inclusão digital (vivências brasileiras)

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incluso digital VIVNCIAS BRASILEIRAS

Maurcio Falavigna

incluso digital VIVNCIAS BRASILEIRAS

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)ndices para catlogo sistemtico: 1. Incluso digital e sociedade : Sociologia 303.4833 Falavigna Incluso digital : vivncias brasileiras / Falavigna, Maurcio Serrano. -- So Paulo : IPSO - Instituto de Projetos e Pesquisas Sociais e Tecnolgicas, 2011.

1. Cidadania 2. Computadores e civilizao 3. Cultura digital 4. Incluso digital 5. Incluso digital - Brasil 6. Polticas pblicas 7. Tecnologia da informao I. Serrano, Maurcio. II. Ttulo.

11-00933 ndices para catlogo sistemtico: 1. Incluso digital e sociedade : Sociologia 303.4833Impresso no Brasil Vero de 2011

CDD-303.4833

Maurcio Falavigna formado em Histria, trabalhou como jornalista e como redator. Trabalhou no Instituto Florestan Fernandes, no projeto Sampa.Org. Em seguida foi diretor do Sampa.Org entre 2003 e 2010. consultor do IPSO desde 2008. Atualmente trabalha na Provncia Marista do Rio Grande do Sul, onde coordenador pedaggico do Polo Regional Sul do Telecentros.BR.

COLABORADORES:

Entrevistas: Silvana Lemos jornalista, Ps-graduada em Mdia, Tecnologia da Informao e Novas Prticas Educacionais PUC/RJ 2009. coordenadora pedaggica da Rede de Formao do Polo Centro-Oeste do Programa Telecentros.BR e atuou como coordenadora do Projeto Cyberela de Incluso Digital de 2002 2007.

Produo: Carolina Santos formada em Letras/Portugus pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo Puc/SP e atua na rea de incluso digital e comunicao comunitria desde o ano de 1999. Foi reprter free-lancer da revista Criativa da Rede Globo, atuou nos projetos Criana Esperana, Jovens Urbanos do Cenpec, nas ONGs Instituto Arte e Sustento e Sampa.Org. Atualmente trabalha no IPSO. Design, Capa e Diagramao:

BrainBox graphicDesign contato - [email protected]

Realizao: IPSO - Instituto de Pesquisas e Projetos Sociais e Tecnolgicos Presidente: Levi Bucalem Ferrari Vice-presidente: Elza Chaim Rezk Diretora Financeira: Mariane Ottati Nogueira

APRESENTAO pg. 9 MUITOS AGRADECIMENTOS, ALGUNS LAMENTOS, DUAS NOTAS pg. 12 UMA BREVE INTRODUO pg. 14 I. AMBIENTES E CONTEXTOS, IDIAS ... pg. 18 II. OS PROGRAMAS PBLICOS: UMA CORRIDA POLTICA pg. 25

SUMRIO

Um balano de ideias Outros pontos de destaque

IV. OS TELECENTRISTAS: pg. 73

O panorama em 2000 Iniciativas internacionais Em So Paulo, a corrida pela primazia A implantao do Sampa.Org A insero na comunidade Doze meses de projeto-pilotoLembranas do Sampa.Org Do outro lado do rio Porto Alegre: um programa pblico pioneiro Os telecentros de Porto Alegre O Governo Eletrnico paulistano e a Incluso Digital:III. FORMAO DE CONCEITOS pg. 54

2002, um ano perdido para a Oficina O apoio da SLTI e de Rogrio Santanna A continuidade de um modelo que no parecia certo O formato do evento Multiplicando as vozes Projeto Cyberela as rdios - telecentros A Oficina de So Paulo: em cena, o telecentrista Conexes internacionais e outros saldos O software livre entra em cena na Oficina Software livre e participao popular Aprendi a sempre aprender Telecentros gratuitos e desenvolvimento local 2005, a 4. Oficina para Incluso DigitalV. CARTAS DA SOCIEDADE CIVIL pg. 110

O Governo Federal e a Incluso Digital em 2001 O parto da 1a Oficina Os trabalhos e a relatoria A plenria e o documento final

Cultura Digital Projetos que vingam, projetos que sofrem Os infocentros de So Paulo Salvador e Belm: subindo a ladeira O Tabuleiro Digital As relaes entre a Educao e as TIC O lanamento do ONID A Oficina chega regio Norte

Da sociedade civil ao Governo, de Norte a Sul A organizao local Entrevista com Jader Gama Um Balano do Navegapar Entre Belm-BH Entremundos, entretempos, entreatos, elegiaVI. DAS GERAIS A BRASLIA: pg. 160

CRDITO DAS IMAGENS pg. 213 NOTAS pg. 214 ANEXOS pg. 216

O passo frente iniciou-se um ano antes O lanamento do Telecentros.BR um primeiro anncio pblico De volta a Braslia Plano Nacional de Banda Larga e Telecentros.BR Expectativas O encerramento da 9 OficinaVII. OS CENTROS DE RECONDICIONAMENTO DE COMPUTADORES CRCs pg. 189

A experincia de Porto Alegre O impacto do CRC-CESMAR na comunidade Outros centros e nmeros atualizadosVIII. O OBSERVATRIO NACIONAL DE INCLUSO DIGITAL ONID pg. 200

A evoluo do ONIDCONCLUSO pg. 210

APRESENTAO

No incio do sculo XXI, a sociedade brasileira intensificou o uso das Tecnologias de Informao e Comunicao (TIC). Como tantos outros fenmenos em nosso Pas, isso ocorreu de forma profundamente desigual. De maneira geral, ficou cada vez mais claro que o acesso s TIC influenciam intensamente ao acesso a poder, riqueza e a oportunidades. Desta forma, a excluso digital impe-se como fator de agravamento da prpria excluso social. Portanto, a luta pela incluso digital impe-se, acima de tudo, como condio para uma sociedade mais justa e igualitria. Iniciativas e processos que possibilitem a obteno dos conhecimentos e vivncias necessrias para utilizar as linguagens e os recursos de TIC so cruciais para que os cidados possam, efetivamente, participar, em igualdade de condies, da Sociedade da Informao. A incluso digital assume hoje papel central para o desenvolvimento das naes ao alavancar o conjunto da sociedade para um patamar onde o acesso, a produo, a divulgao, a organizao e o processamento de informao e conhecimento se tornam geis, corriqueiros e abrangentes. Este processo, que se acelerou no Brasil na ltima dcada, impacta fortemente na participao do Pas no contexto mundial, influenciando o desenvolvimento social, econmico, poltico, ambiental, cientfico e tecnolgico bem como a prpria consolidao da cultura brasileira no mundo moderno.

Um aspecto disso tudo, que toca de maneira especial esta Empresa, o potencial de ampliao do alcance das polticas sociais que advm com a incluso digital. Afinal, a Dataprev responsvel por processar informaes que permitem a mais de 27 milhes de pessoas receber benefcios previdencirios e a acessar outros servios desta modalidade, de forma gil e precisa. Desta forma, natural a Dataprev ter como foco de suas aes de responsabilidade social o apoio incluso digital. Ao longo de dez anos, educadores, ativistas, agentes comunitrios, gestores pblicos, profissionais de tecnologia e tantos outros alteraram a realidade da incluso digital no Brasil, com a montagem de telecentros comunitrios. Esta efervescente comunidade est criando o que promete ser uma das mais importantes polticas pblicas a partir de solues e experincias intensamente brasileiras. Patrocinar um livro cujo objetivo contar esta histria e relatar as melhores prticas nesse campo mais do que uma obrigao: , tambm, uma satisfao. Boa leitura! Rodrigo Assumpo Presidente da Dataprev

Para Mari, pelo amor e dedicaco ao IPSO e aos seus, e por criar o ambiente de trabalho mais criativo e prazeroso que algum (saudvel) pode desejar.

Muitos agradecimentos, alguns lamentos, duas notas imprescindvel agradecer a colaborao de muitos que escreveram esse livro, contando suas histrias a nossa equipe, escrevendo textos especialmente para este trabalho, respondendo perguntas muitas vezes feitas de sopeto em meio a eventos ou durante bates-papos eletrnicos pela madrugada. Este livro nasceu com a pretenso de, embora manter uma viso autoral e um tanto particular de um processo vivido com intensidade, ser escrito a muitas mos. Mesmo sem os textos colaborativos, assim seria: afinal, no se caminha nem se constri uma vivncia sozinho, nem mesmo quando a ss com uma folha em branco. Alis, provvel que no existam folhas em branco. Pelas entrevistas alentadas e pelos favores repetidos, muitas vezes em cima da hora, destaco especialmente algumas pessoas como Be, Alexandre, Paulo Lima, Kiki, Carina, Hernani, Fabi, Rodrigo, Adriana, Nelson Pretto, Maria Bonilha, Silvana, Carol e todos os que semeiam e entremeiam estas pginas ou se fizeram folhas inteiras. Saudaes a Robert Janssen e a Fred, pelo trabalho de anos e pela cesso de arquivos da Via Frum que nos fizeram recuperar imagens esquecidas. Lembro ainda que nem toda ausncia um recorte inevitvel na obtusidade da viso pessoal, ou na malcia natural da palavra e do autor. Muitas vezes (graas aos cus, e tambm s caixas postais de celulares e correios eletrnicos, h olhos e ouvidos que atestam o teor sincero desta declarao) os tempos nosso e o de algumas ausncias no encontraram confluncia, por mais esforadas as tentativas. Portanto, certo que h lacunas sentidas, mas nem sempre cavoucadas com maldoso afinco.

Duas observaes. Cartas e documentos finais das Oficinas encontram-se no stio www.inclusaodigital.gov.br. Trs deles foram aqui reproduzidos (de novo, o recorte). Finalizando, as declaraes sem notas referenciais foram dadas ao vivo ou por escrito equipe IPSO, que elabora um filme para o ONID. As notas referemse a declaraes retiradas de outros textos, nestes casos a fonte esclarecida. Ao final, para agora e para depois e por tudo, reitero meus agradecimentos e minhas escusas.

