antonio manuel hespanha, guiando a mão invisível

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António Manuel Hespanha, Guiando a mão invisível GUIANDO A MÃO INVISÍVEL. DIREITOS, ESTADO E LEI NO LIBERALISMO MONÁRQUICO PORTUGUÊS 08-06-2022 1

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Antonio Manuel Hespanha, Guiando a Mão Invisível

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Antnio Manuel Hespanha, Guiando a mo invisvel

Guiando a mo invisvel.

Direitos, Estado e Lei no liberalismo monrquico portugus

Antnio Manuel Hespanha

Guiando a mo invisvel.

Direitos, Estado e Lei no liberalismo monrquico portugus

Coimbra

Livraria Almedina

2004

Ficha tcnica

1. Prefcio.

Num texto que ficou a ser emblemtico da teoria poltica liberal, Kant defendeu vigorosamente a Dclaration des droits de lHomme et du Citoyen, 1789, contra os que a acusavam de ser apenas uma srie de abstraces metafsicas, seguramente generosas, talvez teoricamente verdadeiras, mas sem qualquer viabilidade prtica. Com uma ironia que no era muito sua, Kant deu ao seu ensaio, publicado em 1793, o ttulo ber den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht fr die Praxis (Sobre o ditado: Isto pode estar certo na teoria, mas, na prtica, no serve). Isto, no caso concreto, era a ideia de direitos naturais, que pudessem defender cada um dos actos do poder. E, por isso, Kant tem passado por ser um dos expoentes do liberalismo poltico. No vou aqui tratar de Kant, nem da questo de saber do contedo e limites do seu liberalismo. Porm, a referncia pareceu-me interessante para introduzir aquilo que pode ser a utilidade principal deste livro.Como o subttulo indica, ocupo-me aqui, isso sim, de avaliar o contedo e limites daquilo a que costumamos chamar o liberalismo portugus. Coloco-me no plano da teoria e da prtica constitucionais, entendidas num sentido bastante alargado, sem fazer, porm, economia das suas tecnicidades, sempre que elas sejam politicamente significativas. E, desde este ponto de vista, interrogo-me sobre se o liberalismo de que Kant falava este primado dos direitos sobre o direito e em torno de cuja bandeira, em Portugal, tantos sofreram e morreram, foi uma coisa praticada. Uma vez que eu, tal como Kant, penso que a prpria teoria apenas mais um nvel da prtica, a minha questo no apenas a de saber se, no dia a dia da vida, no mundo domstico, na repartio, no tribunal ou, mesmo, no parlamento, os princpios liberais eram geralmente aplicados. bastante evidente que no. O que me interessa mais saber em que medida estavam eles presentes na prpria prtica terica. No modo como se entendia e se ensinava, a uma boa parte do escol poltico o direito; nos modelos segundo os quais se organizava o Estado; nas leis, tal como estavam nos livros; ou mesmo nesses sacrrios dos direitos que teriam sido as constituies.

Antecipo, desde j, a impresso com que fico, depois de um estudo que procurou combinar vrios registos, desde o doutrinrio ao institucional, desde o constituinte ao da prtica poltica, desde o dos cdigos cognitivos do senso comum aos mecanismos burocrticos. O liberalismo neste sentido de uma constituio de liberdades individuais - foi, em Portugal, mais ou menos o mesmo que me parece ter sido em toda a Europa Ocidental, sem sequer excluir as Ilhas Britnicas: um projecto constitucional que, alm de teoricamente pouco consistente, no podia sequer realizar os pressupostos da sua realizao prtica. Ou, pondo as coisas, de forma diferente: um projecto constitucional que, para realizar os seus pressupostos de realizao prtica, tinha que comear por desmentir alguns dos seus postulados tericos.

Todo o liberalismo XE "Liberalismo" europeu carregou um mesmo paradoxo, logo desde a sua primeira hora. Reivindicava-se da natureza individual, mas pressupunha a educao. Contava com os automatismos de uma certa forma de sociabilidade, mas tinha , antes de tudo, que construir essa sociabilidade. Propunha um governo mnimo, mas tinha que governar ao mximo para poder, depois, governar pouco. Numa palavra, propunha natureza, mas precisava de artifcios prvios.

Por outro lado, aquilo que se cria ser natureza nos finais do sc. XVIII ou seja, um mundo social e econmico em que pequenos e mdios produtores, pequenos e mdios comunicadores, se encontrassem, libertos dos entraves artificiais da tradio sofreu mudanas bruscas com o surgir da produo em massa de produtos ou com a criao de um espao pblico alargado e agilizado pelo progresso dos meios de comunicao de massa. Ou seja, efeitos externos poltica que se relacionam, digamos, com o progresso cientfico e tcnico tornavam a sociedade da primeira metade do sc. XIX, numa sociedade elctrica, confrontada com novas necessidades e com novos riscos, carente de fomento e de regulao, a um nvel to global que nada nem ningum, a no ser o Estado, lhos podia assegurar.

Depois, vinham circunstncias que muitos tm por adjectivas, mas que eu prefiro trazer logo para o proscnio: ideais de governo, modelos de mando, tradies organizativas. A revoluo liberal acolhera, ainda na sua fase de arranque, um movimento poltico revolucionrio relativamente recente na histria poltica europeia o estabelecimento de um ideal, de uma tcnica e de uma prtica de governo activo. Era aquilo a que os alemes chamavam o Polizeistaat XE "Polizeistaat" , em torno do qual, eles e os franceses, vinham elaborando saberes tericos e prticos de administrao, a Polizeiwissenschaft XE "Polizeiwissenschaft" ou, para c do Reno, a science de police XE "Science de police" \t "Ver Polizeiwissenschaft" . Um saber de contornos imprecisos, feito de mximas tardo-mercantilistas, mas tambm j de propostas de naturalizao da vida pblica adoptadas dos fisiocratas. Por outras palavras, ao lado da ideia de um governo activo, surgira a de um governo cientfico e, em nome da cincia, disciplinador. As primeiras geraes revolucionrias no rejeitam esta ideia de engenharia social a cargo do Estado, agora Estado-Nao. O Imprio, por sua vez, institucionaliza-as e pe-as em prtica, ao promulgar os grandes cdigos e ao construir um aparelho administrativo centralizado e eficaz. Enquanto que, na Alemanha, se seguiu elaborando sobre este mote todo um aparelho de conceitos jurdicos poder do Estado, funo de governo, direito pblico, funo administrativa, direito administrativo.A revoluo liberal portuguesa surge neste contexto. J havia sinais precursores desta nova ideia de um governo activo na legislao e na prtica poltica dos finais do Antigo Regime, fortemente contrastantes com a ideia tradicional de que governar bem era no obrar, ideia a cuja histria dediquei muitas centenas de pginas e a que agora no vou voltar. Porm, a revoluo liberal, ademais desse pathos modernizador dos acadmicos e de muitos polticos tardo-stecentistas, precisava de Estado, XE "Estado (funes do)" tanto para destruir a velha ordem como para estabelecer uma ordem nova, em condies de funcionar. Esta eficcia administrativa artificial, cujo modelo vinha em Portugal da Frana (e, muito mais tarde, da Alemanha), s se atingiria com reformas. As reformas, com dinheiro; o dinheiro, com impostos; os impostos, com fomento, ou seja, com medidas promotoras do Estado; estas, de novo, com eficcia, para alm de mais dinheiro. E a espiral recomeava. Basta passear a vista pelos milhares de peties s cortes, desde as de vinte at s de trinta, para nos darmos conta de como tudo se esperava do Estado, desde uma estrada a uma venera, da garantia geral da ordem a uma penso de sangue, da clareza do direito civil promoo do ensino, da aprovao de uma associao ao fomento das colnias. Esta era a tradio de fazer as coisas; antigamente, no tempo do despotismo, fazia-se assim; mas era tambm a consequncia do esvaziamento de outros poderes, nomeadamente, dos poderes municipais.

A mo invisvel que, por definio, nunca ningum vira. at ter sido finalmente revelada na bela fotografia com que a Paula Hespanha enriqueceu o rosto deste livro -, parece que nem sequer se pressentia, nesta busca ansiosa do amparo do Estado. Alguns polticos bem se esforavam em proclamar a necessidade de legislar e governar habitualmente. Uns, porque acreditavam nos impulsos de tal mo. Outros, simplesmente, porque criam que a revoluo era uma regenerao e que, consequentemente, convinha manter a lei nos estritos limites em que a acantonara a doutrina jurdica do Antigo Regime clssico. Mas, de qualquer forma, est claro que, para eles, isso de sociedade era um conjunto muito restrito e largamente imaginado - de pessoas, em cujo mrito, discernimento e responsabilidade confiavam, e cuja funo dirigente tinha que ser garantida, a golpe de lei ou mesmo a golpe de sabre. Sem isso, a mo desvairava. Para manter o norte, precisava de um brao, armado da espada ou da pluma, para a guiar. De outro brao, vestido com mangas de alpaca, para a servir.

Neste mundo que cria (e queria) viver naturalmente, habitualmente, a natureza tal como nos espontneos jardins romnticos era um trabalhoso artifcio. O cidado distinguia-se da turba, a liberdade da licena, o sufrgio do motim, a opinio pblica do clamor. A pedra de toque da natureza era a ordem; mas esta, por natureza, no era natural. Para que o governo da razo triunfasse sobre o desgoverno das paixes era preciso que algum tivesse mo. Na tal mo. Esta a mundividncia estabelecida desde os finais dos anos trinta, servindo de pano de fundo a toda a literatura jurdico-constitucional, mas sobressaindo nos escritos e ditos de Baslio Alberto de Sousa Pinto, o conservador lente de Direito e, mais tarde, ordeiro Reitor da Universidade de Coimbra. Seu contemporneo na mesma Faculdade era Vicente Ferrer Neto Paiva, este, um liberal, mais confiante numa sociedade desenhada mo livre, de um gouvernement bon march. Porm, o mundo mudava. E, quando chega de novo ao poder esta ideia menos dirigista de governo, se alguns processos sociais se iam tornando rotinas e ganhavam um funcionamento automtico, outros surgiam de novo, exigindo nova ateno, novos incentivos, novas medidas reguladoras, novas reparties. O poder de governo, autnomo, activo, viril e capaz de iniciativa, substitui-se ao poder executivo, dependente, passivo, servial. Os tempos de um artificial parlamentarismo iam passando; mas, com eles, ia tambm passando a mtica ideia de uma constituio de direitos, pairando por sobre a legislao e a administrao. Tambm aqui no se tratava apenas de uma mera questo de distores prticas dos princpios. Tratava-se mesmo de que, no rigor dos princpios, os direitos eram, agora, subordinados ao direito. E este, muito claramente identificado com a vontade do poder, corporizada, nomeadamente, na lei. No tanto pela origem parlamentar desta, mas essencialmente pela sua natureza de comando, ordenador, racionalizador, curador do interesse pblico. O que sabemos do que se passava abaixo da lei ainda pouco e, sobretudo, enviesado. H muitos testemunhos de como a fora do governo fazia lei. Mas pode haver outras faces da prtica - menos generalizadas, mais escondidas em fontes pouco compulsadas, provavelmente de eficcia socialmente discriminatria -, em que os direitos se tenham podido impor lei, nomeadamente no plano das decises judiciais concretas. Afinal de contas, pelo menos at aos anos sessenta, os juizes eram formados num jusnaturalismo bastante aberto subverso da lei pelos princpios, tenham eles sido os das naes cultas e civilizadas, os princpios liberais ou os princpios do progresso.

