imaginÁrio, cultura e educaÇÃo: um estudo de...

23
CULTURA E EDUCAÇÃO: UM ESTUDO DE CASO NUMA ESCOLA DE REASSENTADOS Adrian Alvarez Estrada 1 RESUMO: Na tentativa de estudar a cultura de uma escola e de descortinar sua dimensão imaginária, um dos caminhos utilizados como instrumento de sócio- diagnóstico é a Culturanálise de Grupos, proposta por Paula Carvalho, com a qual pretendemos compreender o nível de funcionamento dos grupos de alunos, tanto no aspecto patente quanto no latente da cultura grupal. O objetivo desta comunicação é, então, apresentar alguns resultados relativos ao estudo realizado numa organização educativa, não somente quanto a aspectos concernentes à sua organização burocrática ou a currículos e programas desenvolvidos, mas, sobretudo, quanto às manifestações da dimensão simbólica da escola e dos grupos que agem em seu interior, sobretudo aqueles constituídos pelos alunos, para tentar apreender as conseqüências que o processo de mudança para o reassentamento provocaram nesses e de que forma tal mudança foi sentida. PALAVRAS-CHAVE: cultura; educação; complexidade; imaginário. INTRODUÇÃO Em nível teórico, a bibliografia mais tradicional sobre organização e administração escolar (Alonso, 1981; Drucker, 1971; Griffiths, 1971; Leão, 1953; Lodi, 1973; Motta, 1986; Silva, 1974; Taylor, 1986) apresenta-nos a escola como uma unidade, como uma estrutura, na qual o bom funcionamento depende da harmonia das partes que a compõem. Dentro de cada uma dessas são necessárias uma coesão e uma organicidade tal, que o pessoal humano que a compõe perde sua identidade e seu caráter ímpar para tornar-se um “agregado”, que deve pensar, agir e sentir de maneira semelhante. Isto dentro de uma sala de aula torna-se muito claro, na medida em que o professor geralmente espera que todos os alunos possuam um mesmo padrão de comportamento, que aprendam em um mesmo ritmo, que reajam de maneira semelhante frente a uma motivação: desaparece a unidade aluno para dar espaço à unidade classe. Nesta perspectiva: 1 Doutor em Educação pela USP; Mestre em Educação pela USP; Coordenador do Colegiado do Curso de Pedagogia da UNIPAR/Cascavel. e-mail: [email protected].

Upload: haduong

Post on 08-Dec-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

CULTURA E EDUCAÇÃO: UM ESTUDO DE CASO NUMA ESCOLA DEREASSENTADOS

Adrian Alvarez Estrada1

RESUMO: Na tentativa de estudar a cultura de uma escola e de descortinar suadimensão imaginária, um dos caminhos utilizados como instrumento de sócio-diagnóstico é a Culturanálise de Grupos, proposta por Paula Carvalho, com a qualpretendemos compreender o nível de funcionamento dos grupos de alunos, tanto noaspecto patente quanto no latente da cultura grupal. O objetivo desta comunicação é,então, apresentar alguns resultados relativos ao estudo realizado numa organizaçãoeducativa, não somente quanto a aspectos concernentes à sua organizaçãoburocrática ou a currículos e programas desenvolvidos, mas, sobretudo, quanto àsmanifestações da dimensão simbólica da escola e dos grupos que agem em seuinterior, sobretudo aqueles constituídos pelos alunos, para tentar apreender asconseqüências que o processo de mudança para o reassentamento provocaramnesses e de que forma tal mudança foi sentida.

PALAVRAS-CHAVE: cultura; educação; complexidade; imaginário.

INTRODUÇÃO

Em nível teórico, a bibliografia mais tradicional sobre organização e administração

escolar (Alonso, 1981; Drucker, 1971; Griffiths, 1971; Leão, 1953; Lodi, 1973; Motta,

1986; Silva, 1974; Taylor, 1986) apresenta-nos a escola como uma unidade, como

uma estrutura, na qual o bom funcionamento depende da harmonia das partes que a

compõem. Dentro de cada uma dessas são necessárias uma coesão e uma

organicidade tal, que o pessoal humano que a compõe perde sua identidade e seu

caráter ímpar para tornar-se um “agregado”, que deve pensar, agir e sentir de maneira

semelhante. Isto dentro de uma sala de aula torna-se muito claro, na medida em que

o professor geralmente espera que todos os alunos possuam um mesmo padrão de

comportamento, que aprendam em um mesmo ritmo, que reajam de maneira

semelhante frente a uma motivação: desaparece a unidade aluno para dar espaço à

unidade classe. Nesta perspectiva: 1 Doutor em Educação pela USP; Mestre em Educação pela USP; Coordenador do Colegiado do Curso de Pedagogiada UNIPAR/Cascavel. e-mail: [email protected].

(...) os estudos sobre administração escolar dominantes buscavam nasteorias clássicas de administração de empresas (taylorismo, fayolismo,fordismo, relações humanas, capital humano, sistêmicas, etc.) apossibilidade de aplicação nas organizações educativas. As palavras deordem eram racionalidade, eficiência, produtividade, consenso, etc. e oenfoque, ou micro ou macrosistêmico, era o liberal-funcionalista. (Porto,2000:17)

No final dos anos 70, através da gradativa abertura política brasileira, houve uma

influência muito grande das chamadas “teorias críticas” sobre administração escolar

que, ainda segundo Porto (op.cit.), afirmavam que a direção da escola deveria ter uma

função política de conscientização, visto que o Estado a utilizava como um

instrumento de dominação e reprodução da ideologia capitalista.

Entretanto, através de atividades realizadas em escolas – seja como aluno, seja como

professor –, percebi aquilo que, nas palavras da autora, seria

(...) um ´elo perdido´ que essas explicações não conseguiam detectar. Erammanifestações que ocorriam no cotidiano das escolas, que não seenquadravam tão bem nessas teorias, como era de se desejar. Por quealgumas escolas funcionavam bem e outras não? Por que, apesar de seremsubmetidas às mesmas formas de funcionamento, elas eram ao mesmotempo tão diferentes e tão iguais? (Porto, op.cit.:18)

Podemos perceber que no campo da pesquisa educacional houve um esgotamento

dos grandes enfoques explicativos que, ao analisarem as organizações escolares

apenas de uma perspectiva macroestrutural, consideram-na como um simples reflexo

do político e do econômico. Sobretudo os enfoques de cunho marxista, que

privilegiam a noção de infra-estrutura na dinâmica sócio-cultural e organizacional: (...)a educação contribui para a instauração e preservação de uma novahegemonia, de uma nova dominação exercida por uma nova classe social,porém justificada pela busca de uma sociedade mais igualitária, mais justa efeliz. (Teixeira, 1987:81)

