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O DIREITO FRENTE A SUA HISTORICIDADE: NOVAS CONCEPÇÕES DE HISTÓRIA E DE HISTÓRIA DO DIREITO* LAW FACES ITS HISTORICITY: NEW GROUNDS ON HISTORY AND LEGAL HISTORY GUILHERME MIRANDA DUTRA** * Artigo recebido em 13-06-2014 e aprovado em 21-07-2014. ** Bacharel em Direito e bacharelando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Servidor da Câmara Municipal de Porto Alegre. Advogado. E-mail: dutra. [email protected] Resumo A História do Direito constitui terre- no ainda pouco valorizado nos estu- dos jurídicos, sendo geralmente con- siderada ciência meramente auxiliar. No entanto, uma compreensão plena do fenômeno do Direito passa neces- sariamente pelo reconhecimento da sua indissociável dimensão histórica. Nesse sentido, este artigo é um breve estudo sobre aspectos metodológicos e epistemológicos da História e da História do Direito, procurando delinear as conexões e as diferenças entre essas duas áreas. Ainda, obje- tiva apresentar as novas e empol- gantes possibilidades de atuação do historiador do Direito, na linha da revolução historiográfica promovida Abstract Legal History is still a less valued Law field, being generally consid- ered an auxiliary science. How- ever, a full comprehension of the Law phenomenon must necessarily recognize its historical dimension. Taking that into account, this ar- ticle is a brief study on the meth- odological and epistemological as- pects of History and Legal History, aiming to define the connections and differences between these two areas. Moreover, it aims to pres- ent new and exciting research pos- sibilities for the legal historian, in alignment to the historiographical revolution, which was made possi- ble by the Annales School, through

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O DIREITO FRENTE A SUA HISTORICIDADE: NOVAS CONCEPÇÕES DE HISTÓRIA E DE HISTÓRIA DO DIREITO*

LAW FACES ITS HISTORICITY: NEW GROUNDS ON HISTORY AND LEGAL HISTORY

GUILHERME MIRANDA DUTRA**

* Artigo recebido em 13-06-2014 e aprovado em 21-07-2014.

** Bacharel em Direito e bacharelando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Servidor da Câmara Municipal de Porto Alegre. Advogado. E-mail: [email protected]

ResumoA História do Direito constitui terre-no ainda pouco valorizado nos estu-dos jurídicos, sendo geralmente con-siderada ciência meramente auxiliar. No entanto, uma compreensão plena do fenômeno do Direito passa neces-sariamente pelo reconhecimento da sua indissociável dimensão histórica. Nesse sentido, este artigo é um breve estudo sobre aspectos metodológicos e epistemológicos da História e da História do Direito, procurando delinear as conexões e as diferenças entre essas duas áreas. Ainda, obje-tiva apresentar as novas e empol-gantes possibilidades de atuação do historiador do Direito, na linha da revolução historiográfica promovida

AbstractLegal History is still a less valued Law field, being generally consid-ered an auxiliary science. How-ever, a full comprehension of the Law phenomenon must necessarily recognize its historical dimension. Taking that into account, this ar-ticle is a brief study on the meth-odological and epistemological as-pects of History and Legal History, aiming to define the connections and differences between these two areas. Moreover, it aims to pres-ent new and exciting research pos-sibilities for the legal historian, in alignment to the historiographical revolution, which was made possi-ble by the Annales School, through

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Vol. 12 – n. 23 e 24, 2012 Justiça & História

DUTRA, Guilherme Miranda

pela Escola dos Annales, por meio do reencontro da ciência jurídica com a sociedade a que se refere.

the identification of legal science with the society.

Palavras-chaveHistória do Direito – Autonomia Científica – Revolução Historiográ-fica – Escola dos Annales – História Social

KeywordsLegal History – Scientific Autono-my – Historiographical Revolution – Annales School – Social History

IntroduçãoAs relações epistemológicas entre a História, o Direito e a História

do Direito ainda constituem um terreno de difícil compreensão, suscitando

dúvidas tanto para o jurista, quando reconhece a historicidade inerente ao

fenômeno jurídico, quanto para o historiador, ao se deparar, no curso das

suas investigações, com questões referentes à ciência do Direito. A difi-

culdade principal reside no fato de que essas três áreas do conhecimento

coexistem de forma autônoma, ainda que se comuniquem intimamente,

compartilhando métodos e bases teóricas em uma relação complexa e,

muitas vezes, mal interpretada.

O presente estudo procurou explorar de forma geral as linhas prin-

cipais dessa relação, bem como as mudanças recentes mais significativas na

compreensão dessas áreas do conhecimento. As mudanças observadas nas

definições científicas de Direito e de História refletiram nas perspectivas em

relação à História do Direito, especialmente no que pertine ao seu status,

função e campo de atuação. Dessa forma, refletir sobre essas questões

teóricas lança luz sobre as novas e empolgantes possibilidades de atuação

do historiador do Direito na atualidade.

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O Direito frente a sua historicidade: novas concepções de História e de História do Direito

A História do Direito em busca de autonomiaPartindo-se da perspectiva do Direito enquanto ciência autônoma,

a História do Direito sempre esteve presente nas discussões acadêmicas da área, assumindo diversas funções e adquirindo diversos significados no curso de sua existência, mesmo que muitas vezes tratada como ciência auxiliar, ou reduzida a um status científico inferior. Enquanto no século XIX a área serviu aos anseios de Savigny e demais doutrinadores da Escola Histórica, que viam na pesquisa do passado jurídico a legitimação do Di-reito (WIEACKER, 1967, p. 43), foi obrigada a permanecer em posição inferior à emergente ciência do Direito do século XX, identificada com o estudo da norma (LARENZ, 1983, p. 82).

Hoje, defende-se nos meios acadêmicos a autonomia do campo da História do Direito – da mesma forma que as independências teóricas da História e do Direito não suscitam grandes dúvidas. Ainda, são iden-tificadas ciências que lhe são auxiliares, confirmando que ela não cumpre a pequena qualificação de “ciência auxiliar” (SALDANHA, 1978, p. 61). Seguindo uma ótica contemporânea da produção de História, Nelson Sal-danha (1978, p. 61) afirma que a tarefa dessa área do conhecimento “não se restringe a registrar eventos, arrolar datas, catalogar nomes, descrever passados; ela tem por missão compreender processos, sendo o registro dos eventos ponto de apoio para a compreensão dos processos”.

