tradiÇÕes discursivas: interseções linguístico-discursivas ... · a introdução da língua...

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TRADIÇÕES DISCURSIVAS: interseções linguístico-discursivas em contos angolanos contemporâneos Michelle Gomes Alonso DOMINGUEZ 1 RESUMO A presença de traços originários na literatura contemporânea produzida em Angola é fato já reconhecido entre os estudiosos do tema. Sua natureza, entretanto, ainda carece de esclarecimentos. Nesse sentido, considerando tratar-se a tradição oral de um traço fundamental da construção da identidade literária deste país, o estudo parte do conceito linguístico de Tradições Discursivas, proposto por Kabatek (2006), para observar a maneira como as narrativas orais fundadoras se atualizam nas narrativas escritas em língua portuguesa, no século XX. Tendo em vista a maior proximidade estrutural, são analisados textos do gênero conto, buscando-se a comparação com o que se tem estabelecido como marcas de tradições discursivas da narrativa oral angolana. PALAVRAS-CHAVE: discurso, língua portuguesa, literatura angolana. ABSTRACT The presence of origin marks in the contemporary literary production in Angola is common knowledge amongst scholars. However, their nature still lacks claryfication. Therefore, having in mind the oral tradition of the country, the present study uses the linguistic concept of Discourse Traditions as proposed by Kabatek (2006) in order to observe how founding oral narratives have been inserted in written narrative in the Portuguese language in the 20 th century. Considering structural proximity, the short story genre has been selected to compare the current standards of traditional discourse marks in the oral narrative produced in Angola. KEYWORDS: discourse, portuguese language, angolan literature. 1 Professora Adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisadora do Círculo Interdisciplinar de Análise do Discurso (CIAD-Rio).

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TRADIÇÕES DISCURSIVAS: interseções linguístico-discursivas em contos angolanos contemporâneos

Michelle Gomes Alonso DOMINGUEZ 1

RESUMO A presença de traços originários na literatura contemporânea produzida em Angola é fato já reconhecido entre os estudiosos do tema. Sua natureza, entretanto, ainda carece de esclarecimentos. Nesse sentido, considerando tratar-se a tradição oral de um traço fundamental da construção da identidade literária deste país, o estudo parte do conceito linguístico de Tradições Discursivas, proposto por Kabatek (2006), para observar a maneira como as narrativas orais fundadoras se atualizam nas narrativas escritas em língua portuguesa, no século XX. Tendo em vista a maior proximidade estrutural, são analisados textos do gênero conto, buscando-se a comparação com o que se tem estabelecido como marcas de tradições discursivas da narrativa oral angolana. PALAVRAS-CHAVE: discurso, língua portuguesa, literatura angolana. ABSTRACT The presence of origin marks in the contemporary literary production in Angola is common knowledge amongst scholars. However, their nature still lacks claryfication. Therefore, having in mind the oral tradition of the country, the present study uses the linguistic concept of Discourse Traditions as proposed by Kabatek (2006) in order to observe how founding oral narratives have been inserted in written narrative in the Portuguese language in the 20th century. Considering structural proximity, the short story genre has been selected to compare the current standards of traditional discourse marks in the oral narrative produced in Angola. KEYWORDS: discourse, portuguese language, angolan literature.

1 Professora Adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora em Língua Portuguesa pela Universidade Federal

do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisadora do Círculo Interdisciplinar de Análise do Discurso (CIAD-Rio).

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INTRODUÇÃO

Até a colonização portuguesa, era a narrativa oral responsável pela transmissão de saberes, tradições

e cultura na sociedade angolana. A introdução da Língua Portuguesa, da escrita e das tradições literárias

lusófonas nessa sociedade teve como consequência a reestruturação do universo cultural compartilhado entre

os habitantes do espaço angolano; não se tratava mais da exclusividade de nativos, mas da convivência entre

sua cultura e o impacto da lusofonia. Dessa reestruturação, nasce uma literatura em que há a incontestável

presença de angolanidade, fundamentada na manutenção e exaltação das tradições culturais mais originais.

Nascida como projeto estético e político, a literatura angolana institui na linguagem seu principal

instrumento de luta contra os códigos de garantia e estabilidade impostos pelos colonizadores e, nesse

sentido, utiliza-a no intuito de transpor para a escrita o discurso oral de raiz africana. E é neste ponto que se

configura o interesse do presente estudo.

A retomada de estruturas linguísticas vinculadas à tradição oral do país tem sido tratada como

índices de oralidade capazes de referenciar o universo simbólico mais sedimentar da cultura nacional. Ora,

considerando o texto como um evento comunicativo em que convergem ações linguísticas, cognitivas e

sociais, as efetivas inter-relações da narrativa literária contemporânea e com a ancestralidade da literatura oral

devem ser analisadas não apenas como simples índices linguísticos, mas no reconhecimento de sua atuação

cognitiva e social. Desse modo, o conceito de Tradição Discursiva (doravante TD) inaugurado pela

linguística alemã parece dar conta de maneira mais completa e consciente das referidas interseções

discursivas.

Instaura-se assim o que se pode considerar a principal hipótese do presente artigo: a de que os

referidos índices de oralidade, mais do que simples transposição de meios de comunicação, se estabelecem

como TDs vinculadas à literatura oral e, assim, investem o projeto literário angolano de uma identidade capaz

de refletir a realidade cultural do país. Dessa forma, o estudo propõe-se a observar se e como as TDs das

narrativas orais fundadoras se manifestam nas narrativas escritas em língua portuguesa e, para tanto, tendo em

vista a maior proximidade estrutural, serão analisados textos do gênero conto.

