maria lucia frizon rizzotto -...
TRANSCRIPT
MARIA LUCIA FRIZON RIZZOTTO
A FORMAÇÃO DE PROFISSIONAIS DE SAÚDE NO ÂMBITO DO PROJETO
REVOLUCIONÁRIO BOLIVARIANO NA VENEZUELA
Relatório de Estágio Pós-doutoral realizado
na UFSC – Universidade Federal de Santa
Catarina e CENDES – Centro de Estudios
del Desarrollo, no período de setembro de
2006 a julho de 2007
Brasil
Julho - 2007
RELATÓRIO CIRCUNSTANCIADO
O pós-doutorado se constitui em uma oportunidade ímpar na vida de qualquer pesquisador,
particularmente quando se atua em universidades sem muita tradição em pesquisa e
distantes geograficamente dos centros já reconhecidos como produtores e difusores de
conhecimento. Este é o meu caso e o da Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(Unioeste), onde atuo há 20 anos como professora do Curso de Enfermagem e, a partir
desse ano, compondo o corpo docente permanente do Programa de Mestrado em Educação,
recentemente aprovado pela CAPES.
A possibilidade de interlocução com pesquisadores de áreas afins, como é o caso da
educação, tem contribuído sobremaneira para a minha prática profissional de pesquisadora
e professora da área da saúde. Essa experiência se iniciou quando cursei o mestrado em
educação, mas permaneceu na medida em que passei a fazer parte de um grupo de pesquisa
(GPPS – Grupo de Pesquisa em Políticas Sociais), na minha universidade, em que atuam
pesquisadores das áreas de saúde e educação. Dessa forma, a opção por um pós-doutorado
na área da educação não se constitui em novidade, mas atende a necessidades pessoais, do
grupo e do próprio mestrado onde estou atuando
As atividades realizadas durante o Estágio de Pós-doutorado, sem dúvida enriqueceram a
minha trajetória acadêmica, além de possibilitar desdobramentos no campo institucional,
na medida em que as articulações realizadas durante a minha permanência no CENDES –
Centro de Estudos del Desarrollo – UCV - Venezuela (outubro a dezembro de 2006) e na
UFSC (setembro de 2006 e março a julho de 2007), poderão viabilizar intercâmbios
futuros entre pesquisadores dessas instituições com a Unioeste e vice-versa.
Durante o mês de setembro de 2006 retomei o projeto de pesquisa protocolado na Pós-
graduação em Educação (PGE), embora seja importante destacar que o mesmo sofreu
alterações na sua execução em face da realidade encontrada na Venezuela. Ainda durante
este mês de permanência na UFSC participei das reuniões do GEPETO, revi um texto para
publicação sobre Educação Permanente no Setor de Saúde no Brasil, que foi publicado na
coletânea: Abordagens, Práticas e Reflexões em Saúde Coletiva (Apêndice F). Além disso,
nesse período, elaborei dois verbetes (Focalização em Saúde e Neoliberalismo em Saúde)
publicados no Dicionário da Educação Profissional em Saúde da EPSJV/MS - Fiocruz.
(Apêndices D e E).
No período de outubro a dezembro de 2006, permanecei na Venezuela, vinculada ao
CENDES – Centro de Estudios del Desarrollo – Universidade Central da Venezuela,
realizando levantamento de material bibliográfico e documental, entrevistas com
coordenadores de cursos da área da saúde e acompanhando o processo de formação nos
cursos de Medicina Integral Comunitária e Gestão em Saúde Pública da Universidade
Bolivariana da Venezuela (UBV), que acabou se tornando o objeto central da pesquisa.
Embora o tempo de permanência tenha sido relativamente curto, foi possível elaborar
algumas análises iniciais do material empírico, as quais foram apresentadas em seminário
interno organizado pela direção do CENDES.
Durante os meses de março a julho de 2007, permaneci na UFSC e dediquei a maior parte
do tempo na elaboração do relatório de pesquisa, que teve como tema “A formação de
profissionais de saúde no âmbito do Projeto Revolucionário Bolivariano na Venezuela”.
Como produção paralela ao relatório e a partir dos dados da pesquisa elaborei dois textos
que foram encaminhados para eventos científicos de caráter nacional, um para a ANPED e
outro para o V Colóquio Marx e Engels. O texto encaminhado para a ANPED foi
produzido em parceria com a Dra Francis M. G. Nogueira e tem como título: “A
reconfiguração do Estado venezuelano inscrito na Constituição de 1999 e o processo de
universalização da educação escolar: as missões Robinson, Ribas e Sucre”. O Texto
produzido e encaminhado para apresentação no V Colóquio Marx e Engels, promovido
pelo Centro de Estudos Marxistas (CEMARX) da Unicamp, é intitulado “O Projeto
Revolucionário Bolivariano e a criação da Universidade Bolivariana da Venezuela”
Também nesse período cursei a disciplina: Tópicos Especiais, ministrada pelo professor
Mario Duayer e Maria Célia Albuquerque, em que se discutiu a natureza e o estatuto da
ciência e da explicação científica. No primeiro momento, para apreender os problemas
relacionados à ontologia, foram utilizados textos de George Lukács que tratam dessa
questão. No segundo momento, Roy Bhaskar foi o autor escolhido para a discussão sobre o
realismo crítico. O texto elaborado para avaliação final da disciplina foi encaminhado para
ser avaliado pelo professor responsável.
Também durante o Estágio de Pós-doutorado co-orientei a Aluna Carla Straub – do
Mestrado em Educação da UFSC que tinha como orientadora a Dra. Eneida Oto Shiroma.
O título da dissertação de Carla era: “Formação dos trabalhadores da saúde sob a égide da
produtividade”. A defesa foi realizada no dia 09/04/2007.
Antes de encerrar a minha permanência na UFSC apresentei, em seção pública, os
resultados da pesquisa realizada durante o estágio pós-doutoral para alunos e professores
da UFSC, de diversos cursos e áreas de conhecimento.
Gostaria de salientar a participação nas reuniões do Grupo de Pesquisa Educação e
Trabalho (GEPETO) ao qual fiquei vinculada neste período de Estágio Pós-doutoral. As
reuniões do grupo se constituíram em importante espaço de interlocução acadêmica e de
aprofundamento teórico de temas relacionados com questões conceituais, metodológicas e
de conjuntura nacional e da América Latina.
Por fim gostaria de deixar registrado que a realização deste Estágio Pós-doutoral no
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina foi
extremamente profícuo do ponto de vista acadêmico, profissional e pessoal. Isso foi
possível em face da acolhida que tive por parte dos colegas do grupo, pela contribuição da
professora Eneida Oto Shiroma, como professora responsável; pela infra-estrutura
oferecida pelo programa como biblioteca, sala de estudo, acesso a internet, secretaria, etc;
e pela oportunidade de vivenciar uma realidade em que se observa uma preocupação não
só com a produção de novos conhecimentos, mas com a preservação da universidade
pública como espaço privilegiado para essa produção.
Meus agradecimentos à Universidade Federal de Santa Catarina ( UFSC) , ao Centro de
Estudios del Desarrollo (CENDES) – Universidade Central da Venezuela, a Universidade
Bolivariana de Venezuela (UBV) , a Unioeste e ao Grupo de Pesquisa em Políticas Sociais
(GPPS).
Nada neste mundo é tão poderoso
como uma idéia cuja oportunidade chegou.
Victor Hugo
Que as classes dominantes tremam à idéia
de uma revolução comunista.
Os proletários nada tem a perder nela
a não ser as correntes que o aprisionam.
Tem um mundo a ganhar
Karl Marx
6
SUMÁRIO
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
7
INTRODUÇÃO 8
1. ASPECTOS HISTÓRICOS E CONJUNTURAIS DO ATUAL PROCESSO
POLÍTICO VENEZUELANO
1.1 O início da história recente da Venezuela
1.2 Particularidades das Forças Armadas na Venezuela
12
18
28
2. O GOVERNO DE HUGO CHÁVEZ FRIAS
33
2.1 O início do governo Chávez 34
2.2 O Estado bolivariano em construção 35
2.3 Desenvolvimento endógeno 36
2.4 Democracia participativa e protagônica 38
2.5 A continuidade do governo Chávez 39
2.6 A concepção de política social do governo Chávez 45
3. A FORMAÇÃO DE TRABALHADORES DA SAÚDE NA UBV
50
3.1 A UBV e o Projeto Revolucionário Bolivariano 51
3.2 Pressupostos teórico-metodológicos que dão sustentação à formação
acadêmica na UBV
52
3.3 A concepção de educação no projeto educacional bolivariano e na
formação dos profissionais de saúde
60
3.4 Graduação em Gestão em Saúde Pública – UBV 64
3.5 Graduação em Medicina Integral Comunitária – UBV 68
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
74
REFERÊNCIAS
80
ANEXO A – Plano de estudos do Curso de Gestão em Saúde Pública
ANEXO B – Plano de estudos do Curso de Medicina Integral Comunitária
82
89
7
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
AD - Acción Democrática
ALBA - Alternativa Bolivariana para as Américas
ANC - Assembléia Nacional Constituinte
ApP - Aprendizagem por Projetos
APS – Atenção Primária em Saúde
BIRD – Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento
CEPAL - Comissão Econômica para a América Latina
COPEI - Partido Democrático Cristão
CTV - Confederación de Trabajadores de Venezuela
FFAA – Forças Armadas
FMI - Fundo Monetário Internacional
GSP - Gestão em Saúde Pública
LCR - La Causa Radical
MBR – 200 - Movimento Bolivariano Revolucionário-200
MERCOSUL – Mercado Comum do Sul
MIC - Medicina Integral Comunitária
MVR - Movimento Quinta República
ONU – Organização das Nações Unidas
OPS - Organização Panamericana de Saúde
PCV - Partido Comunista de Venezuela
PDVSA - Petróleos da Venezuela
PES - Plano de Eqüidade Social
PFG - Programas de Formación de Grado
PIB - Produto Interno Bruto
PVR - Partido de la Revolución Venezolana
UBV - Universidade Bolivariana de Venezuela
UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
URD - Unión Republicana Democrática
8
INTRODUÇÃO
A Venezuela vive atualmente um momento de sua história em que se processam profundas
mudanças no âmbito político e social, que podem ter repercussões a médio e a longo prazo
em outros países da América Latina ou mesmo na região como um todo. Obviamente que
as repercussões, se de fato vierem a ocorrer, se darão de formas distintas em face da
heterogeneidade cultural, social, econômica e política dos diferentes países que compõe
esta região do continente.
Pelos próprios aspectos inovadores que apresenta, o processo venezuelano merece ser
estudado, mais ainda se levada em consideração a atual conjuntura política da América
Latina, que coloca mais da metade da população sob governos vinculados a uma orientação
de esquerda ou de centro esquerda. Tais governos, teoricamente, estariam mais propensos à
realização de mudanças que favorecessem a classe trabalhadora.
Essa configuração política não se deu por acaso, mas em grande medida como resultado da
implementação das reformas neoliberais, bancadas por organismos internacionais como o
Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, e colocadas em prática,
indistintamente, nos vários países latinoamericanos, a partir da década de 1980. Essas
reformas, cuja ênfase se deu no campo econômico e das políticas sociais, trouxeram como
conseqüência imediata o empobrecimento substancial da população e o aumento das
desigualdades sociais intra e entre países.
Se de início tais reformas alcançaram seus objetivos em manter o processo de transferência
de riqueza dos países dependentes para os países de capitalismo avançado,
contraditoriamente, fizeram emergir movimentos contestatórios que buscam evidenciar as
mazelas que essa transferência provoca, até porque são as maiores vítimas dela. Ao mesmo
tempo, esses movimentos tentam colocar em cheque a exploração imperialista e em
conseqüência, a própria dinâmica de acumulação capitalista que historicamente expropriou
os povos dessa região.
Talvez o movimento mais visível desse processo seja o surgimento de um nacionalismo de
base popular, cujos representantes, consciente da impossibilidade de realizar de forma
9
isolada qualquer ação mais conseqüente na direção de romper com a atual forma
dependente de inserção na dinâmica capitalista mundial, buscam promover a articulação e
a integração dos países latinoamericanos, visando formar um bloco mais consistente para
realizar esse enfrentamento.
Neste trabalho não se pretende discutir a conjuntura da América Latina, nem analisar os
processos políticos dos diversos países da região, os quais estão promovendo mudanças
importantes nos rumos do que estava instituído como padrão de política econômica, social
e de relações internacionais. Apenas a título de contextualização do objeto de pesquisa será
relatado, ainda que de forma sucinta, os principais acontecimentos históricos e conjunturais
que levaram à Venezuela a promover uma série de mudanças no campo das políticas
econômicas e sociais, as quais apontam para transformações na dinâmica e na estrutura da
sociedade daquele país. O processo político venezuelano tem chamando a atenção tanto
dos que o apóiam como dos que buscam interrompe-lo a qualquer custo.
Nesse sentido, o relato deste processo, localiza aquilo que se constitui a temática deste
estudo, ou seja, a vinculação entre o Projeto Revolucionário Bolivariano1 e a formação de
profissionais da área da saúde (médicos integrais comunitários e gestores em saúde
pública), nos cursos de graduação em Medicina Integral Comunitária (MIC) e Gestão em
Saúde Pública (GSP), ofertados pela Universidade Bolivariana de Venezuela (UBV)2. A
análise será centrada nos aspectos políticos, conceituais e pedagógicos do processo de
formação dos referidos cursos, tendo como objetivos: (1) apreender o significado da oferta
desses cursos no processo revolucionário em curso naquele país; (2) identificar as
concepções de educação e de saúde presentes nos dois Programas de Formación de Grado
1 O Projeto Revolucionário Bolivariano tem inúmeros objetivos, entre eles, destacamos o de criar um
modelo próprio de desenvolvimento e conseguir que uma elevada consciência social, o domínio do
conhecimento e de valores patrióticos e morais, constituam a base do processo bolivariano.
2 A UBV foi criada por meio do Decreto Presidencial n.
o 2.517, de 18 de julho de 2003, como
alternativa ao sistema educacional superior da Venezuela, que não estaria dando respostas às demandas da
sociedade e do processo de transformação em curso naquele país. Ao contrário, a formação ministrada nas
tradicionais universidades do país e a produção de conhecimento em seu interior, na grande maioria das
vezes, tem se colocado contra o projeto revolucionário popular.
10
(PFG)3; (3) destacar as diretrizes conceituais que dão sustentação às estratégias
pedagógicas predominantes no processo ensino-aprendizagem e as possíveis origens
institucionais dessas diretrizes.
A escolha desse objeto não se deu por acaso, mas pelo entendimento da não neutralidade
do conhecimento científico e do seu papel como elemento fundamental para a apreensão da
realidade social e de sua transformação. Mais ainda, a opção foi se confirmando à medida
em que a observação empírica evidenciou, no âmbito do projeto da “Venezuela
Bolivariana” (porque sustentado na figura e na recuperação dos ideais de Simón Bolívar),
um centralismo na educação e na formação de novos sujeitos, os quais deverão contribuir
para a construção de uma realidade distinta, não circunscrita à sociedade venezuelana.
Para dar conta dos objetivos elencados anteriormente utilizou-se da pesquisa documental,
de entrevistas e observação in loco, além de revisão de literatura em autores que analisam o
atual processo político venezuelano. As fontes primárias consistem de documentos da
UBV, que apresentam as propostas pedagógicas dos dois cursos estudados e outros que
falam da criação e objetivos da instituição; documentos do Ministério da Educação; do
Ministério de Ensino Superior; relatórios de organismos internacionais e entrevistas
realizadas com os coordenadores dos cursos em questão e coordenadores nacionais das
áreas de educação e de saúde daquele país.
Um projeto de sociedade que pretende estabelecer novas relações sociais requer novas
instituições, novo Estado, novo homem e novos profissionais. Parece serem estes os
determinantes que orientaram a criação da UBV, com a função de formar, numa
perspectiva distinta da que vinha ocorrendo nas universidades consolidadas do país; um
contingente de profissionais para ajudar a levar adiante o Projeto Revolucionário
Bolivariano.
Ainda como aspecto introdutório, quero advertir que este trabalho, ao abordar um período
recente e um objeto não totalmente amadurecido, adiciona dificuldades àquelas próprias
das pesquisas de natureza históricas. Tanto não favorece o distanciamento do objeto,
3 Os Programas de Formación de Grado corresponde ao Projeto Político Pedagógico dos cursos de
graduação no Brasil, onde se define os pressupostos teóricos, a grade curricular, o perfil do egresso, tempo de
duração, funcionamento, etc.
11
recomendado pelos historiadores, como os fenômenos podem não estarem plenamente
desenvolvidos no mundo real. Mas, se por um lado existem esses inconvenientes reais, por
outro, o recorte de um tempo imediato, possibilita o acompanhamento dos processos e a
identificação de acontecimentos e de atores que muitas vezes ficam excluídos dos registros
históricos. Espera-se que tais problemas metodológicos tenham sido minimizados na
exposição do trabalho e os desejos e as paixões que podem produzir o auto-engano não
tenham substituído a análise objetiva que uma pesquisa requer, nem a crítica inerente ao
ponto de vista assumido. Portanto, como se trata de uma primeira aproximação ao objeto
deve-se destacar a provisoriedade dos resultados dessa investigação e a necessidade de sua
continuidade em estudos futuros.
12
1. ASPECTOS HISTÓRICOS E CONJUNTURAIS DO ATUAL PROCESSO
POLÍTICO VENEZUELANO
De início um fato que merece destaque na história da Venezuela, diferente da experiência
brasileira, diz respeito ao seu processo de emancipação política. Lá a independência não
resultou de um acordo de cavalheiros entre os colonizadores e a elite local, em que
praticamente nenhuma mudança substantiva ocorreria em relação a quem iria governar o
país na próxima fase. Ao contrário, a independência venezuelana foi conseqüência de
intensas lutas e de uma guerra civil que durou dez anos (1811 – 1821), cujos objetivos dos
libertadores, tendo a frente Simón Bolívar, não se limitavam as atuais fronteiras da
Venezuela, mas expandia-se para outras colônias espanholas com o intuito de construir
uma grande pátria livre, a Gran Colômbia, hoje constituída pelos limites geográficos da
Venezuela, Colômbia, Equador e Panamá.4 Simón Bolívar entendia que a liberdade de seu
país, a Venezuela, só se consolidaria se todos os países do continente fossem livres e
houvesse uma integração entre eles, constituindo uma grande nação, soberana, capaz de
enfrentar de forma conjunta as ameaças externas e inventar alternativas para resolver os
problemas internos. Uma frase atribuída a Simón Bolívar, muito repetida na Venezuela na
atualidade é “ou inventamos ou erramos”.
Esses fatos parecem estar presentes na memória coletiva do povo venezuelano, com
destaque para o papel, os ensinamentos e os ideais de Simón Bolívar e de seu mestre
Simón Rodríguez, que embora nunca esquecidos, nos últimos anos foram sistematicamente
recolocados na cena política daquele país. Recuperam-se princípios, visões de mundo, de
homem e de sociedade presentes em seus escritos, revelando um particular projeto de
república e de liberdade que, também agora, não se restringe ao povo venezuelano, mas
pretende envolver outros povos da América Latina. Tais elementos, identificados na defesa
da soberania nacional e na integração latinoamericana, ajudam a dar conformação ao atual
4 Simon Bolívar, conhecido como O Libertador, dirigia um exército integrado por militares de
diversas origens dispostos a libertar os países do jugo espanhol. Dentre os oficiais estrangeiros estava o
brasileiro José Ignácio de Abreu e Lima (general de brigada). Cronologicamente o exército de Bolívar
libertou do jugo da coroa espanhola a Venezuela em 1811, a Colômbia em 1819, o Panamá em 1821, o Peru
em 1821, o Equador em 1822 e a Bolívia em 1824. A Venezuela se separou da “Gran Colombia” em 1830.
13
projeto político venezuelano, denominado de “Revolução Bolivariana”, o qual de certa
forma está traduzido na Constituição da República Bolivariana de Venezuela, de 1999.
As mudanças políticas e estruturais que estão ocorrendo na Venezuela e a política exterior
do governo Chávez, particularmente no que se refere aos países da América Latina e aos
Estados Unidos, podem ter implicações de longo alcance para esta região, daí a
importância em conhecer um pouco mais esse processo.
Em relação às questões econômicas, desde o século XVIII a economia venezuelana se
caracterizou pelo extrativismo e pela exportação de produtos primários. Primeiro,
produzindo e exportando cacau; no século XIX, expandiu para a produção de café e, a
partir do início do século XX até os dias atuais o petróleo se tornou o principal artigo de
exportação. Isso, segundo Lombardi (2003), além de provocar crises cíclicas que abalaram
os regimes políticos, independente de qual conceito ideológico, técnico ou político fosse
hegemônico, ajudou a compor uma série de restrições de caráter econômico, que limitaram
as possibilidades de mudanças mais profundas e de progresso do país. A economia de
extração se constitui, ainda hoje, na principal fonte de recursos fiscais, a “Venezuela pecha
sus exportaciones para poder hacer funcionar el aparato gobernamental”. (LOMBARDI,
2003, p. 12). Assim, nos momentos em que ocorre queda dos preços do petróleo, reduzindo
a entrada de recursos fiscais, o governo precisou reduzir seus gastos e, “a menudo solicita
préstamos para prolongar o acelerar el progreso y, al hacerlo, se hace incluso más
dependiente de la economía de extracción para generar fondos”. (LOMBARDI, 2003, p.
12).
