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Saúde da população negra Nº 20 Abril de 2004 Av. Brasil 4.036/515, Manguinhos Rio de Janeiro, RJ 21040-361 www.ensp.fiocruz.br/publi/radis Saúde da população negra A INVISIBILIDADE AGRAVA O QUADRO DE DOENÇAS

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Saúde da população negra

N º 2 0 � A b r i l d e 2 0 0 4

Av. Brasil 4.036/515, ManguinhosRio de Janeiro, RJ � 21040-361

www.ensp.fiocruz.br/publi/radis

Saúde da população negraA INV I S IB I L IDADE AGRAVA O QUADRO DE DOENÇAS

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Retratos do abandono

Adura realidade das popula-ções vulneráveis atendidas

pela organização internacionalMédicos sem Fronteiras empaíses como Honduras, Peru ouCamboja está retratada na ex-posição Trópicos do abandono,que fica até 1º de maio no Cen-tro Cultural de Saúde, no Riode Janeiro. Pelas lentes dofrancês Sergei Silbert, o visi-tante acompanha o dia-a-diadas vítimas de doenças infec-ciosas como tuberculose, ma-lária, doença do sono, doen-ça de Chagas e leishmaniose,tão familiares entre os brasi-leiros. Paralelamente, a expo-sição Sua rua, minha vida, dabrasileira Fabrizia Granatieri,que fotografou, por mais decinco meses, moradores derua no Rio. As duas exposiçõespodem ser vistas de terça a sá-bado, das 10h às 17h.

Esta página é um espaço aberto à teoriae à prática da Comunicação em Saúde

Sob a vigilância do pai e do irmão,criança recebe tratamento contraa febre tifóide em centro de saúdedo Camboja

Representante dos Médicos sem Fronteiras dá orientações de saúde acomunidade carente em longínquo vilarejo peruano

CSS — Centro Cultural da Saúde

Praça 15, s/nº, Centro, Rio de JaneiroSite www.ccs.saude.gov.brTelefone (21) 2240-5568

No Peru, menino apresenta manchas no ombroprovocadas pela leishmaniose cutânea

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Nº 20 — Abril de 2004

editorial

Anemia falciforme, diabete melito,hipertensão arterial, miomas e a

deficiência da enzima glicose-6-fosfatodesidrogenase são doenças com maiorincidência entre negros. Mas é a po-breza crônica e abrangente, além doracismo disfarçado e profundo, que com-pleta os principais determinantes doquadro de saúde da população negra noBrasil. Dados epidemiológicos indicamque os negros brasileiros, homens ou mu-lheres, adoecem mais e morrem maiscedo, em todas as idades.

Este é o resultado de diversas pes-quisas, a tese de inúmeros artigos, oargumento que levou os delegados da12ª Conferência Nacional de Saúde aaprovar propostas que reforçam estra-tégias específicas de atenção à saúdedessa grande parcela da população.Uma política que vem sendo construídapelos movimentos sociais e tambémdentro do governo, com base na redu-ção da desigualdade social e no com-bate à discriminação racial.

“Os afrodescendentes continuameconômica, política e simbolicamentedesiguais frente aos ‘claros’”, afirma oteórico de comunicação e culturaMuniz Sodré. Para ele, o pressupostode que se discrimina por ser pobre enão pela cor, somado à assimilação so-cial do negro baseada na satisfação dedesejos de consumo, deixa inatacadoo problema do racismo, que produzexclusão social e funciona como ummecanismo civilizatório de rejeição

Da invisibilidade à ruptura do silêncio

cartum

consciente e inconsciente da alterida-de, impedindo uma parceria social ple-na, criadora de respeito em vez de to-lerância entre os diferentes.

A invisibilidade do negro continuasendo também um obstáculo culturalintocável, que preside tanto o qua-dro de doenças quanto o conjuntodas ações de saúde. “O racismo é tãoeficiente no Brasil que o próprio ne-gro fica invisível e nem vê a si próprio”como negro, insiste a médica e femi-nista Maria do Carmo Monteiro. “Osprofissionais de saúde são formados naideologia racista... A ruptura do silên-cio é tarefa que cabe a todos nós, detodas as cores”, diz Maria Inês Barbo-sa, da Secretaria Especial de Políticasde Promoção da Igualdade Racial.