No substrato do pensamento de autores como Nelson Saldanha, Paolo Grossi, Franz Wieacker e António Hespanha, que enxergam a His-tória do Direito como ciência autônoma e essencial para a compreensão do fenômeno jurídico, está uma perspectiva do Direito enquanto realidade histórico-cultural (REALE, 1992, p. 31), cuja historicidade é intrínseca ao jurídico, e não elemento extrínseco ou complementar, visto que sua missão cognitiva se fundamenta na própria historicidade da existência humana.1

1 – Conforme defende Wieacker (1967, p. 4), “[a] missão cognitiva da história do di-reito – como a de qualquer outra história – não se fundamenta no material previamente estabelecido dos dados e factos históricos e na sua utilidade para o presente, mas na his-toricidade da nossa própria existência. Na medida, porém, em que a história do direito acaba por recorrer necessariamente quanto a esta questão, à própria experiência do direito,

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Produzir História do Direito é encarar o Direito segundo uma perspectiva que rompe com o absolutismo típico de qualquer ciência – afi-nal, no momento em que enxergamos o Direito como realidade histórica, devemos aceitar sua submissão ao devir histórico, submetendo-se à fluidez característica dos elementos sociais aos quais é integrado2. Portanto, o his-toricismo é, no pensar de Nelson Saldanha, um relativismo, mas que nem por isso afasta o homem de valores profundos e permanentes3.

Como exemplo mais contundente dessa característica, podemos citar o Direito Penal, que, como afirma Paolo Grossi (2004, p. 65), é a área jurídica que se elevou “como modelo de juridicidade exatamente por consistir na plena expressão da potestade punitiva”. Assim, enquanto direito mais cruamente e severamente sancionador, o Direito Penal submete-se às experiências sociais de forma direta. A compreensão acerca do que é lícito ou ilícito sofre variações no tempo e no espaço sob a influência de diversos atores sociais: como exemplos, a sociedade civil, que clama por alguma modificação legislativa diante de determinado evento que provoca clamor popular (em geral no recrudescimento da lei penal)4, ou ainda, influências

tornam-se seu objecto quaisquer domínios da história em que, em geral, possa ser encon-trada a experiência humana do direito. Ela acaba por ser a História, sob o ponto de vista da experiência humana do direito”.

2 – “Vejamos o seu integracionismo, a lucidez de perceber o parentesco indissociável do Direito (em seu devir histórico) com a religião, a política, a linguagem” (SALDANHA, 1978, p. 35).

3 – “O historicismo é sem dúvida um relativismo, mas de alicerce crítico-cultural. Significa a negação de todo dogmatismo intemporalizante, embora se enganem os que pensam que com isto ele desliga o homem de valores profundos e mesmo permanentes. Negação de imagens totalmente estáticas e rígidas da realidade humana. Na afirmação do fluir dos acon-tecimentos e da relativização dos valores e das instituições, o historicismo faz o reencontro do homem consigo mesmo dentro do próprio fluir, no qual se continuam e se refazem as raízes da experiência humana. […] E sendo filosofia de mudar o historicismo não pode ficar parado em conceitos hirtos: tem de se refazer, de se reformular, de se rever, numa insatisfação cuja faina, sempre vã e sempre fértil, tem de acompanhar a própria história. (SALDANHA, 1978, p. 72-73).

4 – Exemplo emblemático dessa situação foi aquela que se seguiu ao assassinato da atriz Daniella Perez, filha da novelista Glória Perez. A Lei n. 8.930/1994, que incluiu o homicídio qualificado na Lei dos Crimes Hediondos (Lei n. 8.072/1990), é usualmente atribuída à pressão popular advinda da alta exposição midiática dada ao caso.

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decorrentes de um projeto político organizado com vistas a determinada

consequência social, uma das funções centrais da organização do aparato

penal pelo Estado.

Por isso, encarando a mutabilidade das categorias penais por meio

da História do Direito, vemos um exemplo de manifestação concreta do

relativismo acima referido (ainda que não seja o único), e que desnuda a

fluidez das categorias jurídicas e da aplicação do Direito como um todo.

Acerca do tema, António Hespanha (1978, p. 7) apresenta o seguinte

exemplo:

“Quando hoje aquilo que foi indubitavelmente 'legítimo' (do

ponto de vista político) é equiparado a 'crime', por falta de uma

oportuna cobertura jurídica, e daí se extraem consequências

politicamente relevantes; como quando actos que se tornaram

indubitavelmente 'ilegítimos' (do mesmo ponto de vista) são

considerados 'lícitos', por falta de adequada cobertura jurídica

de sua punição, nós adquirimos a trágica demonstração de que

essa realidade indócil e fugidia é mesmo um 'instrumento',

isto é, tem mesmo que ver com a realidade social e com a

sua transformação.”

No entanto, ainda que seja inegável a função da História do Direito

para a compreensão do fenômeno jurídico, sua desvalorização é recorrente

no mundo acadêmico. A disciplina ainda está usualmente ausente nos cur-

rículos de muitas faculdades de Direito e, quando presente, é relegada à

condição de propedêutica, faltando o aprofundamento adequado.5 Porém,

5 – Conforme Saldanha (1978, p. 47-48): “Se verificarmos, portanto, o conteúdo da ciência jurídica contemporânea (incluídos nessa palavra os séculos XIX e XX, adotando-se provisoriamente o sentido infracrítico dos compêndios), vemos que de um modo geral a história jurídica ainda é tratada mais como um ponto de referência, como depósito de exemplos. Se tirarmos as grandes obras decididamente historiográficas que se escreveram do romantismo para cá, vemos que para a forma, para a elaboração da Ciência do Direito, o fato histórico vem tendo, praticamente, apenas aquela função. O ponto de vista sistemático

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mesmo diante dessa situação, qualquer estudante ou pesquisador do Direi-to está acostumado a redigir o que Ana Lucia Sabadell (2003) chama de “inevitável escorço histórico” no início de seus trabalhos acadêmicos, que, segundo ela, é “uma forma de pensamento que é testemunha de uma con-cepção equivocada sobre a história e o direito”. O intrigante reside no fato de que, por um lado, o Direito vira as costas para o seu estudo histórico, enxergando-o ora como simples método auxiliar, ora como mera curiosi-dade a ser pincelada no início da graduação. Por outro lado, procura na História alguma forma de justificativa para sua existência, o que se mostra evidente pelos estudos históricos frequentemente realizados no início de diversos trabalhos jurídicos, e cujas pretensões não ficam exatamente claras.