Neste sentido, a proposta deste texto é (re)pensar a organização escolar2

considerando sua dimensão cultural, na qual se realizam as práticas simbólicas

organizadoras do real social – prática simbólica entendida por Paula Carvalho (1991)

2 “O campo de estudos sobre as organizações já foi recortado pela sociologia das organizações, psicossociologia dasorganizações, teoria das organizações, dentre as abordagens mais evidenciadas. E a teoria geral da administração,teoria do planejamento, política educacional, etc. compete extrair desse corpus as conversões actanciais (...) oenfoque antropológico deles se destacará não tanto porque se preocupa com a dimensão do homem nasorganizações; não tanto porque se preocupe com a realização de uma abordagem sintética e parcelar mas, sobretudo,porque se propõe primordialmente a questão paradigmática e, como nos lembra Edgar Morin, é ao nível doparadigma que mudam a visão da realidade, a realidade da visão, o rosto da ação e que, em suma, muda a realidade”.Cf. Paula Carvalho, 1990:16 (grifos do autor)

2

como a cristalização em ação de um universo imaginário numa práxis, através de um

sistema sócio-cultural e de suas instituições. Toda e qualquer prática simbólica

agencia, segundo esse autor (op.cit.:83), processos simbólico-organizacionais de teor

educativo. Na escola, as manifestações do imaginário podem ser apreendidas pelo

estudo da cultura e do imaginário dos grupos que nela interagem, especialmente de

alunos, considerando-se que os aspectos culturais e referentes ao imaginário

interferem na dinâmica interna da escola, mantendo, inibindo ou modificando as

práticas sociais vigentes.

Essa abordagem encontra-se inserida num quadro epistemológico ampliado, do

paradigma holonômico, no qual se situa a Antropologia das Organizações e da

Educação, área de estudo fundada por José Carlos de Paula Carvalho, em 1986, na

Faculdade de Educação da USP, cujos estudos fundamentam-se na Antropologia da

Complexidade de Edgar Morin, na Antropologia do Imaginário de Gilbert Durand e na

Sócio-antropologia do Cotidiano de Michel Maffesoli, além de outros autores, cujas

teorias são convergentes ou complementares a essas.

A Antropologia das Organizações e da Educação busca dirigir à escola um “novo

olhar”, que privilegie sua dimensão cultural, na qual se realizam as práticas simbólicas

organizadoras do real e se expressam o simbólico e o imaginário, os quais se

consubstanciam no cotidiano escolar. Tem como objetivos, segundo Paula Carvalho

(1990:17) evidenciar a dimensão simbólica do discurso e da ação organizacional e

repensar a organização escolar a partir do estudo das práticas simbólicas e

educativas, articuladas ao imaginário sócio-cultural mais amplo.

De acordo com a Antropologia das Organizações, a escola é concebida como um

sistema simbólico, um sistema sócio-cultural constituído por grupos com uma vivência

real de códigos e sistemas de ação. Considera-se que a cultura torna possível os

contatos dos homens em sociedade e a vida social. Para Morin, cuja noção é adotada

neste trabalho, cultura é um circuito que liga os sistemas “simbólicos-códigos-normas”

e as “práticas simbólicas” da vida cotidiana, “... é um sistema que faz comunicarem-se

– dialetizando-se – um saber constituído e uma experiência existencial”. (1984:41)

Na tentativa de estudar a cultura de uma escola e de descortinar sua dimensão

imaginária, um dos caminhos utilizados como instrumento de sócio-diagnóstico será a

3

Culturanálise de Grupos, proposta por Paula Carvalho, com a qual pretendemos

compreender o nível de funcionamento dos grupos de alunos, tanto no aspecto

patente quanto no latente da cultura grupal. Para tanto, foi selecionada uma escola da

região oeste do Paraná, a partir da qual realizamos um estudo de caso.

O objetivo deste texto é, então, apresentar alguns resultados relativos ao estudo

realizado na referida escola, não somente quanto a aspectos concernentes à sua

organização burocrática ou a currículos e programas desenvolvidos, mas, sobretudo,

quanto às manifestações da dimensão simbólica da escola e dos grupos que agem

em seu interior, sobretudo aqueles constituídos pelos alunos, para tentar apreender as

conseqüências que o processo de mudança para o reassentamento provocaram

nesses e de que forma tal mudança foi sentida.

A maioria dos estudos sobre Escolas de Reassentamento caracteriza-se por imprimir

uma perspectiva crítica a partir de um enfoque político, uma visão marxista-

progressista sobre a organização escolar, evidenciando a perda da terra e buscando

alternativas de reconstrução e reorganização social das famílias atingidas, sobretudo

através da educação e da escola. Entendo que essas perspectivas são importantes,

mas, por se tratarem de uma abordagem macro-estrutural, privilegiam apenas alguns

aspectos do fenômeno, não conseguindo explicar a realidade de forma mais ampla e

mais profunda.

Pois bem, este estudo pretende levantar o regime de imagens do grupo de alunos

estudado, para mostrar como e de que forma esses foram influenciados pelas

mudanças ocorridas em suas vidas. Neste sentido, nosso estudo diferencia-se dos

demais por privilegiar – na organização escolar – a dimensão cultural e imaginária, na

qual se realizam as práticas simbólicas organizadoras de seu cotidiano e que

influenciam fortemente o imaginário dos grupos que interagem em seu interior.

Como foi dito anteriormente, percebemos que os grandes enfoques explicativos sobre

a administração escolar não conseguem dar conta de uma realidade educacional cada

vez mais complexa, heterogênea e plural, necessitando, assim, de novas abordagens

que permitam realizar uma outra leitura da organização escolar. Nesta perspectiva,

4

procuraremos levantar as estruturas profundas do imaginário do grupo de alunos da

escola em questão, de modo a poder mapear a paisagem mental3 desse grupo.

3 Paisagem mental entendida como o modo de pensar, sentir e agir do grupo.

5

A QUESTÃO PARADIGMÁTICA

A questão paradigmática será explicitada, neste item, para nortear o leitor na linha de

abordagem utilizada para a realização deste trabalho. A nossa opção se volta para o

paradigma holonômico, pretendendo apresentar sua importância no estudo das

organizações, suas características de base, a relação da questão paradigmática e a

proposta de uma Antropologia das Organizações, mais especificamente, das

organizações educativas.

Mas o que é paradigma? Segundo Prado Coelho (1982:21), poderá ... significar ‘modelo’, poderá significar ‘problemática’, ‘horizontemetodológico’, ‘epistema’ e, sem dúvida significa alguma dessas coisas, nemtodas, mas algumas, mesmo de um modo às vezes oblíqüo ou difuso – averdade é que um autor, quando escolhe a palavra ‘paradigma’, e afasta asoutras do elenco semântico de que dispunha, pretende significar algumacoisa com essa escolha. Mesmo que apenas seja uma mera afinidade comoutras linguagens, outros domínios.