UMA BREVE INTRODUO

Na ltima dcada do sculo XX, as percepes sobre o que hoje governos, intelectuais, mdia e sociedade nomeiam como Incluso Digital eram, no mnimo, nubladas intuies. Muitas vezes, vises lmpidas de lugares a serem alcanados, mas sem traados ou caminhos prontos para trilhar. Filsofos, cientistas polticos e sociais, historiadores, muitos analisavam as mudanas em curso, os impactos das novas tecnologias como um futuro j iniciado, mas sem discutir quantos alcanariam o domnio dessas novas tecnologias. Tericos da comunicao j analisavam a velocidade da informao, o excesso de informaes, vaticinavam ou no o apocalipse da mdia impressa, mas no imaginavam a universalidade do acesso ou a complexidade proveniente da multiplicao de produtores de informao. Especialistas em telecomunicaes, tecnlogos e administradores mais 14

ntimos das temticas tecnolgicas alertavam para a urgncia da implantao de infraestrutura, vias, troncos, acessos... Educadores formais miravam as mquinas e o futuro com desconfiana, educadores populares olhavam mais as redes do que as mquinas, aquelas desconhecidas... Planejadores e administradores de polticas pblicas, entre outros, imaginavam a governana eletrnica, a democracia eletrnica, ouvidorias on-line, desburocratizao e servios mais geis, enquanto a sociedade civil verificava formas de ampliar a transparncia administrativa. Mas a pergunta inevitavelmente surgia: para quem? Tudo era urgente e necessrio, os movimentos sociais mais tradicionais pareciam necessitar de auto-reflexo, modernizao, readaptao. Descendo aos estratos mais terrenos e pessoais das convivncias, muitos dos atores sociais acima descritos tinham dificuldade de explicar em que estavam trabalhando para seus amigos e familiares ah, incluso digital, Internet para todos etc. E as respostas no tardavam, pareciam engatilhadas: mas l no Capo Redondo, l no Santa Marta, l na Restinga? Se faltam escolas, postos de sade, lazer, saneamento, transporte e tudo o mais? , era sempre por l mesmo. Onde faltava tudo. E para quem ia trilhando desde cedo aqueles caminhos de barro, era impressionante perceber como todas as demandas e debates iam confluindo naturalmente: cidadania e tecnologia, moradia e Internet, lazer e conhecimento, espaos de aprendizagem e espaos polticos. Percebamos que as mudanas trazidas pelas novas tecnologias traziam em seu cerne discusses fundamentais sobre a insero do cidado brasileiro na Sociedade do Conhecimento. E o debate iniciado no tinha perspectivas de um trmino: discutia-se o impacto das 15

tecnologias sobre a economia, padres de consumo, processos educacionais e de produo material, religies, filosofia, processos comunicacionais, organizao social, organizao poltica... Enfim, todas as esferas da atividade humana hoje no prescindem de considerao sob esta ptica da mudana, do impacto das novas tecnologias. No entanto, no ambio deste livro escrever a histria da incluso digital no Brasil. Inclusive pelo foco (no exclusivo, mas constante) nos telecentros, que certamente no so o nico espao de incluso digital e, ao mesmo tempo, so mais do que isso, configurando-se para alm da incluso digital. Nossa inteno rememor-la por meio de trs iniciativas marcantes, que englobam momentos que espelham os esforos conjuntos que reuniram a sociedade civil organizada, governos locais, empresas privadas, estatais e diversas iniciativas do governo federal. Os primeiros esforos nesse sentido acabaram gerando as Oficinas para Incluso Digital, espaos primordiais para o dilogo entre esses atores sociais, a elaborao de conceitos e a estruturao de polticas pblicas de alcance nacional. A soluo de espaos coletivos de acesso gratuito, com formao e uso livre, hoje chamada telecentro ou infocentro, foi em grande parte definida conceitualmente nas Oficinas, e os telecentros foram a pontade-lana de uma srie de iniciativas da sociedade civil e de governos que visavam combater a excluso digital. Mas do que isso, as Oficinas, em suas nove edies, reuniram todos os atores sociais, pessoas e instituies que tiveram relevncia nesse processo. Projetos pblicos, ONGs e suas iniciativas de incluso, empresas pblicas e privadas apresentando vivncias, projetos e solues... E, com o tempo, uma 16

crescente participao das bases desse movimento: monitores e educadores de Pontos de Cultura, Casas Brasil, Telecentros da Pesca, Rdios-telecentros, Telecentros Rurais, Estaes Digitais, telecentros e infocentros de todos os programas representativos espalhados pelo Pas. Espaos de dilogo geram aes governamentais: aqui iremos destacar a dos Centro de Recondicionamento de Computadores (CRCs), projeto no mbito do Programa Computadores para Incluso, do Governo Federal, com unidades responsveis pelo recebimento, recuperao e distribuio de mquinas para telecentros, bibliotecas, escolas pblicas e ONGs, ampliando e garantindo a idia de acesso coletivo idealizada pelos telecentros. Telecentros que, por sinal, s justificariam polticas pblicas se pudessem ser vislumbrados por um mapeamento e uma base de dados confiveis. Assim, desde 2006 est em atividade o Observatrio Nacional de Incluso Digital (ONID), que recolhe, disponibiliza e racionaliza informaes acerca dos telecentros, servindo de apoio a novas diretrizes e programas de incluso digital. At junho de 2010 foi possvel visualizar 8295 telecentros espalhados pelo Pas no ONID, nmeros que embasaram, motivaram e definiram parmetros para o atual Telecentros.BR, a mais consistente e complexa poltica pblica para o setor, que est em seu incio. Acreditamos que esses captulos da incluso digital nesta dcada podem, se no contar uma histria completa, resgatar vozes e lutas cidads de homens, mulheres e instituies espalhados por todo o Brasil. Instituies que, por meio da participao e do dilogo, conseguiram construir novas realidades. Pessoas que, a partir das ferramentas que exigiram e alcanaram, continuam a transformar o lugar que ocupam no mundo. 17

I. AMBIENTES E CONTEXTOS, IDIAS E AES

(...) O ferro fundido sem luta, s derram-lo na frma. No h nele a queda-de-brao E o cara-a-cara de uma forja Existe grande diferena Do ferro forjado ao fundido; uma distncia to enorme Que no pode medir-se a gritos. (...)(Joo Cabral de Melo Neto, O Ferrageiro de Carmona)

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Podemos considerar que o debate sobre incluso digital aliado elaborao das primeiras polticas pblicas para o setor tem seu incio entre julho de 2000 e julho de 2001. Hoje comum ouvirmos relatos que se iniciam com o primeiro telecentro... No entanto, esse discurso como derramar o ferro fundido na frma. Volta-se os olhos para trs como se houvesse uma estrada pronta para ser tomada desde o incio e, talvez ainda mais falsa do que essa idia, como se houvesse a certeza de onde aquele caminho iria dar. Essa viso do ferro fundido apaga as pegadas anteriores, picadas abertas com esforos voltados para diversos focos e direes, que ainda fazem parte de toda a trajetria. Fazem parte da forja. A atuao do Ibase, por exemplo, mais do que entranhada no prprio desenvolvimento da Internet no Pas, tambm vislumbrou as relaes da sociedade civil com as novas tecnologias. Como narra Carlos Afonso, no final de 1980, quando um dos fundadores (do Ibase) trouxe do Canad um microcomputador em sua volta do exlio, foi considerado tecnologia aliengena e inadequada por alguns dirigentes de entidades civis daquela poca em que o pas comeava a emergir do escuro da ditadura militar (1).

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Ns ramos os nicos entre as entidades civis no Brasil a ter um microcomputador. Era esquisito. Na poca, vrias ONGs nacionais olhavam a gente com desconfiana. Era como se fssemos pegar um trator em vez de uma enxada. Achavam que estvamos caindo de pra-quedas com tecnologias do hemisfrio Norte que nada tinham a ver com a nossa realidade. Demorou algum tempo para perceberem a importncia disso (2).Carlos Afonso, RITS

Porm, apesar das desconfianas de militantes, j em 1984 o Ibase participava do Interdoc, uma iniciativa de correio eletrnico que reuniu entidades da sociedade civil de todos os continentes, visando a democratizao das informaes. E enquanto a Internet brasileira esteve restrita a iniciativas acadmicas at 1994, via um consrcio financiado pelo Governo Federal (a RNP Rede Nacional de Pesquisas), o Ibase lanava em 1989 o Alternex, a nica exceo regra: um servio de troca de emails e conferncias eletrnicas voltado para a sociedade civil. O material de divulgao do Alternex assim apresentava os objetivos de seus servios: "Orientados a indivduos e organizaes da sociedade civil, com objetivo de servir os que trabalham por metas que incluem a paz, a preveno da guerra, a eliminao do militarismo, a proteo do meio ambiente, apoiar a causa dos direitos humanos e dos direitos dos povos, realizao da justia social e econmica, eliminao da pobreza, promoo do desenvolvimento auto-sustentado e equitativo, avano da democracia participativa e resoluo no-violenta de conflitos" (3). 20

Embora ainda extica, a rede ganhou solidez com a Eco-92. Como recorda Carlos Afonso, ali nascia no Brasil a Internet como uma rede permanentemente conectada, com colaborao da ONU. Foi um projeto grande para o que ns ramos (...). Conseguimos apoios internacionais para viabilizar o projeto e que a ONU o inclusse num acordo de sede com o Brasil. Sem isso, no poderamos ter importado equipamentos, por exemplo. Nem as telefnicas conheciam equipamento de Internet. Nem a Embratel. O Ibase que trouxe isso para o Brasil. Instalamos redes de computadores conectadas Internet em todos os espaos da Eco-92, tudo interconectado. Foi a primeira vez que se fez isso no Brasil (4). Em 1994, sendo o AlterNex o nico servidor www brasileiro fora da comunidade acadmica, o Ibase ampliou seu papel de interlocutor com o governo brasileiro, requerendo a construo de uma espinha dorsal da Internet de uso geral para os cidados. Sua proposta de garantir a capilarizao dos servios e oferecer servios de valor agregado desvinculados do monoplio estatal de comunicaes foi a que prevaleceu, com apoio do Ministrio da Cincia e Tecnologia. E no ano seguinte, em 31 de maio de 1995, nascia o Comit Gestor da Internet Brasil. A Portaria Interministerial 147 definiu que o Comit teria como funo coordenar e integrar todas as iniciativas de servios Internet no Pas. O Ibase esteve presente como membro-fundador e representante dos provedores de servios em um foro multissetorial. Foro que, segundo Augusto Cesar Gadelha Vieira, coordenador do CGI.br desde 2005, seria um modelo para outros pases, um marco na histria da Internet mundial: O fato de 21 representantes de distintos segmentos se reunirem mensalmente para discutir a Internet no Brasil notvel. Dessas reunies 21

resultaram aes e iniciativas de extrema importncia, como a constituio do NIC.br, nosso brao executivo, o estabelecimento de princpios gerais para governana que orientam polticas pblicas e procedimentos jurdicos, alm de uma avaliao do uso de TIC* no Pas (5). A importncia da rede, muito lentamente, foi sendo incorporada por aqueles atores sociais pioneiros. O Ibase e o Institute for Global Communications (IGC), ONG americana dedicada democratizao do acesso s TIC, idealizaram a Associao para o Progresso das Comunicaes (APC), consrcio internacional de organizaes que procuram potencializar o uso das TIC junto s entidades civis. Como se v, tratamos aqui de organizaes e indivduos de importante papel poltico na luta pela redemocratizao, acesso ao conhecimento e justia social. Assim sendo, era natural que outra preocupao se engendrasse: como expandir as benesses da rede mundial para a base da pirmide. Essa era uma questo que comeava a ganhar corpo com o correr do tempo.

expresso abreviada: TIC. Alm dessa, a nica expresso que por vezes aparecer neste livro transformada em sigla Incluso Digital, grafada por vezes como ID.

