letramento e ensino de gÊneros - ufjf · 2012. 8. 6. · da escrita em uma determinada sociedade,...

22
LETRAMENTO E ENSINO DE GÊNEROS Vanessa Souza da Silva 1 Resumo Este artigo apresenta a relevância do letramento como horizonte ético-político para o trabalho pedagógico no ensino da língua. Primeiramente adota o conceito letramento como resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever, ou seja, o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita; em seguida, distingue-o de alfabetização; apresenta dados dos censos sobre o índice de analfabetismo realizados no país de 1872 a 2003 e destaca o ensino dos gêneros para alcançar o letramento dos alunos. Palvras-chave: Letramento; Analfabetismo; Alfabetização; Censos; Ensino de Gêneros. Abstract his article presents the relevance of literacy as an ethical- political horizon for the pedagogical work in language teaching. First of all it adopts the literacy concept as action result of teaching or learning how to read and write, in other words, the state or the condition that a social group or individual acquires as consequence of having appropriated of the writing, right after, distinguishes it of alphabetization; it presents census data about illiteracy rates done in the country from 1872 to 2003 and it highlights the teaching of genres to reach the students literacy. Key-words: Literacy, Illiteracy, Beginning Literay, Census, Teaching of Genres. 1 Integrante do Grupo de Pesquisa (CNPq) FALE - Formação de Professores, Alfabetização, Linguagem e Ensino da UFJF, integrado ao NUPEL (Núcleo de Pesquisa e Ensino em Linguagem) da Faculdade de Educação. Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense e doutoranda em Letras (UERJ). E-mail: [email protected]. Endereço: Rua Ademar Santana de Lima, 930 – Gulf, Comendador Levy Gasparian – RJ. Telefone: (24) 8114-1058.

Upload: others

Post on 25-Aug-2021

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: LETRAMENTO E ENSINO DE GÊNEROS - UFJF · 2012. 8. 6. · da escrita em uma determinada sociedade, enfatizando as “mudanças sociais e discursivas que ocorrem em uma sociedade quando

LETRAMENTO E ENSINO DE GÊNEROS

Vanessa Souza da Silva1

ResumoEste artigo apresenta a relevância do letramento como horizonte ético-político para o trabalho pedagógico no ensino da língua. Primeiramente adota o conceito letramento como resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever, ou seja, o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita; em seguida, distingue-o de alfabetização; apresenta dados dos censos sobre o índice de analfabetismo realizados no país de 1872 a 2003 e destaca o ensino dos gêneros para alcançar o letramento dos alunos.Palvras-chave: Letramento; Analfabetismo; Alfabetização; Censos; Ensino de Gêneros.

Abstracthis article presents the relevance of literacy as an ethical-political horizon for the pedagogical work in language teaching. First of all it adopts the literacy concept as action result of teaching or learning how to read and write, in other words, the state or the condition that a social group or individual acquires as consequence of having appropriated of the writing, right after, distinguishes it of alphabetization; it presents census data about illiteracy rates done in the country from 1872 to 2003 and it highlights the teaching of genres to reach the students literacy. Key-words: Literacy, Illiteracy, Beginning Literay, Census, Teaching of Genres.

1 Integrante do Grupo de Pesquisa (CNPq) FALE - Formação de Professores, Alfabetização, Linguagem e Ensino da UFJF, integrado ao NUPEL  (Núcleo de Pesquisa e Ensino em Linguagem) da Faculdade de Educação. Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense e doutoranda em Letras (UERJ). E-mail: [email protected]. Endereço: Rua Ademar Santana de Lima, 930 – Gulf, Comendador Levy Gasparian – RJ. Telefone: (24) 8114-1058.

Page 2: LETRAMENTO E ENSINO DE GÊNEROS - UFJF · 2012. 8. 6. · da escrita em uma determinada sociedade, enfatizando as “mudanças sociais e discursivas que ocorrem em uma sociedade quando

Educ. foco,

Juiz de Fora,

v. 16, n. 1, p. 19-40,

mar. / ago. 2011

Vanessa Souza

da Silva

20

[...] o índice de letramento de uma sociedade ou de um grupo social é um dos indicadores básicos do progresso de um país ou de uma comunidade (SOARES, 2002, p.112)

1 INTRODUÇÃO

Vivemos numa sociedade que vai se tornando cada vez mais centrada na escrita e que exige de seus falantes saber praticá-la. Com isso, defrontamo-nos, constantemente, com uma relexão sobre o uso da língua escrita na vida e na sociedade e sobre a questão da inclusão ou exclusão que os indivíduos sofrem em virtude desse uso.

Sendo a linguagem o “caminho de invenção da cidadania” (FREIRE, 1993, p.41), é comum a preocupação sobre como isso acontece no Brasil, tendo em vista que participamos de uma sociedade que tem a linguagem como “arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder” (GNERRE, 1985) e, por extensão, à vida social. Ainal, é na linguagem, pela linguagem e com a linguagem que o homem produz mundos e nele se produz, havendo um destaque para o uso social da palavra nesse contexto.

Ao se falar em linguagem, logo a escrita emerge para o estudo e o tema da alfabetização entra em campo. Sabemos que apenas decodiicar palavras é insuiciente para a participação em práticas sociais que envolvem a língua escrita, é necessário algo mais: saber utilizar a leitura e a escrita de acordo com as contínuas exigências sociais. Esse algo mais é o que se vem designando letramento.

O letramento é um tema que se torna relevante como passaporte para o pleno exercício da cidadania, e, consequentemente, da inclusão social. Destacaremos aqui uma forma que acreditamos ser a mais fértil para alcançar esse letramento: uso dos gêneros em sala de aula. Segundo Silva (2008b), conhecer os gêneros do discurso é um imperativo se queremos efetivar práticas de letramento em nossa vida, uma

Page 3: LETRAMENTO E ENSINO DE GÊNEROS - UFJF · 2012. 8. 6. · da escrita em uma determinada sociedade, enfatizando as “mudanças sociais e discursivas que ocorrem em uma sociedade quando

Educ. foco,

Juiz de Fora,

v. 16, n. 1, p. 19-40,

mar. / ago. 2011

Letramento

e ensino de

gêneros

21

vez que todo texto que lemos ou produzimos pertence a um determinado gênero.