O que estou a dizer sobre a cobertura estatal do liberalismo no nada de novo, de que os prprios contemporneos no tenham abertamente falado. Porm, creio que justamente essa a-problemtica aceitao do papel dirigente do Estado, no mbito de uma retrica desabusadamente liberal, que banaliza aquilo que hoje aparece como um paradoxo. E quando a contradio aparece como insuportvel, inabsorvvel pela ideia de que, afinal, Estado sempre tem que haver, tendemos a remet-la para o cmodo domnio dos abusos. Ou seja, mesmo no contexto de uma mentalidade liberal, o Estado, ou faz parte da prpria natureza, de tal modo se incorpora nas regras do viver social; ou, quando se destaca, ganha as formas de um monstro anti-natural. Que o Estado seja apenas e to-somente o artifcio necessrio para que uma natureza ficcionada funcione parece ser algo que s ocorre a poucos. No fundo, porventura porque esta ideia de que a natureza pode ser apenas um artefacto cultural demasiado corrosiva, e no apenas no plano da histria. Com ela, a vida perde imensa qualidade Embora tenha tal fio geral de leitura e no escape, inevitavelmente, minha pr-compreenso do mercado como um artefacto historicamente construdo, este livro no foi elaborado dogmaticamente. Ou seja, eu no parti de uma tese que j tivesse esboada para o processo da sua comprovao emprica. Pelo contrrio. Quem tenha lido as poucas coisas que escrevi sobre a poca contempornea, lembrar-se- que j defendi uma leitura praticamente oposta a esta, nomeadamente quando procurei prolongar para o sc. XIX uma matriz pluralista de poder que resultava tanto dos meus estudos sobre a poca moderna como de uma leitura micro-fsica do poder inspirada, sobretudo, em M. Foucault. Embora continue a achar que muito importante tornar visvel a eficcia at h pouco escondida dos mecanismos quotidianos de disciplina e de controlo, aqui o interesse que me suscitou a vontade de saber foi outro ou seja, a crtica da ideia da naturalidade, dessa naturalidade ainda hoje natural, que nos permite, afinal, continuar a construir, acomodadamente e at com gozos, formas de conviver que se tornariam facilmente problemticas (e, frequentemente, depravadas e inumanas), se as sujeitssemos a uma discusso liberta de assunes prvias. Um tema, como esto a ver, obviamente conspurcado de poltica.

Para compensar estes enviesamentos confessados, procurei multiplicar os registos de anlise e comprovar o melhor que pude aquilo que afirmava. Realizando com isso, ao mesmo tempo, um trabalho que necessitava de ser feito o de uma descrio sistemtica e contextualizada da evoluo constitucional portuguesa do sc. XIX. Por isso que este livro pode tambm servir um outro tipo de interesses e de leitores - os que procuram saber as coisas, como elas realmente se passaram. Porque, na verdade, segundo me pareceu, parecia s fontes que me pareciam boas que as coisas que se passaram como, segundo me parece, lhes parecia a elas.

Mais uma vez, dei a palavra a juristas, esses intelectuais orgnicos do poder na Europa ocidental; mais dados a descrever o bvio do que a imaginar o ousado; e que se, nas Faculdades de Direito, formavam as sucessivas geraes dos grupos dirigentes, que ocupavam ainda os lugares ministeriais e parlamentares, formavam [no duplo sentido de a constiturem e de a educarem] a opinio pblica, e, finalmente, de beca ou de toga, julgavam e condenavam. E que, feito isto, reintegravam tudo de novo em obras de doutrina que, por serem tambm de cincia, reproduziam, agora em crculos ainda mais alargados e com uma evidncia mais forte do que a da opinio, da f ou das ideias, a viso que eles tinham da ordem.

Depois, atendi aos mecanismos institucionais, que tornam operacionais as ideias, embora tambm as distoram e tambm pensem por si mesmos. Na descrio dos mecanismos institucionais, evitei alguns com leituras polticas mais evidentes, preferindo analisar outros mais tcnicos, plenos daquela eficcia manhosa ou subtil que constitui o ncleo da disciplina quotidiana. Porm, quer no plano doutrinal e dogmtico, quer no plano institucional e prtico, muito ficou por dizer, quase sempre porque eu ainda no sabia dizer mais. A dimenso micro-conjuntural da poltica no adquirir aqui tanto protagonismo como alguns dos leitores esperariam ou desejariam. Porventura porque me falta saber nessa rea, acho-a pouco explicativa e bastante superficial. que, mesmo hoje, no confunfo a vida com os soundbytes da comunicao social ou com o crivo dos jornais (ou telejornais). Muito menos com as prenhes verdades do Canal Parlamento

Tudo quanto acabo de escrever , porm, muito superficial, se se tratar de explicar a lgica explicativa mais profunda deste livro. Neste plano, nele se reflectem todas as polmicas certezas e incertezas por que passa a histria da Revoluo Francesa e dos seus seguimentos, ainda agravadas pelo facto de que (i) no estamos a analisar a situao francesa e de que (ii) o processo revolucionrio (entenda-se, para j, a expresso como se quiser) portugus se desenrola depois de trinta anos de ecos, anseios e temores suscitados pelo que aconteceu em Frana. Assim, mesmo alguns penetrantes ensaios de balano das grandes questes conceituais envolvidas no tratamento historiogrfico do tema, ainda que valham para Frana, dificilmente podem ser guias suficientes para a situao portuguesa.

Seguindo uma sistematizao cmoda, sintetizo brevemente como me situo aqui embora nem sempre com uma inconcusa coerncia frente aos principais modelos explicativos tpicos usados neste domnio e para este perodo: simplificando, o da histria social, o da histria das ideias polticas (ou, mudando um pouco, o da histria das representaes), o da histria poltica, o da histria do direito, o da histria institucional.

A histria social nunca gozou das minhas simpatias tericas, sobretudo quando atribua a grupos ou categoria sociais a natureza de coisas objectivas, quando subordinava sua lgica todos os processos sociais (mono-determinismo), quando caa em causalismos necessrios (fossem os do materialismo histrico, fossem os dos famosos ciclos). Porm, a verdade que a sociedade - prosaicamente entendida como plano de manifestao de interesses individuais ou de grupos, como campo de luta pela vida, como espao de competio pelos poderes - existe mesmo; e, por muito que toda gente tenha notoriamente o gosto de filosofar, muitos h tambm que nutrem um tambm evidente gosto em viver. Para isso, tm, naturalmente, que fazer algo pela vida, j que o mero filosofar tem aquele incmodo detalhe do deinde. Da que eu continue a pensar que a histria social (ou seja, a considerao dos interesses e das lutas por eles) tem que ser tida em conta, embora como todas as outras a benefcio de inventrio, ou seja, uma vez avaliados os seus pressupostos e os seus mtodos. Neste livro, a histria social cobra um lugar aparentemente modesto. No se insiste nada numa leitura classista; evita-se um vocabulrio de pretensa classificao social cientifica; reconhece-se a pluralidade de processos sociais, da mais diversa natureza, bem como as erupes do acaso. Mas tambm no se cai na beata ingenuidade de supor que mudanas constitucionais como o princpio da igualdade ou da liberdade de indstria foram apenas discursos e no tiveram consequncias institucionais como a abolio dos privilgios na atribuio das ofcios, a abolio dos direitos banais e dos forais, a progressiva libertao da terra. Embora ainda no saibamos, ao certo, o que que isso representou, nas relaes entre as pessoas ou os grupos, seguramente que tais consequncias no foram neutras do ponto de vista da distribuio social do poder e do xito ou fracasso de interesses particulares. Tambm a polmica politica, por muitos floreados que cultivasse e por muito que vivesse da pura barganha parlamentar, no era um mero jogo a feijes. Tinha a ver com as idiossincracias e pulses de alma daqueles quinhentos notveis (ou apenas notrios), mas beneficiava grupos e produzia redistribuies muito mais vastas de poder social. Ora, as regras da arte justamente mandam que, ao fazer histria, isto no possa ser jogado fora juntamente com as cansadas vulgatas da histria econmico-social mais antiquada.

A reaco da primeira gerao dita revisionista contra a histria social confrontou a eficcia das causalidades econmico-sociais da histria poltico-constitucional com a influncia recebida das ideias polticas, nomeadamente das ideias dos grandes fundadores do pensamento poltico moderno, de Rousseau a Montesquieu, de Kant e J. Bentham. De referncias a ideias polticas est este texto cheio. Mas no se ignoram, apesar disso, vrias coisas. A primeira a de que, enquanto tais, essas ideias tinham um pblico restritssimo; algumas delas no tinham mesmo pblico nenhum, porque - apesar de hoje estudadas no contexto da obra do autor - ento eram inditas ou absolutamente inacessveis. Mais do que como investigaes sistemticas e coerentes, estas obras serviam, nas edies ocasionalmente disponveis em cada mercado, como arquivos incompletos de tpicos fragmentrios, em geral compulsados ao nvel do ndice e frequentemente entendidos apenas ao nvel das grandes ideias de cada captulo. A verdade que, seja como for, as obras em geral coerentes e bem construdas - destes autores eram como que mquinas de produo dogmtica industrial (como diria P. Legendre): tinham lgicas to fortes de produo conceitual que resistiam disperso e ao atomismo, que podiam mesmo filtrar as apropriaes dos leitores e falar, pela boca deles, apesar da ligeireza ou obtusidade dos seus espritos. Por isso, h sempre a possibilidade de uma utilizao elptica ou equivocada suscitar no auditrio uma ideia mais correcta, como uma cantiga desafinada nos pode, apesar de tudo, evocar a verso correcta. Realmente, o chavo princpio monrquico ou prerrogativa rgia devia deixar ao comum dos ouvintes mais instrudos uma vaga ideia de uma qualquer supremacia do rei, fosse a que ttulo fosse e tivesse o contedo que tivesse. Mas, a partir desta evocao, algum mais letrado podia, baseado nas grandes fontes doutrinais da ideia as teorias constitucionais inglesa e alem -, desenvolver uma cadeia de consequncias que, por serem a concluso lgica do tpico que se aceitara como bom, se tornavam de aceitao igualmente obrigatria, sob pena de contradio (uma pena realmente grave no contexto de uma discusso).

Bom, mas normalmente no era das grandes teorias dos grandes autores que a opinio pblica se alimentava, como bem sabe quem leu jornais ou debates parlamentares da poca. Os grandes autores foram mal lidos, mal entendidos, mal citados, truncados, falsificados. Alguns dos seus passos mais sonoros foram retidos, foram repetidos, foram ouvidos e ouvidos, entraram no jargo da opinio pblica, embora com sentidos difusos e algo mveis, sendo a partir destas corruptelas que ela se formava. Mas isto j outra histria. a histria das representaes, das mentalidades, dos imaginrios, polticos. Esta tem que ter neste livro, evidentemente, um certo protagonismo. Na verdade, so estas ideias gerais, falsamente simples e claras diviso de poderes, ditadura, cidadania, direitos polticos, governo, independncia dos tribunais, garantias constitucionais, poder moderador, sufrgio universal ou parlamentarismo -, que formam a opinio pblica esse elemento decisivo na legitimao poltica do constitucionalismo -, que decidem debates parlamentares, que projectam polticos, que ditam as sortes dos governos e que, com umas ulteriores manipulaes de vria ordem, at vencem eleies. Realmente, o que soava na poltica era o discurso; os interesses apenas se pressentiam ou se bichanavam.