*a partir daqui, Tecnologias de Informao e Comunicao muitas vezes ser uma

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Sob toda uma influncia do Carlos Afonso nesta trajetria, comeamos a trabalhar com a Associao para o Progresso das Comunicaes. Recebamos muitas informaes e buscvamos trat-las para que mais pessoas pudessem ter acesso. Mas a havia uma grande questo: j estvamos dominando de uma certa maneira a tecnologia, j dominvamos de uma certa maneira a forma de tratar aquele contedo... Mas pouca gente tinha acesso, em especial as camadas populares...Paulo Lima, ex-diretor da RITS, agora no Sade e Alegria

Outras iniciativas da sociedade civil, embora distantes em sua forma e em seus pressupostos daquilo que hoje nos habituamos a nomear como incluso digital, tambm implantaram aes que envolveram a sociedade civil e a iniciativa privada na expanso do uso das TIC. A maior iniciativa neste sentido, naquele momento, foi a do CDI Comit de Democratizao da Informtica , nascido em 1995. Embora sem se interessar pela web, nascia imbudo da urgncia de prover as camadas populares com a iniciao ao conhecimento tecnolgico. Dessa forma instaurou, com apoio financeiro do setor privado e apoio logstico do prprio Ibase, uma srie de espaos comunitrios que uniam o ensino da informtica com uma abordagem socioeducativa voltada para o aprofundamento da cidadania. Sempre localizado em regies de baixa renda, a estrutura do CDI uniu iniciativa privada (doao de computadores e financiamento), educao popular, associaes comunitrias e informtica em um mesmo projeto, antecipando algumas das caractersticas dos futuros telecentros. 23

Pode-se lembrar que alguns dos princpios que hoje conformam os telecentros e os principais programas pblicos de Incluso Digital esto, conceitualmente e na prtica, distantes do modelo CDI, que vivia a cobrana do acesso, a secundarizao da Internet, a ausncia do poder pblico, o privilgio dado ao software proprietrio... No entanto, isso seria julgar com olhos do presente toda a iniciativa do CDI, por sinal mais do que bem-sucedida em suas intenes originais. O que preciso recordar o importante papel que essa familiarizao de setores excludos da sociedade com as novas tecnologias desempenhou. O espao em que as discusses geraram novos conceitos, comparao de prticas, dilogos e debates polticos ainda estava por ser construdo.

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II. OS PROGRAMAS PBLICOS: UMA CORRIDA POLTICA

O panorama em 2000 As mudanas trazidas pelas novas tecnologias de informao e comunicao foram provocando discusses sobre o conceito de Sociedade do Conhecimento que ultrapassaram as fronteiras da comunicao. O Livro Verde da Sociedade da Informao no Brasil (6), publicado pelo Governo Federal em 2000, explicitava que o debate sobre a chamada Sociedade do Conhecimento no se tratava de um modismo, mas era decorrente de profundas transformaes na sociedade, na economia e na cultura. Se o conhecimento sempre esteve associado ao poder em qualquer ltima anlise, agora ele era percebido crescentemente como um fator determinante para o estabelecimento ou superao de desigualdades, de agregao ou dissoluo de valor, de criao ou eliminao de empregos, de propagao ou concentrao de bem-estar social.

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A insero no processo global denominado Sociedade do Conhecimento, portanto, acaba sendo determinante para o local a ser ocupado no mercado de trabalho e para oportunidades de gerao de renda; para a educao e os desafios lanados pela educao formal e distncia, para a capacitao dos envolvidos e a autonomia da aprendizagem; para a produo de contedos na web e a consolidao de identidades culturais locais e nacionais; para a pesquisa e produo cientficas e tecnolgicas; para as definies de uma infraestrutura necessria, sobretudo de telecomunicaes; para a reestruturao do Estado e de suas relaes com a cidadania; enfim, para a possibilidade de um processo de reconstruo democrtica da sociedade. Porm, se a capacidade de uma sociedade desenvolver-se cultural, social e economicamente passa, necessariamente, pelo grau de informao e conhecimento nela disseminados, chegamos concluso que quanto maior a situao de excluso social de uma sociedade, mais premente lidar com a excluso informacional. Para falar da situao brasileira de ento, machucada pela brutalidade do processo de excluso e desigualdade social, voltamos a Carlos Afonso, que na introduo de um texto publicado em 2000, afirmava: Dos mais de cinco mil municpios brasileiros, menos de 300 (ou menos de 6%) contam com a infraestrutura mnima necessria para que possam ser instalados servios locais de acesso Internet. Os cerca de cinco milhes de usurios da Internet no Brasil so menos de 3% de nossa populao. O Brasil de longe o pior colocado em nmeros per capita de usurios, computadores pessoais, linhas telefnicas e servidores 26

Internet (hosts) entre as nove maiores economias do mundo. Os circuitos que conectam os provedores de servios Internet esto entre os mais caros do mundo, inviabilizando o pequeno provedor de servios em reas menos ricas. No h no Pas nenhum plano em escala nacional para implantar mecanismos efetivos e abrangentes de democratizao de acesso, como telecentros em reas, cidades ou bairros de menos recursos, conexo macia de escolas pblicas, programas de treinamento bsico, pesquisa em alternativas de conexo a baixo custo etc. Um amplo programa poderia ser realizado em menos de dois anos gastando menos de 0,2% do PIB, mas no h sequer estudos de viabilidade planejados para isso no programa oficial da sociedade da informao at agora proposto (7). Iniciativas internacionais A preocupao com a Incluso Digital, ou, ao menos, com o combate brecha digital, como preferiu tratar do tema a comunidade internacional, j estava presente no debate global, muitas vezes partindo de pensadores, ONGs, instituies de ensino ou culturais, setores acadmicos e tambm de setores governamentais. Apesar de diferenas nas iniciativas promovidas para romper as fronteiras da desigualdade de acesso s Tecnologias de Informao e Comunicao, todos os discursos e iniciativas pareciam concordar que a Incluso Digital era efetivamente uma maneira de promover a incluso social. Ou seja, o acesso s TIC era uma maneira de combater a desigualdade, seja por meio 27

da ampliao das possibilidades de desenvolvimento econmico, seja por meio da insero de novas classes na Sociedade do Conhecimento. Relaes crescentemente desiguais no somente entre classes, mas ainda entre pases e economias, com todos os seus efeitos excludentes, s poderiam ser enfrentadas por meio de processos organizativos e aes articuladas, local e globalmente, a fim de se alterar gradualmente as relaes de fora e poder. Assim, as TIC foram sendo encaradas como os principais mecanismos de acelerao da vida globalizada e frentica na qual estamos imersos, e tambm uma das grandes esperanas de liberar energias e processos criativos, de criar e compartilhar conhecimentos, de enfrentar carncias educacionais, informacionais e culturais. Afinal, a Internet, entre outras vicissitudes, o meio tecnolgico que conseguiu, pela primeira vez na histria da humanidade, reunir em um s local todo o conhecimento j produzido, em produo e que ir ser elaborado pelo homem, acessado com facilidade e pouco custo por qualquer cidado se esse acesso for uma possibilidade real. Essa preocupao com a expanso do acesso a Internet tambm ressaltada por Rodrigo Assumpo, ento responsvel pela rea de comunicao do Instituto Cajamar. Foi pelo Cajamar que em 1995 ele visitou os EUA e conheceu um telecentro no Harlem: Chamava-se Jogando para Ganhar, Playing to Win, e tinha sido o primeiro telecentro comunitrio dos EUA. Eu visitei este telecentro em Nova York e depois uma filial em Boston. Vi o que era um telecentro pela primeira vez e fiquei encantado, absolutamente fascinado. Jovens do Harlem com meia dzia de tipos de 28

computadores antigos, desde Apple at Pcs. Todos os tipos de estrutura, todo tipo de processo. Estes computadores visivelmente estavam servindo estruturao comunitria, estavam servindo para o avano daqueles jovens, e eu fiquei fascinado com aquilo. (8) Comearam a surgir Telecentros, Infocentros, Cabines Pblicas, Telecasitas, Telestugen, Espace Numriss, Telecottages, Community Technology Centres, Digital Clubhouse, esses e outros nomes dados a locais onde possvel ter acesso s TIC, a servios presentes na rede e s possibilidades de uso comunitrio. Consta que em meados dos anos 80 em Velmdalen, Sucia, foi inaugurado o primeiro telecentro (9). Espaos abertos ao pblico, administrados por pessoas ou instituies variadas, nos quais so oferecidos servios de informtica e comunicao de forma individual ou coletiva. Ao redor do mundo, comearam a pulular algumas formas de atender a essa descrio. Algumas iniciativas internacionais atentavam para a formao de comunidades virtuais. Essa pareceu ser uma preocupao predominantemente europia e latino-americana. Os projetos de cidades digitais foram poltica oficial da Unio Europia, como a rede Iperbole (10) da cidade de Bolonha. Um exemplo de formao de comunidades virtuais na Amrica Latina a Rede Somos@telecentros, com representantes presentes no evento, atuante at os dias de hoje. J nos Estados Unidos, a partir de 1998, o Departamento de Comrcio foi o rgo pblico responsvel pelo empreendimento de uma poltica de universalizao do acesso s TIC. Um de seus programas, chamado Falling Through the Net:Toward Digital Inclusion, ...previa convnios, parcerias e aplicao de verbas para a conexo de minorias, reas rurais, populao de baixa renda, pequenas empresas, incentivo criao de telecentros denominados

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Community Technology Centers (CTCs), reciclagem de professores para aprenderem a utilizar a Internet e assistncia tecnolgica para deficientes. No se trata, simplesmente, de um programa de incluso, mas de incentivo aos diversos programas de incluso existentes no pas, de divulgao da importncia da Internet para a nova economia e, principalmente, j serviu para avaliar a extenso da brecha digital em pesquisas que se empenhem em criar mecanismos para super-la (11). Como outro exemplo de aes internacionais iniciadas poca, temos a Fora Tarefa Digital Opportunity (DOT - Digital Opportunity Task Force), criada pelo grupo das sete naes mais ricas do mundo, reunindo interesses governamentais, empresariais, de ONGs e de instituies internacionais. Apresentava como objetivos: ...identificar formas pelas quais a revoluo digital pode beneficiar toda a populao mundial, especialmente os grupos mais pobres e marginalizados. A brecha digital ameaa exacerbar as desigualdades sociais e econmicas existentes entre pases e comunidades, sendo que os custos potenciais da inao esto maiores do que nunca.(12) A mesma preocupao surgia em organismos como o Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID, em relatrio sobre as relaes entre o uso de telecentros e o desenvolvimento scio-econmico da Amrica Latina, alertando os riscos para o continente: Neste novo ambiente, o perigo da brecha entre pobres e ricos aumentar na regio mais grave do que nunca e ameaa a prosperidade econmica, a estabilidade social e a prpria sobrevivncia da democracia. Medidas so necessrias para possibilitar a todos os cidados a oportunidade de adquirir conhecimento e tornarem-se membros includos da comunidade (13).