2 LETRAMENTO: CONCEITO

Como conceituar letramento? O letramento é uma palavra ainda não dicionarizada, tendo chegado ao vocabulário da Educação e das Ciências Linguísticas na metade dos anos 80. Trata-se da versão para a língua portuguesa da palavra inglesa literacy, que designa a condição de ser literate, ou seja, designa aquele que vive em estado ou condição de saber ler e escrever. É um tema que vem ganhando visibilidade no cenário educacional e mundial como sinônimo de desenvolvimento e aptidão linguística para muitos educadores.

O termo letramento parece ter sido utilizado pela primeira vez, no Brasil, por Mary Kato, na apresentação de sua obra No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística, em 1986. Seu livro tem o objetivo de destacar quais aspectos de ordem psicolinguística estão envolvidos na aprendizagem da linguagem escolar de crianças. O termo letramento está relacionado à formação de cidadãos “funcionalmente letrados”, capazes de utilizar a linguagem escrita para sua necessidade individual do ponto de vista cognitivo e atendendo à demanda social da sociedade que prestigia a língua padrão:

A função da escola, na área da linguagem, é introduzir a criança no mundo da escrita, tornando-a um cidadão funcionalmente letrado, isto é, um sujeito capaz de fazer uso da linguagem escrita para sua necessidade individual de crescer cognitivamente e para atender às várias demandas de uma sociedade que prestigia esse tipo de linguagem como um dos instrumentos de comunicação. Acredito ainda que a chamada norma-padrão, ou língua falada culta, é consequência do letramento, motivo por que, indiretamente, é função da escola desenvolver no aluno o domínio da linguagem falada institucionalmente aceita (KATO, 1986, p.7)

Page 4: LETRAMENTO E ENSINO DE GÊNEROS - UFJF · 2012. 8. 6. · da escrita em uma determinada sociedade, enfatizando as “mudanças sociais e discursivas que ocorrem em uma sociedade quando

Educ. foco,

Juiz de Fora,

v. 16, n. 1, p. 19-40,

mar. / ago. 2011

Vanessa Souza

da Silva

22

Mary Kato parece associar o termo letramento ao domínio individual do uso da linguagem escrita. Está intimamente ligado à habilidade de usar a língua na sua variedade culta, pois a norma-padrão seria “consequência do letramento”. Pode-se inferir desse contexto que é letrado aquele que domina essa variedade da língua.

Depois de Mary Kato, uma contribuição valiosa para o tema é trazida por Leda V. Tfouni. Em Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso (1988)2, a autora apresenta o termo letramento centrado nas práticas sociais de leitura e escrita e nas mudanças geradas por essas práticas em uma sociedade, quando esta se torna letrada. Ao estudar a linguagem de adultos não alfabetizados, segundo uma abordagem de caráter psicolinguística, Tfouni situa o letramento no âmbito do social, distinguindo-o da alfabetização, que se situaria no âmbito individual:

A alfabetização refere-se à aquisição da escrita enquanto aprendizagem de habilidades para leitura, escrita e as chamadas práticas de linguagem. Isto é levado a efeito, em geral, através do processo de escolarização, e, portanto, da instrução formal. A alfabetização pertence, assim, ao âmbito do individual.O letramento, por sua vez, focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição da escrita. [...] tem por objetivo investigar não somente quem é alfabetizado, mas também quem não é alfabetizado, e, neste sentido, desliga-se de veriicar o individual e centraliza-se no social mais amplo. (TFOUNI, 1988, p.9)

A autora retoma essas relexões em Letramento e alfabetização, conceituando o termo em confronto com alfabetização: “Enquanto a alfabetização ocupa-se da aquisição da

2 Esta obra, resultado de uma investigação da autora baseada em uma abordagem de caráter psicolinguística, estuda as relações entre escrita, alfabetização e letramento através da explicitação de alguns aspectos do desenvolvimento cognitivo de um grupo de adultos brasileiros não alfabetizados. Tfouni evidencia que, além de o tema ser uma questão complexa em sociedades letradas, não há total identiicação entre analfabeto e iletrado no âmbito das relações entre pensamento e linguagem.

Page 5: LETRAMENTO E ENSINO DE GÊNEROS - UFJF · 2012. 8. 6. · da escrita em uma determinada sociedade, enfatizando as “mudanças sociais e discursivas que ocorrem em uma sociedade quando

Educ. foco,

Juiz de Fora,

v. 16, n. 1, p. 19-40,

mar. / ago. 2011

Letramento

e ensino de

gêneros

23

escrita por um indivíduo, ou grupo de indivíduos, o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição de um sistema escrito em uma sociedade” (2005, p.20). TFOUNI reairma a diferença entre alfabetização e letramento, destacando, mais uma vez, o caráter individual daquela e o social deste. Ela o toma como sendo as consequências sociais e históricas da introdução da escrita em uma determinada sociedade, enfatizando as “mudanças sociais e discursivas que ocorrem em uma sociedade quando ela se torna letrada” (op. cit).

Ângela Kleiman, por sua vez, em Os signiicados de letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita (1995)3, considera que o letramento são práticas de leitura e escrita, e analisa duas concepções dominantes de letramento4, relacionando o termo com a situação de ensino e aprendizagem da língua escrita por parte de crianças, adolescentes e adultos.

Podemos deinir hoje o letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos especíicos, para objetivos especíicos [...]. As práticas especíicas da escola, que forneciam o parâmetro de prática social segundo a qual o letramento era deinido, e segundo a qual os sujeitos eram classiicados ao longo

3 Esta obra, organizada por Ângela Kleiman, é uma coletânea de dez artigos que apresentam resultados de pesquisas que analisam, sob diferentes perspectivas, variadas concepções de letramento. Na primeira parte, trata das concepções dominantes de letramento e sua relação com a pesquisa e o ensino da escrita. Na segunda, das relações entre oralidade e escrita, através dos modos de participação da oralidade no letramento. Na terceira, apresenta as relações do sujeito não-escolarizado na sociedade brasileira e, por último, trata da ideologia do letramento na mídia e seus relexos na constituição do analfabeto adulto.

4 Com base, principalmente em Brian Street (1984, 1993), a autora apresenta duas concepções de letramento: o modelo autônomo e modelo ideológico. O primeiro modelo diz respeito às práticas de uso da escrita da escola. Esta concepção pressupõe que “[...] há apenas uma maneira de o letramento ser desenvolvido, sendo que essa forma está associada quase que causalmente com o progresso, a civilização, a mobilidade social” (1995, p.21). Contrapondo-se ao o modelo autônomo, o modelo ideológico pressupõe que há práticas de letramento, no plural, que são social e culturalmente determinadas, “[...] e, como tal, os signiicados especíicos que a escrita assume para um grupo social dependem dos contextos e instituições em que ela foi adquirida” (op. cit.).