Infelizmente, essa tendência a tecer considerações históricas nas introduções dos textos produzidos no âmbito do Direito não leva, em geral, a uma tão necessária valorização do estudo da História do Direito como um campo autônomo sério. A prática comum, na verdade, é a repetição do discurso sobre História apresentado por outros juristas (muitos deles de décadas muito anteriores), deixando-se de buscar a interpretação acurada que apenas o contato com as fontes primárias e a bibliografia especializa-da poderia proporcionar. Limitante é o fato que, obviamente, um estudo sério de História pode levar tanto tempo (ou mais) que a própria pesquisa jurídica que o cientista do Direito tenta empreender.

Não se pode enxergar nessa repetição de esboços históricos apenas um fato benigno na produção científica, pois subjacentes a ela encontram-se ideias danosas. O elemento mais incômodo é a forma mecânica de exposi-ção legislativa usualmente adotada, transmitindo uma posição continuísta--simplificadora (SABADELL, 2003), ignorando as rupturas inerentes aos processos históricos. Como alertou o historiador Marc Bloch (2001, p. 55) acerca da antítese central do estudo da História, “[o] tempo verdadeiro é, por natureza, um continuum. É também perpétua mudança”. A tão conhe-cida obsessão do pensamento jurídico com o Direito Romano é evidência

predomina plenamente; e no caso de certas referências históricas, a impressão que temos é a de que surgem quase como um troféu, uma curiosidade complacentemente exibida pelo ponto de vista conceitual triunfante”.

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clara de como certos juristas às vezes esquecem de produzir uma História

crítica, preferindo o conforto da presunção de que, indubitavelmente, uma

linha invisível nos une a esses seres humanos que viveram há 2000 anos

atrás, e que as respostas que deram à sua sociedade são suficientes para

dar conta dos nossos problemas.6

Apesar do cenário pouco favorável à História do Direito que se

delineia, diversos juristas-historiadores posicionam-se de forma diversa, es-

tabelecendo, por meio da sua produção teórica, uma contraposição impor-

tante às características citadas que obscurecem a autonomia dessa área do

conhecimento. Para tanto, buscam subsídios teóricos nos novos formatos de

produção do conhecimento histórico que se tornaram possíveis no século

XX, estreitando os laços com a História, ao mesmo tempo que fortalecem

a ideia de autonomia da História do Direito.

Rupturas epistemológicas na História e na História do DireitoEmbora busque sua autonomia, é inegável que a História do Direito

não pode prescindir das formas metodólogicas e dos conceitos teóricos da

História. Ainda que não seja apenas uma extensão da ciência histórica, é

na História que devemos procurar as ferramentas centrais para um método

de investigação histórica no Direito.

Em geral, o argumento correntemente utilizado no âmbito do Di-

reito é de que a História do Direito é apenas uma das maneiras de estudar

a realidade jurídica, ao lado de outras (SALDANHA, 1978, p. 47). Assim,

numa perspectiva conservadora, podemos admitir a existência autônoma do

fenômeno jurídico e, em uma das suas facetas, encaramos sua historicidade

como um dos seus predicados, que seria teoricamente enfrentado por meio

da História do Direito.

6 – Trata-se, na verdade, de eco das escolhas teóricas da Escola Histórica do Direito do século XIX, conforme defende Nelson Saldanha (1978, p. 47): “Ao 'tomar' o Direito romano como ponto de referência, a historiografia jurídica oitocentista projetava sobre as realidades jurídicas de Roma conceitos e significados que a sistematização do saber jurídico moderno tinha alcançado: projetava-os para 'rever' e reentender o passado jurídico”.

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Porém, essa definição mostra-se insuficiente no momento em que

admitimos o Direito como historicidade, como “o modo mais significa-

tivo que uma comunidade tem de viver a sua história” (GROSSI, 2004,

p. 18). Em uma metáfora poética e pertinente, o historiador Paolo Grossi

(2004, p. 68) chega a definir o Direito como “História viva”. Afinal,

compartimentar o Direito e circunscrever seu caráter histórico a apenas

mais uma das suas possíveis áreas de estudo é ignorar o fato de que a

História atravessa o fenômeno jurídico em todas as suas dimensões, visto

ser impossível pensar um Direito longe dela e da sociedade.

Obviamente, não se defende que a História do Direito seja capaz

de explicar completamente o fenômeno jurídico, prescindindo das outras

áreas. Afinal, o seu objeto permanece delimitado: cabe a ela, em sentido

geral, investigar as formas da experiência jurídica dos homens no tempo

(VARELA, 2000, p. 179). Porém, a historicidade jurídica não pode ser

preocupação exclusiva de uma História do Direito isolada das outras áreas

do conhecimento. Defende-se que até mesmo uma teoria “geral” do Direito

não pode ser apenas estrutural e sistemática, devendo também ser histó-

rica, na medida em que necessita entender a formação de suas próprias

bases, e incluir este entendimento em sua autoconsciência epistemológica

(SALDANHA, 1978, p. 105).

Assim, a História do Direito assume a função de colocar o Direito

em contato com a sua própria historicidade, que não apenas o adjetiva,

mas constitui elemento substancial da sua existência. Dessa forma, soaria

incoerente classificarmos a História do Direito como subdivisão da ciência

histórica, face às suas características e funções específicas para a própria

ciência jurídica. No entanto, maior contrassenso seria decretar indepen-

dência completa entre essas duas áreas do conhecimento, visto que ambas

compartilham métodos e objetos.

Em suma, e simplificadamente, admitimos que a História do Direi-

to, embora conte com alguns pressupostos teóricos próprios, deve buscar na

ciência histórica o seu instrumental, mantendo-se atenta às discussões que

ali se desenvolvem (VARELA, 2000, p. 179). Porém, como adverte Paolo

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Grossi (1993, p. 8-9), ela não deve se dissolver na História Social7, de forma que o historiador do Direito não deve esquecer que o jurídico está imerso no social, cabendo-lhe, na mesma intensidade, reconstruir aquele jurídico na sua especificidade (GROSSI, 2006a, p. 25).