Ainda segundo Prado Coelho (s/d:43): Em Edgar Morin, define-se o paradigma como um conjunto de princípiosfundamentais, agindo no interior e acima das teorias, que, de um modoinconsciente e invisível, isto é, oculto, controlam e determinam a organizaçãodo conhecimento científico e o próprio uso da lógica. (Grifos do autor)

Segundo Morin (2000:45), ... o paradigma também é alguma coisa que não resulta das observações.De alguma forma, o paradigma é aquilo que está no princípio da construçãodas teorias, é o núcleo obscuro que orienta os discursos teóricos neste ounaquele sentido.

Porém, foi Thomas Kuhn (1996) o primeiro a dar uma ampla dimensão à noção de

paradigma - termo grego que significa modelo, episteme (entendida no sentido de

cosmovisão, da forma pelo qual o mundo é percebido e representado). Paradigma é

utilizado por esse autor em vários sentidos. No nosso caso, convém explicitar o

sociológico e o epistemológico. No sentido sociológico, paradigma é a estrutura

absoluta de pressupostos que alicerça uma comunidade científica, isto é, o conjunto

de valores, crenças, técnicas, normas partilhados pela comunidade científica. No

sentido epistemológico, é um esquema de pensamento para a explicação e

compreensão da realidade (p. 218). Ao retomar a noção de Collingwood, dela extraiu

6

a idéia de sistema de pressuposições4, definindo paradigma como uma estrutura

absoluta de pressupostos que alicerça uma comunidade científica.

Entendemos com Kuhn (op.cit., Cap. 9), que “revoluções científicas” (Harman, 1995;

Kuhn, 1996) são episódios de desenvolvimento, nos quais um paradigma mais antigo

é total ou parcialmente substituído por outro. Considerando-o como uma forma de

olhar a realidade, a pergunta que se coloca é a da questão paradigmática: como se dá

essa mudança? Por quê?

Para Kuhn (op.cit.), essa mudança surge do sentimento de que o paradigma antigo

deixou de responder adequadamente à compreensão da realidade. Nos momentos iniciais, próximos à mutação paradigmática, os pressupostossão explícitos, conscientes, deslizando, porém, para o inconsciente, para onível do implícito, quando a crise se atenua. Nesse momento, pode tornar-seum obstáculo ao diálogo. (Teixeira & Porto, 1995:23)

Para Prado Coelho (1982:25) ... o ‘olhar’ epistêmico de hoje está inteiramente aberto para os impossíveisde outrora: o vago, a desordem, o fluxo, o rizoma, a diferença, o plural. Emlugar de mudar de linguagens nota-se mudar de olhar. É isso um paradigma:uma forma de olhar. Mudar de paradigma: mudar de olhar.

Segundo Paula Carvalho (1987:48), a explicitação do paradigma é de fundamental

importância na pesquisa científica, ... pois o fato dele ter se tornado implícito no diálogo elimina o caráter dediálogo e as partes, comprometidas com diferentes cosmovisões, não sódeixam de falar uma com a outra, passando a falar uma contra a outra; alémdo que, freqüentemente, por não saberem desde onde falam, não sabemrealmente o que falam – pelo desconhecimento, pela de-negação ou nãotematização dos quadros paradigmáticos.

Ainda segundo Paula Carvalho (1990:21), a tendência de o paradigma parametrizar

inconscientemente o conhecimento e a ação da comunidade científica é importante,

não apenas no que se refere à comunicação, mas, principalmente, por florescer nessa

comunidade um sistema de defesas que, ao articular o saber e poder, produz o que

Marilena Chauí (1982) chama de “discurso competente”. Assim, a questão

paradigmática pode encaminhar uma proposta de crítica eficiente a partir da qual se

poderia dar uma re-paradigmatização.

4 Collingwood define a teoria como um sistema formado por rede de pressuposições e relações de significado. Cf.Prado Coelho, 1982:29.

7

Assim sendo, a explicitação do paradigma torna-se cada vez mais importante para a

compreensão da crise dos grandes sistemas interpretativos que, gradualmente, vêm

perdendo sua capacidade de explicar uma realidade cada vez mais complexa,

heterogênea e plural. Assiste-se hoje a uma saturação desses grandes sistemas, que

têm falhado na sua pretensão racionalista de organizar em macromodelos e

macrossistemas os vários aspectos do real. É o que alguns autores têm chamado de

crise do paradigma dominante, também denominado “clássico” ou “da simplificação”

(Morin, 2000).

Segundo Souza Santos (1998:48), o modelo que preside à ciência moderna –

constituído a partir da revolução científica do século XVI –, é global e totalitário, e

nega o caráter racional, portanto científico, a todas as formas de conhecimento que

não se pautam pelos seus princípios epistemológicos e por suas regras

metodológicas. Ressaltemos que esse modelo, constituído nas ciências naturais,

impôs-se também às ciências humanas e sociais que, se não conseguissem adotar

seus princípios, eram chamadas de pré-paradigmáticas.

O paradigma dominante (clássico) enfrenta atualmente uma crise teórica resultante do

avanço do conhecimento, principalmente nos campos da microfísica, da química e da

biologia. Fundando-se em uma razão fechada, cujos princípios são a simplificação,a generalização e a disjunção, encaminha um pensamento simples quereduz o complexo ao simples, ao separar a realidade em fragmentos; rejeitao acaso, a desordem, o singular; separa o sujeito do objeto e este do seuambiente; e elimina a incerteza, a ambigüidade, o contraditório e acomplexidade do real. (Teixeira & Porto, 1995:24)

Desse modo, o método da ciência clássica, fundamentado no duplo princípio da

disjunção e da redução, reconduz o conhecimento do objeto àquelas unidades

elementares que o constituem, ocultando as suas interações organizadoras.

Ainda segundo Souza Santos (op.cit.), a reflexão epistemológica acerca do

conhecimento científico nos mostra que este exigiu um rigor científico que

“marginalizou” tudo o que não pode ser explicado pela razão. O rigor científico, porque fundado no rigor matemático, é um rigor quequantifica e que, ao quantificar, desqualifica, um rigor que, ao objetivar osfenômenos, os objetualiza e os degrada, que, ao caracterizar os fenômenos,os caricaturiza. É, em suma e finalmente, uma forma de rigor que, ao afirmara personalidade do cientista, destrói a personalidade da natureza. Nestes

8

termos, o conhecimento ganha em rigor o que perde em riqueza e aretumbância dos êxitos da intervenção tecnológica esconde os limites danossa pergunta pelo valor humano do afã científico assim concebido. Estapergunta está, no entanto, inscrita na própria relação sujeito/objeto quepreside à ciência moderna, uma relação que interioriza o sujeito à custa daexteriorização do objeto, tornando-os estanques e incomunicáveis. (p. 58)