Em So Paulo, a corrida pela primazia vivendo esse contexto de preocupaes que surgem dois projetos importantes de acesso coletivo e popular a web na cidade de So Paulo. Os nascedouros em questo eram representantes de duas posturas polticopartidrias opostas, mas relevante observar que ambas propostas nascem imbricadas a discusses sobre modernizao administrativa e governo eletrnico embora tambm nesse aspecto as posturas se diferenciassem. O Governo do Estado focava suas propostas na utilizao das TIC para a modernizao administrativa e para agilizao de servios prestados populao. Os chamados Poupatempo e Praas de Atendimento similares demonstravam bem esse esprito. J no Instituto Florestan Fernandes (IFF), um espao de elaborao de polticas pblicas para So Paulo que foi presidido pela futura prefeita da cidade, Marta Suplicy, procurou-se chegar a uma concepo de governo eletrnico que evitasse o aprofundamento da diviso entre os que tinham e os que no tinham acesso s TIC, evitando o favorecimento dos segmentos sociais que j gozavam de acesso desproporcional ao governo e participao poltica. O IFF, especialmente nas figuras de Maria Teresa Augusti e Jorge Thadeu Sampaio, diretores da instituio, sonhavam com a construo do que intitulavam de uma Rede Pblica de Comunicao e Informao. Partia-se do princpio de que um governo eletrnico pressupe uma nova cultura de gesto: aberta, transparente, preocupada constantemente com a didtica e a fidedignidade de suas informaes (...) Atenta e respeitosa manifestao de quem ela representa. Tratando as pessoas como usurias, e no como clientes (14), afirmava ento Maria Teresa Augusti. A idia era a de promover

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o e-gov no para aprofundar e manter privilgios, mas como indutor da cidadania, aproveitando a vocao da Internet para a formao de redes que permitam aos seus membros a possibilidade de expresso, e no apenas a recepo de informaes, contedos e servios. Como ainda explicava Maria Teresa Augusti, no falamos aqui de redes fsicas, mas de um conjunto de atores, instncias e processos, comunicando e processando informao e conhecimento, articulados em um espao virtual comum, utilizando ferramentas e instrumentos com semitica didtica, acessvel e interativa, controlados e geridos pela sociedade civil de uma determinada regio ou localidade (15). Para o IFF estava claro que, paralelamente a uma proposta detalhada, coerente e progressista de poltica de Governo Eletrnico para a Prefeitura de So Paulo, caberia propor tambm uma poltica pblica de Incluso Digital que permitisse ao governo da cidade enfrentar os graves nmeros da excluso digital, e que permitisse a todos os cidados as mesmas possibilidades e capacidades de incorporao dos benefcios das TIC, de acesso informao e de participao na sociedade do conhecimento um conjunto de benefcios que no poderia ser limitado s camadas privilegiadas da sociedade, sob pena das TIC servirem ao aprofundamento das diferenas, e no s promessas de democratizao que a Internet trazia em seu bojo. Rodrigo Assumpo, que atuava no Governo Eletrnico de Santo Andr e perseguia a possibilidade de implantao de telecentros naquele municpio, acabou sendo chamado para a tarefa de coordenar a inciativa de Incluso Digital do Instituto Florestan Fernandes. Rodrigo relembra: Eu estava no Governo Eletrnico de Santo Andr, onde j conversvamos

sobre incluso digital e telecentros. Foi quando Maria Teresa Augusta e Jorge Sampaio, dois diretores do Instituto Florestan Fernandes que refletiam sobre esses temas na instituio, convidaram-me para montar um projeto que eles j haviam desenhado, chamado Sampa.Org. Eles precisavam de algum para coordenar o projeto. Aceitei. Peguei o projeto que estava desenhado de uma maneira macroestruturada, detalhamos seus parmetros e implementamos em poucos meses... Sim, porque a a tarefa formulada pelo Instituto era implementar dez telecentros no Capo Redondo em trs meses!. Vale notar que j havia o embate poltico de propostas governamentais e uma competio entre dois grupos polticos para implantar o quanto antes suas iniciativas de Incluso Digital. Enquanto o Instituto Florestan Fernandes preparava o lanamento do projeto Sampa.Org na zona Sul de So Paulo, o Governo do Estado se apressava para lanar o quanto antes um espao similar na mesma regio. Assim, em 11 julho de 2000, surge o primeiro espao pblico de incluso digital, chamado de Infocentro, inaugurado pelo decreto 45.057 do ento governador Mrio Covas, na Casa de Cultura do Jardim So Lus, na periferia da zona Sul da Capital paulista. Era o embrio do Acessa So Paulo, que hoje o programa de incluso digital governamental. Neste primeiro Infocentro, deu-se a primeira ocasio em que a populao pde acessar a Internet gratuitamente em um centro comunitrio, parceiro do governo em um programa que se classificava desde ento como poltica inclusiva. No entanto, o primeiro Infocentro permaneceria como filho nico por um bom tempo. No mesmo ms de julho, trs dias depois e na mesma zona Sul, mas nos distritos vizinhos de Capo Redondo e Jardim ngela, um programa de ampla articulao da sociedade civil, reunindo movimentos sociais, sindicatos,

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universidades e empresas da rea tecnolgica criava o Sampa.Org, um projeto-piloto do Instituto Florestan Fernandes. Ele j nascia com seis Telecentros e esperou mais dois meses para a inaugurao de mais quatro unidades na mesma regio, servindo de base para uma poltica pblica da futura prefeita de So Paulo, ento presidente do referido Instituto.

Marta Suplicy na inaugurao do telecentro Jardim Comercial, julho de 2000

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A implantao do Sampa.Org Com ideias ainda genricas, a coordenao do projeto realizou vrios contatos com empresas e instituies, e conseguiu aglutinar parceiros importantes formando um ncleo bsico que atestava a viabilidade da proposta e se dispunha a reunir, juntamente com um significativo investimento por parte do Instituto Florestan Fernandes, os recursos humanos, materiais e financeiros necessrios para a implantao de dez telecentros. A partir desta etapa, as adeses se ampliaram e diversificaram-se. Com um ncleo de empresas e entidades da sociedade civil e tendo suas aes disciplinadas por um conjunto de documentos estabelecidos de comum acordo, formou-se oficialmente o Comit Tcnico do Sampa.Org. Deste grupo de debate, elaborao, reflexo e de viabilizao das aes, participaram empresas (Microsoft, Brisa, Lexmark, entre outras), instituies educacionais (USP/Escola do Futuro, Instituto Adventista de Ensino), ONGs e outras entidades da sociedade civil (CUT/Integrar, Fundao Friedrich Ehbert/ ILDES). Paralelamente constituio desse Comit Tcnico, era necessria a articulao com lideranas comunitrias do distrito de Capo Redondo, ento apresentado pela mdia como o lugar mais violento e abandonado pelo poder pblico na cidade de So Paulo. Era uma regio que apresentava o segundo pior ndice de Desenvolvimento Humano (IDH) da cidade. Apesar da violncia e da excluso social ser um fato inconteste, a regio possua uma intensa e enraizada produo cultural: foi o bero do movimento Hip Hop na cidade, comeava a empreender um movimento de literatura marginal que deu origem a Ferrez e os saraus poticos da regio, hoje famosos; possua

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ainda uma significativa rede de entidades comunitrias com uma histria de organizao intensa de mais de trinta anos de ocupaes de reas contestadas e conflitos vinculados ao movimento de luta pela moradia. Alm desses fatores de escolha, outro ponto foi decisivo para fincar o p na zona Sul: a presena, entre os parceiros, do Instituto Adventista de Ensino, instalado h dcadas na regio. A instituio ofereceu-se para participar dos servios de formao dos futuros monitores em sua Faculdade de Tecnologia, alm de garantir suporte e manuteno das redes de computadores instaladas nas associaes. Importante frisar que, desde o primeiro momento, foram os representantes do Instituto Adventista (professores e alunos) que defenderam a utilizao do software livre no projeto, o que s aconteceria mais tarde. Rodrigo Assumpo rememora aquele momento: No Instituto havia uma pessoa de muita experincia como articulador comunitrio, Ademir Castellari, que visitou um nmero extraordinrio de entidades sociais do bairro de Capo Redondo e depois nos ajudou a selecionar e a fechar as parcerias com as lideanas locais. E os dez telecentros foram assim escolhidos, seis ficaram prontos e estruturados para iniciar neste momento. Mauricio Falavigna se juntou a ns logo em seguida para trabalhar no contedo do portal e em oficinas de comunicao. E a partir da comeou um processo que contribuiu para o programa de governo de uma candidata Prefeitura de So Paulo, trazendo a idia de que era necessrio na cidade de So Paulo uma poltica pblica de Incluso Digital. Em seguida houve o compromisso da candidata em implement-lo quando prefeita, o que foi feito tendo como modelo o projeto Sampa.Org.

A insero na comunidade Garantir o envolvimento das entidades comunitrias foi um processo que se iniciou logo que a coordenao assegurou o compromisso de doao dos primeiros equipamentos para a implantao. Iniciou-se, ento, uma srie de reunies com lideranas locais para explicar a proposta. Esse momento foi indito: j havia a construo de toda uma argumentao sobre a necessidade de insero do Pas na Sociedade do Conhecimento. Um discurso acadmico, poltico-tecnolgico, governamental e empresarial. Alguns atores percebiam tambm a necessidade de expanso dessa incluso, entendendo cada vez mais o combate excluso digital como parte do combate excluso social como um todo. E esse discurso precisava ser elaborado no campo, durante a implantao de projetos de incluso digital, em uma atividade de convencimento cultural, poltico e intelectual. Foram visitadas cerca de trinta entidades da regio, com o objetivo de conhecer as lideranas, o trabalho realizado no cotidiano, as instalaes, explicar os objetivos e examinar condies e necessidades para que as comunidades sediassem um telecentro. Tambm se realizavam reunies com os frequentadores de cada espao, numa tentativa de averiguar a insero das entidades em sua comunidade. Outro critrio para a escolha das entidades foi a infraestrutura oferecida. Eram necessrios a disponibilidade de uma linha telefnica e um ambiente com espao e segurana adequados para a instalao do telecentro. A juno destes fatores que determinou a escolha inicial de seis entidades, depois acrescidas de outras quatro, para sediarem os telecentros. O movimento de moradia era a origem de boa parte dessas associaes

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comunitrias, movimentos sociais que estavam presentes na zona Sul da cidade h cerca de trs dcadas. A luta para ocupar terrenos e construir moradias desemboca naturalmente na luta por melhorias nos bairros recm-criados. As associaes de moradores passam com o tempo a organizar suas creches, seus centros de juventude, quadras esportivas, enfim, servios necessrios que compensam a ausncia do Estado na regio. Os elementos que servem como focos de aglutinao e luta so vrios: iluminao pblica, saneamento bsico, postos de sade, centros de juventude, e at mesmo coisas simples como receber e redistribuir as contas de luz dos moradores do bairro. A essas atividades soma-se a preocupao de realizar atividades com jovens, oferecendo no apenas esporte e lazer, mas educao e trabalho. Tentam, desesperadamente, vencer uma batalha contra o trfico de drogas, a violncia e a pouca perspectiva de futuro. A maioria das entidades trabalham com esportes, atividades culturais, cursos de lnguas e cursos profissionalizantes, enfim, todos elementos cotidianos nestes focos de cidadania que so esses espaos comunitrios. As reunies com a comunidade confirmaram o interesse e os mitos existentes sobre a informtica e os computadores. Duas ideias opostas dominavam o imaginrio das comunidades. Uma delas positiva: o telecentro representaria uma oportunidade dos jovens aprenderem informtica bsica, o que automaticamente garantiria uma vaga no mercado de trabalho. A outra imagem coletiva predominante negava o valor da iniciativa, e pode ser explicitada pela seguinte indagao, expressa constantemente em suas algumas variantes desse discurso: se em nosso bairro falta posto de sade, vagas na escola, emprego, segurana, saneamento e tudo o mais, o que ganharemos com tecnologia e Internet?

