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Potências do Tempo - David Lapoujade n-1 edições / n-1 publications

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Page 2: Livro Lapoujade _ portugues_ issu _intro

Tradução Hortencia SantoS LencaStre

n-1publications.org

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Lapoujade, David Potências do tempo = Powers of time / David Lapoujade ; tradução Hortencia Santos Lencastre. -- São Paulo : n- 1 Edições ; Aalto, FI : Aalto University, 2012. -- (Série future art base)

Edição bilíngue: português/inglês. ISBN 978-95-2661-102-0 (Aalto University)

1. Bergson, Henri, 1859-1941 2. Tempo - Filosofia I. Título. II. Título; Powers of time. III. Série.

12-13618 CDD-194

Índices para catálogo sistemático:

1. Tempo : Filosofia francesa 194

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Lapoujade, David Potências do tempo = Powers of time / David Lapoujade ; tradução Hortencia Santos Lencastre. -- São Paulo : n- 1 Edições ; Aalto, FI : Aalto University, 2012. -- (Série future art base)

Edição bilíngue: português/inglês. ISBN 978-95-2661-102-0 (Aalto University)

1. Bergson, Henri, 1859-1941 2. Tempo - Filosofia I. Título. II. Título; Powers of time. III. Série.

12-13618 CDD-194

Índices para catálogo sistemático:

1. Tempo : Filosofia francesa 194

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Tradução Hortencia SantoS LencaStre

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potências do tempo powers of timedavid Lapoujade

david Lapoujade © 2010 – Les editions de minuit

edição bilíngue: português – inglêssão paulo 2012

n-1 ediçõessão paulo | HelsinkisÉrie fUtUre art BaseisBn 978-952-6611-02-0

embora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito brasileiro e finlandês, n-1 edições não segue necessariamente as convenções das instituições normativas, pois considera a edição um trabalho de criação que deve interagir com a pluralidade de linguagens e a especificidade de cada obra publicada.

projeto Gráfico: prod.art.br Érico peretta e ricardo muniz fernandesimagem: Karolina Kuciatradução para o português: Hortencia santos Lencastreconsultoria técnica: maria fernanda novorevisão do português: ana Godoyrevisão de impressão: maruzia dultra

a reprodução parcial deste livro sem fins lucrativos, para uso privado ou coletivo, em qualquer meio impresso ou eletrônico, está autorizada, desde que citada a fonte. se for necessária a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores. n-1publications.org

impresso em são paulo | dezembro, 2012

n-1 edições agradece à aalto University pelo apoio na publicação deste livro.

este livro contou com o apoio dos programas de auxílio à publicação do instituto francês.cet ouvrage a bénéfié du soutien des programmes d’aide à la publication de l’institut français.

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11introdUção

tempo e afetoA questão da melancolia – O fora do tempo dos afetos mórbidos – Liberdade e sentido do futuro – A questão da memória: de que tipo de memória provém

o sentido do futuro? – A memória-espírito – A importância da emoção.

29capítULo 1

o número obScuro da duraçãoAs sínteses passivas – O método: Maimon novamente contra Kant – A diferencial e o número obscuro da duração. Bergson e Leibniz –

Profundidade e emoção – O ato livre.

53capítULo 2

intuição e SimpatiaTotalidades e tendências: novos objetos do método – Papel do raciocínio por analogia – Crítica de Kant – A evolução criadora. O circuito da significação

contra os círculos da representação – Simpatia e emoção: as vibrações.

75capítULo 3

o apego à vidaA atenção à vida – Inteligência e depressão – As duas formas de apego à vida: obrigação e fabulação – O homem, uma espécie doente – A terceira forma de

apego à vida: criação e liberdade.

97capítULo 4

depoiS do HomemOs círculos da experiência – Espiritualismo e perspectivismo – Os verbos:

atos do pensamento – O homem como retardo.

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Abreviações utilizadas para as obras de Bergson:

DI – Essai sur les données immédiates de la conscience (1889)

MM – Matière et mémoire (1896)

R – Le Rire (1900)

EC – L’Évolution créatrice (1907)

ES – L’Énergie spirituelle (1919)

DS – Durée et simultanéité (1922)

PM – La Pensée et le mouvent (1934)

MR - Les Deux sources de la morale et de la religion (1932)

A paginação remete à atual edição PUF (Les Presses Universitaires de France), usada pelo autor. (Para as obras referidas, foram mantidos os títulos e a paginação das edições francesas. Para os fragmentos citados, sempre que possível foi dada a versão já publicada em português. Nesses casos, nas notas de rodapé, entre colchetes, aparece a referência da respectiva edição brasileira, bem como sua paginação.)

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11tempo e afeto

TEmPO E AFETO

“Nada diremos sobre aquele que quiser considerar nossa “intuição” como instinto ou

sentimento. Nem uma só linha daquilo que escrevemos se presta a essa interpretação.”