Para Morin (2000), a razão clássica tornou-se o grande mito do saber, da ética e da

política. O racionalismo5 exacerbado, que prevalece na sociedade industrial, conduz a

uma autodestruição da razão, a uma desrazão. A razão técnica coloca-se a serviço da

dominação. Pode-se dizer que a industrialização, a urbanização, a burocratização, atecnologização são efetuadas segundo regras e princípios de racionalização,isto é, a manipulação de indivíduos tratados como coisas em proveito dosprincípios da ordem, da economia e da eficácia. (Teixeira & Porto, op.cit.:25)

Nesse sentido, cada vez mais surgem críticas ao paradigma clássico, realizadas por

autores das mais diversas filiações teóricas e ideológicas6. Essas críticas procuram

evidenciar o papel desempenhado na sociedade moderna pelo racionalismo e pela

racionalização generalizada que dele decorreu, realçando a polarização paradigmática

que circunscreve, de um lado, esse paradigma e, de outro, novas propostas

paradigmáticas: “paradigma holista” (Koestler), “paradigma do antagonismo

contraditorial” (Lupasco, Durand), “paradigma holonômico”7 (Colóquio de Córdoba) e

“paradigma da complexidade” (Morin).

Segundo Souza Santos (op.cit.:59-60) (...) a configuração do paradigma que se anuncia no horizonte só pode obter-se por via especulativa. Uma especulação fundada nos sinais que a crise doparadigma atual emite mas nunca por eles determinada.

5 Morin faz distinções entre os conceitos de razão, racionalidade, racionalismo e racionalização. A razão é o métodode conhecimento baseado no cálculo e na lógica (ratio significa cálculo), empregado para resolver problemascolocados ao espírito, em função dos dados que caracterizam uma situação ou um fenômeno. A racionalidade é oestabelecimento de adequação entre uma coerência lógica (descritiva, explicativa) e uma realidade empírica. Oracionalismo pode significar, primeiro, uma visão do mundo afirmando a concordância perfeita entre o racional(coerência) e a realidade do universo; exclui, portanto, do real o irracional e o a-racional. Segundo, uma éticaafirmando que as ações e as sociedades humanas podem e devem ser racionais em seu princípio, sua conduta, suafinalidade. A racionalização é a construção de uma visão coerente, totalizante do universo, a partir de dados parciais,de uma visão parcial, ou de um princípio único. Assim, a visão de um só aspecto das coisas (rendimento, eficácia), aexplicação em função de um fator único (o econômico ou o político), a crença de que os males da humanidade sãodevidos a uma só causa e a um só tipo de agentes constituem outras tantas racionalizações. A racionalização pode, apartir de uma proposição inicial totalmente absurda ou fantasmática, edificar uma construção lógica e dela deduzirtodas as suas conseqüências práticas. A aventura da razão ocidental, desde o século XVII, produziu, por vezessimultânea e indistintamente, racionalidade, racionalismo, racionalizações. Cf. Morin, 2000:157-158.6 Segundo Souza Santos (2000:11) “... a época em que vivemos deve ser considerada uma época de transição entre oparadigma da ciência moderna e um novo paradigma, de cuja emergência se vão acumulando os sinais, e a que, àfalta de melhor designação, chamo ciência pós-moderna”.7 Como foi evidenciado por David Bohn no Colóquio de Córdoba, o termo holonômico refere-se à estruturação efuncionamento de totalidades, razão pela qual é mais adequado que o termo holista. Este, segundo Morin, ao reduziras propriedades das partes às propriedades do todo, simplifica o problema da unidade complexa e, assim, ao operar aredução do todo, dissolve as partes pela totalidade.

9

Os novos paradigmas emergentes abrem caminho para uma comunicação

transdisciplinar, oposta ao isolamento disciplinar do paradigma clássico. Ou seja,

pode-se afirmar que a transdisciplinaridade é uma de suas características.

A seguir o esquema de Bentov adotado por Paula Carvalho (1990:22), que compara

esses paradigmas.

Parâmetros Paradigma Clássico Paradigma HolonômicoOntologia Dualista/dicotômica Monista/pluralistaEpistemologia Objetiva/analítica Subjetiva/interativaMetodologia Empírica Fenomenológica/analógicaCausalidade Determinista Teleonômica/probabilistaAnálise Redutiva Metafísica/estruturalDinâmica Entrópica Nulentrópica/neguentrópica

No entanto, não se trata aqui de invalidar o paradigma clássico, mas sim de

reconduzi-lo aos seus limites. Segundo Paula Carvalho (1986:90), a crítica que deve

ser feita não é ao paradigma em si, mas ao seu injustificado expansionismo, à

pretensão de que possa alçar-se do domínio no qual dá perfeitamente conta dos

fenômenos para o domínio do “universal”, tentando tudo explicar. Em outras palavras,

desde que reconduzido aos seus limites, ao que se propôs, um paradigma conserva

sempre sua validade. Portanto, a questão paradigmática deve ser considerada a partir

dos princípios da recondução aos limites e da complementaridade entre os

paradigmas, fazendo com que as duas leituras paradigmáticas não se excluam

mutuamente.

Ainda segundo Edgar Morin (2001b:393), a questão paradigmática vai além de

simples questões epistemológicas ou metodológicas, já que envolve o

questionamento dos quadros gnoseológicos (pensamento da realidade) e ontológicos

(natureza da realidade), os quais se referem aos princípios fundamentais que regem

os fenômenos e o pensamento. Para esse autor, a problemática epistemológica

baseia-se nas noções de pluralidade e complexidade dos sistemas físicos, biológicos

e antropossociológicos, cuja compreensão requer um outro paradigma - o da

complexidade - que, por sua vez, funda-se numa outra razão - razão aberta -, que se

caracteriza por ser evolutiva, residual, complexa e dialógica.

10

A razão é evolutiva, porque progride por mutações e reorganizações profundas.

Citando Piaget, Morin mostra que a razão não constitui uma invariante absoluta, mas

se elabora por uma série de construções operatórias, criadoras de novidades, a qual

corresponde a mudanças paradigmáticas. É residual, porque acolhe o a-racional e o

sobre-racional. É complexa, porque reconhece a complexidade da relação

sujeito/objeto, ordem/desordem, reconhecendo, também em si própria, uma zona

obscura, irracional e incerta, abrindo-se ao acaso, à álea, à desordem, ao anômico e

ao a-estrutural. É dialógica, porque opera com macro-conceitos recursivos, ou seja,

grandes unidades teóricas de caráter complementar, concorrente e antagonista.

O paradigma da complexidade (que se opõe ao paradigma da simplificação)

encaminha um pensamento complexo que, segundo Morin (2000:387), ... parte de fenômenos, ao mesmo tempo, complementares, concorrentes eantagonistas, respeita a coerências diversas que se unem em dialógicas epolilógicas e, com isso, enfrenta a contradição por várias vias.