O conceito que abre nossa repor-tagem de capa, portanto, é o da invisi-bilidade, e a sua superação deve ser oponto de partida em qualquer políticapública para a população negra.

Esta edição aborda ainda a dis-cussão sobre a clonagem humana naCoréia do Sul, a reestruturação daassistência psiquiátrica no SUS, asconseqüências da tão esperada ins-talação de uma fábrica pública dehemoderivados no país e uma sínteseda entrevista concedida pelo minis-tro da Saúde a jornalistas do Pas-quim21 e da Radis.

Rogério Lannes RochaCOORDENADOR DO RADIS

Comunicação em Saúde

� Retratos do abandono 2

Editorial

� Da invisibilidade à ruptura do silêncio 3

Cartum 3

Cartas 4

Súmula 5

Toques da Redação 7

Saúde da população negra

� Invisibilidade, a maior das dores 8

Entrevista: Valcler Rangel Fernandese Maria Inês da Silva Barbosa

� “Romper o silêncio é tarefa de todos” 12

Saúde mental

� Governo inicia política “firme e segura”de redução de leitos psiquiátricos 13

Hemoderivados

� Fábrica nacional, golpe nasmultinacionais 14

Saúde pública

� Rir é o melhor remédio 16

Serviços 18

Pós-Tudo

� Formação de pesquisadores negros,uma necessidade democrática 19

Capa e ilustrações Aristides Dutra

Nosso modelo da capa deste mês éAnastácio José da Silva, morador daIlha do Governador, no Rio de Janeiro

Agradecimentos a André Arantese a Cleonice Vieira

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expediente

RADIS é uma publicação impressa e onlineda Fundação Oswaldo Cruz, editada peloPrograma Radis (Reunião, Análise e Difusãode Informação sobre Saúde), da Escola Na-cional de Saúde Pública (Ensp).

Periodicidade MensalTiragem 42 mil exemplaresAssinatura Grátis

Presidente da Fiocruz Paulo BussDiretor da Ensp Jorge Bermudez

PROGRAMA RADISCoordenação Rogério Lannes RochaEdição Marinilda Carvalho

Reportagem Cláudio Cordovil(subeditor), Jesuan Xavier e KatiaMachado

Arte Aristides Dutra (subeditor) eHélio Nogueira

Estudos e Projetos Justa Helena Franco(gerência de projetos), JorgeRicardo Pereira e Laïs Tavares

Secretaria de Administração e Infra-Estrutura Onésimo Gouvêa,Márcia Pena, Cícero Carneiro,Cleonice Vieira, Osvaldo JoséFilho (informática) e Ita Goes(estágio supervisionado)

EndereçoAv. Brasil, 4.036, sala 515 — ManguinhosRio de Janeiro / RJ — CEP 21040-361Telefone (21) 3882-9118Fax (21) 3882-9119

E-Mail [email protected] www.ensp.fiocruz.br/publi/radisImpressãoEdiouro Gráfica e Editora SA

CARTAS

UMA LONGA AMIZADE

Sou de Belém, conheço vocês des-de 1998 e fica muito feio a gente

não agradecer a amizade depois detantos anos, nem sequer retribuirtal relação. Sempre ficava de man-dar este e-mail, e nunca mandava.Agora não posso mais adiar. Queroagradecer todo o apoio que vocêsme deram durante todos essesanos. Como amigos que realmentevocês são.

Na época em que nos conhe-cemos eu tinha 19 anos, estava nosegundo ano, e foi por causa devocês que me apaixonei pela saú-de pública e tudo o que se referea ela. Muita coisa referente à prá-tica de saúde pública, o que estáem andamento, leis e portarias fi-cava sabendo por vocês enquantoestudava. A maioria das coisas so-bre saúde pública a gente (da saú-de) só vai aprender mesmo quan-do está fazendo pós ou estátrabalhando no setor público. E,por vocês, pude aprender parale-lamente à faculdade. (...) Por issoestou aqui, mesmo atrasada, paradizer muito obrigada pela amizadee por vocês estarem na minha vidatodos esses anos. Todos vocês.Mesmo aqueles que já foram e osque acabaram de chegar.� Rejane Pimentel, Belém, PA