Contudo, “desde 1925, cuando el petróleo se convirtió en el primer producto de
exportación del país, hasta derrumbarse los precios en 1986 (…), el crecimiento
económico fue casi constante”5 (BERGQUIST apud ELLNER, 2003a, p. 20),
particularmente a partir da década de 1960, com a instauração de regimes democráticos.
5 As grandes flutuações nos preços do petróleo, em nível internacional, observadas nas décadas de
1980 e 1990, divergiram da tendência histórica de estabilidade dos preços desse produto desde as primeiras
décadas do século XX, quando se tornou uma das principais fontes de energia do mundo.
14
A Venezuela, em comparação com os demais países da América Latina, viveu
distintamente os períodos de regimes ditatoriais e democráticos. De 1945 a 1948 teve uma
breve experiência democrática, com Rómulo Betancourt do partido Acción Democrática
(AD) no poder, quando se tentou implementar um programa de modernização na
Venezuela a partir de um golpe cívico-militar, mas, em 1948, um golpe militar liderado
pelo General Marcos Pérez Jiménez derrubou o governo e instaurou uma ditadura militar
que durou dez anos de 1948 a 1958. Na época,
los grupos elitistas se sintieron amenazados por las reformas
sociales y las pretensiones hegemónicas del gobierno liderado por
AD durante el trienio 1945 – 1948, y respondieron organizando el
conservador partido demócrata cristiano COPEI, y apoyando el
golpe militar que derrocó el naciente régimen democrático.
(ROBERTS, 2003, p. 77).
Em 1958, com a restauração da democracia, “comenzó un proyecto de 40 años diseñado
para construir una série de instituciones y establecer prácticas para cambiar la economía
de extracción de origen hispánico y reemplazar la débil infraestructura institucional
heredada del pasado”. (LOMBARDI, 2003, p. 14).
Este projeto de cunho nacionalista se fundamentou no denominado Pacto del Punto Fijo,
realizado entre os partidos AD, COPEI e Unión Republicana Democrática (URD).6
O
Pacto del Punto Fijo, “estableció los términos para la democracia, incluyendo algunos
substantivos en el campo económico, así como otros de procedimientos para respetar los
resultados de las elecciones, consultar a los líderes de los partidos de oposición y
compartir responsabilidades”. (NORDEN, 2003, p. 128). O projeto puntofijista se
apoiava, materialmente, na “distribución de las rentas petroleras internacionales a través
6 O partido URD teve uma vida relativamente curta, logo após a instituição do pacto se dissolveu.
15
de un sistema de clientelismo”, sintetizado por Rey (1972) na expressão “el sistema
populista de reconciliación”.7 (HELLINGER, 2003, p. 43).
Para Hellinger (2003, p. 43), o moderno sistema democrático venezuelano foi criado por
uma geração de líderes políticos, “que desde 1936 habían defendido la democracia
electoral como la clave para lograr el control soberano sobre el petróleo (el subsuelo) y el
desarrollo de una economía no sustentada en ese producto”. Para esse autor, no primeiro
momento da democracia, respaldada pelo Pacto del Punto Fijo, a disputa eleitoral estava
marcada por distinções de classe. De um lado, os setores populares votando em AD, que
dominava as confederações de trabalhadores e campesinos, e de outro, os setores
conservadores se vinculavam ao partido COPEI. Com o tempo, foi se dissipando a
estrutura classista das duas principais agremiações partidárias (AD e COPEI), os
programas partidários foram convergindo e o partido AD, para facilitar a sua aceitação por
parte da elite que estava envolvida no processo de transição,
moderó su posición y negoció una serie de pactos sociales,
económicos y políticos con COPEI y otros actores políticos del
país, excluyendo el Partido Comunista de Venezuela (PCV), un
aliado estratégico en la lucha contra Marcos Pérez Jiménez. A
mismo tempo, aceptó compartir el poder, regular su capacidad
para movilizaciones sociales, y limitar el alcance de las reformas
políticas. (KARL, 1987 apud ROBERTS, 2003, p. 77).
Desde então, até a crise econômica da década de 1990, AD e COPEI controlaram a cena
política, conseguindo, sistematicamente, a maioria dos representantes na câmara e no
senado. Entre 1974 e 1993, tinham, juntos, “no menos de 81% de los escaños en la cámara
baja e 88% en el senado (…), en 1993 el total había reducido a 53% y 60%”.
(HELLINGER, 2003, p. 51).
7 Em 1961, os mesmos integrantes do pacto redigiram a nova Constituição, que vigorou até 1999,
quando uma Assembléia Nacional Constituinte elaborou a atual Carta Constitucional, que inclusive alterou o
nome da Venezuela, passando a ser denominada República Bolivariana de Venezuela.
16
Esse modelo de democracia, a exemplo do americano, em que dois partidos políticos sem
grandes diferenças ideológicas se alternam no poder, era visto por muitos intelectuais e
analistas políticos como modelo para a América Latina e a melhor opção para se construir
uma estabilidade política nos países democráticos. O período de culminância do projeto
puntofijista, que associava democracia, nacionalismo petroleiro8 e desenvolvimento se deu
entre 1973 a 1983, quando se efetivou a melhor distribuição de renda do país. Contudo, a
estabilidade política se revelou frágil diante da determinação econômica. Poucos anos de
crise econômica fizeram mudar radicalmente os indicadores sociais do país, levando ao fim
do Pacto del Punto Fijo e colocando em cheque o próprio modelo de democracia instituído
na Venezuela.
…las bases materiales del consenso, que constituían el soporte
tanto de los acuerdos políticos de la elite como del compromiso de
clases, comenzaron a erosionarse a principio de los años 80
cuando la crisis de la deuda de AL alcanzó tierras venezolanas y
las fuerzas del mercado global hicieron que la renta petrolera se
desplomase. (ROBERTS, 2003, p. 78-9).
Segundo Lombardi (2003), o sonho de progresso9 que compôs o imaginário coletivo dos
venezuelanos, em face às melhorias nas condições de vida e ampliação do consumo que
ocorreu na década de 1970, se apoiou em hipóteses que não se confirmaram. Primeiro, na
idéia de que a prosperidade que acompanhou a expansão dos gastos do Estado naquele
período refletia uma riqueza econômica real e não apenas gastos da renda de exportação de
petróleo; e, segundo, na crença de que os recursos e a riqueza produzida pelo petróleo
iriam, naturalmente, desenvolver uma economia moderna e diversificada.
Com o passar do tempo, ambas as suposições se mostraram não ter correspondência no
mundo real. Com a crise dos anos de 1980, nem o Estado pode manter o volume de gastos
8 Nesse período, mais especificamente em 1976, no primeiro mandato de Carlos Andrés Pérez, foi
nacionalizado o petróleo do país.
9 Para Márquez (2003), a noção de progresso
incluía a possibilidade de realizar compras periodicamente em Miami e associava progresso com um rápido
fluxo de bens e tecnologias importadas, além do incremento da mobilidade social.
17
com as políticas públicas, nem a economia viu nascer atividades alternativas à extração do
petróleo, apesar das estratégias seguidas pelos diferentes governos, iniciadas pelo partido
AD, em 1958, de intervenção na economia e de proteção da indústria nacional. Não
obstante,
la bonanza petrolera de esa década (70) generó una riqueza
repentina, que llegó en una pequeña medida a las clases bajas
como resultado de los beneficios populistas decretados durante el
primer gobierno de Pérez (1974 – 1979). Los años 70
demostraron así el potencial enorme del país. La prosperidad de
ese decenio se convertiría en un punto de referencia constante
para los venezolanos y formaría parte de su memoria colectiva,
haciéndoles difícil ajustarse a los tiempos duros que les tocaron
después. (ELLNER, 2003, p. 34).
Nos anos 70 do século XX, os recursos do petróleo financiaram benefícios para todas as
classes sociais, por meio de subsídios, baixos impostos, controle de preços, serviços
públicos como educação e saúde e um generoso sistema de seguridade social. Foi o
momento em que “la OPEP y los sucesos en el Medio Oriente se combinaron para
multiplicar por 10 los precios del petróleo”, o que possibilitou “un aumento del gasto
público de 96,9% entre 1973 y 1978, [y] permitió lograr excelentes servicios públicos y
grandes oportunidades de empleo” (BUXTON, 2003, p. 147), levando a uma redução
substantiva dos níveis de pobreza do país. Também o setor privado se beneficiou desse
momento, desfrutando “de protecciones arancelarias, acceso a créditos blandos y otras
oportunidades resultado de políticas de sustitución de importaciones”. (BUXTON, 2003,
p. 148). Desta forma, o Estado resolvia a necessidade de acumulação do capital, mantendo
tasas impositivas locales extremadamente bajas, y con el
otorgamiento de créditos públicos extraordinarios para la empresa
privada, mientras las demandas de consumo de las clases
trabajadoras se resolvieron otorgándoles los sueldos más altos de
Latinoamérica. (ROBERTS, 2003, p. 78).
18
Contudo, essa economia petroleira, “debilitó a la oligarquía, al campesinado y a la clase
obrera, y les impidió construir sus propias organizaciones políticas...”. (ELLNER, 2003a,
p. 21). Além disso, “los ingresos derivados del crudo incidieron en el surgimiento de una
burocracia altamente improductiva, que solicitaba préstamos extranjeros para financiar
megaproyectos irrealizables y hasta quijotescos”. (ELLNER, 2003a, p. 26).
Tal burocracia, que também se beneficiou largamente dos recursos petroleiros nos
momentos de expansão econômica, ajudou a construir uma visão paternalista, clientelista e
centralista do Estado, que ainda hegemoniza as relações nas instituições públicas daquele
país. Em grande medida essa mesma burocracia é quem gerencia o Estado venezuelano na
atualidade, perpetuando os vícios e as práticas de corrupção, o que evidencia que a
estrutura do velho Estado burguês, permanece quase intacta. Isso coloca para o governo
Chávez mais um problema a ser solucionado, talvez o mais difícil, que é “destruir” o
Estado burguês, principal agente de sustentação jurídico-política das relações capitalistas.
Isto se de fato estiver disposto a construir o “Socialismo do Século XXI”, como tem
afirmado nos últimos tempos, independente das características que este vier a assumir.
1.1 O início da história recente da Venezuela
Vários autores que estudaram e estudam o atual processo político venezuelano, entre eles
Maya (2005), Ellner (2003a) e Márquez (2003), indicam o denominado viernes negro
como marco de desarticulação do pacto democrático puntofijista, instituído em 1958, e da
própria estrutura societária instaurada a partir dele. Em 21 de fevereiro de 1983, uma sexta-
feira, depois de mais de 25 anos de estabilidade econômica e política, o então presidente da
Venezuela Luis Herrera Campíns, desvalorizou o Bolívar, a moeda nacional, como
estratégia para enfrentar a crise econômica que assolava o país. De uma relação de 4,30
Bs/U$ passou para 9,90 Bs/U$. Na época, segundo Maya (2005, p. 23) um jornalista
expressou o estado de ânimo da população na seguinte frase: “la fiesta se acabó”. A crise
econômica decorria de uma combinação de fatores externos e internos, entre eles o declínio
do modelo de desenvolvimento sustentado na renda petroleira e a crise de acumulação do
19
capitalismo em escala mundial. Como expressões da crise que atingiu a Venezuela,
naquele momento, destacam-se o crescimento negativo do PIB, que em 1983 foi da ordem
de -7,01, e o atraso no pagamento da dívida externa.
Para Hellinger (2003), a desvalorização do Bolívar iniciou uma crise não só material, mas
também ideológica da qual o país nunca se recobrou. A capacidade distributiva do Estado
venezuelano começou a diminuir, bem como a confiança do povo de que a democracia
burguesa seria capaz de estimular o desenvolvimento e de oferecer oportunidades para
todos.
Se na década de 1970, houve uma melhora substantiva nas condições de vida da
população, pois em 1978 apenas 10% da população era considerada pobre, e pouco mais de
2% vivia em extrema pobreza, a partir da década de 1980, os cortes nos gastos sociais e
nos salários, decorrentes da crise que se abateu sobre o país, levaram a um aumento
absurdo da pobreza. “Entre 1984 a 1995, el porcentaje de la población pobre aumentó de
36% a 66%, mientras el sector en pobreza extrema aumentó más del triple, de 11% a
36%...”. (EVANS apud ROBERTS, 2003, p. 80).
Embora o empobrecimento da população venezuelana tenha se iniciado com a crise da
dívida externa, no início dos anos de 1980, esse processo se acelerou na década seguinte
com as políticas de ajuste estrutural, impostas pelos acordos firmados com o Banco
Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Os acordos, como se sabe, tinham
como referência o Consenso de Washington, que entre outras coisas pregava o ajuste fiscal
por meio da redução de gastos sociais, da abertura comercial e financeira, do controle dos
salários e da privatização de empresas públicas.
Os cortes promovidos pelas reformas neoliberais foram drásticos, atingindo todos os
setores públicos. De um investimento de 8% do PIB (Produto Interno Bruto) em gastos
sociais, em 1987, reduziu-se para 4,3% em 1994, sem contar a queda nominal do próprio
PIB. Os programas educativos sofreram redução superior a 40%; o setor de saúde, 37%; o
setor de desenvolvimento social e participação, 56%; e o desenvolvimento habitacional e
urbano teve 70% de cortes nos seus investimentos. Em relação aos salários, no final da
década de 1990, estavam 40% menores do que nos anos de 1980. Em 1997, 67% dos
20
venezuelanos ganhavam menos de dois dólares por dia. “Los efectos políticos del declive
económico se hicieron más agudos por el hecho de que los sacrificios no eran compartidos
por todos. Al contrario, su distribución se hacía más desigual a medida que la torta
económica se reducía”. (BUXTON, 2003; ROBERTS, 2003, p. 80-1).
O progressivo empobrecimento econômico e o aumento das desigualdades sociais levaram
a uma crescente polarização da sociedade venezuelana, fazendo reaparecer de forma muito
intensa a divisão e a luta de classes, que estava entorpecida pela distribuição de renda mais
ou menos eqüitativa dos anos de 1970.
Este resurgimiento de la diferencia social como eje de una política
distinta es doblemente interesante, por cuanto no solo rompe con
la reciente historia política de Venezuela, sino también con las
tendencias dominantes en las políticas latinoamericanas
contemporáneas. Aunque las desigualdades sociales se han
profundizado en la mayor parte de America Latina durante los
últimos 20 años de crisis económicas y reformas de libre mercado,
las divisiones de clases generalmente se han diluido en la arena
política, víctimas de mercados laborales fragmentados,
decrecientes acciones colectivas de grupos sociales, y estrategias
partidistas que debilitan la identidad de clase. (ROBERTS, 2003,
p. 75-6).
De fato, embora em todos os países latinoamericanos que aplicaram as reformas
neoliberais nas décadas de 1980 e 1990, tenha ocorrido o mesmo fenômeno, ou seja, um
aumento da pobreza, acompanhado de uma ampliação das desigualdades sociais entre os
poucos que se apropriam de grande parte da riqueza produzida e a maioria que nada possui,
não se observou, na maior parte dos países, mobilizações populares que efetivamente
colocassem em cheque tais reformas. Ao contrário, o que se evidenciou foi um
arrefecimento do movimento sindical e social, talvez, efeito ainda das ditaduras militares
que governaram esses países nas décadas de 1960 e 1970, da onda de desemprego
estrutural, mas também de uma postura de consenso e sem a perspectiva de classe
assumida por muitos sindicatos e partidos políticos, como o caso do Partido dos
21
Trabalhadores, no Brasil, a partir do processo de redemocratização do país na década de
1980.
Além disso, em grande parte desses países o setor popular, que historicamente constituiu a
maioria da sociedade, nunca experimentou um padrão de consumo e um nível de vida além
do mínimo permitido por salários insuficientes à própria subsistência e por políticas sociais
segmentadas e residuais, próprias do processo de acumulação capitalista. Daí, talvez, se
explique a passividade do conjunto da população diante do absurdo processo de exclusão,
do aprofundamento da pobreza e do aumento da desigualdade social, observados neste
final e início de século nos países latinoamericanos. Nesse sentido, conforme veremos a
seguir, o povo venezuelano teve uma reação distinta diante das conseqüências das reformas
neoliberais, como o desemprego, a redução dos salários, os cortes nas políticas sociais e a
deterioração dos serviços públicos, fatores que contribuem para manter um nível de vida
mínima para o conjunto da população.
Na década de 1980, a crise econômica se acentuou e o nível de vida se deteriorou
rapidamente, em 1989, 66,5% da população era considerada pobre e 29,6% vivia em
pobreza extrema. Com esses dados sociais, indicativos do grau de deterioração das
condições de existência do povo venezuelano, em dois de fevereiro de 1989, seis anos
depois do viernes negro, assumiu pela segunda vez a presidência da República, Carlos
Andrés Pérez, do partido AD, para o mandato de 1989 a 1993. Pérez havia governado o
país no período da bonança petroleira (1974 – 1979) e implementado políticas populistas,
por isso, na época, teve-se a crença de que ele poderia trazer de volta os bons tempos
vividos na década de 1970. Contudo, em 16 de fevereiro, 14 dias depois de sua posse,
anunciou a negociação de um acordo de ajuste estrutural com o FMI. (HELLINGER,
2003). O acordo firmado com o FMI, não se diferenciou dos planos de ajuste impostos
para os demais países da América Latina neste mesmo período, com ele se
eliminó los subsidios y los controles de precio de una gran
cantidad de servicios públicos y bienes de consumo; liberó la
paridad monetaria y las tasas de interés; recortó las restricciones
de intercambio comercial; flexibilizó los controles sobre inversión
22
extranjera y lanzo un ambicioso programa de privatización.10
(ROBERTS, 2003, p. 85).
Para esse autor, com essas medidas o presidente Pérez rompeu tanto com o consenso
programático construído ao longo do tempo, como com os acordos políticos que haviam
levado distintas classes sociais a aderirem aos dois grandes partidos tradicionais, AD e
COPEI. Isso teria marcado o colapso do sistema populista de reconciliação, até então
vigente na Venezuela.
Em reação às medidas de ajuste neoliberais, acordadas com o FMI e o Banco Mundial, e
como sintoma da degradação nas condições de vida, sobretudo da população trabalhadora,
em 27 de fevereiro de 1989 teve início um levante popular, que começou em Caracas, mas
se estendeu para 19 cidades de médio e grande porte do país, conhecido como caracazo.11
As manifestações, na forma de saques em estabelecimentos comerciais e quebra-quebra,
foram desencadeadas pelo reajuste ilegal das tarifas do transporte coletivo, decorrente do
aumento de 100% nos combustíveis e da negação das empresas em darem descontos nas
passagens dos estudantes. O levante, que revelou a agudização das tensões sociais, teve
um saldo de mais de 1.000 mortos, durou até 19 de março, quando o exército foi chamado
para controlar a revolta, uma vez que as polícias não haviam conseguido.
Segundo Chávez, em entrevista dada para a rede Venezolana de Televisión, dia
01/12/2006, isso ficou como um peso sobre os ombros dos militares, que em sua grande
maioria tinham a mesma origem popular das pessoas que haviam reprimido. Portanto,
sabiam dos problemas e dificuldades econômicas e sociais que o povo estava vivendo. Para
Norden (2003, p. 125), “La experiencia de actuar en forma represiva enojó a muchos
militares, incluyendo a Chávez y a Francisco Arias Cárdenas (…), muchos de ellos se
identificaron más con el pueblo a quien se les pedía reprimenda, que con sus superiores
militares y civiles”.
10
Nesse processo privatizou o sistema de portos, a empresa aérea VIASA e abriu a indústria petroleira
e outros setores estratégicos ao capital privado. (ELLNER, 2003).
11 O caracazo se converteu em símbolo de resistência às políticas neoliberais na Venezuela.
23
Para Ellner (2003a, p. 22), o caracazo e os distúrbios que se seguiram, “debido a la
aparente solidez del sistema político venezolano, (...) sorprendieron a los analistas y a los
mismos venezolanos”, colocando por terra a tese da excepcionalidade venezuelana, que via
esse país como diferente de seus vizinhos latinoamericanos, quer pela maturidade política,
quer pelo fato de ser grande produtor de petróleo e ter conseguido, em certo período,
instituir uma melhor repartição de renda em nível nacional. .
Se em 1958 a oposição à ditadura militar tinha conseguido unir pessoas de distintas classes
sociais para derrotar a ditadura e instituir a democracia, o caracazo, em 1989, “fue la
primera acción masiva de las clases populares desde 1935, cuando la muerte de Juan
Vicente Gómez provocó la intranquilidad rural y urbana de fuerte connotación clasista”.
(HELLINGER, 2003, p. 48). O caracazo revelou uma tendência dos anos seguintes de
manifestações de rua com forte caráter classista.
A evidente polarização da sociedade venezuelana aumentou a distância e a tensão entre
setores não organizados da população, os mais pobres, e os setores mais organizados e
privilegiados. Segundo Ellner (2003b) essa polarização se expressou em pelo menos cinco
frentes, entre elas destacam-se o crescimento da economia informal, o ressentimento
mútuo entre as classes baixas e os setores mais privilegiados da sociedade, e a emergência
de partidos políticos defensores das classes baixas, rompendo com a tradição dos partidos
multiclassistas.12
No que diz respeito ao crescimento da economia informal, de fato o modelo econômico
centrado na exploração e exportação do petróleo não favoreceu o desenvolvimento de
outros setores produtivos, ao contrário, estimulou o deslocamento de grandes contingentes
populacionais do campo para a cidade, conseqüentemente, a concentração da posse da
terra.13
Como o setor industrial tinha pouca capacidade de absorção de mão-de-obra, a
12
Embora os partidos políticos possam se proclamar como policlassistas, no limite defendem apenas
uma classe social. Independente da modalidade que adquirem, os partidos expressam sempre um interesse de
classe e se constituem no instrumento que a classe se utiliza para a sua atuação política.
