vivências de moradores de rua

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UNIVERSIDADE DE RIBEIRÃO PRETO Curso de Psicologia VIVÊNCIAS DE MORADORES DE RUA BRUNO ALBERTO P. DE SANT ANA - 750450 MAISA FERREIRA V. DOS SANTOS - 789081 MARIANA DE OLIVEIRA BONATO - 785436 RHIANNE YUKANA ISHIHARA - 785413 TIAGO PRATIS DA SILVA - 783660 Laboratório de Iniciação Científica I Profa. Dra. Solange Aparecida Serrano RIBEIRÃO PRETO – SP 2008

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A iniciativa deste projeto de pesquisa deve-se justamente a essa culpa que carregamos; por muitas vezes diante dessa realidade social dos moradores de rua nos sentimos impossibilitados de fazer algo para ajudar, por vezes não sabemos como fazer a diferença e modificar um pouco essa realidade. Para citar um exemplo dessa dúvida de como ajudar, podemos utilizar o caso de moradores de rua que pedem dinheiro a quem passa, a dúvida da maioria da população é se dá o dinheiro ou não, porque se damos o dinheiro podemos estar reforçando essa condição, e se negamos sentimos que estamos ignorando o problema. O que fazer?

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UNIVERSIDADE DE RIBEIRÃO PRETO Curso de Psicologia

VIVÊNCIAS DE MORADORES DE RUA

BRUNO ALBERTO P. DE SANT ANA - 750450 MAISA FERREIRA V. DOS SANTOS - 789081 MARIANA DE OLIVEIRA BONATO - 785436

RHIANNE YUKANA ISHIHARA - 785413 TIAGO PRATIS DA SILVA - 783660

Laboratório de Iniciação Científica I Profa. Dra. Solange Aparecida Serrano

RIBEIRÃO PRETO – SP 2008

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UNIVERSIDADE DE RIBEIRÃO PRETO Curso de Psicologia

VIVÊNCIAS DE MORADORES DE RUA

Trabalho apresentado pelos alunos Bruno Alberto P. de Sant Ana/ 750450, Maísa Ferreira V. dos Santos/ 789081, Mariana De Oliveira Bonato/ 785436, Rhianne Yukana Ishihara/ 785413, e Tiago Pratis da Silva/ 783660, como exigência final da disciplina de Laboratório de Iniciação Científica I, sob orientação da Profa. Dra. Solange Aparecida Serrano.

RIBEIRÃO PRETO – SP 2008

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RESUMO

O sujeito que tem uma moradia e utiliza a rua somente como um meio de chegar a

outros lugares, para ir ao trabalho ou para passeio, não é capaz de enxergar a dimensão que

este mundo particular constitui. É uma estrutura à margem da sociedade com seu próprio

sistema e complexidade e, quem nela reside, utiliza-a como espaço para a sobrevivência

(moradia e alimentação) e formação de vínculos (necessidade de filiação). Agressão e rejeição

são integrantes naturais do cotidiano desses moradores de rua, que também constitui um fator

de grande influência para essas pessoas deixarem suas casas, principalmente os conflitos

familiares. Esses indivíduos são marginalizados, ignorados, muitas vezes se entregam às

bebidas e drogas como uma forma de buscar alívio às dificuldades. Lutam pela sobrevivência

diariamente e pelo seu território em meio a esse “ecossistema”. Esta pesquisa teve como

objetivo observar e analisar a vivência de pessoas que vivem ou viveram na rua para

compreender seus sentimentos, expectativas pessoais e suas vivências. Para uma maior

compreensão deste mundo em questão foi feita uma pesquisa qualitativa, com entrevistas

gravadas em MP3, seguindo um roteiro semi-estruturado, onde foram entrevistados quatro

sujeitos pertencentes a ambos os sexos, independente de faixa etária, com intuito de assim

poder contribuir na criação de medidas preventivas, intervencionais e de inserção social,

através de serviços de apoio médico, psicológico, educacional, assistência social, entre outros.

PALAVRAS-CHAVE: vivência, moradores, rua.

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SUMÁRIO

1)  INTRODUÇÃO ................................................................................................................9 2)  REVISÃO DE LITERATURA......................................................................................11

2.1) Vivências de Moradores de Rua ...................................................................................11 2.2) Motivos para Vivência na Rua......................................................................................13 2.3) Invisibilidade Social......................................................................................................13

3)  JUSTIFICATIVA ...........................................................................................................16 4)  OBJETIVO .....................................................................................................................17 5)  METODOLOGIA...........................................................................................................18 

5.1) Participantes ..................................................................................................................18 5.2) Local..............................................................................................................................18 5.3) Instrumentos ..................................................................................................................19 5.4) Procedimento.................................................................................................................19 5.5) Análise dos Dados.........................................................................................................19

6)  RESULTADOS E DISCUSSÃO ...................................................................................20 

6.1) Vivências.......................................................................................................................20 6.2) Motivos para Vivência na Rua......................................................................................22 6.3) Violência .......................................................................................................................23 6.4) Família...........................................................................................................................24 6.5) Invisibilidade Social......................................................................................................25 6.6) Sentimentos ...................................................................................................................26 6.7) Expectativas Pessoais....................................................................................................27

7)  CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................29 8)  REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .........................................................................31 9)  ANEXOS .........................................................................................................................32 

A) Roteiro de Entrevista Semi-Estruturado..........................................................................32 B) Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ................................................................34 C) Entrevistas .......................................................................................................................36 

Morador de Rua 1......................................................................................................................... 36 Morador de Rua 2......................................................................................................................... 45 Morador de Rua 3......................................................................................................................... 53 Morador de Rua 4......................................................................................................................... 57 

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1) INTRODUÇÃO

Atualmente, na situação social em que o Brasil se encontra é quase impossível não

notar ao menos uma vez ao dia, a quantidade de indivíduos que fazem da rua seu ambiente de

trabalho ou sua moradia. Milhares de vezes nós cruzamos com crianças, adolescentes e

adultos que abandonados à própria sorte tentam sobreviver na rua e da rua, e nós tentamos

ignorá-los. Mas isso não muda o fato de que eles estão ali, seja nos pedindo algo, ou seja,

simplesmente incomodando nossa consciência social que por muitas vezes se sente culpada e

sabe que uma parcela da culpa de eles estarem ali abandonados, vivendo sem o mínimo de

dignidade, é nossa.

A iniciativa deste projeto de pesquisa deve-se justamente a essa culpa que carregamos;

por muitas vezes diante dessa realidade social dos moradores de rua nos sentimos

impossibilitados de fazer algo para ajudar, por vezes não sabemos como fazer a diferença e

modificar um pouco essa realidade. Para citar um exemplo dessa dúvida de como ajudar,

podemos utilizar o caso de moradores de rua que pedem dinheiro a quem passa, a dúvida da

maioria da população é se dá o dinheiro ou não, porque se damos o dinheiro podemos estar

reforçando essa condição, e se negamos sentimos que estamos ignorando o problema. O que

fazer?

Foi em busca de uma resposta a essa pergunta que nos deparamos com a oportunidade

de fazer algo por esses moradores de rua, percebemos que a disciplina Laboratório de

Iniciação Científica I, cujo objetivo geral é de possibilitar ao aluno desenvolver um pequeno

projeto de pesquisa sob a supervisão da Professora Doutora Solange Aparecida Serrano,

possibilitaria uma excelente chance de desenvolver uma pesquisa que nos ajudasse a entender

melhor o universo das pessoas que decidem sair de casa e ir morar na rua.

Após a leitura exaustiva das entrevistas transcritas, foi possível definir os eixos para a

discussão e análise das experiências vividas e sofridas por eles. O primeiro eixo é o da

Vivência desses indivíduos, como é a rotina cotidiana, como vivem, se alimentam e dormem,

a utilização de álcool e drogas ilícitas, etc. O segundo eixo abordado é o da Causa dessa

vivência na rua, explorou-se como se deu o processo de ir morar na rua e os motivos que o

levaram. O terceiro eixo é o da Violência, seja dentro de suas antigas casas ou no decorrer da

vida na rua. O quarto eixo trata do assunto Família, um ponto crucial e de grande importância,

isso porque, de acordo com a literatura, os conflitos familiares são as razões de várias pessoas

irem morar na rua. O quinto eixo é o da Invisibilidade Social, e como eles se vêem diante

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desta perspectiva. O sexto eixo trata de Sentimento, sobre o que eles sentem diante desta

situação, as alegrias e frustrações, e se possuem relacionamentos afetivos. O sétimo, e último

eixo aborda as Expectativas Pessoais desses indivíduos, o que esperam e desejam do futuro,

deles mesmo, dos outros e da vida.

Somos discentes da quarta etapa do curso de graduação em Psicologia da Universidade

de Ribeirão Preto (UNAERP) e esperamos através desse trabalho poder iniciar uma trajetória

rumo a criar oportunidades de melhorias na vida desses milhares de cidadãos, que há anos

estão cada vez mais marginalizados pela sociedade e se encontram em situação lastimável

com a vida que levam na rua.

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2) REVISÃO DE LITERATURA

2.1) Vivências de Moradores de Rua

Interpreta-se Ribeiro (1998) em suas colocações que a rua em seu contexto tornou-se

um espaço cada vez mais atrativo, representando diferentes formas de apropriação dos

espaços e cenários da cidade, aparentemente inatingíveis na vida cotidiana e estruturada nas

periferias, possibilitando um senso de liberdade, independência e autonomia, contrapondo-se

de uma forma imaginária, ao cotidiano de escassez e violências de bairros periféricos e das

instituições para eles ofertadas. Malfitano e Ferreira (2006) expõem a mesma idéia no sentido

que as pessoas que nela vivem, ou sobrevivem, constituem um "ecossistema", uma estrutura à

margem da sociedade.

Tanto Ribeiro (1998) quanto Malfitano e Ferreira (2006) pontuam a idéia que a rua dá

a impressão de que tudo é acessível, mas "de ilusão também se vive". A partir de uma

vivência na rua começa-se assim a perceber uma rua onde existe o preconceito social, a

indiferença, e a violência física. Assim caracterizando-se como uma rua de violência,

abandono e não respeito aos direitos ou privação de direitos.

Menezes e Brasil (2008) caracterizaram a rua como um meio de vida, um espaço de

sobrevivência e de formação de vínculos. Possuindo em cada espaço da rua uma função

diferenciada, que são apropriados através do uso que se faz dele, sendo a sua relação com

estes marcada por uma exploração utilitária, ou seja, a rua é um espaço para a sobrevivência.

Caracterizando-se como espaços transitórios e não-permanentes, onde um pedaço de papelão

pode marcar um espaço privado apropriando-se simbolicamente de um território, fazendo

assim com que a rua deixe de ser um lugar qualquer, significando uma propriedade

conquistada, ou seja, transforma-se de um espaço público para um espaço privado de

constituição psíquica e social, pela força da sobrevivência.

A elaboração de estratégias, em condições de vivência de rua, basicamente é utilizada

para a adaptação e sobrevivência, não se restringindo ao aspecto material, ou às necessidades

a serem satisfeitas, mas principalmente na sobrevivência que implica numa sustentação da sua

capacidade de estar na rua, ou o mínimo de asseguramento de existência pessoal que a

permita viver nas condições geralmente "violentas" que a rua impõe, cujas idéias de agressão

e rejeição são integrantes naturais do cotidiano. Com isso, a rua começa a funcionar como

uma cultura particular, a partir das expressões de linguagem utilizadas entre seus membros,

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como também a construção de “regras” com base na sobrevivência, instruindo assim uma

organização e identidade grupal particular da rua. (MENEZES E BRASIL, 2008)

A rua produz um ritmo particular e relativo pela vivência do tempo e espaço próprio à

margem do convencional. Tanto o futuro como o passado, em relação aos fatos vividos e aos

sonhos aspirados, estão em função de fatos ocorridos em seu cotidiano. (RIBEIRO, 1998)

Para Hutz e Koller(1997), um dos aspectos fundamentais ao desenvolvimento social

em vivência de rua relaciona-se com o senso de pertinência e identidade social, sendo que a

realidade em que seus membros estão expostos denuncia sua exclusão e marginalidade,

através da violência, privação dos direitos, desigualdade social, a saúde, a educação e ao

trabalho.

Assim, a vivência na rua, para Peres (2002), traz para o indivíduo sentimentos de

constante incerteza, decorrente do isolamento e da precariedade dessa condição, instalando o

provisório como modo de existência. Os vínculos estabelecidos são superficiais e provisórios,

essa ausência de vínculos com a rede social, e a dominação da desconfiança e insegurança no

mundo da rua, fazem com que se gerem indivíduos altamente individualizados e com isso não

conseguem se inserir efetivamente em espécie alguma de coletividade.

A rua tem um cotidiano que se retrata a partir do uso de bebidas alcoólicas ou/e

drogas, migração e eventuais trabalhos. A subsistência é árdua e imprevisível, obtida através

de trabalhos esporádicos e/ou mendicância. O uso da bebida alcoólica representa uma grande

possibilidade de alívio dos anseios e estresses da vida de rua, baseando-se na idéia equivocada

de que a intoxicação etílica é capaz de trazer uma satisfação plena e absoluta. (PERES, 2001)

A rua por si só é um espaço, no qual se criou uma cultura diferencial e individualizada

em que as “regras” se baseiam na lei da sobrevivência. Com isso, os seus membros criaram

estratégias para não só a sobrevivência material, mas também a capacidade de se manter vivo,

tendo como causa principal de fuga a rua, o conflito com os familiares. Para Peres (2002),

essa vivência faz que os membros gerem em si insegurança, insatisfação, instabilidade,

conflitos sexuais, sentimentos de inadequação corporal e tendência ao isolamento e

retraimento nos contatos sociais, como também a falta de vínculos e sentimento de

desamparo, apresentando maiores tendências à depressão e ansiedade.

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2.2) Motivos para Vivência na Rua

A “opção” ou “decisão”, para se buscar a vivência na rua, chega após longo processo,

na opção por deixar de vivenciar diversos tipos de violência e pobreza e por buscar novas

alternativas de vida na rua (MALFITANO E FERREIRA, 2006). Essa opção de vida pode ser

dividida em: causas da população infantil, que para Ribeiro (1998) tem como suas razões da

fuga de casa pela vitimização por maus-tratos dos familiares (conflitos familiares), ou pela

necessidade de suprir carências decorrentes de sua condição socioeconômica.

Já Peres (2001) enfatiza que a população adulta caracteriza suas razões em dois

planos: psicológico (morte dos pais, conflitos familiares diversos e infidelidade conjugal) e

socioeconômico (desemprego e pauperização). Mas percebe-se que a causa principal de

ambas as populações são os conflitos familiares.

A busca de identidade dentro dos limites marginais da sociedade pode também estar se

revelando na necessidade de ora se misturar e ora se distinguir, nos diferentes circuitos

liminares que se entrecruzam na rua, por exemplo: da pobreza, das relações familiares, da

delinqüência, da violência e do trabalho desqualificado, ou mesmo procurar negar ou

distanciar-se deste contexto quando se tem, por necessidade, de utilizar os equipamentos

voltados a esta população. (VARANDA E ADORNO, 2004)

2.3) Invisibilidade Social

Interpreta-se invisibilidade social, em geral, quando se refere a seres socialmente

invisíveis, seja pela indiferença, seja pelo preconceito, o que nos leva a compreender que tal

fenômeno atinge tão somente aqueles que estão à margem da sociedade. Há várias formas de

invisibilidade social: econômica, racial, sexual, etária, entre outras. É o que acontece, por

exemplo, quando um morador de rua é ignorado de tal forma que passa a ser apenas mais um

objeto na paisagem urbana. O estado de indigência ou mendicância, que no caso se enquadra

o morador de rua, é o mais grave dentre as diversas gradações da pobreza material.

Para Gomez (2002) a exclusão é um fenômeno que incide em grupos sociais

vulneráveis, promovendo um aumento da precariedade ou mesmo a ruptura dos vínculos em

diversos âmbitos da vida. As formas de exclusão social podem ser caracterizadas por

trajetórias de labilidade dos vínculos sociais até sua ruptura completa, atravessando terrenos

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de dissociação ou desvinculação. Portanto, Gomez (2002) entende a exclusão social como um

amplo processo que envolve trajetórias de vulnerabilidade, fragilidade ou precariedade e até

ruptura dos vínculos, em cinco dimensões da existência humana em sociedade: trabalho,

família, cidadania, representações sociais e vida. As desvinculações neste âmbito configuram

situações de isolamento parcial ou completo e de solidão, nas quais os indivíduos não

compartilham nenhum lugar social, e não estão ancorados a nenhuma unidade de

pertencimento familiar ou comunitária.