Page 6: LETRAMENTO E ENSINO DE GÊNEROS - UFJF · 2012. 8. 6. · da escrita em uma determinada sociedade, enfatizando as “mudanças sociais e discursivas que ocorrem em uma sociedade quando

Educ. foco,

Juiz de Fora,

v. 16, n. 1, p. 19-40,

mar. / ago. 2011

Vanessa Souza

da Silva

24

da dicotomia alfabetizado ou não alfabetizado, passam a ser, em função dessa deinição, apenas um tipo de prática – de fato, dominante – que desenvolve alguns tipos de habilidades, mas não outros, e que determina uma forma de utilizar o conhecimento sobre a escrita. (KLEIMAN, 1995, p. 19)

Em texto posterior, a autora apresenta o letramento “[...] como as práticas e eventos relacionados com uso, função e impacto social da escrita” (KLEIMAN, 1998, p.181). Segundo essa concepção, o letramento são as práticas sociais da escrita e leitura. São os eventos nos quais essas práticas são colocadas em ação, bem como as consequências delas sobre a sociedade em geral.

Enquanto Tfouni considera o letramento como sendo as práticas sociais e históricas da introdução da escrita em uma sociedade, considerando o impacto social da escrita na sociedade, Kleiman inclui as próprias práticas sociais de leitura e escrita e os eventos em que elas ocorrem na caracterização do letramento. Ambas as autoras, no entanto, consideram que o núcleo do conceito de letramento está além da simples aquisição da escrita e seu código (alfabetização). Em outras palavras, apenas saber ler não basta.

Entretanto, gostaria de destacar aqui o conceito de letramento atribuído por Magda Soares em Letramento: um tema em três gêneros (1998). A autora mantém o foco nas práticas sociais de leitura e de escrita e em algo além da alfabetização. Mas o letramento, para ela, (i) não são as próprias práticas de leitura e escrita ou (ii) os eventos relacionados com o uso dessas práticas (KLEIMAN, 1995), (iii) não se focaliza no impacto ou as consequências da escrita sobre a sociedade (TFOUNI, 2005), (iv) nem está relacionado à formação de cidadãos “funcionalmente letrados” (KATO, 1988), capazes de utilizar a linguagem escrita para sua necessidade individual apenas. Para Magda Soares (1998), o letramento pode ser entendido como resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever, ou seja, o estado ou a condição que adquire um

Page 7: LETRAMENTO E ENSINO DE GÊNEROS - UFJF · 2012. 8. 6. · da escrita em uma determinada sociedade, enfatizando as “mudanças sociais e discursivas que ocorrem em uma sociedade quando

Educ. foco,

Juiz de Fora,

v. 16, n. 1, p. 19-40,

mar. / ago. 2011

Letramento

e ensino de

gêneros

25

grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita. Para a autora, é considerado letrado aquele indivíduo que usa socialmente a escrita e a leitura, que as pratica, respondendo às demandas sociais que elas implicam.

Em texto posterior, Soares (2002) ratiica essa concepção de letramento, considerando-o para além da alfabetização, como sendo “[...] o estado ou condição de quem exerce as práticas sociais de leitura e de escrita, de quem participa de eventos em que a escrita é parte integrante da interação entre pessoas e do processo de interpretação dessa interação – os eventos de letramento” (p.145). Isso nos sugere que o letramento confere ao indivíduo um estado ou condição de inserção no mundo letrado que vai além das simples práticas de leitura e escrita:

Indivíduos ou grupos sociais que dominam o uso da leitura e da escrita e, portanto, têm habilidades e atitudes necessárias para uma participação viva e competente em situações em que práticas de leitura e/ou escrita têm uma função essencial, mantêm com os outros e com o mundo que os cerca formas de interação, atitudes, competências discursivas e cognitivas que lhes conferem um determinado e diferenciado estado ou condição em uma sociedade letrada. (SOARES, 2002, p.146)

Em suma, a autora vê, imbricada ao conceito de letramento, a condição ou estado de quem exerce efetivamente as práticas sociais de leitura e escrita, de quem participa de eventos de letramento. Por se tratar de uma palavra recente, pode-se notar que nem sempre são idênticos os signiicados que se vêm atribuindo ao termo letramento. Nesse texto, ao utilizarmos essa palavra, estaremos nos referindo à concepção da educadora Magda Soares. Como a noção de letramento está intimamente ligada à de alfabetização e, consequentemente, ao conceito de analfabetismo, desenvolveremos melhor esses conceitos a seguir.

Page 8: LETRAMENTO E ENSINO DE GÊNEROS - UFJF · 2012. 8. 6. · da escrita em uma determinada sociedade, enfatizando as “mudanças sociais e discursivas que ocorrem em uma sociedade quando

Educ. foco,

Juiz de Fora,

v. 16, n. 1, p. 19-40,

mar. / ago. 2011

Vanessa Souza

da Silva

26

3 LETRAMENTO, ALFABETIZAÇÃO E ANALFABETISMO

O conceito de letramento se distingue de alfabetização. Considera-se a aquisição do conjunto de técnicas necessárias para a prática da leitura e da escrita como alfabetização. É o processo pelo qual se adquire habilidades para a leitura e escrita. Costuma-se considerar alfabetizado aquele que sabe ler e escrever.

Segundo o dicionário Aurélio Júnior (2005), alfabetizado é aquele que sabe ler e a alfabetização é a ação de alfabetizar, de propagar o ensino da leitura. Já segundo o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (1949)5, alfabetizado é aquele que aprendeu a ler e a escrever e alfabetização é o ato ou efeito de alfabetizar, de ensinar as primeiras letras. É esse o conceito de alfabetização utilizado aqui, ou seja, a habilidade de ler e escrever, sendo alfabetizado aquele que consegue fazê-lo.