Evidentes os laços que unem a ciência histórica à História do Direito, devemos aceitar que aquela, como ciência-raiz, transmite seus pressupostos metodológicas a esta, e faz ecoar suas mudanças, mesmo que indiretamente. O historiador José Reinaldo de Lima Lopes (2008, p. 2) cita, ao elencar razões para as recentes modificações de paradigmas na História do Direito, a Escola francesa dos Annales como definidora nesse processo. Embora di-versas tenham sido as revoluções no pensamento histórico no século XX, a gerada por esse movimento intelectual reverberou de forma tão profunda que o próprio formato de História passível de ser escrita ampliou-se após essa ruptura epistemológica. Assim, torna-se impossível não mencionar, mesmo

7 – “Il problema è, cioè, anzitutto, epistemologico. Se noi crediamo – e io lo credo ferma-mente – che il giuridico sia una dimensione autonoma della sfaccettata e complessa realtà sociale; se crediamo – e io lo credo fermamente – che non si debba spegnere la storia del diritto in una vaga e fumosa storia sociale; se teniamo – e io ci tengo fermamente – a segnare con precisione confini e contenuti del nostro oggetto conoscitivo, allora è sempli-cemente un atto di coerenza elementare la conoscenza degli strumenti di analisi scientifica appropriati a percepirlo, valorizzarlo, definirlo. Né si dica che insistere su questa valenza ‘tecnica’significhi indulgere a una visione formalistica e riduttiva della ricchezza storica, e risecchisca lo storico del diritto in un analista di forme avulse dall`incandescenza complessa del reale. Che lo storico del diritto, da giurista qual è, maneggi gli strumenti tecnici del giurista, vuol dir soltanto che egli deve maneggiar strumenti specifici e adeguati a valo-rizzare soprattutto una dimensione del sociale.” [Tradução livre: O problema é, antes de tudo, epistemológico. Se nós acreditarmos – e eu acredito firmemente – que o jurídico seja uma dimensão autônoma da multifacetada e complexa realidade social; se acreditarmos – e eu acredito firmemente – que não se deve apagar a História do Direito em uma história social vaga e esfumaçada; se nos propormos – e eu me proponho firmemente – a assinalar com precisão os limites e fronteiras do nosso objeto, então é simplesmente um ato de coerência elementar o conhecimento dos instrumentos de análise científica apropriados para percebê-lo, valorizá-lo, defini-lo. Também não se diga que insistir sobre esse valor “técnico” significa ser indulgente com uma visão formalista e redutora da riqueza histórica, que limi-ta o historiador do direito a um analista de forma avulsa da incandescência complexa da realidade. Que o historiador do direito, tal qual o jurista, maneje os instrumentos técnicos do jurista quer somente dizer que ele deve manejar instrumentos específicos e adequados à valorização sobretudo de uma dimensão social.]

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que superficialmente, o pensamento de Marc Bloch, Lucien Febvre, Fernand Braudel, entre outros, que desenvolveram concepções revolucionárias sobre a História, bem como permitiram a criação de novas áreas possíveis de in-vestigação dentro da ciência histórica (LOPES, 2008, p. 2).

A Nova HistóriaA Escola dos Annales surgiu como uma reação à historiografia do

século XIX e anteriores, com a fundação da revista “Annales d’histoire écono-mique et sociale”, em 1929, por Lucien Febvre e March Bloch (LE GOFF, 1990, p. 28-29). Enquanto, até então, o centro das atenções dos historiado-res era a política, especialmente a política do Estado e do Estado Nacional (LOPES, 2008, p. 3)8, bem como a crença positivista no fato histórico (WOLKMER, 2002, p. 24)9, esse novo movimento intelectual buscava des-velar “o verdadeiro jogo da história, que se desenrola nos bastidores e nas estruturas ocultas” (WOLKMER, 2002, p. 24). O historiador Peter Burke (1992, p. 12) sintetiza as diretrizes da revista da seguinte forma:

“Em primeiro lugar, a substituição da tradicional narrativa de acontecimentos por uma história-problema. Em segundo lugar, a história de todas as atividades humanas e não apenas história política. Em terceiro lugar, visando completar os dois primeiros objetivos, a colaboração com outras disciplinas, tais como a geografia, a sociologia, a psicologia, a economia, a linguística a antropologia social, e tantas outras”.

8 – Como relata Peter Burke (1992, p. 3), o Catedrático de História da Universidade de Cambridge, Sir John Seeley, uma vez afirmou: “History is past politics: politics is present history”. [Tradução livre: História é política do passado: política é a história do presente.]

9 – Sobre a crítica à noção de fato histórico, Jacques Le Goff (1990, p. 31-32), historiador da 3ª geração da Escola dos Annales que cunhou o termo “Nova História”, afirma o se-guinte: “Não há realidade histórica acabada, que se entregaria por si própria ao historiador. Como todo homem da ciência, este, conforme a expressão de Marc Bloch, deve, 'diante da imensa e confusa realidade', fazer a 'sua opção' – o que, evidentemente, não significa nem arbitrariedade, nem simples coleta, mas sim construção científica do documento cuja análise deve possibilitar a reconstituição ou a explicação do passado”.

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O Direito frente a sua historicidade: novas concepções de História e de História do Direito

Assim, a partir da Escola dos Annales, toda atividade humana passa a ser preocupação da História, criando-se assim o termo “história total” (BURKE, 1992, p. 12). O foco afasta-se dos grandes eventos singulares, pro-tagonizados pelos líderes políticos que assumem posições heroicas na narrativa histórica, e aproxima-se dos homens comuns e do cotidiano, reconhecendo--se a possibilidade de construir História acerca de tópicos inusitados, como a infância, a morte, a loucura, o clima, os cheiros, a sujeira e a limpeza, os gestos, o corpo, a leitura, a fala e até o silêncio (BURKE, 1992, p. 3).

Identifica-se comumente na obra intitulada “O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Filipe II”, redigida por Fernand Braudel10, a materialização de diversas premissas defendidas pela Escola. Trata-se de um amplo panorama do espaço do mundo mediterrâneo em que a figura política, Filipe II, assume posição secundária frente ao movimento dos homens nesse espaço (LOPES, 2008, p. 3)11. Com isso, surge uma nova percepção do tempo histórico, que passa a ser compreendido em três di-mensões, opondo-se ao tempo curto e instantâneo da história focada nos simples eventos: a primeira é a dimensão temporal geográfica, quase imóvel, relação do homem com o meio; a segunda, a história lenta, das civilizações, sociedades, Estado, economias; já a terceira seria a dimensão do indivíduo, as oscilações breves e rápidas (VARELA, 2000, p. 179)12.

10 – Considerado historiador da 2ª geração da Escola.