Complementando este assunto, Paugam1 (1999 apud Varanda e Adorno, 2004)

identificou três fases nesse processo: a de fragilidade, relacionada à perda do emprego; a de

dependência dos serviços sociais (entendida no contexto de países europeus) e aquela

caracterizada pela ruptura dos vínculos sociais, "com um acúmulo de fracassos que conduz a

um alto grau de marginalização”.

Vinculando a questão de ser pobre, Gomez (2002) expõe também que a partir do

momento em que a pobreza é banalizada, é transformada em paisagem, ela não incentiva,

interpela responsabilidades tanto do individuo quanto do coletivo. Na dimensão humana, no

mundo da vida, a exclusão social pode atingir o seu limite, o limiar da existência humana. Os

grupos sociais excluídos que se vêem reduzidos à condição de sobreviver, de manter seu

metabolismo em funcionamento, são expulsos da idéia de humanidade e, por vezes, da própria

vida.

Onde entra a definição clara de invisibilidade social, a população que assiste essa

marginalização fica indiferente e contribui para o processo de exclusão desses indivíduos da

“sociedade visível” e de sua própria vida. Gomez (2002) também ressalta que essas pessoas

são consideradas pessoas descartáveis, que podem ser eliminadas das mais diferentes formas,

pois ninguém os reclamará. “Matar, mandando matar ou deixar morrer”.

Fica claro nessa citação que acontecimentos como a Chacina da Candelária são

eventos mais comuns do que imaginamos, e que como na época ocorreu, a sociedade não

reclama, e muitas vezes apóia esse tipo de ação, como se fosse uma “limpeza” da sociedade.

Pessoas que sobrevivem na pobreza e distantes de uma suposta rede de proteção social

experimentam vínculos sociais extremamente frágeis, que tendem a se fortalecer ou se romper

de acordo com as dificuldades que a realidade lhes apresenta e conforme o acúmulo de

experiências desestruturantes ao longo da vida. (VARANDA E ADORNO, 2004)

1 PAUGAM, S. O enfraquecimento e a ruptura dos vínculos sociais. In: SAWAIA, B. (Org.). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. São Paulo: Vozes, 1999.

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A exclusão social pode então ser definida como não ter nenhum lugar social, uma

sobrevivência limitada, singular e diária. Sem lugar social a conseqüência é a “invisibilidade

social”, o abandono cada vez maior das responsabilidades sociais sobre esses indivíduos. O

Estado não os vê e os membros da sociedade os trancam para fora de suas casas com alarmes

e câmeras, como se fossem selvagens e não fizessem parte sequer de uma relação humana de

sentimentos, desejos e futuro.

A população de rua tem simbolicamente para a sociedade o significado de lixo,

despojos (de gente), inúteis, desnecessários, uma população excedente. Excedente no sentido

de que sua existência não encontra nenhum lugar de pertencimento social. É o limite da

desvinculação, em vida, só ultrapassado na morte. (GOMEZ, 2002)

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3) JUSTIFICATIVA

Os motivos que levaram à iniciativa desta pesquisa foram que diariamente as pessoas

que vivem em centros urbanos se deparam, no cotidiano, frente a frente com “pedintes”,

“mendigos” e “menores de idade” trabalhando em semáforos (seja vendendo doces, fazendo

malabarismo, limpando os pára-brisas dos carros, etc.) ou simplesmente vivendo na rua, e

apesar deste contato no dia a dia, geralmente essas pessoas pouco sabem sobre esses

indivíduos que na maioria das vezes são ignorados.

O tema abordado visa conhecer e se aproximar do mundo desse sujeito que vive na

rua, compreender o que leva o indivíduo a esta situação, as dificuldades vividas em virtude de

este grupo ser afetado pelo fator conhecido como “invisibilidade social” e entender como eles

se sentem e se vêem em relação à sociedade.

Acredita-se que a partir do conhecimento sobre o meio em que vivem, poderemos

compreender os motivos que os levam a tal situação, suas expectativas e frustrações, para que

assim haja uma possibilidade de criar medidas preventivas, intervencionais e de inserção

social. Conhecer mais profundamente as necessidades sofridas pode auxiliar para a melhoria

de serviços de apoio médico, psicológico, educacional, assistência social, entre outros.

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4) OBJETIVO

Esta pesquisa tem como objetivo observar e analisar a vivência de pessoas que vivem

ou viveram na rua para compreender seus sentimentos, expectativas pessoais e suas vivências.

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5) METODOLOGIA

Esta pesquisa utilizou a metodologia qualitativa.

A abordagem qualitativa se afirma no campo da subjetividade e do simbolismo. O

“qualitativo” é considerado fundamental nas ciências humanas do presente, lidando e

explicando a compreensão de fenômenos por analisar seus significados. É preciso manter a

objetividade para estudar fenômenos em que também somos agentes e encontrar regularidades

no comportamento sem levarmos em conta motivações pessoais. O elemento essencial na

compreensão do fenômeno é o dimensionamento do seu significado (MINAYO e SANCHES,

1993).

A abordagem qualitativa realiza uma aproximação fundamental e de intimidade entre

sujeito e objeto, ambos sendo da mesma natureza há empatia aos motivos, às intenções e aos

projetos dos autores, a partir dos quais as ações, as estruturas e as relações tornam-se

significativas. Todavia, deve-se tomar cuidado para não reduzir a compreensão do outro e da

realidade a uma compreensão introspectiva de si mesmo. (MINAYO e SANCHES, 1993)

5.1) Participantes

A presente pesquisa teve como participantes quatro pessoas que vivem ou viveram na

rua, pertencentes a ambos os sexos, independente de faixa etária.

5.2) Local

O local foi negociado com o sujeito, de acordo com a disponibilidade de escolha e

condições mais convenientes para o sujeito, com a preocupação de manter o sigilo e

integridade do mesmo. Três entrevistas foram feitas na rua, em local mais reservado onde não

havia muito fluxo de pessoas, e uma foi feita em instituição religiosa, que serve todos os dias

café da manhã para os moradores de rua, sendo a conversa após o encerramento da atividade.

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5.3) Instrumentos

Para a realização desta pesquisa utilizamos caneta, papel, gravador em MP3 e roteiro

de entrevista semi-estruturado (Anexo A), elaborado para esta pesquisa.

5.4) Procedimento

Foi feita pesquisa teórica e consulta a profissionais da área para conhecimento do

tema, e posteriormente foi realizado entrevistas com pessoas com vivências de rua. Essa

entrevista com a pessoa que vive na rua foi estrategicamente de forma espontânea, abordando

o participante e observando sua aceitação. Feito isso, foi explanado sobre os objetivos da

entrevista e, antes de começar a entrevista, foi apresentado o TCLE – Termo de

Consentimento Livre e Esclarecido (Anexo B), que se refere ao anonimato das informações e

dos dados pessoais e também explicita o objetivo da pesquisa, a metodologia, e que os dados

finais poderão ser usados em demais pesquisas. O TCLE foi assinado pelos entrevistadores e

pelos entrevistados, deixando estes cientes de todas as condições, consentimentos das

entrevistas, e a gravação dessas.

5.5) Análise dos Dados

Para a análise de dados desta pesquisa foi utilizada a análise qualitativa. As entrevistas

foram transcritas na íntegra. Foi feito leitura exaustiva das transcrições, e após, interlocução

teórica com os referenciais e autores que abordam os temas tratados nesta pesquisa.

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6) RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os moradores de rua entrevistados foram em geral receptivos e cooperaram para a

realização desta pesquisa. Não houve recusa, sendo que os quatro primeiros sujeitos

abordados foram os quatro sujeitos da pesquisa. Foram entrevistados três homens com idade

de 31, 22, e 35 anos, e uma mulher com 58 anos. Todos se declararam de religião católica.

Um é natural da mesma cidade onde foi realizada a pesquisa, dois são de outra cidade, e um

de outro estado. Com relação à escolaridade, um não estudou, dois pararam no meio do ensino

fundamental, e um terminou o ensino fundamental, mas não iniciou o ensino médio.

Tabela 1: Apresentação dos Participantes

Nome Sexo Idade Religião Escolaridade Profissão Sofreu violência?

Tempo na Rua Motivo

S.A.R M 31 Católica Não tem/ Alfabetizado Não tem Sim/

Polícia 1 ano Prisão/ Família

M.G.A F 58 Católica Fundamental Incompleto Do lar Não 15 anos Prostituição/

Família

J.C.S M 22 Católica Fundamental Incompleto Não tem Sim/

Polícia 5 anos Prisão/

Família/ Desemprego

D.M.F M 35 Católica Fundamental Completo

Catador/ Artista

Sim/ Família e Polícia

1 ano Família/ Desemprego

6.1) Vivências

A vivência a margem da sociedade é muito nítida em todas as entrevistas. As

oportunidades são escassas e não há assistência social adequada para atender as necessidades

mais básicas dessa população de rua. Percebe-se que a ajuda que deveria ser governamental

acaba por chegar até eles através de doações de pessoas, entidades religiosas ou O. N. G.´s

(Organizações Não Governamentais). Mesmo com esse tipo de suporte, as necessidades dos

moradores de rua estão longe de serem supridas, e as carências estão em todas as áreas desde

biológica até emocional.

Malfitano e Ferreira (2006) expõem que as pessoas que vivem na rua, ou sobrevivem,

constituem um "ecossistema", uma estrutura à margem da sociedade. Pudemos confirmar esse

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dado durante as entrevistas, e apesar da “ajuda” que algumas pessoas ou instituições dispõem

para essas pessoas, eles são realmente vistos como uma estrutura à parte. O relato deste

morador expressa bem como é a rotina na rua, e como eles são posicionados na sociedade.

E: Hoje a senhora tem alguém que ajuda a senhora? M: Sobre o quê? E: Ai, é que às vezes dá uma roupa, às vezes ajuda a senhora em alguma coisa... M: Ah tem. E: Tem uma, uma pessoa só ou são várias? M: Ah onde eu comunicá sai bem. E: Sempre tem alguém né? M: É. E: Tem uma pessoa fixa, que está sempre com a senhoora, sempre ajudando? M: Não, só Deus, só Deus.

(Entrevista com M.G.A., linhas 164 a 173)

O uso de drogas, principalmente bebidas alcoólicas, também é muito comum devido à

exposição ao frio e como forma de fuga em processos psicológicos decorrentes da

marginalização, da exclusão, e em geral, das condições de vida do sujeito. Na próxima fala do

morador percebe-se que o fato de usar drogas não é encarado como algo anormal, e que pode

ser entendido até como sendo algo cultural, como se o uso de substâncias químicas fosse algo

que todo mundo vivencia um dia. “O uso da bebida alcoólica representa uma grande

possibilidade de alívio dos anseios e estresses da vida de rua, baseando-se na idéia

equivocada de que a intoxicação etílica é capaz de trazer uma satisfação plena e absoluta.

(PERES, 2001)”

E: Você tem família?... Você saiu de casa por quê? S: Eu sai... tipo, na infância... era tipo eu, como a gente se diz, eu era meio anafalbeto, era uma fase né? Tipo assim, eu tinha umas camaradagens, a gente era tudo muleque, tudo pequeninho, ia pra escola, joga marca, e batz... e... aí foi indo, foi indo, indo, ai começô com a cola, aí da cola fômo pra thiner, da thiner fômo pra lança perfume, do lança perfume fômo pra maconha e da maconha fômo andando. E foi tudo uma fase. Ai todo mundo tava pequeninho junto, tava indo junto.. Aí foi indo, foi indo, até hoje. Graças a Deus a gente tá vivo.

(Entrevista com S.A.R., linhas 108 a 115)

S: E onde eu falo pra vocês, quando a gente fuma... quando a gente fuma a gente fica... quando a gente fuma um pouco de droga assim muda a mente, vou contar pra senhora se eu umá um baseado, de maconha, assim um baseado mesmo, da ora mesmo, eu vou explica pra senhora, da ora, um baseado da ora mesmo (...) mas como eu tava dizendo pra senhora, se eu fumar um baseado da ora mesmo, eu converso com qualquer um, que e difícil a pessoa não se comove, é raridade, eu viro nenê, eu viro criança, eu começo a chora, e tal, e rolo no chão e do cabeçada na parede, até comove a pessoa. E comovo a pessoa...

(Entrevista com S.A.R., linhas 230 a 234; linhas 237 a 241)

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6.2) Motivos para Vivência na Rua

O motivo que levaram os participantes para a rua se mostrou bem parecidos, têm em

comum as desavenças familiares e problemas com as leis, desde drogas às infrações (não

especificadas por eles). “A população adulta caracteriza suas razões em dois planos:

psicológico e socioeconômico. Mas percebe-se que a causa principal são os conflitos

familiares. (PERES, 2001)”

Este fato esteve presente em todas as entrevistas, com ênfase nos conflitos familiares

como pode ser observado nos recortes abaixo.

E: É, e qual que é o motivo assim, que te levou pra rua? J: Ah, o motivo que me levou pra rua foi... foi primeiro o abandono da família, né. E: Aham... J: Abandono dos parenti, droga né, isso sempre leva...

(Entrevista com J. C. S., linhas 33 a 36)

E: Qual o motivo que te levou pra rua? D: Desemprego, poblemas familiares. Que nem... poblemas familiares, desemprego... primeiro poblema de família, depois desemprego.

(Entrevista com D.M.F., linhas 24 a 26)

A questão socioeconômica também chama atenção no caso da participante do sexo

feminino, pois ela precisou utilizar dos recursos que tinha para suprir suas necessidades

financeiras, o que a levou em pouco tempo, para a vida na rua.

E: Iii... o motivo então foi a senho... foi a senhora numm... as cunhadas? Foi só esse motivo que fez a senhora sair de casa ou teve outros? M: Aaaah eu... eu casei, o maridoo... não queria trabalhá né, eu passava necessidade então ficava venu as coisa na rua... prostituía né... pra podê ajudá em casa i (pausa) i eu tê vida né porque... me alimentá, tê minhas roupa.

(Entrevista com M.G.A., linhas 59 a 63)

De acordo com a literatura, este fato já foi constatado em estudos anteriores, sendo

comum ocorrer com pessoas como a entrevistada, que necessitam buscar na rua opções de

sobrevivência.

A “opção” ou “decisão”, para se buscar a vivência na rua, chega após longo processo, na opção por deixar de vivenciar diversos tipos de violência e pobreza e por buscar novas alternativas de vida na rua. Essa opção de vida pode ser dividida em: causas da população infantil, ou pela necessidade de suprir carências decorrentes de sua condição socioeconômica. (MALFITANO E FERREIRA, 2006)

Page 20: Vivências de Moradores de Rua

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6.3) Violência

Dois sujeitos sofreram violência e alegam ter sido por parte da polícia. Um alega que

sofreu tentativas de violência por parte do grupo familiar. Nenhum deles afirma ter praticado

violência na rua, mesmo para atender necessidades básicas.

Malfitano e Ferreira (2006) também pontuam que a partir de uma vivência na rua

começa-se assim a perceber uma rua onde existe o preconceito social, a indiferença, e a

violência física. Assim caracterizando-se como uma rua de violência, abandono e não respeito

aos direitos ou privação de direitos.

Através do recorte abaixo, podemos ter uma noção do desrespeito ao ser humano que

vive na rua.

E: Entendi. Você já sofreu muita violência na rua? J: Ah, por parte da policia cara... E: Mais por parte da policia, ou só por parte da policia? J: Só por parte dela memo. E: Assim, exclusivo da policia? J: É... uma vez nóis tava durminu eles acorda nóis... E: Mas por que eles acordam vocês? J: Num sei... porque num gosta da gente né, sei lá... E: É a toa assim, como se fosse meio por diversão? J: É... diversão. Uma veiz socaru fogo no cochão da gente, era duas hora da manhã. E: Foi a polícia? J: Num qué nem que a gente durma aqui em baixo do pontilhão mais, cara!

( Entrevista com J. C. S., linhas 106 A 117)

A violência, de alguma forma, está presente na vivência de todos os participantes.

Constatamos envolvimento em conflitos familiares, conflitos na rua, com a polícia e na

cadeia. Para eles isso só faz gerar revolta e raiva, como disse este participante.

E: Queimaram ate as roupas? J: As roupa, cochão, lençol... Então isso, isso daí gera uma revolta né cara,que, as autoridade fazê isso com quem, os morador de rua, que num mexe cum ninguém... senão eu virava bandido, né cara?!

(Entrevista com J. C. S., linhas 178 a 181)

Em contraponto, o entrevistado demonstra, no trecho abaixo, certo conformismo e

parece estar acostumado com essa violência.