13 Entre 1989 e 1992, nos primeiros anos de reformas neoliberais, aproximadamente 600.000 pessoas
abandonaram o campo, reduzindo a atividade agrícola de 16,1% para 10% da economia. (BOLIVAR, PÉREZ
CAMPOS apud ROBERTS, 2003). A Venezuela é o país, da América Latina, que tem uma das maiores
concentrações de terras do continente.
24
força de trabalho que veio do campo e a que foi dispensada do setor formal, pela recessão
econômica que se seguiu às reformas neoliberais, se concentrou no setor informal da
economia, que ainda hoje absorve cerca de 50% da força de trabalho. Como se sabe, o
trabalho informal agrava as condições de vida, tanto pelas próprias condições em que se
realiza, como pelos benefícios previdenciários que o trabalhador informal não consegue
usufruir.
Já o crescimento da desigualdade social deixou evidenciado quem efetivamente havia se
beneficiado dos recursos do petróleo nas décadas anteriores. Embora toda a sociedade
sofresse com a crise econômica que se abateu sobre o país, os efeitos mais devastadores
ocorreram nas classes média baixa e baixa. Isso foi gerando um ressentimento mútuo, a
ponto de “Después de los disturbios de 27 de febrero, los pobres llegaron a considerar
cualquier urbanización de clase media o alta como territorio enemigo (…), y la clase
media teme que los pobres estén a punto de invadir sus comunidades”. (ELLNER, 2003a,
p. 35).
De fato o caracazo ou sacudón como também ficou conhecida essa revolta popular na
Venezuela, parece ter se convertido em um ponto de ruptura no processo político e
societário venezuelano, vigente até então.
La debilidad y falta de representatividad evidenciadas por las
instituciones oficiales y de mediación tornaban urgente el inicio de
reformas, rectificaciones y ajustes en las relaciones políticas, como
medio para recuperar algún nivel de control sobre la vida social y
alguna legitimidad ante la ciudadanía. Sin embargo, esto no
ocurrió, y por consiguiente el gobierno, los partidos y los
sindicatos entraron en un proceso sostenido de rechazo por parte
de la populación. (ROBERTS, 2003, p. 102).
O rechaço às instituições políticas e de representação resultou da postura tímida e mesmo
conservadora dos maiores sindicatos e partidos políticos, particularmente o partido AD que
originalmente tinha uma vinculação com os setores populares, diante das reformas
neoliberais e da própria ação popular. Essa postura deu espaço para a emergência de outras
25
organizações políticas e da sociedade civil, que mesmo sem muita estrutura combatiam
duramente as políticas liberais do então governo.
Dessa forma, os pequenos partidos e associações foram se constituindo em alternativa para
a classe trabalhadora, pois enquanto o povo reagia com indignação e violência às medidas
de restrição, a Confederación de Trabajadores de Venezuela (CTV) e o partido AD, que
dominava essa central sindical, vacilavam nas suas reações às reformas. Assim, foram se
distanciando “... cada vez más del movimiento de protesta popular abriendo un nuevo
espacio político para el partido LCR y sus afiliados, los sindicatos más combativos y los
grupos vecinales independientes que carecían de uma organización estricta”. (ROBERTS,
2003, p. 87).
De acordo com Hellinger (2003), nas inúmeras manifestações de protesto e reivindicação
que ocorreram no período que se seguiu ao caracazo, foi se evidenciando a incapacidade
dos sindicatos de defenderem os interesses dos trabalhadores informais, e os partidos
políticos de representarem as camadas populares. Nesse vazio de representação, deixado
pelo fim do Pacto del Punto Fijo, emergiram novas forças sociais, como o movimento de
trabalhadores La Causa Radical (LCR), logo convertido em Partido/LCR; grupos de
executivos da companhia Petróleos da Venezuela (PDVSA); outros grupos vinculados à
classe média e profissionais liberais; e um grupo de militares denominado Movimento
Bolivariano Revolucionário-200 (MBR-200)14
ao qual se vinculava Hugo Chávez Frias.
Para disputar as eleições de 1998, esse Movimento criou o Partido/MVR (Movimento
Quinta República).15
El ascenso del LCR e del MVR rompió el modelo histórico
venezolano de partidos “multiclassistas” que habían apaciguado
los conflictos sociales durante mucho tiempo. (…) Estos dos
14
O número 200 corresponde ao aniversário de 200 anos do nascimento de Simón Bolívar, que
ocorreu em 1983, ano de criação do referido movimento.
15 Foi necessária a criação de um partido com outro nome, pois na Venezuela é proibida, por lei, a
referência a Bolívar na sigla de qualquer organização política. Contudo, percebe-se uma preocupação do
movimento em criar uma sigla cuja fonética seja próxima (MBR – MVR), facilitando a associação do
movimento com o novo partido criado.
26
partidos solo contaron con el apoyo de las clases menos
favorecidas, y eran impopulares entre los sectores más
privilegiados, y hasta entre los intelectuales tradicionalmente
identificados con los movimientos y las causas izquierdistas.
(ELLNER, 2003, p. 35).
A emergência de novos líderes e partidos políticos identificados com as classes populares e
a preferência dessas por candidatos independentes, não vinculados aos partidos
tradicionais, revelaram não só a derrota do sistema partidário vigente desde 1958, mas
também a insuficiência do modelo econômico e da própria democracia representativa
vigente de viabilizar uma melhor distribuição da riqueza produzida.
Contudo, não foi somente Carlos Andrés Pérez, destituído do cargo por corrupção em maio
de 1993, que adotou políticas neoliberais; o próprio Rafael Caldera, que se elegeu
presidente da república para o período de 1994 - 199916
com um discurso francamente
antineoliberal, no meio de seu mandato sucumbiu a ola neoliberal. Em abril de 1996,
colocou em prática a “Agenda Venezuela”, se contradizendo em relação às duras críticas
que havia feito às políticas de Pérez.17
Seria o terceiro programa de ajuste que o país iria
viver, os outros ocorreram em 1984 e 1989. Por meio da Agenda Venezuela,
se eliminaron los controles de precios y cambios impuestos en
1994. El Bolívar flotó libremente antes de que se introdujera un
sistema de tasas de cambios de bandas. Su valor cayó a 290 por
dólar, al tiempo que la liberalización de precios condujo a un
aumento aún mayor de la inflación, la cual alcanzó una cifra de
103,2% en 1996. El consumo colapsó y los niveles de pobreza
mantuvieron su tendencia alcista. A finales de 1996, la pobreza
generalizad alcanzaba a 86% del país. De este total, 65% vivía en
pobreza crítica. (BUXTON, 2003, p. 154-5).
16
Caldera foi fundador do partido COPEI e seu primeiro mandato ocorreu no período de 1969 a 1974.
17 O governo de Caldera privatizou, entre outras coisas, a Companhia Nacional de Telefones
(CANTV), a indústria de ferro e carbono, ativos de empresas financeiras e quando deixou o governo
preparava a legislação para privatizar as empresas de eletricidade, alumínio e petroquímicas.
27
Quando da eleição de Rafael Caldera, em 1993, o povo já indicava claramente que queria
mudanças profundas e não apenas reformas parciais nas políticas nacionais, pois elegeu
Caldera em face de seu discurso radical, antineoliberal, acreditando que ele poderia realizar
as mudanças almejadas pela sociedade. Um fato relevante para a sua eleição se deu por
ocasião da tentativa de golpe militar, liderado por Chávez, em quatro de fevereiro de 1992,
quando, no Congresso, em discurso proclamado como deputado rechaçou o entendimento
repetido por outros parlamentares e pela própria esquerda, de que, os cabeças do
movimento rebelde “eran unos oficiales hambrientos de poder y empeñados en destruir la
democracia.” Ao contrário, “atribuyó el golpe en gran parte al aumento del costo de vida
y a la devastación social ocasionada por las reformas neoliberales”. (ELLNER, 2003a, p.
35). Dessa forma, Rafael Caldera, um dos homens que havia criado e dado sustentação ao
sistema democrático baseado no Pacto del Punto Fijo, “se negó a solidarizarse con AD,
COPEI y el MAS, o a colocar la salvaguardia de las instituciones por encima de los
intereses de los pobres”. (ELLNER, 2003a, p. 36).
Ainda como demonstração desse entendimento acerca da ação do grupo liderado por
Chávez, Caldera libertou Chávez e seus companheiros, em 26 de março de 1994, e anistiou
os oficiais que estavam presos em face de uma segunda tentativa de golpe, colocada em
prática em 27 de novembro de 1992, a qual, diferente da liderada por Chávez (tenente
coronel), envolveu altos cargos do exército, da marinha e da aeronáutica. Além de
conservar os direitos políticos dos insurgentes, dos dois intentos de golpe, Caldera
convidou alguns militares para fazerem parte de seu governo, como foi o caso de Árias
Cárdenas, antigo companheiro de Chávez no MBR-200.
As duas tentativas de golpe, em fevereiro e novembro de 1992, a própria destituição de
Pérez do cargo de presidente da república, pela Corte Suprema, em maio de 1993 e as
infindáveis mobilizações e manifestações populares que ocorreram após 1989, revelavam a
situação insustentável que o país vivia e o grau de insatisfação do povo. Cabe destacar que
mesmo encarcerado por dois anos, Chávez passou a simbolizar a possibilidade de mudança
para o povo venezuelano.
No início de seu governo, em 1994, o então presidente Rafael Caldera, enfrentou uma
grave crise financeira que envolveu 60% do sistema bancário e provocando perdas em
28
torno de 20% do PIB. Nos dois primeiros anos de governo teve péssimos resultados na
economia, quando decidiu então, em abril de 1996, implementar a já citada Agenda
Venezuela. Concluiu seu mandato, em 1998, deixando a Venezuela “golpeada por altos
índices de pobreza” e com “un sentimiento muy generalizado en la población de que los
partidos políticos tradicionales, así como sus representantes, habían sido responsables de
la terrible crisis política, económica y social del país”. (MÁRQUEZ, 2003, p. 259).
Caldera entregou o cargo para Hugo Chávez Frias em 02 de fevereiro de 1999.
Antes de abordar o período do governo Chávez, que efetivamente nos interessa analisar de
forma mais detida, uma vez que é nele e dele que emerge nosso objeto de estudo, farei um
parênteses para abordar um tema, que se não diretamente, de forma indireta ajuda a
entender o processo que culminou com a eleição de Chávez para a presidência da
Venezuela, em dezembro de 1998. Trata-se da relação das forças armadas com a sociedade
civil e do seu papel na política e no projeto de desenvolvimento daquele país.
1.2 Particularidades das Forças Armadas na Venezuela
O exército venezuelano, de onde se originou o tenente coronel Hugo Chávez Frias, desde a
independência, em 1811, até a Constituição de 1961, teve uma presença política constante
na história nacional, quando, então, os civis garantiram seu poder sobre os militares,
tornando as forças armadas um ator obediente, não deliberativo e sem participação política,
sequer podiam votar nos processos eleitorais. Após esse interregno (1961 – 1999) de
subordinação absoluta ao poder civil, a Constituição de 1999, restitui o direito de voto aos
militares, eliminou a proibição de não deliberação do exército, reduziu o controle civil
sobre os militares e atribuiu novas funções para as forças armadas com papel ativo no
processo de desenvolvimento nacional, formando uma união cívico-militar sem
precedentes na história daquele país.
Ajuda a compreender essa relação, a origem popular dos membros das forças armadas e o
próprio processo de formação de seus membros. A partir de 1971, quando se introduziu o
Plano de Estudos Andrés Bello, voltado para os militares, estes puderam freqüentar cursos
29
de graduação e pós-graduação, sobretudo na área das ciências sociais, nas universidades
públicas do país, obtendo, assim, uma formação mais completa e permeada por uma visão
acadêmica mais do que militar. “Esto los dota de una mentalidad poco común si se les
compara con la formación militar de muchos de sus colegas latinoamericanos”. (MAYA,
2003, p. 101). Além disso,
los sectores militares venezolanos no quedaron al margen de la
dinámica en desarrollo. En esos años varios grupos dentro de las
Fuerzas Armadas nacionales venían reuniéndose para hablar de
política y criticar el orden existente (…). Entre ellos estaba, en el
Ejército, el joven Chávez y algunos de sus amigos, especialmente
Jesús Urdaneta Hernández y Felipe Acosta Carles, quienes desde
antes de 1982 habían tomado la iniciativa de constituirse en una
organización clandestina denominada Movimiento Bolivariano
Revolucionario 200 (MBR-200). (MAYA, 2003, p. 99).
Os membros dessa organização clandestina, que tinha como objetivo inicial resgatar os
valores da pátria, dignificar a carreira militar e lutar contra a corrupção, se reuniam “para
estudiar la historia militar y nacional, y discutían los problemas políticos de actualidad,
pero sin duda también tenían el propósito de incidir el los procesos políticos que se
estaban sucediendo”. (GOTT; ZAGO apud MAYA, 2003, p. 99).
O MBR-200 construiu sua ideologia tendo como base o pensamento de três figuras
históricas: Simón Bolívar, Simón Rodríguez18
e Ezequiel Zamora.19
Durante os anos de
1980, os membros desse movimento mantiveram contato com ex-guerrilheiros, dirigentes
de partidos de esquerda, que tinham sido derrotados na luta armada dos anos de 1960. “El
más importante de esos contactos, por su influencia en el pensamiento posterior de la
organización, fue con el Partido de la Revolución Venezolana (PVR),20
liderado por
18
Simón Rodrigues era mestre de Simón Bolívar e acompanhou todo o seu processo de formação
desde a infância até a idade adulta, inclusive na luta pela libertação dos países da América Latina, então
colônias das Espanha.
19 Caudilho da Guerra Federal
20 Um dos irmãos de Chávez, Adán, era membro desse partido.
30
Douglas Bravo, quien fuera el principal comandante guerrillero del occidente del país”.
(MAYA, 2003, p. 100).
De acordo com Maya (2003), esses contatos iniciais se transformaram em articulação
política, não sem conflito entre os civis e os militares que participavam do movimento
político para a tomada do poder. Um exemplo dessa divergência se deu por ocasião do
golpe de 1992, em que os ex-guerrilheiros queriam ter responsabilidades compartilhadas,
inclusive defendendo que a ação civil deveria anteceder a ação militar. Por sua vez, os
militares demonstraram não acreditar na capacidade dos civis de acompanhá-los na ação
para a tomada do poder, deixando-os de fora quando da tentativa de golpe em fevereiro de
1992.
Como se sabe, “el golpe de 4 de febrero fracasó militarmente al no lograr la captura del
presidente, ni someter posiciones militares estratégicas de Caracas”. Contudo, no
momento da rendição, Chávez falou pela televisão, pouco mais de um minuto, mas o
suficiente para dar “rostro a la insurrección, capturando el imaginario colectivo de
amplios sectores de la población”. A tentativa de golpe evidenciou como as políticas
neoliberais “estaban propiciando una fractura en el bloque hegemónico, pues las FFAA
mostraban, por primera vez en muchos años, estar divididas en su lealtad al sistema
político de 1958”. (MAYA, 2003, p. 105).
Las rebeliones militares de 1992 demostraran que algunos
oficiales, particularmente los fundadores del MBR, no habían
asimilado las doctrinas geopolíticas norteamericanas, ni habían
integrado por completo las estructuras del puntofijismo. Chávez y
sus colaboradores fueron la primera cohorte de oficiales que
asistieron a universidades civiles y no fueron a entrenarse contra la
insurgencia en escuelas norteamericanas. (HELLINGER, 2003, p.
60).
Durante sua permanência no cárcere (1992 – 1994), Chávez e seus companheiros de
movimento, tiveram tempo para estudar e planejar suas próximas ações, além de
estabelecer relações com personalidades importantes do país. “...recibieron continuamente
31
la visita de diferentes personajes de la vida social y política, quienes les transmitían su
solidariedad y apoyo. El MBR-200 se fue engrosando con civiles procedentes de todos los
caminos ideológicos”. (MAYA, 2003, p. 106).
Quando Rafael Caldera libertou os militares da prisão, impôs a condição de que saíssem
das forças armadas, mas manteve os direitos políticos. Dessa forma, assim que saiu da
prisão, Chávez anunciou que converteria o MBR-200,
…en una organización política a cuya cabeza aspiraría a la
Presidencia de la Republica. Es a partir de esta fecha cuando se
abre el desafío de convertir un movimiento que hasta ese momento
había sido predominantemente militar y por mucho tiempo
clandestino, en una organización política capaz de acceder al
poder por los canales institucionales. (MAYA, 2005, p. 166).
Com este objetivo, assim que saiu da prisão, começou a viajar pelo país, organizando o
movimento político fortemente comprometido com os ideais de Simón Bolívar e com uma
perspectiva essencialmente nacionalista. A base desse movimento era os “círculos
bolivarianos”, pequenos grupos que se reuniam para estudar, discutir política e pensar
estratégias de intervenção na sociedade. Conforme afirmado anteriormente, para concorrer
à presidência da República, em 1998, foi necessário criar um partido com outra
denominação e estrutura, o MVR, que acabou se sobrepondo e fazendo subsumir o
movimento original – MBR-200.
Desde 1992, o MBR defendia a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte,
“como instrumento para producir el cambio político profundo que demandaba la sociedad
dentro de una atmósfera sin violencia e en paz”.(MAYA, 2003, p. 108). E foi exatamente
nesta bandeira que Chávez apoio sua campanha eleitoral para a presidência da república,
em 1998, quando venceu seu principal opositor Henrique Salas Römer, por 56,2% a
39,97%. Para vencer as eleições, o MVR compôs uma ampla aliança alternativa, conhecida
como Pólo Patriótico, mas sem dúvida, o fato mais significativo “… fue la incorporación
32
del pueblo en el discurso político como sujeto popular, y como sujeto político que se
interpelaba”. (MAYA, 2003, p. 111).
De fato, o grande apoio que o presidente Chávez tem até os dias atuais está entre os setores
populares da sociedade, ou seja, a parcela da população que sofre de forma imediata e em
maior grau as conseqüências do processo de exploração e acumulação capitalista. Mas
também dentro do exército grande parte do contingente das Forças Armadas, apoiam o
presidente e defendem a participação do exército na execução de políticas públicas.
33
2. O GOVERNO DE HUGO CHÁVEZ FRIAS
2.1 O início do governo Chávez
Para se diferenciar dos seus antecessores, que não haviam cumprido com as promessas de
campanha, Chávez, no mesmo dia da posse, em 2 de fevereiro de 1999, assinou decreto
convocando um referendo popular para consultar sobre a eleição da Assembléia Nacional
Constituinte (ANC), que deveria elaborar a nova Constituição do país e redesenhar o então
sistema político venezuelano. A Assembléia Constituinte21
se instalou em nove de agosto e
a Constituição foi aprovada, três meses depois, por meio de plebiscito, em 15 de dezembro
de 1999. Com a nova Constituição, foram convocadas eleições para o ano seguinte de
todos os cargos eletivos, incluindo o do Presidente da República, o que ocorreu em julho
de 2000, quando Chávez venceu seu oponente, Árias Cárdenas, ex-membro do MBR-200,
por 57% a 36%.
Embora elaborada em um tempo relativamente curto, o processo constituinte permitiu a
participação e a colaboração da sociedade, por meio de organizações civis, que
promoveram seminários, debates e elaboraram propostas a serem incorporadas na nova
Carta Constitucional.
…en 1999 las organizaciones sociales lograron persuadir a la
ANC de la inclusión de un elevado porcentaje de sus proposiciones
en el texto constitucional. De las 624 propuestas formuladas a
través de las mesas de la Asociación de Organizaciones de la
Sociedad Civil, Sinergia, más de 50% fueron incorporadas en el
texto constitucional, de forma textual o con algunas modificaciones
de estilo. (GARCÍA-GUADILLA, 2003, p. 240).
21
Os partidários de Chávez conseguiram eleger 121 das 131 vagas da ANC. Da mesma forma, quando
das eleições de deputados para o parlamento unicameral, das 165 vagas, 105 pertenciam a organizações
favoráveis a Chávez. (MAYA, 2005).
34
A nova Constituição, como era de se esperar, incorporou as principais bandeiras do projeto
revolucionário do MBR, como a inclusão do voto dos militares, a ampliação dos
mecanismos de participação direta, os próprios poderes públicos, além de ampliar os
direitos sociais para os trabalhadores informais, índios e mães de família.
A seguir faremos uma rápida apreciação de alguns dispositivos constitucionais que
evidenciam mudanças significativas na configuração do Estado, na Venezuela, e indicam
que este passa de uma condição de Estado democrático representativo para um Estado
democrático participativo. Esta condição tem desdobramentos no campo das políticas
sociais, incluindo o processo de formação de trabalhadores em saúde, objeto deste estudo.
2.2 O Estado bolivariano em construção
Inicialmente, parece-nos fundamental destacar as principais mudanças que foram operadas
na letra da Constituição da República Bolivariana de Venezuela, de 1999, sem aprofundar
a comparação com a Carta anterior, de 1961. Nos Princípios Fundamentais da Constituição
Bolivariana, de 1999, em seu artigo 2° aparece a definição de Estado: “A Venezuela se
constituye em un um Estado democrático y social de Derecho y de Justicia”.
(VENEZUELA, 2000, p.3).