O letramento é, por outro lado, um processo mais amplo que a alfabetização, embora intimamente relacionado com a existência e ação do código escrito. Pressupõe o uso efetivo das práticas sociais que envolvem a língua escrita. Assim, o indivíduo pode ser alfabetizado, mas não ser letrado, ou seja, ele pode dominar o sistema de escrita (alfabético, ortográico) e não atender às demandas sociais do mundo letrado. Entra aí o conceito de analfabetismo funcional, deinido pelo IBGE e pelo INEP que, de modo geral, caracteriza o sujeito que foi exposto a algum tipo de metodologia da alfabetização, mas não consegue fazer uso social da língua materna, não sendo capaz de redigir um requerimento, uma declaração, escrever uma carta, encontrar informações em um catálogo telefônico, ler e compreender um contrato de trabalho, por exemplo.

Àquele que não possui a habilidade de ler e escrever costuma-se chamar analfabeto. Segundo o dicionário Aurélio Júnior, o analfabetismo é o estado ou condição do analfabeto, falta absoluta de instrução e analfabeto é aquele que não

5 Apud MORTATTI, Maria do R. L. Educação e letramento. São Paulo: UNESP, 2004, p.130.

Page 9: LETRAMENTO E ENSINO DE GÊNEROS - UFJF · 2012. 8. 6. · da escrita em uma determinada sociedade, enfatizando as “mudanças sociais e discursivas que ocorrem em uma sociedade quando

Educ. foco,

Juiz de Fora,

v. 16, n. 1, p. 19-40,

mar. / ago. 2011

Letramento

e ensino de

gêneros

27

conhece o alfabeto ou que não sabe ler e escrever. Mortatti (2004) apresenta a evolução do signiicado dessas palavras, segundo o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa:

Analfabeto adj. s.m. (a 1710) 1. Que ou aquele que desconhece o alfabeto, que ou aquele que não sabe ler nem escrever 2. que ou aquele que não tem a instrução primária 3. p. ext.. que ou o que é muito ignorante, bronco, de raciocínio difícil. 4. p. ext. que ou aquele que desconhece ou conhece muito mal determinado assunto. Analfabeto funcional PED pessoa alfabetizada apenas para entender na área na qual trabalha, a sua função, sendo completamente despreparada para entender textos ou problemas de outras áreas do saber, o que conigura uma espécie de tecnicização do conhecimento. ANT. alfabetizado, como adjetivo, culto, polido.Analfabetismo. s.m. (1899) estado ou condição de analfabeto; falta de instrução, sobretudo elementar (ler e escrever) ETIM. Analfabeto + -ismo; f. hist. (1899) analphabetismo. ANT. alfabetismo, instrução.

De modo geral, o analfabeto é considerado aquele que não domina o código da escrita. Entretanto, os termos analfabetismo e analfabeto, muitas vezes, costumam ir além do acesso ou não do código escrito da língua, denotando ignorância e atribuindo-se aos analfabetos estereótipos pejorativos. Nota-se que o termo analfabetismo carrega ainda outros predicativos e sentidos, como nos aponta Freire:

A concepção, na melhor das hipóteses, ingênua do analfabetismo o encara ora como “erva daninha” – daí a expressão corrente: “erradicação do analfabetismo” –, ora como uma “enfermidade” que passa de um a outro, quase por contágio, ora como uma “chaga” deprimente a ser “curada” e cujos índices, estampados nas estatísticas de organismos internacionais, dizem mal dos níveis de “civilização” de certas sociedades. Mais ainda, o analfabetismo aparece também, nesta visão ingênua e astuta, como a manifestação da “incapacidade” do povo, de sua “pouca inteligência”, de sua “proverbial preguiça. (FREIRE, 2001, p.15)

Page 10: LETRAMENTO E ENSINO DE GÊNEROS - UFJF · 2012. 8. 6. · da escrita em uma determinada sociedade, enfatizando as “mudanças sociais e discursivas que ocorrem em uma sociedade quando

Educ. foco,

Juiz de Fora,

v. 16, n. 1, p. 19-40,

mar. / ago. 2011

Vanessa Souza

da Silva

28

“Erva daninha”, “enfermidade” ou “chaga”, dentre outros, são termos que estabelecem estigmas para designar a todos aqueles que não conseguiram passar pelo processo de escolarização para ter acesso ao mundo da escrita. Isso nos prova que o tema letramento e sua promoção extrapolam questões individuais de acesso à escrita e transcendem os portões das escolas. O termo analfabetismo, que é o contrário do letramento, carrega todo um peso social que marca aqueles que não tiveram o domínio do código escrito. Segundo Silva (2007a), o analfabetismo é uma questão de exclusão social:

Isso porque a “luta” que seria contra um fenômeno social e histórico no Brasil (analfabetismo), acaba “parecendo” uma “briga” contra os analfabetos. Mas ainal, o analfabeto cria a história ou é a história que cria o analfabeto? É uma questão não difícil de ser respondida, que aponta para a competência nacional, indo além das habilidades individuais. E se “ainda” existem analfabetos “contaminando” a sociedade é porque a palavra de ordem não foi dada. Ainal, problemas relacionados à leitura e à escrita acabam se relacionando a outros problemas, como a desigualdade social, déicit de escolarização, má distribuição de renda e oportunidades, falta de acesso ao bem comum cultural, entre diversos outros. O acesso às letras é, na verdade, uma questão de inclusão ou exclusão social. (SILVA, 2007a, p. 10)

Como vivemos em uma sociedade grafocêntrica, “[...] ensinar a ler e a escrever signiica promover a inserção social” (BOZZA, 2005, p.249) e signiica diminuir a exclusão a que milhares de homens e mulheres estão sujeitos por não serem letrados. Quando nossas escolas brasileiras promovem o letramento, elas estão, na verdade, promovendo a inclusão social e dando ao aluno condição para o pleno exercício da sua cidadania. Como destaca Silva (2007a, p. 2) “[...] promover o letramento é mais que uma política social, é uma palavra de ordem para a participação na vida em sociedade”.

Page 11: LETRAMENTO E ENSINO DE GÊNEROS - UFJF · 2012. 8. 6. · da escrita em uma determinada sociedade, enfatizando as “mudanças sociais e discursivas que ocorrem em uma sociedade quando

Educ. foco,

Juiz de Fora,

v. 16, n. 1, p. 19-40,

mar. / ago. 2011

Letramento

e ensino de

gêneros

29

Goulart (2000) vai um pouco além. A autora airma que a noção de letramento deve ser tomada como horizonte ético-político para o trabalho pedagógico. Isso signiica que o ensino da língua materna deve possibilitar que o educando use a linguagem socialmente, respondendo adequadamente às demandas sociais de leitura e escrita que a sociedade lhe impõe e a use como instrumento de luta social e a partir dessa noção de letramento que entendemos o trabalho a ser realizado com a língua materna na escola.

