de comédias(...). (António José)

permaneceu preso durante 2 anos e acabou por perecer na fogueira. A sua mulher deu à luz na cela. Ela

e a mãe do executado foram condenadas a longos períodos de prisão.” In GRIGULÉVITCH, Iossif, op.

34

Page 35: Memorial do convento

“Assim, se obras há que tentam desculpabilizar a Inquisição e o seu “Ofício

Santo”, o que se faz no memorial é, bem pelo contrário, viabilizar uma outra dimensão-

a da linha ideológica anti- inquisitorial.”96.

VI-PADRE BARTOLOMEU DE GUSMÃO, UM GÉNIO

PERSEGUIDO

(RELIGIÃO VS CIÊNCIA)

cit., p. 319/ 320. Para perceber o mistério que envolveu o processo inquisitorial de António José da Silva

ver SARAIVA, António José, Inquisição e Cristãos- Novos, op. cit., pp 85 a 90.

96 ARNAUT, Ana Paula, op. cit., p. 50.

35

Page 36: Memorial do convento

“... faz dois anos que voei, primeiro fiz um balão que

ardeu, depois construí outro que subiu até ao tecto duma

sala do paço, enfim outro que saiu por uma janela da Casa

da Índia e ninguém tornou a ver, Mas voou em pessoa, ou só

voaram os balões, Voaram os balões, foi o mesmo que ter

voado eu, Voar balão não é voar homem, O homem primeiro

tropeça, depois anda, depois corre, um dia voará, respondeu

Bartolomeu Lourenço , mas logo se pôs de joelhos porque

estava passando o Corpo de Nosso Senhor para algum

doente de qualidade...”97

O grande percursor da conquista do ar foi o português Bartolomeu Lourenço de

Gusmão que em 1709 conseguiu fazer com que uma máquina , a “Passarola” se elevasse

cheia de ar quente perante uma corte estupefacta.

Pouco se sabe acerca do “Voador”, como ficou conhecido o padre inventor. No

Memorial do Convento o Padre Bartolomeu desempenha um importante papel no

desenrolar da trama, principalmente porque ele representa a inovação, o desejo de

experimentar e de contestar dogmas. Em suma, ele representa a Ciência que se viu, no

século XVIII, incrementada e fortalecida98.

97 SARAMAGO, José, op. cit.,p. 189.

98 No século XVIII “Esta predilecção pela experiência e pelo método indutivo seduz então os espíritos

cultos. Há tertúlias literárias onde se fazem experiências de física; é a época da instalação dos primeiros

pára- raios; o invento da passarola do Padre Bartolomeu de Gusmão é um dos muitos episódios desse

movimento de curiosidade científica.” In SARAIVA, José Hermano, op. cit., p. 245.

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Page 37: Memorial do convento

Desde sempre a Igreja se mostrou pouco receptiva a novidades que pudessem

contestar as suas crenças e vários foram os sábios que sofreram as suas represálias, pois

eram vistos pelo Santo Ofício como hereges.

“O primeiro a formular o conceito “amplo” sobre a história da Inquisição foi

Luís Paramo inquisidor, siciliano de origem espanhola.(...) Em sua opinião , Deus foi o

primeiro inquisidor, e Adão e Eva os primeiros hereges: Deus expulsou do paraíso os

primeiros seres humanos depois de os submeter a um interrogatório e um julgamento

secretos.”99.

Além do episódio da expulsão de Adão e Eva do Paraíso, o Antigo Testamento100

é rico em situações apocalípticas em que o Homem foi castigado por desobedecer a

Deus. È o caso da passagem da Arca de Noé101, da Torre de Babel102, da destruição das

cidades Sodoma e Gomorra103, etc.

Ainda “Segundo Paramo, Jesus Cristo foi o primeiro inquisidor do Novo

Testamento.”104.

Assim, os representantes da Igreja julgavam- se no direito de julgar todos

aqueles que se desviassem dos dogmas bíblicos e pusessem em causa os ensinamentos

por ela emitidos.

Segundo a doutrina eclesiástica, a Terra era o Centro do Universo, andando o

Sol à sua volta. No entanto, vários foram os astrónomos, desde Aristarco de Samos a

Galileu Galilei, a contestar tal afirmação.