Porm, j isto mostra como tambm esta histria do imaginrio constitucional no pode ser separada de elementos que tm, de novo, a ver com o social. Por isso, que no se cai na beata ingenuidade de supor que a sociedade se esgotava em discursos ou, pior ainda, que as realidades dos discursos as palavras tinham sentidos que no variavam com os contextos ou que se mantiveram idnticos pelos tempos fora. Ou seja, est-se bem consciente de que preciso contextualizar os textos, em funo de outros textos, em funo dos ambientes dos actos de discurso, em funo das leituras, em funo das diferentes pocas em que tais discursos so mantidos. Isto leva, desde logo, a que se faa uma leitura perspicaz das representaes que cada poca fazia de si mesma, das palavras que usava para designar as situaes e das classificaes que fazia dessas situaes. Por exemplo: claro que a generalizao do conceito igualitrio de cidado apesar de ter tido uma eventual eficcia programtica a longo termo, promovendo a ideia de igualdade no s no deu conta, mas encobriu, as mais profundas desigualdades sociais. E, se quisermos perceber porque que a sociedade de oitocentos era a que era, diferente da de Antigo Regime, mas tambm da nossa, preciso que nos demos conta de que a palavra cidado, na poca, tinha contornos especficos, muito menos abrangentes do que os nossos. Isso no se devia a nenhuma maldade especial daqueles nossos trisavs; mas j seria uma grande maldade nossa e um profundo erro historiogrfico defendermos que eles, com invenes vocabulares como esta, foram os artfices do nosso tempo poltico. Sim, muitos deles eram democratas e cuidavam das liberdades cidads, de uma forma honesta e empenhada. S que a sua democracia no era a nossa; e a sua cidadania to pouco o era. Por outro lado, conversar pode servir para ... desconversar; ou seja, abundar nas palavras pode servir apenas de biombo para as coisas que realmente contam: uns filosofam, para que outros vivam; ou, mais subtilmente ainda, enquanto uns filosofam, com o aplauso geral, outros vivem, com a discrio total. O tema das reformas polticas, a partir dos meados do sculo, sobre o qual se escreveram rios de tinta e se debateu anos a fio, foi uma ddiva do Cu para todos aqueles que o que menos queriam era que se falasse a propsito da poltica - das sua vidas, dos seus negcios e dos compadrios, justamente polticos, em que umas e outros vicejavam. Falar de reformas polticas era, por isso, para uns perfeitamente suprfluo, porque os problemas reais do sistema os problemas das finanas, do desenvolvimento agrcola e industrial, da educao, do aviltamento da poltica - no estavam a; para outros, pelo contrrio, era absolutamente indispensvel, justamente pela mesma razo ... Por outro lado, a opinio pblica , antes de tudo, um produto social. O produto dos meios localmente disponveis para criar um espao pblico jornais, redes de sociabilidade poltica, conhecimento de lnguas, hbitos de gregarismo poltico (em clubs, meetings, rallies, manifestaes, liturgias cvicas), meios de comunicao, leis de imprensa, liberdades cidads. Ao contrrio do que alguns pensam, isto tem muito a ver com factores de produo social do espao de debate poltico e apenas pouco se no me engano com a prosopografia.

Ou seja e com isto entro no breve apartado que dedico histria poltica todos os complots imaginados e imaginveis dos 700 a 1000 polticos da Frana revolucionria no podem explicar a Revoluo Francesa. Como todas as conjuraes manicas, realistas e ultramontanas que se tenham produzido em Portugal durante os primeiros 30 anos do sc. XIX so absolutamente insuficientes para explicar a histria poltico-constitucional do perodo. O mesmo se diga de todos os cambalachos, enlaces, partidas de whist, seroadas, conversas polticas, luvas ou bengaladas, que pontilharam a cena poltico-mundana do rotativismo parlamentar portugus. Para comear, tudo isto estava codificado em sentidos, estratgias de vida, imagens de si e do mundo, comportamentos, que no dependiam dos sujeitos, mas lhes eram objectivamente impostos. Como, para ns, ter (ou no) vergonha na cara no depende muito nem da nossa vergonha, nem da nossa cara, mas do valor da vergonha e do apreo pela cara num meio social localizado. E, como se sabe, de ter ou no vergonha na cara que tambm depende, entre outras coisas, o modo como nos comportamos uns com os outros. A histria poltica foi tambm uma das respostas revisionistas histria social, marxista ou no. Como foi uma resposta a uma histria das ideias, desencarnada da realidade da vida. Mritos seus. Mas foi tambm uma resposta ... sem resposta. Porque, em troca de modelos errados, ofereceu ... coleces de factos (ingenuamente reificados) ou, pior ainda, uma teoria implcita e acrtica da aco, tudo envlvido em chaves como retorno aos factos, regresso aos arquivos, fidelidade quilo que de facto aconteceu. Apesar de tudo, algo h a guardar da contextualizao narrativista. Como a sopa de pedra, ptima ... se levar o resto dos condimentos. Ou, utilizando ainda uma metfora culinria, se os ingredientes forem bons, nunca percamos de vista que, mesmo que os saboreemos como nos so fornecidos, sempre podem ser re-aproveitados para outras receitas.

Depois, a histria do direito, entendida como histria dos dogmas e conceitos do saber jurdico. Neste contexto, a histria do direito serviu-nos, sobretudo, como um captulo da histria das mentalidades. Um captulo particularmente relevante. No porque o tema do livro parea um tema de direito, j que, na verdade, aos juristas tudo parece tema de direito; mas porque, no tal espao pblico em que se modelava a aco social e poltica neste domnio, os juristas eram os principais fautores de opinio. Na escola, nos manuais, nos livros mais especializados, no parlamento, nos tribunais, nos jornais, os bacharis, os doutores e os lentes de direito pululavam. Por outro lado, era normalmente por seu intermdio que o espao pblico da poltica constitucional portuguesa se ligava a espaos congneres estrangeiros. Se, na primeira metade do sculo XIX, muitos emigrados e alguns intelectuais difundiram os constitucionalistas franceses e ingleses, na segunda metade do sculo, a divulgao que seria decisiva dos constitucionalistas e politlogos italianos e alemes foi obra quase exclusiva da Faculdade de Direito de Coimbra. Claro que tambm estes leitores apesar da sua sapincia e gravidade tresliam, metiam as suas buchas, combinavam o incombinvel, liam em segunda mo, e, sobretudo, padeciam daquele tradicional sindroma de pensarem que o mundo ... o Instituto Jurdico. Mas o que resultava era convincente, tinha um ar fivel, vinha da cincia e no da poltica, gerava consensus fceis no espao pblico: ecltico, combinando argumentos que iam da natureza das coisas s histrias tanto bblica como clssica, passando pela filosofia e pelas belas letras, terminando nas nascentes cincias sociais. Tudo isso muito embalado num estilo magistral, num ar pomposo e rematando na invarivel adopo de uma posio ... intermdia. A leitura dos textos que aqui usei, nomeadamente, dos manuais universitrios, fornece exemplos impressionantes da eficcia deste discurso. Serenamente, expondo de forma equnime as vrias opinies, apelando a um raciocnio controlado em tudo menos nos seus pressupostos, distribuindo crticas a um lado e ao outro, despotenciando a carga poltica das questes, as sebentas reduzem a poltica a um jogo de uma lgica sui generis, im-provvel mas provvel, em que a sensatez substitui o rigor, como acontecida, em geral, nas cincia morais e polticas, por oposio s cincias exactas. Por isso que a dogmtica jurdico-constitucional h-de ocupar aqui um lugar central, como gramtica de um sector estruturante da opinio pblica. Quase com as mesmas caractersticas, tem vindo a desempenhar, desde ento, um papel muito semelhante, embora com outras parcerias discursivas.

Finalmente, a histria institucional. Legitimadas pela opinio pblica geral, objecto de planos de pormenor a cargo da dogmtica jurdica, formalizadas pela constituio, pelas leis e pelos poderes constitudos, as instituies produzem, de forma industrializada e massiva - como a opinio pblica, mas agora com caractersticas de coercibilidade - efeitos disciplinadores. No que as instituies desempenhem este papel com docilidade, sem falar por si mesmas, sem que os seus mesmos mecanismos no produzam distores. Como aqui se ver, a institucionalizao da ideia de um poder executivo deu como resultado o surgir de um aparelho institucional de governo, que como veremos - era uma hipertrofia da matriz, uma espcie de derrapagem cancergena da ideia original. Os efeitos desta capacidade poitica autnoma das instituies foi, neste caso, fatal: a criatura a governamentalizao da poltica matou o criador o dogma da diviso de poderes.

Em suma, o que se pretenderia era tecer uma narrativa em que, sob a hegemonia da histria da dogmtica jurdico-constitucional aqui simplesmente como discurso estruturante do espao pblico especializado dos polticos -, (i) a histria dos imaginrios sociais (ou seja, a histria da opinio pblica - com as suas longnquas razes na histria das ideias polticas), (ii) a histria das instituies e, como pano de fundo, a (iii) histria social, tivessem os seus lugares devidos. Por isso, este livro, que assenta basicamente sobre o primeiro aspecto, deveria constituir a primeira pea dedicada razo jurdica - de um trptico. De que a segunda pea seria uma histria dos imaginrios polticos a razo poltica. E a terceira, uma histria do Estado e do direito a razo governativa. No sei se algum dia saberei o suficiente para fazer isso. Mas, pelo menos, deixo aqui esta confisso de insuficincia.

O livro abre com uma descrio de uma ruptura constitucional fundadora, a que distingue o modelo poltico iluminista do das anteriores monarquias de Antigo Regime. No se tratando de um captulo com grandes novidades, pareceu-me til, em todo o caso, realar uma vez mais (porque parece frequentemente demais que tanto historiadores como historiadores juristas ainda no o tenham notado ...) o que o despotismo iluminado traz de absolutamente novo constituio das monarquias de Antigo Regime, como achei que devia problematizar um pouco a ideia corrente (tambm em coisas que anteriormente escrevi) do novo impacto da lei; isto porque, se se ler com cuidado o novo discurso jurdico e poltico, a lei aparece sempre como subsidiria de uma ordem da razo, uma ordem que se ir positivar, no tanto nas constituies, produto de vontades fugazes, mas nos cdigos, esses monumentos de um saber jurdico eminente.

conjuntura constitucional vintista dedico menos ateno do que ela poderia merecer. tema bastante tratado pela historiografia, sobretudo pela historiografia das ideias. Em todo o caso, conviria fazer um cuidado exame crtico das etiquetas que se lhe colaram, de radicalismo e de estrangeirismo. Surgida num perodo de refluxo europeu das ideias revolucionrias, em que o modelo constitucional em voga era o da Carta constitucional francesa de 1814, a Constituio de 1822 ergue-se contra a corrente; embora, por vezes, apenas em questes que, ulteriormente, em constituies que as decidem diferentemente, se revelam de pouco impacto prtico. Tal a questo do veto real das leis que, no cartismo, apenas excepcionalmente foi usado ou a questo do nmero de cmaras parlamentares, j que no claro que a existncia de uma cmara alta, nas constituies seguintes, tenha tido um papel poltico (de sentido conservador) central. No fora a quase completa independncia do legislativo face ao rei, um governo parlamentarista poderia ter funcionado com esta constituio vintista. A conjuntura poltica no ajudou e a literatura miguelista e cartista foram bastante eficazes na construo do mito de um vintismo descabeladamente radical.