Bergson, O pensamento e o movente

Sabemos que para apreender a duração, a famosa duração bergsoniana, é preciso senti-la fluindo em nós. Segundo um exemplo de Bergson, a sucessão das badaladas de um sino é, primeiro, uma série de sons que nos emociona de forma confusa, antes de ser um número definido que podemos representar distintamente. Os “dados imediatos da consciência” são antes de tudo emoções, eles são o efeito que o escoamento do tempo produz sobre a sensibilidade. Mas que tipo de emoção é essa? É verdade que as badaladas do sino têm uma tonalidade emocional particular – anúncio festivo, repetição monótona das horas etc. –, mas, para Bergson, trata-se apenas de emoções superficiais que pertencem ao mundo da representação. Mais profundamente, existe uma emoção que está ligada à passagem do tempo propriamente dita, ao fato de sentirmos o tempo fluindo em nós e “vibrando interiormente”. É a própria duração que, em nós, é emoção. Por outro lado, é apenas através das emoções que somos seres que duram, ou melhor, que deixamos de nos considerar como seres para nos tornarmos durações, assim como um som existe ou dura pela sua vibração, nada mais. Na profundidade, não somos mais “seres”, mas sim vibrações, efeitos de ressonância, “tonalidades” de diferentes frequências. E o próprio universo acaba se desmaterializando para se tornar duração, uma pluralidade de ritmos de duração que também se superpõem em profundidade, de acordo com níveis de tensão distintos.

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Se devemos olhar por esse lado é porque, na superfície, o pensamento por conceito – entendimento ou inteligência – nunca conseguiu apreender o escoamento do tempo, a duração propriamente dita. Essa crítica da inteligência é um dos aspectos mais conhecidos do pensamento de Bergson. Desde Zenão e os primórdios da metafísica, a inteligência só consegue pensar o tempo à custa de variadas mudanças na sua natureza; ela o parcela, divide, mede, reconstrói, mas todas as vezes deixa escapar aquilo que constitui sua verdadeira substância. É nesse sentido que existem dois lados da experiência em Bergson: o lado da inteligência, vasto plano superficial onde tudo se desdobra horizontalmente no espaço, segundo a lógica da representação, e o lado da intuição ou da emoção profunda, um mundo vertical onde tudo se organiza em profundidade, de acordo com uma pluralidade de níveis ora inferiores, ora superiores ao nível da inteligência, mas sempre paralelos a ele, operando segundo um tempo e uma lógica de outra natureza.

É certo que a inteligência representa uma investida prodigiosa que se estende incessantemente em todas as direções, mas ela permanece sempre num mesmo plano povoado de visões parciais e de totalidades recompostas, de “objetos” e de “sujeitos” que se condicionam e se determinam reciprocamente. E na medida em que a inteligência é uma faculdade que se atualiza apenas no homem, esse plano surge também como o plano propriamente antropológico1. É o plano no qual somos “humanos”, nada mais que humanos. Perguntar o que acontece nesse plano, como se comportam nele o pensamento, os afetos, o conhecimento, a moral, etc., é ir ao encontro da pergunta geral que já faziam Hume e Kant à sua maneira: o que é a natureza humana? O que é o homem? Daí, não surpreende que sejam principalmente as respostas dos empiristas e de Kant que ocupem esse plano; se Bergson os critica sempre, ele o faz em função daquilo que acontece nos outros níveis, aqueles que escapam à inteligência e que fazem com que a filosofia se confunda com um “esforço para ultrapassar a condição humana2”.

1 PM, p. 84: “O que é, de fato, a inteligência? A maneira humana de pensar”. [O Pensamento e o Movente, tr. br. Bento Prado Neto, São Paulo, Martins Fontes, 2006, p. 87]2 Ibidem, p. 218 [225].

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Passar, porém, para o lado da intuição ou da emoção não significa submeter-se às emoções que a passagem do tempo produz em nós. Às vezes nos surpreendemos que Bergson não tenha dito nada ou quase nada sobre a esperança, o lamento, o luto, a melancolia, todos esses afetos que nos dão acesso ao tempo. Como é possível que, em Bergson, o tempo – ou a duração – nunca seja descrito a partir das emoções engendradas por ele? Como explicar que o tempo nunca seja descrito nos seus aspectos mais reparadores ou mais destrutores? Isso já não seria uma importante objeção contra o bergsonismo? Estamos lidando com uma duração na qual não há arrependimento, na qual não se sofre nenhuma perda, na qual não se conhece nenhum luto, na qual se vai sempre em frente, de acordo com o ritmo da novidade imprevisível própria do impulso vital... A duração bergsoniana não faz desaparecer nada, exatamente ao contrário do tempo proustiano, por exemplo, que definha os rostos e debilita os espíritos, que mata os seres e os diferentes “eus” que os amaram. Será que não devemos dar razão a Heidegger, quando ele critica Bergson por ter ignorado o caráter irrevogável do passado?3

Qual pode ser a resposta de Bergson a tais objeções? Uma primeira resposta consiste em dizer que se trata de afetos produzidos no tempo e que, nesse sentido, eles já o supõem. Mais do que isso, Bergson assinala que só podemos ter acesso à duração “pura” através de um esforço independente de qualquer emoção definida. “Não há dúvida de que para nós o tempo se confunde, primeiramente, com a continuidade da nossa vida interior. O que é essa continuidade? É a de um o escoamento ou de uma passagem [...], sendo que o escoamento não significa algo que escoa, e a passagem não pressupõe estados pelos quais se passa”4. Assim, quando escutamos uma melodia deveríamos fechar os olhos, pensar somente nela, mas com a condição, ele assinala, de apagar a diferença entre os sons e abolir os caracteres distintivos do próprio som, para reter apenas a “continuação daquilo que precede naquilo que segue e a transição

3 Sobre as relações entre Heidegger e Bergson, cf C. Riquier “La durée pure comme esquisse de la temporalité ekstatique: Heidegger, lecteur de Bergson”, in Heidegger en dialogue 1912-1930. Rencontres, affinités, confrontations, Jollivet et Romano, Paris, Vrin, 2009, principalmente p. 59-60. Segundo uma outra perspectiva cf. igualmente Jankélévitch, L’irréversible et la nostalgie, Paris, Flammmarion, 1974.4 DS, p. 54-55 [Duração e Simultaneidade, tr. br. Claudia Berliner, São Paulo, Martins Fontes, 2006, p. 64-66].