S: Ooopa... pode nem olha pra cara da minha mãe, se olha depois eu passo o rodão... mas eu não vou correr e deixar a minha mãe, e aí é onde pode acontecer uma tragédia com a gente... Então é onde eu prefiro fica aqui na rua... Vai aqui, toma uns tapa da

Page 21: Vivências de Moradores de Rua

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polícia ali. Mas também, tem vez que eles não bate a toa não, tem gente que faz pro merecer, e os cara bate, mas mesmo assim tem muita opressão. Nóis num agüenta mais, num agüenta mais. Então tipo, eu evito ficá onde eles está... praça esses negócios não posso ir mais, eu vo daí a polícia qué bate na gente. E: Mesmo não estando fazendo nada? S: Mesmo se não tá fazendo nada... Passa os cara qué bate na gente. Então fica assim, eu ando sozinho, eu ando sozinho.

(Entrevista com S.A.R., linhas 171 a 180)

6.4) Família

Os entrevistados declaram não ter vontade de voltar para suas cidades e suas respectivas

famílias, por motivos pessoais e por preferir continuar na situação que estão, a voltar para a

convivência familiar, a qual muitas vezes é conturbada e sem afeto, trazem mais incômodo do

que conforto psicológico. E muitas vezes há o receio e medo do reencontro e da reação e a

relação com seus parentes. Deixam transparecer vínculos fragilizados, sendo todos mais

vinculados com a mãe. Três dos participantes tem a mãe falecida (sendo para um este o

motivo pelo qual foi para rua). Para um deles que foi preso, ao retornar da prisão sentiu

extrema rejeição dos familiares quando voltou para casa.

E: E a família da senhora é daqui? M: Eu nasci uma hora, minha mãe morreu as duas, eu tenho madrasta né. E: E ela é daqui de Ribeirão? M: Ela ultimamente mora. E: Mora aqui? M: (Sinal afirmativo com a cabeça). E: A senhora tem algumaaa... algum contato com eles, ou não? M: Aaaaah.... eles têm oficina de moto, tão bem di vida meus irmão, dois morreu ficou só um, tem um oto que minha madrasta arrumô na rua... tamém. Mas aí mais por causa deles porqueee (pausa) aaaaahh....muita desavença né! E: A senhora sente vontade de voltar pros seus irmãos, pro seu irmão? M: Ah não, eles tão tudo casado, tem filho, tem os pobrema deles, tem as... sogra que tá de idade, duente, então... Eu tamém to duente né, tem que tá...

(Entrevista com M.G.A., linhas 64 a 63; linhas 211 a 213)

A situação da família na sociedade brasileira tem sido muito desvalorizada e com isso

os recursos para a estrutura do lar estão cada vez mais desqualificados. Não há valorização da

moral e o consumo se tornou a prioridade das pessoas. O olhar para o próximo está cada vez

mais ausente, e isto se dá não só dentro de casa, mas também com relação aos moradores de

rua. Morar na rua é uma conseqüência de problemas mais estruturais, necessitando talvez

continuar este estudo dentro de uma perspectiva fenomenológica.

Page 22: Vivências de Moradores de Rua

25

6.5) Invisibilidade Social

Um fato interessante que constatamos com os participantes desta pesquisa é que eles

não se sentem “invisíveis” perante a sociedade, o que nos fez entender melhor o sentido de

invisibilidade social. Eles dizem perceber mudança de comportamento nas pessoas quando

passam, e se sentem muito observados quando estão no meio das outras pessoas, e que as

pessoas vêem sua situação, e que não passam despercebidos. Pelo contrário, os moradores de

rua se percebem visíveis, porém relatam pontualmente situações de preconceito, quanto a

atitudes das pessoas. Na literatura utilizada revemos que a definição de invisibilidade social

engloba indiferença e preconceito como fatores relevantes e que atinge aqueles que estão à

margem da sociedade.

A exclusão social como um amplo processo que envolve trajetórias de vulnerabilidade, fragilidade ou precariedade e até ruptura dos vínculos, em cinco dimensões da existência humana em sociedade: trabalho, família, cidadania, representações sociais e vida. As desvinculações neste âmbito configuram situações de isolamento parcial ou completo e de solidão, nas quais os indivíduos não compartilham nenhum lugar social, e não estão ancorados a nenhuma unidade de pertencimento familiar ou comunitária. (GOMEZ, 2002)

É interessante observar a visão dos moradores de rua quanto sua (in)visibilidade

social, o preconceito no dia a dia e a visão da sociedade em geral, que finge não os ver,

quando ao mesmo tempo eles sentem estar sendo notados e sendo evitados.

E: A senhora alguma vez, morando né, dormindo na calçada e tudo, a senhora alguma vez já se sentiu invisível pras pessoas? Como se as pessoas passassem e a senhora não tivesse ali? M: Não. E: As pessoas sempre... a senhora sentia que a senhora tava sendo enxergada, assim, que as pessoas olhavam pra senhora.? M: Sim, mais as vezes eu sentia ainda bem que não me viu. E: Aah... A senhora às vezes... era melhor assim? M: É as vezes euu...pensava: essa pessoa vai fazê maldade comigo. E ele não me via e eu falava ainda bem que não me viu.

(Entrevista com M.G.A., linhas 326 a 335)

Essa visibilidade depende muito de como cada indivíduo vivencia a experiência de rua,

para se sentir “invisível” e vítima de preconceito. Pode-se ver que os dois indivíduos que

tiveram passagem na prisão e uso de drogas se sentem extremamente excluídos da sociedade e

sentem mais esta “invisibilidade” e “preconceito”.

Page 23: Vivências de Moradores de Rua

26

6.6) Sentimentos

A vivência dos moradores de rua demonstrou ser bastante angustiante para o indivíduo

que a experimenta. Por andarem sempre sozinhos, não possuírem vínculos afetivos profundos

e terem amizades somente superficiais, os moradores de rua não possuem nenhum meio que

lhes garanta um alívio psicológico; percebe-se uma grande necessidade neles de terem alguém

que lhes escute com atenção e lhes dê conforto. Sua própria situação precária lhes obriga a ter

uma postura de onipotência, pois na rua é necessário que o indivíduo para sobreviver se

demonstre sempre confiante, nunca demonstrando suas fraquezas.

Durante a entrevista de dois participantes, pode-se notar a angústia presente em suas

falas.

S: (...) Foi ate bom né tia por eu até poder ter desabafado agora mesmo. Eu já tava ate triste nesta fita aí oh! Eu queria desabafa com alguém assim, que não ficasse falando da malandragem, onde a senhora só vai só pedra os cara fala, droga! A gente queria desabafa com alguém assim que queria escuta a gente assim, cê entendeu, e que poderia até dá até uma resposta assim, assim, que possa pra ajudar a gente sair desse...(Entrevista 1, linha 195 a 199)

S: Mas mesmo assim, tia, eles tinham que dá alguma coisa, tinham que dá as costa pra

nóis agora? (...) Tem que chama, conversa. Eu só conheço este caminho e por onde tô falando pra senhora, eles ficam virando as costas, a gente vai pedir uma oportunidade e tem gente que vira as costas. Também não precisa dá dinheiro, carro, casa, não! Dá um ombro amigo, uma palavra confortante, moça... já era tia, a gente já se sente melhor.

(Entrevista com S.A.R., linha 204 a 210) E: Tem mais alguma coisa que a senhora queira falará assim, contar? M: Aaaah... que Deus tenha sempre me olhado ii... (se emociona) que mi dê coisas

boa e me dê glória por tudo! (choro intenso e sentido, as lágrimas caiam pela sua face).

E: (Em silêncio, coloco a mão no seu ombro e acaricio o seu braço). M: (Chora intensamente por aproximadamente trinta e três segundos). E: Por que a senhora ta chorando Dona M.? M: (Chorando responde) Porque é triste...(choro). Saber que a gente tem que encará, e deixá as coisa pra lá e vivê, num é fácil não... (choro). E: É difícil?! M: É, mais nóis têm que suportá né?! (Choro)

(Entrevista com M.G.A., linha 336 a 345)

A população não os vê como membros da sociedade e é como se eles não fizessem

parte sequer de uma relação humana de sentimentos, desejos e futuro. “Este grupo social foi

excluído e foi reduzido somente a condição de sobreviver, de manter seu metabolismo em

Page 24: Vivências de Moradores de Rua

27

funcionamento, foram expulsos da idéia de humanidade e, por vezes, da própria vida.

(Gómez, 2002)”

Os moradores de rua também nutrem profundo pesar pela maneira como são tratados

dentro da sociedade, eles percebem o preconceito da população e se sentem por vezes,

incomodados com as atitudes das pessoas perante a presença deles. A sociedade adota certas

posturas que os fazem sentir como se nada estivessem fazendo neste mundo, como se não

servissem para nada e que sua ausência não faria diferença a ninguém. Estes sentimentos

puderam ser identificados em algumas da entrevistas.

S: (...) cê entra dentro do mercado, só porque cê tá sujo o mercado inteiro te segue, isso assim um modo de dizer, assim, o jeito que eu to aqui, aí põe uma roupinha melhor, bota um anel no dedo, um relógio (...)

(Entrevista com S.A.R., linhas 265 a 267) E: Aham... Além dos amigos que você já tem que você dorme junto, você faz amizade normalmente? J: Ah... ninguém qué faze amizade com nóis que é da rua, cê passa o povo tranca tudo, fecha até os portão né... (...)

(Entrevista com J.C.S., linhas 101 a 104) J: Ah, é duro né cara... cê passa por alguém, ta na porta assim, cê da um bom dia, já

pensa que cê vai pedi alguma coisa, já fecha o portão... é terrível. E: E você se sente visível perante os outros, perante a sociedade? J: Ah demais né cara... Cê se sente, ahhh... cê passa, fica todo mundo olhando, sua

ropa que ta vestido, que ta todo sujo né, o povo... cê fica ate com vergonha de passa no meio do povo... assim no ponto de ônibus,fica te olhando...

(Entrevista com J.C.S., linhas 128 a 133) E: O que você pensa assim, dessa situação que você ta hoje, como você se sente? J: Ah, a gente se sente um Zé ninguém né cara, se sente um Zé ninguém...

(Entrevista com J.C.S., linhas 191 a 192) Segundo Gomez (2002) a população de rua tem simbolicamente para a sociedade o

significado de lixo, despojos (de gente), inúteis, desnecessários, uma população excedente.

Excedente no sentido de que sua existência não encontra lugar algum de pertencimento social.

6.7) Expectativas Pessoais

Como conseqüência de serem desconsiderados pela sociedade como seres humanos

com sentimentos, desejos e futuro, os moradores de rua não possuem expectativas muito

Page 25: Vivências de Moradores de Rua

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grandes quanto ao seu futuro, sendo que seus planos são constituídos de elementos bem

simplistas e carregados de desesperança. Três dos entrevistados deixaram bem explícito que

suas expectativas pessoais são baixas ou quase inexistentes.

E: Que coisa né... (Pausa). A senhora tem algum plano pro futuro, a senhora tem vontade de fazer alguma coisa? M: (Silêncio). (Balança a cabeça em sinal negativo). Pro futuro? Agora... (Pausa). (...) E: Então hoje a senhora num... almeja nada, não tem planos, nada? Como que a senhora visualiza assim, que aa... que vai ser a velhice da senhora? M: Aah eu sempre fui brincalhona né, onde eu penso... trabalhá, fazê as coisa, fazê o bem, só isso.

(Entrevista com M.G.A., linhas 264 a 266; linhas 277 a 280) E: E o que você acha do seu futuro aí, o que ta vindo pela frente? J: O meu futuro... acho... que num tem nem como fala né cara... E: Você tem alguma expectativa? Alguma perspectiva, tipo, ah vai acontecer isso!...? J: Ah... o que eu esperava era uma melhora né cara... Sair das ruas cara né, ter um... E: Ter um lugar e uma casa...? J: Uma casa né... E: E você faz planos? Um plano pro desejo de conseguir ter essa casa? J: Ah, só se eu arrumasse um trabalho né cara. Vo fala pro cê, eu num desejava muito não, só desejava te uma casa, uma televisão, um sonzinho só, só isso cara...

(Entrevista com J.C.S., linhas 182 a 190) E: Não,beleza! Ahn... Qual que é sua perspectiva pro futuro? O que você espera? D: Olha, eu pretendo arrumar um trabalho fixo, se eu não consegui eu pretendo fugi... Porque essa vida que eu levo é meio assim, uma vida duvidosa, cê entende? Às vezes eu ganho muito, as vezes eu ganho poco, as vezes num ganho nada, é uma coisa assim meio indecisa, incerta entende? Eu não tenho certeza do que eu vo te, do que eu vo ganha, eu amanheço o dia assim a deriva, sem perspectiva, sem nada. E: Ta. E assim, você faz algum plano pro seu futuro? D: Eu faço o plano de consegui um emprego.

(Entrevista com D.M.F., linhas 161 a 168)

Segundo Peres (2002), a vivência de rua traz para o indivíduo sentimentos de

constante incerteza, decorrente do isolamento e da precariedade dessa condição, instalando o

provisório como modo de existência. Para conseguir sobreviver nas condições, geralmente

violentas, que a rua impõe, os moradores de rua têm que garantir, pelo menos, um mínimo de

asseguramento de existência pessoal (MENEZES E BRASIL, 2008).

Estas idéias propostas nos permitem entender melhor o porquê da falta de expectativa

pessoal, e porque seus planos para o futuro são tão escassos e simplistas, mesmo quando os

moradores de rua se encontram ainda na faixa dos 20 aos 35 anos.

Page 26: Vivências de Moradores de Rua

29

7) CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com este projeto de pesquisa, sobre as vivências de moradores de rua, foi possível

averiguar na integra as condições em que vivem ou viveram, suas expectativas, os motivos

que os levaram a esta condição e, com isso, ampliamos nossa visão sobre o este fato e

compreendemos um pouco sobre este “ecossistema”. Os participantes apresentam uma rotina

de atividades diárias, estas que por sua vez são de caráter individual, cada um cria seu próprio

método para sobreviver. A violência está presente em suas vidas seja dentro da família (que é

a principal causa da saída de casa para a rua), de pessoas mal intencionadas ou por parte da

polícia.

A principal causa para essa vivência na rua é de caráter familiar, os conflitos, a morte

de um familiar que mantinha a união do grupo ou a junção desses fatores. Logicamente este

fato é agravado em virtude da condição financeira dos indivíduos uma vez que, levados pelo

conflito interno familiar, saem de casa sem saber para aonde ir e sem reservas para tentar se

reestruturar no âmbito social. Outro fator relevante neste drama é o nível educacional que,

geralmente, é de ensino fundamental incompleto. Sem estudo e sem uma qualificação

profissional ficam a mercê de sua própria força de vontade e da sorte.

Pode-se verificar ainda a percepção deles em relação à invisibilidade social. Eles dizem

sofrer preconceito e discriminação, mas que não se sentem “invisíveis”, pelo contrário,

conforme um dos entrevistados disse as pessoas os olham sim, nem que seja por causa de suas

vestimentas sujas. Apesar das condições em que sobrevivem sentem que tem seu lugar na

sociedade e que as pessoas às vêem e as percebem.

Nos relatos fizeram se visível a relação deles com álcool, drogas e a prostituição. A

entrevistada contou já ter se prostituído, como forma de ganhar dinheiro e sobreviver diante

de tantas dificuldades. Dois dos entrevistados, quando foram abordados pelo entrevistador,

estavam tomando álcool de posto de combustível, e um deles relata ter sido usuário de drogas.

Diante do material utilizado para a elaboração, da Revisão de Literatura, constatamos em

nossas entrevistas haver paridade com as teorias pesquisadas, e foi possível observar a

percepção que eles têm de si mesmos e da situação em que vivem. Um fato que se pode notar

é o da carência, demonstraram que, apesar de viverem em grupos, sentem-se isolados e

valorizaram o pouco tempo de conversa que tiveram com os entrevistadores.

Acreditamos que este projeto de pesquisa tenha contribuído em nossa formação

acadêmica no curso de psicologia de forma a nos proporcionar uma visão mais ampla e

Page 27: Vivências de Moradores de Rua

30

investigativa. Outra contribuição que se traz é para a nossa responsabilidade social

conhecendo o meio em que vivem e suas vivências. E para os moradores, ou ex-moradores de

rua, o projeto traz como contribuição a ampliação de conhecimentos pertinentes a indivíduos

que se encontram nesta situação e a compreensão de diversos fatores que estão envolvidos

neste tema. Há ainda a possibilidade de, através de troca de informações

multidisciplinarmente, contribuir para serviços de atendimento e de auxílio aos moradores de

rua, trabalhando preventivamente, intervindo e inserindo-os socialmente. E por último, mas

não menos importante, acreditamos ter contribuído diretamente com os entrevistados, de

forma singela e breve, conversando e dispondo de nossa atenção por alguns instantes,

trocando idéias e informações, e permitir que se expressem e sejam ouvidos, que para nós

pode parecer uma coisa pequena, mas para eles tem um significado maior tendo em vista

justamente a exclusão social que estão sujeitos.