Buscando a comparação com o que se tem estabelecido como marcas de TD da narrativa oral

angolana, optou-se por fazer um recorte histórico que levasse em conta o momento de maior acirramento das

lutas pela independência do país, já que nele as marcas linguísticas são mais aparentes. Assim, na

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representação das narrativas literárias contemporâneas, foram analisadas as obras Vôvô Bartolomeu, Estórias

de Musseque, Luuanda e Diazanga dia Muenhu2

Já no que se refere à literatura oral, a dificuldade de recolha se impôs de tal forma que a análise

deverá se restringir à retomada de teóricos como Lourenço Rosário (1989) e Laura Padilha (2007) e sua

comparação com as narrativas publicadas por Viale Moutinho (2002).

.

Pretende-se, a partir dessas relações, identificar as TDs instauradas nas narrativas da tradição oral

para analisar sua retomada no conto contemporâneo angolano não como simples recurso de oralidade, mas

como relação de atualização/tradição implicada no conceito de TD.

TRADIÇÃO DISCURSIVA: O CONCEITO E OUTRAS RELAÇÕES TEÓRICAS

O conceito de TD surge da premissa coseriana dos três níveis do falar: universal, histórico e

individual. Tais níveis se estabelecem na consideração de que o falar é uma atividade comum a todos os

homens (portanto, universal) que se particulariza em línguas específicas, cujos sistemas de significação se

constroem historicamente e se atualizam em atos de fala concretos, desenvolvidos em situações determinadas

e organizados em textos/discursos individuais. Trata-se, assim, de níveis indissociáveis implicados em toda

atividade linguística.

É nesse sentido que Koch (1997) reconhece três diferentes perspectivas de consideração da atividade

linguística: (i) a partir da perspectiva relativa à linguagem, como fenômeno universal humano; (ii) a partir da

perspectiva relativa à língua e/ou à variedade da língua usada; (iii) a partir da perspectiva relativa à forma,

organização e construção do texto. Apesar da clara relação entre essas perspectivas e os três níveis do falar,

Koch propõe a duplicação do nível histórico proposto por Coseriu, observando que, para além das fronteiras

das línguas históricas, existem formas e fórmulas tradicionalmente retomadas em textos e discursos, as quais

englobam aspectos relativos a gêneros, estilos, atos de fala, dentre outros. Segundo o autor, dos três níveis

desdobram-se, então, quatro, de acordo com o quadro a seguir:

2 As obras serão referidas no decorrer da análise pelas suas iniciais. Assim, respectivamente, V.B., E.M., L. e D.D.M.

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Nível Campo ou Área Tipo de Norma Tipo de Regra

Universal atividade de falar normas do falar regras do falar

Histórico línguas históricas normas da língua regras da língua

Histórico tradições discursivas normas discursivas regras discursivas

Individual discurso ou texto ___ ___

O que está implicado no referido desdobramento é o reconhecimento de historicidades distintas com

relação a uma língua particular e as TDs, já que “regras do discurso são transportadas por grupos culturais” e

“regras da língua são carregadas por comunidades linguísticas” (KOCH, 1997: 2). Sobre o que Kabatek

(2006:508) esclarece:

[...] quando encontro alguém na rua diante de casa pela manhã e minha intenção ou finalidade comunicativa é a de expressar uma saudação, essa finalidade não encontra a solução só no acervo lexical e gramatical do português, produzindo enunciados corretos como “emito uma saudação para você” ou semelhantes, senão que digo “bom dia” segundo uma tradição estabelecida além das regras da língua [...].

Quer este fragmento dizer que, para além de elementos linguísticos historicamente previstos no

sistema de uma língua, a atividade linguística concreta é mediada ainda por um outro tipo de determinação

que prevê usos tradicionalmente instituídos.

Ora, para que haja tradição são necessárias reprodução e aceitação. E é nesse sentido que Kabatek

identifica como primeiro traço definidor das TDs a repetição total ou parcial de “algo” capaz de relacionar

textos produzidos em tempos distintos. Atentando-se aqui ao fato de que, apesar de toda TD implicar uma

repetição, nem toda repetição deve ser entendida como uma TD; fosse assim, as línguas particulares, em si,

formariam TDs, o que não é o caso.

Para maiores esclarecimentos no que se refere ao tipo de repetição e ao “algo” repetido, seguem as

palavras do autor (KABATEK, 2006:512):

Entendemos por Tradição Discursiva (TD) a repetição de um texto ou de uma forma textual ou de uma maneira particular de escrever ou falar que adquire valor de signo próprio (portanto é significável). Pode-se formar em relação a qualquer finalidade de expressão ou qualquer elemento de conteúdo, cuja repetição estabelece uma relação de união entre atualização e tradição; qualquer relação que se pode estabelecer semioticamente entre dois elementos de

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tradição (atos de enunciação ou elementos referenciais) que evocam uma determinada forma textual ou determinados elementos linguísticos empregados.

Definir a TD como “a repetição de um texto ou de uma forma textual ou de uma maneira particular

de escrever ou falar” é restringir o sentido da repetição anteriormente referida à condição de discursividade.

De acordo com isso, elementos não linguísticos como, por exemplo, tradições culturais, situacionais, naturais

etc. ficam excluídos de sua configuração. Além de discursiva, essa repetição deve, ainda, “adquirir o valor de

signo”, ou seja, deve ser discursivamente significável, produzindo relações significativas entre presente e

passado, “atualização e tradição”. Mais que um simples enunciado, à TD é atribuído o sentido de “ato

linguístico que relaciona um texto com uma realidade, uma situação etc., mas também esse texto com outros

textos da mesma tradição” (KABATEK, 2006: 513).

Apesar de não constituírem TDs, são as situações que evocam determinados tipos de estruturas que,

repetidas, fundam tradições. “A saudação, por exemplo, é evocada por uma situação concreta que se repete:

o mencionado encontro evoca outros encontros nos quais se pronunciava a mesma sequência de palavras”

(KABATEK, 2006: 511). A relação aí implicada remete à natureza composicional das TDs, visto que, no duplo

atualização/tradição, os textos se encontram sempre de maneira relacionável, paradigmática e

sintagmaticamente. Isto significa que os textos podem pertencer, ao mesmo tempo, a diferentes TDs, ou ainda

atualizar tradições diferentes em sua sucessão.