Alguma ateno se dedica aos projectos constitucionais da restaurao joanina, esse curto lapso em que D. Joo VI mostra indcios de querer seguir o caminho de Lus XVIII, outorgando ao pas uma constituio moderada. O interesse dos projectos concorrentes o de mostrar as continuidades com a Carta constitucional de 1826, o que, no sendo nada de estranhar, contribui para esbater o mito da ruptura cartista, da natureza fundadora do acto constituinte de D. Pedro IV, realando tudo aquilo que, na Carta, representa continuidade com um modelo constitucional restauracionista.

O tratamento da Carta constitucional e das prticas poltico-constitucionais que se desenvolvem no seu quadro mais extenso e detalhado. No fao, a, nem economia da dogmtica constitucional, nem de incurses na incipiente histria dos mecanismos poltico-administrativos. Os historiadores no compreendero a primeira deciso, os constitucionalistas acharo deslocada a segunda. No so, porm, caprichos meus. A dogmtica jurdica tem um importante papel conformados, por constituir o quadro de leitura do direito e da vida poltica, sobretudo num universo em que os juristas dominavam (at quantitativamente, entre o pessoal poltico). Por sua vez, a prtica institucional que os juristas acham que coisa exterior ao direito representa o direito constitucional em aco. Infelizmente, muito pouco pude avanar neste ltimo domnio, porque, nesse ramo, a historiografia portuguesa apenas d os primeiros passos. Seja como for, a Carta constitui o enquadramento mais permanente da vida poltica portuguesa. Tentarei mostrar, por isso, como ela envelhece ou se adapta a agendas polticas que vo mudando; e como, ao fim e ao cabo e apesar de vrios arremedos de emendas, acaba por soobrar, porventura por causa de uma questo no essencial a questo do regime.

Na seco dedicada Carta vo inseridos os excursos que me parecia indispensvel inserir aqui sobre a constituio dos aparelhos de governo. Neste livro, so como que incidentais. Mas espero poder dedicar, com mais tempo e mais trabalho, um outro livro anatomia e fisiologia do poder, baseada numa forte componente quantitativa e normativa-regulamentar.

Termino com uma seco, que talvez pudesse ser a primeira, sobre os modelos jurdicos que a mo invisvel supunha e o modo como a mo visvel do direito e do Estado lhes deu realizao. Pondo as coisas, de forma radical, como elas devem ser postas para se tornarem claras e apetecveis, como o direito construiu o mercado, os seus sujeitos, os seus objectos, as suas regras de funcionamento. Em certos pontos, trata-se de revisitar temas das seces anteriores; noutros, abordam-se questes novas. Mas, sobretudo, olha-se o todo e com outra perspectiva.

Este livro nasceu do ensino, na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, e da investigao relacionada com ele, nomeadamente da realizada no mbito dos cursos que me coube ensinar e de um projecto de investigao sobre A Constituio Poltica da Modernidade em Portugal. Por isso, fica-se a dever tambm a esse ambiente acadmico, como foro de debate e de experimentao de ideias, FCT, como entidade financiadora do tal projecto, e mais do que tudo, como os prprios bem sabem - aos Colegas com que mais privava e com quem ia discutindo homeopaticamente as ideias que aqui vm; a quem agradeo a pacincia, pedindo ao mesmo tempo desculpa de, em momentos de menos senso, eventualmente ter mantido as minhas opinies originrias. O texto foi cuidadosamente revisto pelo Andr Ventura, a quem agradeo a competncia e o empenhamento postos na tarefa e a ajuda que me deu no arranjo do texto final, e no apenas em aspectos formais.

Confesso, finalmente, que tenho a iluso de que este livro possa servir para estimular interesses, servindo tambm de homenagem queles colegas, sobretudo portugueses e brasileiros, que, ultimamente, tm investido nesta rea em termos renovados.

Lisboa, Vero 2004

Principais abreviaturas usadas.

AHP Arquivo Histrico Parlamentar

Alv. alvar

ANTT Arquivo Nacional da Torre do Tombo

BNL Biblioteca Nacional de Lisboa

CL Carta de Lei

Cod. cdigo (ou cdice)

COLP Coleco oficial de legislao portuguesa.

DC Dirio das Cortes.DCD Dirio da Cmara dos Deputados.

DCGC Dirio das Cortes Gerais Constituintes [da Nao Portuguesa], 1837-1838.

DCGECNP Dirio das Cortes Gerais Extraordinrias e Constituintes da Nao Portuguesa.

DCGNP Dirio das Cortes Gerais da Nao Portuguesa.

DCP Dirio da Cmara dos Pares.

DCS Dirio da Cmara dos Senadores.

Dec. Decreto

DG Dirio do Governo.

L. Lei

n. nota

Sess. sesso

2. Introduo.

No estudo dos mecanismos do poder, o contexto terico dominado por duas preocupaes. Por um lado, a de no reduzir os fenmenos poltico-institucionais a um reflexo das tenses socio-econmicas; por outro, a de adoptar um conceito alargado de poder que inclua no sistema poltico fenmenos que no pertencem ao universo jurdico-estadual. XE "Histria constitucional (metodologia)" Esta nova forma de compreender o poder obriga a pr em causa algumas das perspectivas correntes sobre a natureza do constitucionalismo, bem como da natureza das (r)evolues que o instauraram. Por um lado, problematizando um modelo explicativo que ligue muito estreitamente as modificaes do poder evoluo das estruturas econmicas ou dinmica das classes sociais. Por outro lado, recusando-se a ver nas alteraes polticas revolucionrias algo que se reduz apenas aos mecanismos do direito oficial e do Estado, abrangendo, pelo contrrio, a considerao de outras ordens do poder - como a igreja, a famlia, a burocracia, a cincia - e de mecanismos de condicionamento social diferentes dos mecanismos jurdico-institucionais, como a opinio pblica. Por isso, no estudo histrico dos mecanismos do poder, o actual contexto terico caracteriza-se, sobretudo, por duas linhas de orientao.A primeira linha de orientao reside na superao das concepes que reduziam os fenmenos polticos e institucionais ou a um reflexo ou a um instrumento das tenses sociais e econmicas; neste sentido, reage-se contra a ideia de que os mecanismos do poder possam ser explicados ou por uma certa lgica socio-econmica ou por um projecto intencional (de um grupo, de uma classe), realando-se, em contrapartida, a sua dependncia em relao s condies materiais de produo do prprio poder.

Essas condies materiais de produo do poder XE "Poder (produo do)" (ou da comunicao poltica) incluem:questes do mbito do imaginrio (nomeadamente, do imaginrio poltico, designadamente, as ideias correntes sobre como o homem, o que a sociedade, o que governar, quais os fins do bom governo);

questes ligadas imaginao jurdico-constitucional (o que a constituio, quais os modelos imaginados dos constitucionalistas, os seus dogmas, os seus institutos); questes ligadas materialidade da comunicao poltica, nomeadamente ligadas textualidade constitucional (o discurso constitucional, o seu vocabulrio, a sua ordem, as suas referncias, os seus subentendidos);

ou, mais em geral, questes ligadas prpria estrutura da comunicao poltica, como, por exemplo, a dimenso e natureza do universo dos actores e dos destinatrios (ou objectos) da aco poltica, os meios de comunicao poltica disponveis, os horizontes de recepo dos textos; questes relativas ao mbito da governao (governance), como as suas reas de aco e os seus objectivos; questes relativas aos aspectos logsticos da governao (meios humanos, financeiros, comunicacionais).A segunda linha de orientao metodolgica consiste na adopo de um entendimento alargado de poder, que no o identifique com os fenmenos e processos classicamente descritos pela histria jurdico-institucional, mas que considere ainda todas as outras tecnologias disciplinares XE "Tecnologias disciplinares" que, por vezes, so apenas ideias-fora (polticas, no sentido de policies), outras vezes, mecanismos institucionais, por intermdio das quais se condicionam os comportamentos (a organizao tcnica, a assistncia, o fomento, etc.), outras vezes so morais (nos vrios sentidos da palavra, desde o de princpios ticos at ao de simples hbitos ou costumes), outras vezes so imagens da sociedade e do homem (como os saberes, a opinio pblica).Nesta sntese, procuraremos tirar as consequncias destes diversos nveis de problematizao. Adoptaremos um conceito de sistema poltico-institucional:

que realce a sua autonomia (o seu carcter auto-referencial), que compreenda mecanismos jurdico-polticos actuando pelo constrangimento e dispositivos condicionando por formas no coactivas e que contemple, ao lado do poder oficial (o Estado, a lei), os poderes informais perifricos.Conjunturalmente, a primeira preocupao , talvez, a mais urgente, dada a tendncia que domina a historiografia poltica no sentido de se preocupar, ou apenas com as ideias, ou apenas com a poltica. Num caso ou no outro, o nvel especificamente jurdico ou mesmo o nvel especificamente institucional so completamente desatendidos, como se fossem matria histrica inerte. No caso particular da histria da constituio e do Estado, isto leva a uma sua absoro pela histria das ideias polticas ou, no outro extremo, pela histria de pendor sistmico ou de pendor bio-prosopogrfico da prtica poltica. XE "Categorias (histria das)" Em todo o caso, apesar de, conjunturalmente, este ser o tpico a ser sublinhado, o perigo de uma histria constitucional meramente dogmtica ou seja, reduzida histria dos conceitos ou dos textos constitucionais, como se eles fossem entidades separadas do resto da prtica social , como foi feita, durante dcadas, pelos juristas, no est definitivamente afastado, nomeadamente entre os historiadores do direito. Da que, lidando ns aqui sobretudo com um discurso o discurso constitucional -, no podemos nunca deixar de o descrever em toda a sua complexidade. Ou seja: se ele constitui um conjunto de mensagens emitidas com intenes originrias, tambm entendido por receptores (o que diferente de destinatrios) com especficos horizontes de leitura e diferentes intenes de apropriao; se nele se podem verificar invenes e sentidos novos, ele tambm , em contrapartida, limitado por um vocabulrio e uma gramtica que carreiam continuidade; se se trata de uma realidade mole, quase imaterial, de textos e de palavras, incarna e realiza-se atravs de dispositivos duros, constitudos por pessoas, artefactos materiais, sistemas de organizao; finalmente, se o direito no , directamente, poltica (porque a justia no se costuma confundir, nos nossos valores sociais, com a oportunidade), o certo que as solues jurdicas tm seguras e inevitveis consequncias polticas.3. A construo do Estado como ente imaginrio.