Temas que possivelmente podem ser abordados em futura pesquisa, ou projeto de

pesquisa, poderão basear-se em questões de âmbito psicológico, por exemplo, como a não

ocorrência de relações interpessoais afeta o indivíduo e a gravidade que acarreta para sua

auto-estima. Ou então, como eles se divertem ou aliviam as tensões, onde já é sabido que

recorrem ao álcool e as drogas como tentativa de fuga da realidade. Mas como eles sentem

isso, o que é, o que significa para eles? São questões interessantes para serem pesquisadas.

Pode-se também procurar verificar formas de ajudar essas pessoas a saírem das ruas

procurando saber como podem ser inseridos socialmente e que tipo de qualificação

profissional poderia ser ensinado, se eles querem aprender e de que forma poderia ser feito

isso. E quanto à questão familiar aprofundar-se na questão dos conflitos, uma vez que este é a

principal causa da vivência na rua, ampliar a literatura sobre o assunto procurando ir cada vez

mais perto da raiz do problema.

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8) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GOMEZ, Carlos Minayo et al. A construção do socioambiente insustentável. Informe Epidemiológico do Sus, Brasília, v. 11, n. 3, set. 2002. HUTZ, Claudio Simon; KOLLER, Sílvia Helena. Questões sobre o desenvolvimento de crianças em situação de rua. Estudos de Psicologia, Natal, v. 2, n. 1, jun. 1997. MALFITANO, Ana Paula Serrata; FERREIRA, Rubens de Camargo. Infância, juventude e vivências nas ruas: Entre o imaginário da instituição e do direito. Imaginário, São Paulo, v. 12, n. 12, p.15-33, jun. 2006. MENEZES, Deise Matos do Amparo; BRASIL, Kátia Cristina T.. Dimensões psíquicas e sociais da criança e do adolescente em situação de rua. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 11, n. 2, maio 2008. MYNAIO, Maria Cecília de S.; SANCHES, Odécio. Quantitativo-qualitativo: oposição ou complementaridade? Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p.239-262, jul/set. 1993. PERES, Rodrigo Sanches. Andarilhos de estrada: Estudo das motivações e da vivência das injunções características da errância. Psico-usf, São Carlos, v. 6, n. 1, p.67-75, jun. 2001. PERES, Rodrigo Sanches. Tão longe, tão perto: Andarilhos de estrada e avivência do distanciamento familiar. Psic - Revista de Psicologia da Vetor Editora, São Carlos, v. 3, n. 2, p.6-13, 2002. RIBEIRO, Moneda Oliveira. A rua: um acolhimento falaz às crianças que nela vivem. Revista Latino-americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 11, n. 5, out. 1998. VARANDA, Walter; ADORNO, Rubens de Camargo Ferreira. Descartáveis urbanos: discutindo a complexidade da população de rua e o desafio para políticas de saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, abr. 2004.

Ônibus 174. Dir. José Padilha. Zazen Produções. Rio de Janeiro, 2002.

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32

9) ANEXOS

A) Roteiro de Entrevista Semi-Estruturado

1) CARACTERIZAÇÃO DO PARTICIPANTE:

- Nome:

- Sexo:

- Idade:

- Religião:

- Naturalidade:

- Escolaridade:

- Trabalho/ Profissão:

2) ENTREVISTA – QUESTÕES:

- Há quanto tempo está na rua?

- Qual o motivo que o levou para a rua?

- Tem algum problema de saúde?

- Possui família na cidade onde vive?

- A família tem residência?

- Como é a relação com a família?

- Já sofreu violência por membros do grupo familiar?

- Foi criado pelos pais biológicos, ou por parentes?

- Sente vontade de voltar pra casa?

- Possui descendentes?

- Possui relacionamento afetivo?

- Como foi a infância?

- Vive em grupo ou isolado?

- Faz amizades?

- Já sofreu violência na rua?

- Já praticou violência na rua?

- Sofre ou já sofreu preconceitos? Como?

- Sente-se invisível perante a sociedade?

- Se desempregado, já procurou trabalho depois que mora na rua?

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- Exerce alguma atividade que proporcione remuneração?

- Como consegue sobreviver?

- Recebe ajuda de pessoas conhecidas/ fixas?

- Explane sobre como é a rotina.

- Qual a lembrança mais marcante?

- Sente perspectiva para o futuro? Quais seus planos e desejos?

- Qual é o sentimento que tem diante da atual situação?

Page 31: Vivências de Moradores de Rua

34

B) Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

Eu, ___________________________________________________________,

portador (a) do RG n° __________________________, através desse documento, aceito

participar de forma voluntária da Pesquisa “Vivências de Moradores de Rua”, desenvolvido

por Bruno Alberto P. de Sant Ana, Maísa Ferreira V. dos Santos, Mariana de Oliveira Bonato,

Rhianne Yukana Ishihara, e Tiago Pratis da Silva, estudantes do Curso de Graduação em

Psicologia, da Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP), sob a orientação da Professora

Doutora Solange Aparecida Serrano, RG-21.279.362.

Fui informado (a) de que o objetivo desse trabalho é observar e analisar a vivência de

pessoas que vivem ou viveram na rua para compreender seus sentimentos, expectativas

pessoais e suas vivências. Para tanto, é preciso realização de uma entrevista com pessoas que

tem ou tiveram esse vivência.

Estou ciente de que minha entrevista poderá ser gravada em MP3 compondo o

material para a análise da pesquisa em questão.

Fica explicitado que se espera que este estudo possa contribuir para melhor

entendimento dessa realidade, fornecendo dados e reflexões sobre essa temática.

Todas as minhas dúvidas em relação ao trabalho foram esclarecidas e os pesquisadores

se disponibilizaram a fornecer quaisquer esclarecimentos no decorrer de seus estudos. Fui

informado (a) de que o mesmo será realizado seguindo princípios éticos, garantindo sigilo das

informações e anonimato do participante.

Fui esclarecido (a) de que as informações serão utilizadas com fins no estudo

proposto, podendo subsidiar outras pesquisas, ficando os pesquisadores autorizados a

publicarem o resultado desse trabalho para fins de publicação e divulgação científica,

assegurando a não identificação nominal da pessoa envolvida.

Page 32: Vivências de Moradores de Rua

35

Fui assegurado (a) de que não haverá riscos para mim, mas sim um possível

benefício, já que será oferecido um espaço de escuta para minhas vivências, o que pode

contribuir para minha vida emocional em geral.

Estou ciente de que esta entrevista pode deixar de ser realizada se eu considerar

necessário, em qualquer fase da pesquisa.

Ribeirão Preto, ________ de _______________ de 2008.

Assinatura do (a) Participante ____________________________________

Pesquisadores: ● Bruno Alberto P. de Sant Ana, RG 35.326.690-5 SSP/SP. Endereço: Av. Costábile Romano, 2.201 – Ribeirânea – Ribeirão Preto/ SP. Telefone: (16) 8134-7551. ● Maísa Ferreira V. dos Santos, RG 27.075.554-8 /SP. Endereço: Av. Costábile Romano, 2.201 – Ribeirânea – Ribeirão Preto/ SP. Telefone: (16) 8121-5420. ● Mariana de Oliveira Bonato, RG 43.864.097-4 /SP. Endereço: Av. Costábile Romano, 2.201 – Ribeirânea – Ribeirão Preto/ SP. Telefone: (16) 9142-4180. ● Rhianne Yukana Ishihara, RG 43.687.826-4 /SP. Endereço: Av. Costábile Romano, 2.201 – Ribeirânea – Ribeirão Preto/ SP. Telefone: (16) 9138-0231. ● Tiago Pratis da Silva, RG 33.559.448-7 /SP. Endereço: Av. Costábile Romano, 2.201 – Ribeirânea – Ribeirão Preto/ SP. Telefone: (16) 8155-0029. Assinaturas:_________________________________________________________ Universidade de Ribeirão Preto – UNAERP Curso de Psicologia Av. Costábile Romano, 2.201 Ribeirânea

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C) Entrevistas

Morador de Rua 1 Data: 27/10/08 Entrevistador (E) – Maísa Ferreira V. dos Santos Morador de Rua (S) – S. A. R. 1. S: Mas e ai? Que é isso dai... que é isso dai gravando? 2. E: Hum? 3. S: Que é isso dai gravando? 4. E: É, isso vai gravando... 5. S: Mas já ta falando? 6. E: Não, mas vamos... Agora vou começar gravar, ta bom? 7. S: Agora vamo vê como posso te explica... 8. E: Por que fica mais fácil, por que se não eu vou ter que... 9. S: Tem pergunta que a gente pode ficar meio envergonhado, meio... 10. E: Se você não quiser responder, não responde. 11. S: Responder a gente responde tudo, também a gente assim com pessoas que a gente 12. sabe que... que a gente se sentiu bem, assim, viu uma certa paz, assim... entendeu 13. moça? É outra coisa... Mas tem coisas que não vai dar para responder, assim... é um 14. pouco de vergonha, um pouco de constrangimento, assim... Tem cara que é gay, aí vai 15. falar que não é, com todo respeito. Tem aí, eu te mostro, parece homem. 16. E: (risos) É, isso existe. 17. S: Tem aí, eu te mostro. Parece homem, um ali e um que tá ali. Tem que se verdadeiro. 18. Ele é meio gay (risos). Não! Vou mostrar ele pra você. Não! Eu quero mostra pra você 19. agora! Dá licença, quero ver se ele ta ai. 20. E: Eu não vou perguntar isso. 21. S: (Neste momento sai da mesa para mostrar) Tá vendo o primeiro de bonezinho, o 22. primeiro da porta? Ó o tipinho dele, olha pra ocê vê... Não, olha lá! O que está na 23. entrada daqui pra lá, do lado esquerdo nosso... Aqui ó, de bonezinho preto, baratim 24. branco na testa. 25. E: A tá. 26. S: Deixa eu vê outro... ó aquele ali, aquele de camiseta branca, atrás da moca... olha lá 27. aquele lá, tá vendo aquele lá? Ele é meio, ele é meio... Não, mas se falá pra ele, ele fica 28. bravo, ele pode ate matá. Mas ele é masculino e feminino. Mas ele acha que eu não sei, 29. ele e mais uns aí. Tem uns cara aí que sai com alguns viados aí e... né!. Viado paga 30. uma oportunidade e daí ce já viu né, acontece tudo. Com todo respeito da palavra, 31. viado paga uma certa quantidade, mas aí chega lá, e vê que o cara lá é meio fraquejado, 32. daí pega e paga outra quantidade, né... ai já acontece tudo. Então quer dizer, esses caras 33. é desse jeito (uma risada ofegante)... Então é uma coisa que eu não ia responder, mas 34. agora eu até tô com vergonha. Mas... 35. E: Não, não. Mas isso é a vida. 36. S: Cê entendeu? Mas tem muitas coisas que a gente não vai poder responder. 37. E: Não, não. Mas isso faz parte do ser humano. 38. S: Falou isso aí, falou tudo. Falá mais o que, né tia? Com todo respeito, né tia? 39. E: Tá bom, o seu nome inteiro é S. A. R., né? 40. S: S. A. R. (correção no primeiro nome).

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41. E: S. 42. S: É tipo, sou pobre, mas tipo assim, um nome assim já é meio difícil né? Ce vê, tem d 43. mudo, tem y. Nem rico tem nome assim desse jeito, moça. 44. E: Sexo é masculino. 45. S: Mais ou menos tem que ver certinho (risada ofegante). Não, não, tô brincando. 46. E: Idade? Você sabe mais ou menos? Pode falar. 47. S: Mas já ta falando? 48. E: Já. 49. S: O que eu falei aqui, cê gravou tudo também? Meu Deus, moça! 50. E: Eu posso tirar. 51. S: Não, não, deixa! Mas não pode falá quem que é a pessoa. 52. E: Não (risos), não falo. 53. S: Se não eles me bate. E ai? 54. E: Idade? 55. S: 31 ano. 56. E: 31? 57. S: 31. 58. E: Você tem alguma religião? Você tem algum... 59. S: Então, pensamento mesmo. 60. E: Pensamento? 61. S: Ontem mesmo, teve um rapaz ali, que me falo ali, que me topô ali, que é filho do 62. vizinho da minha mãe, que me trombo e falou que tem uma palavra urgente, amanhã, 63. terça-feira, que é pra eu ir sem falta na igreja. 64. E: Na igreja? 65. S: Então, é lá na porto-seguro. Quem sabe se eu posso, né?! Mas minha religião eles 66. falam que é católico. 67. E: Católico? 68. S: É católico, é assim mesmo que fala? 69. E: Sim, mas as pessoas tem o hábito de falar católico não praticante. 70. S: Mas é isso mesmo, sou católico não praticante. 71. E: Você é daqui mesmo, de Ribeirão? 72. S: Nascido e criado aqui mesmo, na periferia. 73. E: Ah. 74. S: Pra ajuda, pra incrementar, né moça?! (risos) 75. E: Você completou toda sua escolaridade? Completou tudo? 76. S: Não. 77. E: Não tem a escolaridade completa. Fez o primeiro grau? 78. S: Primeiro grau? Que é isso?!!! 79. E: Até o quarto ano? 80. S: Não... O primeiro grau nosso e até o prezinho, saiu do prezinho já era. Eu mesmo 81. não estudei, só mesmo até o prezinho. Aprendi a escrever meu nome e algumas poucas 82. palavras engarranchadas mais na FEBEM, e na cadeia, e na rua. 83. E: Hum. 84. S: Cê entendeu? 85. E: Entendi. Ai você... 86. S: Na cadeia nem foi tanto, foi mais na FEBEM, porque a gente era mais novo e presta 87. mais atenção. 88. E: E lá na cadeia eles não ensinam? Não tem escola? 89. S: Escola? Na cadeia? Tem, tem, mas tipo, muitas vezes o neguinho não vai por causa 90. da opressão mesmo, tem funcionário que é folgado... As vezes cê ta ali e por causa de

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91. uma brincadeira, tudo eles te arrasta pro castigo... Mas tem estudo, tem serviço. 92. E: Lá também tem? Mas você... 93. S: Mas se você for analisar pra trabalha não compensa, vai tira da cadeia, e vai 94. trabalha, pra tira aquele pouquinho, mas ainda... tipo, depende da situação 95. esculachada... cê trabalha 10... cê trabalho 2 ano, mas talvez cê cato um ferrinho pra cê 96. faze um manual, um ferrizinho pra fazê manual, fazê uns trampinhos, ai já te manda 97. pra o castigo por trinta dias... Se ti cata com uma serrinha desse tamanhozinho, eles já 98. te manda pro castigo por trintas, até tu fica bom de da cabeça. Bate. Mas tem estudo, 99. tem serviço, tem tudo isso. A gente não pode mentir. 100. E: Mas você aprendeu, então, só o básico? 101. S: Mais na FEBEM. Na escola eu não digo... Eu sei mais ou menos... mas se eu ler 102. tudo isso daqui eu vou entender. 103. E: Humhum. 104. S: Mas pra eu entender eu vou ler, e depois ler... 105. E: Devagarzinho? 106. S: É ler. Aí eu vou nos pedaços, mas eu só vou nos pedaços mais importantes e depois 107. eu consigo recordar os outros. 108. E: Você tem família?... Você saiu de casa por quê? 109. S: Eu sai... tipo, na infância... era tipo eu, como a gente se diz, eu era meio anafalbeto, 110. era uma fase né? Tipo assim, eu tinha umas camaradagens, a gente era tudo muleque, 111. tudo pequeninho, ia pra escola, joga marca, e batz... e... aí foi indo, foi indo, indo, ai 112. começô com a cola, aí da cola fômo pra thiner, da thiner fômo pra lança perfume, do 113. lança perfume fômo pra maconha e da maconha fômo andando. E foi tudo uma fase. 114. Ai todo mundo tava pequeninho junto, tava indo junto.. Aí foi indo, foi indo, até hoje. 115. Graças a Deus a gente tá vivo. 116. E: Todos? 117. S: Todos não, é só eu e mais... não, é só eu e mais... Não, da minha época mesmo é só 118. eu vivo, meu último companheiro a polícia matô. Assim da minha época! Não, porque 119. tem cara da minha época, tem muita gente da minha época... Mas eu falo da vida que 120. eu vivi, daquele grupo nosso, que viveram com nós, com aquele grupo nosso... 121. E: O seu grupinho que você vivia. 122. S: Não, tem um! Não to mentindo, tem o W., ele era o mais novinho, ele ia atrás de 123. nós só pra compra coisas pra nós. O W. e o meu primo B., tem só os dois, assim, da 124. minha época assim. 125. E: Que sobreviveram, que estão vivos? 126. S: Nóis começô aquela nossa fazinha junta assim, que começô assim, que era mais 127. envolvida era só eu, mais tem muita gente viva... Aí os caras sempre corria de nós, 128. sempre a gente tomava eles, pegava deles pipa, latinha... 129. E: Molecagem? 130. S: É molecagem... até ir chegando nessas outra fase. 131. E: Adolescência? 132. S: ... Até esses dias... tinha... até pouco tempo tinha um companheiro meu vivo, nóis se 133. encontrou lá dentro da cadeia de Iperó... Acho que fazia uns dez anos, quinze anos já, 134. que ele tava preso, aí eu foi preso, aí encontrei ele lá, aí depois parece que ele saiu e 135. ele morreu. 136. E: E você já falou que tem família, e você não tem nenhuma relação com a sua família 137. agora atual? 138. S: Ah tem né! Se a gente for lá, né, eles não gosta, não vai gostar, né! Quando chega 139. na reação na frente da gente, porque sabe o que a gente já foi, respeita queira ou não 140. queira, porque sabe que a gente ajudô também... posso estar nesta situação, mas