O reconhecimento do caráter composicional das TDs retira do conceito a estaticidade inferida pela

tradição; isto é, não se trata de observar um fenômeno dado, estabelecido, reproduzido igualmente em todos

os contextos, mas sim dinâmico e relacionado com todo o universo textual e discursivo que o circunda. É esse

reconhecimento que possibilita sua transformação3. É nessa composicionalidade que se estabelecem as

diferentes interferências4

Foi tentando observar o tipo de interferência exercido na transformação das TDs e de certas

situações para a evocação de determinados enunciados que Koch e Oesterreicher (apud OESTERREICHER,

2006: 255) postularam o seguinte quadro de condições comunicativas:

capazes de transformar uma TD, ao longo do tempo, em uma realidade totalmente

diferente da inicial.

3 Para maiores esclarecimentos sobre o termo: KABATEK, 2006: 514. 4 KABATEK, 2006: 514-515.

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Determinando as condições comunicativas e os parâmetros das variedades em determinadas

tradições discursivas ou tipos de texto, o quadro supracitado pretende dar conta do espaço comunicativo

implicado em todo e qualquer tipo de discurso. Para isso, os pontos posicionados em [a/j] e [a’/j’] – os

primeiros referentes ao imediato comunicativo (oralidade concepcional) e os últimos à distância comunicativa

(escrituralidade concepcional) – não se estabelecem como extremos fixos, mas sim num contínuo,

possibilitador de diferentes relações paramétricas.

É através dessas relações que se estabelecerão os primeiros pontos relativos à análise e comparação

das TDs nos textos referentes à tradição oral e à narrativa literária angolana. Isto porque, a equivalência ou

discrepância entre os parâmetros pode auxiliar na reflexão sobre a retomada de tradições orais e sinalizar

possíveis justificativas.

No entanto, antes de iniciar a análise propriamente dita, é necessário que se delimite um pouco

melhor o conceito de TD em relação a outros, fronteiriços e facilmente confundidos com ele.

Apresentando como traços definidores a repetição e sua relação com grupos culturais, as TDs podem

ser facilmente associadas (ou mesmo confundidas) com conceitos recorrentes na própria Linguística Textual,

como é o caso dos gêneros, das relações de transtextualidade e mesmo das formações discursivas propostas

pela Análise do Discurso.

(a) caráter privado da comunicação (a’) caráter público da comunicação

(b) intimidade ou familiaridade dos interlocutores, maior conhecimento partilhado

(b’) ausência de intimidade ou de familiaridade entre os interlocutores, menor conhecimento partilhado

(c) forte participação emocional (c’) falta de participação emocional

(d) inserção do discurso no contexto situacional (d’) não inserção do discurso no contexto situacional

(e) referencialização direta (ego-hic-nunc) (e’) referencialização indireta

(f) proximidade local e temporal entre interlocutores (comunicação face-a-face)

(f’) distância local e temporal entre os interlocutores

(g) intensa cooperação (g’) fraca cooperação

(h) dialogicidade (h’) monologicidade

(i) espontaneidade (i’) reflexão

(j) pluralidade temática (j’) fixação do tema

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Segundo Kabatek (2006:509), num primeiro momento, as TDs foram entendidas como “modos

tradicionais de dizer as coisas, modos que podem ir desde uma fórmula simples até um gênero ou uma forma

literária complexa”, e, por isso, foram entendidas em alguns trabalhos como sinônimas de gênero. É

justamente o que parece fazer Koch (1997:5) quando, propondo a distinção entre tradição discursiva e

atividade do falar, atenta para a amplitude que o termo “gênero” tem adquirido, mas acaba por colocar as

TDs como equivalentes a um dos polos do “balaio” instituído sob a denominação gênero: “Seria aconselhável

não utilizar o termo gênero textual indiscriminadamente em relação às regras do falar e do discurso. Para o

nível das regras do discurso parece-me mais adequado o termo tradição discursiva, que é mais historicamente

acentuado”.

As regras do discurso às quais se refere Koch deveriam, então, substituir as células destinadas aos

gêneros textuais apresentadas no quadro a seguir, referente a três perspectivas diferentes de organização das

estruturas textuais:

CHARAUDEAU MARCUSCHI OLIVEIRA Modos de organização do discurso: descritivo narrativo argumentativo enunciativo

Tipos de texto: descritivo narrativo argumentativo expositivo injuntivo

Modos de organização do discurso: descritivo narrativo argumentativo expositivo enunciativo injuntivo

Tipos de texto: jornalístico literário publicitário etc

Domínios discursivos: jornalístico literário publicitário etc

Domínios discursivos: jornalístico literário publicitário etc

Gêneros textuais: (cada tipo tem seus gêneros)

Gêneros textuais: (cada domínio tem seus gêneros)

Gêneros textuais: (cada domínio tem seus gêneros)

Neste quadro, os gêneros são observados como uma estrutura desenvolvida a partir dos diferentes

modos de organização, cujas especificidades se vinculam a cada domínio sociocultural. A eles corresponde a

classificação em “hard news, soft news, notícia de jornal, canção, soneto, etc.”, referidas por Koch e, nesses

termos, as TDs aparecem, segundo este autor, como nomenclatura substituta aos gêneros textuais, concebidos

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a partir de características estruturais e discursivas socialmente estabelecidas, por guardar o sentido da

historicidade mantida na repetição desses textos.

É na divergência com tal concepção que Kabatek (2006) propõe uma dupla ampliação no conceito

de TD primariamente definido. A primeira delas diz respeito à extensão do termo a todos os tipos de tradição

de textos, não unicamente às complexas. Essa ampliação, no entanto, não oferece necessariamente

elementos contrastivos com o gênero, já que um teórico como Bakhtin (1985), por exemplo, apesar de

distinguir gêneros primários e secundários5

A segunda ampliação (KABATEK, 2006: 509), entretanto, apesar de exemplar, parece mais

elucidativa com relação às fronteiras entre as TDs e os gêneros:

, concebe as realizações cotidianas (como o “bom dia” de

Kabatek) também como gênero.