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ininterrupta, multiplicidade sem divisibilidade e sucessão sem separação, para encontrar, finalmente, o tempo fundamental”5. É preciso conseguir pensar o escoamento independentemente das coisas que escoam, assim como é preciso pensar a mudança “sem nada que mude6”. Então, veremos sobressair o elemento puramente espiritual do tempo, sua verdadeira substância: a duração. Trata-se de uma redução propriamente bergsoniana, apreender a duração e a mudança em si, independentemente de tudo aquilo que dura e de tudo aquilo que muda. Desse ponto de vista, os afetos “temporais” seriam os elementos impuros que vêm turvar a percepção da pura duração, assim como fazem, a seu modo, as emoções sugeridas por uma melodia.

Só que desse modo, estamos apenas considerando afetos empíricos ou manifestações intratemporais. O arrependimento se produz no tempo e lamenta alguma coisa que ocorreu no tempo, em determinado momento. Seria possível conceber um arrependimento ou uma nostalgia de outro tipo, como uma disposição relativa à totalidade do tempo, como se fossem afetos “transcendentais” ou “existenciais”, susceptíveis de constituir o tempo em nós? Assim, por exemplo, quem melhor do que o melancólico pode perceber o caráter irrevogável da passagem do tempo? Ele não é aquele para quem a totalidade do tempo bascula a priori para o passado, para quem todo o tempo é sempre passado? Se pensarmos no jovem melancólico de Kierkegaard, em A Repetição, ou nos enunciados melancólicos analisados por Henri Maldiney, a disposição é sempre a mesma: tudo já acabou, é sempre tarde demais7. O “tarde demais” se torna a estrutura a priori de toda temporalização. Como diz Kierkgaard sobre o jovem apaixonado melancólico que sofre quando encontra a mulher amada: “desde os primeiros dias, ele já ficava relembrando esse amor. No fundo, ele já tinha acabado. Desde o início, ele dera um salto tão terrível, que passara por sobre a vida... Seu erro era irremediável: ele estava no fim ao invés de estar no começo, e esse erro é a causa da infelicidade do homem”8.

5 DS, p. 55 [65].6 PM, p. 164 [170].7 Cf. as belas páginas de H. Maldiney sobre o tempo da melancolia e, a partir dos trabalhos do linguista G. Guillaume sobre os aspectos do tempo na língua, a análise de fórmulas típicas do melancólico (“se pelo menos eu não tivesse... não estaria nessa situação”), in H. Maldiney, Penser l’homme et la folie, Grenoble, Millon, 2007.8 S. Kierkegaard, La Répétition, Paris, Éditions de l’Orante, 1972, p. 8-9.

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Do mesmo modo, a espera se define, primeiramente, como um afeto que se produz no tempo. Segundo o célebre exemplo de Bergson, é preciso esperar que o açúcar derreta... Como o lamento, a espera se abre sobre outras durações, aquelas que justamente nos fazem esperar, aqui a própria duração do universo material durante a qual o açúcar derrete. Entretanto, ainda nesse caso, não acontece que a espera deixe de estar no tempo para se tornar uma disposição relativa ao tempo por inteiro – e que a vida se transforme então em uma vida de espera? Viver não é esperar indefinidamente que o tempo passe ou que a vida comece? Podemos pensar no destino do personagem da novela “A fera na selva”, de Henry James, cuja existência é inteiramente dedicada a esperar que alguma coisa aconteça, a espreitar como um caçador o acontecimento que deve transfigurá-lo, a vida como escatologia pura. Todo o tempo se organiza em torno do acontecimento que deve acontecer, mas não acontece, como se a espera impedisse justamente que aconteça seja lá o que for9. Essa é a moral de todas as grandes narrativas sobre a espera, de James a Beckett: nunca acontece nada àqueles que esperam; nada, a não ser o fato de terem esperado em vão. Sempre esperamos como lamentamos, em vão. A espera nada mais é do que uma melancolia invertida, outra figura da infelicidade do homem. De qualquer modo, nos dois casos, é através de um afeto ou de um complexo de afetos que se constitui essa nova ordem do tempo.

Como não ver, porém, que se os afetos comuns estão no tempo, esses outros se fecham numa espécie de fora do tempo? Tanto em um caso quanto no outro, o tempo não passa ou então passa por fora, de maneira abstrata, como se isso não lhes dissesse mais respeito, enquanto eles estão ali, fechados no lamento ou na espera. O decorrer do tempo está submetido a uma ordem imperiosa que os priva de qualquer presente. “Presente que já aconteceu, no qual indefinidamente o que está sendo realizado já se realizou, pois nada acontece, não existe acontecimento [...]: não existe novo”10. Mas aquele que vive exclusivamente no presente também

9 Cf. “La bête dans la jungle”, in H. James, L’Élève, tr. fr. M. Chadourne, Paris, 10/18, 1983, p. 175 [A fera na selva, tr. br. José Geraldo Couto, São Paulo, Cosac Naify, 2007, p. 77-78]: “O destino que lhe fora reservado viera com grande impacto – ele esvaziara o cálice até a última gota; ele tinha sido o homem de seu tempo, o homem, ao qual nada no mundo havia acontecido”. 10 H. Maldiney, Penser l’homme et la folie, op. cit., p. 96.