Responder prontamente s perguntas era possvel, mas para isso foi preciso definir com o projeto j em implantao o que se queria com aquelas instalaes. Informtica bsica (a experincia do CDI) no era o foco do Sampa.Org, definitivamente. Se os objetivos principais, embora vagos, eram o de insero das tecnologias no dia-a-dia daquelas comunidades excludas e de incluso de novos grupos de cidados na Sociedade do Conhecimento, a informtica bsica ou a alfabetizao digital seria apenas uma necessria ambientao a esse novo mundo. E certamente no garantiria vagas imediatas no mercado de trabalho, apenas pequenos ganhos e pouca autonomia. Por outro lado, inserir as TIC no cotidiano desses movimentos organizados da periferia do mundo e, mais do que isso, conquistar coraes e mentes dos beneficirios desses movimentos populares, no era uma tarefa que se resolveria de cima para baixo, com um plano discutido somente pelo Comit Tcnico, uma proposta pronta de uso daqueles equipamentos inditos na localidade. Construa e eles viro, a famosa frase sussurrada no filme O Campo dos Sonhos, foi uma alternativa imaginada, mas logo se viu descartada: era preciso construir conjuntamente o uso daqueles equipamentos. Demonstrar que a Incluso Digital era um tema que se mantinha lado a lado com as outras necessidades prementes daquela populao marginalizada: saneamento, educao, sade, moradia, participao poltica, comunicao, reconhecimento pblico... As reunies com as comunidades escolhidas foram fundamentais para a construo dessas respostas e do futuro do projeto. S pela intermediao desses parceiros locais foi possvel trabalhar com a comunidade de forma efetiva, j que o Sampa.Org no se propunha a criar entidades novas na regio, mas sim estabelecer parceria com pessoas que j tinham a organizao

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e a articulao comunitria como meta, como eixo de sua vida. Uma diretriz bsica do projeto foi a de se considerar herdeiro da rica tradio da educao popular e ter como princpio o respeito pela comunidade. Assim, o Sampa.Org atuou fornecendo instrumentos para a continuidade da organizao da comunidade, para que esta fosse verdadeiramente o sujeito de sua histria. Das reunies nasceram projetos comunitrios diversos que dominaram o cotidiano dos telecentros. Uma agncia comunitria de notcias (Capo Online); uma cooperativa de montagem, suporte e manuteno de redes existente at os dias atuais (Alpha); uma atividade de mapeamento de servios sociais de todo um distrito; uma rdio web (Biboca); oficinas de comunicao comunitria; cursos profissionalizantes de design e programao; produo de contedos diversos que mantinham o vnculo com a luta diria dos indivduos e das organizaes que construam aquele projeto-piloto de Incluso Digital para a cidade de So Paulo.

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Equipe Rdio Biboca-Sampa.Org no telecentro do Jd Rosana, sede da rdio

Doze meses de projeto-piloto: nmeros para um futuro programa municipal Os telecentros funcionavam, em mdia, 12 horas por dia, seis a sete dias por semana, e ofereciam cursos de informtica e atividades de desenvolvimento cultural, social e econmico baseados em TIC, alm de livre acesso Internet e correio eletrnico para a comunidade. Aps um ano de funcionamento, os monitores dos telecentros realizaram uma pesquisa de uso com os freqentadores dos centros e apresentaram-na a todos, para compartilhar informaes. Em mdia, havia 14.000 horas de uso por ms, ou seja, 3.500 horas semanais de sesses de acessos no telecentros. Como no se utilizava qualquer sistema de monitoramento para controle de usurios individuais nas entidades, a contagem se dava por sesso de uso, sendo provvel uma quantidade expressiva de usurios frequentes que retornavam mais de uma vez por dia ou semana. Os monitores estimaram cerca de 1000 a 1500 usurios por ms, em mdia. Quanto ao perfil, pde-se dizer que o usurio, na sua maioria, era do sexo feminino (70%), na faixa etria de 13 a 17 anos de idade (60%). Mas havia usurios acima de 60 anos de idade e abaixo dos 12 anos de idade, uma minoria que frequentava os pontos (3%). Importante ressaltar que mais da metade desses usurios nunca havia tido contato com um computador.

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Lembranas do Sampa.Orgpor Jos Aparecido de Souza, diretor da Associao de Moradores do Conjunto abitacional Chico Mendes

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Sou liderana popular desde a dcada de 80, quando passei a militar na rea da moradia. Uma vez conquistada minha prpria casa (independente da continuidade da luta para outros), uma outra luta se travava ali onde fomos morar. Era o bem viver social em nosso conjunto habitacional no Capo Redondo, que havia sido entregue com deficincia na infraestrutura urbanstica, ou seja: sem asfalto, iluminao pblica, sem reas de lazer, creches, escolas para atendimento da demanda; havia muitas crianas e adolescentes sem espao para recreao e alternativa educacional. No conjunto havia um espao que a empreiteira usava como canteiro de obras. Basicamente ocupamos este espao fazendo dele nosso local comunitrio.

Na poca, viabilizamos junto a Critas Diocesana cursos profissionalizantes, tais como corte e costura, pintura e datilografia. Em 1998, atravs do Instituto Lidas, conseguimos o primeiro computador na comunidade, e passamos a desenvolver o chamado conhecimento tecnolgico. Mais tarde, em 1999, com a doao de mais dez mquinas, comeamos um curso de computao: eram mais de trinta jovens e adultos, inclusive eu participando. Para mim, habituado a mquina de escrever, tratava o teclado como se estivesse datilografando. A experincia mais marcante para mim foi o processo do e-mail, que podia ser muito mais rpido e eficiente que o fax foi fenomenal. Hoje, eu no consigo sair sem antes consultar meus recados. Em 2000, com o Instituto Florestan Fernandes, comeamos um projeto denominado Sampa.Org. Em reunies com tcnicos, intelectuais e lideranas populares dialogvamos como transformar esta e outras experincias de incluso digital em poltica pblica a ser aplicada numa gesto de governo. Esse foi o princpio dos Telecentros de So Paulo, que teve sua implantao na gesto da Prefeita Marta Suplicy. A partir dos 10 telecentros (chamados inicialmente de Pontos de Presena) instalados e funcionando nas comunidades do Capo Redondo e do Jardim ngela, subsidiados por doaes privadas, vimos a possibilidades de ter a partir da o compromisso e o comprometimento pblico na manuteno dos mesmos. Para as comunidades sem recursos era impossvel sua continuidade sem dotao para o funcionamento. Mas foi uma das experincias do fazer-fazendo que transformou milhares de vidas em nosso Pas. E creio que se houvesse menos ingerncia (burocracia) pblica e mais parceria com as comunidades, nestes 10 anos passados teramos pelo menos em cada bairro dos grandes centros urbanos um local pblico de livre acesso a Internet. Hoje percebo o tempo que gastvamos nas nossas comunicaes, e vejo que podemos ter todo o mundo em contato permanente. Meu foco de luta atual pelo livre acesso a Internet e pela liberdade da comunicao, que est nas mos de poucos

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proprietrios. E luto ainda para que as comunidades sociais possam ser um brao formador com os mesmos direitos que o dado ao mercado atravs das lan-houses e outros projetos criados e mantidos com interesses puramente de mercado ou eleitorais. Espero ainda ver transformado em realidades no o simples sonho, mas a realidade concreta que nos nortearam ao se deixar fazer, se deixar florescer a criatividade de cada local conectado; pois cada local destacado ou implantado tem suas prprias caractersticas sociais, culturais e econmicas, que se adaptam s TIC de acordo com suas necessidades. A padronizao daquele fazer-fazendo pode ser um engessamento da livre iniciativa e da cultura local, pode gerar uma total burocratizao de um processo que deve ser mantido livre de frmulas e regras que desestimulam e travam a criatividade, seja da liderana ou da prpria comunidade social que utiliza aquele espao.

Do outro lado do rio: aparando arestas na comunidadepor Ademir Castellari, diretor do Sampa.Org

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A primeira reunio realizada com entidades para o incio das discusses para a implantao do projeto Sampa.Org no Capo Redondo foi realizada no CDHEP Centro de Direitos Humanos e Educao Popular de Campo Limpo, no prprio Capo Redondo, e foram convidadas entidades que apresentadas por lideranas polticas da regio. Alm dos integrantes do IFF, compareceram representantes de doze entidades, desde Associao de Moradores (cinco), passando por entidades religiosas (duas), uma de direitos humanos, uma associao comunitria, uma escola estadual, uma assessoria de vereador, at um representante de uma indstria alimentcia.

Como podemos perceber, o pblico era diverso, como foi diverso o entendimento, a receptividade e os discursos em torno do projeto. Podemos dividir esta parte em: a) os que no entenderam a proposta e a dimenso da iniciativa; b) os que entenderam mas colocaram diversos empecilhos; c) os que vislumbraram ganhos polticos para suas comunidades; e, d) os que se interessaram porque as entidades poderiam incorporar-se a ele de outras maneiras. compreensvel que os representantes de algumas entidades no tenham entendido uma iniciativa do porte do Sampa.Org. Afinal, o uso das tecnologias de informao no so uma demanda presente no dia-a-dia das comunidades. Estas h muito lutam pela resoluo de problemas como moradia, atendimento mdico, cestas bsicas, asfalto etc. Fez-se necessrio uma explicao detalhada do projeto, sua concepo, seu alcance, como iria funcionar, e superar a cultura arraigada de cursos de informtica notadamente os voltados para a mais baixa escala de oportunidades e salrios desse almejado mercado de trabalho (pacote Office, digitao etc.). Essa demanda por cursos legtima, diga-se de passagem foi sendo resolvida com rpidos treinamentos ministrados pelos prprios monitores. Outro problema, de menor importncia, foram os discursos prontos contra as novas tecnologias: a tecnologia sempre usada contra o trabalhador e o pobre, estas tecnologias so sempre para nos dominar e outras afins. Percebe-se, pelo carter dos discursos, que no foi difcil desmont-los, reconstru-los e trazer essas pessoas para o projeto: s foi preciso lembrlos que a tecnologia no domina ningum, e sim os usos que dela fazemos que caracterizam seu carter opressor ou libertrio. Um fator positivo que se apresentou desde o incio foi a disposio das comunidades mesmo as que no compreenderam totalmente a iniciativa em sediarem um telecentro, porque seria interessante para os moradores. Esse interesse foi incentivado tambm pelo apoio de lideranas que, por seu carter de comprometimento com a educao popular e

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com a construo de sujeitos histricos, foram fundamentais em remover barreiras e resistncias. Um problema de grande monta foi que algumas lideranas, entendendo melhor o projeto, colocaram empecilhos para sua realizao. As razes foram as mais diversas, mas a mais importante era a do aumento do trabalho, j que s tarefas do dia-a-dia iria se incorporar uma nova, que no garantiria ganhos polticos s lideranas locais. Pelo contrrio. No de se estranhar que a palavra mais ouvida nas reunies tenha sido controle. Essas lideranas antes acostumadas a prticas centralizadoras e ao paternalismo foram percebendo, aos poucos, que o carter anrquico do projeto est beneficiando as comunidades, j que provoca uma maior oxigenao das relaes. O paternalismo lentamente vai sendo substitudo pela participao da comunidade nas solues dos problemas. E, como o nmero de usurios foi muito maior que o esperado, o perfil dos mesmos cada vez mais diverso (idade, filiao ou preferncias partidrias, sexo) e muitos deles nem mesmo eram frequentadores das associaes, os problemas foram se resolvendo pela base.