99 GRIGULÉVITCH, Iossif, História da Inquisição, Lisboa, Editorial Caminho, 1990, p. 29/ 30.

100 Bíblia Sagrada, 16ª ed., Lisboa, Difusora Bíblica, 1992.

101 Idem, Gn, cap. 6.

102 Idem, Gn, cap. 11.

103 Idem, Gn, cap. 19.

104 Idem, p. 31.

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Page 38: Memorial do convento

Na obra De revolutionibus orbis planetarum , publicada em 1543, Nicolau

Copérnico apresenta uma teoria heliocêntrica ,mas “Estava- se muito longe de prever

então a influência decisiva que esta obra viria a ter na reforma da ciência, de modo que

ela não suscitou logo qualquer alarme nas fileiras da física tradicional.”105.

No entanto, este astrónomo inibiu- se de apresentar provas científicas do que

afirmava e, por isso, não foi levado muito a sério106.

A Igreja Católica ,que ao longo de toda a Idade Média e durante grande parte do

Renascimento fora a única autoridade intelectual da Europa, pois os eruditos eram

membros do clero e as Universidades eram dirigidas pela Igreja, vê a sua influência em

perigo quando Galileu Galilei surge a provar a teoria de Copérnico. Este astrónomo,

nascido a 15 de Julho de 1567, faleceu em 1642 após permanecer durante cinco anos

encarcerado, pois teve coragem para divulgar o que Copérnico escondera por temer

represálias.

Foram vários os eruditos a sofrer contestação por parte da Igreja Católica. “A

Bruno le quemaron, a Galileo le encarcelaron y le obrigaron a repudiar sus

descobrimientos ,Copérnico no se atrevió, mientras vivía, a comunicar al mundo lo que

veía, a Descartes le aterrorizaram y a Newton le opusieron amarga resistencia.”107.

Também Charles Darwin, já no séc. XIX, viu a Igreja opor- se severamente à sua

obra A Origem das Espécies por meio da Selecção Natural ou a Preservação de Raças

Favorecidas na Luta pela Vida onde, entre outras ideias, se explorava o facto de o

homem e o macaco terem um antepassado comum e de aquele ter evoluído ao longo de 105 ALBUQUERQUE, Luís de, Para a História da Ciência em Portugal, Lisboa, Livros Horizonte, 1973, p.

222 e ss.

106 Para um maior conhecimento sobre este assunto, ver KUHN, Thomas S. , A revolução Copernicana,

Lisboa, Edições 70, 1957.

107 MANN, Edward, La Inquisición (lo que fue y lo que hizo), 1ª ed., Barcelona, Editorial Humanitas,

1991, p. 347.

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Page 39: Memorial do convento

milhões de anos refutando a teoria que Deus teria criado os primeiros Homem e Mulher

no mesmo dia. Seguiram- se inúmeras discussões entre os criacionistas, partidários da

Igreja Católica, e os evolucionistas, os seguidores de Darwin.

No Memorial do Convento o representante da inovação e da ousadia é o Padre

Bartolomeu que se atreve a acreditar que o homem pode voar, ainda que indirectamente.

Mas a Passarola não foi o seu único invento108. Em 1704 ou antes, quando ainda

frequentava o Seminário no Brasil, inventou uma máquina que, mecanicamente, elevava

a água até ao dito estabelecimento quando esta ficava a cem metros de distância e a um

nível inferior ao do edifício.

Chegou a Portugal em 1708, matriculando- se em Coimbra na Faculdade de

Cânones. Nesse ano terá reprovado porque, segundo parece, andaria pensativo com um

invento apaixonante: uma máquina de voar. Nesse tempo voar era vedado aos homens

por decisão divina e por imposição física. Não esqueçamos que Ícaro, figura mitológica,

foi castigado pelos deuses por ter fabricado umas asas de cera que se derreteram ao

chegar perto do sol, precipitando consigo o infeliz aventureiro.

“Transgredir o que até então se julgava uma lei imposta pela Providência e

confirmada pela própria natureza, afigurava- se um sacrilégio aos olhos dos mais

doutos teólogos, que já lançavam olhares carregados de suspeição às estranhas

actividades do arrojado cientista.”109

Por ser considerado herege, o Padre Bartolomeu era olhado com grande

desconfiança por todos, chegando a comentar- se se ele não teria um pacto com o

demónio.

108 SARAMAGO, José, op. cit., p. 187: “... é certo que lhe não faltam ideias de invenção, o carvão feito

de lama e mato, um novo modo de moer para os engenhos do açúcar, mas a passarola é que é a suprema

invenção...”