Mas, afinal, o que isso de Estado XE "Estado:conceito" \i ? A palavra muito antiga na tradio poltica europeia. status, stato, estat, estado, estate, Staat significa antes de tudo um bem fundirio e, relacionado com isto e no plural, ou o patrimnio de um prncipe ou os estados territoriais; para alm disto, o estado de uma comunidade, no sentido da sua constituio; depois, a corte de um prncipe, o seu regime e as esferas da sua poltica; at, finalmente, ser utilizado como sinnimo de Res publica (Gemeinwesen, coisa pblica), na Itlia desde 1500. na Frana no decurso do sc. XVI, em Inglaterra e j muito continuamente na Alemanha no sc. XVII. Enquanto que em Frana j no sc. XVII se falava de tat souverain. Na Alemanha, porm, isto s ocorre no sc. XIX. Na verdade, a expresso domina a linguagem poltica alem desde ento, enquanto que em Frana e, sobretudo, em Inglaterra, a expresso desempenhava um papel secundrio, ao lado das expresses rpublique>, nation, country e outras semelhantes.

Na linguagem poltica contempornea, a expresso recebeu um contedo forte da publicstica alem do sc. XIX.

Os juristas alemes finalizaram a teoria do Estado, atribuindo-lhe personalidade jurdica e desenvolvendo de forma correspondente a sua definio, por volta de 1837. A partir disto, construram as seguintes caractersticas ou pretenses do Estado moderno: 1. Um territrio, como espao de soberania exclusiva; 2. uma populao, como conjunto de pessoas a assente e associadas de forma duradoura; 3. um poder soberano, que (a) na ordem interna significava o exclusivo da fora legtima e (b) na ordem externa significava a independncia jurdica em relao a outras instncias. A unidade estrita do territrio, do povo e do poder representavam uma espcie de denominador comum. Apenas existiria um poder de Estado, falando a populao do Estado, composta de indivduos juridicamente associados entre si, nica lngua.

Como j acenmos e como o mesmo W. Reinhard refere, a definio jurdica , no entanto, insuficiente para os historiadores. Se se quiser estudar o equilbrio global dos poderes numa sociedade, tem que se constatar que a forma contempornea de Estado, tal como os juristas oitocentistas a configuraram, apenas existiu entre os finais do sc. XVIII e os meados do sc. XX. E, mesmo neste arco de tempo, a estrutura estadual formal esteve longe de cobrir todas as articulaes de poder que se combinam na estrutura global da sociedade.

A ideia de Estado incorpora XE "Estado:e sociedade civil" \i , a partir dos finais do sc. XVIII, uma referncia muito forte monopolizao do poder poltico, constituio de um centro poltico nico na sociedade; a qual, por isso, fica vazia de poder de imperium e organizada, apenas, por relaes polticas paritrias, entre cidados iguais, de natureza contratual (sociedade civil, sociedade civil sem imprio).

A ideia de que na sociedade h, ou deve haver, apenas um centro poltico teve um parto longo e difcil no pensamento poltico ocidental. Perdidas as concepes estadualistas romanas - embora no os textos que as expressavam -, o mundo medieval e moderno viu o poder como uma realidade repartida por diversssimos plos sociais, cada qual dotado da sua esfera poltica (jurisdicional) autnoma.

Um deles era, decerto, a coroa. Mas custou muito a implantar-se a concepo de que as prerrogativas poltico-jurisdicionais desta fossem de natureza diferente das dos outros centros polticos. Que existiam direitos naturalmente pertencentes ao rei (regalia, direitos reais) era admitido desde o sculo XII; que esses direitos lhe pertencessem de maneira forosa e inseparvel, isso foi ponto sobre que a doutrina hesitou e que a prtica desmentiu at muito tarde. Que ao rei competia uma jurisdio suprema (majestas, mayoria) tambm era pacfico; mas que esta equivalesse a um poder no partilhado, livre de quaisquer constrangimentos internos ou externos, eis o que ningum - nem porventura J. Bodin (1530-1596) - conseguiu estabelecer at aos finais da poca moderna.

Em Portugal, concretamente, a recepo das teorias absolutistas, em desenvolvimento no resto da Europa, foi dificultada pelo pronunciado particularismo poltico da Segunda Escolstica peninsular e pelo pluralismo efectivo do sistema poltico-institucional. No entanto, nos finais do sculo XVIII, as ideias correntes nos crculos intelectualmente dirigentes tinham sofrido uma profunda mutao. O iluminismo pombalino tinha conseguido impor a ideia do carcter ilimitado absoluto do poder real. Na Deduco Chronologica XE "Deduco Chronologica" \i (1767) j se afirma que o governo monrquico aquele em que o supremo poder reside todo inteiramente na pessoa de um s homem, o qual homem, ainda que se deva conduzir pela razo, no reconhece contudo outro superior (no temporal) que no seja o mesmo Deus; o qual homem deputa as pessoas que lhe parecem mais prprias para exercitarem nos diferentes ministrios do governo; e o qual homem, finalmente, faz as leis e as derroga, quando bem lhe parece (II, p. 640). E obra que orientar a formao dos juristas portugueses at aos meados do sculo XIX, as Institutiones iuris civilis lusitani [Instituies de direito civil (= dos cidados) portugus] (1780-1793), de Pascoal de Melo XE "Melo, Pascoal de" \i , abre com a declarao de que no direito supremo do imperante se contm tudo o que necessrio para a defesa da cidade e para fazer tudo aquilo sem o que no se pode obter de modo cmodo a segurana, tanto interna como externa, e a salvao do povo, que a lei suprema (I, 2.).

A unidade do poder poltico no foi sempre explicada da mesma forma. Para o jusnaturalismo contratualista, o seu fundamento era a unidade da prpria comunidade humana que tinha estabelecido o pacto social originrio. Para os adeptos da monarquia pura (como, entre ns, Pascoal de Melo ou Francisco de Sousa e Sampaio) - que viam na conquista e na sucesso a origem do poder do rei -, era a unidade da prpria pessoa do rei, como senhor nico e exclusivo de todos os sbditos, embora o facto de o seu poder se exercer em funo do bem-estar da sociedade exclusse o carcter patrimonial do Estado. Finalmente, para a ltima vaga jusnaturalista, j identificada com o iderio democrtico, o fundamento da unidade do poder supremo, ou soberania, era a unidade da prpria Nao.

A equivocidade dos seus fundamentos tericos assegura, assim, que esta ideia de unidade e exclusividade do poder poltico - que se comeara a gerar com o contratualismo da escolstica franciscana, ainda nos finais da Idade Mdia, que se robustecera com o contratualismo aberto dos grandes pensadores polticos de Quinhentos e Seiscentos (Jean Bodin, Th. Hobbes), que se vulgarizara com a difuso europeia do jusracionalismo alemo (S. Pufendorf, Chr. Thomasius, J. G. Heineccius), que se legitimara, do ponto de vista democrtico, com a adeso de, por exemplo, J. J. Rousseau - realiza, sem problemas, o trnsito do despotismo iluminado para os regimes democrticos revolucionrios, constituindo um pano de fundo, permanente e progressivamente mais ntido, da evoluo do pensamento poltico moderno e contemporneo.

4. A cultura constitucional dos finais do Antigo Regime portugus.

O pensamento poltico do Iluminismo portugus tardio esteve j interessado nas temticas daquilo que, depois, veio a ser o pensamento constitucional. Tendo ventilado pela primeira vez ou, pelo menos, de uma forma nova - alguns dos pontos centrais do constitucionalismo contemporneo.

Um deles foi o do carcter voluntrio da ordem poltica: o direito e a constituio teriam sido institudos pelo legislador ou pelo legislador primitivo, no contrato social; ou pelo legislador derivado, ao abrigo dos poderes que lhe tinham sido conferidos por aquele contrato. E no, como pretendera o naturalismo do direito comum clssico, colhidos (pelos juristas) da natureza e da tradio.Outro foi o de que a constituio devia ser escrita e solenemente codificada, sob a forma de um texto legal fundamental.

Ambas as ideias so frteis em consequncias tericas e normativas.4.1 O direito, entre lei e razo.

O tpico da necessidade de considerar a vontade do prncipe, tal como estava formalizada na lei, como fonte exclusiva de direito, suprimindo a confuso e a anarquia resultante de um quadro pluralista das fontes de direito (desde o costume s decises judiciais), comeou a ser difundido em Portugal nos incios da segunda metade do sc. XVIII. A prpria semntica o atestava: comea-se a notar uma tendncia para usar, em substituio da palavra lei XE "Lei:Iluminismo" \i que remetia para a atitude passiva de ler algo que j estava escrito , a palavra constituio XE "Constituio:Iluminismo" \i de con+statuere, estabelecer conjuntamente para designar as providncias jurdicas emanadas da vontade real. O carcter eminente da lei implicava, porm, uma mudana dramtica na arquitectura do sistema jurdico; e isto levou muito tempo a consumar-se, como veremos. O exemplo desta poltica das fontes tradicionais do direito comum em relao lei , em Portugal, a Lei da Boa Razo XE "Lei da Boa Razo" \i (19.8.1769). A Lei tinha por fim modificar radicalmente o quadro das fontes de direito, tal como resultava das Ordenaes XE "Ordenaes" \i do reino, desde o sc. XV (Ordenaes afonsinas, 1446; Ordenaes manuelinas, 1512; Ordenaes filipinas, 1604), nomeadamente em face da interpretao doutrinal e jurisprudencial que a estas era dada. O primeiro conjunto de determinaes da Lei dizia respeito aos costumes, jurisprudncia e doutrina. A estratgia era, em qualquer dos casos, desvaloriz-los em face da lei. Relativamente aos costumes, a Lei punha-lhes exigentes condies de vigncia, quer quanto sua generalidade e antiguidade, quer quanto ao seu contedo, ao dispor que eles teriam que ser conformes aos princpios da boa razo, bem como s determinaes das leis (ibid.).A Lei tambm enfraquecia fortemente a relevncia das fontes doutrinais tradicionais, no apenas ao reafirmar que os direitos romano e cannico o que, nesta altura, queria sobretudo dizer, a doutrina romano-canonstica apenas vigoravam na falta de lei do reino, mas tambm ao negar valor vinculativo Glosa de Acrsio e aos Comentrios de Brtolo ( 13), obras que, directa ou indirectamente, tinham condicionado toda a doutrina anterior.