Esta concepção de Estado tem implicações e desdobramentos jurídicos e políticos para a
sociedade. A começar pela farta utilização do conceito de participação, que aparece em 56
artigos da referida Constituição. Assim, a participação associada ao conceito de
democracia participativa esclarece a concepção de protagonismo indicada no artigo 62 da
Constituição. “La participación del pueblo em la formación, ejecución y control de la
gestión pública es el medio necesario para lograr el protagonismo que garantice su
completo desarrollo, tanto individual como coletivo”. (VENEZUELA, 2000, p. 22).
Por este caminho, o protagonismo do povo se realiza como um processo de participação e
desenvolvimento individual e coletivo, particularmente dos que foram historicamente
excluídos de qualquer condição de cidadania. A Constituição estabelece ainda, as garantia
de participação por meio de mecanismos que expressam ações de democracia direta, tais
35
como, o referendo popular, que pode ser de caráter consultivo, revogatório e aprobatório,
as consultas populares e outras formas de auto-gestão, co-gestão e cooperativas em todas
as suas formas, incluindo as de caráter financeiro, as caixas de poupança, a empresa
comunitária e demais formas associativas, guiadas “por valores de la mutua cooperación y
la solidariedad.” (VENEZUELA, 2000, p. 24).
Perspectivas semelhantes constituíram as bases que fundamentaram a República, no início
do século XIX, quando a Venezuela se tornou independente, em 1811, mas que só se
efetivou em 1821, depois de uma duradoura guerra civil. No marco da nova Carta
Constitucional, as mesmas bases estariam permitindo a refundação da República, agora
como República Bolivariana de Venezuela.
A configuração do atual Estado venezuelano, ainda em transição, vai se consubstanciando
para além dos consagrados e reconhecidos poderes até hoje vigentes do liberalismo
clássico, na maioria das Nações, como o legislativo, o executivo e o judiciário. Compõem
também os poderes do Estado, o poder cidadão22
e o poder eleitoral. Em face da
incorporação destes dois novos poderes, no artigo 5º da Constituição há um
redirecionamento da forma como se constitui o poder de Estado democrático e
participativo, afirmando que “Los órganos del Estado emanam da la soberanía popular y a
ella están sometidos.” Complementa afirmando que “La soberania reside
intransferiblemente em el pueblo”, que a exerce diretamente por meio das diferentes
formas de participação direta, ou de forma indireta pelo voto. (VENEZUELA, 2000, p.
04).
A Constituição estabelece um modelo de democracia participativa e co-responsável, como
mecanismo para garantir a redistribuição do poder, a justiça social e a consecução de uma
sociedade de iguais em direitos e deveres. Por outro lado, propõe um regime econômico
solidário e sustentável, centrado na função social da economia e no papel do Estado como
regulador das relações econômicas.
22
O poder cidadão é exercido pelo Conselho Moral Republicano, integrado pelo Defensor do Povo,
Fiscal Geral e Controlador Geral da República.
36
Cabe ao Estado e à sociedade gerar as condições para o desenvolvimento, pois o povo deve
ser protagonista em seu desenvolvimento e no desenvolvimento da Nação. Nesse sentido, é
relevante destacar a novidade conceitual no cenário latinoamericano e mesmo mundial, em
que o paradigma de desenvolvimento inscrito na Constituição venezuelana não se
identifica com o concebido em outros momentos históricos como na década de 1940 e
1950, que em linhas gerais definia que os países menos desenvolvidos ou “em
desenvolvimento” não teriam condições de se desenvolver sem ajudas externas, fossem
elas de caráter administrativo, técnico-científico ou produtivo.
A partir desse entendimento de desenvolvimento, o que se observou do final dos anos de
1940 ao final dos anos de 1970, foi a concessão de empréstimos e eventuais doações para
os diversos setores da economia dos países da América Latina, mediante acordos bilaterais
com os Estados Unidos. Destacam-se os acordos da Aliança para o Progresso e, também,
os acordos multilaterais envolvendo o BIRD e a ONU/UNESCO, visando o
desenvolvimento desses países.
2.3 Desenvolvimento endógeno
A noção de desenvolvimento endógeno, expressa em documentos oficiais da Venezuela,
contraria as noções acima citadas, e reafirma um conceito de desenvolvimento que inclui o
desenvolvimento individual e coletivo do cidadão e não apenas crescimento econômico.
Entendem desenvolvimento endógeno como um enfoque e um modo para conseguir o
desenvolvimento próprio a partir de, para e por dentro. Neste sentido, toda proposta de
desenvolvimento, quer tenha um caráter regional ou nacional, deve se enraizar e se realizar
a partir de projetos de desenvolvimento local, chamados de “núcleos de desarrollo”.
Portanto, a partir de “razões e potencialidades internas” espera-se desenvolver um projeto
nacional que dê origem a uma nova sociedade. Esses elementos ajudam a entender
determinadas características presentes no projeto educacional para o país e na proposta de
formação dos profissionais de saúde, como a pertinência social, o enfoque local, o ensino
por meio do desenvolvimento de projetos, entre outros.
37
Ainda sobre a noção de desenvolvimento endógeno, afirma-se que este se baseia na
planificación y puesta en práctica de un desarrollo que fluya desde
dentro e hacia dentro. Busca crear y consolidar una estructura
productiva diversificada, eficiente y progresivamente
autosuficiente, que permita atender las necesidades de desarrollo
social y humano de las comunidades, en intercambio solidario con
otras comunidades y con la nación em su conjunto.
(VENEZUELA, 2006a, p. 20).
O que parece é que, diferentemente de toda a sua história republicana, este país está dando
os primeiros passos na tentativa de construir a integração física e econômica interna e
externa que ajude a promover o denominado desenvolvimento endógeno, apontando como
mecanismos de integração o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a Alternativa
Bolivariana para as Américas (Alba).
Além dessas relações econômicas, a Venezuela tem buscado estabelecer outras relações
com países como a China, o Irã e a Rússia, políticamente aliados, mediante a troca de
petróleo por tecnologia, visando produzir, a partir de dentro, condições que dê sustentação
ao projeto de desenvolvimento endógeno.
Tal definição política demonstra que este país pretende se impor de forma soberana, em
relação ao mercado mundial globalizado e monopolizado pelas corporações internacionais
produtivas e financeiras. Para operacionalizar o denominado desenvolvimento endógeno, o
governo Chávez, iniciou um processo de criação de condições infra-estruturais em todos os
setores da economia e sociais.
A noção de desenvolvimento endógeno está presente em documentos oficiais que orientam
a política de diferentes áreas e setores sociais. No entanto, a incorporação deste conceito à
área da educação, pode indicar a assimilação de uma perspectiva relativista do
conhecimento, que secundariza o conhecimento produzido e acumulado pela humanidade.
Esta discussão será retomada mais adiante nesse texto.
38
2. 4 Democracia participativa e protagônica
No que tange à ampliação da participação do povo nas decisões políticas e quiçá
econômicas do país, a nova Carta estabeleceu a democracia participativa e protagônica
como pilar da nova Constituição, incorporando mecanismos “más directos de intervención
popular, a fin de garantizar la coexistencia de ambas as formas de democracia,
representativa y participativa, y de estimular el ejercicio de esta última por parte de las
organizaciones sociales más que por los partidos políticos tradicionales”. (GARCÍA-
GUADILLA, 2003, p. 232).
Em relação à democracia participativa, na Venezuela, a mesma tem sido interpretada como
“o perfeccionamiento de la democracia representativa mediante mecanismos de
participación tales como el referendo, las asambleas de participación o la rendición de
cuentas. Ello significa que una democracia participativa será también representativa”.
(GARCÍA-GADILLA, 2003, p. 232). Já o protagonismo do povo, segundo a nova Carta, se
dará na formação, execução e controle da gestão pública.
Conforme expresso no Artigo 70o da Constituição da República Bolivariana de Venezuela,
tanto a participação como o protagonismo podem se dar no campo político, por meio da
eleição de cargos públicos, referendo, consulta popular, revogação de mandato23
,
iniciativas legislativas, constitucional e constituinte e assembléia de cidadãos e cidadãs24
;
e, no campo social e econômico, por meio das instâncias de atenção ao cidadão,
autogestão, co-gestão, cooperativas, caixas de poupança, empresas comunitárias, ou outras
formas associativas. (VENEZUELA, 2000).
Para Álvarez (2003, p. 197), essas inovações, introduzidas na Constituição, não se
configuram como uma mera modernização da democracia representativa, “… el poder
constituyente persiguió la trasformación revolucionaria de la democracia formal en una
23
Todos os cargos eletivos podem ser revogados, uma vez transcorrido metade do mandato. Para
ocorrer o referendo é necessário ter a assinatura de pelo menos 20% dos eleitores, não pode ser feita mais de
uma vez para o mesmo ocupante do cargo e será revogado o mandato se igual ou maior número de votantes
que elegeu o funcionário votar pela revogação do mandato e pelo menos 25% dos inscritos para votar
exercerem o direito de voto.
24 As “asambleas de ciudadanos y ciudadanas cuyas decisiones serán de carácter vinculante, confiere
al pueblo la potestad de imponer su mandato al gobernante”. (ÁLVAREZ, 2003, p. 198).
39
forma original de gobiernos que ha otorgado al pueblo un papel `protagónico’”. Para esse
autor,
El “protagonismo” es esencialmente la participación política
dirigida a los siguientes dos fines: 1) someter a los gobernantes al
mandato popular revocatorio y 2) propiciar el autogobierno del
pueblo mediante la participación directa en el proceso de
formación de las leyes, en los referendos consultivos, derogatorios
y aprobatorios, en las consultas, la iniciativa constitucional y
constituyente, y en la asamblea de ciudadanos y ciudadanas.
(ÁLVAREZ, 2003, p. 197).
Ainda no âmbito da Constituição, para grandes males, grandes remédios. Como havia certo
consenso na sociedade venezuelana de que o então sistema político e a democracia
representativa eram os grandes responsáveis pela crise que tinha se abatido sobre o país, de
um regime “partidocrático de la Constitución de 1961 se ha pasado ahora a un régimen
formalmente sin partidos”. (ÁLVAREZ, 2003, p. 194). Na atual Constituição, os partidos
políticos deixaram de existir juridicamente, o termo partidos foi substituído pela expressão
“associação com fins políticos”. Expressão “carente de tradición en la práctica política
venezolana, y sin soporte teórico alguno en la ciencia política y en el derecho público,
pero reveladora de la pretensión de suprimir la hegemonía política de los partidos”.
(ÁLVAREZ, 2003, p. 194).
2.5 A continuidade do governo Chávez
Poderia se supor que a grande batalha de Chávez, no governo, seria a elaboração da nova
Constituição, incorporando as mudanças que julgava necessárias para implementar o
Projeto Bolivariano, que de início, segundo o próprio Chávez (entrevista dada à Rede
Venezolana de Televison, em 01/12/2006) se assemelhava a uma terceira via, estilo Tony
Blair. Contudo, apesar da debilidade e desarticulação inicial da oposição, a trégua foi
relativamente curta. Desde o início do governo, Chávez não teve sossego, mas também não
40
o deu aos seus adversários; protagonizou inúmeras e diferenciadas formas de
enfrentamento com a oposição, desde manifestações de rua, golpe de Estado, referendo
revocatório, até greve, com paralisação completa da produção de petróleo, sem contar o
confronto cotidiano com a mídia.
A luta pela construção de uma nova hegemonia, na Venezuela, não se iniciou nem se limita
ao governo de Chávez, mas, sem dúvida, ganhou contornos nítidos e maior visibilidade a
partir de sua posse e, particularmente, após as primeiras ações pautadas na nova
Constituição. “Casi todas las propuestas del gobierno generaron un debate y una
oposición intensos, desde la redacción de la nueva Constitución hasta la política
educativa”. (ELLNER; HELLINGER, 2003, p. 273).
Os protestos massivos da oposição e a resposta, no mesmo tom, dos defensores do Projeto
Revolucionário Bolivariano, se iniciaram no final de 2001, quando a oposição, liderado
pela Fedecamara25
, conseguiu organizar com êxito, um “paro cívico” no dia 10 de
dezembro desse ano, congregando os descontentes com o conteúdo nacionalista da
Constituição, com a ampliação dos direitos sociais e com as novas leis que ampliavam o
papel do Estado como regulador da vida econômica e social. “A partir de entonces
comenzaría una espiral de confrontaciones entre éstas [fuerzas sociales] y el gobierno
que desembocaría en varios episodios violentos”. (MAYA, 2005, p. 263).
Os primeiros meses de 2002 foram de intensas manifestações de rua de ambos os lados, até
que em 11 de abril, a oposição, liderada pela Fedecamara com apoio da Central de
Trabalhadores da Venezuela (CTV) e de alguns setores militares, levou a cabo um golpe de
Estado, cujo catalisador imediato da rebelião foi a tentativa de Chávez de mudar os
diretores da PDVSA e assumir, de fato, o controle da política petroleiro do país.
(HELLINGER, 2003). Contudo,
a pesar de un silencio de los medios, la noticia de un golpe y una
resistencia inicial al mismo corrió por los barrios más pobres,
especialmente en el oeste de la ciudad, y la gente se concentró
25
Principal organização de associações empresariais da Venezuela.
41
alrededor del palacio presidencial para demandar el regreso de
Chávez. Pese el apoyo de EEUU al golpe, los diplomáticos se
rehusaron a reconocer el nuevo gobierno. Parte de la oposición le
retiró su apoyo activo después del anuncio de la Junta Interina de
la suspensión de partes de la Constitución. Menos de 48 horas
después de comenzado el golpe, Chávez regresó como presidente.
(HELLINGER, 2003, p 72).
Uma série de outros enfrentamentos ocorreram ao longo do ano de 2002, até que em 2 de
dezembro desse mesmo ano, iniciou-se a quarta e mais duradoura greve, conhecida como
paro-sabotaje petrolero, que em última instância pretendia derrubar o presidente. Com a
ajuda de parte dos trabalhadores da indústria petroleira, que não tinham aderido à greve, de
petroleiros aposentados, das forças armadas e do apoio de setores populares, que se
manifestaram realizando uma marcha “multitudinária”, em 23 de janeiro de 2003 (dois
meses depois de iniciada a greve), o governo conseguiu o controle da indústria e a
retomada da produção do petróleo. Em conseqüência, foram demitidos, por abandono de
emprego, 18.000 dos 40.000 petroleiros contratados, contando entre trabalhadores e toda a
diretoria da PDVSA. Para Maya (2005, p. 274).
Diferente del golpe de Estado, el paro petrolero produjo un
resultado político más claro en la lucha hegemónica a favor de las
fuerzas del gobierno (…) Al rescatar el Estado su capacidad de
control sobre la industria, pudo convertirla en instrumento central
de políticas económicas y sociales orientadas por el proyecto del
gobierno.
A partir de 2003, após o fim do paro petrolero e com o controle efetivo sobre os recursos
do petróleo, o governo Chávez mudou de rumo e deu início a uma série de políticas sociais
de caráter massivo, denominadas de missões26
, que foram e continuam a ser
26
São exemplos de missões: as Missões Educativas, Misión Cultura, Misión Ciencia, Misión Barrio
Adentro e Misión Milagro (saúde), Misión Negra Hipólita (desasistidos), Misión Habitat, Misión Mercal
(alimentação subsidiada), Misión Vuelvan Caras (inclusão no processo produtivo), Misión Guaicaipuro
(indígena), Misión Miranda (defesa da soberania nacional numa aliança cívico-militar), Misión Arbol
(produção e conservação na área rural), Misión Identidad (estrangeiros), etc.
42
implementadas com recursos advindos diretamente da PDVSA. Em grande medida esses
recursos não se submetem aos instrumentos tradicionais do Estado, como o orçamento
geral da união e os conseqüentes mecanismos de controle da utilização de recursos
públicos.
Dentre essas políticas sociais, orientadas para a implementação do Projeto Revolucionário
Bolivariano, está a criação da UBV, que simbolicamente ocupa o que foi uma das
principais sedes da antiga direção da PDVSA, em Caracas. Os argumentos que sustentaram
a criação dessa universidade eram de que:
la Educación Superior en Venezuela se había convertido en el
privilegio al que accedían minorías de la población del país y de la
que se excluía a una gran cantidad de bachilleres con el potencial
suficiente para desarrollar un sin número de actividades
profesionales. Consecuencia de un sistema injusto, clasista, que ha
brindado el conocimiento a pequeños grupos, haciendo de éste,
una pertenencia utilizada en muchos casos para el provecho
personal, privado, la exclusión se transforma a su vez en
dominación y reproducción de los sistemas políticos que así la
conciben y financian, profundizando así las brechas y enormes
diferencias sociales. (UBV, 2007, p. 01).
Com a criação da UBV e da Missão Sucre27
, o governo pretendeu dar uma nova direção ao
ensino de terceiro grau, no sentido de formar profissionais vinculados com as
comunidades, comprometidos com o projeto de “refundação do Estado venezuelano” e
com a reconstrução da “Venezuela Bolivariana”. Para isso, seria preciso formar “al nuevo
hombre com rasgos humanísticos, comprometidos e solidários”. Essa formação, conforme
documento que define as bases, critérios e pauta para a estrutura curricular dos programas
de formação da UBV, deve se pautar em um “nuevo modelo educativo capaz de generar
conocimiento pertinente, relevante y creativo para realizar aportes significativos a la vida
nacional”. (UBV, 2003, p. 15).
27
A Missão Sucre é uma das três missões educativas, que se constituem em políticas sociais massivas
voltadas para os excluídos dos três níveis de ensino. Missão Robinson - alfabetização; Missão Ribas -
continuidade da escolaridade e ensino profissional e Missão Sucre - formação em nível superior.
43
Estes pressupostos orientaram e orientam a criação de cursos de formação em nível de
graduação na UBV, que inicialmente se constituíram de dez: comunicação social, estudos
jurídicos, gestão ambiental, gestão social do desenvolvimento local, agroecologia,
arquitetura, estudos políticos, informação para a gestão social e gestão em saúde pública.
O curso de Medicina Integral Comunitária (MIC) faz parte da oferta de cursos
municipalizados da Missão Sucre, e é coordenado por médicos cubanos, que também são
os responsáveis pelo ensino ministrado e pelo acompanhamento no campo prático.
Observe-se que todos os cursos propostos buscam formar profissionais que possam
contribuir para a implementação do Projeto Revolucionário Bolivariano, quer seja para
responder a problemas críticos como o de habitação (arquitetura) e saúde (gestão em saúde
pública e medicina integral comunitária); quer para dar conta de necessidades específicas
do Estado em transição (estudos jurídicos e estudos políticos), do projeto de
desenvolvimento endógeno (agroecologia, gestão ambiental, gestão social de
desenvolvimento local) ou da nova dinâmica de participação protagônica que se pretende
instituir (informática para a gestão social e comunicação social).
O conjunto de cursos, presentes na sede da UBV, localizada em Caracas, não se reproduz
igualmente em todas as regiões do país. Pelo próprio entendimento de desenvolvimento
endógeno, que prioriza as potencialidades e necessidades das comunidades locais, a
definição de quais cursos devem ser ofertados depende do planejamento e das demandas
locais, daí a existência de uma política de municipalização da educação, em todos os
níveis, que não significa a transferência da responsabilidade de financiamento nem a
ausência de uma articulação nacional, mas a predominância de critérios locais na definição
da política.
O entendimento do papel do ensino superior no processo de transformação da sociedade
venezuelana é expresso por um dirigente da UBV nos seguintes termos:
Construir el Poder Popular en nuestra naciente República
Bolivariana, pasa por la refundación de todas las políticas
públicas sobre otro propósito; en particular la Educación
44
Superior, la cual constituye un instrumento que posibilita el cambio
de mentalidad necesario para rescatar el valor intrínseco y social
de todos y cada uno de los venezolanos. (EGLEE, 2006, p. 01).
De acordo com o expresso acima, a refundação da república requer uma nova concepção
de política social, que rompa com o instituído até então e ajude a edificar as bases de um
novo Estado Democrático e Social de Direito e de Justiça, conforme expresso na
Constituição de 1999. Se há elementos claros, no plano do Estado, que indicam a sua
situação de transição, as políticas sociais dele emanadas também refletem esse mesmo
processo. Chama a atenção as missões das áreas de educação e saúde, como a Misión
Robinson I e II, Misión Ribas e Misión Sucre, e a Misión Barrio Adentro, que se iniciaram
em meados de 2003. A Misión Robinson I em um ano e meio de atuação alfabetizou um
milhão e meio de pessoas, tornando a Venezuela livre de analfabetismo nos parâmetros da
UNESCO. A Misión Ribas, voltada para os excluídos do nível médio de ensino, já formou
perto de 200 mil e contava, em fins de 2006, com mais de 700 mil alunos vinculados. A
Misión Sucre, destinada àqueles que não conseguiram entrar nas universidades tradicionais
do país, possuía, em 2006, cerca de 500 mil integrantes. Já a Misión Barrio Adentro, com a
colaboração de mais de 20 mil profissionais cubanos da área da saúde, conseguiu
universalizar o acesso à atenção básica à saúde em todas as regiões do país.28
Dado as características do objeto do presente estudo, ou seja, de se inscrever no âmbito das
políticas sociais, portanto, uma estratégia de governo, uma atribuição do Estado que
responde a demandas de segmentos da população afetados por uma expressão da
denominada “questão social”, faz-se necessário compreender a concepção de política
social do governo Chávez, para melhor entender em que perspectiva se insere a política de
formação de profissionais de saúde naquele país.
28
Talvez esses números façam mais sentido se considerado que a Venezuela tem uma população que
não ultrapassa os 27 milhões de habitantes.