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equipe Sampa.Org: Ademir Catellari, Marco Polo Silva, Ligia Ortiz e Maurcio Falavigna

Porto Alegre: um programa pblico pioneiro Ainda no segundo semestre deste mesmo ano, a Prefeitura Municipal de Porto Alegre que inaugurou uma srie de espaos similares, com equipamentos conectados a web servindo gratuitamente a populao da cidade. Segundo lton Freitas, ento na Procempa (Companhia de Processamento de Dados de Porto Alegre), que participou ativamente deste processo desde o seu incio, no final dos anos 90 ocorreram alguns projetos pilotos junto a duas associaes de moradores. Nesses projetos foram implantados laboratrios de informtica com acesso a Internet. A partir do ano de 2001, portanto assumimos o conceito de Telecentro Comunitrio como a alternativa mais efetiva para democratizar o acesso a Internet. Foi ento que se concebeu um plano de incluso digital com o objetivo de implantar telecentros em todas as regies do oramento participativo.Os telecentros de Porto AlegrePor Rogrio Santanna, presidente da Telebrs, ex-presidente da Procempa e ex-Secretrio de Logstica e Tecnologia da Informao do Ministrio do Planejamento

A experincia da Procempa na instalao de telecentros nasceu at de forma enviesada porque o prefeito poca, o Tarso Genro, foi procurado por uma representao do Ministrio do Desenvolvimento, Indstria e Comrcio Exterior (MDIC) que estava propondo a criao de telecentros. Comeamos ento a discutir com a equipe do MDIC como viabilizar a iniciativa na cidade, o que inclua o financiamento para alguns desses centros, s que os recursos do Governo Federal no chegaram. No abandonamos a ideia e, neste processo, acabamos evoluindo da proposta dos

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telecentros originais que tinham um enfoque mais empresarial para desenvolver um conceito de telecentro comunitrio. Aproveitamos o potencial da cidade de Porto Alegre, que era uma forte tradio comunitria, e comeamos a ser procurados por lderes comunitrios interessados na implantao de telecentros em seus bairros. Um deles inclusive reivindicava a implantao do telecentro na central de reciclagem de lixo onde ele trabalhava. Outro lder comunitrio estava buscando desenvolver um cultura de paz na regio onde vivia, que era muito conflagrada, e tambm achava que o telecentro poderia contribuir para minimizar esses problemas. Em virtude destas solicitaes, me propus a verificar se podamos recuperar os computadores que deixavam de ser utilizados pela Companhia de Processamento de Dados de Porto Alegre (Procempa), mas que podiam ainda ser aproveitados nos telecentros. Comeamos assim e a partir disto o Conselho de Oramento Participativo de Porto Alegre assumiu a coordenao do processo. Assim, as comunidades que queriam um telecentro procuravam os conselhos do Oramento Participativo e em geral, ofereciam como contrapartida um lugar fsico para abrigar a sede e tambm recrutavam monitores da prpria comunidade para atuar no local. A Secretaria Municipal de Administrao conseguiu fornecer algumas bolsas para os monitores e assim iniciamos o processo de implantao de telecentros em Porto Alegre. Foi um trabalho muito interessante porque pudemos levar os telecentros s populaes que jamais teriam renda para acessar internet. Iniciativa que ocorreu em paralelo com o surgimento dos telecentros em So Paulo, na gesto da prefeita Marta Suplicy.

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A Procempa, dirigida por Rogrio Santanna, manteve-se na coordenao do programa, organizando a demanda dos bairros populares, a maior parte delas surgida nos debates do Conselho do Oramento Participativo que mobilizava os cidados de Porto Alegre. Foi importante a participao de lideranas comunitrias como Irma e Maria Deloi, da zona Norte, e Csar Ramos e Lindomar, da zona Sul da capital porto-alegrense, relembra lton. Os primeiros telecentros instalados foram o Chico Mendes, no bairro Mrio Quintana, e os telecentros de Vila Pedreira e do Beco do Adelar. Nos trs primeiros anos, entre 2001 e 2004, a maior parte da demanda continuou nascendo dos Conselhos de Oramento Participativo. Ao final deste ano e da gesto do Partido dos Trabalhadores na cidade, j haviam sido instalados 36 telecentros em Porto Alegre, talvez a cidade com o maior nmero de telecentros per capita do Brasil naquele momento. O modelo de apropriao comunitria dos espaos tecnolgicos e polticos ali oferecidos tambm foi a marca da iniciativa, como recorda logo abaixo Alexandre Siqueira Mesquita, que participou da implantao e coordenao dos telecentros locais.

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Os telecentros de Porto Alegrepor Alexandre Mesquita, ex-PROCEMPA, ex-Cidadania Digital, atualmente na Provncia Marista do Estado do Rio Grande do Sul

A partir da criao dos telecentros no Capo Redondo, em So Paulo, a partir da experincia inovadora do Instituto Florestan Fernandes e do Sampa.Org em 2000, em 2001 a Prefeitura de Porto Alegre criou o seu primeiro telecentro, chamado Chico Mendes, no bairro Mrio Quintana, regio nordeste de Porto Alegre. Este telecentro deu incio a uma poltica pblica exitosa em termos de Incluso Digital, juntamente com os telecentros de So Paulo. As duas polticas pblicas nas duas capitais se transformaram em marcos referenciais nas polticas pblicas de ID no Brasil, creio que a partir da forma de como se relacionaram com as suas comunidades. Os telecentros de Porto Alegre tiveram diversas peculiaridades. Viveram um processo de construo baseado na relao com a comunidade. O projeto todo ele era baseado, desde a sua fase de implantao, no Oramento Participativo, os fruns decidiam onde o telecentro seria implantado. A Prefeitura era responsvel pelos equipamentos, manuteno, e custeio de um monitor. A entidade onde o telecentro era implantado era responsvel pela sustentabilidade do espao, custeio de gua, luz e manutenes diversas, isso era amplamente anunciado comunidade no momento em que se implantava o telecentro. Havia toda uma discusso nos fruns regionais e todo um engajamento desses fruns no processo. Hoje, olhando como se d o processo de implantao dos Telecentros.BR*, ele utiliza algumas premissas dos telecentros de Porto Alegre, isto muito interessante. Foi um programa que deu muito certo. Conseguimos nos espalhar por toda cidade entre 2001 a 2008, conseguimos chegar a uma rede de 36 telecentros, dois telecentros por regio do Oramento Participativo, tivemos amplo apoio da cidade, dos sindicatos, das empresas de informtica.

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Para sua implantao, o programa contou com o apoio do Banco do Brasil, do Sindicato das Empresas de Informtica, da Caixa Econmica, do oramento municipal, da SLTI local, mas basicamente ele tinha a coordenao da empresa de informtica do municpio de Porto Alegre, a Procempa, e a liderana de Rogrio Santanna. Ainda contava com interfaces da Secretaria Municipal de Educao, da Secretaria Municipal de Direitos Humanos, ento possua toda uma sinergia, articulava diversos atores do municpio de Porto Alegre. Esta era a grande virtude do programa, alm do grande apoio da comunidade local. O conceito de Conselho Gestor, que dependendo do local poderia ser consultivo ou deliberativo, deixvamos esta construo de acordo com as peculiaridades locais. No havia uma imposio da coordenao para que isso acontecesse. Cada telecentro tinha uma construo diferente. Era exatamente isso, uma construo, um programa bem aberto, essa era a grande virtude, a grande vantagem competitiva do nosso programa. Por isso ele cresceu e tomou conta dos coraes e mentes da cidade de Porto Alegre.* Ver captulo 8

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O Governo Eletrnico paulistano e a Incluso Digital: a herana incmoda para a gesto seguinte A Coordenadoria do Governo Eletrnico surgiu em 2001, vinculada Secretaria Municipal de Comunicao e Informao Social da Prefeitura do Municpio de So Paulo. Primeiramente comandada por Srgio Amadeu e em seguida por Be Tibiri, logo de incio o Governo Eletrnico paulistano adotou um conceito indito: aliar Internet cidad, software livre e Incluso Digital. Foi assim que surgiu o projeto Telecentros e, sem seguida, a migrao deste conjunto para o software livre. Na rea de Incluso Digital, o Projeto Telecentros foi certamente o maior plano de alfabetizao e Incluso Digital do Pas, e um dos mais bem sucedidos do mundo. Desde junho de 2001, ms em que a primeira unidade de Telecentro da Prefeitura foi criada, mais de meio milho de cidados das periferias da Capital passaram a ter acesso s TIC e Internet. Em 2004, a iniciativa contava com mais de 120 telecentros espalhados pelas reas de menor ndice de Desenvolvimento Humano (IDH, indicador do Mapa da Excluso/Incluso Social, elaborado em 2000 pela PUC/SP, Instituto Plis e Inpe). Contando com a parceria de diversas instituies da sociedade civil, mas principalmente com a RITS de Carlos Afonso, Paulo Lima, Luiz Antnio de Carvalho (Luizo) e outros mais, que assumiu juntamente com o Governo Eletrnico a execuo do projeto, os Telecentros de So Paulo foram aos poucos pondo em prtica todos os conceitos e aes defendidos pelo movimento de Incluso Digital desde os primeiros anos. Conforme as palavras de Be Tibiri, muito alm da alfabetizao digital e de cursos bsicos, o espao pblico dos telecentros tambm palco para

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a articulao popular que se manifesta por meio de oficinas sobre diversos temas, como educao ambiental, capacitao e inserso para o mundo do trabalho, pesquisa na web, servios pblicos oferecidos pela Internet, criao de sites, comunicao comunitria, processamento de imagens, entre outros. O Plano de Incluso Digital foi concebido com base em trs pressupostos: tratar essa ao inclusiva como poltica pblica, disseminar software livre e envolver a comunidade. Ainda segundo Be, a participao da comunidade local no Projeto Telecentros a garantia de que o Plano de Incluso Digital serve e continuar servindo ampliao da cidadania, abertura de uma nova perspectiva aos usurios diante da violncia da excluso e ao fortalecimento da organizao social. Assim a comunidade, a partir do uso intensivo das TIC, pode alcanar mais autonomia em busca de uma nova condio humana em um contexto de globalizao, mas sem perder sua identidade. Foi por isso que a rede de telecentros priorizou a formao de Conselhos Gestores e a articulao da comunidade com sua histria, sua cultura, suas necessidades e expectativas, usando os recursos dos telecentros para organiz-las e potencializ-las. Outra contribuio que merece destaque a requalificao das reas onde o telecentro chega. O volume de circulao que ele atrai incentivava novos comrcios e pressiona o Poder Pblico a atender a demanda por servios pblicos e revitalizao das reas de uso comum.

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III. FORMAO DE CONCEITOS

ou A 1 OFICINA PARA INCLUSO DIGITAL (mas o que seria incluso digital?)