No entanto, aquilo que costuma ser apontado como o passo inicial desta ascenso da lei parece preparar antes a primazia da razo, de uma razo agora ligada modernidade e no tradio. De facto, se a Lei fechava uma porta doutrina, abria-lhe, em contrapartida, uma outra. Na verdade, a Lei estabelecia que costumes e direito romano s vigorariam se no contrariassem os princpios da Boa Razo ( 9). Comea aqui, justamente, o filo que vai determinar o futuro das fontes de direito durante os prximos cem anos, pelo menos. Boa razo XE "Boa razo" \i era, desde logo, o padro geral a que qualquer norma jurdica se devia conformar. E, por isso, a razo tanto devia constituir o esprito da legislao rgia ( 14) como transformar-se no critrio de validade dos costumes e do direito romano.Esta boa razo como esprito das leis dos monarcas iluminados - podia ainda recolher-se directamente de uma norma jurdica em vigor. Por isso se estabelecia que, nas matrias modernas relacionadas com a poltica (polcia), a economia, o comrcio e a navegao , vigorassem no Reino, as leis das naes crists, civilizadas e polticas, que traduziam as aquisies da Aritmtica Poltica, e da Economia do Estado ( 9). Constituindo aquilo a que se passar a chamar o Direito pblico universal. Na sequncia destas concluses, o ensino do direito tinha que ser mudado correspondentemente. Assim, os Estatutos da Universidade de Coimbra, reformados em 1772, criaram uma cadeira de Direito natural, pblico e universal, e de Direito das gentes (Estatutos da Universidade, III, II, V, 3), comum s duas Faculdades jurdicas (Leis e Cnones). na doutrina produzida no mbito desta ltima disciplina que se formam as categorias com que o direito pblico ir lidar at bem depois da revoluo liberal. De facto, o compndio do austraco Carlos Antnio Martini , que veiculava as posies do jusnaturalismo holando-alemo (Grcio, Pufendorf, Wolff, Thomasius, etc.), manteve-se em uso nas cadeiras de direito pblico durante mais de trs quartos de sculo . Da que as bases filosficas do iluminismo contratualista se tenham adaptado basicamente teoria poltica do primeiro liberalismo, da qual apenas destoava o mtodo metafsico e dedutivista do jusracionalismo.4.2 As ideias constitucionais na polmica sobre o Novo Cdigo XE "Novo cdigo" \i

XE "Leis fundamentais" \i .Com esta ideia de um direito baseado na razo combinava-se uma outra a de um direito harmonicamente disposto numa compilao que escapasse confuso e transitoriedade da legislao corrente e que pudesse constituir, quer um repositrio de base fundamental do direito do reino, quer - ao mesmo tempo - o acquis inderrogvel da cincia da legislao (por sua vez, aplicao de uma srie de cincias a montante a do direito natural, a da economia, a da polcia, a da estatstica). Este monumento o cdigo, entidade que se vai colocar como um objectivo estratgico da poltica e da cincia do direito durante mais de um sculo.Num decreto de 31.3.1778, a rainha D. Maria I tendo em conta que a felicidade das naes no podia conseguir-se sem um entendimento claro, certo e indubitvel das leis, cuja inteligncia se encontraria obscurecida pela sua multiplicidade e obsolescncia - decidia criar uma Junta de ministros para examinar a inmera, dispersa e extravagante legislao que at hoje se tem observado, mas tambm a que compe o corpo das Ordenaes do Reino, recompondo-a sob a forma de um Novo Cdigo. Nisto, a Rainha conformava-se com a doutrina ento dominante sobre a necessidade de reduzir e de sistematizar o corpo legislativo, alm de alinhar com outros reinos em que existiam idnticas preocupaes e em que projectos semelhantes comeavam a ser ventilados (Toscana, Sardenha, ustria e Prssia). O projecto do Novo Cdigo falhou, de momento, apenas tendo sido aprovado, anos depois, um Cdigo penal militar (aqui, tambm, em virtude o do esprito reformista que o Conde reinante de Schaumburg-Lippe tinha introduzido na organizao militar portuguesa).

Embora as Ordenaes no tivessem muito que ver com o que hoje entendemos ser uma constituio, o facto que, em certos aspectos, elas eram consideradas como uma lei fundamental, na medida em que, por exemplo, no podiam ser revogadas ou dispensadas sem uma expressa meno. Foi talvez por isto e tambm porque a ideia andava no ar que a questo da definio, num acto legislativo escrito, das Leis fundamentais do Reino foi levantada pelos juristas que compunham a Junta do Novo Cdigo.Um deles era Antnio Ribeiro dos Santos, que no prprio ano em que em Frana rebentava a Revoluo despoletou em Portugal uma dura discusso sobre o contedo das leis fundamentais com o mais notrio dos jurisconsultos portugueses de ento, Pascoal Jos de Melo Freire, a quem tinha sido entregue a redaco do projecto do Livro I - sobre o direito pblico - do Novo Cdigo.

O projecto de Melo Freire referia-se s leis fundamentais logo na seco inicial Das leis e os costumes (Livro II, tit. II): Sob o nome leis em Portugal se entendem em primeiro lugar as fundamentais do Estado, entre todas as mais sagradas, que regulam a sucesso do reino, e confirmam o nosso poder absoluto e independente ( 1). Seguia, no pargrafo seguinte, a definio do conceito de lei, tomado agora numa acepo inferior: Vm tambm debaixo deste nome todas as constituies e ordenaes, que os Senhores Reis destes reinos, fizeram desde o princpio da monarquia, ou em cortes, ouvidos os povos antes de erigidos os tribunais e relaes, ou com o seu [destes tribunais] parecer e dos ministros do seu conselho, e de outras pessoas, que os mesmos costumam sempre ouvir sem prejuzo da sua suprema autoridade e soberania ( 2). Para Melo Freire havia, portanto, uma distino clara entre as leis fundamentais, relativas sucesso do reino, e a legislao ordinria. Esta sua doutrina que havia de ser desenvolvida, poucos anos depois, nos seus manuais de direito ptrio (Historia iuris civilis lusitani, 1778; Institutiones iuris civilis [criminalis] lusitani, 1780-1793)- baseava-se, no no organicismo da cultura jurdica tradicional, mas num pensamento voluntarista. Assim, para Melo Freire, o poder dos reis de Portugal, no derivava de qualquer eleio de D. Afonso Henriques, nem nas Cortes de Lamego, nem no campo de batalha, em Ourique; tambm no decorria de graa papal; mas, antes, do dote e doao feita pelo imperador Afonso VI de Leo a sua filha D. Teresa e seus sucessores (Historia, 38, nota). Quanto s primeiras leis portuguesas (primordiales leges) feitas durante as Cortes de Lamego (que a historiografia oitocentista havia de provar apenas lendrias), a nica lei fundamental (ou Lex Status, decidida pelo povo) regia a sucesso da coroa. As restantes, relacionadas com outras matrias (nobreza, juzes ou crimes), teriam sido feitas pelo rei sem a participao do povo.

Foi este conceito limitado de lei fundamental reduzida regra de sucesso no trono - que se tornou comum na doutrina poltica do ltimo absolutismo portugus . E foi tambm contra ele que reagiu Antnio Ribeiro dos Santos, em nome de um conceito mais compreensivo e mais limitativo para o absolutismo real. Para ele, o direito pblico nacional, que devia ser objecto de codificao, dividia-se em dois ramos. Um deles era o das Leis fundamentais ou primordiais do Estado, produto de uma conveno tcita ou expressa (leis do reino, constituio fundamental); o outro ramo era o das leis pblicas civis, emanadas do soberano (leis do rei, Estado pblico da Nao). Por isso, o contedo deste livro II do Novo Cdigo sobre as leis e o costume devia ser um de dois. Ou abrangia o direito pblico constitucional e, ento, devia conter: (i) a forma suprema do governo (summum imperium); (ii) a ordem de sucesso da coroa; (iii) a forma de exerccio dos direitos do soberano no direito particular portugus; (iv) o sistema da administrao pblica; (v) os direitos e deveres dos particulares relativamente ao prncipe; (vi) os privilgios das ordens que constituam o Estado; (vii) o estatuto das cortes; (viii) o direito da fazenda pblica; (ix) as matrias de interesse pblico, como a populao, a religio, a educao, a polcia, etc.. (ibid., Exame do plano, 6). Ou, ento, se no Cdigo se decidisse no incluir este direito constitucional, no devia to pouco haver qualquer referncia s leis fundamentais (ibid., Notas ao ttulo dos direitos reais [e seguintes], p. 72).

Ribeiro dos Santos XE "Santos, Antnio Ribeiro dos" \i detalhava um pouco cada um dos pontos relativos ao direito fundamental. O primeiro tpico, relativo s leis fundamentais, obrigaria a referir, no apenas as leis das Cortes de Lamego, no incio do Reino, sobre a forma monrquica do governo e a sucesso da coroa, mas tambm as leis subsequentes sobre a matria (leis das Cortes de Lisboa de 1674, sobre tutelas, e leis das Cortes de Lisboa de 1698 [12.04], sobre a sucesso de colaterais). Estas leis deveriam ser cuidadosamente distinguidas das leis meramente civis e dependentes da vontade do prncipe, pois estavam acima do poder, tanto do povo, como do rei, constituindo, por tanto, a base do direito pblico nacional contido no Novo Cdigo (ibid., n. I; cf. tambm XXI). O segundo tpico dizia respeito ordem de sucesso e qualidades dos sucessores, prerrogativas dos prncipes consortes, tutelas rgias e regncias, testamentos e juramentos rgios (ibid., ns. II/X). O terceiro tpico era o relativo aos direitos e liberdades XE "Liberdades:Iluminismo" \i dos povos, como corpo da nao, e no apenas como particulares (ibid., p. 21/22), uns e outras jurados pelo rei quando acedia ao trono; bem como aos meios de exercer estes direitos e de reagir contra a sua violao. O autor estava consciente da delicadeza do tema, no apenas em face do contexto poltico europeu, mas ainda porque ele no deixava de reconhecer expressamente a natureza absoluta e pura do poder dos monarcas portugueses, em que todo os poderes da soberania residem na nica pessoa de nossos prncipes (ibid, p. 22). No fica muito claro como que o autor acomoda uma monarquia pura e absoluta com estes direitos e privilgios dos povos. Como se nota toda a dificuldade de conceptualizar o acto de outorga de um Cdigo que garanta estes direitos; a soluo que encontra parece ser a de que se tratava de um misto de reconhecimento da natureza da sociedade e de acto gracioso do monarca. Fosse qual fosse o conceito, o contedo normativo era claro: direitos da nao, como corpo politico, definidos por uma lei fundamental reduzida a escrito, e dotados de meios de garantia. O quarto ponto respeitava s ordens do reino, sua constituio, deveres especiais e privilgios (n. XII), tudo complementado por um ulterior ponto (n. XIX), em que se tratava a enumerao e estatuto das ordens de forma que se afastava bastante da tradio. O quinto ponto compreendia o tema das cortes: natureza, constituio, atribuies, formalidades, processos de deciso, autoridade das suas deliberaes (ibid, n. XIII). O sexto ponto abrangia os regimentos e estatutos dos magistrados, oficiais da casa real e dos conselhos palatinos: suas diferentes categorias, sua hierarquia e sua jurisdio. O que preocupava Ribeiro dos Santos no era tanto uma descrio atomstica de regulamentos e processos, mas a arquitectura do sistema das magistraturas pblicas, do governo e da administrao do reino (ibid., ns. XV-XVI, XX). O stimo ponto respeitava ao governo municipal (n. XVII), bem como ao das colnias, enquanto territrios particulares segundo as circunstncias do pas, e de seus estabelecimentos prprios (n. XVIII). Os crimes pblicos eram matria de outro ponto (ibid., n. XXII), justamente o ultimo antes de entrar numa seco bastante detalhada sobre o novo direito de polcia (economia, populao, indstria e artes, comrcio, navegao, educao e cincia) (ibid, ns. XXIII-XXIX). Finalmente, os direitos respectivos da Igreja e do Estado (ibid., n. XXX), tema sobre que o autor tinha muita reflexo, e em que se promove um controle mais apertado do Estado sobre a disciplina interna da Igreja, que evitasse escndalos e abusos.