11 – Continua José Reinaldo de Lima Lopes (2008, p. 3): “A nova história começa por deslocar seu centro de atenções de uma certa política, especialmente a política do Estado e do Estado Nacional, voltando-se para a vida material. Começa, por exemplo, com a mono-grafia de Fernand Braudel sobre o Mediterrâneo. [...] Ao contrário da historiografia do século XIX, em que o personagem principal é o Estado (e lembremos que os Estados-nação estão adquirindo naquele tempo sua forma acabada), na nova história o centro de atenção, como dirá o mesmo Braudel, é a vida material. Não se pode deixar de considerar as substanciais diferenças entre os tempos e os lugares. É preciso fazer uma história da vida material”.

12 – Sobre os tempos da História, assim escreve José Reinaldo de Lima Lopes (2008, p. 7-8): “[devemos] distinguir um nível do tempo longo e preguiçoso, o nível das civilizações. Em seguida, um nível mais acelerado do tempo, o tempo das sociedades ou formações sociais. Em terceiro lugar, o ritmo nervoso do tempo dos acontecimentos conjunturais e cotidianos. Movemo-nos nos três: pertencemos a grupos de vida cotidiana submetidos à conjuntura, ao ritmo das redações dos jornais cotidianos”.

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Utilizando o exemplo do cenário econômico da Europa entre

os séculos XIV e XVIII, Braudel defende que, embora eles tenham

sido atravessados por diversas mudanças, manteve-se certa coerência

econômica até a agitação do século XVIII e da revolução industrial.

Disso, conclui a existência de uma etapa de longa duração, a do capita-

lismo mercantil, que deve ser analisada conjuntamente às continuidades,

rupturas e alterações que renovavam a face do mundo nesse perío-

do (BRAUDEL, 1997, p. 47). Promove-se, seja em função dessa nova

percepção do tempo histórico, seja pelos novos objetos que o estudo

científico da História apropria, a relativização das condutas humanas

no tempo, evidenciando a singularidade de cada momento histórico

(BURKE, 1992, p. 11).13

Se analisarmos a História do Direito pela lente das propostas da

Escola dos Annales, logo surgem problemas. Primeiramente, a historiografia

jurídica tradicional comumente reduz-se a uma história das instituições

políticas, narrando suas características e sua trajetória no tempo. Porém,

isso colide diretamente com o pressuposto mais básico proposto pelos

historiadores franceses, que é a sua oposição à escritura de uma História

meramente política e institucional. Essa questão não passou incólume à

análise de historiadores do Direito, de forma que António Hespanha re-

conhece que a História do Direito foi realizada de forma elitista e indivi-

dualizante, dominada pelas categorias da lei, da norma jurídica oficial ou

da intervenção doutrinária de determinado jurista: todas características que

afastaram das preocupações jurídicas os historiadores da 1ª fase da Escola

13 – Segundo Peter Burke (1992, p. 11): “What these approaches have in common is their concern with the world of ordinary experience (rather than society in abstract) as their point of departure, together with an attempt to view daily life as problematic, in the sense of showing that behaviour or values which are taken for granted in one society are dismissed as self-evidently absurd in another”. [Tradução livre: “O que essas abordagens têm em comum é a preocupação com o mundo da experiência comum (ao invés da sociedade em abstrato) como ponto de partida, junto com a tentativa de ver a vida cotidiana como problematizadora, no sentido de mostrar que o comportamento ou valores que são con-siderados óbvios em uma sociedade são descartadas como obviamente absurdas em outra”.]

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dos Annales, para a qual a lei e o documento jurídico são símbolos do

evento singular.14

Ainda, não podemos ignorar a comum tendência de identificação

do Direito com o Estado, como definido por Max Weber (1999, p. 34)

enquanto mecanismo que “reivindica com êxito o monopólio legítimo da

coação física para realizar as ordens vigentes”. Nesse sentido, a História

do Direito seria logicamente uma História do Estado, algo que se afasta

das rupturas teóricas pretendidas pela Escola. Para que fosse possível a

14 – Essa questão é apresentada da seguinte forma por António Manuel Hespanha (1986, p. 316): “Le premier aspect de la “nouvelle histoire” [...] trouve son origine dans une réaction au formalisme et au nominalisme de l’historiographie positiviste, pour qui la loi, le document juridique ou le traité constituent les chaperons de l’événement. La mémoire de la société étant constituée par les registres juridiques, le modele de la preuve scienti-fique étant le modéle judiciaire, l’histoire se constitue alors sous l’empire du droit, soit sur le plan de la matière prémière, soit sur celui des procédures méthodologiques. L’anti-juridisme de l’École des Annales ne doit donc pas surprendre, d’autant plus que l’influence marxist conduit à une conception épiphénoménale de l’économique (“le droit n’a pas de histoire” avait lassé tomber K. Marx [...].” Curiosamente, aponta ele um paradoxo nessa situação: “Parmi ces territoires nouveaux de l’historien on ne trouve pas, cependant, le do-maine d’ailleurs classique de l’histoire juridique, même si des “faits juridiques” (des procès, des actes notariaux, des institutions criminelles) constituent une source très important de quelques uns des travaux paradigmatiques de la nouvelle histoire. Fait paradoxal. Car, si la longue durée [...] est la vedette de la nouvelle histoire, peu de phénomenes sont aussi permanents que les structures de base de l’ordre juridique européen. Et, si la problématique des “mentalités” est au coeur même de l’intérêt des nouveaux historiens, personne ne peut nier le rôle constitutif que le droit y joue”. [Tradução livre: “O primeiro aspecto da “nova história” tem sua origem em uma reação ao formalismo e ao nominalismo da historiografia positivista, para quem a lei, o documento jurídico ou o tratado constituem os dirigentes do evento. Sendo a memória da sociedade constituída pelos registros jurídicos, e sendo o modelo de prova científica o modelo judiciário, a história então se constitui sob o império do direito, seja no plano da matéria prima, seja sob daqueles dos procedimentos metodo-lógicos. Logo, o anti-juridicismo da Escola dos Annales não deve surpreender, especialmente como a influência marxista conduz a uma concepção epifenomenal da economia”/ “Nesses territórios novos do historiador não encontramos, no entanto, as áreas clássicas da história do direito, mesmo que os “fatos jurídicos” (os processos, os atos notariais, as instituições criminais) constituem uma fonte muito importante de alguns dos trabalhos paradigmáticos da nova história. Fato paradoxal. Pois, se a longa duração [...] é a vedete da nova história, poucos fenômentos são tão permanentes quanto as estruturas de base da ordem jurídica europeia. E, se a problemática das “mentalidades” está no centro de interesse dos novos historiadores, ninguém pode negar o papel que elas representam”.]