Um galo sozinho no tece uma manh: ele precisar sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manh, desde uma teia tnue, se v tecendo, entre todos os galos.(Joo Cabral de Melo Neto, Tecendo a Manh)

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Foi em meio ao ambiente resumido nas pginas anteriores que, em maio de 2001, o Governo Federal, por meio da Secretaria de Logstica e Tecnologia da Informao (SLTI, do Ministrio do Planejamento, Oramento e Gesto), organizou em Braslia um Seminrio sobre Incluso Digital. Alm dos cerca de 500 participantes, reuniram-se mais de uma centena de especialistas para discutir o tema e elaborar um documento que servisse como referncia para a discusso e implantao de aes de Incluso Digital no Pas. O projeto Sampa. Org, a RITS (Rede de Informaes para o Terceiro Setor) e o CDI (Comit pela Democratizao da Informtica) foram as trs instituies da sociedade civil que participaram ativamente da organizao do evento. No entanto, mais de trinta instituies da sociedade civil marcaram presena. O resultado do trabalho dos especialistas foi minuciosamente examinado, comentado e aprovado pela plenria dos participantes, resultando num documento amplo, fruto da participao cidad, um documento que ficou por meses sendo divulgado e exposto ao debate para todos os interessados. Portanto, entre 14 e 17 de maio de 2001, instaurou-se um frum de debates entre sociedade civil e governo federal que acabaria se transformando no principal canal de demandas sociais, afinamento de ideias e conceitos, troca de experincias locais e laboratrio de polticas pblicas para o setor: o nome definitivo ficou sendo Oficina para Incluso Digital, e a primeira edio se deu no Centro de Convenes Ulysses Guimares, em Braslia. Mas vamos nos debruar um pouco mais sobre a riqueza dos debates desses quatro primeiros dias de um evento que j vai para sua dcima edio.

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O Governo Federal e a Incluso Digital em 2001 Em relao s polticas de governo para a disseminao das TIC, durante a gesto de Fernando Henrique Cardoso houve duas aes principais: o ProInfo, criado em 1997 com intuito de instalar equipamentos de informticas nas escolas (o acesso a Internet no era ento cogitado) e o programa Sociedade da Informao, o Socinfo, criado pelo Ministrio da Cincia e Tecnologia em conjunto com o Programa das Naes Unidas para o desenvolvimento (PNUD) que lanou o estudo j aqui citado, o Livro Verde da Sociedade da Informao no ano de 2000. Em relao s classes sociais mais excludas, no houve a formulao de uma poltica governamental que as abrangesse em qualquer ao inclusiva. Tambm no houve qualquer poltica que relacionasse movimentos sociais e Incluso Digital, ou algum programa que imaginasse centros gratuitos de acesso coletivo s TIC. Para no reduzir ao zero esse tipo de iniciativa, ao final dessa gesto, em 2002, havia dois Pontos de Acesso no Estado do Mato Grosso, implantados pelo programa Comunidade Solidria, em Cuiab e Santo Antnio do Leverger (com apoio de uma consultoria do Sampa.Org). Neles o acesso a web era cobrado, mantendo-se uma poltica de preos populares, uma prtica que seria defendida por algum tempo por setores do governo e da prpria sociedade civil. No mais, como frisa Cristina Mori, se tomarmos a gesto como um todo, as ...aes possuam como foco o uso de TIC pelo Estado para gesto, baseado num conceito de cidado-cliente, usurio de servios de governo eletrnico. Davam prioridade ao mercado e formao de mo-de-obra na capacitao

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da populao para o uso dessas tecnologias. Tambm consideravam que o voluntariado e as ONGs deveriam ser a estratgia de oferta de servios para a populao pobre. Os movimentos sociais eram desconsiderados na formulao das polticas.

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O parto da 1a Oficina Jorge Sampaio, diretor do Instituto Florestan Fernandes, estava em Braslia em 2001 quando teve um encontro com o ento Secretrio de Logstica e Tecnologia da Informao (SLTI) do Ministrio do Planejamento Oramento e Gesto, Slon Lemos Pinto. Slon havia estruturado o Comit Executivo do Governo Eletrnico, em grande medida para o enfrentamento daquele grande fantasma do final do sculo, o bug do milnio. O Comit foi estruturado e, com o passar do tempo e de suas atividades, sentiu a necessidade de expanso do acesso: se por um lado se aumentava a disponibilidade de servios, era ao mesmo tempo necessrio que houvesse do outro lado mais pessoas acessando esses servios. Como essa discusso sobre a expanso do acesso s TIC j estava presente em algumas administraes pblicas de Estados e capitais e, principalmente, j estava se tornando tema de projetos nas ONGs, Jorge Sampaio sugeriu ao Secretrio da SLTI uma discusso aberta sociedade civil, o que foi aceito pelo governo. Jorge Sampaio articulou ento a presena do Sampa.Org poca um projeto atrelado ao Instituto Florestan Fernandes, j em funcionamento na zona Sul de So Paulo; a presena da Rede de Informao para o Terceiro Setor (RITS), onde atuavam os j citados Carlos Afonso e Paulo Lima, e que possua uma parceria com o prprio Sampa.Org, acompanhando de perto o incio das atividades dos telecentros em So Paulo, alm de uma estreita articulao com a Somos@Telecentros, uma ativa e bem-sucedida rede latino-americana de Incluso Digital. Somou-se a essas ONGs o Comit para Democratizao da Informtica, o CDI, sem o qual poca seria impossvel falar de Incluso Digital.

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S e g u iu - s e u m a r e u n i o e n t r e a s t r s O N Gs e o g ove r n o p a r a d i s c u t i r u m a f o r m a d e s e a p r o p r i a r d o c o n h e c im e n t o q u e e s s a s in i c i a t i va s d a s o c i e d a d e c i v il e s t ava m c o n s t r u in d o. A a g e n t e v i u q u e a me lh o r m a n e ir a d e l eva r i s s o a di a n t e s e r i a f a ze r um s emin r i o. O q u e O N G d e e s q u e r d a s a b i a f a ze r ? S a b a m o s f a ze r s e mi n r i o s . A s s im , r e s o l ve m o s c h a m a r o u t r a s O N Gs , o u t r o s r e p r e s e n t a n t e s d a s o c i e d a d e c i v il , ex p e r i n c i a s d e p r o je t o s s o c i a i s e s e t o r e s d o g ove r n o p a r a r e a liz a r o eve n t o.Rodrigo Assumpo, ex-diretor do Sampa.Org, ex-Secretrio-adjunto da SLTI, presidente da Dataprev

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A organizao do evento ficou a cargo da Secretaria de Comunicao da Presidncia (SECOM), somada s pessoas que articulavam o projeto de Centros de Acesso no Mato Grosso (que estavam na SLTI) e as que cuidavam do Governo Eletrnico. O afluxo de convidados do governo e da sociedade foi surpreendente para a organizao que, para controlar a logstica do evento, cada vez mais catica, logo no primeiro dia abriu mo da coordenao do corao do evento, a sua programao, deixando-a a cargo de Rodrigo Assumpo. Este assumiu a parte de contedo, debates e relatoria com os parceiros da sociedade civil. Ele relembra o momento: Era um mar de expectativas desencontradas. O Governo Federal se vendo obrigado a prestar contas de algo que ainda no havia feito, as ONGs exigindo discutir polticas pblicas, o Governo Federal ansioso para saber o que elas estavam fazendo na prtica... Em meio a isso, tnhamos assumido uma loucura: montamos 17 debates paralelos, quatro a seis deles simultneos em uma Oficina de quatro dias. Pela manh, plenrias, e pelas tardes debates sobre 17 diferentes temas. Tudo isso com moderadores de planejamento que tentavam estruturar as ideias com metodologia de moderao de grupos. O resultado final foi um calhamao com mais de 400 pontos que deveria ser sistematizado pela relatoria em um documento final, a ser aprovado por uma plenria com cerca de 400 participantes que resistiram at o final da Oficina.

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Nesse momento havia um certo risco de se queimar uma proposta que se iniciava no final de um Governo, mas preferimos levar adiante assim mesmo. Eu acho que foi acertado. Conseguimos reunir algumas organizaes fortes. Nem todas compraram a bandeira da Incluso Digital. Naquela situao a nossa grande questo era fortalecer a idia de um movimento de Incluso Digital, ainda que quisssemos que o Governo conhecesse a potncia desta estratgia de incluso social. Mas a nossa idia que viesse mais gente conosco, que viessem a CUT, o Frum Social Mundial Da o esforo de se chegar a um documento que fosse slido, que integrasse vrias vises dos direitos sociais. Como os movimentos sociais poderiam de fato incorporar estas ferramentas para o seu fortalecimento, para o seu desenvolvimento... E foi muito difcil fazer tudo isso...Paulo Lima, Sade e Alegria

Os trabalhos e a relatoria Identidade Cultural; Redes Pblicas; Diretrizes para a Elaborao de Pginas Governamentais; Incluso Digital, Educao Formal e Formao de Educadores; Incluso Digital e Autonomia do Aprendizado; Capacitao da Comunidade e Formao de Monitores e Multiplicadores; Capacitao Profissional; Incluso Digital, Pessoa Portadora de Deficincia, Equipamentos Especiais e Acessibilidade; Equipamentos de Baixo Custo; Manuteno e Suporte; Modelos de Telecentros; Programas e Aplicativos para as Aes de Incluso Digital. Esses foi o painel de temas debatidos com os especialistas presentes, governo e sociedade civil durante a 1 Oficina. Alm disso, premissas e diretrizes para a Incluso Digital brasileira

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tambm foram saindo de todas as reunies moderadas. Ou imoderadas, muitas vezes, j que nem todos os moderadores profissionais envolvidos conseguiam conter uma participao por vezes organizada, por vezes catica e sempre voluntariosa de todos os presentes. Educadores do Governo Federal e de municpios, movimentos sociais, sindicatos, Ministrio das Relaes Exteriores, fundaes e institutos sociais, Funai e lderes de aldeias indgenas, reresentantes das principais universidades do Pas e tambm das grandes estatais, de empresas de telefonia e de Secretarias de Cincia e Tecnologia de diversos Estados, consultores do terceiro setor e de empresas nacionais e multinacionais ligadas a tecnologias... Um conjunto de interesses diversos e posies de muitas maneiras divergentes, opostas em vrios momentos. Logo se organizavam grupos de interesse, colocaes parte dos documentos de cada temtica discutida, registros de divergncias, cobranas firmes a um governo que comeava a compreender o assunto como um todo. Paralelamente a isso, uma relatoria se organizava: dois membros da sociedade civil, Rodrigo Assumpo e Carlos Afonso, do Sampa.Org e da RITS, respectivamente, e dois membros do governo, Srgio Barcellos e Andr Martins. Ao longo dos trabalhos, as discusses eram digitalizadas. Ao final dos dias, disquetes eram recolhidos e levados a essa relatoria, que passou muitas horas em um trabalho insano de reunir todos os dados, concluses e opinies similares, contrapor divergncias e construir um documento sensato para ser levado em plenria, uma sntese dos dias de debates. Rodrigo Assumpo recorda: ... a gente pegava o material s seis horas da tarde e ficvamos at meia-noite estruturando o documento. 62