ESCADA DO CONHECIMENTO

Parabenizo toda a família Radis pelabrilhante edição de janeiro de

2004, especialmente a reportagem“Viver mais e melhor”. Ganhei a re-vista de um amigo e fiquei muito inte-ressada em suas próximas edições.(...) Sou auxiliar de enfermagem, te-nho 24 anos, faço planos para en-trar na faculdade em 2005 e sei queessa revista poderá enriquecer meusconhecimentos, que hoje não sãomuitos. Com a assinatura estarei su-bindo alguns degraus na escada doconhecimento.� Andréia Amazonas, Angra dosReis, RJ

PLACEBO E ÉTICA NA PESQUISA

Parabéns pela excelente qualida-de da reportagem “O placebo no

banco dos réus”, acerca das temáticasdiscutidas na 3º Sessão da ComissãoMundial de Ética do Conhecimento Ci-entífico e Tecnológico (Comest), reali-zada no período de 1º a 4 de dezembrode 2003, no Rio (Radis nº17).

A matéria é importante, relevante,didática e de interesse para os nossospesquisadores, e traduziu com clarezaa função do fórum para o intercâmbiode idéias e experiências entre a comu-nidade científica, os políticos e os di-versos segmentos da sociedade.� Márcia Cassimiro, secretária-execu-tiva do Comitê de Ética em Pesquisascom Seres Humanos do IFF/FiocruzRio de Janeiro, RJ

CONCURSO DE CARTAS MARCADAS

Estava lendo a Radis (por sinal, muitoboa) e vi a conclusão da 12ª Con-

ferência Nacional de Saúde, de queo concurso público é o melhor parapreencher as vagas na área de saú-de. Mas há concursos e concursos...

Por exemplo, o da Secretaria deSaúde do DF para o Programa FamíliaSaudável (é o terceiro nome desteprograma por aqui). A secretaria fezconvênio com a Fundação Zerbini

para a contratação de técnicos eauxiliares de saúde. A Fundação con-tratou uma empresa para fazer o con-curso, que inicialmente tinha umas300 vagas. Depois de uma grita geral,voltou a ter as 650 de concurso an-terior que fora anulado. (...) A provaestava facílima. Mas uma pessoa quefez 67 pontos, ou seja, acertou 95,71%das questões, ficou após o 1.000º lu-gar, e se sente enganada.� Vera Silva, psicóloga, Brasília

INSTRUMENTO DO SUS

Considero as publicações do Pro-grama Radis um instrumento dos

mais valiosos na divulgação dos valo-res da saúde pública e dos princípiose diretrizes do SUS, principalmentepara os locais mais remotos do país.Por isso, parabenizo-os pela persistên-cia, qualidade e constância dos tex-tos e sua ampla distribuição.� Renata Lucchese, Caxias do Sul, RS

A revista Radis solicita que a corres-pondência dos leitores para publica-ção (carta, e-mail ou fax) contenhaidentificação completa do remeten-te: nome, endereço e telefone.

NORMAS PARA CORRESPONDÊNCIA

USO DA INFORMAÇÃO — O conteúdo da revista Radispode ser livremente utilizado e reproduzido em qual-quer meio de comunicação impresso, radiofônico,televisivo e eletrônico, desde que acompanhado doscréditos gerais e da assinatura dos jornalistas respon-

sáveis pelas matérias reproduzidas. Solicitamos aosveículos que reproduzirem ou citarem conteúdo denossas publicações que enviem para o Radis um exem-plar da publicação em que a menção ocorre, as refe-rências da reprodução ou a URL da Web.

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SÚMULA

LEI DE BIOSSEGURANÇA DEVE SERVOTADA EM 2005

Depois de tumultuada aprovação naCâmara dos Deputados, em 4 de

fevereiro, o Projeto de Lei de Biosse-gurança, que disciplina as normas de se-gurança e fiscalização dos organismostransgênicos, tramita agora no Senado.

A comunidade cientifica estáempenhada em derrubar a proibiçãode pesquisas com células-tronco em-brionárias, introduzida de últimahora pela bancada cristã e osambientalistas no projeto aprovadona Câmara. “A parte de engenhariagenética aprovada na Câmara é acei-tável”, avaliou Silvio Valle, especialis-ta em biossegurança da Fiocruz. “Aúnica ressalva que faço é sobre aquestão da manipulação de células-tronco, que não deve ser objeto deuma legislação sobre transgênicos.”