[...] como em todo parlamento, no parlamento nacional da França, diferentes políticos identificam-se mediante os seus discursos com diferentes idéias políticas, e também mostram a sua procedência diversa. Há, evidentemente, uma identificação com conteúdos políticos expressa nas proposições feitas respectivamente; mas observa-se também outra relação de tradição quando políticos que frequentam a prestigiosa fábrica de elites, que é a Escola Nacional de Administração (ENA), evocam o seu passado usando determinadas expressões ou até formas gramaticais como o perfeito do subjuntivo, forma arcaica praticamente morta no francês oral atual. O que fazem esses políticos é evocar um discurso que serve de identificador com um grupo [...]. É uma tradição de falar dentro de um mesmo gênero, o discurso parlamentar.

Se diferentes tradições podem ser evocadas dentro de um mesmo gênero, obviamente, não se trata

TDs e gêneros de conceitos passíveis de igualdade, apesar de relacionáveis. Tais palavras implicam, no

entanto, a identificação de outros conceitos teóricos, pois, na evocação de discursos, podem ser reconhecidas

relações de transtextualidade, e, na identificação entre grupos sociais, reside o conceito de formação

discursiva; ambos não comentados por Kabatek.

Comprovadas pela Palimpsestes genettiana, as relações de transtextualidade recobrem os modos de

enlaçamentos textuais, estabelecendo cinco relações possíveis:

1. Intertextualidade: presença efetiva de um texto em outro texto. Exemplos são a citação, o plágio, a alusão

etc.;

2. Paratextualidade: representada pelo título, subtítulo, prefácio, posfácio, notas marginais, epígrafes,

ilustrações e outros sinais que cercam o texto; 5 Os gêneros primários se constituem na comunicação discursiva imediata, no âmbito da ideologia do cotidiano (as ideologias não

formalizadas e sistematizadas), enquanto os gêneros secundários surgem nas condições da comunicação cultural mais “complexa” que, uma vez constituídas, “medeiam” as interações sociais: na comunicação artística, científica, religiosa, jornalística etc.

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3. Metatextualidade: a relação de comentário que une um texto a outro texto;

4. Arquitextualidade: estabelece uma relação do texto com o estatuto a que pertence – incluídos aqui os

tipos de discurso, os modos de enunciação, os gêneros literários etc. em que o texto se inclui e que tornam

cada texto único;

5. Hipertextualidade: toda relação que une um texto (hipertexto) a outro texto (hipotexto).

No que refere à associação entre a definição de TD e as relações transtextuais de Genette,

pronuncia-se Koch (1997: 5), na consideração exclusiva do conceito de Intertextualidade:

De um lado, o temo “intertextualidade” é utilizado para caracterizar a relação de duas obras literárias. [...] Por outro lado, utiliza-se o termo “intertextualidade” para caracterizar a relação de pertencimento de um discurso individual a uma tradição discursiva, i.e. a um gênero ou estilo. Segre (1984,11) sugere o termo “interdiscursividade”. Trata-se de uma característica inerente a todos os discursos literários ou não. A ligação de uma tradição discursiva (interdiscursividade) é derivada de regras do discurso, o que não acontece no caso do discurso individual (intertextualidade).

Apesar dos equívocos no que diz respeito à equivalência entre as TDs e os gêneros e ao próprio

conceito de intertextualidade, Koch parece sinalizar para uma distinção imprescindível na delimitação das

fronteiras entre as TDs e a transtextualidade6

Em perfeita harmonia com os pressupostos teóricos até aqui expostos, a Semiolinguística inaugurada

por Patrick Charaudeau concebe o texto como uma realidade sociocultural historicamente situada, que

compreende, além da definição de seus interlocutores, também o meio de comunicação utilizado, as

experiências partilhadas, os papéis sociais dos atores envolvidos, a ligação com outros textos etc. Neste nível,

podem-se observar as relações paramétricas propostas por Koch e Oesterreicher, sendo, ainda, nele que se

estabelece a transtextualidade de Genette.

: o nível do texto e o nível do discurso; níveis não

necessariamente distintos por Koch ou Kabatek, mas que parecem de extrema relevância para a maior clareza

na conceituação das TDs.

O discurso, por outro lado, é o jogo comunicativo estabelecido entre a sociedade e suas produções

linguageiras, entendendo-se por jogo comunicativo a forma de ação que envolve uma situação comunicativa,

na qual os parceiros se encontram, não só determinados por uma identidade, como também ligados por um

contrato comunicativo. É nesse enlace entre produção linguística e sociedade que se fundamentam as TDs; é

6 Apesar de as palavras de Koch se referirem apenas à Intertextualidade, suas considerações podem ser extensivas aos outros modos

de transtextualidade.

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nesse “contrato” que a tradição do “Bom dia!” (ou mesmo sua não realização) em Kabatek ganha o status

simbólico do signo.

Instituídos os diferentes níveis, a confusão conceitual outrora referida parece diluir-se. No entanto,

resta ainda a observação de um último conceito que se estabelece justamente na delimitação do nível

discursivo implicado nas TDs pela sua função de identificação entre grupos sociais: o de formação discursiva.

Sem pretender maiores esclarecimentos sobre o termo, a formação discursiva é definida como a

posição discursiva ocupada pelo sujeito no ato comunicativo. Quer isto dizer que há, em cada um dos

possíveis textos, uma formação discursiva subjacente, que orienta sua tessitura a partir dos mecanismos e

operações autorizados pela língua. É nesse sentido, por exemplo, que o discurso de certos parlamentares,

como o citado por Kabatek, aparece associado a uma formação discursiva que os vincula à formação na ENA.

Dito isso, tem-se que, em verdade, ao invés da equivalência, as TDs se colocam em relação de referência às

formações discursivas, já que é através delas que estas podem ser localizadas.