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141. também já ajudei muita gente também. Hora que chega lá eles trata bem também, mas 142. aquele trata bem ali e mas hora que chega (imitacao de cochichos)... Tá mi tirando?! O 143. que ele ta fazendo aqui? Não é pra ele vim mais aqui. Então fica um papo forçado... 144. hiiiiii, é né! 145. E: Tem pai e mae? 146. S: Hum? 147. E: Pai e mãe? 148. S: Pai e mãe eu tenho graças à Deus. Meu pai faleceu faz doze anos que não via 149. ele, aliás, que não vejo ele, porque ele faleceu. Eu fiquei algum tempo foragido aqui 150. em Ribeirão, fui pro mato... e depois... aí quando voltei do mato fui pra cadeia. 151. E: E você tem sua mãe aqui? 152. S: Tenho minha mãe! 153. E: Ah que bom. 154. S: Mas só que é ela lá e eu aqui, né. Até então não é porque que ela não qué, é porque 155. ela é mãe, e mãe você sabe. 156. E: Mãe é mãe. 157. S: Mãe você pode ser do jeito de for, você continua filho, não tem jeito... Mas eu tô 158. assim, é que, se acontecer alguma coisa comigo, ela taria participando, ela vendo, e eu 159. não quero isso. Pode acontecer o que for comigo, se você for, pode colocá dez cara pra 160. me pegá, eles vão me pega. Porque todo mundo me conhece, aqui, eu sou conhecido 161. como mequetrefi. Todo mundo que me pega, mas... quando eu bate o pé uns cinco, 162. seis, sete vai afastá pra trás, porque me conhece. Porque já sabe que o primeiro que eu 163. pô a mão, porque se eu vo morre mesmo, o primeiro que você gruda, já gruda, já deita 164. com ele e já era, só pô a coberta. A gente não qué não que isso, mas o povo conhece, 165. então o tem esse respeito, pra mim não acontecer isso, porque posso sai dali e te dez 166. cara pra me pegá. Sabendo que minha mãe ta aqui dentro, porque ali posso dá um soco 167. na cara de um e corre... miaça e corre, miaça que o mundo faça se consegue correr, 168. mas dai sabendo que a minha mãe esta aqui, como posso corre sabendo que vou deixá 169. minha mãe? Não que vai acontecer alguma coisa com minha mãe... 170. E: Por que tem o respeito, né? 171. S: Ooopa... pode nem olha pra cara da minha mãe, se olha depois eu passo o rodão... 172. mas eu não vou correr e deixar a minha mãe, e aí é onde pode acontecer uma tragédia 173. com a gente... Então é onde eu prefiro fica aqui na rua... Vai aqui, toma uns tapa da 174. polícia ali. Mas também, tem vez que eles não bate a toa não, tem gente que faz pro 175. merecer, e os cara bate, mas mesmo assim tem muita opressão. Nóis num agüenta 176. mais, num agüenta mais. Então tipo, eu evito ficá onde eles está... praça esses negócios 177. não posso ir mais, eu vo daí a polícia qué bate na gente. 178. E: Mesmo não estando fazendo nada? 179. S: Mesmo se não tá fazendo nada... Passa os cara qué bate na gente. Então fica assim, 180. eu ando sozinho, eu ando sozinho. Cê viu o tanto de caixa que eu truxe nas costas 181. sozinho. 182. E: Eu vi. 183. S: E não foi de longe, foi daqui. E eu falei com o rapaz, nossa vou pará com a pedra... 184. que eu... vou pará... parei... falei vou pará porque tá sendo muito esculacho, muito 185. esculacho que nós tá levando por causa de pedra, pra gente pura que a gente foi no 186. passado, hoje a gente ta sendo esculachado no presente... Então fica difícil a gente 187. consegui compreende, mas por um lado os cara não tá errado, tá fumando pedra. Mas 188. cara que fuma pedra também não é assim também, tem gente que respeita, tem gente 189. que não respeita também, tem cara que sabe fazê nada, só sabe ratiá a família, uns 190. róba, uns cata sucata. Eu já tenho uma ética, eu aprendi dentro da cadeia, mas comigo

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191. mesmo, eu tiro dos ricos de todas as maneiras. Ou roubando, ou pedindo, ou fazendo 192. serviço pra eles... essa é minha ética de tira deles, eu pego dos tapetes deles pode ser o 193. que for, mas eu quero tirar é dos ricos, um pouquinho, entendeu? aí.... essa é a vida 194. que a gente leva, mas aí eu to sempre... Mas a gente sempre tem que ta sussegado... né 195. tia? Foi ate bom né tia por eu até poder ter desabafado agora mesmo. Eu já tava ate 196. triste nesta fita aí oh! Eu queria desabafa com alguém assim, que não ficasse falando 197. da malandragem, onde a senhora só vai só pedra os cara fala, droga! A gente queria 198. desabafa com alguém assim que queria escuta a gente assim, cê entendeu, e que 199. poderia até dá até uma resposta assim, assim, que possa pra ajudar a gente sair desse... 200. E: Exclusão da sociedade? 201. S: É verdade, ah mas também... tá fazendo um pouco por onde, também, ser um pouco 202. excluídos deles. 203. E: Mas também...? 204. S: Mas mesmo assim, tia, eles tinham que dá alguma coisa, tinham que dá as costas 205. pra nóis agora? Talvez se eu vo ali, eu vo e roubo esse pão da senhora, e aí vo pra 206. outra senhora ali e ela vira as costas pra mim, não pode. Tem que chama, conversa. Eu 207. só conheço este caminho e por onde tô falando pra senhora, eles ficam virando as 208. costas, a gente vai pedir uma oportunidade e tem gente que vira as costas. Também 209. não precisa dá dinheiro, carro, casa, não! Dá um ombro amigo, uma palavra 210. confortante, moça... já era tia, a gente já se sente melhor. Você vai ali já toma um 211. chute, vai ali toma um tapa, vai lá toma um emporrão, vai alí o neguinho joga água 212. quente, modo de dizer, né... Então é por isso que eu virei o mequetrefi. 213. E: O que quer dizer mequetrefi? 214. S: Ah, hum (risos)... 215. E: E? 216. S: Mequetrefi é mequetrefi. Eu cheguei nessa situação, um dia nóis tava, já que a gente 217. ta conversando mesmo, tava na cadeia, e porque muita coisas vocês vão corta, nóis 218. tava na cadeia ai, nóis tava num debate no barraco... existe isto, né, tipo assim tá no 219. barraco, tal, tá conversando, tal-tal-tal... e aí tem um programa que um qué assiste e o 220. outro não qué e o outro, aí “blalalah”, aí comeca o rolo. Aí é tipo uma família, nosso 221. barraco é uma família, uma família gerada, todo mundo era até irmão assim, e tinha 222. até um irmão assim, um gayzinho assim, mas ninguém mexia... o bagulho ficava só 223. pra ajuda nóis... Então a gente tava no maió debate, na maió discussão assim, ai o cara 224. grito: “seus mequetrefi, ninguém qué me escuta!”. Aí nóis paro na dele, aí hoje quase 225. na cidade inteira é mequetrefi, a senhora pode ir onde a senhora for. É só chegar ali 226. fora, aí é só chega lá e fala: aí o mequetrefi! e aí uns dois ou três olha acha que ele ta 227. ai. 228. E: Já impôs um respeito com isso né? 229. S: Se vai pra lá assim, e o mequetrefi original, e eles vão falar assim, tá aí, porque eu 230. falá que eu evoluí para super-hiper-mega mequetrefi... (risos) E onde eu falo pra 231. vocês, quando a gente fuma... quando a gente fuma a gente fica... quando a gente fuma 232. um pouco de droga assim muda a mente, vou contar pra senhora se eu fumá um 233. baseado, de maconha, assim um baseado mesmo, da ora mesmo, eu vou explica pra 234. senhora, da ora, um baseado da ora mesmo... Então cê sabe que eu sou o mequetrefi, 235. então, não tem jeito mais... (risos). Por que cê veio aqui? 236. E: Eu vim porque... 237. S: Por causa do mequetrefi, mas não é só por causa do mequetrefi então, mas como eu 238. tava dizendo pra senhora, se eu fumar um baseado da ora mesmo, eu converso com 239. qualquer um, que e difícil a pessoa não se comove, é raridade, eu viro nenê, eu viro 240. criança, eu começo a chora, e tal, e rolo no chão e do cabeçada na parede, até comove

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241. a pessoa. E comovo a pessoa. E tem muitas as pessoas que você chega pra ela pra 242. troca uma idéia e a mulher vai dizê que você ta extorquindo. Não, eu já to pedindo 243. mesmo, mas é raridade vê eu pedir. Agora hoje eu to pedindo uma calça, vou ter que 244. bate palma em alguma casa, ou... senhora independentemente de qualquer coisa, eu 245. tava em depressões esses dias, to querendo saí, mas tem que te um empurrão, uma 246. calça, um chinelo (risos), e uma bermuda, né tia? 247. E: E se a pessoa tem? 248. S: Aí que tá né tia, se a pessoa for até arrogante, e que Deus te abençoe, que te possa 249. dar um pouco mais humildade (risos), e é o seguinte, você não me deu aquilo, mais da 250. vez o vizinho me dá... se fosse todo mundo que nem você não existiria nóis, se não 251. fosse nóis não existiria vocês, não é verdade moça? 252. E: É verdade. 253. S: E agora acabô as perguntas moça? 254. E: Não. E quando você tem assim, como você faz pra saúde? Quando tem algum 255. problema de saúde? Ou como faz pra comer? 256. S: Pra comer? 257. E: Esse tipo de coisa... 258. S: Pra come... você mesmo já sabe, já podemo respondê por nóis né. Mas pra 259. problema de saúde é o seguinte, tipo, muitos ficô doente, morreu, acabo. Entendeu? 260. Porque não vai procura, mesmo caído, mais o cara que bebe pinga, que da mais é o 261. cara que bebe pinga, a gente procura, vai no postinho ali, toma um besetasil, pega um 262. remédio,e que nem eu falei depende da pessoa, depende da plantão cê é tratado bem, 263. qualquer situação, qualquer lugar, não ó só na cadeia com os funcionários...aqui na rua 264. também, tem um cara com uma condição um pouquinho melhor, ele se põe no lugar 265. dele, de melhor né, do que nóis né, que é esculacho, cê entra dentro do mercado, só 266. porque cê tá sujo o mercado inteiro te segue, isso assim um modo de dizer, assim, o 267. jeito que eu to aqui, aí põe uma roupinha melhor, bota um anel no dedo, um relógio, 268. porque eu to em depressão mêmo. Do jeito que eu saí dessa depressão assim se Deus 269. abençoá, e ele vai abençoá, e não desampara os que não gostam de mim... Eu vou me 270. levanta, e vou sai dessa depressão, vou sai dessa depressão e vou passa aqui, se eu 271. tiver vivo, isso que eu queria dizer, se eu não tiver morto. Se não tiver morto ou nem 272. preso, vou sair dessa depressão e passa por aqui pra cê ver como é que porque eu não 273. era assim não... não, a gente é firme e forte. Eu só nunca tive carro, nunca tive moto, 274. assim meio olhando eu já tive roubado, mas nunca tive meu mêmo. Esses carro cabrito 275. nunca é seu, carro seu mêmo é aquele que você paga e se os home te pará eles não te 276. toma. Já comprei carro, já comprei moto, mas era tomado, cê entendeu? Ai o que 277. acontece, ando firme e forte, moça, tem até gente que até medo de eu melhora, 278. mataram mais de dez parente meu. Hoje tem uma ética que a gente respeita e tem que 279. respeitá, mas só que essa ética ela é boa, ela e favorável, porque o bagulho é paz, não 280. tem mais guerra, mas tem muitas coisas assim que terem que ser revistas, né? O crime 281. também da uma olhada, revê muita coisa pra você regastá os que tem que se envolve 282. no crime mesmo, que da tempo mêmo, e tirá aqueles que não, entendeu? Que não 283. serve. E a mêma coisa como você pô uma seleção assim de laranja, vamo tira nóis 284. como laranja, montes e montes de caixa de laranja, nóis vamo tira a laranja podre, as 285. que, estão madura que vai se pro crime, e as verde que vai ser trabalhador zé povinho, 286. então vai separa os três tipo de laranja. Verde, amarela e a podre. Mais nóis é sempre e 287. a podre tia, porque será? 288. E: Porque você acha? 289. S: Eu acho que tem que separar não pra selecioná né, e não dividí, mas multiplicá todo 290. mundo junto né, mas pra podê, pra podê... vai saba... eu não tenho como explicação

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291. também... 292. E: Difícil. 293. S: E uma explicações dessas. 294. E: E sua infância? 295. S: Ah meus Deus!... 296. E: Não só, pode ser rápido assim, não precisa, a sua realidade hoje é tão dura... 297. S: Não assim não, é que eu falo pra senhora assim, mas é que eu to explicando pra 298. senhora aí, o que eu já passei, e o que eu já não passei, queira ou não queira, certo?! tô 299. de boa. Mas de qualquer coisa tenho que ficar ligeiro. Ontem eu dormi um pouquinho, 300. já levaram meu isqueiro. E enrosca os cara ate leva a vida da gente. Tipo... 301. E: Mas os próprio companheiro de rua? 302. S: Os próprios companheiros, não, tipo assim, tem companheiros que é companheiros, 303. tem os que eu falei pra você, os enrustidos, os bons... tem cara aí no meio que já 304. estrupo mulher, tem cara ai que já foi injustiçado, falaram que ele tinha estrupado a 305. própria namorada dele por seis meses ele com a mina, tem pessoas que mataram a 306. família errada, tem pessoas que ai que o cara morreu, tipo assim tem pessoas aí que é 307. parentes de cara que não vai fala mas tipo assim, foram lá, tentaram estrupa a mulher, 308. ai correm atrás do cara, o cara conseguiu escapa, e só porque tinha um cara com 309. camisa parecida, e um cara de mesma cor os cara foi lá e mato o cara, e não era o cara. 310. Então tem muitas coisas, o mundo é uma realidade triste, a mais triste é desta pessoa 311. que foi injustiçada, tia, falaram que tinha estrupado a própria mulher, a namorada, que 312. se conhecia um ano, ele e a parceira dela já teve uma relação com ele, isso eu conheço 313. um pouco da realidade dele, não tudo, ele foi injustiçado, porque, ele tinha estrupado 314. duas mina e não foi ele, o cara chego na cadeia, não, e que não foi ele, como e pode 315. ser ele, não pode ser ele e nem ninguém, você ta ali, você com sua namorada, vamo 316. por assim, eu fiquei dois ano assim vendo a vida dele, dois ano eu vendo de longe a 317. vida dele. 318. M: Observando... 319. S: E não dava assim, mas nóis tava olhando, muito esculacho, ele precisou dá muita 320. facada, ninguém põe a mão nele, porque quando estrupador pára na cadeia os cara zua, 321. come, bate e tal, mas esse cara, o tempo que eu vi ele lá, ninguém pões a mão, ele já 322. deu facada, ele já trocou, já brigou na mão, já fez de tudo, na cadeia, essa é uma vida 323. dele que vocês tinham que publica tia. 324. E: É, não e fácil. 325. S: O cara virou monstro tia. Ele virou monstro dentro da cadeia, tia. Quando a gente 326. fala monstro, porque tem o monstro, por causa do estrupamento. Tem cara que estrupo 327. mulher, estrupo, estrupo, o cara não é independentemente... ele é ser humano, mas não 328. é, mas ele se torna monstro no outro lado da sociedade, aí nessa situação, pelo o cara 329. te... te... te... te trocado tiro com a polícia, pelo o cara te... te trocado tiro com a 330. polícia... te deixado pingá o sangue dele no bairro, escorrê sangue dele pra melhorá o 331. bairro, que hoje tá bom... Eu conheço o bairro deles, e o cara tá com a mina, todo 332. mundo vê, todo mundo convive, todo mundo, todo mundo ali de Ribeirão Preto, quase 333. Ribeirão, só onde fica a malandragem, vê o cara com a menina... Salgado Filho, cê é 334. de Ribeirão né? Jardim... não? 335. E: Conheço um pouco... 336. S: Jardim Salgado Filho, Quintino I, Quintino II, Simione, favela das Mangueiras, 337. Casa Grande, Ipiranga, Jandaia, Salgado Filho, já falei, e Jardim Aeroporto, todo tipo 338. de quebrada, todo tipo de periferia, todo mundo respeitava o cara, e todo mundo viu, 339. vamos supor assim, a senhora é minha namorada e vo com a senhora pra todo esses 340. lugar, mas anda, seis meses assim, mas todo mundo conhecendo a senhora, mas tudo