O projecto constitucional de Antnio Ribeiro dos Santos era muito semelhante a outros programas europeus (nomeadamente alemes e italianos) de reforma constitucional no revolucionria. O poder do rei era tido como limitado, ou porque estava circunscrito por pactos tradicionais entre os reis e os sbditos, ou porque devia ser exercido de acordo com normas estabelecidas pelo rei, pelas quais ele mesmo limitara o seu poder absoluto, embora no, porventura, a sua soberania, como nica expresso da vontade do Estado. A estrutura da sociedade de ordens - concebida como um agregado harmnico de ordens hierarquizadas - era basicamente mantida. Os conselhos, magistrados e corpos municipais viam mantida muita da sua anterior autonomia, embora enquadrados numa estrutura poltica que tendia globalmente para um modelo centralizado e hierrquico. As assembleias de estados (parlamentos, cortes, dietas) mantinham a sua estrutura por corpos (normalmente, clero, nobreza e povo). Ao passo que o direito, para alm de continuar muito longe de se tornar igual para todos, oscilava entre um modelo decisionista (i.e., como vontade do monarca) e um modelo racionalista (i.e., como expresso da razo natural), que s se podiam combinar na base da presuno de que o dspota era tambm iluminado.

No fim de contas, o que existia de verdadeiramente novo era, por um lado, esta ideia de um cdigo constitucional escrito; por outro lado, a ideia de que este cdigo devia tornar claros os respectivos direitos e deveres dos monarcas e dos cidados. Estas duas novidades combinam-se num novo pathos quanto promoo pblica da conscincia do direito (e, tambm, do direito poltico). O grande objectivo era, de facto, a clarificao dos contornos do pacto poltico em que cada cidado participava, a garantia do seu contedo normativo e a promoo da sua pronta execuo. Para isso, o Novo Cdigo (i) deveria ter uma ordem sistemtica que permitisse a economia da exposio e a sua fcil memorizao e (ii) deveria ser curto, livre de excessivos detalhes e prolixidade (ibid, p. 56). Em contrapartida, a rplica de XE "Melo, Pascoal de" \i Melo Freire representa a linha dura do despotismo iluminista. Da que a polmica entre ambos resuma bem o fundamental das posies constitucionalistas portuguesas no prprio ano em que se dava a Revoluo em Frana; ou seja, numa poca em que, tanto o corporativismo tradicional, como o providencialismo puro (ou jus-divinismo), j ofereciam poucos atractivos intelectuais a uma gerao cultural racionalista e bastante laicizada. Em virtude da sua heterodoxia ainda mais crtica com o despoletar dos acontecimentos em Frana a posio de Ribeiro dos Santos permaneceu subalterna. As suas Notas no foram publicadas seno nos meados do sc. XIX. Contudo, a ala reformista do regime foi-se tornando cada vez mais influente nos crculos acadmicos e, mesmo, governamentais, sendo responsvel por vrios projectos de reformas polticas, abortados ou no.

Em contrapartida, as opinies de Melo Freire continuaram a ser as oficiais, moldando a cultura universitria de vrias geraes de estudantes de direito. No entanto, tambm Melo Freire abria, num plano fundamentalmente terico, para outros horizontes, dominados pelo contratualismo e pelo racionalismo, tpicos da teoria constitucional do Polizeistaat: recepo dos princpios do direito pblico universal, subordinao da Igreja ao Estado, anti-feudalismo, anti-corporativismo, etc.. Por isso que, como se dir, a sua influncia vai ser, paradoxalmente, fundadora da cultura jurdica liberal.

Na verdade, para ele, o alcance dos direitos que os sbditos tinham reservado para si era mnimo: no ver alteradas as leis fundamentais (com o estreito mbito que ele lhes dava), dispor do direito de splica, pretender os ofcios do Reino e, como era bvio e nem precisava de ser expressamente dito, ver respeitada a sua propriedade, embora comprimida por um domnio eminente do rei, com o qual Melo Freire e outros reformistas contavam para poder levar a cabo as reformas polticas e sociais indispensveis. E, de qualquer modo, como o pacto tinha sido puro ou seja, tinha sido ilimitada a transferncia de poderes dos sbditos para ao prncipe (salvaguardados, claro, o direito natural destes a ser governados ), todos os direitos que os sbditos pudessem demonstrar estarem em uso eram derivados de concesso gratuita do rei e, por isso, podiam ser revogados por este. Este carcter fundador, na ordem constitucional, da vontade do rei consubstancia-se na ideia de que a sociedade poltica dominada pelo princpio monrquico por outros denominado de prerrogativa rgia; ou seja, pela ideia de que o rei que, com base nos poderes que lhe foram conferidos pelo pacto social, tem o poder de explicitar a constituio.Paradoxalmente, a concepo constitucional de Melo Freire podia estar mais perto da via reformista do que o garantismo histrico-jurdico de Ribeiro dos Santos, pois dava uma mais ampla margem de manobra ao rei para levar a cabo reformas da constituio social. As quais ficariam, pelo contrrio, paralisadas se os equilbrios sociais existentes fossem considerados como garantidos por um direito que se impunha ao prprio rei. Isto fica bem patente na polmica entre Manuel Fernandes Toms e Manuel de Almeida e Sousa sobre a questo dos forais, onde para alm de questes ligadas prova dos ttulos o ponto central de discusso a natureza pblica (logo, revogvel pelo rei) dos direitos de foral ou a sua natureza privada, originria, natural (ou pr-poltica) e, por isso, inatacvel por acto do poder poltico. Mas a questo da inviolabilidade dos direitos adquiridos punha-se tambm em relao a outros pontos centrais de uma poltica de reformas, como as reformas jurisdicionais, que podiam ser dificultadas por uma concepo patrimonialista das jurisdies; ou, ainda, a reforma da burocracia, que exigia que no reconhecesse aos funcionrios o direito aos seus cargos, com a inerente possibilidade de os manter, de os vendar ou arrendar ou de os deixar em herana. de salientar como a ideia de limitao dos direitos (neste caso, dos direitos de propriedade), era, portanto, fundamentalpara levar a cabo um projecto de reformas econmicas, sociais e polticas.

5. A cultura poltica do perodo de transio.

Na verdade, muito claro que, a partir da dcada de oitenta do sc. XVIII, o reformismo jus-racionalista se afirma como cultura poltica dominante nos crculos que pensam, e que ocupam o novo espao pblico da literatura acadmica, dos jornais, das academias, das reparties da nova administrao activa reformista. J no se trata de estrangeirados solitrios e no exlio (exterior ou interior), mas de geraes inteiras que se formam nas novas instituies de ensino surgidas com o pombalismo. Ou a Universidade de Coimbra, reformada no sentido de um racionalismo e experimentalismo voltado para a aco prtica, ou o Colgio dos Nobres e outras escolas militares, onde domina o mesmo esprito reformista de base cientista. A aco formativa destas escolas era continuada na Academia Real das Cincias; era divulgada e discutida nas prprias publicaes acadmicas ou numa imprensa de alta divulgao de que so exemplo peridicos como o Investigador portugus em Inglaterra (1811-1819) ou o Jornal de Coimbra (1812-1820); era ensaiada nas consultas das reparties ou no exerccio dos cargos pblicos entregues a esta elite.

Esta cultura continha j, desde Pombal, todos os ingredientes que permitiam o desenvolvimento do constitucionalismo moderno.

O jusracionalismo XE "Jusracionalismo" desenvolvera, desde o sc. XVII, uma teoria contratualista do poder, nos termos da qual na origem deste estava um contrato pelo qual os sbditos condicionados pela natureza carente de auxlio alheio, associvel, socivel com a Natureza ou a Providncia os dotara - trespassavam para o rei a faculdade de os governar. Se este contrato era revogvel (como entendiam tanto os antigos monarcmacos ou todos os modernos adeptos da deposio de governantes tirnicos) ou no, isso constitua j, do ponto de vista terico, uma questo de detalhe; embora por a passassem importantssimas consequncias no desenho institucional da constituio e dos poderes respectivos do rei e dos parlamentos. Quais os poderes conferidos ao soberano pelo pacto tambm era uma questo secundria, sendo possvel escolher entre a ideia de que todos os poderes tinham passado para o prncipe que, assim, gozaria de um poder puro ou ilimitado ou, pelo contrrio, apenas tinham sido transferidos alguns poderes, carecendo ele de ttulo (ou legitimidade) quando a outros. Porm, comum a todos era, por exemplo, a ideia de que, mesmo numa monarquia pura, certas leis fundamentais que pertenciam prpria natureza da sociedade poltica - no podiam ser violadas pelo rei, como o no podiam ser as leis divinas ou naturais ou os direitos (nomeadamente, de propriedade) dos sbditos que decorriam destas ltimas.

Na Universidade, era isto que se aprendia nos principais compndios das Faculdades jurdicas, onde se formava o pessoal civil dirigente. Tanto nas disciplinas de Direito Natural, como na disciplina de Direito Ptrio.

Na primeira, quer o compndio de J. G. von Heinecke (Heineccius) (Elementa iuris naturae et gentium, Hale, 1738), quer o de Carolo Antonio von Martini (Positiones iuris naturalis, 1764) adoptavam posies contratualistas quanto origem da sociedade poltica.

Na cadeira de Direito Ptrio, Pascoal de Melo seguia, como se viu, as mesmas pisadas. No plano da doutrina sobre a origem do poder, adoptava as posies contratualistas, embora numa verso muito restritiva dos direitos dos sbditos. No plano da organizao institucional do reino, tinha pontos de vista claramente reformistas, atacando com bastante desenvoltura as instituies senhoriais (nomeadamente, quanto legitimidade da tributao senhorial), o corporativismo dos oficiais pblicos (nomeadamente, quanto concepo patrimonialista dos seus cargos), a usurpao pela Igreja dos poderes temporais ou a confuso entre crime e pecado.

O partido mais tradicionalista tinha que se refugiar na ideia de uma monarquia puramente de origem divina, amparando-se nas concepes polticas providencialistas e ao cesaro-papistas, correntes que nem sequer podiam traduzir bem a teoria poltica da escolstica ou da neo-escoltica ps-tridentina, que tinham razes muito fundas na tradio poltica portuguesa. Ou, ento, adoptar uma concepo puramente patrimonial do reino (conquistado e herdado), que tambm carecia de qualquer apoio histrico-jurdico, pois j desde o Cdigo Visigtico (de Recesvindo, ou Liber judicum), vigente na Idade Mdia portuguesa, que a distino entre o patrimnio do rei e o patrimnio da coroa do reino estava bem estabelecida.