45
2.6 A concepção de política social do governo Chávez
O fracasso econômico e social das políticas neoliberais, implementadas em toda a América
Latina na última década do século passado e início deste, recolocou no debate teórico e
político o tema do social, que estava subsumido na discussão em torno do desenvolvimento
econômico, em sua versão mais simplificada. O retorno à velha “questão social” e a
necessidade de se ocupar dela, tanto é retomada por organismos internacionais, que pouco
tempo atrás impuseram severos planos de ajuste estrutural para que se mantivesse o
pagamento da dívida externa, como por governos de esquerda que assumiram o poder
sustentados em propostas que prometem a resolução dos graves problemas sociais
exacerbados com as reformas neoliberais. Contudo, não basta advogar em prol do social, é
necessário identificar o papel dado às políticas sociais e o lugar que elas ocupam no projeto
de sociedade que cada um defende. Por isso, conhecer a concepção de política social que
orienta as propostas de intervenção na realidade, parece ser um procedimento importante a
ser feito. Com esse intuito é que faremos uma breve incursão sobre esse tema, tentando
apreender o entendimento de política social presente em documentos do governo Chávez, o
que deve contribuir para o entendimento do nosso objeto de estudo.
Existe uma diversidade de definição do que seja política social, a nosso ver o conceito que
melhor elucida é o de Vieira (1992), que entende as políticas sociais como constructos
históricos que resultam de contradições no interior da sociedade, assumindo características
próprias em cada contexto em que se efetivam. Assim, o trato de qualquer política social
deve partir de análises que contemplem as dimensões do econômico, do político e do
social, em sua especificidade histórica. As políticas sociais são também entendidas, por
este autor, como estratégias de governo que normalmente se exibem na forma de planos,
projetos e programas, por meio dos quais é possível identificar as diretrizes relativas à
determinada área ou setor social.
Assim, buscou-se identificar a concepção de política social do governo Chávez, no
documento denominado Líneas Generales del Plan de Desarrollo Económico y Social de
la Nación 2001 -2007, primeiro plano da era constitucional bolivariana, em que se
consolidam as bases para o novo projeto de país. Trata-se de um plano para uma década
46
(2001 – 2010), denominada de Década de Prata, que seria uma fase prévia, de transição
para a Década de Ouro (2011 – 2020), que “será la realización de la Revolución
Bolivariana como manifesta expresión del porvir de prosperidad y redención para el
pueblo venezolano”. (VENEZUELA, 2001, p. 09). Este plano assume as diretrizes e os
princípios já presentes no Programa de Gobierno revolucionario, divulgado por ocasião do
golpe encabeçado por Chávez em 1992, na Agenda Alternativa Bolivariana, de 1996, e na
Propuesta de Hugo Chávez para Transformar a Venezuela, de 1998.
No documento que apresenta as linhas gerais do Plano de Desenvolvimento Econômico e
Social da Nação, partindo do reconhecimento da divida social que o Estado tinha com a
população, o governo apresenta um novo paradigma de desenvolvimento, visando alcançar
o “equilíbrio social”. Entendendo equilíbrio como o balanço adequado entre o interesse
individual e o interesse social a partir de uma lógica racional e justa de distribuição da
riqueza. Portanto, um modelo de desenvolvimento, denominado de “Economia Social”, o
qual inclui a satisfação das necessidades da população, busca garantir a distribuição
eqüitativa dos benefícios econômicos para todos e pretende ampliar a democracia para a
esfera do mercado e da economia. O novo modelo econômico, que se pretende
diversificado e sustentável, fundamenta-se no equilíbrio das forças e fatores que participam
do desenvolvimento nacional, traduzindo “un modelo de política social diametralmente
opuesto al enfoque neoliberal”. (VENEZUELA, 2001, p. 14).
O desenvolvimento, nesta perspectiva, exige uma participação corresponsável e
democrática de todos os setores sociais, na produção e nas decisões políticas, de forma
“soberana e autônoma”. Para o primeiro momento da revolução (2001 - 2007), a noção de
equilíbrio, segundo o documento, se expressa em cinco dimensões: o equilíbrio econômico,
o equilíbrio social, o equilíbrio político, o equilíbrio territorial e o equilíbrio internacional,
que se articulam para alcançar o equilíbrio múltiplo. É no âmbito da proposta de equilíbrio
social que vamos encontrar as noções que fundamentam as diretrizes das políticas sociais
do governo Chávez.
A partir da crítica às políticas focalizadas e de corte compensatório, características do
projeto neoliberal, propõe, por meio do Plano de Eqüidade Social (PES), a defesa da
eqüidade a partir de uma visão universalista, “universalização com eqüidade”, que se
47
transforma na “expresión superior de justicia que garantiza a todos y todas el ejercicio de
derechos, dando a cada cual según su necessidade y pidiendo de cada cual según su
capacidad”. Isso para fortalecer o público como espaço de “apropiación por, del y para el
interés colectivo” e como instrumento de poder cidadão, que se constitui em um novo
poder capaz de fazer valer a participação de todos na formulação, execução e avaliação das
decisões públicas. (VENEZUELA, 2001, p. 92).
Em síntese, o alcance da eqüidade social se daria por meio de três objetivos básicos: (1)
universalização dos direitos com garantia de eqüidade; (2) redução das brechas em relação
à riqueza, renda e qualidade de vida; e (3) apropriação do público como espaço de interesse
coletivo e construção de cidadania, que deve se traduzir em estratégias para superar as
iniqüidades, priorizando as necessidades sociais, reduzindo as diferenças e aprofundando a
descentralização para novos atores sociais. (VENEZUELA, 2001).
Embora a busca da justiça social seja orientada pelos princípios da universalidade, da
eqüidade, da participação e da corresponsabilidade, a categoria central presente no trato
das políticas sociais do governo Chávez é a eqüidade, transformada em nova ordem de
justiça social e base material da sociedade. Parece ser essa a categoria que articula e deve
possibilitar a unidade entre o social e o econômico.
De acordo com Maingon (2004, p. 64),
en el PES hay uma concepción de política social novedosa para
Venezuela que rompe com el viejo paradigma que se venia
arrastando desde décadas anteriores. Los ejes conceptuales en los
que se apoya la estrategia planteada podrían convertirse em las
directrices a seguir para iniciar un proceso que tenga como
objetivo el levantar las bases del cambio y la conformación de un
pensamiento social que se aboque a la construcción de uma
cidadania fundamentada em la garantía de derechos sociales, la
mejora de la calidad de vida y el reconocimiento expreso de los
sujetos de estos derechos.
48
A autora conclui afirmando que “tragicamente”, essas discussões desapareceram da agenda
do governo. Diferente disso, penso que as políticas sociais de caráter massivo, colocadas
em prática pelo governo a partir de 2003, as missões traduzem a lógica contida na
categoria eqüidade29
associada à de justiça social, ou seja, a idéia de que deve-se superar as
iniqüidades por meio de políticas públicas que levem em consideração as necessidades de
cada um. Como as necessidades sociais são maiores entre os mais necessitados, nessa
lógica as políticas sociais devem contemplar prioritariamente os excluídos.
Tendo como pressuposto a universalização com eqüidade, as missões seriam uma novidade
na definição das políticas sociais do país e se
han convertido en el núcleo de la ofensiva estratégica del proyecto
político bolivariano. Se trata de superar las iniquidades sociales y
en forma simultánea ir creando las condiciones para las grandes
transformaciones sociales y así, avanzar en la construcción de una
nueva sociedad que consolide los ideales de emancipación de
Simón Bolívar y promueva la consolidación de un modelo
desarrollo endógeno que supera las limitaciones y perversiones del
modelo neoliberal. (VENEZUELA, 2005b, p. 02).
Em princípio a eqüidade parece conter uma lógica adequada, contudo, como as categorias
não são puras abstrações, têm correspondência no mundo real, algumas questões podem ser
levantadas a partir do que efetivamente tem se observado, em países da América Latina,
como resultado da adoção do conceito de eqüidade nas políticas sociais, a partir das
orientações de organismos internacionais como o Banco Mundial, a Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), a Organização
Panamericana de Saúde (OPS), a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal),
entre outros.
29
Para maiores aprofundamentos sobre a categoria equidade consultar a tese de doutorado de Silvia
Marta Porto: Eqüidade na Distribuição Geográfica dos Recursos em Saúde: Uma contribuição para o caso
brasileiro. Rio de Janeiro: Fiocruz/ENSP, 1997.
49
A eqüidade tem sido entendida como a forma de acesso a bens e serviços públicos e, em
face de sua associação com a justiça social e o combate à pobreza, acaba compondo um
tipo de política social fragmentada, caracterizada pela racionalização de recursos,
focalização (nos pobres) e pela seletividade (para determinados grupos). Além disso, nos
marcos de uma sociedade dividida em classes sociais, onde os meios de produção não
foram apropriados coletivamente, ou seja, permanecem nas mãos de uns poucos que
exploram os demais em proveito próprio, penso que é impossível colocar em prática a
utopia de Marx - a cada um segundo a sua necessidade e de cada um de acordo com sua
capacidade. Por isso, não basta a inclusão do termo universalização à categoria eqüidade –
universalização com eqüidade – para modificar a racionalidade instituída em torno dela, ou
os problemas que sua aplicação derivam, como por exemplo, o próprio entendimento de
necessidade, ou quem deve definir o que e quais são as necessidades sociais a serem
atendidas.
Assim, a questão que se coloca sobre a eqüidade é se o conceito em si é problemático, ou o
problema estaria na forma com que foi apropriado e traduzido no âmbito das políticas
sociais na última década? E se a eqüidade, mesmo nos marcos de uma sociedade de classes
fosse utilizada como princípio não só na hora de oferecer serviços públicos, mas,
sobretudo, no momento da arrecadação de fundos por parte do Estado, cobrando mais de
quem tem mais?
De posse do que se constitui o entendimento de política social do governo Chávez e do
papel que essas políticas devem desempenhar no projeto de transformação da sociedade,
passaremos a análise de aspectos da formação na UBV, em particular o processo de
formação de profissionais de saúde.
50
3. A FORMAÇÃO DE TRABALHADORES EM SAÚDE NA UBV
O que vamos expor nesta parte do texto estará centrado na identificação de relações
existentes entre a formação de profissionais da área da saúde, no âmbito da Universidade
Bolivariana de Venezuela e a implementação do Projeto Revolucionário Bolivariano, e no
interior da proposta de formação os aspectos políticos, conceituais e pedagógicos, que
decorrem de um dado entendimento de educação e do papel da formação escolar e não
escolar no processo revolucionário. Embora este trabalho esteja restrito à análise da
formação de profissionais da área da saúde, há o entendimento de que os fundamentos
teóricos e a concepção de educação, presentes nestas propostas, não se diferenciam dos que
sustentam o projeto educacional bolivariano como um todo.
3.1 A UBV e o Projeto Revolucionário Bolivariano
Para proceder a análise dos pressupostos teórico-metodológicos foram utilizados
documentos oficiais do governo, da UBV e o Programa de Formación de Grado – Gestión
em Salud Pública, por se entender que este traduz o pensamento que perpassa todos os
programas de formação daquela universidade.
No Programa de Formación de Grado – Gestión em Salud Pública está expresso que a
proposta de formação, na UBV, se pauta em um “nuevo modelo educativo capaz de
generar conocimiento pertinente, relevante y creativo para realizar aportes significativos
a la vida nacional”. (VENEZUELA, 2005b, p. 02).A orientação geral para os desenhos
curriculares é no sentido de “vincular el programa con el desarrollo integral del país y por
tanto a desarrollar la identidad del egresado como profesional altamente cualificado,
éticamente responsable y ciudadano comprometido con la consolidación de nuestra
democracia”. (VENEZUELA, 2005b, p. 03). Tal entendimento compõe as “Bases,
Criterios y Pautas para el diseño curricular de los Programas de Formación de la UBV”
(2003), portanto, são princípios que orientam a estruturação de todos os cursos da
instituição.
51
A justificativa para essa orientação na formação acadêmica, é dada a partir do
entendimento de que o projeto de país que se pretende construir “requiere una apuesta a
un proyecto educativo pensado para el mediano y largo plazo. Hay que pensar que los
republicanos del mañana, serán los que deben estar armados ética, técnica y
humanísticamente para transformar su destino y el de la república”. (VENEZUELA,
2005b, p. 07).
Nesse sentido, a formação a ser realizada não se pretende neutra, ao contrário, a vinculação
do processo formativo a um determinado projeto de sociedade é justificado como elemento
fundamental para operar as transformações no campo social e econômico, tendo a eqüidade
e a democratização da educação superior como “los hilos conductores del proyecto
educativo de la revolución”. (VENEZUELA, 2005b, p. 04). Neste aspecto, entendemos
que não cabe nenhuma consideração valorativa até porque não acreditamos que a educação
seja neutra, em qualquer circunstância ou realidade histórica.
A vinculação entre a formação no âmbito da UBV e o projeto revolucionário, está expressa
na compreensão de que “era imposible pensar en iniciar un nuevo proyecto de país con el
modelo educativo de nuestras universidades tradicionales” (VENEZUELA, 2005b, p. 04),
portanto, neste momento histórico a UBV “tienen la gran misión de preparar a la
generación de nuevos ciudadanos y nuevas ciudadanas, que encarnen el espíritu
republicano, contenido en el proyecto de país, con alto contenido ético y de compromiso
social”. (VENEZUELA, 2005b, p. 04).
Com este entendimento do papel da formação educacional no processo de transformação
da realidade social, a vinculação deve se dar em todos os aspectos acadêmicos. “Se
pretende el desarrollo y la aplicación del proyecto bolivariano en los contenidos y formas
en consonancia con las transformaciones sociales y económicas que se producen en la
vida de nuestra sociedad”. (VENEZUELA, 2005b, p. 04).
52
3.2 Pressupostos teórico-metodológicos que dão sustentação à formação acadêmica
na UBV
Como resultado da crítica ao modelo de formação anterior, que teria elitizado o ensino em
todos os níveis de formação, provocando a exclusão de um grande contingente de jovens
(apenas quatro entre 100 jovens das classes populares conseguia entrar na universidade
pública), o projeto educacional bolivariano propõe mudanças na forma e no conteúdo do
processo de formação. “el modelo educativo que se pretende impulsar se plantea el
desarrollo de estrategias que privilegien los cuatro pilares de un nuevo tipo de educación:
aprender a conocer, aprender a hacer, aprender a vivir juntos y aprender a ser”.
(VENEZUELA, 2005b, p. 04).
Este mesmo entendimento está presente em outros documentos do governo que tratam da
educação em geral ou da formação em específico, como o Programa Nacional de
Formación de Educadores y educadoras:
La integralidad y la progresividad articulan de manera coherente y
continua los ejes del aprender a convivir, saber y hacer que se dan
a través de los niveles educativos correspondientes a cada período
de vida, para formar como síntesis al ser social como el(la)
nuevo(a) republicano(a) bolivariano(a). (VENEZUELA, 2004, p.
13).
As orientações pedagógicas explicitadas acima, assumidas como elementos centrais da
formação na UBV e no atual modelo educacional venezuelano, têm origem em organismos
internacionais como a UNESCO, e foram apresentadas de forma mais acabada no
Relatório da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI, denominado
“Educação um Tesouro a Descobrir”, coordenado por Jacques Delors e lançado
publicamente pela UNESCO, em 1996. Neste relatório, que pretende “traçar orientações
válidas, tanto em nível nacional como mundial” a educação aparece com uma perspectiva
redentora e salvacionista, responsável pelo desenvolvimento pessoal e social e mediadora
das relações entre indivíduos, grupos e nações, visando à “construção dos ideais da paz, da
53
liberdade e da justiça social” (DELORS et al, 2000, p.11). Note-se que a atribuição dada
para a educação aponta, de um lado, para a resolução de problemas insolúveis, decorrentes
da própria lógica de acumulação capitalista, e de outro, o mais fundamental, melhorar as
relações intra e entre países com o propósito de manter a atual dinâmica de produção e
reprodução da vida material e espiritual dos homens.
Não cabe aqui uma análise do conteúdo do relatório da UNESCO, o que já foi feito por
muitos estudiosos da educação no Brasil, apenas destacar algumas “orientações” que
também são encontrados nos programas de formação de profissionais da área da saúde, na
Venezuela, visando identificar de que maneira estas “orientações” foram traduzidas nestes
documentos e conseqüentemente no Projeto Bolivariano de educação, tentando evidenciar
nexos e contradições presentes neste complexo histórico. A partir disso poderemos levantar
algumas questões sobre possíveis desdobramentos da incorporação/tradução das
“orientações” da UNESCO, na educação, para o projeto mais geral de transformação da
sociedade que o governo de Hugo Chávez e grande parte da sociedade venezuelana estão
decididos a operar.
Considerando que na Venezuela a opção pela democracia, como via de transformação da
sociedade, é quase consenso nacional, uma vez que ela fundamenta o processo
revolucionário em curso, cabe uma análise da forma como se apresenta, no âmbito do
relatório da UNESCO, a relação entre educação e democracia, e se a noção de democracia,
contida no referido relatório, se assemelha àquela presente na Constituição e em
documentos do Projeto Bolivariano e da UBV.
A partir de uma análise da complexidade do mundo moderno, dos inúmeros problemas
enfrentados pela humanidade que vão desde as guerras, até questões ecológicas, culturais,
étnicas, etc., Delors, na apresentação do relatório, estabelece uma relação direta entre
democracia, entendida como “participação da vida em comunidade” e o “aprender a viver
juntos”, um dos pilares da UNESCO. O relator parte da pergunta: como viver juntos nesta
aldeia global, se não somos capazes de viver em comunidades “naturais” como a
vizinhança, a aldeia, a cidade, a região ou a nação?
54
Com esta preocupação, no relatório é dedicado um capítulo para discutir a relação entre
coesão social e democracia, onde se afirma que a democracia corresponde a um “sistema
político que procura assegurar, através do contrato social, a compatibilidade entre
liberdades individuais e uma organização comum da sociedade”, que neste momento
estaria sendo ameaçada pela desorganização das sociedades e pela ruptura dos laços
sociais. Portanto, caberia à educação, que deve ocorrer ao “longo de toda a vida do
cidadão”, não só preparar cada indivíduo para o convívio e exercício dos seus direitos e
deveres, mas “construir uma sociedade civil ativa que, (...) permita cada um assumir sua
parte de responsabilidade como cidadão a serviço de um destino autenticamente solidário”.
(DELORS, 2000 p. 53). Conclui afirmando que a educação “confunde-se, até, com
democracia, quando todos participam na construção de uma sociedade responsável e
solidária, respeitosa dos direitos fundamentais de cada um”. (DELORS, 2000 p. 63).
Por tudo isso, no relatório afirma-se que “aprender a viver juntos” deve ser um processo
que se inicia no nível local, e está intimamente relacionado com a decisão de cada um, ou
seja, trata-se de uma decisão de caráter subjetivo. Esses pressupostos justificam a visão
localista da educação que o relatório apresenta. Parece que o local, no relatório, se
apresenta com uma perspectiva distinta daquela assumida no Projeto Bolivariano, quer seja
no denominado desenvolvimento endógeno, conforme vimos anteriormente neste texto, ou
na municipalização da educação como veremos a seguir. Da mesma forma, o entendimento
de democracia e os mecanismos de participação, presentes na Constituição da Venezuela,
superam em muito o entendimento de democracia da UNESCO.
Em relação à essa perspectiva localista, na apresentação do relatório da UNESCO, Delors
salienta que para “aprender a viver juntos” a humanidade teria que superar algumas tensões
existentes. Entre elas estaria a tensão entre o nível global e o local, ou seja, como tornar-se
cidadão do mundo sem perder as raízes, sem abandonar a cultura própria. Outra tensão
estaria entre o universal e o singular, ou como compatibilizar a cultura mundializada,
preservando a cultura local e as tradições.
Sobre a questão local, em documento da UBV está expresso que a universidade e os
programas de formação deverão assumir:
55
la estrategia de la municipalización de la educación superior,
enfatizando en su desarrollo la redimensión de lo regional, lo local
teniendo como referencia las necesidades educativas y
potencialidades reales de la población, sin desvincularla de su
contexto asegurando la pertinencia social y la preservación del
arraigo cultural. (VENEZUELA, 2005b, p.04).
Note-se que no documento não apenas se assume o nível local como lócus privilegiado
para a definição do processo de formação, na medida em que este precisa considerar as
necessidades e potencialidades da comunidade e ter “pertinência social”, ou seja, ser
relevante socialmente, contribuir para o desenvolvimento individual e da comunidade, para
o “fortalecimiento del poder local” e incorporação “de los estudiantes a los procesos
socio-productivo del país”, mas entende que é a partir deste espaço que se deve buscar a
formação geral, a soberania nacional e a integração latinoamericana, tendo como horizonte
a construção de uma nova realidade nacional e internacional.
La Municipalización valora la búsqueda de la totalidad abierta del
ser humano, a través de la formación integral de estudiantes y
docentes; la generación de conocimientos y saberes, sus
significados y potencialidades, desde diferentes niveles de la
realidad, promoviendo el espíritu científico; la proyección del
proyecto de país y su desarrollo, afianzando su soberanía y
propiciando el ejercicio de ciudadanía en el ámbito comunitario,
gubernamental y no gubernamental, tanto en el ámbito nacional
como internacional; y revitalizando la integración desde una
perspectiva histórica, rescatando nuestras raíces latinoamericanas
y promoviendo estrategias de cooperación que potencie el
intercambio y articulación de saberes, la práctica de formación, la
investigación formativa y la inserción social. (VENEZUELA,
2005b, p. 04-5).