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não apreende a passagem do tempo, pois ele rebate as duas outras dimensões do tempo sobre a pontualidade do “agora”, sobre a sucessão de imperativos incessantes, sem nenhuma perspectiva que lhe abra o horizonte, num estado de urgência permanente11. Em todos os casos, o tempo é apenas um limite exterior que não afeta – ou não afeta mais – aqueles que se fecharam assim; por isso também, nada lhes acontece nunca. São subjetividades fechadas, confinadas no interior do seu destino. “Um dia, o melancólico decidiu. Imediatamente tudo já foi feito: o destino engoliu a liberdade. A irreversibilidade temporal do ato, que só pode ser rompida, diretamente numa história, por outro ato livre, foi substituída pela necessidade não intencional e intemporal do destino”12. Eles se fecharam em um fora do tempo esvaziado de todo acontecimento e de todo afeto, onde nada acontece nem pode acontecer, como se recuar no tempo fosse a única possibilidade de devolver-lhes, simultaneamente, a realidade e a liberdade.

Essas descrições teriam nos afastado de Bergson? E as questões que elas suscitam não seriam muito estranhas ao seu pensamento? Pelo contrário, o deslocamento que elas operam talvez nos reconduza ao âmago do bergsonismo. Por acaso, não é Bergson que, desde a sua primeira obra, estabelece uma relação que vai se revelar indissolúvel, entre duração e liberdade? O novo conceito de “duração” não está apenas destinado a resolver um problema teórico que os partidários do livre arbítrio e do determinismo não conseguem colocar muito bem; ela é aquilo que nos torna efetivamente livres. É nela e apenas por ela que experimentamos a liberdade – assim como deixamos de ser livres quando estamos submetidos a lógicas intemporais, como a da melancolia. Da mesma forma, é pela inserção na duração que reatamos com o “eu da profundidade”, com o eu que se emociona, que “vibra interiormente”, como se apenas a duração pudesse nos dar novamente uma vida rica de afetos. Temos a impressão de que

11 MM, p. 170 [Matéria e Memória, tr. br. Paulo Neves, 4. ed., São Paulo, WMF Martins Fontes, 2010, p. 179]: “Viver no presente puro, responder a uma excitação através de uma reação imediata que a prolonga, é próprio de uma animal inferior: o homem que procede assim é um impulsivo. Mas não está melhor adaptado à ação aquele que vive no passado por mero prazer, e no qual as lembranças emergem à luz da consciência sem proveito para a situação atual: este não é mais um impulsivo mais sim um sonhador”.12 H. Maldiney, Penser l’homme et la folie, op. cit., p. 56. Aquilo que vale para o melancólico vale para o homem que espera indefinidamente. Como diz o personagem de H. James, A fera na selva, op. cit., p. 142-143: “Não é um caso em que eu esteja livre para escolher, para mudar o curso das coisas [...]. Cada um está sob o efeito da sua própria lei”.

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o acontecimento esperado indefinidamente pelo personagem de James, e que acaba acontecendo – tarde demais –, o acontecimento através do qual a duração, a vida, a liberdade são novamente dadas, esse exato acontecimento é aquele que inaugura o bergsonismo.

Tiremos nossas conclusões através da descrição que Bergson nos dá do ato livre: “Creditaremos ao determinismo o fato de que abdicamos com frequência da nossa liberdade em circunstâncias [...] [nas quais] nossa personalidade deveria vibrar, por assim dizer. Quando nossos amigos mais fiéis concordam em nos dar um conselho sobre um ato importante, os sentimentos que eles expressam com tanta insistência vêm se colocar na superfície do nosso eu, e ali se solidificam [...]. Pouco a pouco formarão uma crosta espessa que recobrirá nossos sentimentos pessoais [...]. Mas, no momento em que o ato vai se realizar, não é raro que se produza uma revolta. É o eu de baixo que sobe à superfície. E a crosta exterior explode, cedendo à ação de uma pressão irresistível [...]. Então, a ação realizada não exprime mais aquela ideia superficial, quase exterior a nós, distinta e fácil de ser expressa: ela responde ao conjunto dos nossos sentimentos, dos nossos pensamentos e de nossas aspirações mais íntimas, a essa concepção particular da vida que é o equivalente da nossa experiência passada...”13. Se, como pensa Heidegger, não existe em Bergson nenhum sentido do irrevogável, é porque ele talvez revolva o destino para substitui-lo por um sentido de vocação. É o que demonstram as explicações posteriores: fui feito para isso. Tudo conspirava para esse ato livre que me expressa por inteiro.

Se o futuro se abre novamente, é a partir do passado mais profundo, do passado total, como um tempo reencontrado proustiano. A menos que Proust é que seja bergsoniano nesse aspecto: “Assim minha existência até este dia poderia e não poderia resumir-se neste título: uma vocação. Não poderia porque a literatura não desempenhara nela o menor papel. Poderia porque essa vida, com as recordações de suas tristezas e alegrias, constituía uma reserva semelhante à albumina existente no óvulo das plantas, da qual este encontra o

13 DI, p. 127-128 [Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, tr. portuguesa João da Silva Gama, Lisboa, Edições 70, 2011, p. 130-131].