Assim sendo, utiliza o conceito básico de “sistema auto-organizado complexo”, que

remete à noção chave de unitas multiplex8.

Para Morin (2002a:133) a organização é ... o encadeamento de relações entre componentes ou indivíduos que produzuma unidade complexa ou sistema, dotada de qualidades desconhecidasquanto aos componentes ou indivíduos.

A primeira - e fundamental - complexidade do sistema é associar em si mesmo as

idéias de unidade e de multiplicidade que, em princípio, repelem-se e se excluem.

Como não se pode reduzir o todo às partes, nem as partes ao todo (nem o um ao

múltiplo, nem o múltiplo ao um), Morin concebe tais noções de modo complementar,

concorrente e antagonista, em outras palavras, numa relação de recursividade, num

processo ... pelo qual uma organização ativa produz os elementos e efeitos que sãonecessários a sua própria geração ou existência, processo circular pelo qual

8 Para Morin, “(...) a educação do futuro deve ser responsável para que a idéia de unidade da espécie humana nãoapague a idéia de diversidade e que a da sua diversidade não apague a de unidade. Há uma unidade humana. Háuma diversidade humana. A unidade não está apenas nos traços biológicos da espécie humana homo sapiens. Adiversidade não está apenas nos traços psicológicos, culturais e sociais do ser humano. Existe também diversidadepropriamente biológica no seio da unidade humana; não apenas existe unidade cerebral, mas mental, psíquica,afetiva, intelectual; além disso, as mais diversas culturas e sociedades têm princípios geradores ou organizacionaiscomuns. É a unidade humana que traz em si os princípios de suas múltiplas diversidades. Compreender o humano écompreender sua unidade na diversidade, sua diversidade na unidade. É preciso conceber a unidade do múltiplo, amultiplicidade do uno”. Cf. Morin, 2001b:55.

11

o produto ou o efeito último se torna elemento primeiro e a causa primeira.(Morin: op.cit.:186)

Ou seja, a idéia de recursividade reforça e esclarece a idéia de totalidade ativa, isto é,

da organização ser capaz de produzir-se a si própria, de se regenerar, enfim, de se

reorganizar de modo permanente. E é evidente que uma realidade que se organiza de

modo complexo requer, para sua compreensão, um pensamento complexo, que ... deve ultrapassar as entidades fechadas, os objetos isolados, as idéiasclaras e distintas, mas também não se deixar enclausurar na confusão, novaporoso, na ambigüidade, na contradição. Ele deve ser um jogo/trabalhocom/contra a incerteza, a imprecisão, a contradição. Sua exigência lógicadeve, pois, ser muito maior que aquela do pensamento simplificante, porqueele combate permanentemente numa ‘terra de ninguém’, nas fronteiras dodizível, do concebível, do a-lógico, do ilógico. (Morin, 2000:387)

Enfim, Morin (2002a:381) propõe uma reparadigmatização, que se funda numa outra

lógica, a partir da noção de recursividade; esta... traz em si o princípio de um conhecimento nem atomístico, nem holístico(totalidade simplificante). Ela significa que não se pode pensar senão a partirde uma praxis cognitiva (anel ativo) que faz interagirem, produtivamente,noções que são estéreis quando disjuntadas ou somente antagonistas.Significa que toda explicitação, ao invés de ser reducionista/simplificadora,deve passar por um jogo retroativo/recursivo que se torna gerador de saber.

O PENSAMENTO COMPLEXO EM EDGAR MORIN

Para entendermos o pensamento complexo em Edgar Morin, é necessário explicitar -

em primeiro lugar - os conceitos de ordem e desordem.

O conceito de ordem extrapola as idéias de estabilidade, rigidez, repetição e

regularidade, unindo-se à idéia de interação, e imprescinde, recursivamente da

desordem, que comporta dois pólos: um objetivo e outro subjetivo. O objetivo é o pólo

das agitações, dispersões, colisões, irregularidades e instabilidades, em suma, os

ruídos e os erros. O pólo subjetivo é “... o da impredictibilidade ou da relativa

indeterminabilidade. A desordem, para o espírito, traduz-se pela incerteza” (Morin,

2000:200); traz consigo o acaso, ingrediente inevitável de tudo que nos surge como

desordem. (idem: 178)

Os estudos da Física, a partir do século XIX, relacionados à termodinâmica, explicam

que qualquer processo de ordenação precisa de energia e que nem toda energia

12

disponível será utilizada para criar ordem; parte será rejeitada na forma de calor. Isto

significa que todo processo de ordem se dá às custas de uma maior desordem -

relacionado ao segundo princípio de termodinâmica, que é simultaneamente um

princípio irreversível de degradação de energia, de desordem - e tem como

conseqüência que a desordem (entropia) do universo é sempre crescente. Segundo

Morin (op.cit.:233), existe uma relação entropia-neguentropia, na qual a segunda não

supera a primeira, ... pelo contrário, como todo fenômeno de consumo de energia, decombustão térmica, provoca-a, acentua-a (...) o ser vivo combate a entropiareabastecendo-se de energia e informação, no exterior, no ambiente e,esvaziando no exterior, sob forma de resíduos degradados que não podeassimilar, ao mesmo tempo, a vida reorganiza-se sofrendo interiormente ocaráter desorganizador mortal da entropia.

Desse modo, a entropia participa da neguentropia que, por sua vez,

depende da entropia.

Tetragrama de Morin (2000:204)

Ordem Desordem

Interação Organização

Esse tetragrama demonstra a concepção do universo a partir de uma dialógica entre

estes termos, cada um deles chamando o outro, cada um precisando do outro para seconstituir, cada um inseparável do outro, cada um complementar do outro,sendo antagônico ao outro (Morin, 2000:204).

Esse princípio dialógico nos permite manter a dualidade no sentido da unidade.

Morin respeita as diversas coerências, trabalhando e aceitando o antagonismo, a

complexidade e a contraditorialidade, que, antes de serem desintegradores, interagem

e reorganizam o sistema. Ou seja, ele utiliza-se do anel tetralógico para explicar

essa relação recursiva (circuito de alimentação recíproca), complementar (sociedades,

13

associações, mutualismos), concorrente (competições e rivalidades) e antagonista

(parasitismos, depredações) (Morin, 2001a:360). Enquanto ´anel´ significa circuito de re-alimentação recíproca e permanente,ou recursividade organizacional e, enquanto tetrálogo, a co-produçãorecíproca da desordem e da ordem. Temos, assim, um pensamentocomplexo que acolheu a álea e, ampliadamente, a desordem como elementoestruturante, e da estrutura. (Paula Carvalho, 1987:55)

Essa idéia de complexidade não pretende, segundo Morin, substituir conceitos de

clareza, certeza, determinação e coerência pelos de ambigüidade, incerteza e

contradição, mas fundamenta-se na necessidade de convivência, interação e trabalho

mútuo entre tais princípios.