A educação ao longo da vida é outro tema presente tanto no relatório da UNESCO como
nos programas de formação da UBV. Sobre isso, nos documentos da UBV há o
entendimento de que a educação superior precisa dar conta, não só da formação individual
56
dos alunos, mas também do desenvolvimento das comunidades nas quais estiver inserida.
Para isso seria necessário a oferta de “oportunidades formativas a lo largo de la vida, con
autonomía responsable e independiente de intereses ajenos a la cultura académica
integral, flexible y abierta en su organización académica y programas” que respeitassem
as necessidades e potencialidades da comunidade. (VENEZUELA, 2005b, p. 05).
Aqui, a educação ao longo da vida, não aparece na perspectiva de ocupar o tempo ocioso
ou como exigência democrática de ter que aprender a viver juntos por toda a vida, ou ainda
como “condição para um domínio mais perfeito dos ritmos e dos tempos da pessoa
humana”. (DELORS et al, 2000, p. 104). Muito menos como estratégia para superar “a
tensão entre a competição e o cuidado com a igualdade de oportunidades” e “a tensão entre
o extraordinário desenvolvimento dos conhecimentos e a capacidade de assimilação do
homem”, em que a educação ao longo da vida deveria “dar a cada ser humano os meios de
poder realizar todas as suas oportunidades” e ao mesmo tempo “conciliar a competição que
estimula, a cooperação que reforça e a solidariedade que une”. (DELORS et al, 2000, p.
15). Simplesmente, a educação ao longo da vida, no projeto educacional bolivariano,
parece ser mais uma oportunidade de formação e responsabilização da universidade em
relação ao desenvolvimento das comunidades onde se insere e o elemento de uma
formação integral.
La presente propuesta curricular está basada en los principios de
formación integral que conjuga lo humanístico y lo ético con lo
científico-tecnológico. Caracterizado por: la responsabilidad con
lo público, el ejercicio del pensamiento crítico, la flexibilidad e
integración y el diálogo de saberes, la calidad con equidad, así
como el principio de educación a lo largo de toda la vida
(educación permanente). (VENEZUELA, 2005a, p. 03).
Assim, a comunidade acadêmica, comprometida com o novo projeto de país, deve se
reconhecer como “parte de la Universidad y de su comunidad, y en ella y desde ella
contribuyan a su transformación y potencien su función pública”. (VENEZUELA, 2005b,
p. 04). Para cumprir com essas atribuições e estabelecer estes vínculos, é fundamental que
57
a formação acadêmica não “desvinculese de lo vivencial como experiencia de aprendizaje
y como espacio para la producción de conocimiento y saberes y de inserción social, desde
donde se reproduzca la solidaridad y se construya ciudadanía”. (VENEZUELA, 2005b, p.
04).
Esta vinculação entre educação e trabalho é princípio fundante do projeto educacional
bolivariano, aparecendo no artigo 3o da Constituição, onde se afirma que “La educación y
el trabajo son los procesos fundamentales para alcanzar os fins do Estado” que são “la
defensa y el desarrollo de la persona y el respecto a su dignidad, el ejecicio democrático
de la voluntad popular, la construcción de uma sociedad justa e amante de la paz, la
promoción de la prosperidad y bienestar del pueblo...”, (VENEZUELA, 2000, p. 3). E
também no art. 102 que afirma ser a educação um serviço público com a finalidade de
desarrollar el potencial creativo de cada ser humano y el pleno
ejercicio de su personalidad em uma sociedad democrática basada
em la valoración ética del trabajo y em la participación activa,
consciente y solidaria em los procesos de transformación social
consustanciados com los valores de la identidad nacional, y com
uma visión latinoamericana y universal. (VENEZUELA, 2000, p.
36).
Contudo, identifica-se, no projeto educacional bolivariano, e como veremos adiante nos
programas de formação dos profissionais de saúde, tanto o tema da educação ao longo da
vida como o foco na experiência pessoal, na vivência, na aprendizagem centrada no aluno,
bem como a discussão do desenvolvimento de competências e da flexibilização curricular,
conforme pode ser observado na citação que segue.
La municipalización debe ser percibida y sentida como la
estrategia pedagógica necesaria para el proyecto de país, y
además, debe dar cuenta de las tendencias actuales de la
educación: privilegio a la Educación como continuum, a lo largo
de la vida, el eje del proceso es el aprendizaje, la Educación de
adultos es una prioridad, el aprendizaje está centrado en el
58
estudiante, en la práctica, lo vivencial, lo problematizador y
promueve el desarrollo de competencias, permitiendo que se
propicien espacios de participación para la toma de decisiones y se
posibilite la construcción de un currículo que responda a la
sociedad. (VENEZUELA, 2005b, p. 06-7).
Acredito não haver nenhum problema em construir um currículo que busque dar respostas
à necessidades da sociedade, desde que isso não signifique uma adequação da formação
acadêmica às demandas sociais no sentido de perpetuar a exploração e a exclusão, nem que
para atender as exigências da realidade local se abra mão da apropriação do saber
produzido e sistematizado pela humanidade e universalmente válido.
No que tange ainda aos pressupostos gerais da UBV, esta assume o compromisso de
realizar uma educação que:
conceda la posibilidad de construir una sociedad justa, equitativa,
solidaria, libre, y democrática, tanto como constituirnos a nosotros
mismos como sujetos éticos por sus características de reflexiva,
critica, analítica, que permita aprender a aprender y desaprender,
que estimule la imaginación y la creatividad, que genere gran
capacidad de posicionamiento ante situaciones caracterizadas por
la incertidumbre, que estimule el trabajo en grupo, que
desmitifique la investigación, que fomente la lectura y la escritura,
que promueva el ejercicio de relaciones democráticas, que genere
un horizonte de valores asociados a las virtudes colectivas de las
que fluyan virtudes morales individuales, que nos permita
reconocer las diferencias y reconocernos en ellas, que forje la
valoración y defensa de lo mas preciado que tiene el ser humano:
su derecho a vivir una vida digna y que nos permita tener un alto
sentido ético y estético. (VENEZUELA, 2005b, p.29) (Grifos
nossos).
Newton Duarte (2001), ao discutir as “pedagogias do aprender a aprender” afirma que se
trata de idéias pedagógicas, cujas origens estão no movimento escolanovista e se associam
a posicionamentos valorativos como: o que o indivíduo aprende por si mesmo é superior
àquilo que ele aprende através da transmissão por outras pessoas; o método de construção
59
do conhecimento é mais importante do que o conhecimento já produzido socialmente; a
atividade educativa do aluno deve ser impulsionada e dirigida pelos interesses e
necessidades do próprio aluno; e a educação deve preparar os indivíduos para
acompanharem a sociedade em acelerado processo de mudança, portanto, o indivíduo que
não aprender a se atualizar estará condenado ao eterno anacronismo. Aprender a aprender,
tratar-se-ia de um lema que sintetiza uma concepção educacional voltada para a formação
da capacidade adaptativa dos indivíduos, que relativiza o conhecimento sistematizado pela
humanidade e desqualifica o papel do professor.
Como pode ser observado nas diferentes citações extraídas do documento da UBV, o que
em grande medida se repete em outros documentos da área educacional do governo da
Venezuela, determinadas orientações contidas no relatório da UNESCO foram
incorporadas e apresentadas como diretrizes educacionais e estratégias pedagógicas na
proposta de formação da UBV e no projeto educacional bolivariano. A assimilação das
propostas da UNESCO, nesse projeto e nas propostas de formação da UBV, não deve
surpreender, pois na própria Constituição (artigo 103), depois de definir os direitos dos
cidadãos e as atribuições do Estado em relação à educação em todos os níveis está explícito
que “... A tal fin, el Estado realizará uma inversión prioritaria, de conformidad com las
recomendaciones de la Organización de las Naciones Unidas...”. (VENEZUELA, 2000,
p.37) (grifos nossos). Como se sabe, a UNESCO é o órgão da ONU responsável pelos
assuntos da educação.
O que, então, fica como questão em aberto é em que medida a incorporação/tradução de
pressupostos que carregam em si elementos de uma racionalidade que por princípio diverge
do que se pretende instituir enquanto fundamento de uma nova socialidade, contribuem
para a consecução do projeto de transformação social?
Contudo, como a realidade é intrinsecamente contraditória, eivada de tensões, em que o
todo e as partes se relacionam de forma singular e com uma dinâmica própria em cada
complexo histórico, não se pode homogeneizar as interpretações dos fenômenos a partir de
60
leis férreas pretensamente válidas para todas as realidades.30
Embora se reconheça a
existência de determinados padrões, de determinadas tendências e legalidades no decurso
da história, cada realidade específica, cada universo particular apresenta especificidades
que devem ser apreendidas pela observação e análise dos seus traços, estrutura, nexos,
conexões e contradições internas. Por isso, o resultado dessa forma particular de
apropriação de determinados pressupostos precisa ser acompanhado, bem como os
desdobramentos nas diferentes dimensões da vida social, pois entende-se que apesar de
certa coercitividade e determinação social, sempre há alternativas para o agir humano
singular ou coletivo.
3.3 A Concepção de educação presente no projeto educacional bolivariano e na
proposta de formação dos profissionais de saúde
Com base nos elementos apresentados acima e em outros enunciados presentes em
documentos da área da educação do governo Chávez, bem como em literatura que dá
sustentação teórica ao projeto educacional bolivariano,31
é possível apreender os elementos
centrais que ajudam a compor a concepção de educação desse projeto e justificam as
práticas pedagógicas assumidas como estratégia para a emancipação cultural, política e
econômica do país.
Em linha geral a educação é vista como uma variável libertadora, tanto em nível individual,
na medida em que tem como finalidade “desarrollar el potencial creativo de cada ser
humano y el pleno ejercicio de su personalidad en una sociedad democrática...”
30
Sobre este tipo de interpretação do seu método, Marx protestou em vida, em carta em fins de 1877 à
redação de uma revista russa, se pronunciando sobre a generalização indevida, em termos de filosofia da
história, de sua teoria de acumulação primitiva. (LUKÁCS, 1979).
31 Em documentos oficiais do governo e em discursos do Presidente Chávez e de Ministros de Estado,
cotidianamente faz-se referência a autores que escreveram sobre educação, como Simón Rodríguez, José
Marti, Luis Beltrán Prieto Figueroa e José Del Grosso. Além disso, o Ministério de Educação e Desporte tem
reproduzido e distribuiu gratuitamente para todos os professores da rede pública uma série de livros desses
autores, indicando a adoção de seus pressupostos na política e na prática educacional do projeto educacional
bolivariano.
61
(VENEZUELA, 2000, p. 36), como em nível coletivo, sendo “un medio para lograr la
justicia, la igualdad y la integración social” (VENEZUELA, 2006b, p. 07).
Portanto, a escola passa a ter a responsabilidade de formar um novo homem que deve estar
“a serviço da refundação da república”, ocupando-se de conhecimentos que tenham sentido
para a vida, partam das experiências e visem formar um republicano, patriótico, solidário e
com profundo sentido humanitário, preparado para compartilhar a vida social e construir a
integração latinoamericana. Por isso a educação deve se ocupar de conhecimentos próprios
e demandaria novas estratégias pedagógicas que libertem e não domestiquem, que
descolonizem o pensamento, favorecendo, assim, a emancipação do pensamento, a
independência e a soberania.
Toda educación es reflejo de la interioridad y de la clase de
relaciones que sus miembros han desarrollado en el tiempo. Gran
parte de las relaciones sociales están vinculadas directa o
indirectamente con el proceso educativo formal e informal y
contribuye a mantener y reproducir la organización y condiciones
del sistema. (DEL GROSSO, 1951 apud EGLEE, 2006, p. 14).
Depreende-se da leitura dos autores de referência no campo educacional, a defesa do
caráter popular e de massa para a educação, bem como a responsabilidade do Estado em
garanti-la, sem abandonar a defesa de princípios liberais na educação.
La educación de masas, sin hacer distinción, de acuerdo con la
posición social del individuo, de la fortuna o de la raza, tiende a
capacitar al pueblo todo para intervenir en la dirección de sus
destinos y para servir mejor, por la adquisición de habilidades y
conocimientos que le coloca en pie de igualdad con los otros
miembros de la comunidad. La educación democrática o educación
de masas aspira a dar igualdad de oportunidades para todos; por
ello es gratuita y obligatoria y debe crear instituciones que
favorezcan a los menos posibilitados económicamente para
ascender en la escala de la cultura. (FIGUEROA, 1951, p. 27).
62
Considerando as “tendências atuais” da educação e a complexidade e imprevisibilidade da
realidade social, a educação teria a responsabilidade de desenvolver competências,
capacidades de trabalho, de adaptação, compreensão e solução de situações complexas,
privilegiando “a educación como continuum, a lo largo de la vida”, em que o eixo do
processo é a “aprendizaje centrado el el estudiante, en la práctica, lo vivencial, lo
problematizador”. (VENEZUELA, 2005b, p. 06). Portanto, deve-se “organizar procesos
orientados al fortalecimiento del saber, saber hacer y saber ser”. (VENEZUELA, 2005b,
p. 17).
Para romper com o modelo de formação instituído nas universidades do país, que
favorecem “el desarrollo de creencias e ideologías que configuran, desde la visión
exclusiva de lo individual, modelos culturales de dominación...” é preciso “la
reconciliación entre las ideas y la realidad” o que implica “desarrollar la aptitud para
relacionar el pensamiento y la acción, permitiendo a la sociedad venezolana intervenir en
su propia historia y, así, transfomarla”. (VENEZUELA, 2005b, p. 25).
A relação entre sociedade e educação constitui um dos principais fundamentos do enfoque
educativo do projeto educacional bolivariano,
que se enriquece con los postulados de aprender a aprender y
desaprender que implica pensar los contenidos y practicas
formativas desde la perspectiva del estudiante y del profesor como
sujetos que aprenden ambos en la practica misma de la enseñanza
aprendizaje; la educación basada en el privilegio de lo colectivo;
la creatividad como meta educativa con valor propio y no como
recurso instrumental para lograr objetivos curriculares; la
interacción e interdependencia inherente al enfoque ecológico, la
contextualización como fundamento para forjar el reconocimiento
de la diversidad cultural constitutiva de la condición humana; la
interdisciplinariedad y transdisciplinariedad que redimensionan a
las disciplinas abriendo redes de relaciones para hacer posible la
emergencia de nuevos campos de saber y la comprensión de la
complejidad de los procesos en estudio, en este caso la salud; la
calidad como equidad, la educación sin muros; el sentido
transformador de la vinculación entre universidad y sociedad para
63
fortalecer la conexión entre teoría y práctica. (VENEZUELA,
2005b, p. 26).
Embora não se pretenda aqui “enquadrar” a proposta do Projeto Bolivariano de educação
numa dada concepção, é possível identificar traços que compõe um entendimento de
educação, que de acordo com Saviani (1987, p. 25), tratar-se-ia da “concepção humanista
moderna”, que abrange correntes filosóficas como o pragmatismo, o vitalismo, o
historicismo, o existencialismo e a fenomenologia. A concepção humanista moderna
“esboça-se numa visão de homem centrada na existência, na vida, na atividade”, em que “a
existência precede a essencia”, ou seja, “a natureza humana é mutável e determinada pela
existência”. Esta concepção ao considerar o homem “completo desde o nascimento e
inacabado até morrer”, centra sua ação na criança, no educando, na vida e na atividade.
Para Saviani (1984) esta forma de entender a educação, desloca o eixo da questão
pedagógica do intelecto para o sentimento, do lógico para o psicológico, dos conteúdos
para os métodos, do professor para o aluno, do esforço para o interesse, da disciplina para a
expontaneidade, do diretivismo para o não-diretivismo, da quantidade para a qualidade, da
ciência lógica para a experimentação e do aprender para o aprender a aprender.
Contudo, como se trata de esquema teórico esse nem sempre tem correspondência no
mundo real, ou seja, muitos de seus elementos podem não estar presentes e outros tantos
apresentarem-se modificados na realidade concreta, além da possibilidade de incorporação
de aspectos alheios ou mesmo pertencentes a outra concepção, o que não invalida a sua
utilização como elemento de análise de uma dada realidade.
Com esse entendimento e buscando captar a complexidade e dinamicidade que caracteriza
a realidade social é que pretendemos analisar determinados aspectos do processo de
formação de trabalhadores em saúde da UBV. Antes, porém, cabe destacar que não temos a
intenção de realizar, neste trabalho, uma análise pormenorizada da proposta curricular em
termos de disciplinas e conteúdos ministrados nos cursos de formação de gestores em
saúde pública e médicos integrais comunitários. Estes elementos, embora sejam relevantes
na análise de um processo formativo, demandariam observações mais sistemáticas do que
foi possível nessa pesquisa. O que pretendemos é tão somente identificar alguns elementos
64
políticos, conceituais e metodológicos das propostas de formação dos trabalhadores em
saúde dos cursos de Gestão em Saúde Pública32
e Medicina Integral Comunitária33
da UBV.
3.4 Graduação em Gestão em Saúde Pública – UBV
Para a análise da formação em Gestão em Saúde Pública, utilizamos como documento base
o Programa de Formación de Grado – Gestión em Salud Pública (PFG-GSP), de 2005,
portanto uma versão atualizada do primeiro programa do curso. O curso de Graduação em
Gestão em Saúde Pública foi criado junto com a UBV, em julho de 2003, e prevê dois
momentos de saída, um no terceiro ano, com o título de Técnico Superior en Gestión en
Salud Pública e o outro ao final do quarto ano como Licenciado en Gestión en Salud
Pública.
No rol das justificativas para a criação desse curso estariam razões sociais, econômicas,
científico-tecnológicas, políticas, culturais e educacionais, em acordo com o modelo
humanista, autogestionário, endógeno, produtivo e diversificado que se pretende
implementar no país, ou seja, o “modelo social de incluídos”. Mais que isso, o Programa de
Formação em Gestão em Saúde Pública,
constituye una estrategia de intervención de la política de salud y
desarrollo social, dirigida a edificar una nueva institucionalidad
pública con liderazgo y capacidad de rectoría, de una gestión
universitaria comprometida con el imperativo de dar respuestas a
las necesidades sociales en el marco de la construcción y el
ejercicio de la ciudadanía. Es por tanto un proceso conducido y
32
Cabe lembrar que, no Brasil, a proposta de criação de cursos de graduação em saúde pública, não
passou de discussões acaloradas e iniciativas isoladas que ainda não saíram do papel. O entendimento que
predominou, nos espaços coletivos de discussão, foi de que existem 14 profissões na área da saúde e todos os
egressos desses cursos deveriam ser preparados para a gestão de algum nível do sistema de saúde. Além
disso, a pós-graduação em saúde coletiva estaria bem estruturada no Brasil e em condições de complementar
o processo de formação dos profissionais para gerirem o sistema.
33 Neste caso, no Brasil, apesar de certo consenso sobre a necessidade de formar médicos generalistas
e das Diretrizes Curriculares Nacionais apontarem nessa direção, a grande maioria dos cursos existentes no
país, continuam formando profissionais médicos na mesma lógica da especialização precoce e desvinculados
das necessidades de saúde e da demanda do próprio Sistema Único de Saúde (SUS).
65
planificado estratégicamente para crear viabilidad, a las
directrices estratégicas de la política de salud y desarrollo social y
que por lo tanto, debe ser entendido en todas las dimensiones
técnico-políticas de un proyecto de cambio socio-político.
(VENEZUELA, 2005b, p. 16-7)
A Constituição de 1999 teria incorporado mudanças na orientação das políticas de saúde,
na medida em que essa passa a ser vista “como bien público, derecho humano
fundamental, vinculado a la vida, obligación del Estado y responsabilidad social”.
(VENEZUELA, 2005b, p. 08). Contudo, para efetivar esses princípios seria necessário
adotar uma nova concepção para o processo saúde-doença, entendido como um “proceso
complejo y expresión de las condiciones materiales y sociales de vida de las ciudadanos y
ciudadanas de un país” (VENEZUELA, 2005b, p. 02), e instituir uma nova formação que
se diferencie daquela centrada na perspectiva médica, aparentemente neutra, mas que na
verdade “han tenido su impacto en los modos de gestión, organización y atención a las
necesidades sociales de salud”. (VENEZUELA, 2005b, p.13).
Advoga-se que o direito à saúde será garantido à medida em que se apoiar na Atenção
Primária à Saúde (APS) como estratégia fundamental para a ação no campo da saúde. “o
programa plantea desarrollar profesionales que comprendan y asuman el reto de la
garantía del derecho a la salud apoyados en la APS como estratégia fundamental para su
realización”. (VENEZUELA, 2005b, p. 11).
Como se sabe a estratégia da APS é defendida pela Organização Panamericana de Saúde
(OPS), mas questionada por muitos estudiosos da área da saúde coletiva, que vêm nela
uma atualização da Medicina Comunitária da década de 1950. A atenção primária não dá
conta da integralidade da assistência na medida em que seu principal objetivo está centrado
na ampliação da cobertura do primeiro nível de assistência.