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alimento necessário para transformar-se em semente, na evolução embrionária, ignorada e invisível, não obstante processar-se por meio de fenômenos químicos e respiratórios secretos mas muito ativos.”14 Não encontramos aqui os dois “eus” de Bergson, o eu de superfície, aquele que vive “nos prazeres frívolos, na ternura, na preguiça, na dor”, e o eu da profundidade, aquele que abriga secretamente os elementos da obra literária em gestação, como a “semente que guarda todos os nutrientes que vão alimentar a planta”15? Não é então o passado, totalmente “reencontrado”, que se libera no ato livre da obra a ser feita?

Mas então, podemos fazer uma segunda pergunta contrária à precedente: se, como diz Bergson, “os estado profundos da nossa alma, aqueles que se traduzem por atos livres, exprimem e resumem o conjunto da nossa história passada”16, como saímos verdadeiramente do passado? Não estaremos submetidos à ideia de destino? Podemos conceber um sentido do futuro irredutível a qualquer passado? De onde ele tira a sua imprevisível suposta novidade, se ele provém do passado e é explicado por ele? Mais do que isso, não é o passado que, em Bergson, dá fundamento à totalidade do tempo, já que ele explica igualmente o presente e o futuro? Como não ler então Bergson segundo certas observações de Deleuze? “Dos presentes que se sucedem e exprimem um destino, dir-se-ia que eles vivem sempre a mesma coisa, a mesma história, apenas com uma diferença de nível: aqui mais ou menos distendido, ali mais ou menos contraído. Eis por que o destino se concilia tão mal com o determinismo, mas tão bem com a liberdade: a liberdade é de escolher o nível. A sucessão dos presentes atuais é apenas a manifestação de algo mais profundo: a maneira pela qual cada um retoma toda a vida, mas a um nível ou grau diferente do precedente, todos os níveis ou graus coexistindo e se oferecendo à nossa escolha, do fundo de um passado que jamais foi presente [...]. Cada um escolhe sua altura ou seu tom, talvez suas palavras, mas

14 M. Proust, Le temps retrouvé, Paris, Gallimard, coll. Folio, p. 206 [O tempo redescoberto, tr. br. Lúcia Miguel Pereira, São Paulo, Globo, 1990, p. 175]. Em O caminho de Guermantes, Proust explica que toda a Recherche (Em busca do tempo perdido) é a história dessa “vocação invisível”. Sobre o fato de que o ato livre em Bergson é inseparável de uma “vocação”, cf. MR, p. 228 [Duas Fontes da Moral e da religião, tr. portuguesa Miguel Serras Pereira, Coimbra, Alamedina, 2005, p. 184].15 Ibidem16 DI, p. 139 [141].

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a melodia é sempre a mesma e há um mesmo trá-lá-lá sob todas as palavras, em todos os tons possíveis e em todas as alturas.”17 Um Bergson melancólico?

Essa objeção é mais séria porque é certamente menos exterior ao bergsonismo que a anterior. É claro que Deleuze não ignora a importância do futuro nem a produção de novidade em Bergson, mas ele as explica da maneira pela qual o passado – presente por inteiro em cada momento da nossa vida – apresenta, a cada vez, diferentes aspectos de si mesmo, para iluminar com um novo sentido uma situação, ela mesma sempre original e nova. De fato, na medida em que é a totalidade do nosso passado que se repete todas as vezes, mas ao mesmo tempo deslocando-se, condensando-se, revolvendo-se, compreendemos que ele se apresenta sempre de forma diferente em cada ocasião, mesmo que essas ocasiões sejam as mais parecidas umas com as outras. Deleuze não encontra uma confirmação de tudo isso no fato de que Bergson substitui um ‘eu de superfície por um eu da profundidade, enquanto que uma filosofia verdadeiramente voltada para o futuro deve destruir até a própria forma do eu? “Quanto ao terceiro tempo, que descobre o futuro – ele significa que o acontecimento e a ação têm uma coerência secreta que exclui a do eu voltando-se contra o eu [...] projetando-o em mil pedaços, como se o gerador do novo mundo fosse arrebatado e dissipado pelo fragmento daquilo que ele faz nascer no múltiplo.”18 Não é justamente esse terceiro tempo, o tempo do futuro, aquilo que falta na filosofia de Bergson?

Sem dúvida, poderemos ser conduzidos a tal conclusão se lermos apenas Matéria e memória, onde Bergson só explora em definitivo duas dimensões do tempo, o presente e o passado, e explica o futuro pelo encontro sempre repetido, sempre diferente entre um e outro. Mudaremos talvez de ponto de vista com a Evolução criadora, onde o sentido do futuro explica-se agora pelo “impulso vital”19. Mas o impulso vital, por sua vez, não se define como uma

17 G. Deleuze, Différence et répétition, Paris, PUF, 1968, p. 113-114 [Diferença e repetição, tr. br. Luiz B. L. Orlandi e Roberto Machado, Rio de Janeiro, Graal, 2006, 2. ed., p. 129] e o conjunto da passagem dedicada à segunda síntese do tempo. 18 Ibidem p. 121 [137]. Quando Deleuze busca por sua conta um tempo do futuro, ele não se volta para Bergson, mas para Nietzsche, único e verdadeiro pensador do futuro aos olhos dele.19 Sobre o impulso vital como tempo do futuro, cf. C. Riquier, Archéologie de Bergson, Paris, PUF, 2009, p. 353 e ss.

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imensa, uma prodigiosa memória coextensiva a todas as formas de vida? Ele também não é o encontro sempre repetido entre uma matéria e uma memória? Se considerarmos que o impulso designa a maneira pela qual o futuro nos atrai, pela qual somos mais orientados para o futuro do que para o passado, como não supor que o sentido do futuro é dado com o impulso e não engendrado por ele? O impulso vital não representaria o deus ex machina? E, de fato, nas Duas fontes haverá um Deus que explica toda criação.