109 DOMINGUES, Mário, op. cit., p. 51.

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Page 40: Memorial do convento

“Bartolomeu Lourenço que tem diante dos próprios olhos um maior pecado seu,

aquele de orgulho e ambição de fazer levantar um dia aos ares, aonde até hoje apenas

subiram Cristo, a Virgem e alguns escolhidos santos...”110 foi intimidado pelo Santo

Ofício que o acusava de feitiçaria. Valeu- lhe a protecção do rei que sentia admiração

pelo cientista e não se deixou influenciar pelos membros do Clero. Não podemos

esquecer o importante contributo de D. João V para o desenvolvimento da Ciência em

Portugal, apesar de o seu interesse por esta ser artificial111.

Foi em 8 de Agosto de 1709 que se deu o acontecimento mais fantástico em

Portugal no séc. XVIII- um engenho elevou- se no ar no pátio da Casa da Índia. Apesar

o inventor não ter voado foi apelidado de “Voador” e acusado de acções demoníacas,

vendo- se obrigado, para bem da sua integridade física ,a abandonar os trabalhos de

aperfeiçoamento da máquina.

Contudo, e como a Literatura é um meio de transformação do real112, no

Memorial o cientista vai mais longe, chegando a viajar na Passarola para fugir aos

familiares do Santo Ofício:

110 SARAMAGO, José, op. cit., p. 84.

111 “O interesse pelas observações astronómicas inicia- se, entre nós, exactamente com D. João V, e

graças à sua protecção, não porque o monarca tivesse inclinação particular para tais assuntos, mas por

saber que lá fora, na França ou na Inglaterra, os reis protegiam os investigadores científicos...” In

CARVALHO, Rómulo de, A Astronomia em Portugal no século XVIII, Lisboa, Livraria Bertrand, 1985,

p. 40.

112 No Dicionário de Narratologia , acerca da ficcionalidade, diz- se que “...a constituição de um universo

ficcional não inibe o autor de utilizar figuras e acontecimentos históricos.”, REIS, Carlos & LOPES, Ana

Cristina M., Dicionário de Narratologia, 2ª ed., Coimbra, Livraria Almedina, 1990, p.155.

40

Page 41: Memorial do convento

“O padre Bartolomeu Lourenço entrou violentamente na abegoaria, vinha

pálido, lívido, cor de cinza, como um ressuscitado que já fosse apodrecendo, temos de

fugir, o Santo Ofício anda à minha procura, querem prender- me...”113.

Arthur William Costigan, apesar de ter estado em Portugal já no final do século

XVIII, depara- se com a mesma mentalidade obtusa que caracterizou o reinado do

Magnânimo na primeira metade do mesmo. Numa das cartas que enviou para Inglaterra

ao seu irmão, a propósito do cônsul do Porto e acerca do seu gosto pela astronomia e do

conhecimento em geral, indigna- se com o facto de a Inquisição o ter visitado pois

corria o boato “... que o cônsul era um mágico que, pela sua arte e auxílio do diabo,

atraía os raios das nuvens para o seu jardim. Parece que tinha sobre a casa dele uma

barra de ferro horizontal, numa extremidade da qual estava suspensa uma cadeia de

ferro114 (...) e, quando havia uma tempestade, o relâmpago, correndo ao longo da

cadeia, fizera algumas vezes buracos na terra mole (...) e este caso levantou grande

rumor na cidade ...”115.

Uma ano mais tarde, em 1779, um jovem estudante, discípulo e admirador do

cônsul, sobre os estudos que empreendera, escrevia a um padre de quem se tornara

grande amigo: “... aconteceu-me nos estudos teológicos o contrário do que

experimentei em muitos anos116, em especial nos de exame sintético e analítico (...).Mas

113 SARAMAGO, José, op. cit., p. 189.

114 O pára- raios foi inventado por Franklin em 1752.

115 COSTIGAN, Arthur William, op. cit., vol. I, p. 158.

116 Sobre as diversas interpretações da Bíblia ver MANACORDA, Mario Alighiero, Leitura Laica da

Bíblia, Lisboa, Editorial Caminho, 1993, p. 52: “Foi a fidelidade à letra que deu origem a todas as

dúvidas de interpretação, à moderna filologia bíblica e, em última instância, ao repúdio da sacralidade

das escrituras.”.

41

Page 42: Memorial do convento

encontrei todas estas circunstâncias tristemente reprovadas nas minhas elucubrações

teológicas...”117.

A intolerância e a ignorância da Inquisição em impedir o progresso científico

manifestam- se, no Memorial do Convento, através da figura do Padre Bartolomeu que

se vê obrigado a fugir no seu engenho para que uma fogueira não seja a sua última

morada.