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341. que eu fazia ela fazia comigo, oh... até viajei... lembrei da minha mina, que minha 342. mina foi presa... 343. E: Você tem um relacionamento afetivo? 344. S: Só falei que foi comigo que minha mina foi presa agora faz uma ou duas semanas, 345. to lutando pra vê se eu pego ela... Não é minha mina, mas eu quero que ela seja... Mas 346. voltando que eu tava falando dessa pessoa aí, todo mundo conheceu, o que aconteceu, 347. aí a mina foi lá, oh! como cara precisou lutá, precisou virá monstro... a mina foi lá, e 348. falou que ele tinha estrupado as duas, só que uma retirou a queixa, aí ele ficou numa 349. só... como que todo mundo, trabalhador, ladrão, evangélico, crente, macumbeiro, todo 350. mundo viu a mina com o cara. Porque depois falaram que o cara estrupou a mina? 351. Porque ninguém foi falá pra ele: não, mas é a namorada dele? Senhora vê que não é 352. que a sociedade é injusta, mas depois com o tempo foi revisto, viu que o cara passou 353. pelo certo, mas depois que ele voltou... Sofrê ele não sofreu muito não, porque ele saiu 354. deste tamanho assim. Só comia, bebia, fazia (pausa). Quem tá ali tia? Não pode ficar 355. tranqüila. Eu vou deixar mais espaço aqui, e uma chave de fenda, que não tá e não tá 356. dando pra sai, por isso morador de rua é uma merda. Morador de rua é uma merda se 357. acha demais, se acha se corre pelo céu os cara que te bate, certo, sai bolinho, sai com 358. quatro, cinco. Eu ando sempre sozinho, eu ando sempre com os meus negocinhos, 359. porque se vim pra cima eu vou pra cima e pego, agora ate minha mão ate tá enxada, 360. cara veio me da um tapa na minha orelha, catei os três de pancada. 361. E: Com outro morador? 362. S: Aí tinha, com outros morador, mas deixa eu falar pra você, mas porque teve essa 363. injustiça com o menino? Porque eles não reviram ou olharam pra trás que o menino já 364. foi isto, isto, isto, isso, isso, isso, e hoje a mina... agora, se é uma fita isolada, eu 365. namoro com a senhora e fico com ela e ela vai e fala que eu agarrei ela na força, aí é 366. uma fita isolada ninguém conhece ela, pode até acha que é, mas como todo mundo viu 367. a senhora pra lá e pra cá comigo, eles não pode me injustiça, assim mesmo pela 368. mulher dele, seis meses não é mais namorada, morando na mesma casa desde do 369. primeiro dia. Cê que se retira do sol, nao? 370. E: Nao, ta bom. 371. S: E que eu tenho sinusite, muita pancada, dói... Cê entendeu? E aí porque será que ele 372. fizeram isto? Cê vê, vou fala pra senhora, não vo mentí pra cê não, essa fita aqui é fita 373. minha agora, se eu sou amigo de você mêmo, porque eu senti assim, a hora que você 374. me chamo ali, muita vezes a gente é excluído, né. É tirado da laranja verde e tirado da 375. laranja amarela... Mas eu to com pressa porque eu tem que ir rápido porque eu tenho 376. que resolve a situação da moca que ficou presa, que foi esses dias, não foi no anterior 377. e tal (o vento quase levou a folha de papel quando ele segurou). Aí viu, já ia avuá... ó 378. meu reflexo. 379. E: Foi rapidinho. 380. S: Senhora viu? Não tem como escapar, tô indo aqui, e tô pegando o papel. E deixa eu 381. falá pra senhora... até esqueci... e... 382. E: Você estava falando do rapaz, mas e essa menina? 383. S: Cê falô da minha infância, ce falô da minha infância, né? 384. E: Podia fala dessa menina, dessa sua namorada... 385. S: Qual? 386. E: Que está retida... 387. S: Mas não é minha namorada, eu quero namorá com ela, eu faze alguma coisa pra tirá 388. ela de lá, manda alguma coisa pra ela. 389. E: E sua vida afetiva? Fale de alguém que você gosta. 390. S: Não, já tive minha muié véia, nessa ultima cadeia, nessa ultima cadeia minha fiquei

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391. oito ano e um pouquinho, e vai fazê que to um ano to na rua,vai faze um ano e... um 392. ano e... ah! um ano e pouco... tá quase interando os dois porque tirei oito ano de 393. cadeia, quase nove ano de cadeia moça, to na rua agora. Assim. a gente não gosta de 394. falar disso. 395. E: Quando voce foi liberado voce foi para a casa dos seus pais? Pra sua mãe, não? 396. S: Não, eu fiquei um pouquinho lá e to andando... 397. E: Você tem filhos? 398. S: Ah não tenho. Olha só, vou ter que ir embora, meu colega ta me dano sinal lá. 399. E: Ah ta. 400. S: Tem problema tia? A senhora já perguntô tudo aí? 401. E: Acho que já, te agradeço muito pela nossa conversa. 402. S: Eu que agradeço tia, foi bom conversa.

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Morador de Rua 2 Data: 05/11/08 Entrevistador (E) – Rhianne Yukana Ishihara Morador de Rua (S) – M. G. A. 1. E: Bom, o nome da senhora, a senhora já deu, qual que é a idade da senhora? 2. M: Cinqüenta e oito. 3. E: Cinqüenta e oito anos. A senhora tem religião? 4. M: Católica. 5. E: Católica? 6. M: (Sinal afirmativo com a cabeça) 7. E: A naturalidade, da onde que a senhora é? 8. M: Belo Horizonte. 9. E: Aaaah... A senhora freqüentou escola? 10. M: Sim. 11. E: Até quanto tempo? 12. M: Um colégio de freira atéé...seis éé... (pausa) onze ano, aí o finado meu pai foi lá me 13. tirou, falou assim que ia levar pra ver um parente que morreu e... 14. E: Aí a senhora nunca mais voltou? 15. M: Fui morá com madrasta, aí voltou lá pra buscá meus documento aí fizeram meu 16. registro de nascimento, aí eu tirei meus documento...depois eu perdi, depois fui pra 17. Santos me roubaram lá, meus documento. Aí eu fiquei lá em Santos, aí eu tinha três 18. irmão eu vinha sempre passeá vê ele, trazia dinheiro, trazia presente muito da hora, 19. mais... Depois eu cheguei aqui e encontrei minha madrasta com uma minininha, aí eu 20. fui criá essa minininha, aí depois (pausa) aaah ela quiria fazer coisa errada ca 21. menininha, aí eu peguei dormia com a minininha na minha casa com um oio fechado e 22. o oto aberto que até meu marido tamém queria faze coisa errada com a minina, mais 23. eu já deixei ele porquee issu num é homi... aíí (pausa). 24. E: Então a senhora só estudou até os onze e aí... parou. 25. M: É. 26. E: A senhora já trabalhou? 27. M: (Pequena pausa antes de responder) Já. 28. E: Trabalha atualmente? 29. M: Não. É ultimamente eu trabaio pouco, tem um lugarzinho i... é um trabalho 30. simples, né? 31. E: O que a senhora faz? 32. M: Euu limpo o viveiro do loro ii... (pausa) e vai, cato folha quando cai lá, que venta 33. muito lá. 34. E: A senhora ganha pra isso? Pra fazer esse serviço, ou não? 35. M: Haa até agora hamm... nããã num tem nada o moço lá tirou meus documento qui eu 36. tinha perdido, né? 37. E: Humhum (fazendo sinal afirmativo com a cabeça). 38. M: Aí (pausa) ele me dá um dinheirim todas as semanas (pausa) aí eu cabo 39. comprando as coisa lá... e caba o dinheiro (pausa). Eu faço trancinha porque eu num 40. posso né, mexe nos meus cabelo. 41. E: Por que... a senhora não pode mexer nos seus cabelos? 42. M: Quebrei o cutuvelo então... quebrei o braço. 43. E: Quando que a senhora quebrou?

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44. M: Aaaah faz dois ano. 45. E: E ainda dói? 46. M: Dói. O muleque falô que ia duê sempre. 47. E: A senhora caiu? 48. M: Não um cara veio da FEAPAN e me atropelô. 49. E: Aah. Há quanto tempo que a senhora mora na rua, morou na rua? 50. M: Aaah... depois qui eu... deixei né, a minha casa lá porque (pausa), as cunhada né? 51. Já já já arrumei cunhada, meus irmão casô, aí elas queria né mandá na casa, aí peguei 52. fiquei pra rua, pra rua, pra rua... Sei que agora eu arrumei um lugarzim né pra mim 53. ficá. 54. E: Até a senhora achar esse lugar, quanto tempo que a senhora ficou na rua mais ou 55. menos? 56. M: Aaah uns... muito tempo. 57. E: Muitos anos? 58. M: É. 59. E: Iii... o motivo então foi a senho... foi a senhora numm... as cunhadas? Foi só esse 60. motivo que fez a senhora sair de casa ou teve outros? 61. M: Aaaah eu... eu casei, o maridoo... não queria trabalhá né, eu passava necessidade 62. então ficava venu as coisa na rua... prostituía né... pra podê ajudá em casa i (pausa) i 63. eu tê vida né porque... me alimentá, tê minhas roupa. 64. E: E a família da senhora é daqui? 65. M: Eu nasci uma hora, minha mãe morreu as duas, eu tenho madrasta né. 66. E: E ela é daqui de Ribeirão? 67. M: Ela ultimamente mora. 68. E: Mora aqui? 69. M: (Sinal afirmativo com a cabeça). 70. E: A senhora tem algumaaa... algum contato com eles, ou não? 71. M: Aaaaah.... eles têm oficina de moto, tão bem di vida meus irmão, dois morreu ficou 72. só um, tem um oto que minha madrasta arrumô na rua... tamém. Mas aí mais por causa 73. deles porqueee (pausa) aaaaahh....muita desavença né. 74. E: Então, mas a senhora conversa com eles...? 75. M: Converso... 76. E: Então a senhora encontra? 77. M: Encontro... 78. E: Hoje a relação da senhora com eles é boa ou é...? 79. M: Ééé... nem tem porqueee... ele trabalha lá né, tem o que fazê ii... vou lá pra casa 80. dele. 81. E: O marido, o marido da senhora já chegou a bater alguma vez...? 82. M: Nãão! Ao contrário, eu que batia nele (risos). 83. E: (Risos) 84. M: Por isso que eu larguei dele pá num fazê muitas coisa errada porque né... eu sô 85. católica então... muita desavença. 86. E: Alguém de dentro, outra pessoa de dentro da casa da senhora já foi violento com a 87. senhora ou alguma coisa assim? 88. M: É esse meu irmão, filho da madrasta. 89. E: Ele batia na senhora? 90. M: Não...éé estúpido. 91. E: Só agressivo? 92. M: É. 93. E: Então a senho... a senhora foi criada por essa madrasta, a vida inteira?

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94. M: Fui criada pela minha vó, aí a vó morreu eu tinha seis anos aí... meu finado pai pôs 95. eu no colégio de freira, aí depois ele foi lá e me roubou com onze anos... 96. E: Aí, a partir daí a senhora já foi criada pela madrasta? 97. M: Pela madrasta iii... depois viajei pra Santos, depois eu... curti bem minha vida, 98. mais num é fácil não. 99. E: A senhora teve filhos? 100. M: Não. 101. E: Não? 102. M: Não. 103. E: Namora Hoje? 104. M: Não, to sossegada (risos)... 105. E: (risos) Num tem namorado? 106. M: Não quero fazer mais nada de errado. 107. E: Nenhum rolinho? (Risos) 108. M: Não, não. Já decidi ficá com Jesus. 109. E: A senhora fica mais em grupo ou a senhora fica mais sozinha? 110. M: Sempre sozinha e Deus. 111. E: A senhora tem amizades aqui na... na cidade? 112. M: Tenho... 113. E: Têm muitas? 114. M: Tenho. 115. E: Quando a senhora morou... 116. M: Mas amigo lá e eu aqui. 117. E: Ah tá... Quando a senhora morou na rua, a senhora assim, costumava ficar em 118. grupo ou não? 119. M: Não. 120. E: Sempre sozinha? 121. M: É. 122. E: A senhora lembra quanto tempo a senhora morou na rua assim, tipo um ano, cinco 123. anos...? 124. M: Aaah, depois dos onze ano (pausa), sempre saía pra rua, voltava pra casa, saía pra 125. rua, voltava pra casa né. 126. E: Mas morar mesmo, dormir na rua, a senhora ficou quanto tempo, dormindo assim? 127. M: Aah, depois dos vinte e cinco ano. 128. E: Dos vinte e cinco? 129. M: É. 130. E: Até quando? 131. M: Atééé...(pausa) atéé dois ano atráis. 132. E: Então a senhora morô... a senhora ta com cinqüenta e... a senhora falou... cinqüenta 133. e oito? 134. M: É. Mais eu arrumei um lugar pra trabaiá, fiquei morando lá uns cinco ano... 135. E: A senhora deve ter morado uns quinze anos na rua mais ou menos, dormindo na 136. rua? 137. M: É. 138. E: A senhora já sofreu alguma violência no tempo que a senhora tava na rua? 139. Ninguém nunca judiou da senhora assim? 140. M: Não. 141. E: A senhora já já fez alguma coisa de ruim na rua? Já praticou alguma violência com 142. alguém? 143. M: Não.

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144. E: A senhora nunca precisou assim... tipo... se defender, ou roubar pra comer? 145. M: Ah não! Eu era muito peralta né. 146. E: (Risos). Nem roubar pra comer? 147. M: Não. 148. E: Sempre conseguiu dá um jeito? 149. M: É vendia meu corpo i... sempre tinha o meu dinherim. 150. E: Entendi. A senhora por isso, por morar na rua, pela prostituição, a senhora já sofreu 151. algum preconceito? 152. M: O que é preconceito? 153. E: Ah... é tipo se alguma pessoa assim já te olhou torto, assim já te olhou... sabe? 154. M: Ah, mais eu dava rabanada e entregava pra Deus, nem ligava. 155. E: Ou então chegar, passar, xingar...? 156. M: Ah eu sempre soube têm uma saída. 157. E: A senhora já presen... a senhora já... Alguém já fez isso com a senhora assim? A 158. senhora percebeu já alguma coisa? 159. M: Aaah, esse mundo né! Cheio de egoísmo né... 160. E: Quando desfaz, assim, alguém já desfez da senhora, a senhora quis conversar, ir 161. pedir alguma coisa, falar alguma coisa e a pessoa desviar, não dá bola... Já aconteceu 162. isso com a senhora? 163. M: É mais sempre tive uma sorte, sempre tive alguém pra me ajudá, sempre... 164. E: Hoje a senhora tem alguém que ajuda a senhora? 165. M: Sobre o quê? 166. E: Ai, é que às vezes dá uma roupa, às vezes ajuda a senhora em alguma coisa... 167. M: Ah tem. 168. E: Tem uma, uma pessoa só ou são várias? 169. M: Ah onde eu comunicá sai bem. 170. E: Sempre tem alguém né? 171. M: É. 172. E: Tem uma pessoa fixa, que está sempre com a senhoora, sempre ajudando? 173. M: Não, só Deus, só Deus. 174. E: Como é que é a sua ro... como é que era a tua rotina quando você morava... quando 175. a senhora morava na rua? O que a senhora fazia assim? 176. M: É era i em casa, tomá um banho i... saí e vim, senti livre. 177. E: A senhora comia aonde? 178. M: Ah quando eu trabalhava lá olhando vaga eu comia lá né, eu levava as coisa, eu 179. levava, fazia lá, comia lá. 180. E: A senhora vem tomá café-da-manhã aqui todo dia? 181. M: Venho. 182. E: E antes? A senhora tinha um lugar assim pra ir? 183. M: Não... eu tinha um dinhero eu gastava, eu comprava. 184. E: A senhora sempre teve o dinheiro pra comprar comida? 185. M: Certo. 186. E: A senhora já passou fome alguma vez? 187. M: Não. 188. E: Sempre conseguiu se virar? 189. M: É. 190. E: A senhora conseguia o dinheiro sempre com a atividade da senhora? 191. M: Certo. 192. E: Entendi. 193. M: Eu morei em Goiânia, né.