Sintetizando, para o autor (2001b:38-39) o conhecimento pertinente deve enfrentar a

complexidade. Complexus significa o que foi tecido junto; de fato, há complexidade quandoelementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (como oeconômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico), ehá um tecido interdependente, interativo e retroativo entre o objeto deconhecimento e seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, aspartes entre si. Por isso a complexidade é a união entre a unidade e amultiplicidade (...) A educação deve promover a ´inteligência geral´ apta ereferir-se ao complexo, ao contexto, de modo multidimensional e dentro daconcepção global.

IMAGINÁRIO E EDUCAÇÃO

Neste item abordaremos a noção de imaginário, destacando seu valor heurístico para

o campo da pesquisa educacional. Nossa opção é pela Teoria Geral do Imaginário, de

Gilbert Durand9, teoria aqui entendida como a matriz a partir da qual se desenvolvem

as abordagens de um autor. Diferentemente das demais abordagens do imaginário

que se situam em diferentes teorias, como, por exemplo, a teoria da sociedade de

Castoriadis, a teoria da história da Escola de Frankfurt ou a teoria ontológica das

formas de consciência de Sartre, em Durand, segundo Teixeira (1994a:8), o

imaginário é ... o fundamento fundante sobre o qual constrói todas as suas concepçõesde homem, de mundo, de sociedade, dando conta, por isso, da relaçãoindivíduo/sociedade e natureza/cultura.

9 A base teórica sobre o imaginário explicitada neste texto encontra-se em Durand, G. As estruturas antropológicasdo imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

14

Ainda para Durand, de acordo com Porto (2000:20-21),(...) o estudo do imaginário permite a compreensão dos dinamismos queregulam e vida social e suas manifestações culturais. O imaginário consiste-se do capital inconsciente dos gestos do sapiens, mas é também o conjuntode imagens e de relações de imagens que constituem o capital pensado dohomo sapiens e o universo das configurações simbólicas e organizacionais.Está, pois, subjacente aos modos de pensar, sentir e agir de indivíduos,culturas e sociedades.

A partir da crítica que faz à desvalorização da imagem e do imaginário no pensamento

ocidental clássico, Gilbert Durand constrói a sua Teoria Geral do Imaginário. Para o

autor (1997:21): O pensamento ocidental e especificamente a filosofia francesa têm porconstante tradição desvalorizar ontologicamente a imagem epsicologicamente a função da imaginação ‘fomentadora de erros e defalsidades’.

Ainda segundo Durand (op.cit.:21-22): ... a imaginação é reduzida pelos clássicos àquela franja aquém do limiar dasensação que se chama imagem remanescente ou consecutiva. É sobreesta concepção de um imaginário desvalorizado que floresce oassociacionismo, esforço certamente louvável para explicar as conexõesimaginativas, mas que comete o erro de reduzir a imaginação a um puzzleestático e sem espessura e a imagem a um misto, muito equívoco, a meiocaminho entre a solidez da sensação e a pureza da idéia.

A psicologia geral acaba, também, reduzindo a importância do imaginário a um

desorganizado esboço intelectual. Durand (1993:37) afirma que as hermenêuticas

redutoras “... só descobrem a imaginação simbólica para tentar integrá-la na

sistemática intelectualista em vigor, para tentar reduzir a simbolização a um

simbolizado sem mistérios”. Ele critica as posições associacionistas (que reduzem a

imaginação à percepção debilitada), bergsonianas (que reduzem a imaginação à

lembrança da memória) e sartreanas (que reduzem a imaginação a um modo de

consciência), cuja falha é não considerarem a imagem como símbolo, deixando,

assim, perder-se a eficácia do imaginário. É o que o autor procura corrigir na sua

elaboração teórica.

Sua concepção de imaginário baseia-se, fundamentalmente, em Jung e Bachelard. De

Jung retira a noção de arquétipo, que é ... a parte herdada da psique, padrões de estruturação e desempenhopsicológico ligados a fatores biológicos (...) os arquétipos são entidadeshipotéticas, tornando-se aparentes somente através de suas manifestações.Os arquétipos podem ser observados e inferidos através de comportamentos

15

externos, principalmente aqueles que se aglomeram em torno de certasexperiências básicas e universais da vida humana. (Nagelschmidt, 1996:23)

E de Bachelard a concepção de simbolismo imaginário: “... a imaginação é dinamismo

organizador, e esse dinamismo organizador é fator de homogeneidade na

representação” (Durand, 1997:30). Nesse sentido, afirma que “... a imagem - por mais

degradada que possa ser concebida - é ela mesma portadora de um sentido que não

deve ser procurado fora da significação imaginária”. (idem:29)

Para Durand, o estudo do imaginário requer uma perspectiva antropológica,

concebendo a antropologia como um conjunto de ciências que estudam a espécie

homo sapiens. Considerando que o homo sapiens é também o homo symbolicus,

propõe a noção de “trajeto antropológico”, que consiste na “... incessante troca que

existe ao nível do imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as

intimações objetivas que emanam do meio cósmico e social” (op.cit.:41).

A noção de trajeto antropológico, segundo o autor (op.cit.:41): Afastará de nossa pesquisa os problemas de anterioridade ontológica, já quepostularemos, de uma vez por todas, que há uma gênese recíproca queoscila do gesto pulsional ao meio material e social e vice-versa. É nesteintervalo, neste caminhar reversível que deve, segundo nos parece, instalar-se a investigação antropológica.

Assim, segundo ele (op.cit.:41)O imaginário nada mais é do que esse trajeto no qual a representação doobjeto se deixa assimilar e modelar pelos imperativos pulsionais do sujeito eno qual, reciprocamente, como provou magistralmente Piaget, asrepresentações subjetivas se explicam pelas acomodações anteriores dosujeito ao meio objetivo.

A pulsão individual tem sempre um “leito social” no qual corre facilmente ou, pelo

contrário, luta contra os obstáculos, de modo que o “sistema projetivo da libido” não é

uma pura criação do indivíduo. Os “complexos de cultura” são formados nessa

relação, podendo o trajeto antropológico partir indistintamente ou da cultura ou do

natural psicológico, uma vez que o essencial da representação e do símbolo está

contido entre esses dois marcos reversíveis. (Durand, op.cit.:42)

O trajeto antropológico é mediado pelo processo de simbolização. Para Paula

Carvalho (1992), a própria noção de símbolo dá conta dessa articulação, na medida

16

em que une a invariância do arquétipo à variação das imagens. Ainda segundo ele

(op.cit.:4), a língua alemã expressa de modo preciso esse caráter do símbolo, visto

que sinn (sentido) compreende as variações das configurações sócio-culturais e bild(forma) a invariância arquetipal. Sintetizando, o imaginário é produto da articulação

entre o bio-psíquico e o sócio-cultural, cuja sutura epistemológica é realizada pelo

símbolo, que é sempre constituído por um elemento arquetípico e um elemento

ideativo, numa dupla abertura, remetendo ao duplo caráter da vivência humana: o

ontogenético (individual-grupal) e o filogenético (as histórias individuais-grupais que

reproduzem a história da espécie).