VIII- CONCLUSÃO

117 COSTIGAN Arthur William, op. cit., vol. II, pp 45 a 55.

42

Page 43: Memorial do convento

No Dicionário de Narratologia do Prof. Dr. Carlos Reis acentua- se que “...o

romance histórico exige não só a colocação da diegese em épocas históricas remotas,

como uma estratégia narrativa capaz de reconstituir com minúcia os componentes

sociais, axiológicos, jurídicos e culturais que caracterizam essas épocas;”118.

De facto, o Memorial retrata o século XVIII com uma minúcia quase

jornalística. Nele surge- nos um rei obcecado pelo luxo e pelos floreados a esbanjar uma

fortuna que, supostamente, deveria servir para melhorar as condições económicas e

sociais de milhares de portugueses. Tal como Narciso que caiu a um poço ao ficar

extasiado com a sua beleza e perfeição, também D. João V, ofuscado pelo brilho das

cerâmicas, pratas e jóias que o rodeavam, mergulhou o país numa grave crise

económica de onde nunca mais viria a sair.

O ponto culminante do espectáculo que foi o governo joanino coincidiu com a

construção de um convento magnífico “...em Mafra, para trezentos preguiçosos.”119.

Nesta obra gastaram- se fortunas incontáveis, como já vimos, para realização pessoal do

monarca, já que não poderia elevar no seu reino uma Basílica como a de S. Pedro de

Roma.

No Memorial do Convento temos personagens- tipo120 que caracterizam toda

uma classe, uma colectividade, que vive e morre nas mesmas circunstâncias. Assim,

surge- nos Baltasar121, o deficiente de guerra que se vê obrigado a pedir esmola para

118 REIS, Carlos, op. cit., p. 353.

119 BECKFORD, William, op. cit., p. 129.

120 “Constituindo uma subcategoria da personagem, o tipo pode ser entendido como personagem- síntese

entre o individual e o colectivo, entre o concreto e o abstracto, tendo em vista o intuito de ilustrar de uma

forma representativa certas dominantes (profissionais, psicológicas, culturais, económicas, etc)...”. In,

REIS, Carlos Lopes & LOPES, Ana Cristina, op. cit., p. 391.

121 Apesar de ser um dos protagonistas, tal como Bliminda, Baltasar representa todo um grupo de homens

e mulheres que sofreram as mesmas consequências de um regime injusto e, por isso, acreditamos poder

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Page 44: Memorial do convento

sobreviver; Blimunda é a visionária que, dolorosamente, vê a sua mãe ser degredada

pela Inquisição, sem sequer lhe poder dar um beijo de despedida; Padre Bartolomeu é o

homem que, apesar de pertencer ao clero, não pode voar mais alto porque a ideologia

retrógrada e fanática da Igreja não lhe permite aspirar a feitos que só beneficiariam o

país; D. Maria Ana, a rainha beata, representa a mulher conformada com a vida

submissa que leva e que tem um único objectivo na vida- procriar; Álvaro Diogo,

cunhado de Baltasar, assim com muitos outros, é um homem trabalhador castigado pela

vida e que vê os seus esforços recompensados com a morte em serviço122.

São muitas mais as personagens- tipo que retratam a mentalidade de uma

sociedade habituada a contrastes flagrantes.

A este propósito realçamos um comentário a propósito dos cavalos que seguem

na procissão do Corpo de Deus: “...condene-me Deus se não declarar que melhor

vestem as bestas do que os homens que as vêem passar, e isto é sendo o Corpo de Deus,

trouxe cada um no seu próprio corpo o que se melhor tinha em casa...”123.

Neste país, “...terra de pobreza e de ignorância.”124 onde há animais a vestirem-

se melhor que as pessoas, em que a ignorância predomina sobre a sensatez e a

tolerância, onde o despotismo de um rei fanático obriga milhares de homens a trabalhar

como se de escravos se tratassem, onde se queimam pessoas em nome de Deus, o fulgor

do ouro transforma- se no crepúsculo e a aurora tarda a reaparecer.

apelidar estas personagens de personagens- tipo.

122 “...Deve- se a construção do convento de Mafra ao rei D. João V, por um voto que fez se lhe nascesse

um filho, vão aqui seiscentos homens que não fizeram filho nenhum à rainha e eles é que pagam o voto,

que se lixam, com perdão da anacrónica voz.” In SARAMAGO, José, op. cit., p. 252.

123 Idem, p. 146.

124 BECKFORD, William, op. cit., p. 138.

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Page 45: Memorial do convento

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