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194. E: Na época que a senhora morou na rua foi aqui em Ribeirão ou foi em outra cidade? 195. Quando a senhora dormia na rua? 196. M: Ah lá em Santos eu dormia em hotel né, pensão... 197. E: Mas na rua mesmo, na calçada a senhora...? 198. M: Não, só aqui. 199. E: Só aqui em Ribeirão? 200. M: É. 201. E: Entendi. 202. M: Hoje a senhora consegue sobreviver com esse dinheirinho que a senhora faz o 203. serviçinho lá pro cara e ele dá o dinheirinho pra senhora por mês, é com esse dinheiro? 204. M: É tem uma mulher lá que tem uma pensão, ela me dá todo dia almoço, dá pra mim 205. almoçá, jantá. 206. E: Ah sim. Iii... a senhora... tem vontade assim... ou de voltar... ou ter uma casa da 207. senhora mesmo, voltar pra casa dos seus familiares, a senhora tem vontade? 208. M: Ah eu tinha vontade de tê uma casa, mas como eu não posso fazê nada agora, di... 209. di violência, tipo assim, de agi de alguém me enfrentá né, então eu sempre quero um 210. lugarzim que alguém ta me olhano. 211. E: A senhora sente vontade de voltar pros seus irmãos, pro seu irmão? 212. M: Ah não, eles tão tudo casado, tem filho, tem os pobrema deles, tem as... sogra que 213. ta de idade, duente, então... Eu tamém to duente né, tem que tá... 214. E: A senhora tem algum problema de saúde? 215. M: Não, o pobrema é só esse da quebradura. 216. E: Só os braços? 217. M: Eu já quebrei perna tudo, já sarou, mas agora né quebrei o braço, o cutuvelo né. 218. E: Então o único problema da senhora são as dores nos braços? 219. M: (Sinal afirmativo com a cabeça). 220. E: Problema de saúde assim do corpo...? 221. M: Problema de saúde num tenho não. 222. E: Iii... A senhora tem alguma lembrança daquela época, que foi mais marcante assim, 223. que a senhora não consegue esquecer? Da época que a senhora dormia na calçada? 224. M: De violência? 225. E: É, qualquer coisa, alguma lembrança, alguma coisa que não saia da sua cabeça. 226. M: Não, teve alguém que eu já gostei né e ele morreu, se matou com um tiro na boca, 227. é o finado A. V., já ouviu falá? 228. E: Não eu não sou daqui eu era de outra cidade. 229. M: Você é da onde? 230. E: Eu era de Guaíra, nasci em Guaíra, cidadizinha. 231. M: Ããh Guairá... Eu conheço Guariba. Aqui perto é Guá...? 232. E: Aqui perto eu acho que é Guariba. 233. M: Guariba né? 234. E: Guaíra é perto de São Joaquim da Barra, perto de Barretos... 235. M: É eu tinha um senhor lá da onde eu morava que ele tinha um... ele era de lá. 236. E: Esse rapaz que a senhora falou que ele se... que ele se deu um tiro. A senhora viu 237. isso, ou não? 238. M: Não. 239. E: Era conhecido da senhora? 240. M: Era. Era família rica da Paroli, era V. da família V. 241. E: E a senhora gostou dele? 242. M: Gostei muito dele, e eu quando eu freqüentava a Praça Quinze que eu era menor 243. né, na Bela Sicília ali eu ia sempre ali pa vê ele.

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244. E: E ele tava sempre por lá? 245. M: É então... Depois eu vi ele uma... várias vezes. 246. E: A senhora chegou a ter uma relação assim com ele mais próxima, de conversar...? 247. M: Tive, em um hotel, num hotel (pausa) lá na Costa e Silva. 248. E: Mas, foi só uma vez assim... ou... freqüente? 249. M: Não, foi só uma vez. 250. E: Ele procurava a senhora? 251. M: Não! Eleee... ele era peralto (pausa). Era ricaço né? 252. E: Ia só pra brincar ou não? 253. M: Não, ééé... ele era muitoo... injuado... 254. E: É. (Risos). 255. M: Ele só queria gatas, gatinhas... 256. E: Ah tá, mas a senhora não namorou com ele? 257. M: Não. 258. E: Só gostava dele? 259. M: (Sinal afirmativo com a cabeça). 260. E: Ai ele se matou, como que a senhora ficou? 261. M: (Pausa) (Abaixa a cabeça) Aaah... (Pausa) entreguei pra Deus porque já tinha 262. acontecido né. (Pausa). Ele falô pra namorada: se cê num me quisé eu vô dá um tiro na 263. boca e deu né, a bala alojou, o pai dele era doutor... 264. E: Que coisa né... (Pausa). A senhora tem algum plano pro futuro, a senhora tem 265. vontade de fazer alguma coisa? 266. M: (Silêncio). (Balança a cabeça em sinal negativo). Pro futuro? Agora... (Pausa). 267. E: Não tem nada que a senhora queria...? Tenham o desejo de...? 268. M: Aah antes eu queria tê um... um lugar pa mim fazê umas caderinha que eu fazia 269. caderinha de cipó e tudo. Mas agora que eu já mudei nem me alembro mais disso e o 270. BAMBA tamém não qué que mexe nas mata pra pegá cipó então... 271. E: A senhora fazia essas cadeirinhas pra ved... e vendia? 272. M: (sinal afirmativo com a cabeça) 273. E: Fez isso muito tempo? 274. M: Aaah... eu fui pra Pirassununga e eu fazia lá, eu morava lá num... na casa de um 275. véio e o véio era crente né, aí ele dexava eu fazê as coisa, eu limpava a casa dele, eu 276. fazia as caderinha, pintava e ia vendê. 277. E: Então hoje a senhora num... almeja nada, não tem planos, nada? Como que a 278. senhora visualiza assim, que aa... que vai ser a velhice da senhora? 279. M: Aah eu sempre fui brincalhona né, onde eu penso... trabalhá, fazê as coisa, fazê o 280. bem, só isso. 281. E: A senhora parece ser bem alegre assim né? A senhora não liga assim pra... a 282. senhora tem uma fé, num liga muito pras coisas ruins. 283. M: Não. 284. E: A senhora vai, parece que vai... A senhora não sente tristeza assim, nada? 285. M: Não. 286. E: Não sente? 287. M: Não. 288. E: Não se sente sozinha, nada? 289. M: Não. Às vezes eu sinto assim, quando eu penso na finada minha mãe, que eu não 290. conheci ela né, aí eu sinto tristeza, mas passa rápido eu já... (chacoalha a cabeça). 291. E: Já manda embora?! 292. M: É, já mando embora. 293. E: Isso é muito bom né? Conseguir isso. (Pausa). A infância da senhora... me conta um

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294. pouquinho. Como é que foi assim? 295. M: Infância? 296. E: A senhora ter ido pro colégio de freira... como é que foi lá? 297. M: Aah, lá foi só o estudo, depois eu passei a limpá a fazê alguma coisa, aprendê a 298. passá pano na escada, varrê e estudava só. 299. E: Então além de estudar, a senhora ainda aprendia essas coisas, a como cuidar de uma 300. casa? 301. M: É. 302. E: Ah legal! E antes dos seis, a senhora lembra alguma coisa? 303. M: Antes do quê? 304. E: Dos seis anos. 305. M: Ah eu lembro que minha finada tia tinha um horta, aí ela me levava lá pra cima e 306. dexava eu brincá no alpendre e eu brincava, brincava.... num tinha colegada né. E 307. sempre fui assim, nunca tive amizade de ficá grudaaado, sempre sozinha e Deus. 308. E: Depo... a senhora conse... começou a se prostituir com quantos anos? 309. M: Com doze, treze... treze, quatorze... 310. E: Então logo que a senhora saiu do colégio de freira a senhora...? 311. M: Fui pra casa do meu pai, daí morei em Goiânia, lá eu andava com uma moça 312. quee...(pausa), aah pegava varal de roupa e pegava roupa, andava sempre bonitinha... 313. (silêncio) 314. E: E a senhora veio pra Ribeirão quando? 315. M: Ah num lembro quando. 316. E: Não lembra? 317. M: Já lembro que eu tinha nove pa doze ano. 318. E: Foi nessa mesma época né? 319. M: É. 320. E: Já tá em Ribeirão faz tempo também? 321. M: Faiz. 322. E: A senhoraaa... às vezes assim... igual Ribeirão é uma cidade grande, muita gente... 323. M: Mas era pequena quando eu vim. 324. E: Era pequena? 325. M: Era. 326. E: A senhora alguma vez, morando né, dormindo na calçada e tudo, a senhora alguma 327. vez já se sentiu invisível pras pessoas? Como se as pessoas passassem e a senhora não 328. tivesse ali? 329. M: Não. 330. E: As pessoas sempre... a senhora sentia que a senhora tava sendo enxergada, assim, 331. que as pessoas olhavam pra senhora.? 332. M: Sim, mais as vezes eu sentia ainda bem que não me viu. 333. E: Aah... A senhora às vezes... era melhor assim? 334. M: É as vezes euu...pensava: essa pessoa vai fazê maldade comigo. E ele não me 335. via e eu falava ainda bem que não me viu. 336. E: Tem mais alguma coisa que a senhora queira falará assim, contar? 337. M: Aaaah... que Deus tenha sempre me olhado ii... (se emociona) que mi dê coisas boa 338. e me dê glória por tudo! (choro intenso e sentido, as lágrimas caiam pela sua face). 339. E: (Em silêncio, coloco a mão no seu ombro e acaricio o seu braço). 340. M: (Chora intensamente por aproximadamente trinta e três segundos). 341. E: Por que a senhora ta chorando Dona M.? 342. M: (Chorando responde) Porque é triste...(choro). Saber que a gente tem que encará, e 343. deixá as coisa pra lá e vivê, num é fácil não... (choro).

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344. E: É difícil?! 345. M: É, mais nóis têm que suportá né?! (Choro) 346. E: Num tem outro jeito?! 347. M: (Choro) Num tem... então tudo bem posso í embora? 348. E: A senhora já quer ir? 349. M: Quero. 350. E: Não, então tudo bem então. Se a senhora quiser conversar mais um pouquinho a 351. gente fica conversando, sem pressa. 352. M: (Recompondo-se) Eu quero imbora. 353. E: A senhora quer então ta bom. A gente agradece muito mesmo, a senhora ajudou 354. muuito, espero que a senhora consiga aí, né, se virar... 355. M: Espero revê-los por aí! Saúde! 356. E: Se Deus quiser! Ainda bem que a senhora tem bastante gente que a senhora falou 357. que a ajuda, né?! 358. M: Como é teu nome? 359. E: Rhianne e o dele é Tiago. 360. M: Rhianne, nome bonito, o meu é M. 361. E: Obrigada! Eu vou dar uma cópia para a senhora desse documento que a senhora 362. assinou pra nós, deixa eu só parar aqui...

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Morador de Rua 3 Data: 05/11/2008 Entrevistador (E) – Bruno Alberto P. e Sant’Ana Morador de Rua (J) – J. C. S. 1. É... Qual que é seu nome completo? 2. J: J. C. S. 3. E: Seu sexo? 4. J: Masculino 5. E: Idade? 6. J: Vinte e dois. 7. E: Tem religião? 8. J: Católico 9. E: Católico? É... natural de onde? 10. J: De Alagoas. 11. E: Que cidade? 12. J: Lá de Maceió. 13. E: É... Tem quanta escolaridade? 14. J: Até a quinta série. 15. E: Você terminou a quinta? 16. J: Terminei. 17. E: Você tem algum trabalho, profissão, já teve alguma profissão, assim...? 18. J: Ah... Já teve várias profissão, no campo, lavrando... 19. E: Mas, uma profissão que você seguiu assim, a vida toda? 20. J: Ah não. 21. E: Aí você foi variando? 22. J: Sempre variando. 23. E: É... tá... Há quanto tempo você está na rua? 24. J: Ah, ta indo pra cinco ano. 25. E: Cinco anos? 26. J: Cinco. 27. E: Isso em Ribeirão Preto, não? 28. J: Em Ribeirão Preto aqui to indo pra dois anos. 29. E: Pra dois, e os outros três anos você passou onde? 30. J: Pro lado de Araraquara, Limeira... 31. E: Isso tudo aqui no interior, aqui...? 32. J: É... São Jose do Rio Preto. 33. E: É, e qual que é o motivo assim, que te levou pra rua? 34. J: Ah, o motivo que me levou pra rua foi... foi primeiro o abandono da família, né. 35. E: Aham... 36. J: Abandono dos parenti, droga né, isso sempre leva... 37. E: Mas você saiu pra rua lá em alagoas ou só quando você veio pra cá? 38. J: Quando eu vim pra cá... 39. E: Aqui quando você veio, você morava com alguém antes? 40. J: Não... 41. E: Aqui em São Paulo? 42. J: Não morava, aí foi quando eu fui preso né... Saí, ai tentei arruma um serviço, mas se 43. você é ex-presidiário aí eles nega serviço né.

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44. E: É... Tem algum problema de saúde? 45. J: Não. 46. E: Você tem família aqui em Ribeirão Preto, ou aqui no interior? 47. J: Aqui num tem ninguém... é tudo, tudo lá em alagoas. 48. E: Ta! ahm... Sua família lá em alagoas tem residência? 49. J: Tem. 50. E: Tem. É... e como é que é a relação com a família? Você cortou vínculos com ela? 51. J: É... aí faleceu minha mãe né cara... 52. E: Faleceu sua mãe aí os irmãos se separaram? 53. J: Daí cada um segue seu caminho né cara... 54. E: E pai? 55. J: Não tenho pai, meu pai abandono minha mãe quando eu tava com um ano, ai nunca 56. mais eu vi ele. 57. E: Aham... Deixa eu ver aqui, você já... sofreu violência por membros do grupo 58. familiar? 59. J: Não. 60. E: Seus irmãos... mãe...? 61. J: Não. 62. E: Você foi criado, você falou, só pela sua mãe, né? 63. J: Pela minha mãe. 64. E: Teve ajuda de alguém tipo vó, tia, tio, a alguma coisa? 65. J: Ajuda de ninguém cara. 66. E: Só sua mãe mesmo, né?! 67. J: Só minha mãe. 68. E: Ta! Você... ta aqui a pergunta... Você sente vontade de voltar pra casa, voltar pra 69. Alagoas? 70. J: Ah... num sinto cara....num sinto. 71. E: Não? 72. J: Num sinto. 73. E: Você tem filho? 74. J: Num tenho. 75. E: Você possui algum relacionamento, alguma mulher que você tenha relações 76. assim... freqüentemente? 77. J: Não 78. E: Não... Tem algum relacionamento afetivo? Sem ser relacionamento homem/mulher, 79. alguma afetividade assim, uma coisa como se fosse uma irmandade assim...? 80. J: Ah... só os parceiro que fica comigo na rua né cara. 81. E: Parceiro seu? 82. J: É. 83. E: E como é que foi sua infância assim, fala duma forma breve... 84. J: Vixi cara, minha infância foi terrível viu cara... 85. E: Terrível? 86. J: Num tive... minha infância foi muito pobre né cara, num tinha direito a nada, ganha 87. um 88. presente, dia das criança, aí... 89. E: Quantos irmão você tinha? 90. J: Era quatro, criado vixi, maior pobreza memo. 91. E: Foram os quatro criados pela sua mãe? 92. J: Pela minha mãe. 93. E: E vocês moravam em que condições assim, na sua infância?

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94. J: Ah, morava numa casinha humilde de barro né cara, praquele lado de lá... 95. E: De uma forma geral foi difícil essa historia pra você? 96. J: Foi difícil... 97. E: É... Você vive mais em grupo, que nem você falou com seus parceiros, ou você 98. prefere andar durante o dia, andar sozinho? 99. J: Ah... de dia eu fico mais olhando carro né cara. 100. E: Mais sozinho né? E de noite vocês juntam pra...? 101. J: Pra durmi. 102. E: Aham... Além dos amigos que você já tem que você dorme junto, você faz amizade 103. normalmente? 104. J: Ah... ninguém qué faze amizade com nóis que é da rua, cê passa o povo tranca tudo, 105. fecha até os portão né... 106. E: Entendi. Você já sofreu muita violência na rua? 107. J: Ah, por parte da policia cara... 108. E: Mais por parte da policia, ou só por parte da policia? 109. J: Só por parte dela memo. 110. E: Assim, exclusivo da policia? 111. J: É... uma vez nóis tava durminu eles acorda nóis... 112. E: Mas por que eles acordam vocês? 113. J: Num sei... porque num gosta da gente né, sei lá... 114. E: É a toa assim, como se fosse meio por diversão? 115. J: É... diversão. Uma veiz socaru fogo no cochão da gente, era duas hora da manhã. 116. E: Foi a polícia? 117. J: Num qué nem que a gente durma aqui em baixo do pontilhão mais, cara! 118. E: É então... Por isso foi difícil deu achar vocês, eu estava passando aqui procurando 119. ali debaixo... na hora que eu desci o viaduto que eu vi vocês ali. É, deixa eu ver aqui... 120. Você já praticou violência na rua, já...? 121. J: Não. 122. E: Nem ser só física, verbal mesmo assim...? 123. J: Ah... não... 124. E: Tranqüilo... é... Sofre ou já sofreu preconceito? 125. J: Preconceito nóis sofre... 126. E: Como tava falando agora né... 127. J: É 128. E: E assim, como é que é pra você? 129. J: Ah, é duro né cara... cê passa por alguém, ta na porta assim, cê da um bom dia, já 130. pensa que cê vai pedi alguma coisa, já fecha o portão... é terrível. 131. E: E você se sente visível perante os outros, perante a sociedade? 132. J: Ah demais né cara... Cê se sente, ahhh... cê passa, fica todo mundo olhando, sua 133. ropa que ta vestido, que ta todo sujo né, o povo... cê fica ate com vergonha de passa no 134. meio do povo... assim no ponto de ônibus,fica te olhando... 135. E: Você ultimamente ta desempregado? 136. J: Uhum. 137. E: E você já foi procurar trabalho? 138. J: Ah já mais... 139. E: Que aí você saiu há cinco anos, você sempre ta procurando trabalho? 140. J: Ah... 141. E: Não, mas, que nem eu digo, procurando trabalho, que você disse que você ta 142. sempre olhando carro né. 143. J: Uhum.