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conjugação dessas teorias, fez-se necessária uma reconstrução do conceito

basilar de Direito, levando-o ao encontro da sua historicidade imanen-

te, decorrente do fato de que antes de ser poder, norma, ou sistema de

categorias formais, ele é experiência, ou seja, uma dimensão da vida

social (GROSSI, 2004, p. 66). Assim, mesmo quando se realizam estu-

dos focados nos aspectos formais do Direito, não se pode olvidar que o

Estado não passa de uma cristalização da sociedade, como defende Paolo

Grossi (2006b, p. 27):

“Un Derecho concebido como una serie de mandatos autorita-

rios o, como se há sostenido com frequencia, una técnica para

guarantizar el pleno control social, siempre corre el riesgo de

separarse de aquella Historia viva que es la sociedad, la cual,

precisamente porque es Historia viva, huye, o al menos tiende

a huir, de la rigidez de los mandatos o de las inmovilizacio-

nes derivadas de los controles eficaces. […] La sociedade, al

tiempo que abomina de las cadenas vinculantes que sofocan su

adequación espontánea, adopta medidas com el fin de hacer

respetar su historicidade”.15

Segundo Hespanha (2005, p. 45), como “disciplina histórica, a

história jurídica e institucional está hoje a [se] recuperar do ostracismo a

que tinha sido condenada pela primeira geração da École des Annales”.

Porém, a aparente incompatibilidade entre a História do Direito e essa nova

perspectiva de História não levou à sua destruição; na verdade, possibilitou

a ampliação de seus pressupostos e de seus horizontes.

15 – [Tradução livre: Um Direito concebido como uma série de comandos autoritários, ou, como frequentemente se defende, uma técnica para garantir o pleno controle social, sempre corre o risco de separar-se daquela História viva que é a sociedade, a qual, precisamente por ser História viva, foge, ou ao menos tende a fugir, da rigidez dos comandos ou das imobilizações derivadas dos controles eficazes. [...] A sociedade, ao abominar as correntes que sufocam sua adaptação espontânea, adota medidas com o fim de que sua historicidade seja respeitada”.]

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Crise e resgate da História do DireitoA produção formal de História do Direito não se manteve alheia

a essas questões. De forma vinculada à revolução epistemológica vi-vida pela ciência histórica no decorrer do século XX, a História do Direito também sofreu um processo de mudanças significativas na sua identidade científica, com uma série de jus-historiadores questionando os seus fundamentos. Como exemplo, podemos citar a fundação da revista alemã “Rechtsgeschichte” (História do Direito), que dedicou a maior parte de seus primeiros números a um profundo repensar das finalidades da disciplina (SABADELL, 2003). Encontramos nos textos de historiadores do Direito mais recentes alusões frequentes a um “mo-vimento de redescoberta da História do Direito”. Por exemplo, Nel-son Saldanha (1978, p. 19) afirma que “é tema já bem divulgado o do crescimento, no Ocidente moderno, de condições e tendências no sentido de uma radical preocupação com a História”. Antonio Carlos Wolkmer (2002, p. 1) defende ser “inegável o significado da retomada dos estudos históricos no âmbito do Direito [...]”, e José Reinaldo de Lima Lopes (2008, p. 2) relata que “a história do direito volta a ter lugar nos cursos jurídicos depois de várias décadas de abandono”. Ainda, António Manuel Hespanha (1978, p. 7) escreve que “após um longo período de letargo, a reflexão metodológica sobre a história do direito tem merecido ultimamente um indesmentido interesse”.

De fato, a História passou por um longo período de destaque nos estudos jurídicos. Diversos juristas procuraram na pesquisa histórica a solução para a definição de ciência do Direito, surgindo como corrente mais paradigmática nesse sentido a Escola Histórica do Direito, que teve no jurista Friedrich Carl von Savigny seu representante principal. Vê-se nesse movimento intelectual uma tentativa de fundação de uma nova ciência do Direito, fundada na premissa de que esta é histórica, no sentido em que o objeto da ciência do Direito é predeterminado pela historicidade do direito do presente (WIEACKER, 1967, p. 403). Em outras palavras, concebe o Direito como fenômeno histórico, visto que a legislação acontece no tempo, e isto conduz à concepção de uma história do Direito que estreitamente

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se conjuga com a história do Estado e a história dos povos, visto que a legislação é uma atividade do Estado (LARENZ, 1983, p. 10).

Ainda, Savigny identificou como fonte originária do Direito não a lei, mas a comum convicção jurídica do povo, o “Volksgeist” (espírito do povo) (LARENZ, 1983, p. 10). Conforme refere Franz Wieacker (1967, p. 403), a Escola Histórica do Direito era originariamente “uma filosofia da história universal que partia da vivência de um plano universal-histórico das culturas e das épocas históricas [...]. Mas, a partir daqui, apareciam ao historicismo [...], como protagonistas dos povos e das culturas, os povos”. Dessa forma, a Escola Histórica aproxima-se de uma concepção sociológica do Direito, ao estabelecer uma oposição declarada ao direito natural racional, negando uma concepção de experiência jurídica que poderia ser exprimida por meio de codificações gerais, aplicáveis em todos os países e épocas (SABADELL, 2008, p. 43).

Porém, não se pode ignorar o fato de que o surgimento dessas teorias na Alemanha do século XIX está associado à ausência de um Estado nacional organizado naquele âmbito, com a valorização de categorias nacionalistas que pudessem levar a uma solução para esse vazio político. É nesse sentido que deve ser entendido o “Volksgeist”: embora seja inegável a tentativa de identificar o Direito com a sociedade a que se refere, o seu propósito não se reduz à produção de uma História do Direito social propriamente dita, mas engloba também a proposta de uma nova visão da ciência jurídica que dê conta das necessidades de uma Alemanha pré-unificação.

Portanto, nesse movimento de redescoberta da História do Direito citado pelos autores acima elencados, devemos perceber a mudança que se dá na investigação e no uso dessa área do conhecimento. Enquanto a Escola Histórica do século XIX empreendia a tarefa de fundar uma ciência jurídica nova (SALDANHA, 1978, p. 34), os desenvolvimentos mais re-centes da área, por sua vez, visam a sedimentar sua autonomia e fornecer subsídios para a compreensão de questões sociais e jurídicas que adquirem relevância nos tempos atuais16.