Na delimitação das fronteiras que cercam o conceito de TD, a comparação com as definições de

gênero, transtextualidade e formação discursiva pretendeu o reconhecimento de suas especificidades e,

consequentemente, de sua relevância para os estudos textuais. Não se tratando de um conceito que pretende

apenas renomear fenômenos de enlaçamentos textuais e discursivos, a consideração das TDs proporciona o

estabelecimento de relações distintas das referidas naqueles conceitos, vinculando os textos a sua história e

possibilitando a visualização dos valores socioculturais atribuídos aos diferentes atos comunicativos. E é nesse

sentido que são aplicadas aos textos analisados a seguir.

TRADIÇÕES DISCURSIVAS DA LITERATURA ORAL NO CONTO ANGOLANO

CONTEMPORÂNEO

Partindo do conceito de TD proposto por Kabatek e em acordo com as fronteiras conceituais

previamente definidas, as relações mantidas entre o conto angolano contemporâneo e as narrativas da

literatura oral devem ser entendidas e podem ser explicadas como atualização de TDs.

Escritos em língua portuguesa e em acordo com o cânone literário europeu, os contos

contemporâneos angolanos recorrem a TDs vinculadas a sua ancestralidade cultural para impor a marca de

sua identidade. Como bandeira de luta no projeto de independência, a produção literária do país deveria

manifestar valores culturais de angolanidade e essa manifestação se deu através da atualização de TDs da

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literatura oral tradicional. Buscando a demonstração de tais enlaçamentos, serão elencadas algumas

características relativas às narrativas da literatura oral, para que, posteriormente, sejam identificadas na

configuração do conto contemporâneo.

As narrativas de tradição oral7

É assim que, constituindo-se como sociedade ágrafa até o século XVIII, Angola tinha na literatura

oral um dos seus mais potentes meios de transmissão cultural, através do qual, – com seus misosos, makas,

ji-sabus, dentre outros

são o reservatório dos valores culturais de uma comunidade com

raízes e personalidade regionais, muitas vezes perdidas na modernidade. É através delas que se encontram

veiculadas as regras e interdições que determinam o bom funcionamento da comunidade e previnem as

transgressões. Essas regras e interdições formam um conjunto variável segundo as culturas, o que remete ao

fato de essas narrativas estarem, em geral, ligadas à própria vida das comunidades em que circulam.

8

Na festa do prazer coletivo da narração oral, principalmente entre os grupos iletrados africanos, é pela voz do contador, do griot, que se põe a circular a carga simbólica da cultura autóctone, permitindo-se a sua manutenção e contribuindo-se para que essa mesma cultura possa resistir [...]. A milenar arte da oralidade difunde vozes ancestrais, procura manter a lei do grupo, fazendo-se, por isso, um exercício de sabedoria. (PADILHA, 2007: 35).

– conservava sua filosofia de experiências acumuladas e dialéticas do cotidiano.

Desse modo, com o risco de pôr em perigo a coesão e a sobrevivência histórica do grupo, a própria

natureza e função dessas narrativas impõem estruturas mais fixas tanto no que diz respeito a sua constituição

textual quanto aos papéis de sua realização enunciativa.

Enquanto “exercício de sabedoria”, o ato de contar depende de um contador investido da autoridade

para tal, a qual é adquirida com o tempo e atribuída pela própria comunidade. Nas narrativas de tradição

oral, “o importante é saber contar; dominar a palavra e saber o que fazer com ela na construção de um

universo tão simples nos seus elementos estruturais, mas tão complexo na significação e simbologia que

representa”9

Os ouvintes, por sua vez, devem estar aptos a compreender que os conflitos apresentados na intriga

podem, ao mesmo tempo, ter lugar no universo de seu grupo e constituir um espaço simbólico que lhes

permita o distanciamento necessário à reflexão. O pacto enunciativo que se estabelece entre os atores é então

(ROSÁRIO, 1989: 81).

7 Pelo caráter generalizante da designação “tradição oral”, que ultrapassa em muito o âmbito da criação literária, as considerações a

seguir ficarão restritas às narrativas dessa tradição. 8 Considera-se, conforme Rosário (1989), que as diferenças guardadas entre esses tipos narrativos dizem mais respeito a sua função

social do que à estrutura propriamente dita. Por isso, serão aqui considerados sob o termo generalizante “narrativas”. 9 Grifo nosso.

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descrito por Rosário (1989: 48) da seguinte maneira: “O contador e os ouvintes funcionam de uma forma

complexa em termos de comunicação, embora aquele seja o dinamizador do processo comunicativo, estes

tomam parte de uma forma activa coparticipando na construção das mensagens”.

Não se trata, portanto, de simples comunicação oral entre emissor e ouvintes, mas de uma espécie

de prática ritualística que, como tal, desenvolve-se em uma mise-en-scène que pode contar, por exemplo,

com fórmulas codificadas no princípio ou no fim da narração, bem como na introdução de canções cuja letra

apresenta-se, muitas vezes, em versos cristalizados que nada têm a ver com a própria narrativa.

De acordo com tais padrões comunicativos, as narrativas de tradição oral se desenvolvem através da

interação face a face (o que a vincula ao polo da oralidade concepcional) ao mesmo tempo em que mantêm,

em função de seu caráter ritualístico, pontos de contato com a distância comunicativa (ou escrituralidade

concepcional) implicada, por exemplo, no distanciamento entre os eventos narrados e seu apoio situacional,

no alto grau de monologicidade na distribuição dos papéis enunciativos de narrador e ouvintes. Estabelecem-

se, assim, as seguintes relações com os parâmetros de Koch e Oesterreicher (2006):

É na observação de tais parâmetros que se estabelecem as TDs das narrativas de tradição oral. Ora,

por se tratarem de narrativas, obviamente respeitam, como qualquer outra, a estrutura básica da narratividade

organizada de acordo com o gênero conto e no domínio discursivo literário10

10 Segundo Rosário (1989), apesar do paradoxo lexical, as narrativas orais apresentam determinações estéticas capazes de incluí-las

no domínio literário. Por isso, inclusive, o autor prefere a denominação “literatura oral” para essas narrativas.