A defesa do uso dessa estratégia, como fundamento da ação no campo da saúde, na
Venezuela, vem acompanhada de justificativa que sinaliza a superação da “confusión
surgida por años en el ámbito sanitario, de APS con la atención primitiva, de primer nivel
y escasa resolutividad”. Argumenta-se que:
66
la APS es una estrategia que busca la ampliación de las
coberturas, elevar la resolutividad y la calidad de la oferta de
servicios, facilitar el acceso y la integralidad de la atención y
estimular la participación ciudadana, movilizar e integrar
esfuerzos intersectoriales y transdisciplinarios, reconociendo y
actuando de manera transversal en los diferentes niveles de
atención tradicionalmente utilizados, estableciendo, pues, la
distinción con primer nivel de atención definido por el centro de
atención ambulatoria. (VENEZUELA, 2005b, p. 11)
A formação de novos profissionais “altamente cualificado, éticamente responsable y
ciudadano comprometido con la consolidación de nuestra democracia”, (VENEZUELA,
2005b, p. 3), deve ocorrer a partir do desenvolvimento de competências para “actuar en
interacción con la comunidad, identificando las relaciones y los conflictos sociales; capaz
de aportar respuestas a las preguntas que formulan los nuevos retos que tiene la sociedad
venezolana en su propia realidad y en el contexto mundial”. (VENEZUELA, 2005b, p.
16). Essa interação seria favorecida pela metodologia de Aprendizagem por Projetos (ApP)
“como uma forma de hacer más cercanos los conocimientos que se adquieren a las
prácticas cotidianas del futuro profesional”. (VENEZUELA, 2005b, p. 45).
O desenho curricular e os critérios pedagógicos e curriculares do curso de Gestão em
Saúde Pública se baseiam em princípios de formação integral, equilíbrio entre os eixos de
formação, flexibilidade e integração de saberes e inserção social, por isso e para isso o
currículo deve assumir:
modalidades flexibles, grupos de aprendizaje más pequeños y
autónomos, cambio en el papel de docentes como facilitadores,
privilegia la formación de docentes, estimula al aprendizaje
autónomo y la investigación de problemas, como elemento
recursivo, que se cristaliza con la identificación y despliegue de
situaciones de aprendizajes y escenarios de formación
contextualizada cerca de la gente y promoviendo aprendizajes
significativos a partir de un proceso formativo que implica la
vinculación con las comunidades descubriendo la realidad
67
concreta y dimensionando sus necesidades. (VENEZUELA, 2005b,
p. 05).
O município é assumido como espaço natural para a gestão em saúde pública e para a
circulação e distribuição do poder. Por isso, o Programa de Formação de Graduação em
Gestão em Saúde Pública, prevê uma articulação entre o desenvolvimento teórico e prático
ao longo de todo o processo de formação. “Desde que los estudiantes se inician en el
programa de formación deben estar incorporados a sus sectores, barrios, comunidades,
etc., apropiándose de su realidad y a partir de allí deben recrearla y transformarla a lo
largo de su proceso formativo”. (VENEZUELA, 2005b, p. 06). A partir desse
entendimento, os conteúdos e as práticas pedagógicas, que compõe as unidades
curriculares, estariam estruturados de tal forma que atendam tanto as exigências
acadêmicas, como tenham pertinência social.
Duas questões saltam aos olhos na análise do Programa de Formación de Grado – Gestión
em Salud Pública, a perspectiva empirista que direciona o ensino-aprendizagem e a visão
relativista do conhecimento. Em relação a primeira questão, a citação de Mao Tse-Tung,
extraída desse documento ilustra bem esse entendimento da relação teoria/prática.
Quien quiera conocer una cosa, no podrá conseguirlo sin entrar en
contacto con ella, es decir, sin vivir (practicar) en el mismo medio
de esa cosa. (...) Si quieres conocer el sabor de una pera, tienes tú
mismo que transformarla comiéndola. (...) Si quieres conocer la
teoría y los métodos de la revolución, tienes que participar en la
revolución. Todo conocimiento auténtico nace de la experiencia
directa. (VENEZUELA, 2005b, p. 45).
No que diz respeito à segunda questão, em vários momentos identifica-se um apreço pelo
local enquanto definidor do que se deve ensinar e do que se deve aprender, ao mesmo
tempo em que é secundarizado a transmissão/apropriação do conhecimento universal.
“Esta perspectiva permite que la realidad y el entorno determinen las necesidades
formativas siempre en el marco de la participación, la solidaridad, la ética y el
68
compromiso con el avance de nuevas formas de vida social...” (VENEZUELA, 2005b, p.
27).
Por fim, acredita-se que a metodologia de desenvolvimento de projetos, além de realizar a
unidade teoria/prática, definir as necessidades teóricas, ajudaria a mudar as realidades nas
quais os alunos se vinculam,desde o início da formação acadêmica.
El plan de estudios se centra en el Proyecto como el eje integrador
del Programa. Es decir, todas las unidades curriculares que el
alumno recibe son o serán herramientas que le ayudarán a
resolver problemas en la realidad. Como Proyecto pretende ser la
forma de hacer coincidir la realidad con la teoría, las unidades
han sido ubicadas de forma que el estudiante pueda sacar el mayor
provecho de cada una, y a su vez poner en práctica los
conocimientos que adquiere. (VENEZUELA, 2005b, p. 46).
3.5 Graduação em Medicina Integral Comunitária - UBV
O curso de Graduação em Medicina Integral Comunitária (MIC) tem antecedente e origem
distinta do curso em Gestão em Saúde Pública, mas busca atender a objetivos semelhantes
de “formar los nuevos profesionales del equipo de salud que se constituyan en auténticos
ciudadanos, copartícipes en los procesos de construcción de la nueva sociedad que se está
gestando” ao mesmo tempo em que responda a “demanda del imperativo constitucional de
la creación y consolidación del sistema público nacional de salud, a través del cual se
aspira que la salud deje de ser un privilegio de pocos para transformarse, en un
patrimonio de todos”. (VENEZUELA, 2005a, p. 03).
A criação do curso de MIC, em outubro de 2005, “constituye un objetivo estratégico
nacional” e resultou de acordo firmado entre Cuba e Venezuela por meio do qual troca-se
petróleo por medicamentos, equipamentos, vagas em universidades cubanas e trabalho
médico. Atualmente existem cerca de 20.000 profissionais de saúde cubanos na Venezuela,
destes 15.000 são médicos, sendo que os primeiros chegaram em dezembro de 1999 para
ajudar no atendimento aos feridos e doentes, vítimas de desastre natural que envolveu 10
69
estados, sendo o mais atingido o Estado de Vargas. O trabalho desses profissionais,
organizados em brigadas (clínicos, cirurgiões, epidemiólogos, traumatólogos,
anestesiólogos, pediatras e enfermeiras) não se limitou ao período do desastre, mas se
estendeu no ano seguinte realizando atendimento domiciliar, prevenção e promoção à
saúde, sobretudo nos locais e regiões de difícil acesso. Apesar dos protestos das
associações médicas da Venezuela e de setores da oposição pela permanência e exercício
da profissão por profissionais “não credenciados”, o governo venezuelano realizou, em 30
de outubro de 2000, o primeiro convênio de cooperação médica com Cuba em troca de
petróleo. O convênio prevê a ida de profissionais de saúde para a Venezuela, formação de
profissionais médicos e de enfermagem em Cuba, tratamento de pacientes venezuelanos
em Cuba e compra de produtos e equipamentos médicos. Posteriormente um acordo
específico entre o prefeito do município Libertador (Caracas) e o governo de Cuba
permitiu, em março de 2003, o início de um programa de Atenção Primária em Saúde,
denominado Plan Barrio Adentro, que a partir de outubro daquele mesmo ano foi
instituído como mais uma política massiva do governo Chávez, a Misión Barrio Adentro.
Ao final de 2003 já eram 10.000 o número de médicos atuando na Venezuela.
(POLANCO, 2006).
A manutenção do atendimento nas novas estruturas e serviços de saúde criados pelo
governo Chávez, que buscam reorganizar o sistema nacional de saúde, como a Missão
Bairro Adentro I (Atenção Primária à Saúde) iniciada em 2003; Bairro Adentro II (Centros
Médicos de Diagnóstico Integral, Salas de Reabilitação Integral e Clínicas Populares)
2005; Bairro Adentro III (Hospital del Pueblo e Centros de Alta Tecnologia) 2005; e
Bairro Adentro IV (Institutos) 2006, demandaria novos e mais profissionais de saúde. A
formação de Médicos Integrais Comunitários, que já ocorre em 332 dos 333 municípios do
país,34
e de outros profissionais, como enfermagem, fariam parte da estratégia de
ampliação da quantidade de trabalhadores em saúde, tanto para a atuação nos serviços do
34
Na maioria desses municípios os cursos de MIC se desenvolvem por meio de “Aldeias
Universitárias”, que se constituem de turmas isoladas, com poucos alunos, que se formam articuladas com
um módulo da Missão Bairro Adentro, cujo instrutor e professor é o próprio médico que atua nesse
programa.
70
país como, a exemplo de Cuba, para no futuro realizarem ajudas humanitárias em outros
países.35
Contudo, a formação desses profissionais não deve se dar no mesmo marco do que vinha
ocorrendo nas instituições formadoras tradicionais, centrada no modelo individual-
curativo-assistencial, biologicista, medicalizado, de alto consumo técno-médico, elitizado,
cujas práticas pedagógicas desvinculam a teoria da prática e centram a formação nos
hospitais, retirando os estudantes da realidade das comunidades. Os profissionais formados
nessa perspectiva seriam da universidade com “escasa sensibilidad social, poca capacidad
resolutiva y mayor propensión a la mercantilización, y la deshumanización de la atención
médica”, além de essa formação estar desarticulada das necessidades de saúde da
população. (VENEZUELA, 2005a, p. 05).
Diante disso, seria necessário outro processo de formação, que parta de uma concepção de
saúde entendida como “calidad de vida, de bienestar, de bien hacer, de promover las
condiciones para que la vida exista. Es la salud como un derecho humano, como un
derecho social, y como una responsabilidad del Estado. La salud como riqueza social
producida y compartida por todos” (VENEZUELA, 2005a, p. 04). Ou ainda, a saúde
“como situación de equilibrio armónico y dinámico entre el individuo, la colectividad y el
medio ambiente” e a enfermidade como “la expresión general de alteración de la integridad
del ser humano (individuo y colectividad) que se manifiesta como alteración predominante de
uno de ellos en su interacción con los restantes”. (VENEZUELA, 2005a, p. 11).
Portanto, a formação do médico integral comunitário deve se basear em princípios de
formação integral que conjuga o humanístico e o ético com o científico-tecnológico,
caracterizado por: “la responsabilidad con lo público, el ejercicio del pensamiento crítico,
la flexibilidad e integración y el diálogo de saberes, la calidad con equidad, así como el
principio de educación a lo largo de toda la vida (educación permanente)”.
(VENEZUELA, 2005a, p.5).
35
Segundo o coordenador nacional da Missão Bairro Adentro, em 2007 iniciaria a formação de
Enfermeiros Integrais Comunitários e, conforme o Acordo da Alternativa Bolivariana (Alba), em dez anos
devem ser formados 200.000 médicos. (Entrevista realizada em 09/09/2006).
71
Para romper com as práticas pedagógicas tradicionais, propõe-se que o processo ensino-
aprendizagem, seja mediado por “métodos abiertos y participativos, que tengan como eje
la educación en el trabajo, en forma semipresencial con monitoreo permanente que
induzcan a la indagación, organización, análisis y producción de nuevos conocimientos y
resolución de problemas”. (VENEZUELA, 2005a, p. 06).
Nessa mesma direção, advoga-se que o ensino-aprendizagem deve estar sustentado:
en el aprender a aprender, la creatividad, innovación y solidaridad
como ejes de los cambios y transformaciones que articulan la
docencia, la investigación formativa y la inserción social, la
interdisciplinaridad, transdisciplinaridad, interrelación e
interdependencia, y en todo momento la formación ciudadana
como norte de la transformación del país para impulsar y dar
celeridad a la nueva República, ya que sin ella no se podrá
consolidar el sistema público nacional de salud. (VENEZUELA,
2005a, p. 06)
O programa de formação de Medicina Integral Comunitária prevê a formação do aluno
inserido em sua própria comunidade, a partir de problemas concretos de saúde, organizando
assim “el proceso formativo de forma tal que cada componente tribute a dar solución a este
problema. La premisa fundamental es aprender interactuando con la comunidad con
creatividad, sentido de pertinencia, y de dar solución a los problemas de salud, con
independencia”. Os componentes do processo serão “en primer lugar el estudiante de MIC y
el profesor que en este caso es el medico de Barrio Adentro que desde su consultorio y con el
análisis de la situación de salud contribuirá a la ejecución del Plan de Estudio” de acordo
com a complexidade de cada ano acadêmico. A dinâmica inclui “orientación del nuevo
contenido, consolidación, evaluación y educación en el trabajo. Impartiéndose cada una de
ellas mediante métodos activos de aprendizajes y medios de enseñanza tales como
computadora, modelos anatómicos y videos conferencias”. (VENEZUELA, 2005a, p. 23).
Com isto pretende-se formar um profissional com competência diagnóstica e terapêutica,
capaz de prestar assistência médica integral com “un profundo enfoque social, portador de
72
valores éticos, humanísticos, solidarios y de actitud ciudadana; llamados a transformar la
situación de salud, en correspondencia con las exigencias de la sociedad actual”.
(VENEZUELA, 2005a, p. 07). Este profissional deverá atuar fundamentalmente no
primeiro nível de atenção, em qualquer parte do país onde for requerido. “supeditando sus
intereses personales a los de la comunidad, de acuerdo a las necesidades sociales y las
orientaciones del Gobierno Bolivariano”. (VENEZUELA, 2005a, p. 12).
Em termos de conteúdo e carga horária a formação não diverge muito do que
tradicinalmente ocorre em cursos de medicina (ver Anexo b), o que difere é a forma
utilizada para o processo de formação, onde se reduz o ensino em laboratorios, se acentua
o ensino por meio de tecnologias de informação (video conferência, modelos anatômicos,
computador) e se enfatiza a aprendizagem empírica - aprender fazendo. Dos seis dias da
semana em que se desenvolve o curso (segunda a sábado) três dias (24 horas) são
realizadas no consultório popular e nos cenários da Misión Barrio Adentro, que se constitui
no “núcleo essencial” ddaa ffoorrmmaaççããoo.. OO pprriinncciippaall pprrooffeessssoorr ee ttaammbbéémm rreessppoonnssáávveell ppeellaa
ffoorrmmaaççããoo ddoo mmééddiiccoo iinntteeggrraall ccoommuunniittáárriioo éé oo eessppeecciiaalliissttaa eemm MMeeddiicciinnaa GGeerraall CCoommuunniittáárriiaa
qquuee ttrraabbaallhhaa nnoo CCoonnssuullttóórriioo PPooppuullaarr..
O curso de MIC diverge também da grande maioria dos programas de medicina altamente
elitizados, na forma de acesso que é inteiramente aberta e não seletiva a priori. Qualquer
pessoa com menos de 35 anos pode iniciar o curso pelo “premédico”,36
que se trata de um
programa de nivelamento de conhecimentos de disciplinas básicas com seis meses de
duração, que visa a atualização dos estudantes, mas cuja aprovação é requisito para
continuar os estudos de medicina. Em 2004 se inscreveram no premédico 20.000 jovens,
destes cerca de 15.000 iniciaram, 13.000 realizaram e 11.160 foram aprovados no
premédico para iniciar o curso de MIC em 2005.37
Essa forma de acesso fez com que em
dois anos de funcionamento o curso de MIC este já conte com 19.069 alunos matriculados,
36
As disciplinas ministradas no curso Premédico são: Organización docente e introducción al curso
(24 horas), Técnicas de estudio (42 horas), Universidad y Sociedad (33 horas), Introducción a la Salud
Pública de Venezuela (123 horas), Biología (222 horas), Química (213 horas), Lengua Española (128 horas),
Evaluación final (6 horas) o que totaliza 791 horas. 37
Dados coletados em entrevista com o coordenador nacional do curso em 09 de novembro de 2006 e
disponibilizados da Base de Dados do Programa de MIC.
73
sendo 7.909 na primeira série e 11.160 na segunda série.
Embora os dois cursos analisados MIC e GSP, tenham objetivos semelhantes, convirjam
no entendimento de educação, no seu papel no processo de transformação social e
assumam os mesmos pressupostos e diretrizes educacionais, apresentam diferenças quanto
as estratégias pedagógicas adotadas no processo ensino-aprendizagem. Enquanto o curso
de Gestão em Saúde Pública se estrutura em eixos de formação e na metodologia de
Aprendizagem por Projetos (Anexo a), o curso de Medicina Integral Comunitária adota um
desenho curricular baseado em disciplinas, no ensino integrado das ciências básicas
(Anexo b) e no uso sistemático de estratégias do ensino a distância.
O ensino das ciências básicas, por meio das disciplinas integradas de Morfofisiologia e
Morfofisiopatologia busca romper com a hipertrofia de programas, a fragmentação do
conhecimento instituído com as várias disciplinas das ciências morfológicas (anatomia,
embriologia, histologia) e fisiológicas (fisiologia, biologia celular e molecular) ao mesmo
tempo em que “incluye la práctica médica comunitaria como parte del proceso
transformador que se lleva a cabo em la República Bolivariana de Venezuela para la
formación de un médico de nuevo tipo a través de la concepción de la Universidad Barrio
Adentro”. (LUNA, MUÑOZ, SALVAT, 2006, p. 01).
O enfoque integrado de conteúdos não se constitui em novidade, contudo ainda é uma
prática pouco adotada nos cursos da área da saúde de outros países como o Brasil, não
tanto pelos resultados que parecem superar o ensino por disciplinas, mas, sobretudo pela
dificuldade de articulação das disciplinas que historicamente foram se constituindo como
ciências particulares.
74
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
A observação in loco do processo político venezuelano e as análises realizadas a partir da
leitura de documentos do governo e dos programas de graduação em Gestão em Saúde
Pública e Medicina Integral Comunitária, da Universidade Bolivariana de Venezuela,
permitem identificar uma forte articulação entre o Projeto Revolucionário Bolivariano e a
formação ministrada em todos os níveis de ensino. Mas também, possibilita apreender
nexos existentes entre elementos centrais da formação com determinadas concepções
filosóficas-político-ideológicas que historicamente tem contribuído para manter o atual
modo de produção e reprodução da vida material e espiritual.
A educação ocupa um lugar preponderante como ferramenta para a transformação da
sociedade e para a consecução do Projeto Revolucionário Bolivariano, que almeja ser um
processo revolucionário sócio, cultural e político de base essencialmente educativo, que
pretende provocar mudanças na base econômica. Para isso, é fundamental a
conscientização do povo, a construção de um ser social humanizado e solidário, que se
daria por meio da formação/educação no ensino formal e não formal. Portanto, esse
processo educacional que privilegia uma classe social – a dos excluídos - está impregnado
de elementos ideológicos que favorecem esta classe social, historicamente alienada do
acesso à riqueza e aos bens produzidos pela sociedade.
O projeto educacional bolivariano pretende superar a escola tradicional capitalista, a partir
da recuperação do ideário educacional escolanovista e de valores humanistas, patrióticos e
de solidariedade. Na área da educação, mediatizado pelas políticas massivas de inclusão
em todos os níveis de ensino, parece emergir um novo contrato educacional igualitarista
em oposição ao projeto neoliberal das décadas anteriores. Essas formulações seria, no
entendimento de Casanova (2006), uma volta aos ideais do republicanismo e do
racionalismo laico.
O ideário igualitarista-democrático, que acompanha o imaginário dos povos do ocidente
desde o século XVIII, aponta que essa promessa não cumprida, pode se realizar em um
projeto onde o Estado se oriente pelo tripé do direito, da democracia e da justiça social.
Parece ser este também o pressuposto que baliza conceitualmente o atual nacionalismo
75
bolivariano, que vale destacar, não prescinde de temas religiosos, nem de conceitos ou de
categorias marxistas.
Empiricamente o que foi possível observar do atual processo venezuelano, na área da
educação como um todo e em particular no ensino superior, como resultado não só da
política educacional, mas da associação de várias políticas sociais do governo Chávez, foi o
acesso ao conhecimento de um enorme contingente de crianças, jovens e adultos, que
historicamente estiveram excluídos do sistema de ensino. Segundo o governo cerca de 50%
da população, em torno de 13 milhões de pessoas, está de alguma forma estudando
atualmente. Este acesso se deu tanto por meio do sistema público nacional, que se ampliou
quantitativamente, como pelas missões educativas, política que deve se manter enquanto
não “forem incluídos todos os excluídos” em todos os níveis de ensino. Em outubro de
2005, a Venezuela foi considerada, pelos critérios da UNESCO, “território livre de
analfabetismo”.
Quanto à formação universitária, esta se processa a partir do projeto nacional e de
demandas locais, inserida e articulada com as comunidades, cujo vínculo deve ocorrer
desde que o aluno entre na universidade, daí o ensino por projetos e a valorização da
prática, do saber-fazer (trabalho). Isso parece decorrer de certa urgência na resolução de
problemas da sociedade, que não teriam como aguardar o tempo da universidade, que se
encontra em descompasso com o tempo político da revolução social. As diferentes
modalidades de ensino, como o ensino a distância, o uso de tecnologias de informação e a
presença de monitores ou facilitadores, indicam uma opção pela massificação (quantidade)
mesmo que num primeiro momento penalize aspectos considerados de qualidade.
Um desses aspectos, levantados pela crítica interna, refere-se ao esvaziamento de
conteúdos, o que é respondido, pelo governo, com a apresentação de dados de exclusão
decorrentes do tradicional ensino baseado na transmissão/apropriação de conteúdos e com
a pergunta de que qualidade se estaria falando quando esta sempre foi para poucos. A
forma de organização do ensino, fundada em conteúdos, seria uma estratégia que não só
mantém, mas impede o acesso à escola e ao conhecimento de grande parte da população.