Até a primeira semana de marçoainda não haviam sido escolhidos osrelatores do projeto nas quatro comis-sões definidas para avaliá-lo: de Consti-tuição e Justiça, de Assuntos Econômi-cos, de Assuntos Sociais e de Educação.

Como não tramita em regime deurgência e cada comissão tem 30 diaspara avaliar o projeto (sem contar ospedidos de vistas e os atrasos naturais),a votação em plenário deve demorar:o “recesso branco” provocado pelaseleições municipais certamente retar-dará as atividades do Congresso. Por-tanto, estima-se que o projeto só sejavotado no ano que vem.

Na Câmara, a votação foi retarda-da ao máximo pelo PFL e a bancadaruralista, que queriam manter o proje-to do antigo relator, deputado Aldo Re-belo (PCdoB-SP), hoje ministro, que naprática liberava os transgênicos. Desfi-gurando por completo o texto enviadopelo Poder Executivo ao Congresso emoutubro passado, o relatório de Rebelodava amplos poderes à CTNBio para li-berar transgênicos, inclusive para pro-dução comercial e consumo, sem qual-quer exigência de estudos de impactoambiental ou avaliação de riscos à saú-de humana – e sem a participação dosórgãos dos ministérios da Saúde e doMeio Ambiente.

Depois de muita disputa foi apro-vado afinal, alta madrugada, osubstitutivo do atual relator, RenildoCalheiros (PCdoB-PE), que retomou emparte o projeto original do Executivo.

SEGURANÇA ALIMENTAR E CIDADANIA

O número 121 (fevereiro/março)do Jornal da Cidadania, do Ins-

tituto Brasileiro de Análises Sociaise Econômicas (Ibase), dedica cincopáginas ao tema da segurança ali-mentar. Em duas delas, FranciscoMenezes, diretor do instituto, e Re-nato Maluf, professor da Universi-dade Federal Rural do Rio de Janei-ro, falaram das expectativas para a2ª Conferência Nacional de Seguran-ça Alimentar e Nutricional, realizadade 17 e 20 de março em Olinda (PE) —etapa final de um processo que in-cluiu conferências municipais, esta-duais e regionais. “Estamos experi-mentando o exercício de pensar aspolíticas públicas em conjunto”, dis-se Francisco.

Para ele, a insegurança alimen-tar tem cor, pois o contingente depobreza coincide com as pessoas decor parda e preta, segundo o IBGE,lembrou.

— Para pensar uma política de SAN(Segurança Alimentar e Nutricional),precisamos necessariamente pensarnesses contingentes. Por isso, nãopodemos descuidar de políticas es-pecíficas. Falamos da população ne-gra, e gostaria de lembrar das popu-lações indígenas, talvez sejam as quemais sofrem com fome e desnutrição.Na própria história, foram dizimadas.Eles precisam de políticas específicas.Não podemos aplicar pacotes.

A consultora da FAO EmmaSiliprandi, engenheira agrônoma daRede Economia e Feminismo, apontaem contundente artigo as contradi-ções de nossa sociedade, que na di-visão sexual do trabalho atribui às mu-lheres as tarefas de alimentação dafamília, mas lhes nega o papel deprotagonistas: “Assim, quando se tra-

ta da produção agrícola, é comumas mulheres serem ignoradas no seupapel de produtoras de alimentos”,diz ela. “Não recebem crédito nemassistência técnica, e não são re-conhecidas como candidatas à pro-priedade de terra para fins de re-forma agrária.”