Se o futuro em Bergson só pode ser compreendido a partir do passado, será que devemos dar razão à leitura de Deleuze? É claro que podemos conservar a hipótese segundo a qual a liberdade consiste em atualizar as virtualidades contidas num impulso vital concebido como memória. Mas então é preciso prestar atenção para não confundir duas concepções do virtual em Bergson. A primeira define o passado como nunca tendo sido presente ou atual. Uma das teses mais importantes e mais originais de Bergson consiste em dizer que o passado nunca foi presente; ele já é sempre o antigo presente que ele foi, a imagem no passado do presente que passa. O passado é um mundo paralelo ao do presente, ele não está atrás de nós, mas ao nosso lado. O passado não tem, portanto, que se tornar passado, ele já o é, de imediato. Ele acompanha nossa vida presente e se forma ao mesmo tempo, não logo depois que o presente tenha deixado de ser, mas ao mesmo tempo, como uma imagem no espelho. Bergson diz com precisão que “essa lembrança do presente” é perfeitamente inútil. Para que poderia servir essa imagem já que temos o original? É uma memória passiva, inativa, que serve apenas para recolher automaticamente as lembranças enquanto nossa vida vai se desenrolando20. Se ela constitui uma reserva, é sempre apenas uma reserva de sentido21. Essas lembranças são úteis apenas para um outro presente, diferente daquele que elas foram e é aí que o passado ilumina de forma útil o presente, exatamente lhe dando um sentido.

20 Cf. ES, artigo “La fausse reconnaissance” [A Energia espiritual, tr. br. Rosemary C. Abílio, São Paulo, Martins Fontes, 2009, artigo “A lembrança do presente e o falso reconhecimento”].21 Sobre esse ponto cf. G. Deleuze, Le Bergsonisme, Paris, PUF, 1966, 1991, p. 52 [O Bergsonismo, tr. br. Luiz B. L. Orlandi, São Paulo, Ed. 34, 1999, p. 43-44].

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A segunda definição caracteriza o virtual como reserva ou potência, como um conjunto de potencialidades indeterminadas, surdamente ativas, que agem como uma multiplicidade de tendências ainda implicadas umas nas outras. A memória não é mais uma reserva de sentido, mas de “energia espiritual”. O virtual revela uma outra forma de memória, uma memória ativa, informada pela vida. Deleuze não confunde as duas formas, pois ele distingue uma memória ontológica, uma memória do passado em si, a da lembrança pura, virtual, impassível, inativa e inútil – e uma memória psicológica, “encarnada”, que usa o passado para servi-la22. Da ontologia à psicologia, passamos de um virtual a outro, de um virtual inativo a um virtual ativo que já é potência, de um virtual em si a um virtual para nós, convertido por isso mesmo em uma reserva de futuro que se atualiza segundo processos determinados. Mas por que milagre se opera essa passagem em Deleuze?

Podemos dizer que são as exigências do presente, com sua sucessão incessante de imperativos, que nos fazem atualizar essa ou aquela virtualidade, mas o que acontece então com a liberdade, irredutível a esse tipo de causalidade? Como a liberdade vai encontrar sua razão de ser obedecendo às exigências desses imperativos? Devemos então supor que se introduzirmos um intervalo de tempo entre a ação e a reação, entre a causa e o efeito, entre o imperativo e a nossa resposta, se introduzirmos a duração de uma hesitação, estaremos introduzindo no mundo uma certa porção de liberdade?23 Essa diferença de ritmo não é a própria liberdade? Podemos ver bem o que isso significa para os viventes, mesmo no nível mais elementar: a nutrição é aquilo que permite ao vivente inserir a indeterminação no mundo, afrouxar a trama do determinismo

22 Cf. ibidem, p. 48 e o resumo, p. 69-70 [56]: “É assim que se define um inconsciente psicológico, distinto do inconsciente ontológico. Este corresponde à lembrança pura, virtual, impassível, inativa, em si. O inconsciente psicológico representa o movimento da lembrança em vias de se atualizar: então, assim como os possíveis leibnizianos, as lembranças tendem a se encarnar, fazem pressão para serem recebidas – de modo que é preciso todo um recalque saído do presente e da ‘atenção à vida’ para rechaçar aquelas que são inúteis ou perigosas”. Embora Deleuze fale de uma memória passiva, raras passagens de MM (p. 143 e p. 145 [150 e 152]) sugerem que a memória é dotada de atividade. Cf. igualmente ES, p. 96-97 e 99 [96-97 e 99]: “Não se deve julgar que as lembranças alojadas no fundo da memória lá permaneçam inertes e indiferentes. Elas estão na expectativa, estão quase atentas”. 23 Cf. ibidem, p. 109 [85].

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universal, introduzir aí um novo ritmo de duração, mais precisamente porque ele dispõe de uma certa reserva de energia para fazê-lo24.

Num outro nível, de onde o indivíduo tira sua potência para romper a trama do determinismo material, social etc., ao qual está sujeito? Voltamos ao mesmo ponto: de onde ele tira sua “energia espiritual”? O que foi que se acumulou nele a ponto de explodir em um ato livre? De que ele se alimentou? Do sentido, ou será que foi das múltiplas significações que nossa memória recolheu ao longo da vida? Isso explicaria em parte o longo trabalho da intuição, do qual Bergson fala várias vezes, a longa duração que ela exige25. Isso é certamente muito necessário a todo ato criador, carregado de explosividade. “A obra produzida poderá, aliás, ser original e forte; com frequência, o pensamento humano ficará enriquecido. Mas será sempre um simples acréscimo do rendimento anual”26. Ele será apenas recomposição ou complexificação de uma simplicidade que lhe escapa, porque está situado num outro plano. É claro que podemos invocar a vida, o próprio impulso vital, mas isso nos remeterá ao mesmo deus ex machina.