4 ANALFABETISMO E LETRAMENTO: O QUE DIZEM OS CENSOS

A questão do analfabetismo no país nos sinaliza como é tratada a questão do letramento num contexto geral. Mas para sabermos isso, é necessário recorrermos aos censos sobre os índices de analfabetismo realizados no decorrer de nossa história. Para investigarmos o analfabetismo e o letramento do país ao longo dos censos, tomaremos os censos realizados desde 1872 até o de 2003.

O analfabetismo se torna nosso centro de análise, pois ele nos mostra a falta total de práticas de leitura e escrita e uso dessas práticas na vida social. Se o letramento consiste na condição ou estado de quem exerce essas práticas em nossa sociedade grafocêntrica, a ausência desse estado ou condição com certeza nos aponta a necessidade de novos rumos. Como isso aconteceu em nosso país? Veremos isso através dos censos.

Os levantamentos da população existem no Brasil desde o período colonial, mas somente “[...] em meados do século XIX a necessidade de censos populacionais ganhou força, acompanhando uma prática que se vinha espalhando pelo mundo ocidental desde os ins do século XVIII” (MORTATTI, 2004, p.19). O primeiro censo, O Recenseamento Geral do Império, foi realizado em 1872; em 1890, no período republicano, o segundo; em 1900, o terceiro; em 1920, o quarto. E não parou mais. A partir de

Page 12: LETRAMENTO E ENSINO DE GÊNEROS - UFJF · 2012. 8. 6. · da escrita em uma determinada sociedade, enfatizando as “mudanças sociais e discursivas que ocorrem em uma sociedade quando

Educ. foco,

Juiz de Fora,

v. 16, n. 1, p. 19-40,

mar. / ago. 2011

Vanessa Souza

da Silva

30

1940, com o Instituto Brasileiro de Geograia e Estatística (IBGE), fundado em 1936, começa a produção de estatísticas sistemáticas e especializadas com a introdução de questões mais detalhadas, utilizando procedimentos em vigor nos censos até os nossos dias.

Em princípio, os censos se baseavam na declaração das pessoas a respeito de sua capacidade de ler e escrever o próprio nome. Esse foi o critério utilizado até 1940 para saber se o indivíduo era alfabetizado. A partir de 1950, o critério mudou: era alfabetizada a pessoa que fosse capaz de ler e escrever um bilhete simples no idioma que conhecesse. Os critérios utilizados a partir desse censo (1950), passaram a se basear nas deinições de alfabetização/analfabetismo da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (United Nations Educational, Scientiic and Cultural Organization – Unesco), ou seja, numa deinição mais ampliada de alfabetização, segundo a qual apenas escrever o próprio nome não bastava.

Na verdade, os censos, ao longo dos séculos, apenas revelam os dados. Realizados desde 1872, eles reletem a preocupação do país com o acesso às letras ou o seu descaso em relação à alfabetização do povo. O que se sabe é que até o im do Império, o Brasil afunilou o acesso à escola e consagrou o sistema dual de ensino, valorizando um ensino com o mesmo timbre classiicatório e colonial de séculos, icando considerável parcela da população sem acesso às letras. O país não reconhecia, ainda, a educação como um direito universal. Ainal, para ser mão-de-obra numa sociedade alicerçada em uma economia de base agrícola, sobre a qual se assentavam a monocultura e o latifúndio, não era “necessário” priorizar o acesso às habilidades de ler e escrever. Considerando que, para que o indivíduo que use socialmente a escrita e a leitura, que as pratique, respondendo às demandas sociais que elas implicam, tal como entendemos o letramento, é necessário ter ultrapassado a barreira do analfabetismo. Parece que o nosso país encontrou bastante diiculdade (e tempo) para reconhecer essa necessidade.

Page 13: LETRAMENTO E ENSINO DE GÊNEROS - UFJF · 2012. 8. 6. · da escrita em uma determinada sociedade, enfatizando as “mudanças sociais e discursivas que ocorrem em uma sociedade quando

Educ. foco,

Juiz de Fora,

v. 16, n. 1, p. 19-40,

mar. / ago. 2011

Letramento

e ensino de

gêneros

31

O analfabetismo da sociedade brasileira só emergiu como um problema por questões políticas. Somente no inal do Império, com a Lei Saraiva, de 18826, que proibia o voto dos analfabetos7, é que o analfabetismo foi visto como entrave e “[...] se fortaleceu pela maior circulação de ideias do liberalismo e pelo sentimento patriótico suscitado pela divulgação internacional da taxa de analfabetismo revelada pelo censo de 1890, já no período republicano” (MORTATTI, 2004, p.17). É claro que, desde o período colonial, existiam muitos analfabetos no país. Mas parece que isso não “incomodava”.

A imposição da habilidade de ler e escrever como condição para votar e ser votado “despertou” o Brasil para a realidade: mais de 82% da população era analfabeta (FERRARO, 2003). Segundo Ferraro (2002, p.33), as taxas de analfabetismo a partir de 1872, para a população de 5 anos ou mais, eram “[...] taxas extremamente elevadas e estáveis (em torno de 82,5%) do período que vai do primeiro ao segundo censo (1872 a 1890)”. Com o advento da 1ª República, parece que não mudou muita coisa:

As últimas estatísticas organizadas sobre a instrução dão desânimo e desesperança: em todo o Brasil, de 1000 habitantes em idade de cursar escolas primárias, em 1907 somente 137 estavam matriculados, e somente 96 frequentavam as aulas; para 10.000 de todas as idades, havia somente 6 escolas com 7 professores, com 294 alunos de todas as idades, o que quer dizer que englobadamente, estimando-se toda a população, a relação de todos os alunos era de 29 por 1000.

Entramos no século XX e os censos ainda apontam um número muito elevado de analfabetismo no país. Ferraro (2003, p.198) nos dá uma ideia da quantidade de analfabetos quando airma que, em 1920, “[...] a taxa de analfabetismo

6 Lei da Câmara de Deputados de 1881/ Lei Saraiva, de 1882.7 O voto (facultativo) dos analfabetos somente voltou a ser garantido na

Constituição de 1988, ou seja, mais de século depois.