O imaginário se expressa em sistemas e práticas simbólicas, isto é, em produções

imaginárias como o mito10, os ritos, a linguagem, a magia, a arte, a religião, a ciência,

a ideologia, as formas de organização e as demais atividades e criações humanas,

cuja principal função é encontrar modos de enfrentar a angústia original decorrente da

consciência do Tempo e da Morte. O desejo buscado pela imaginação humana é o de

reduzir a angústia existencial: representar e simbolizar as faces do Tempo e da Morte,

visando enfrentar as situações que elas representam.

Entretanto, devido à impossibilidade de controle, isto é, de distinguir e encarar o

desconhecido e controlar os perigos que pode representar, o imaginário cria imagens

nefastas que representam as faces do Tempo e da Morte, expressas nos símbolos de

animalidade agressiva (teriomorfos), das trevas terrificantes (nictomorfos) e da queda

assustadora (catamorfos). Para enfrentá-los, desenvolve duas atitudes imaginativas

padrões, que correspondem a dois regimes de imagens –diurno e noturno –, e três

dominantes reflexas: postural, digestiva e rítmica ou copulativa.

A dominante postural (das matérias luminosas, visuais e ascensionais e técnicas de

separação) remete ao imaginário de luta, combate, purificação, análise, despertando

simbolismos representados pela luz, cume, asa, espada, flecha, gládio e cetro. A

dominante digestiva (das matérias das profundezas) remete ao imaginário de

repouso, intimidade, união, aconchego, acomodação, refúgio, envolvimento,

despertando simbolismos representados pela água, caverna, noite, mãe, morada,

10 “Entenderemos por mito um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e esquemas, sistema dinâmico que, sob oimpulso de um esquema, tende a compor-se em narrativa. O mito já é um esboço de racionalização, dado que utiliza ofio do discurso, no qual os símbolos se resolvem em palavras e os arquétipos em idéias. O mito explicita um esquemaou grupo de esquemas”. (Durand, 1997:62-63)

17

utensílios continentes e recipientes (taças, cofres etc.). A dominante copulativa (dos

gestos rítmicos) remete ao imaginário da conciliação de intenções entre a luta e o

aconchego, contendo imagens que expressam, ao mesmo tempo, essa dualidade,

despertando simbolismos representados pela roda, árvore, fogo, cruz, a lua, estações

da natureza, ciclo vital, no progresso ou declínio.

As representações correspondentes às dominantes expressam-se no que Gilbert

Durand chama de schème11, substratos gestuais que, ao entrarem em contato com o

meio natural e sociocultural, substantificam-se em arquétipos. As estruturas do

imaginário oscilam ao redor dos três schèmes matriciais: separar (heróico), incluir

(místico) e dramatizar (sintético ou disseminatório). (Durand, 2000)

As três estruturas estabelecidas por Gilbert Durand correspondem a dois regimes de

imagens: diurno e noturno.

O Regime Diurno “... tem a ver com a dominante postural, a tecnologia das armas, a

sociologia do soberano mago e guerreiro, os rituais da elevação e da purificação”.

(Durand, 1997:58) O enfrentamento do “monstro devorador”12 ocorre através do

combate ou da fuga, evidenciando a fase trágica do tempo e da morte. Caracteriza-se

por imagens polarizadas ao redor dos schèmes de ascensão, de separação e do

arquétipo da luz. Apresenta como princípios lógicos de explicação e justificação a

exclusão, a contradição e a identidade. Corresponde à estrutura heróica, que tem

como noção básica a potência.

Já o Regime Noturno ... subdivide-se nas dominantes digestiva e cíclica, a primeira subsumindo astécnicas do continente e do habitat, os valores alimentares e digestivos, asociologia matriarcal e alimentadora, a segunda agrupando as técnicas dociclo, do calendário agrícola e da indústria têxtil, os símbolos naturais ouartificiais do retorno, os mitos e os dramas astrobiológicos13. (op.cit.:58)

11 Para Rocha Pitta, não há tradução adequada - em português - para schème, visto que existe diferença de sentido(no idioma francês) entre schème e schèma. Seria conveniente designar schèma para o desenho, a figuraesquemática; ao passo que schème significa a regra que utilizamos para traçar uma figura e que existe em estado depura tendência na nossa imaginação. (Rocha Pitta, 1982:Vol. 1, p. 38).12 Como veremos adiante, o monstro devorador é um dos arquétipos fundamentais no AT.9 (teste arquetípico de noveelementos), que é a formulação experimental da Teoria Geral do Imaginário de Gilbert Durand, gestada por YvesDurand.13 Esta divisão é inspirada na Psicanálise Clássica, que vincula as pulsões digestivas e sexuais. Desse modo admite-se – pelo menos metodologicamente – que existe um parentesco entre a dominante digestiva e a sexual.

18

Esse regime apresenta duas estruturas: a mística e a sintética (ou dramática). Na

estrutura mística, a fase trágica do tempo é minimizada ou eufemizada pela negação.

Caracteriza-se pela dominante digestiva e tem como noção básica a analogia e a

similitude. A estrutura sintética pretende a harmonização dos contrários e caracteriza-

se pela dominante sexual. Resumidamente, as estruturas apresentam os seguintes

símbolos e schèmes:

Regimes Estruturas Schèmes Símbolos Diurno Heróica Do animado

Da quedaAscensionalEspetacular

Diairético

Teriomorfos CatamorfosAscensionais Espetaculares

Diairéticos Noturno Mística Descida eufemizada

Intimidade

Ocultação

Da inversão

Da intimidade

Sintética Rítmico Dialético

Messiânico

Cíclicos Dialéticos

Messiânicos

Durand chegou à classificação das estruturas do imaginário - porém, em nível

estritamente teórico - a partir da análise das imagens provenientes de diversas

culturas expressas nas narrações míticas, na literatura e nas mais diversas formas de

expressão artística, isto é, em fatos culturalmente elaborados. A validação da teoria

coube a seus seguidores, em especial a Yves Durand, criador de um modelo

normativo, que chegou à sua reprodução potencial num teste por ele denominado

AT.9 (teste arquetípico de nove elementos), que será explicitado mais adiante.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A educação escolar privilegia quase que exclusivamente o desenvolvimento da razão,

por meio de atividades e conteúdos - ou seja, de um currículo - que estimulam pouco

a criatividade e a fantasia, e, ao mesmo tempo, tentam eliminar o mito e minimizar o

papel das imagens e do simbolismo. Nesse sentido, analisar a dimensão simbólica da

realidade escolar significa estar atento, por um lado, a esse caráter educativo do

símbolo, que, como processo, realiza-se não só na sala de aula, mas em todos os

19

espaços sociais da escola; e, por outro lado, à potência pedagógica do símbolo, que

torna possível a criação e a mutação.