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144. E: Aí alem de olhar carro você procura trabalho, alguma coisa, ah... 145. J: Nem adianta, se cê for procurá ninguém vai te dá trabalho. 146. E: Aham... É, deixa eu ver aqui... perai que eu me perdi... É que, a única atividade que 147. você exerce é de olhar carro, ou você faz alguma outra coisa pra ganhar dinheiro? 148. J: Ah, junto papelão. 149. E: Então olha carro, junta papelão... 150. J: Aí dá um dinherinho pra... 151. E: Aham... Você recebe ajuda de alguma pessoa na rua, dando comida, alguma roupa, 152. um alimento...? 153. J: Nóis ate consegue sim. 154. E: Mas tem pessoas que normalmente ajudam vocês? 155. J: Pessoas não, só o grupo da casa espírita ali, que todo dia tem café cedo. 156. E: É todo dia...? 157. J: Todo dia. 158. E: Aí você toma café lá?! 159. J: É! 160. E: Fala um pouco do seu dia a dia assim, você acordou, o que você começa fazendo? 161. J: Ah... que eu acordo o que tem pra fazer, eu vo lá nesse café lá, toma um café, volta, 162. deita, e olha os carro, é só isso que tem no dia a dia. 163. E: Aí depois finalzinho de tarde...? 164. J: Finalzinho de tarde, aí num tem nenhum lugar pro cê toma um banho... Aí que cê 165. faz!?! Vai lá na Silvia ali no café, aí cê vai e janta lá, tem duas refeição. 166. E: Então tem café da manhã e jantar? 167. J: É a janta... café é na casa espírita, e a janta é ali, ali na João ramalho. 168. E: Aham... ta! Bom, aí depois que tem janta vocês se reúnem no local que vocês 169. dormem e ficam até adormecer...? 170. J: Até adormecê, conversando. 171. E: E qual que é a lembrança que é mais marcante desses cinco anos que você ta na rua 172. assim...? A coisa que mais te marcou? 173. J: A coisa que mais me marcou cara? 174. E: É... 175. J: Foi o que eu falei cara, de ta durminu, ta ligado, e a gente num mexe cum ninguém 176. cara, ta descansando ali e os cara chega, por fogo nos cochão da gente, entendeu?! 177. Fica humilhando, num precisava fazê isso cara, nóis temo nossa área aí cara... 178. E: Queimaram ate as roupas? 179. J: As roupa, cochão, lençol... Então isso, isso daí gera uma revolta né cara,que, as 180. autoridade fazê isso com quem, os morador de rua, que num mexe cum 181. ninguém... senão eu virava bandido, né cara?! 182. E: E o que você acha do seu futuro aí, o que ta vindo pela frente? 183. J: O meu futuro... acho... que num tem nem como fala né cara... 184. E: Você tem alguma expectativa? Alguma perspectiva, tipo, ah vai acontecer isso!...? 185. J: Ah... o que eu esperava era uma melhora né cara... Sair das ruas cara né, ter um... 186. E: Ter um lugar e uma casa...? 187. J: Uma casa né... 188. E: E você faz planos? Um plano pro desejo de conseguir ter essa casa? 189. J: Ah, só se eu arrumasse um trabalho né cara. Vo fala pro cê, eu num desejava muito 190. não, só desejava te uma casa, uma televisão, um sonzinho só, só isso cara... 191. E: O que você pensa assim, dessa situação que você ta hoje, como você se sente? 192. J: Ah, a gente se sente um Zé ninguém né cara, se sente um Zé ninguém...

193. E: J., obrigado pela entrevista ta?!

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Morador de Rua 4 Data: 05/11/2008 Entrevistador (E) – Bruno Alberto P. e Sant’Ana Morador de Rua (D) – D.M.F. 1. E: Seu nome completo? 2. D: D. M. F. 3. E: Sexo? 4. D: Masculino. 5. E: Idade? 6. D: Trinta e cinco anos. 7. E: Tem religião? 8. D: Católica. 9. E: Natural de onde? 10. D: De Limeira. 11. E: Escolaridade? 12. D: Primeiro grau completo até oitava série. 13. E: Terminou oitava? 14. D: Terminei. 15. E: Você chegou a começar o segundo ou não? 16. D: Não... 17. E: Você tem algum trabalho ou profissão? 18. D: Profissão atualmente eu não tenho, eu cato reciclado, eu faço tipo assim, desenhos, 19. ahn... 20. E: Há quanto tempo você ta morando na rua? 21. D: Ahh... mais de um ano já. 22. E: Mais de um ano...?! 23. D: Mais de um ano. 24. E: Qual o motivo que te levou pra rua? 25. D: Desemprego, poblemas familiares. Que nem... poblemas familiares, desemprego... 26. primeiro poblema de família, depois desemprego. 27. E: Você tem algum problema de saúde? 28. D: Não. 29. E: Você possui família na cidade onde vive, aqui em Ribeirão? 30. D: Não. 31. E: A tua família... você deixou família em Limeira? Você tem família lá? 32. D: Deixei parentes. 33. E: Parentes. E eles têm residência, moram em casa? 34. D: Tem. 35. E: E como é sua relação com seus familiares? 36. D: A relação com os meus familiares é das piores possíveis porque devido ao que eu te 37. disse antes, problemas familiares, eu não gosto deles, eles não gostam de mim... é tipo 38. assim. 39. E: Entendi. Hum... já sofreu violência por algum familiar teu? Desde pai ,mãe, à 40. irmão, tio... 41. D: eu sofri tentativas de violência... 42. E: Tentativas!?! 43. D: Tentativas... ameaça, mas assim, não chegou a me agredir corporalmente... Não me

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44. bateu, não me machucou, mas tentou. 45. E: Você pode falar mais alto? 46. D: Meu irmão e meu cunhado... e o marido da minha irmã de consideração lá em 47. Limeira, três. 48. E: E tentaram...? 49. D: Tentaram me agredir, mas num chegou a efetua o ato, mas foi a tentativa de 50. agressão. 51. E: Entendi. Você foi criado pelos seus pais biológicos? 52. D: Fui criado pela minha mãe só, e meu padrasto... 53. E: Seu pai? 54. D: Eu não conheci. 55. E: Você não conheceu. Você sente vontade de voltar pra casa, voltar pra Limeira? 56. D: Eu sinto vontade de voltar pra Limeira, mas não pra ficar com os meus parentes, só 57. pra chegar lá, dá um tempo e depois vim embora, eles não são meus parentes, eles não 58. gostam de mim eu também não gosto deles. 59. E: Você gosta no caso da cidade e não dos seus parentes? 60. D: Eu gosto de viver como eu vivo, na minha cidade natal que é Limeira, mas eu não 61. gosto dos meus parentes porque eles não gostam de mim. 62. E: Você tem filhos? 63. D: Não, nenhum. 64. E: Você tem algum relacionamento afetivo? 65. D: Como assim...? 66. E: Pode ser um relacionamento de homem, mulher, relacionamento de amizade, 67. vinculo... 68. D: Não, nenhum, nenhum. 69. E: Não tem afetividade com ninguém...? 70. D: Nenhum, não nenhum. 71. E: Ta! Como é que foi sua infância? Fala pra mim, bem rapidinho. 72. D: A minha infância foi conturbada, um exemplo, eu não conheci meu pai desde 73. pequeno, a minha mãe trato de mim até eu me formar adolescente, quase homem daí 74. ela faleceu... a minha infância foi terrível, por exemplo, eu não passei fome na minha 75. infância porque minha mãe trato de mim, mas eu passei assim mau trato... Depois que 76. ela morreu, eu passei mau-trato também, os familiares, meu padrasto, a minha infância 77. foi terrível. 78. E: É... você vive em grupo ou isolado, na rua? 79. D: Na rua eu tento conversar... eu tento me aproximar, porque viver no trecho, viver 80. na rua é difícil, você não sabe em quem confiar, você encontra um aqui otro lá, eu 81. vivo assim, tipo, quase que sozinho... 82. E: Assim que nem você falou, você faz amizade lá... 83. D: Amizade (pausa), assim, só passageira... 84. E: Só passageira!?! 85. D: (pausa) um pouco de coisa, mas eu não prolongo a minha amizade, eu fico meio 86. assim na escolta entendeu?! 87. E: Aham. 88. D: Meio absurdo. 89. E: Aham... E você já sofreu violência nesse tempo aí que você está morando na rua? 90. D: Volência, dexa eu vê (pausa)... 91. E: É. Tanto de outros moradores, de polícia, de cidadãos, aí? 92. D: Na cidade de Mirassol não foi bem uma violência, foi uma tentativa de violência. 93. Eu fui entra numa treta, um casal de trechero, o cara começou agredi a mulher aí eu

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94. fiquei nervoso com aquilo, o cara quis compra a bronca, ...vê que era, não chegô a me 95. agredi, mas me deu um chute, foi só isso aí só... 96. E: Ta, mas nunca... só de Mirassol só, só esse caso? 97. D: Só esse. 98. E: E você já praticou violência na rua? Nesse tempo aí? 99. D: Violência, nenhuma. 100. E: Tem tipo, você sofre ou já sofreu preconceito? Por ser morador de rua? 101. D: Olha, eu vo ser sincero pra você, é... Todos nós que moramos na rua as pessoas 102. olham de uma maneira diferente, entendeu? Só que até hoje graças a Deus ninguém, 103. assim, me fez mal, ofendeu... ninguém me disse algo assim na minha cara que me 104. ofendesse em relação a isso. 105. E: E como é que você sente esse preconceito? 106. D: Olha, às vezes... 107. E: Que você percebeu... 108. D: Olha às vezes eu ouço assim, boato, aquela fofoca que, sabe, aquela coisa no ar 109. assim, mas eu faço de conta que num to escutanu. 110. E: É... Você se sente invisível perante a sociedade? 111. D: Não, não, eu me sinto visível, como os meus outros amigos moradores de rua, 112. todos vêem a minha situação, a nossa situação, eu procuro fazer assim o melhor, 113. procuro trabalhar e procuro me esforçar. 114. E: Aham, bom... Você falou que você ta desempregado, né? 115. D: Tô desempregado. 116. E: E nesse um ano aí, você foi procurar trabalho? 117. D: Olha, longe da minha cidade, a cidade de Limeira, de onde eu sou, eu trabalho que 118. eu encontrei hoje foi cata reciclado, fazê desenho que nem eu falei pra você, só isso. 119. E: Você faz desenho do que, falando nisso? 120. D: Faço desenho de fisionomia, de foto quando eu cato no reciclado, é que eu to sem 121. documento, meus documentos estão em Limeira. 122. E: Aham... 123. D: E documento principal, RG, eu num tenho... O resto eu tenho tudo, ta guardado lá 124. em Limeira. 125. E: É... Você exerce então, pra sobreviver você cata o reciclado e desenha... 126. D: É... 127. E: Beleza, hum... Você recebe ajuda de alguma pessoa conhecida, alguém que te ajuda 128. de alguma forma com roupa, alimento ou dinheiro, ou um aconchego que seja? 129. D: Eu vo te explica isso pra você... aqui em Ribeirão Preto mesmo, tanto as assistentes 130. sociais assim de café dá manha, dá comida, como pessoas assim voluntárias... Dia 131. desses aqui no centro de Ribeirão Preto, parô um senhor, eu tava catando reciclado, 132. ele me deu cinco reais, por exemplo, eu ganho, os meus amigos ganham, a gente 133. ganha dinhero, ganha ropa, teve esses cinco reais, que abrange a gente da rua aqui, dá 134. café da manha, dá almoço, dá um arroiz, dá uma ropa, isso aí... 135. E: E o que você acha dessa ajuda assim? 136. D: Olha, eu acho bom, pra mim serve, eu tenho só agradecer. 137. E: Uhum, ahn... Fala como que é seu dia... Acordou, o que vocês fazem até a hora de 138. dormir? 139. D: Olha, eu levanto de manhã, eu vo ser sincero pra você, eu tava catando reciclado 140. em geral, só que o preço do reciclado abaxou, eu desanimei... Aí passei a cata só 141. latinha só, e daí eu encontrei um amigo meu aqui em Ribeirão Preto que me deu uma 142. força... Eu vo volta a trabalha com ele, é capaz deu entra no meu rumo geral. Que 143. nem, o meu dia assim, eu amanheço disposto a trabalha, entendeu? Às vezes chega no

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144. final do dia, eu sei que o ganho é poco, mas é mais pra disposição pra trabalho, pra 145. trabalhá, ganhá meu dinhero... 146. E: Mas aí você trabalha e o que mais você faz além de trabalhar no seu dia? 147. D: Olha eu vo ser sincero pra você , por exemplo, as vezes no final do dia, ou antes do 148. final do dia eu descanso,procuro um lugar assim, pra senta, pra descansar, eu deito, 149. entendeu, faço assim só pra descansa. 150. E: Não, tranqüilo, só tira um cochilo pra se preparar pra noite... Aí o que você faz a 151. noite? 152. D: A noite também agora eu deito e durmo, pra te uma noite, um descanso, as vezes de 153. madrugada eu saio, pra cata um reciclado... 154. E: Na madrugada? 155. D: É, as vezes na madrugada, e as vezes quando clareia o dia, o dia amanhece. 156. E: Começam cedo né?! 157. D: As vezes bem cedo, antes de clarear o dia. 158. E: Aham. Você tem alguma lembrança, algo que te marcou bastante nesse um ano que 159. você ta na rua? Alguma coisa que mexeu com você? 160. D: Perai... (pausa longa) num tenho... 161. E: Não,beleza! Ahn... Qual que é sua perspectiva pro futuro? O que você espera? 162. D: Olha, eu pretendo arrumar um trabalho fixo, se eu não consegui eu pretendo fugi... 163. Porque essa vida que eu levo é meio assim, uma vida duvidosa, cê entende? Às vezes 164. eu ganho muito, as vezes eu ganho poco, as vezes num ganho nada, é uma coisa assim 165. meio indecisa, incerta entende? Eu não tenho certeza do que eu vo te, do que eu vo 166. ganha, eu amanheço o dia assim a deriva, sem perspectiva, sem nada. 167. E: Ta. E assim, você faz algum plano pro seu futuro? 168. D: Eu faço o plano de consegui um emprego. 169. E: Esse é seu objetivo primordial? 170. D: É meu objetivo principal e primordial. 171. E: Legal... O que você pensa sobre essa situação que ta passando hoje de ser um 172. morador de rua, de ta nessa situação desempregado, qual é seu sentimento quanto a 173. isso? 174. D: Eu vo se sincero pra você, eu não culpo você, eu não culpo as pessoas, eu não 175. culpo a sociedade, eu reconheço que de certa forma é um pouco de culpa minha, 176. entende? E coisas do acaso, quem, por exemplo, eu não culpo ninguém por ta assim, 177. entende? Ninguém é o culpado, e cê tem pessoa que, eu já vi, já vi amigos que tão 178. nessa situação que eu to, “ai que num sei que tem”... Não, eu não culpo ninguém 179. não,eu assumo meu erro, porque cai nessa, eu te falei, por causa de problemas 180. familiares, por causa de desemprego, eu não culpo ninguém não, eu não culpo a 181. sociedade, eu não culpo você, por exemplo alguém tem um curso ae oh, eu não falo 182. que a pessoa é culpada...eu assumo meu erro... 183. E: Legal, você quer falar mais alguma coisa pra gente finalizar? 184. D: Não... não... 185. E: D., muito obrigado pela entrevista.