So os XE "Juristas:Vintismo" \i letrados destas geraes tardo-iluminista alguns deles, alm disso, juristas muito respeitados (como Manuel Fernandes Toms, Jos Ferreira Borges, Manuel Borges Carneiro, Ricardo Raimundo Nogueira, Francisco Trigoso de Arago Morato) que, juntamente com acadmicos de formao literria ou cientfica e com militares da era post-Lippe, formaro a elite poltica do primeiro liberalismo. sua morte corresponde cronologicamente o ocaso do jusracionalismo como ideologia fundadora do pensamento poltico; facto que, em Portugal, como na Frana ou na Alemanha, se d nos finais da dcada de 30, com o advento do romantismo e do doutrinarismo (v. infra, 11.2).

esta identidade individualista-contratualista que facilita a transio doutrinal entre o reformismo da fase final do Antigo Regime e o perodo ps-revolucionrio. Que permite que Revoluo se chame Regenerao, que o parlamento tome o nome tradicional de Cortes, que o argumento histrico ganhe o peso que teve na fundamentao das solues polticas. Apesar disso, h importantssimas distines a fazer. Nomeadamente, entre (i) um constitucionalismo fundado exclusivamente na soberania, essencial e indivisa, da Nao, (ii) um constitucionalismo como produto de um pacto histrico entre o rei e o reino e (iii) um constitucionalismo outorgado por um soberano que, sendo titular exclusivo e livre do poder poltico, resolve ( obrigado a ) acomodar-se novidade dos tempos, concedendo aos sbditos alguma participao no poder. No primeiro tipo cabem, essencialmente, as Constituies de 1822 e de 1838; no segundo tipo, alguns da srie de projectos constitucionais tradicionalistas de 1823, desde o de Antnio Ribeiro dos Santos ao de Francisco Trigoso de Arago Morato; no terceiro tipo, a Carta constitucional de 1826.

evidente que o imaginrio contratualista XE "Contratualismo" se adequa menos bem a solues constitucionais dominadas pela ideia de poder real absoluto e de origem divina. Desde logo, porque, residindo a legitimidade poltica apenas no monarca, no se percebe bem porque que e com que legitimidade - este aliena parte das suas atribuies polticas nos sbditos. A justificao - ento avanada, por exemplo, no prembulo da Carta constitucional francesa de 1814 - de que isso decorria da diffrence des temps [] en runissant les temps anciens et les temps modernes enfraquecia demasiado o princpio, que assim aparecia como algo em processo de envelhecimento; ou como um princpio em que as razes de legitimidade estavam subordinadas a razes de oportunidade, uma rampa escorregadia em que muitos legitimistas no ousariam sensatamente meter-se. Depois, tambm no se percebe bem como que, uma vez pactada a atribuio do poder a uma dinastia, aquele corpo mesmo que pactou no pode dissolver o pacto; ou seja, no se entende que o poder constituinte se possa alienar definitivamente, nada mais restando aos constituintes originrios do que o poder de rescindir o pacto celebrado no caso de ele no ser cumprido.Todas estas dificuldades se resolvero com a renovao, a partir da segunda dcada do sc. XIX, de um imaginrio organicista, em que a Nao j no aparecia como a entidade que, contratualmente, entregara o poder poltico aos monarcas, mas como uma ordem poltica objectiva, contendo em si mesma a distino entre governante e governados, alm de vrias distines e vrias hierarquias entre os seus membros. Aqui, tanto a legitimidade de quem governa (o reino, a famlia), como o estatuto discriminatrio de quem governado - em maior ou menor grau - por outrem, apareciam com uma explicao consequente. A comunidade (a Nao) no era constituinte, mas constituda (pela natureza); e constituda segundo uma geometria no universal nem igualitria. Ou seja, nem todos os sbditos tinham que pertencer mesma Nao, como nem todos os nacionais tinham que ter capacidade poltica; como nem todos tm necessariamente capcidade civil.O imaginrio corporativo que corresponder ao romantismo, mas tambm a algum liberalismo elitista ter grandes virtualidades constitucionais.

Partindo da constatao de uma Nao XE "Nao:organicismo" \i hierarquizada, constituda por pessoas desiguais, permitir legitimar a desigualdade civil e poltica, negando direitos queles que, naturalmente, constitussem a parte passiva da Nao (os cidados passivos), atribuindo-os apenas aos naturalmente capazes de agir politicamente (os cidados activos). Para alm disso, como copiava a poltica da natureza, podia introduzir na vida poltica nomeadamente no plano do sufrgio e da representao todos os cambiantes da sociedade (desigualmente) unida sob um mesmo governo. Podia discriminar territrios, desqualificar pessoas, majorar o peso poltico da riqueza, da educao, do mrito ou mesmo do nascimento, punir politicamente a etnia, a rusticidade, a profisso, o sexo.

A esta plasticidade que garantia o realismo das solues polticas contra o carcter metafsico e terico das utopias contratualistas o organicismo juntava a virtude de providenciar uma legitimidade autnoma para o poder real, tornando-o independente de qualquer acto contratual fundador, mesmo que perdido no tempo e no lugar. O rei governava porque a constituio social estabelecida o designava para tal. Devia manter, no seu governo, as hierarquias existentes para no substituir ordem o caos, natural liberdade a libertinagem.

Tambm o sufrgio e a opinio pblica mudam de natureza. Um e outra convertem-se em expedientes tcnicos de provocar a decantao da sociedade, deixando emergir a qualidade, ou pelo reconhecimento expresso no voto dos concidados ou pelo xito na pugna pblica das ideias. Nem admira que tais propsitos elitistas convivam bem com propostas de alargamento do sufrgio ou com um especial cuidado com a liberdade de imprensa. que, alargando o nmero dos votantes ou estimulando o prlio das ideias, multiplicam-se os pontos de vista e, com isso, intensificam-se os processos de seleco. Mas no apenas por ter fornecido uma teoria polivalente para a revoluo constitucional que jusracionalismo tardio uma condio essencial para o que acontecer mais tarde. Tambm o no plano menos elevado do desenho institucional do Estado.

Em primeiro lugar, ele que estabelece a ideia-guia de um Estado legal, baseado num direito igual, geral e abstracto, e, por isso, numa cidadania geral (igualdade dos cidados perante a lei). Embora esta ideia nunca tenha podido triunfar sobre o princpio da diferenciao dos sbditos em ordens ou estados, levou, no entanto, em Portugal, abolio de certas distines polticas (como a de cristos novos e cristos velhos), bem como a certas medidas anti-esclavagistas. Assim, esta aplanao da sociedade preparada pelo despotismo iluminado (como um risco calculado, tendo em vista que a exaltao das ordens privilegiadas era essencial ao decoro da monarquia) prenuncia e prepara a abolio dos privilgios e a instituio da igualdade civil e poltica abertamente formulada pelo liberalismo.

Em segundo lugar, ele que tem a pretenso de fundar o direito, no na pura e arbitrria vontade do soberano, mas num clculo cientfico, baseado na natureza da sociedade e do homem. Direito que, por isso, escapava, se no s contingncias dos lugares (para as quais Montesquieu alertara), pelo menos s contingncias do tempo, podendo ser formalizado em documentos legislativos tendencialmente duradouros os Cdigos, nos quais estivessem consagrados os princpios reguladores da sociedade civil, do mesmo modo que nas Constituies estavam prescritos os que ordenavam a sociedade poltica. Da a equivalncia constitucional entre Cdigo XE "Cdigo:e Constituio" \i

XE "Liberalismo:Adam Smith" \i e Constituio, ento claramente percebidae ultimamente to sublinhada.

Em terceiro lugar, o projecto de centralizao do poder nas mos dos monarcas absolutos, no apenas antecipou a centralizao do poder nas assembleias absolutas do liberalismo uns e outros insusceptveis de tirania -, como preparou o reforo do Estado que iria ser necessrio para impor a nova ordem aos estados e corporaes privilegiados e constituir os fundamentos da nova sociedade burguesa. Para alm disso, a centralizao do governo traduziu-se na construo de uma panplia de aparelhos administrativos (desde o sistema de ensino pblico, instituies bancrias e de crdito, companhias de fomento, prises e asilos, reparties administrativas, etc.) que o liberalismo iria, paradoxalmente, utilizar para construir a nova sociedade civil, em todos os seus vectores. Finalmente, a centralizao jusracionalista trouxe consigo uma nova tica de servio pblico, um esprito de racionalizao e um conceito de governo como cincia sobre que se apoiar a funo estadual na poca contempornea.Mais longnqua da cultura poltica portuguesa desta poca estava o liberalismo escocs, cujo principal representante , sem dvida, Adam Smith XE "Smith, Adam" (1723 1790). Nele se combina a ideia de uma natural harmonia social, misteriosamente resultante, no tanto de um sentimento inato de sociabilidade, mas, pelo contrrio, do livre curso da busca do interesse prprio, conatural a cada indivduo: Cada indivduo esfora-se continuamente por encontrar o emprego mais vantajoso para todo o capital de que dispe. Na verdade, aquilo que ele tem em vista o seu prprio benefcio e no o da sociedade; mas, os cuidados que toma em vista da sua prpria vantagem levam-no, naturalmente, ou melhor, necessariamente, a preferir o emprego mais vantajoso para a sociedade [] Na realidade, ele no pretende, normalmente, servir o Bem pblico, nem sabe at que ponto est a ser til sociedade. [] Pensa apenas no seu prprio ganho; neste, como em muitos outros casos, est a ser conduzido por uma mo invisvel para atingir um fim que de algum modo faz parte das suas intenes. Ao tentar satisfazer apenas o seu interesse pessoal, ele promove, frequentemente, o interesse da sociedade, com mais eficcia que se realmente o pretendesse fazer. Neste sistema, o papel do soberano podia ser mnimo: No sistema da liberdade natural o soberano tem somente trs deveres a desempenhar [...]: o primeiro proteger a sociedade de qualquer violncia ou invaso por parte das outras sociedades independentes. O segundo proteger, tanto quanto possvel, cada membro da sociedade contra a injustia ou opresso de qualquer outro membro, ou seja, o dever de estabelecer uma rigorosa administrao da justia. E o terceiro criar e manter certas obras e instituies pblicas que nunca atraiam o interesse privado de qualquer indivduo ou pequeno grupo de indivduos na sua criao e manuteno, na medida em que o lucro no compensa as despesas [...]. A ltima parte do texto deixou permanentemente algumas incertezas sobre o papel do Estado, j que acabaram por aparecer cada vez mais sobretudo na fase do desenvolvimento do capitalismo industrial destas tarefas socialmente necessrias, mas cujos custos excediam os benefcios que podiam aportar a um privado. Contudo, a mensagem acerca do papel apenas subsidirio do Estado era clara, voltando-se, desde logo, contra os projectos intervencionistas, promotores, tutelares, regulamentadores do Estado de Polcia. Mas no menos contra todas as tentativas de engenharia social dirigista, que substitusse a dinmica natural e concreta das instituies por um ritmo organizador artificial e abstracto. Embora compartilhasse do esprito de reformas do partido whig, Smith encarava a mudana social como uma tarefa gradual, constantemente testada pela capacidade de ganhar a adeso do senso comum, de entrar nas prticas quotidianas e espontneas. Por isso, legiferao tpica dos Estados continentais, preferia a paulatina e casustica inovao do common law; a qual, no fundo, no diferia muito dos processos de construo da opinio comum em vigor na doutrina jurdica continental.Do pensamento poltico alemo deste perodo muito haveria que dizer, se o nosso tema no fosse a histria poltico-constitucional portuguesa. Da Alemanha, chegou-nos a influncia eficaz da doutrina poltica iluminista, a que j nos referimos. Todavia, a Alemanha era tambm a ptria da cincia da polcia, entendida como cincia do governo e, por isso, com reflexos na doutrina da constit