Uma educação que recupera a dimensão simbólica deixa de ter carátermeramente reprodutivo, na medida em que permite a criatividade e ainventividade; mais ainda, apoiando-se na concepção de homem complexo einacabado, e da cultura enquanto universo de objetos e práticas transicionaisque criam um espaço potencial, pode o processo educacional liberar-se dalógica social da dominação, viabilizando a emergência do complexo, domultiforme, da polifonia, ou seja, do lado instituinte do social. (Teixeira &Porto, 1995:34)

20

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALONSO, Mirtes. O papel do diretor na administração escolar. São Paulo: Difel,1981.

BADIA, Denis Domeneghetti. Estruturas do Imaginário e universos míticos. In: Revistade Educação Pública. Cuiabá: UFMT, v. 3, nº 4, jul-dez/1994.

BATISTA, Angelina. Níveis de manifestação do dinamismo actancial. In: Análiseactancial: reflexões e apontamentos. Botucatu: UNESP, 2000 (mimeo).

BERNSTEIN, B. et alii. Les rites dans l’éducacion. In: J. HUXLEY (ed) Lecomportement rituel chez l’homme et l’animal. Paris: Gallimard, 1971.

CHAUÍ, Marilena de Souza. Cultura e democracia: o discurso competente e outrasfalas. São Paulo: Moderna, 1982.

DRUCKER, Peter. O gerente eficaz. Rio de Janeiro: Zahar, 1971.

DURAND, Gilbert. A Imaginação Simbólica. Lisboa: Edições 70, 1993.

________. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes,1997.

DURAND, Yves. L’Éxploration de l’imaginaire. Introduction à la modelisation desUnivers Mytiques. Paris: L’Espace Bleu, 1988.

GRIFFITHS, Daniel. Teoria da Administração Escolar. São Paulo: CEN, 1971.

HARMAN, P.M. A Revolução Científica. São Paulo: Ática, 1995.

KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva,1996.

LEÃO, C. Introdução à Administração Escolar. São Paulo: Nacional, 1953.

LODI, J.B. Administração por Objetivos. São Paulo: Pioneira, 1973.

LOUREIRO, Altair Macedo Lahud. O AT.9 e o imaginário. Brasília: UNB, 1996.(mimeo)

MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand, 2000.

________. O Método 1: a natureza da natureza. Porto Alegre: Sulina, 2002a.

________. O Método 2: a vida da vida. Porto Alegre: Sulina, 2001a.

________. O Método 5: a humanidade da humanidade. Porto Alegre: Sulina, 2002b.

21

________. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo:Cortez/Unesco, 2001b.

________. Sociologie. Paris: Fayard, 1984.

MOTTA, Fernando Cláudio Prestes. Teoria Geral da Administração. São Paulo:Atlas, 1986.

PAULA CARVALHO, José Carlos de. Da arquetipologia do imaginário à suaformulação experimental através do AT.9: sete estudos. São Paulo, FEUSP, 1992.(mimeo)

________. Derivas e perspectivas em torno de uma sócio-antropologia do cotidiano:das organizações às atividades coletivas. Revista da Faculdade de Educação daUSP. São Paulo, vol. 12, n º 1/2, p. 5-105, 1986.

________. Estrutura, Organização e educação: o imaginário sócio-organizacional e aspráticas educativas. In: FISCHMANN, R. (org) Escola brasileira: temas e estudos.São Paulo: Atlas, 1987.

________. A Culturanálise de grupos: posições teóricas e heurísticas em educaçãoe ação cultural. São Paulo, 1991, Ensaio de Titulação, Faculdade de Educação daUSP.

________. Antropologia das Organizações e da Educação: um ensaio holonômico.Rio de Janeiro: Imago, 1990.

PIJOAN PICAS, N.I. e VALENCIA, C. Catalunya i l’antropologia de la integració(una exploració de l’imaginari dels alumnes de centres d’ensenyamentsecundari i la seva integracion dins de la cultura catalana. Aplicació del testAT.9). Barcelona: Abadia de Montserrat, 1986.

PITTA, Daniela Perin da Rocha. Padronização do teste AT.9. Recife: FundaçãoJoaquim Nabuco, 1982, 4 vols.. (mimeo)

PORTO, Maria do Rosário Silveira. Escola Rural: cultura e imaginário. São Paulo,1994, Tese de Doutorado (Educação), Faculdade de Educação da USP.

________. Imaginário e Cultura: escorrências na educação. In: PORTO, SANCHEZTEIXEIRA, FERREIRA SANTOS & BANDEIRA (orgs) Tessituras do Imaginário:cultura & educação. Cuiabá: EdUNIC, 2000.

PRADO COELHO, E. Os universos da crítica, paradigma nos estudos literários.Lisboa: Edições 70, 1982.

________. Paradigmas/literaturas. In: MORIN, E. O problema epistemológico dacomplexidade. Lisboa: Europa-América, s/d.

SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as Ciências na transição parauma ciência pós-moderna. In: Revista de Estudos Avançados da USP. São Paulo,vol. 2, n º 2, p. 46-71, mai-ago/1988.

22

________. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 2000.

SILVA, Benedicto. Taylor e Fayol. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1974.

TAYLOR, Frederick W. Princípios de Administração Científica. São Paulo: Atlas,1986.

TEIXEIRA, Maria Cecília Sanchez. Alternativas Organizacionais: um estudo doredimensionamento das questões educacionais e administrativas. In: EscolaBrasileira: temas e estudos. São Paulo: Atlas, 1987, p. 72-88.

________. Antropologia, cotidiano e educação. Rio de Janeiro: Imago, 1990.

________. Discurso pedagógico, mito e ideologia: o imaginário de Paulo Freire ede Anísio Teixeira. Rio de Janeiro: Quartet, 2000.

________. Imaginário e educação: as mediações simbólicas no universo dasorganizações educativas. In: Revista de Educação Pública. Cuiabá, v. 3, n º 4, jul-dez/1994a.

________. Imaginário, cultura e educação: um estudo antropológico de alunos deescolas de 1º grau. São Paulo, 1994b, Tese de Livre-Docência (Antropologia dasOrganizações e da Educação), Faculdade de Educação da USP.

TEIXEIRA, M.C.S.; PORTO, M.R.S. Perspectivas paradigmáticas em educação.Revista da Faculdade de Educação da USP. São Paulo, v. 21, n. 1, jan-jun/1995.

23