É preciso, no entanto, que essa energia espiritual venha da memória, pois, em Bergson, tudo vem dela. Só que ela não poderá ser explicada pelas duas formas de memória que compõem a percepção em Matéria e memória. Ela não poderá ser explicada, de fato, nem pela memória-contração, que contrai as incontáveis vibrações da matéria e as condensa em qualidades, fazendo com que o presente já seja uma síntese do passado e que só percebamos, na verdade,

24 De forma estranha, Deleuze vê na liberdade bergsoniana um processo antes de tudo de ordem física. Ibidem, p. 113 [87].25 Cf. PM, p. 226 [224]: “Pois não se obtém da realidade uma intuição, [...] se não se conquistou por meio de uma longa camaradagem com suas manifestações superficiais. E não se trata simplesmente de assimilar os fatos marcantes; é preciso acumular e fundir entre si uma massa desses fatos que seja tão enorme que estejamos assegurados, nessa fusão, de neutralizar umas pelas outras todas as ideias preconcebidas e prematuras que os observadores podem ter depositado, sem o saberem, no fundo de suas observações”.26 MR, p. 269.

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o passado27, nem pela memória-lembrança, que é apenas a reserva, inativa em si mesma, de toda nossa vida passada, através da qual o presente recebe a sua significação28. Consequentemente é preciso introduzir uma outra forma de memória. Não se trata mais de uma memória do presente (contração) nem de uma memória do passado (lembrança), trata-se de uma memória do futuro, para o futuro.

Paralelamente ao passado sempre já passado da memória-lembrança, paralelamente ao incessante tornar-se presente da memória-contração, existe ainda, na profundidade, um outro presente que não passa – e que não para de crescer porque acumula energia, essa energia que Bergson chama de “espiritual”, e que é ainda tão difícil de compreender. É uma memória-espírito. Não é a memória daquilo que percebemos no presente; não é a memória daquilo que fomos, é a memória daquilo que somos e nunca deixamos de ser, mesmo que não tivéssemos conhecimento disso. É ela que imagina o tempo, que abre ou fecha o futuro. Sua presença, às vezes até sua insistência, se explica porque existe no passado – e, portanto, também no presente – alguma coisa que de certa maneira não foi vivida. Só que aqui não existe nenhuma relação com a maneira pela qual a lembrança se apresenta de uma só vez num passado que também ele nunca foi vivido: puro virtual inútil para o presente do qual ele é a imagem já esmaecida. Não, trata-se aqui de alguma coisa que foi presente, que foi sentida mas não foi agida, alguma coisa, portanto, que está na reserva, um pouco como a planta acumula uma energia que servirá depois para o animal.

É para o lado da vida que devemos nos voltar, para aquilo que faz de nós viventes, ou melhor, para aquilo que nos faz sentir viventes. Não se trata de olhar para o impulso vital em geral, mas para o processo que tornou possível sua atualização, ou seja, a divisão do impulso em vegetais e animais. Essa cisão era

27 MM, p. 167 [176]: “Na fração de segundo que dura a mais curta percepção possível de luz, trilhões de vibrações ocorreram [...]. A sua percepção, por mais instantânea que seja, consiste portanto numa incalculável quantidade de elementos rememorados e, para dizer a verdade, toda percepção já é memória. Praticamente, só percebemos o passado...”.28 MM, capítulo II. É claro que ela também não se explica pela memória-hábito, que para Bergson mal é uma memória; nossos hábitos são, por assim dizer, sem passado, como prova a familiaridade das nossas atividades cotidianas que flutuam numa espécie de presente constante.

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a própria condição do seu crescimento29. De um lado, a planta acumula energia; do outro, o animal a gasta em movimentos. Não é essa a cisão, da qual Bergson parte em Ensaio sobre os dados imediatos, entre o eu da profundidade e o eu da superfície? Alguma coisa sobe da profundidade e vem perfurar a superfície do eu superficial, e toda a duração de uma vida comprimida nos limites de uma vida comum finalmente se libera e se exprime através de um ato ou de uma série de atos livres. De um lado, a emoção se acumula na profundidade do eu, do outro, ela explode num ato livre. Não é a emoção que constitui a energia espiritual de uma memória-espírito, puramente intensiva, irredutível à memória-lembrança e suas virtualidades? Se existe um sentido do futuro e se ele pode ser engendrado, é a partir da emoção e apenas da emoção. Eis-nos, pois, reconduzidos ao afeto do qual partimos.

Mais uma vez, o que é essa emoção? Visto que ela não pode estar nem no tempo nem fora do tempo, de que natureza é a emoção que Bergson liga, com toda propriedade, à duração? E em que ela se revela inseparável da nossa liberdade? Só podemos compreender isso se concebermos e experimentarmos que a duração é ela mesma inseparável do movimento, da universal “mobilidade que está no fundo das coisas”30. A duração é sempre duração de um movimento. Da mesma maneira só existe emoção do movimento31. Alias, se Bergson prefere o termo emoção ao termo afeto, é provavelmente porque sua etimologia já sugere o movimento. A emoção é o movimento pelo qual o espírito apreende o movimento das coisas, dos seres, ou o seu próprio. Ou melhor, o movimento é o próprio espírito das coisas e dos seres, é aquilo que nos faz “vibrar interiormente”, na profundidade. Ou seja, a emoção é o movimento virtual – mas real – dos movimentos atuais que se realizam no mundo.