76
Outra crítica feita pelos intelectuais daquele país, diz respeito à “pedagogia localista”, que
isolaria o aluno em relação ao resto do mundo, na medida em que o conhecimento que
deve ser apropriado/construído durante o processo de formação, incorpora a noção de
desenvolvimento endógeno. Da mesma forma, a defesa dessa perspectiva, pelo governo, é
no sentido de que se deve partir do conhecimento individual, ou seja, “quem somos” para
posteriormente apreender o conhecimento universal. Nas palavras do então ministro da
educação e desportes Aristóbulo Istúriz “ir à globalização sabendo quem somos e
orgulhosos do que somos”.
Acredito ser perfeitamente válida a intenção de descolonizar o pensamento,
particularmente em países periféricos que historicamente estiveram subordinados
econômica, política e culturalmente aos grandes centros do planeta, contudo, há que se ter
cuidado para não cair no relativismo que desconsidera o conhecimento construído e
acumulado pela humanidade ao longo da história.
No que se refere especificamente à formação de profissionais de saúde, muitas das críticas
que o governo realiza ao ensino ministrado nos cursos tradicionais da área e
particularmente ao perfil dos egressos, que não atenderiam as demandas da realidade do
setor de saúde nacional e que levou à formulação de uma nova proposta de formação, já
vêm sendo feitas há algumas décadas por estudiosos da área em vários países da América
Latina e também por organismos como a Organização Panamericana de Saúde e a
Organização Mundial da Saúde, sem que a maioria dos países tenha logrado alterar o seu
quadro sanitário e a lógica mercantilista presente nos sistemas de saúde. Apesar da crítica
que possa ser feita às estratégias adotadas no processo de formação de profissionais de
saúde, na Venezuela, vale lembrar que este modelo já foi experimentado em Cuba, país que
apesar de sofrer décadas de bloqueio econômico, por parte da maior potência mundial,
apresenta indicadores de saúde comparáveis aos dos países desenvolvidos.
Diante da complexa e dinâmica realidade que se constitui a Venezuela na atualidade, e dos
elementos apreendidos no âmbito da formação é possível formular algumas questões, que
só a história poderá responder, mas que é importante colocá-las, pois a leitura da realidade
precisa ser permanentemente renovada em face de sua dinamicidade e da impossibilidade
da previsão e controle absoluto dos resultados, quer seja dos atos individuais, ou das ações
77
coletivas. Trata-se das questões, já explicitadas no decorrer do texto, que dizem respeito à
incorporação do conjunto de orientações e princípios da UNESCO, que se vinculam ao
pensamento liberal e ao projeto de conservação da sociedade burguesa, em uma proposta
educacional alternativa, vinculada a um projeto que tem como meta transformar essa
mesma sociedade.
A forma com que foram traduzidas as orientações do relatório de Jacques Delors, no
Projeto Bolivariano e na prática pedagógica dos processos de formação em curso na
Venezuela, seria suficiente para impedir a “contaminação” do projeto e anular o caráter
conservador desses princípios? É possível destacar de um conjunto de propostas que
carregam uma particular visão de mundo (centrada no indivíduo, que naturaliza as
desigualdades sociais, que defende a continuidade do atual sistema), determinadas
estratégias e utiliza-las para a implementação de um projeto que aponta em outra direção,
de transformação das estruturas da sociedade, sem que isso em algum momento se coloque
contra o próprio projeto? Sem que isso “atrapalhe” o projeto?
Se as respostas a estas questões se revelarem positivas na historicidade do contexto
venezuelano, então estaria se confirmando a hipótese de que quando se tem um projeto
coletivo de transformação social, este é preponderante em relação a projetos setoriais, ou
seja, não importa muito os meios, métodos ou estratégias utilizadas no processo de
formação quando este se articula a um projeto de transformação social.
Considerando que as estruturas e as relações sociais são contraditórias na sociedade
moderna e a dinâmica histórica de uma formação social, em face do movimento dialético,
aponta sempre para um “poder ser” mais além dela mesma, a crítica a ser feita a
apropriação das orientações da UNESCO e de outros pressupostos, no atual processo
político venezuelano, deve deixar em aberto para avaliações futuras em face de que os
resultados ainda não são completamente visíveis. Contudo, isso não pode impedir a
explicitação de análises que questionem determinados aspectos do processo em curso.
Com este entendimento e com a certeza de que a contradição, intrínseca a toda realidade
social caracteriza o universo social, rompendo com a idéia do desenvolvimento da história
como um todo, e obrigando a uma apreensão do objeto em toda a sua historicidade, é que
78
buscamos, nesse trabalho, identificar e explicitar algumas contradições do próprio projeto
educacional bolivariano e os nexos existentes entre este projeto e a complexa realidade que
a Venezuela está vivenciando. Com certeza, as limitações teóricas da autora e de tempo,
só permitiram uma parcial apreensão dessa rica totalidade.
79
REFERÊNCIAS
ÁLVAREZ, Á.E. La reforma del Estado antes y después de Chávez. In: ELLNER, S.;
HELLINGER, D. (Editores) La política venezolana em la época de Chávez: clases,
polarización y conflito. Caracas: Consejo de Investigación de la Universidad de
Oriente/Editorial Nueva Sociedad, 2003.
BUXTON, J. Política econômica y ascenso de Hugo Chávez al poder. In: ELLNER, S.;
HELLINGER, D. (Editores) La política venezolana em la época de Chávez: clases,
polarización y conflito. Caracas: Consejo de Investigación de la Universidad de
Oriente/Editorial Nueva Sociedad, 2003.
CASANOVA, R. Venezuela después del Liberalismo: de los consensos de la reforma de
los años noventa a un nuevo contrato educativo? (mimeo). 2006
DELORS, J. et al. (Coord.). Educação: um tesouro a descobrir: relatório para a UNESCO
da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI. Tradução José Carlos
Eufrázio. São Paulo: Brasília, DF; Cortez; UNESCO, 1998.
DUARTE, N. As pedagogias do aprender a aprender e algumas ilusões da assim chamada
sociedade do conhecimento. Revista Brasileira de Educação. N. 18, set/out/nov/dez
2001.
EGLEE, M.R. El conocimiento y la reflexión de lo individual y lo colectivo como
herramienta para la educación superior bolivariana. Caracas, 2006. (mimeo).
ELLNER, S. (Introducción) Em la búsqueda de explicaciones. In: ELLNER, S.;
HELLINGER, D. (Editores) La política venezolana em la época de Chávez: clases,
polarización y conflito. Caracas: Consejo de Investigación de la Universidad de
Oriente/Editorial Nueva Sociedad, 2003a.
ELLNER, S. El sindicalismo frente al desafio del chavismo. In: ELLNER, S.;
HELLINGER, D. (Editores) La política venezolana em la época de Chávez: clases,
polarización y conflito. Caracas: Consejo de Investigación de la Universidad de
Oriente/Editorial Nueva Sociedad, 2003b.
ELLNER, S.; HELLINGER, D. (Conclusión) Perspectivas democrática y no democrática
del movimiento chavista. In: ___________. (Editores) La política venezolana em la
época de Chávez: clases, polarización y conflito. Caracas: Consejo de Investigación de la
Universidad de Oriente/Editorial Nueva Sociedad, 2003.
FIGUEROA, L.B.P. De una Educación de Castas a una Educación de Masas. Editorial
Lex. La Habana, 1951.
GARCÍA-GUADILLA, M.P. Sociedad civil: institucionalización, fragmentación,
autonomia. In: ELLNER, S.; HELLINGER, D. (Editores) La política venezolana em la
época de Chávez: clases, polarización y conflito. Caracas: Consejo de Investigación de la
Universidad de Oriente/Editorial Nueva Sociedad, 2003.
80
HELLINGER, D. Visión política general: la caída del puntofijismo y el surgimiento del
chavismo. In: ELLNER, S.; HELLINGER, D. (Editores) La política venezolana em la
época de Chávez: clases, polarización y conflito. Caracas: Consejo de Investigación de la
Universidad de Oriente/Editorial Nueva Sociedad, 2003.
LOMBARDI, J.V. (Prólogo) El permanente dilema de Venezuela: antecedentes de las
transformaciones chavistas. In: ELLNER, S.; HELLINGER, D. (Editores) La política
venezolana em la época de Chávez: clases, polarización y conflito. Caracas: Consejo de
Investigación de la Universidad de Oriente/Editorial Nueva Sociedad, 2003.
LUNA, C.O.C.; MUÑOZ, C.N.S.; SALVAT, C.L. Enseñanza integrada de las ciencias
básicas biomédicas em medicina integral comunitaria. Educ Med Sup. v.20 (1), Havana,
2006.
MÁRQUEZ , P. Por qué la gente voto por Hugo Chávez? In: ELLNER, S.; HELLINGER,
D. (Editores) La política venezolana em la época de Chávez: clases, polarización y
conflito. Caracas: Consejo de Investigación de la Universidad de Oriente/Editorial Nueva
Sociedad, 2003.
MAYA, M.L. Del viernes negro al referendo revocatório. Caracas: Alfadil Ediciones,
2005.
MAYA, M.L. Hugo Chávez Frias, su movimiento y presidência. In: ELLNER, S.;
HELLINGER, D. (Editores) La política venezolana em la época de Chávez: clases,
polarización y conflito. Caracas: Consejo de Investigación de la Universidad de
Oriente/Editorial Nueva Sociedad, 2003.
MAINGON, T. Política Social em Venezuela. Cadernos del CENDES, Caracas, ano 21,
n.o 55, p. 47-72, enero-abril, 2004.
NORDEN, D.L. La democracia em uniforme: Chávez y lãs fuerzas armadas. In: ELLNER,
S.; HELLINGER, D. (Editores) La política venezolana em la época de Chávez: clases,
polarización y conflito. Caracas: Consejo de Investigación de la Universidad de
Oriente/Editorial Nueva Sociedad, 2003.
POLANCO, J.D. Barrio adentro, continente afuera: salud y hegemonia en Venezuela.
Caracas-México: CENDES-UCV/ITAM-CEPI, 2006. Relatório de Pesquisa.
ROBERTS, K. Polarización social y resurgimiento del populismo em Venezuela. In:
ELLNER, S.; HELLINGER, D. (Editores) La política venezolana em la época de
Chávez: clases, polarización y conflito. Caracas: Consejo de Investigación de la
Universidad de Oriente/Editorial Nueva Sociedad, 2003.
SAVIANI, D. A filosofia da educação no Brasil e sua veiculação pela Revista Brasileira de
Estudos Pedagógicos. R. Bras. Est. Pedag., Brasília, 65(150), p. 273 – 290, mai/ago,
1984.
81
________. Tendências e correntes da educação brasileira. In: BOSI, A. SAVIANI, D.;
MENDES, D.F. Filosofia da educação brasileira. Rio de Janeiro: Civilização brasileira,
1987.
UBV. Bases, Criterios y Pautas para el diseño curricular de los Programas de
Formación de la UBV. Caracas, 2 de agosto de 2003.
UBV. Disponível em: <www.ubv.edu.ve>. Acesso em: 25 de abril 2007.
VENEZUELA. Constitución de la República Bolivariana de Venezuela. Gaceta Oficial
extraordinário no 5.453, 24 de mar. 2000.
VENEZUELA, Líneas Generales del Plan de Desarrollo Económico y Social de la
Nación 2001-2007. Caracas, set. 2001.
VENEZUELA. Lei Organica de educación con su Reglamento. Gaceta Oficial
extraordinário no 5662 de 24 de septiembre. 2003.
VENEZUELA. Ministério de Comunicación e Información. Las Misiones Bolivarianas.
Caracas, 2006a. (Colección Temas de Hoy).
VENEZUELA. Ministerio de Educación Superior. Programa nacional para la formación
del médico integral comunitário de la República Bolivariana de Venezuela. Caracas,
2005a.
VENEZUELA. Ministerio de Educación Superior. Universidade Bolivariana de
Venezuela. Programa de Formación de Grado - Gestión en Salud Publica. 2005b.
VENEZUELA. Ministerio de Educación y Deporte. La educación bolivariana. Série:
educación como continuo humano, 1 (6), Caracas, 2004.
VENEZUELA. Programa Nacional de Formación de Educadores y Educadoras –
PNFED, Caracas: coordenación de ediciones de publicaciones - UBV 2006b.
VIEIRA, E. Democracia e Política Social. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1992.
83
AÑO
AÑO
Semestre
UC
Duración en
Semanas
Horas por
Semana
Pre. HS
Ind.
Créd/Año TSxHS
entre 24
Créditos x Semestre
PRIMER AÑO
1er 1er
Proyecto I: Análisis de
Situación de Salud. 18 9 7 2 7 3,4
1er 1\er Ciencia y conocimiento 18 6 3 3 5 2,3
1er 1er
Estado venezolano y el Derecho a
la Salud 18 6 3 3 5 2,3
1er 1er Epidemiología y Demografía 18 8 4 4 6 3,0
1er 1er Proyecto
Bolivariano 18 6 3 3 5 2,3
1er 1er
Información Social y Estad.
en Salud 18 8 4 4 6 3,0
43 24 19 32 16,1
1er 2do
Proyecto I: Análisis de
Situación de Salud. 18 9 7 2 7 3,4
1er 2do Ciencia y conocimiento 18 6 3 3 5 2,3
1er 2do
Estado venezolano y el Derecho a
la Salud 18 6 3 3 5 2,3
1er 2do Cultura e Identidad 18 6 3 3 5 2,3
1er 2do Epidemiología y Demografía 18 8 4 4 6 3,0
1er 2do
Información Social y
Estadística en Salud 18 8 4 4 6 3,0
43 24 19 32 16,1
84
AÑO
Semestre
UC
Duración
Total en Semanas (TS)
Horas por
Semana (HS)
Pre. HS
Ind.
Créd/Año TSxHS
entre 24
Créditos x Semestre
SEGUNDO
AÑO
2do 1er
Proyecto II. Promoción de la Salud 18 10 8 2 8 3,8
2do 1er Salud Integral
I 18 8 4 4 6 3,0
2do 1er Morfofisiología 18 8 4 4 6 3,0
2do 1er
Educación y Comunicación
en Salud 18 6 3 3 5 2,3
2do 1er
Ecología, salud y
calidad de vida 18 8 4 4 6 3,0
2do 1er
Pensamiento Político
Latinoameri-cano y
Venezolano 18 6 3 3 5 2,3
46 26 20 35 17,3
2do 2do
Proyecto II. Promoción de la Salud 18 10 8 2 8 3,8
2do 2do Salud Integral
II 18 8 4 4 6 3,0
2do 2do
Nutrición e Higiene de
los alimentos 18 8 4 4 6 3,0
2do 2do Morfofisiolo-
gía 18 8 4 4 6 3,0
2do 2do Salud Sexual
Integral 18 6 3 3 5 2,3
34 23 17 26 12,8
85
AÑO
Semestre
UC
Duración
Total en Semanas (TS)
Horas por
Semana (HS))
Pre. HS
Ind.
Créd/Año TSxHS
entre 24
Créditos x Semestre
TERCER AÑO
3er 1er
Proyecto III: Redes de
Salud 18 11 9 2 8 4,1
3er 1er Salud Integral
III 18 8 4 4 6 3,0
3er 1er Salud
Ocupacional 18 8 4 4 6 3,0
3er 1er
Gestión y administració
n de Redes de Atención a
la Salud 18 8 4 4 6 3,0
3er 1er
Salud Reproductiva
Humana 18 6 3 3 5 2,3
41 24 17 31 15,4
3er 2do
Proyecto III: Redes de
Salud 18 11 9 2 8 4,1
3er 2do Salud Integral
III 18 8 4 4 6 3,0
3er 2do
Gestión y administració
n de Redes de Atención a
la Salud 18 8 4 4 6 3,0
3er 2do Rehabilitación 18 4 2 2 3 1,5
3er 2do Soberanía y Seguridad 18 4 2 2 3 1,5
3er 2do Alimentación Comunitaria 18 8 4 4 6 3,0
43 25 18 32 16,1
86
AÑO
Semestre
UC
Duración
Total en Semanas (TS)
Horas por
Semana (HS)
Pre. HS
Ind.
Créd/Año TSxHS
entre 24
Créditos x Semestre
4TO. AÑO
4to 1er
Proyecto IV: Diseño y
evaluación de Políticas 18 12 10 2 9 4,5
4to 1er
Diseño y gestión de políticas
públicas en Salud 18 8 4 4 6 3,0
4to 1er
Gestión de Riesgo y
Administración de
desastres 18 8 4 4 6 3,0
4to 1er Electiva 18 6 3 3 5 2,3
4to 1er Electiva 18 6 3 3 5 2,3
40 24 16 30 15,0
4to 2do
Proyecto IV: Diseño y
evaluación de Políticas 18 12 10 2 9 4,5
4to 2do
Diseño y gestión de políticas
públicas en Salud 18 8 4 4 6 3,0
4to 2do
Gestión de Riesgo y
Administración de
desastres 18 8 4 4 6 3,0
4to 2do Electiva 18 6 3 3 5 2,3
4to 2do Electiva 18 6 3 3 5 2,3
40 24 16 30 15,0
87
DISTRIBUCIÓN DE LAS UNIDADES CRÉDITO POR SEMESTRE Y AÑO.
AÑO / TRIMESTRE
PRIMER
SEGUNDO
Total Total Acumu
lado
PRIMERO
16 16 32 32
SEGUNDO
17 13 30 62
TERCERO
15 16 32 94
CUARTO
15 15 30 124
TOTAL 64 60 124
DISTRIBUCIÓN DE HORAS DE DEDICACIÓN POR SEMESTRE Y AÑO.
AÑO / TRIMESTRE
PRIMER
SEGUNDO
Total
PRIMERO
432,0 432,0 864,0
SEGUNDO
468,0 414,0 882,0
TERCERO
432,0 450,0 882,0
CUARTO
432,0 432,0 864,0
TOTAL 1764,0
1728,0 3492,0
88
HORAS DE DEDICACIÓN TOMANDO EL PRIMER SEMESTRE DEL SEGUNDO AÑO COMO BASE POR SER EL MÁS EXIGENTE EN TÉRMINOS DE DEDICACIÓN.
Horas
presenciales x semana
Horas no presenciales x
semana Total dedicación
Máxima exigencia 26,0 20,0 46,0
Reales Presenciales
19,5 15,0 34,5
90
PRIMEIRO ANO: Unidades curriculares:
Morfofisiología I
Morfofisiología II
Morfofisiología III
Deporte recreación y salud
Educando en ciudadanía
Proyecto comunitario I
Introducción a las ciencias sociales
Introducción a la Atención Primaria de Salud
Comunicación
SEGUNDO ANO Unidades curriculares:
Morfofisiología IV
Morfofisiopatología I
Morfofisiopatología II
Deporte recreación y salud
Pensamiento político latinoamericano.
Informática médica
Proyecto comunitario II
Atención Primaria de Salud
Ciencias Sociales y Sociomédicas
Psicología Social y de la Salud
Salud Pública
Epidemiología e Higiene
Historia Natural de la Salud
Bioestadística e Investigación
Intervención Comunitaria
Análisis de la Situación de Salud
91
TERCEIRO ANO - Unidades curriculares:
Propedéutica clínica y semiología médica
Medicina interna
Imagenología
Laboratorio clínico
Agentes Biológicos
Farmacología
Psicología Médica
Proyecto comunitario III
Atención Primaria de Salud
Ciencias Sociales y Sociomédicas
Psicología Social y de la Salud
Salud Pública
Epidemiología e Higiene
Historia Natural de la Salud
Intervención Comunitaria
Ética Médica
Análisis de la Situación de Salud
QUARTO ANO - Unidades curriculares:
Pediatría
Ginecología y obstetricia
Cirugía general
Proyecto comunitario IV
Medicina General Integral I
92
QUINTO ANO - Unidades curriculares:
Psiquiatría
Ortopedia y Traumatología
Urología
Dermatología
Otorrinolaringología
Oftalmología
Proyecto comunitario V
Medicina General Integral II
Salud Pública
Gestión de Salud
Medicina Legal
Investigación en Salud
Medicina Natural y Tradicional
SEXTO ANO - Unidades curriculares
Medicina General Integral
Área de atención al adulto
Área de atención al niño
Área de atención a la mujer y a la embarazada
Área de atención quirúrgica
93
CARGA HORÁRIA DO CURSO
Año Total Horas Presenciales Créditos h/s
Primero 2264 1410 50 56/39
Segundo 2352 1520 54 56/42
Tercero 2352 2016 72 56/42
Cuarto 2352 2016 72 56/42
Quinto 2264 2016 72 56/42
Sexto 2500 2500 89 50/50
Total 14 084 11 478 409 -
SEMANA TIPICA
LUNES MARTES MIERCOLES JUEVES VIERNES SABADO
MAÑANA 4 Horas
Encuen-tro en el núcleo docente Momento Evaluativo Frecuente
Consul-torio Popular
Consul-torio Popular
Encuentro en el núcleo docente
Consoli-dación de contenidos
Consul-torio Popular
Encuen-tro en el núcleo docente Consul-ta obligatoria dirigida Preparación de Profesores
TARDE 4 Horas
Encuen-tro en el núcleo docente Orienta-ción de Contenido
Consul-torio Popular
Consul-torio Popular
Forma-ción general
(Ciudada-nía, E. Física Idiomas)
Consul-torio Popular
Consul-ta obliga-toria dirigida Prepara-ción de Profe-sores
NOCHE
Estudio Indepen-diente
Estudio Indepen-diente
Estudio Indepen-diente
Estudio Indepen-diente
Estudio Indepen-diente
Consul- torio popular
24 h Encuen- tro Núcleo Docente
12 h Actividad Docente de Fomación General
4h Estudio Colecti- vo dirigido