. No entanto, seus aspectos

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comunicativos, sua função pedagógica e prática ritualística acabam por determinar certos usos

tradicionalmente reproduzidos. Vejam-se, por exemplo, as fórmulas de abertura e fechamento das narrativas

recolhidas por Héli Chatélain e agrupadas por Moutinho, em Contos Populares de Angola:

SUDIKA-MBAMBI

“Vamos falar de Ngana Kimanaueze kia Tumb’ a Nadala, estimado por todos e pai de Nzuá di Kimanaueze.”

“Daí se diz que em tempestades quando troveja é o mais velho que foi para o Leste e o eco do trovão, que se atribui ao mais novo, para o Oeste.”

O SOGRO E O GENRO “Um belo dia, um sogro e um genro saíram de casa para um passeio”

“E foram beber à saúde de ambos, que voltaram a ser amigos.”

O KIANDA E A RAPARIGA “Havia uma mulher que tinha duas filhas”

“A casa transformou-se numa casa de Ma-Kishi.”

O LEOPARDO, O ANTÍLOPE E O MACACO “Vamos falar do senhor Leopardo e do senhor Antílope”

“Depois fizeram o funeral do Leopardo.”

O FILHO DE KIMANAUEZA E A FILHA DO SOL E DA LUA “Muitas vezes se tem falado a respeito de Kimanaueze, pai de um menino”

“Viveram felizes e desistiram de ir ao céu. Tudo ficaram a dever à inteligência da rã Mainu.”

OS FILHOS DA VIÚVA “Era uma vez uma mulher que assistiu à morte do marido quando os seus filhos ainda eram pequenos”

“O conto acabou.”

Introduzidas por estruturas análogas à do “Era uma vez”, as narrativas instauram um universo

ficcional11

O entendimento da narrativa depende, entretanto, da atenção dos ouvintes. Para tanto, a marca da

linearidade narrativa, bem como da brevidade de espaço-tempo discursivos parecem contribuir para a

caracterização dessas narrativas na sua “extraordinária uniformidade estrutural e monotonia orgânica”

que deve encerrar algum tipo de ensinamento, explicação ou moral desvelado no encerramento

do conto por um “e foi assim que...”, “é por isso que...”, “desde então...”, ou ainda por afirmativas que

adquirem valor de verdade absoluta: “ – Meu amigo, o leão é forte como a amizade.” (p. 31).

11 O sentido de ficcional não deve ser entendido aqui como sinônimo de irrealidade, tendo em vista o valor de verdade atribuído ao

conteúdo das narrativas.

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(ROSÁRIO, 1989: 79). É nesse sentido, ainda, que se justificam os altos índices de atuação, em oposição à

quase ausência de suporte descritivo, e a forte estrutura dialogal. Como exemplo, observe-se o conto “O

Passado e o Futuro”:

Dois homens caminhavam por uma estrada quando encontraram um vendedor de vinho de palma. Os vendedores pediram-lhe vinho e o homem prometeu satisfazê-los, mas com uma condição: – Terão que dizer os vossos nomes. Um deles falou: – Chamo-me De Onde Venho. E o outro: – Para Onde Vou. O homem aplaudiu o primeiro nome e reprovou o segundo, negando Para Onde Vou o vinho de palma. Começou uma discussão e dali saíram à procura do juiz. Este logo ditou a sentença: – O vendedor de vinho de palma perdeu, porque De Onde Venho já nada se pode obter e, pelo contrário, o que se pode encontrar está Para Onde Vou.

O conto se desenvolve em função de três personagens apenas “nomeados”, que se encontram em

um tempo não especificado e em um espaço delimitado apenas como “estrada”. Assim, a narrativa focaliza a

ação dos personagens, em detrimento de um suporte descritivo, o que, traduzido em termos linguísticos,

implica a parca utilização de modificadores e privilégio de estruturas nucleares (nomes e verbos).

Além desses procedimentos discursivos, a perpetuação dos saberes difundidos pela literatura oral é

garantida, ainda, por diferentes estratégias, dentre as quais se apresentam como mais marcantes o uso de

repetições (lexicais ou temáticas), bem como a configuração sintática em orações simples e períodos

preferencialmente coordenados. A esse respeito, leia-se o seguinte fragmento, retirado do conto “Sudika-

Mbambi” (p. 11):

Sudika-Mbambi partiu e alcançou a estrada. Logo que ouviu um ruído, perguntou: – Quem é? Responderam-lhe: – Sou eu, Kipalende, o que construiu uma casa na rocha. Sudika-Mbambi disse: -Anda comigo. Puseram-se a caminho e novamente escutaram o mesmo ruído e a mesma pergunta. Como resposta obtiveram: - Sou eu, Kipalende, que recolho folhas de milho em Kalunga. - Anda conosco. E foram pela estrada a fora. Pela quarta vez, alguém disse: - Sou eu, Kipalende, que posso estender a barba até Kalunga.

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Nesse conto, além da repetição da ação dos personagens (pergunta e resposta), há a repetição da

mesma estrutura na resposta: “Sou eu, Kipalende, aquele que (verbo)”. Recurso bastante recorrente nas

narrativas orais, essa repetição, dada em diversos níveis, atualiza na memória do ouvinte a referência anterior,

mantendo a progressividade da narração. Progressividade que, por sua vez, é estabelecida em padrão

sintático de adição coordenativa como o que se pode ver em “Puseram-se a caminho e novamente escutaram

o mesmo ruído e a mesma pergunta. Como resposta obtiveram”.

Como se pode observar, mais do que pelo respeito à condição de narratividade, as características

estruturais depreendidas das narrativas da tradição oral são impostas pela função sociocultural que exercem.

Historicamente instituídas, essas características ultrapassam as determinações do gênero para se constituírem

na condição de tradições discursivas.