Page 14: LETRAMENTO E ENSINO DE GÊNEROS - UFJF · 2012. 8. 6. · da escrita em uma determinada sociedade, enfatizando as “mudanças sociais e discursivas que ocorrem em uma sociedade quando

Educ. foco,

Juiz de Fora,

v. 16, n. 1, p. 19-40,

mar. / ago. 2011

Vanessa Souza

da Silva

32

no Brasil continuava superando os 2/3 (exatos 64,9%) da população de quinze anos ou mais”. Levando em consideração que, nessa conta, somente entram as pessoas de quinze anos ou mais, a queda do analfabetismo em relação aos censos anteriores (de 1972 e 1890) sinaliza que o país ainda caminha lentamente rumo ao letramento:

Em 1920, de um total de 17.557.282 pessoas, temos o número de 11.401.715 analfabetos de quinze anos ou mais8. Isso porque a população com menos de quinze anos não entrou na conta. Com quinze anos se espera basicamente que o ensino secundário já esteja em andamento e o nosso povão não sabe ler e escrever! Qualquer discurso inovador para a educação das massas, nesse período, e para o seu letramento parece uma falácia! Se contarmos a população de cinco anos ou mais, teremos de um total de 26.042.442 a quantidade de 18.549.085 analfabetos, ou seja, 71,2% da população9. Apesar de haver quem diga que houve um entusiasmo pela educação nessa Primeira República, os resultados são muito tímidos para as classes populares. (SILVA, 2007, p.11)

Após quatrocentos e quarenta anos de história, indando a década de 1930, o censo de 1940 nos apresenta os números de analfabetismo no país: da população de 5 anos e mais, de 34.796.665 pessoas temos 21.295.490, o que corresponde a 61, 2% do povo; da população de 10 anos ou mais, de um total de 29.037.849 temos 16.452.832, o que corresponde a 56,7%; da população de 15 anos ou mais, das 23.709.769 temos 13.242.172 analfabetos. Resultado: 55,9% do povo brasileiro sem o domínio das primeiras letras na faixa etária de 15 anos ou mais. Já se passou quase meio milênio e ainda temos mais da metade da população analfabeta.

8 Dados retirados de Ferraro (2003, p.200) com base no recenseamento Geral do Brasil em 1920.

9 Dados de Ferraro (2002, p.34), com base no Recenseamento Geral do Brasil em 1920.

Page 15: LETRAMENTO E ENSINO DE GÊNEROS - UFJF · 2012. 8. 6. · da escrita em uma determinada sociedade, enfatizando as “mudanças sociais e discursivas que ocorrem em uma sociedade quando

Educ. foco,

Juiz de Fora,

v. 16, n. 1, p. 19-40,

mar. / ago. 2011

Letramento

e ensino de

gêneros

33

Se a “história se faz com a vontade dos homens e daqueles que os lideram”, como airma Cristovam Buarque (2004), parece que houve, então, uma lacuna no que diz respeito à boa vontade dos que governaram o país da Colônia até o período enfocado até agora. O acesso à leitura e à escrita no país acaba sendo um problema histórico, “[...] um problema que acompanha (também, mas não somente) a história do país, particularmente ao longo de mais de um século desde a proclamação da República, em 1889, e da instalação do modelo republicano de escola pública” (MORTATTI, 2004, p.28).

Ferraro (2002, p.34) nos mostra números precisos dos censos mais atuais. O censo de 1950 aponta que, da população de 15 anos ou mais, tivemos 15.272.632 analfabetos, o que corresponde a 50,5% da população (não alfabetizada). O censo de 1960 aponta para 15.964.852 de analfabetos nessa faixa etária, que signiica 39,6%. O censo de 1970 mostra 18.146.977 de analfabetos, correspondendo a 33,6%. Já o de 1980 apresenta 18.716.847 analfabetos, que representam 25,5% da população entre 15 anos ou mais. Em 1991, o censo acusou 18.587.446 de analfabetos, ou seja, 19,4% da população na faixa etária em questão. Em 2000, os números registram 16.294.889 analfabetos, que representam 13,6%. Com base nesses dados e em outras informações de Ferraro (2002), teríamos o seguinte quadro de 1920 a 2000, contando as pessoas a partir dos 15 anos de idade:

Ano do censoPopulação de 15

anos ou maisPopulação analfabeta

%

1920 17.557.282 11.401.715 64,9

1940 23.709.769 13.242.172 55,9

1950 30.249.423 15.272.632 50,5

1960 40.278.602 15.964.852 39,6

1970 54.008.604 18.146.977 33,6

1980 73.542.003 18.716.847 25,5

1991 95.810.615 18.587.446 20,10

2000 119.533.048 16.294.889 13,6

Page 16: LETRAMENTO E ENSINO DE GÊNEROS - UFJF · 2012. 8. 6. · da escrita em uma determinada sociedade, enfatizando as “mudanças sociais e discursivas que ocorrem em uma sociedade quando

Educ. foco,

Juiz de Fora,

v. 16, n. 1, p. 19-40,

mar. / ago. 2011

Vanessa Souza

da Silva

34

Não se pode negar que os dados dos censos registram um avanço signiicativo na diminuição de pessoas analfabetas ao longo dos anos. De 64,9% em 1920, passamos para 13,6% da população analfabeta em 2000. Entretanto, tais dados não nos permitem comemorações, tendo em vista que o número de analfabetos subiu. Em 1920, tínhamos 11.401.715 analfabetos e, em 2000, 16.294.889. São milhares de pessoas excluídas dos eventos de letramento e impedidas de romper socialmente através da palavra escrita. Houve um aumento continuado do número de analfabetos desde o primeiro censo de 1872 (82,5% da população era analfabeta). Partindo da premissa de que o letramento é “um direito de todos” (SILVA, 2007b), observa-se que por mais de cem anos esse é um direito que foi “negado” a inúmeros cidadãos brasileiros ao longo de nossa história.