16 – Essa é a tese defendida por Lopes (2008, p. 2), ao escrever que: “A razão de ser deste interesse renovado [pela História do Direito] creio que vem da situação de mudanças sociais

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Além de Nelson Saldanha, António Hespanha e José Reinaldo de

Lima Lopes, podemos citar uma série de outros autores que pertencem a

esse movimento de renovação crítica da História do Direito, concebendo a

indispensabilidade da perspectiva histórica para a compreensão do jurídico17.

Nesse grupo, podemos também incluir como maiores expoentes Franz Wiea-

cker, na Alemanha; Bartolomé Clavero, na Espanha; Paolo Grossi, na Itália;

Cabral de Moncada, Mario Júlio de Almeida Costa e Nuno Espinosa Gomes

da Silva, em Portugal; Miguel Reale, no Brasil (VARELA, 2000, p. 172).

Embora cada um desses historiadores utilize uma ótica específica

para a produção de História do Direito, podemos identificar em seus

trabalhos a preocupação comum de resgatar a identidade desse ramo

acadêmico, com a sua valorização e retorno à posição central nos estudos

jurídicos. Une-os, ainda, uma evidente visão indissociável do Direito

e da História, como apresentado anteriormente, de forma que ambos

constituam manifestação do fenômeno da existência humana, nas suas

diversas facetas18.

Urge reconhecer que a congruência teórica encontrada nessa linha

recente de produção historiográfica é advinda de um processo de cunho

pelas quais passa a nossa sociedade neste início de século. E 'em tempos de crise, uma sociedade volta seu olhar para o seu próprio passado e ali procura por algum sinal'. Este pensamento de Octavio Paz é significativo de várias possibilidades com as quais lançamos nosso olhar para o passado: para buscar restauração, ou para buscar o futuro mesmo”.

17 – Importante frisar essa distinção entre essas duas áreas, contrariamente ao que pretendia Savigny: “[...] a inadmissibilidade de se pretender identificar ciência do direito e história do direito, porém, com essa percepção de que é a história do direito [...] que fornece os modelos hermenêuticos necessários à compreensão da teoria do direito” (BRANDÃO; SALDANHA; FREITAS, 2012, p. 35).

18 – Perspectiva brilhantemente sintetizada por Franz Wieacker (1967, p. 4) nos seguintes termos: “[a] missão cognitiva da história do direito – como a de qualquer outra história – não se fundamenta no material previamente estabelecido dos dados e factos históricos e na sua utilidade para o presente, mas na historicidade da nossa própria existência. Na medida, porém, em que a história do direito acaba por recorrer necessariamente quanto a esta questão, à própria experiência do direito, tornam-se seu objecto quaisquer domínios da história em que, em geral, possa ser encontrada a experiência humana do direito. Ela acaba por ser a História, sob o ponto de vista da experiência humana do direito”.

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estrutural, e não mera coincidência. Foi o gradual esvaziamento da função da História do Direito que levou à busca pela ressignificação da disciplina apontada pelos autores. Assim, o seu engajamento na reconstrução de novas perspectivas teóricas para a área é, acima de tudo, uma etapa de oposição à crise que já se delineava há décadas (WOLKMER, 2002, p. 17-18).

O historiador português António Manuel Hespanha, ao adotar uma perspectiva marxista na análise da História do Direito, desenvolve uma explicação coerente para as razões que levaram a essa crise. Segundo ele, a história jurídica (bem como a história, em geral), desempenhara uma função jurídica (e também sociocultural) bem definida na primeira metade do século XIX, segundo uma perspectiva ideológica calcada em valores liberal-burgueses. A ela coube uma dupla tarefa: por um lado, relativizar e desvalorizar a ordem social e jurídica pré-burguesa, apresentando-a como fundada na irracionalidade, no preconceito e na injustiça. Por outro, fazer apologia da luta da burguesia contra essa ordem ilegítima e a favor da construção de um direito e de uma sociedade libertos da arbitrariedade e da historicidade das anteriores (HESPANHA, 1978, p. 9).

No entanto, com a edificação da ordem e da hegemonia liberal--individualista, a missão da historiografia tornou-se mecanismo de en-deusamento da ordem jurídica, política e social do modo de produção capitalista, de forma que “a historiografia jurídica presa aos textos legais e à exegese de seus corifeus orient[ou-se] rumo, ora a um formalismo técnico-dogmático, ora a uma antiquada erudição desvinculada da ordem social” (WOLKMER, 2002, p. 19). Como decorrência lógica dessa situ-ação, ocorreu o afastamento da História do Direito da realidade social a que se refere, assumindo a posição de legitimadora da posição política das elites, e não pautada por critérios teóricos que visem à construção do conhecimento de fato.

É a partir das décadas de 60 e 70 do século XX que surge a re-novação desse panorama, influenciada por cinco “eventos epistemológicos” que constituem marcos de referência aos novos estudos históricos do Di-reito na América Latina, conforme citados por Antonio Carlos Wolkmer (WOLKMER, 2002, p. 21):

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i) a emergência, na década de 60, de uma corrente de cunho

neomarxista, que desencadeou profundas mudanças na

teoria social em geral;

ii) a proposta de uma “teoria crítica” de inspiração neomar-

xista-freudiana, representada pela Escola de Frankfurt

e tendo como ideólogos T. Adorno, M. Horkheimer,

W. Benjamin H. Marcuse e J. Habermas;

iii) o surgimento da “Nova História” a partir da Escola fran-

cesa dos “Annales”, que propôs o desfazimento dos liames

do paradigma tradicional da narrativa histórica;

iv) a existência de um pensamento emancipador latino-ameri-

cano (fundado na filosofia da libertação) que se define por

uma luta teórico-prática contra uma situação sócio-política

de dominação, opressão, exploração e injustiça;

v) o exercício crítico-interdisciplinar de uma hermenêutica

jurídica alternativa.

Assim, podemos enxergar nos rumos da historiografia jurídica os

ecos de todos esses processos, que reverberaram em uma renovação crítica

no âmbito das fontes históricas, das ideias e das instituições peculiares à

História do Direito. A História do Direito passa a integrar a “história

total” defendida pela Escola dos Annales, que defende o caráter unitário

e global da História, de forma que a história das sociedades do passado

deve ser compreendida como uma totalidade (BRANDÃO; SALDANHA;

FREITAS, 2012, p. 26). Conforme afirmação de Bruno Paradisi (1973

apud BRANDÃO; SALDANHA; FREITAS, 2012, p. 27), a História do

Direito coincide com a História Social quando estuda a própria sociedade,

mas autonomiza-se enquanto disciplina pela procura da especificade do

jurídico de toda a história. Portanto, a História do Direito pertence ao

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todo indivisível que é a história geral do homem, de que não pode ser destacada, mas que ajuda a explicar.