Era infernal, um trabalho insano, e os dois membros do Governo Federal comearam a se encantar pelo tema, conheciam muitas coisas de governo mas no conheciam aquele ambiente, e comearam a colaborar de maneira muito ativa. Alm do mais, com o Carlos Afonso difcil alguma coisa dar errado: ele uma pessoa de enorme bom senso, com muita experincia. A comeou a sistematizao de um documento que tentava sintetizar estes dias de intensa discusso, um caos completo. Outros participantes foram chamados para ajudar a compilar e sistematizar os relatrios no ltimo dia, vpera da plenria. Paulo Lima relata: recebemos uma quantidade de contribuies muito acima da equipe que se props a realizar aquela Oficina. Ento me recordo de ficar at s cinco da manh com os demais companheiros tentando compilar e chegar a um determinado documento. Documento que tivesse uma linha lgica que pudesse ser compreendida, para dar base a uma discusso de poltica pblica. E depois fomos apresentar este documento numa plenria com mais de 300 pessoas. A plenria e o documento final No ltimo dia do evento deu-se finalmente a plenria. Foram cerca de cinco horas de apresentao do texto, leitura, debates e votaes sobre a redao final com cerca de 400 participantes que resistiram at o fim dos trabalhos. Um modelo democrtico com regras de plenria muito familiares para sindicatos, para o Partido dos Trabalhadores e para os movimentos populares, onde se discutiu pargrafo por pargrafo do documento. Mas certamente indito, ou, ao menos, j distante da maior parte do membros do Governo que estavam presentes

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na Oficina. Se alguns deles j haviam vivenciado momentos semelhantes, pareciam no mnimo desacostumados. O Governo abriu mo de boa parte da organizao, e agora submetia-se s regras participativas pouco habituais aos seus parmetros. Isso no eliminou disputas sobre princpios, ideias e modelos de polticas pblicas que deveriam nortear a atuao futura dos atores sociais presentes a partir daquele momento. Foi visvel uma certa indignao de setores educacionais (tanto as Universidades como o prprio Ministrio da Educao) por no comandar, liderar ou serem considerados a ponta-delana de todo o processo de Incluso Digital. Setores empresariais e o prprio Ministrio da Indstria e Comrcio, que j possua um incipiente projeto de telecentro de negcios, embora apenas com um telecentro, frisavam a necessidade de vincular telecentros diretamente ao desenvolvimento local, visando principalmente capacitaes profissionais ou impulsionar pequenas empresas. Outras desvinculaes de projetos comunitrios gratuitos foram apresentadas, seja por proprietrios de redes de escolas de informtica, cibercafs e mesmo por alguns projetos nascidos na sociedade civil, mais preocupados com o que chamavam de sustentabilidade desses telecentros. O resultados dos embates foram fielmente refletidos nos documento final (que pode ser conferido na ntegra nos Anexos deste livro). Um documento em muitos aspectos contraditrio, muitas vezes megalomanaco, outras tantas utpico.

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Tomamos vrias decises que eram muito arriscadas. Esta (a plenria) foi certamente a mais arriscadas delas, mas conseguimos aprovar a maior parte da proposta sempre com discusses muito tensas, algumas muito densas, mas conseguimos chegar a um documento que estava longe de ser um documento ideal, mas acabou criando uma contribuio importante. Um documento que botamos embaixo do brao e fomos entregando em vrios Ministrios, em vrias prefeituras e foi a base de acertos e erros dos primeiros projetos de Incluso Digital no Brasil.Paulo Lima, Sade e Alegria

O resultado, analisado aps 10 anos, um documento catico, cheio de contradies, um documento que no pra em p. Um estudo antropolgico por um lado, uma lista de desejos e sonhos por outro Mas o que impressionante foi que este documento, com tantas fragilidades, de certa forma nos trouxe aqui hoje. E mudou a cara da poltica para Incluso Digital no Brasil. Apontou para o Brasil um caminho extremamente especfico e prprio, diferente de todo o resto da Amrica Latina, com um grau de generosidade em sua poltica pblica muito mais profundo do que a maioria dos pases. Orientou-nos para fora de um debate extremamente pobre para o qual o Banco Mundial e outros organismos internacionais estavam apontando, que olhavam os telecentros como fontes de renda, que recomendavam a criao de telecentros como pequenos negcios, o que fez fracassar dezenas de experincias no Terceiro Mundo. O Brasil escapou dessa discusso, em grande parte, nesse momento da 1 Oficina, quando claramente apontou que s tinha sentido a Incluso Digital no Brasil como poltica pblica, e esse foi o grande divisor de guas nesse tema.Rodrigo Assumpo, Dataprev

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Um balano de ideias: formando conceitos Pode ser que realmente tenha sido um documento inadequado, multiforme e at mesmo extico. No entanto, ele trouxe contedos e embates que perduraram por uma dcada de Oficinas para Incluso Digital. A grade temtica colocada em discusso, por exemplo. Em grande medida, ela prosseguiu seu percurso, com refinamentos e maior complexidade, pela estrada das oito Oficinas seguintes. Outros temas foram ganhando espao com velocidade, como Infraestrutura e Conexo, Comunicao Comunitria e Software Livre. Mas no s isso: a conceituao de alguns temas como o que Incluso Digital ou o que deve ser um Telecentro avanou de forma a j permitir um desenho que, aos poucos, se tornaria definitivo. Do documento gerado pela plenria da 1 Oficina para Incluso Digital, vale lembrar as premissas acordadas pelos representantes da sociedade civil organizada e do Governo para a definio dos espaos pblicos de acesso a partir da chamados mais geralmente de telecentros, ou ainda de infocentros e de seu funcionamento: Os Telecentros so iniciativas que utilizam TIC ligadas Internet, garantindo acesso pblico e universal para captao, gerao, prospeco e distribuio do conhecimento, servindo para facilitar e estimular a participao cidad da comunidade. Os Telecentros devem oferecer mais do que apenas capacitao/treinamento. Os Telecentros devem ser geridos com a participao efetiva da

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comunidade. Enquanto proposta de Incluso Digital, um Telecentro se destina prioritariamente a um pblico que no tem contato com as tecnologias da

Carlos Afonso, RITS

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informao no trabalho ou escola. Esses alertas iniciais buscavam diferenciar projetos de Incluso Digital com experincias de iniciativas (presentes ao evento) que se intitulavam mais prticas (quiosques ou totens de atendimento limitado), mais auto-sustentveis (projetos que previam cobranas pelo uso dos equipamentos), cibercafs, escolas comerciais de informtica e alguns discursos centrados principalmente em setores ligados Educao que defendiam o protagonismo escolar e discente na liderana de qualquer programa pblico de Incluso Digital. poca, alm das iniciativas j citadas aqui, como o Sampa.Org, os infocentros do Governo do Estado e os telecentros de Porto Alegre, repercutiam as aes dos chamados cibercafs. Precursor das atuais Lan Houses, esses estabelecimentos comerciais ainda sobrevivem, vendendo o tempo de uso dos equipamentos, alm de outros produtos. Somados s iniciativas que justificavam moralmente a cobrana dos servios, como escolas de informtica e outros projetos (posio defendida inclusive por setores governamentais) o argumento mais recorrente era o de que as pessoas s valorizam aquilo que pago , essas iniciativas representaram esforos e discursos que acabariam descartados ou ocupando posies marginais, mas que foram uma presena constante no evento at a IV Oficina para Incluso Digital, realizada em 2004 na cidade de So Paulo. Avaliando as discusses e justificativas que ressoam nesses documentos das Oficinas, percebe-se que os conceitos formados a partir da negao dessas propostas vincularam-se ao direito de acesso informao, comunicao e ao conhecimento como um direito humano, 68

universal e inclusivo, social e economicamente. Portanto, a cobrana pelo uso dos equipamentos eliminaria possibilidades futuras de conformao de polticas pblicas amplas, vinculando a Incluso Digital como um processo sob a batuta da iniciativa privada. A soluo de quiosques ou totens, semelhantes aos servios de autoatendimento bancrio, no foram de todo descartadas e permanecem presentes em projetos que oferecem acesso rpido a servios, informaes e correio eletrnico. Foi inspirada por uma soluo de larga escala do governo peruano (cabinas), apontada ento por muitos como uma expericia mais prtica e de baixo custo. No entanto, pr-formatados e com navegao limitada, estes servios, em geral, revelavam-se inadequados para pesquisas aprofundadas ou projetos de desenvolvimento comunitrios. Tambm no se adequavam produo de contedo na web, transformando o usurio em mero consumidor de informaes. Outra proposta muito forte na primeira Oficina foi a de unir o acesso Internet a instituies pblicas como escolas e bibliotecas. Essa alternativa foi considerada desde o primeiro momento como necessria, mas no superou a desconfiana de que no seria um meio amplo e nico de combate excluso digital. Afinal, apesar do uso coletivo e aprofundado, o nmero de usurios , em geral, restrito aos freqentadores da instituio e, da mesma forma, o uso restrito aos objetivos escolares. Tambm foram levados em considerao dois outros fatores: um certo fracasso histrico da escola pblica em lidar com outros meios de comunicao para consecuo de seus objetivos (rdio, TV, vdeo), e a presena j significativa de educadores populares ou desligados do setor educacional formal em projetos de incluso 69

digital j em andamento, e mostrando-se bem sucedidos. Os telecentros mais flexveis (e at por isso mais eficazes) foram considerados aqueles que combinavam o acesso s linguagens e equipamentos das TIC com uma utilizao flexvel e mltipla, determinada pela prpria comunidade envolvida. Esse envolvimento da comunidade, esse comprometimento local, definindo o uso do espao conforme seus interesses e necessidades, incluindo um uso ativo com produo de contedo, parecia a estratgia mais apropriada para esse processo de incluso, alm de caracterizar o prprio espao do telecentro como um espao poltico. J se imaginava que os telecentros poderiam favorecer a participao cidad promovendo processos de consultas ou fruns pblicos, mediando a relao da comunidade com o crescente nmero de servios pblicos providos pela Internet, ou mesmo coletando e publicando dados que permitissem comunidade planejar suas demandas e reivindicaes. Tambm poderiam agir provendo servios de criao, conexo e hospedagem para iniciativas econmicas locais. Poderiam ser um espao de apoio ao trabalho no contexto de iniciativas voltadas para a gerao de emprego e renda, e fornecer capacitao e treinamento em um espao onde a comunidade efetivasse um processo de educao contnua e distncia. Assim sendo, a Incluso Digital passaria tambm pela capacidade de se apropriar das linguagens das TIC, a ponto de propor alteraes e, at mesmo, novos usos das tecnologias. Pois as tecnologias utilizadas no foram desenvolvidas para a comunidade, nem para os usos de que ela necessita. Elas foram feitas para empresas, governos, iniciativas comerciais com propsitos muito diversos de uma associao comunitria, por exemplo. 70

Os contedos, ento, esses refletiam ainda mais essa discrepncia, mostravam quem estava dentro ou fora desse mundo de informaes e conhecimento. Ainda era difcil obter informaes na web, por exemplo, de como montar uma rdio comunitria ou estruturar uma cooperativa. Outros pontos de destaque J em seu incio, o documento da 1 Oficina adverte que a excluso digital ap