Contrariamente à ficção que circulava pela voz original da tradição oral, a literatura angolana

manteve-se em relação de dependência com o discurso estético do colonizador até a metade do século XX.

Desse modo, o “vínculo placentário”, nos termos de Alfredo Bosi (1987: 35), com a literatura portuguesa fazia

com que a produção literária angolana se desenvolvesse na tentativa de enquadramento com o cânone

literário europeu.

Com o acirramento das lutas pela independência do país e a mobilização da classe artística, inicia-

se, a partir de então, um processo de busca pela face angolana alijada pela cultura literária hegemônica,

passando-se do enquadramento nos moldes canônicos ao grito de alteridade instituído no retorno às tradições

originais.

Esse desejo de reangolanização acaba por encaminhar o ficcionista, naturalmente, à retomada das

manifestações da tradição oral. O que, obviamente, não significa a ruptura com o “vínculo placentário”

anteriormente referido, mas dá novos tons à dicção dessa literatura. Assim, nas palavras de Padilha (2007: 18),

“o ato de leitura caminhou até chegar a um outro tempo em que a voz, outrando-se, fundiu-se com a letra.

Criou-se, então, um lugar dos mais fecundos nas literaturas de língua portuguesa que aqui vou chamando de

‘entre voz e letra’”.

É nesse sentido que o privilégio atribuído ao gênero conto na literatura angolana poderia, por si só,

assinalar a recorrência à tradição mais ancestral do contar vinculada aos griots africanos. Incluído no projeto

político de libertação do país, o conto alicerça-se na estrutura das narrativas de tradição oral e, com isso,

cumpre muito mais a função social de transmissão cultural dessa tradição do que a preocupação estética do

cânone literário. Nesse sentido, o que se estrutura como mera articulação linguística definidora do gênero

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conto na tradição europeia passa a receber um status simbólico na literatura angolana, atuando, portanto,

como atualização da tradição discursiva.

Quer-se dizer com isso que, no pós-50, o gosto da ficção angolana pela narrativa curta literária

ultrapassa em muito os limites de sua função estrutural primária. Nesse momento, explícita a retomada dos

modelos de origem, o ato de narrar implica o ritual do contar e a estrutura contística europeia recebe nova

carga significativa.

Então, na desestabilização da função estetizante cumprida por essas narrativas, fundamentam-se os

deslizamentos dos parâmetros comunicativos que, outrora equivalentes aos do cânone europeu, passam a se

aproximar dos instituídos nas narrativas tradicionais:

Sob a égide do gênero conto, as efetivas diferenças existentes entre os textos pertencentes à tradição

oral, ao cânone europeu ou ao conto angolano contemporâneo se justificam pelas diferenças paramétricas

acima observadas. Desse modo, distanciando-se dos polos b’/c’/g’, ao mesmo tempo em que se mantém

em equivalência com o cânone europeu, a narrativa angolana possibilita a recuperação de TDs vinculadas à

tradição oral.

Ainda não identificado como TD, mas importante na configuração dos contos analisados, o uso de

alguns elementos, como fórmulas de início e encerramento da narrativa ou mesmo a denominação “Estória”

constante de alguns títulos, estabelece uma relação arquitextual entre as narrativas contemporâneas e

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ancestrais, sinalizando, assim, as “novas”/“antigas” funções do gênero contístico. Essa retomada de estruturas

arquetípicas familiares ao público angolano promovia a cumplicidade necessária para os objetivos políticos

de independência.

Aqui, a importante referência à mudança de público-alvo (do colonizador ao homem comum

angolano) implica o reconhecimento de um problema de ordem prática: como pretender a decodificação de

um texto escrito em português por um povo que, em sua grande maioria, era analfabeto? A solução aparece

implícita no seguinte fragmento de Laura Padilha (2007: 175):

Na retomada dos modelos nacionais, a tradição oral vai funcionar como mecanismo transformador dos novos padrões estéticos. O desvio da norma e a nota dissonante – tão caros à modernidade – são conseguidos com o traço dessa nova fala ficcional, griotizada e griotizante, que é tanto letra quanto voz e gesto12

.

No processo de “griotização” do texto, estão implicados procedimentos que possibilitem a

transmissão da mensagem via oral; isto é, era preciso que o texto escrito fosse passível de ser contado em voz

alta e, para tanto, deveria ainda ser passível de memorização. Disso decorre o uso de certos procedimentos

linguísticos que remontam à tradição oral, como, por exemplo, a repetição, o uso de orações simples e a

prevalência de coordenadas, a introdução de canções ou ditados populares, a utilização de pouco suporte

descritivo, dentre outros.

Mesmo justificada por necessidades sociais, a instituição de tais procedimentos linguísticos deve ser

entendida como TD pela própria função que adquirem. Considerando a fundamentação no cânone literário

europeu, o conto, enquanto gênero pertencente a esse domínio discursivo, tem seus fundamentos pautados na

estética. Nesse sentido, a instituição de um “novo” papel sociocultural cujo alicerce é depreendido dos

antigos moldes tradicionais configura o conto contemporâneo angolano nas bases de uma TD vinculada às

narrativas orais.

Considerando, portanto, os referidos procedimentos como TDs de narrativas orais atualizadas no

conto contemporâneo angolano, este estudo priorizou a observação das estratégias de simplificação de

estruturas sintáticas e narrativas, tendo em vista sua generalização no corpus analisado.

No que se refere aos procedimentos narrativos, tal simplificação se dá, em equivalência com a

tradição oral, na focalização dos fatos narrados e em detrimento da descrição do entorno narrativo. A

consequência dessa simplificação se traduz na pouca expressividade de vocábulos e expressões adjetivais,

responsáveis pelo suporte descritivo do universo narrado (atores, tempo e espaço). De acordo com isso, o

12 Grifo nosso.

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gráfico a seguir, relativo ao levantamento de vocábulos definidores de tempo e espaço narrativos, demonstra a

utilização preferencial de formas substantivas:

O uso restrito de estruturas adjetivais se estende também à configuração dos personagens que,

nominalmente identificados, são definidos por suas próprias ações.