29 Cf. EC, p. 117 [126]: “[...] é provável que, de início, a vida tendesse a obter, num único lance, tanto a fabricação do explosivo quanto à explosão que o utiliza [...] [Mas] será, que de modo mais verossímil, a própria natureza da matéria que a vida encontrava frente a si em nosso planeta opunha-se a que as duas tendências pudessem evoluir muito longe uma ao lado da outra no mesmo organismo? O que é certo é que o vegetal insistiu sobretudo no primeiro sentido e o animal no segundo, mas se desde o inicio a fabricação do explosivo tinha por objetivo a explosão, é a evolução do animal, bem mais que a do vegetal, que indica em suma a direção fundamental da vida”.30 PM, p. 95 [99].31 Cf., por exemplo, desde o início de DI, p. 9-14 [18-24], a análise da emoção provocada pela graça, expressa unicamente em termos de movimentos.

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É disso que está sempre se abastecendo o “eu da profundidade” e de que os atos livres são, em seguida, a expressão. O que está faltando às vidas que evocávamos anteriormente? Podemos dizer que elas não têm realidade, liberdade, vitalidade, mas o que lhes falta, primeiramente e antes de tudo, são movimentos que as tornariam mais reais, mais vivas e mais livres; elas se privam do impulso que as liberaria do seu destino, ou melhor, elas se curvam, a cada movimento nascente, para esse mesmo destino. Ao contrário, emocionar-se com a “pura duração” supõe que nos liberamos desse confinamento, que simpatizamos com outras durações, que “entramos naquilo que está sendo feito, que seguimos o movimento, adotamos o devir que é a vida das coisas”32. É nesse sentido que Bergson pode dizer que “qualquer que seja a essência íntima daquilo que é e daquilo que se faz, somos feitos disso”33. Participamos do movimento daquilo que está sendo feito na medida em que nos emocionamos com aquilo, emoção. É que a emoção não é um afeto que reage à presença ou à ausência de alguma coisa, o que é próprio de todos os afetos ditos “temporais”; é um afeto que se emociona com a passagem do tempo ou com o movimento dos seres como tais. Esse afeto é emoção da própria passagem do tempo e não o fato de se emocionar com os seres (ou com os nadas) que o povoam (ou despovoam).

Pensar a passagem do tempo, simpatizar com essa passagem, é justamente livrar-se daquilo que é, daquilo que nos prende aos seres ou aos nadas. Correlativamente, é a razão pela qual buscaríamos em vão, em Bergson, uma definição do passado como aquilo que não é mais, ou do futuro como aquilo que ainda não é, embora, às vezes, ele se expresse assim. Ser e nada não permitem pensar adequadamente o tempo. Todo o problema vem de que o pensamento se apegou aos seres – e não aos movimentos dos seres. Não é esse o caso dos melancólicos que permanecem apegados ao passado ou ao futuro? Não é também próprio da metafísica permanecer apegada aquilo que era ou aquilo que poderia

32 PM, p. 138 [144].33 PM, p. 137 [143].

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ser, engendrando assim toda uma série de falsos problemas34? Só nos tornamos metafísicos ou religiosos quando conseguimos sair da imanência da duração. Se não existe nenhuma dialética da ausência e da presença em Bergson, é porque a duração não está presa ao ser – nem aos seres –, ela se confunde, pelo contrário, com o puro devir. A emoção da duração é um afeto que não é mais apego. Eis porque, não é indiferente que Bergson descubra, ao mesmo tempo, a duração e uma nova concepção da liberdade. Apegar-se à duração libera-nos do apego aos seres e aos nadas, na medida em que ela nos faz simpatizar com os seus movimentos. A duração bergsoniana é uma ascese, quase uma lição de moral.

Emoção, simpatia, apego constituem assim três aspectos de um pensamento do afeto em Bergson. Como não ver então que o conjunto dessas questões nos leva a fazer o retrato de um outro Bergson? A partir de conceitos aparentemente secundários, e às vezes deixados de lado, como o conceito de “numero obscuro”, ou de “apego à vida”, até mesmo o de “simpatia”, surgem outras versões do bergsonismo. Um Bergson matemático, um Bergson perspectivista ou ainda um Bergson médico da civilização. Com muita frequência, esses termos só foram considerados como concessões feitas à pedagogia ou à elegância, mas não como conceitos de fato; entretanto, é dessa maneira que devemos tentar considerá-los, não por provocação ou heresia, mas porque eles são necessários a uma outra compreensão da obra de Bergson: são eles que permitem estabelecer uma relação indissolúvel entre tempo e afeto.

34 Cf. PM, p. 107 [111] (grifo nosso): “Temos aí maneiras de pensar das quais nos servimos na vida prática; importa particularmente à nossa indústria que nosso pensamento saiba atrasar-se com relação à realidade e permanecer preso, quando necessário, àquilo que era ou o que poderia ser, ao invés de ser acaparado por aquilo que é. Mas quando nos transportamos do domínio da fabricação para o da criação, quando nos perguntamos porque há de ser, por que o mundo ou Deus existe e por que não o nada, quando nos pomos, enfim, o mais angustiante dos problemas metafísicos, aceitamos virtualmente um absurdo.”

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