Dessa forma, no momento em que se refuta o modelo positivista e normativo que tendia a identificar a História do Direito apenas com a história das fontes do Direito enquanto produção formal do Estado e às entidades sociais e políticas organizadas (BRANDÃO; SALDANHA; FREITAS, 2012, p. 30) abre-se um rico leque de investigações possíveis que a ressignificam19. Assim, a função do historiador do Direito, para Paolo Grossi, passa a ser de servir como consciência crítica junto ao ope-rador positivo, relativizando certezas consideradas absolutas20. Trata-se da

19 – Conforme Paolo Grossi (2006b, p. 25): “El Derecho no está necesariamente vinculado a una entidad social e politicamente autorizada, y tampoco tiene su referente obligado en aquel formidable aparato de poder que es el Estado moderno, aun cuando la realidad his-tórica que hasta hoy nos ha circundado nos muestre el monopolio del Derecho creado por los Estados”. [Tradução livre: O Direito não está necessariamente vinculado a uma entidade social e politicamente autorizada, e tampouco obrigatoriamente tem seu referencial naquele formidável aparato de poder que é o Estado moderno, embora a realidade histórica que até hoje nos circundou tenha nos mostrado o monopolio do Direito criado pelos Estados.] Ainda, sobre a ampliação de perspectivas da investigação histórica, discorre Hespanha: “A partir dos anos sessenta, o pensamento social sofre, na Europa ocidental, uma sensível mutação. A renovação dos estudos marxistas, possibilitada politicamente pelo termo da guerra fria, consistiu na revaloração dos próprios textos clássicos e na descoberta das potencialidades teóricas da interpretação gramsciana do marxismo, mérito de G. della Volpe e de Althusser e suas escolas. […] Este movimento de renovação da teoria (e história) social desenha-se numa dupla linha: por um lado, numa perspectiva teórica, põe a descoberto o carácter mítico da objectividade positivista, ao mesmo tempo que infirma a validade teórica do subjectivismo e do idealismo 'humanistas'; por outro lado, e agora numa perspectiva prática, traz para a experiência da investigação histórica novos domínios da realidade humana e social, com o que se abrem novos problemas e se exigem novas explicativas. Tudo isto se reflecte, evi-dentemente na historiografia ocidental de resto já de longe preparada para a mudança pela atividade crítica da escola francesas dos Annales” (HESPANHA, op. cit., p. 15)

20 – Conforme Paolo Grossi (2004, p. 11-12) “um dos papeis, e certamente não o último, do historiador do direito junto ao operador do direito positivo [é] o de servir com sua consciência crítica, revelando como complexo o que na sua visão unilinear poderia parecer simples, rompendo as suas convicções acríticas, relativizando certezas consideradas absolu-tas, insinuando dúvidas sobre lugares comuns recebidos sem uma adequada confirmação cultural. [...] O historiador, que por profissão é um relativizador e, conseqüentemente, um desmitificador, sente-se no dever de advertir o jurista que um nó como esse pode e deve ser desfeito, e que seu olhar deve ser liberado da lente vinculante colocada diante de seus olhos por duzentos anos de habilíssima propaganda”.

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oposição definitiva à historiografia jurídica tradicional, que contribui para a difusão de uma visão apologética do direito, cujo propósito político é bem claro: apresentar o Direito como necessário a todas as sociedades21 e o operador do Direito como pessoa que desempenha uma imprenscindível função de “utilidade pública”, e também afirma que vivemos no melhor sistema jurídico que existiu na história da humanidade (SABADELL, 2003).

Considerações FinaisA revolução na historiografia jurídica, em associação com as re-

voluções epistemológicas observadas nas áreas de conhecimento correlatas, não apenas modificou a definição da História do Direito, como também, em uma perspectiva mais prática, ampliou as possibilidades de atuação do pesquisador que se dedica a essa área. Por conta do reconhecimento da his-toricidade inerente ao fenômento jurídico, não se admite mais que produzir História do Direito envolve meramente levantar de forma sistemática as leis vigentes em determinada época. Hoje, o historiador do Direito lança mão de diversos instrumentos que aumentam o escopo da sua atuação, sem, com isso, fugir do objeto central dessa área do conhecimento. Se a História é definida como o estudo do homem no tempo, a História do Direito pode ser encarada nesses mesmos termos, ainda que com o enfoque jurídico estabelecendo um recorte distinto.

Por exemplo, particularmente interessantes e influentes hoje são as pesquisas nessa área que utilizam como fontes documentos policiais e judiciais armazenados em arquivos e que possibilitam a investigação da experiência histórica das bases, das pessoas comuns e das mentalidades coletivas que aspiram por rupturas sociais (WOLKMER, 2002, p. 15), pretensão bastante distante dos tradicionais historiadores do Direito que se dedicavam apenas ao exame das fontes estritamente formais de Direito, esquecendo a sociedade a que esses se referiam. Como referiu Marc Bloch (2001, p. 66) ao citar Henri Pirenne (“Se eu fosse a um antiquário, só

21 – Posição externada no tradicional brocardo latino “Ubi societas, ibi jus”, repetido à exaustão nos cursos jurídicos.

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teria olhos para as coisas velhas. Mas sou um historiador, é por isso que

amo a vida!”22), a preocupação do historiador é, em um primeiro momento,

resolver a sua curiosidade sobre os fatos da vida. As complexidades teóricas

são meras decorrências desse instinto intelectual primeiro.

No mesmo sentido, ao investigarmos a vida das pessoas que

tiveram seus destinos influenciados pela aplicação da lei, estaremos

diante de fatos sociais complexos que podem fornecer respostas para

problemas jurídicos que nos acompanham desde o passado, e perduram

na aplicação diária das normas. Mais do que isso, trata-se da ciência

do Direito admitir sua vinculação estrita à sociedade a que se refere,

como sintetizado por Paolo Grossi (2006b) ao afirmar que “el referente

necesario del Derecho es unicamente la sociedad, la sociedad como realidad

compleja, articuladísima [...]”. Nesse sentido, cabe ao historiador do

Direito desvendar não apenas a forma como a juridicidade formal se

estruturava por meio dos tempos, mas também elucidar a humanidade

subjacente a essas práticas.

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