Segundo dados do IBGE10, na pesquisa de 1993-2003, indicadores educacionais brasileiros melhoraram nos últimos anos. As taxas de escolarização subiram em todas as faixas etárias: chegando a 82,4% dos brasileiros, com alguns desníveis, pois a taxa é 75,8% para os pobres e 98,3% para os ricos. Entretanto, mesmo com essa melhoria, o país supera somente as nações mais pobres da América Latina. Ainda 11,8% da população (de 15 anos ou mais) eram analfabetos em 2002, o que corresponde a um total de 14,6 milhões de pessoas analfabetas em pleno século XXI. “Além de 11,8% serem analfabetos, tivemos, no Brasil, em 2002, um total de 32,1 milhões de analfabetos funcionais11, o que coloca 26% da população entre 15 anos ou mais de idade sem condições

10 Conira www.ibge.gov.br.11 Dados do IBGE apresentam o analfabeto funcional como a pessoa que tem

menos de quatro anos de estudos completos. O analfabetismo funcional, segundo a acepção da UNESCO, “[...] diz respeito à impossibilidade de participar eicazmente de atividades nas quais a alfabetização é requerida; remete, portanto, aos usos sociais da escrita e a tipos e níveis variáveis de habilidades de acordo com as demandas impostas pelo contexto. A partir desse enfoque, a problemática deixa de concernir apenas às populações adultas que não tiveram acesso à escola – os chamados analfabetos absolutos - , aplicando-se também às populações escolarizadas, e, portanto, à escola de maneira geral e não apenas aos programas de alfabetização de adultos” (RIBEIRO, 2006, s/p).

Page 17: LETRAMENTO E ENSINO DE GÊNEROS - UFJF · 2012. 8. 6. · da escrita em uma determinada sociedade, enfatizando as “mudanças sociais e discursivas que ocorrem em uma sociedade quando

Educ. foco,

Juiz de Fora,

v. 16, n. 1, p. 19-40,

mar. / ago. 2011

Letramento

e ensino de

gêneros

35

de concorrer ao mercado de trabalho” (SILVA, 2008, p.133). Como se pode observar nas informações dos censos, parece que o letramento ainda se constitui uma dívida histórica do país com o seu povo.

5 LETRAMENTO E ENSINO DOS GÊNEROS

Conhecer os gêneros do discurso é um imperativo se queremos efetivar práticas de letramento em nossa vida. Todo texto que lemos ou produzimos pertence a um determinado gênero. Dessa forma, defendemos que o ensino dos gêneros é um instrumento poderoso para fomentar e alcançar o letramento. Mas o que são os gêneros?

Na Grécia Antiga, se observarmos o campo da Literatura, o termo gênero literário foi usado para fazer distinção entre três categorias de enunciado, a saber, o épico, o dramático e o lírico. No século XX, o termo gênero tornou-se um conceito teórico de grande valia no campo da Linguística Textual, que faz referência a gêneros textuais.

De acordo com a concepção dialógica da linguagem, com base em Mikhail Bakhtin (2003), teremos o conceito gêneros do discurso, que tem como premissa a noção de que todo enunciado tem em comum o fato de que remete a um sujeito, a uma fonte enunciativa e que esse mesmo enunciado provém de um querer dizer orientado ao seu enunciador, sendo regido por normas. Segundo o autor, os gêneros do discurso são tipos relativamente estáveis de enunciados orais e escritos e organizam a nossa fala da mesma maneira que organizam as formas gramaticais. Aprendemos a moldar nossa fala às formas do gênero e, ao ouvir a fala do outro, sabemos de imediato, bem nas primeiras palavras, pressentir-lhe o gênero, adivinhar-lhe o volume (a extensão aproximada do todo discursivo), a cada estrutura composicional, prever-lhe o im.

Bakhtin (2003) salienta que a heterogeneidade dos gêneros do discurso inclui desde um relato do dia-a-dia até um documento oicial, como é o caso das propostas curriculares.

Page 18: LETRAMENTO E ENSINO DE GÊNEROS - UFJF · 2012. 8. 6. · da escrita em uma determinada sociedade, enfatizando as “mudanças sociais e discursivas que ocorrem em uma sociedade quando

Educ. foco,

Juiz de Fora,

v. 16, n. 1, p. 19-40,

mar. / ago. 2011

Vanessa Souza

da Silva

36

“A riqueza e a diversidade dos gêneros são ininitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana” (op. cit. p. 262), o que nos leva a incluir os gêneros do discurso entre as categorias utilizadas nessa investigação. Segundo o autor, se não existissem os gêneros do discurso e se tivéssemos que criar cada enunciado que utilizamos, a comunicação verbal seria quase impossível. Isso nos leva a concluir que os gêneros fazem parte do repertório discursivo dos falantes. São tão indispensáveis para a compreensão mútua dos falantes quanto as formas da língua. Ele acrescenta

Os gêneros do discurso organizam o nosso discurso da mesma forma que organizam as formas gramaticais (sintáticas). Aprendemos a moldar nosso discurso às formas do gênero e, ao ouvir a fala do outro, sabemos de imediato, bem nas primeiras palavras, pressentir-lhe o gênero, adivinhar-lhe o volume [...], uma determinada estrutura composicional, prevemos o im, isto é, desde o início temos a sensação do conjunto do discurso que em seguida apenas se diferencia no processo da fala. (BAKHTIN, 2003, p.302)

Qual a importância dos gêneros do discurso para o letramento? Signiica que quanto mais gêneros do discurso dominarmos, exerceremos efetivamente as práticas sociais de leitura e escrita, participando de diversos eventos de letramento. Como resultado, teremos a capacidade de ler e produzir diferentes textos, de gêneros diversos como contos, crônicas, romances, entrevistas, editoriais, reportagens, poemas, resumos, resenhas, etc., interagindo com eles de forma prazerosa e crítica. Além disso, seremos capazes de ativar o nosso conhecimento textual e o nosso conhecimento de mundo de forma mais dinâmica e diversa. Ainal, pretendemos um nível de letramento que nos possibilite não apenas ser um decifrador de sinais, mas mobilizar nossos conhecimentos para dar coerência às possibilidades do texto e, consequentemente, da vida.

Page 19: LETRAMENTO E ENSINO DE GÊNEROS - UFJF · 2012. 8. 6. · da escrita em uma determinada sociedade, enfatizando as “mudanças sociais e discursivas que ocorrem em uma sociedade quando

Educ. foco,

Juiz de Fora,

v. 16, n. 1, p. 19-40,

mar. / ago. 2011

Letramento

e ensino de

gêneros

37

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como nos informam os censos realizados no país, ainda estamos longe de alcançar o letramento pleno da nação brasileira. Apesar de parecer uma utopia, o analfabetismo ainda é uma realidade que persistiu (e ainda persiste na atualidade), marcando a história da educação brasileira, dividindo águas e somando injustiças sociais, multiplicando o número dos excluídos da sociedade, os quais Mortatti (2004) chama de excluídos da participação social, cultural e política no Brasil.