Sô Zé da quitanda tinha visto passar nga Zefa rebocando miúdo Beto e avisando para não adiantar falar mentira, senão ia-lhe pôr mesmo jindungo na língua. [...]. Miúdo Xico é que descobriu, andava na brincadeira com Beto, seu mais novo, fazendo essas partidas vavô Petelu tinha-lhes ensinado, de imitar as falas dos animais e baralhar-lhes e quando vieram no quintal de mamã Bina pararam admirados. A senhora não tinha criação, como é que ouvia-se a voz dela, pi,pi,pi, chamar galinha, o barulho do milho a cair no chão varrido? (L. p. 99 – 100).

Garantida através desses procedimentos, a simplificação das narrativas se desenvolve através do foco

na atuação de personagens pouco caracterizados e envolvidos e de um espaço-tempo objetivamente

construído para a funcionalidade narrativa. Linguisticamente, o “corte” do entorno e o foco nos fatos narrados

retomam os padrões nominais e verbais recorrentes nas narrativas orais, podendo ser, portanto, reconhecidos

como TDs.

Por sua vez, os vocábulos que recobrem o universo narrativo são organizados através de padrões

sintáticos em que prevalecem orações simples ou períodos compostos por coordenação, conforme se viu ser

recorrente na tradição oral.

Todas as miúdas do bairro foram lá. De manhã. Jeanne Kololota lhes deu só no cumprimento de olá. Friamente. Na vontade de saudar a companheira de infância, Belita, Filó, Terezinha. Todas. Alegramente. Até amiga dela antiga Teteca, coitadinha, doença de paralisia, veio. Nem que se lembrou dos tempos que brincavam ringue, cabra-cega com elas.

0

20

40

60

80

100

V.B L. D.D.M E.M

Identificação

Caracterização

Processualização

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O fragmento citado ilustra a contabilização relativa aos diferentes padrões sintáticos apresentados

nas obras, os quais aparecem estruturados em orações absolutas ou em SVO, podendo haver coordenação de

todo tipo entre sintagmas e orações:

O baixo percentual de ocorrências de subordinação é estranho – nos moldes canônicos – ao texto

escrito e literário. Inversamente, mas na mesma direção, os altos índices de orações simples e períodos

compostos por coordenação assemelham esses contos aos padrões estruturais anteriormente identificados nas

narrativas da tradição oral.

Construídas, assim, sobre uma estrutura sintática simples, na qual se relacionam vocábulos

preferencialmente nominais e verbais, as narrativas apresentadas nos contos analisados atualizam TDs

veiculadas pela tradição oral, cuja repetição as funda como TDs angolanas do gênero conto.

Por fim, observa-se que, através dessas retomadas de padrões narrativos estabelecidos

tradicionalmente na literatura oral, o conto angolano contemporâneo especifica seus traços de identidade e,

na atualização de TDs originalmente vinculadas à tradição oral, corrompe a dicção europeia, instaurando-se

no entre-lugar das TDs canônicas e nacionais. É nesse sentido que vão as palavras de Padilha (2007: 236),

com as quais se encerra a análise:

A fala literária angolana, com a consciência que cada vez mais passa a ter de si própria, acende o fogo de sua pira e continua a brilhar como nas longas noites em que, ao redor da fogueira, mais velhos contavam estórias que contavam estórias que CONTAVAM ESTÓRIAS. Pela letra que tudo eterniza, tais estórias, em vez de circularem apenas pela voz, muitas vezes se perdendo nos desvãos da noite, ganham a claridade do texto e um corpo – o do livro – que se lhes oferece como espaço de iniciação. Voz e letra finalmente entretecidas.

Oração simles

Oração coordenada

Oração subordinada

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CONCLUSÃO

Reconhecendo os laços entre a tradição oral e a criação do projeto literário angolano, o presente

artigo pretendeu analisar o tipo de vínculo efetivamente mantido entre esses dois universos culturais,

considerando que, para além da transposição de canais comunicativos (oral/escrito), esses enlaçamentos se

instituem em níveis discursivos mais amplos. Para tanto, serviu de aporte teórico o conceito de Tradição

Discursiva proposto por Kabatek, bem como as relações paramétricas de Koch e Oesterreicher.

De acordo com a fundamentação teórica proposta, foram identificadas como TDs das narrativas

orais as estruturas formulaicas iniciais e finais, a repetição (lexical e temática), a focalização dos fatos narrados

em detrimento do suporte descritivo e a consequente estruturação de vocábulos preferencialmente nominais e

verbais em orações simples ou compostas por coordenação.

Já no que se refere ao conto angolano contemporâneo, observou-se que seu “vínculo placentário”

com o cânone europeu é desconfigurado pela retomada de algumas das TDs presentes na tradição oral,

dentre as quais se destacaram o privilégio dado aos nomes e verbos na seleção vocabular e a simplificação

das estruturas narrativas e sintáticas.

Através da quantificação e exemplificação das ocorrências, demonstrou-se que o movimento de

afastamento do conto angolano contemporâneo com seu vínculo placentário europeu, bem como as efetivas

inter-relações entre ele e a ancestralidade da literatura oral fundamenta-se no reconhecimento de funções

sociais distintas do gênero conto. Retomado seu sentido ritualístico e pedagógico, o conto angolano

contemporâneo passa a se configurar em novos parâmetros comunicativos, o que possibilita a instituição das

TDs de narrativas orais enquanto TDs do conto angolano literário.

Conforme previsto na hipótese inicial, os vínculos com a oralidade, mais do que índice vernáculo,

instauram laços discursivos mais profundos que, calcados na relação de Atualização/Tradição prevista pelo

conceito de TD, permitem o reconhecimento dos entretecimentos textuais e discursivos relativos ao percurso

histórico do gênero conto em Angola.

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Data de submissão: ago./2012 Data de aceitação: dez./2012