Além dos censos, testes que averiguam o desempenho de nosso país no que diz respeito às suas habilidade de leitura e escrita também nos mostram semelhante realidade. No ano de 2006, o Brasil obteve média que o colocou na 48ª posição entre 56 países no exame do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos). Em outras palavras, estamos longe da efetivação do letramento em nossa sociedade.

A persistência desse problema evidencia, entre tantas outras coisas, as diiculdades do Estado de efetivar seu dever de garantir que a educação escolar dê conta de sua tarefa histórica fundamental de acesso às letras para responder às urgências políticas, sociais e culturais que fazem parte de nossa vida social. Como nos lembra Freire, é tempo de o homem se libertar de sua “domesticação” e munir-se de instrumentos para o pleno exercício de sua cidadania. E isso se dá também através do uso efetivo da palavra, ou seja, do letramento.

Voltando à airmação da introdução deste texto, o letramento é uma dívida histórica do país, pois temos milhares de analfabetos. Enquanto países de primeiro mundo tentam universalizar o ensino superior, ainda tentamos ensinar as primeiras letras ao nosso povo. O letramento deve ser o vetor principal do currículo da educação básica, capacitando sujeitos para que possam transitar com autonomia no contexto de uma sociedade letrada, caracterizada pelo uso diversiicado da linguagem escrita, em suma, do letramento. Isso somente será uma realidade em nossas escolas quando colocarmos o ensino

Page 20: LETRAMENTO E ENSINO DE GÊNEROS - UFJF · 2012. 8. 6. · da escrita em uma determinada sociedade, enfatizando as “mudanças sociais e discursivas que ocorrem em uma sociedade quando

Educ. foco,

Juiz de Fora,

v. 16, n. 1, p. 19-40,

mar. / ago. 2011

Vanessa Souza

da Silva

38

dos gêneros como uma realidade em nossas aulas de língua portuguesa.

Cremos que a postura de tomar a noção de letramento como horizonte ético-político para o trabalho pedagógico se torna mais eicaz ao se utilizar os gêneros como objeto de ensino-aprendizagem, pois é uma prática de letramento que propicia a formação de um leitor mais crítico e uma educação de fato mais voltada para a cidadania.

REFERÊNCIA

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BOZZA, Sandra. Letramento: uma questão de vida. In: Temas em Educação IV- Jornadas 2005.

BUARQUE, Cristovam. Mania de educação. 2003. O Globo On. Disponível em http://www.mec.gov.br/acs/asp/ministro/uparp/2003. Acesso em 06 mar 2004.

FERRARO, Alceu Ravanello. Analfabetismo e níveis de Letramento no Brasil: o que dizem os censos? In: Educação e Sociedade, Campinas , v. 23, n. 81, p. 21- 47, dez. 2002.

______ História quantitativa da alfabetização no Brasil. In: Letramento no Brasil, relexões a partir do INAF 2001. 2. ed. São Paulo: Global, 2003, p.195-207.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Júnior: dicionário escolar de língua portuguesa. Curitiba: Positivo, 2005.

FREIRE, Paulo. Ação cultural para a prática da liberdade e outros escritos. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

GNERRE, M. Linguagem, escrita e poder. São Paulo, Martins Fontes, 1985.

GOULART, Cecília M. A. Uma abordagem bakhtiniana da noção de letramento. Trabalho apresentado no painel “Perspectivas

Page 21: LETRAMENTO E ENSINO DE GÊNEROS - UFJF · 2012. 8. 6. · da escrita em uma determinada sociedade, enfatizando as “mudanças sociais e discursivas que ocorrem em uma sociedade quando

Educ. foco,

Juiz de Fora,

v. 16, n. 1, p. 19-40,

mar. / ago. 2011

Letramento

e ensino de

gêneros

39

Bakhtinianas para o Ensinar e Aprender”. 10º ENDIPE- Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, UERJ, 2000.

KATO, Mary. No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística. São Paulo: Ática, 1986.

KLEIMAN, Ângela. Os signiicados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado da Letras, 1995.

KLEIMAN, Ângela. Ação e mudança na sala de aula: uma nova pesquisa sobre letramento e interação. In: ROJO, R. (org.). Alfabetização e letramento: perspectivas lingüísticas. Campinas: Mercado de Letras, 1998.

MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Educação e Letramento. São Paulo: UNESP, 2004.

RIBEIRO, Vera M. Indicadores do analfabetismo. Disponível em: http://www.ipm.org.br/an_bib. Acesso em: 24 fev 2006.

SILVA, Vanessa Souza da. Letramento e escolarização: da colônia à década de 1930 do século XX. Anais do I Encontro de História do Estado Rio de Janeiro (Universidade Federal Fluminense). Niterói: H. P. Comunicações Associados, 2007a.

______. Letramento: uma questão de vida. Revista Virtual Linha Mestra. Campinas: Associação Brasileira de Leitura, 2007b.

______. A proposta curricular para o ensino de Língua Portuguesa no Estado do Rio de Janeiro no início de século XXI: uma orquestra discursiva de vozes. 2008. 207f. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal Fluminense. Niterói, Rio de Janeiro, 2008.

______. A importância dos gêneros do discurso. Entre-Rios Jornal, 22 de maio de 2008b.

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.

Page 22: LETRAMENTO E ENSINO DE GÊNEROS - UFJF · 2012. 8. 6. · da escrita em uma determinada sociedade, enfatizando as “mudanças sociais e discursivas que ocorrem em uma sociedade quando

Educ. foco,

Juiz de Fora,

v. 16, n. 1, p. 19-40,

mar. / ago. 2011

Vanessa Souza

da Silva

40

______. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. Revista Educação e Sociedade. Campinas, vol 23, n. 81, p. 143-160, dez. 2002. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br.

STREET, Brian V. Literacy in heory and Practice. Cambridge, Cambridge University Press, 1984.

______ (org) Cross-Cultural Approaches to Literacy. Cambridge, Cambridge University Press, 1993.

TFOUNI, Leda V. Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso. Campinas: Pontes, 1988.

TFOUNI, Leda V . Letramento e alfabetização. São Paulo, Cortez, 2005.