Emma lembra que as mulheresesticam o orçamento para dar decomer aos filhos, mas não são alvodas políticas de emprego, por exem-plo. “Nos postos de saúde, elas mui-tas vezes só recebem algum bene-fício quando estão grávidas ouamamentando”. Embora reconheçaque tal visão começa a mudar, a par-tir de programas de transferênciade renda (cartão-alimentação, bol-sa-família e outros) que estabele-cem que, prioritariamente, as mu-lheres deverão ser as titulares dosbenefícios, a autora afirma que nãohá uma preocupação com as mu-lheres como indivíduos que, porsua situação específica na socie-dade — ganham menos, têm pioresempregos, trabalham duramentefora e dentro de casa etc —, ten-dem a sofrer muito mais doençasligadas à desnutrição, além da pres-são alta, estresse etc.Jornal da CidadaniaTel. (21) 2509-0660; fax: 3852-3517E-mail [email protected] www.ibase.br

POLUIÇÃO E PESO BAIXO EM SÃO PAULO

O boletim da Agência Fapesp de6/2/2004 informou que estudo

realizado por Nelson Gouveia e MariaNovaes, pesquisadores da Faculdadede Medicina da USP, e Steve Bremner,da Universidade da Escola Médica doHospital St. George, de Londres, In-glaterra, revelou que a poluição temdiminuído o peso de recém-nascidosna capital paulista. O trabalho foipublicado na edição de janeirodo periódico inglês Journal ofEpidemiology & Community Health,da Associação Médica Britânica.

Gestantes que ficaram expostasa taxas maiores de poluição do ar noprimeiro trimestre de gravidez tive-ram bebês com peso menor que ou-tras mulheres grávidas não submeti-das à mesma exposição. Os dadosreferentes aos nascimentos foram ob-tidos no Sistema de Informações de

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EMBRIÕES HUMANOS CLONADOS NA CORÉIA DO SUL LANÇAM POLÊMICA MUNDIAL

Cresce assustadoramente o nú-mero de sites de “saúde” nainternet, que oferecem consul-ta online e até prescrição demedicamentos. Pesquisar doençasé útil, mas o computador nãosubstitui um bom exame clínicoe o acompanhamento de profis-sionais de saúde.

O RADIS ADVERTE

Nascidos Vivos (Sinasc) do Ministérioda Saúde, que utiliza como base aDeclaração de Nascimento. Os índi-ces de poluição para a pesquisa fo-ram colhidos da Companhia deTecnologia de Saneamento Ambiental(Cetesb), responsável pelo controle eprevenção da poluição no estado.

Com base nas informações de179 mil recém-nascidos de mãesque moram na cidade de São Pau-lo, a baixa oxigenação sangüíneaprovocada pelos poluentes seria aprincipal causa para a variação depeso. Para cada parte por milhão demonóxido de carbono a que as mãesficaram expostas houve redução de23 gramas no peso do recém-nasci-do. Foram excluídos da análise osbebês prematuros, como os de ges-tação com menos de 37 semanas,além de gêmeos e crianças com me-nos de 1 kg ou mais de 5 kg. “O pesoé um dos principais determinantesda saúde da criança”, disse Gouveia.“Se um bebê nasce com peso muitobaixo pode ter saúde mais débil eser sujeita a mais doenças e comrisco de morte maior. Se a poluiçãoafeta o peso, certamente afetará asaúde da criança como um todo”,disse Gouveia.

ESTATUTO DA MULHER À VISTA

AAgência Carta Maior (http://agenciacartamaior.uol.com.br/)

informou que a bancada feminina doSenado começou a tirar da gaveta1.989 projetos relativos a questões degênero, alguns parados há mais de 30anos. É desse material que a senado-ra Serys Slhessarenko (PT-MT), coor-denadora da bancada, pretende ex-trair uma “agenda positiva para osdireitos da mulher”, como define ela,presidenta dos festejos do Ano da Mu-lher no Congresso. Na Câmara dos De-putados, foi instalada em 10/3 a co-missão especial que analisará oProjeto de Lei 1.399/03, que instituio Estatuto da Mulher, segundo a Agên-cia Câmara.

O projeto prevê que o SUS ga-ranta exames periódicos de preven-ção do câncer de mama e do colode útero, da hipertensão, acompa-nhamento de pré-natal e perinatal,distribuição de medicamentos e dis-positivos contraceptivos. A propos-ta, de Renato Cozzolino (PSC-RJ), ga-rante atendimento prioritário àmulher chefe de família, à mãe sol-teira, à soropositiva, às portadorasde necessidades especiais e às inca-pazes para o próprio sustento.

Notícias divulgadas em meados defevereiro nas páginas de ciência

dos jornais e revistas brasileirosreavivaram as polêmicas em torno daclonagem humana. Cientistas sul-coreanos comunicaram o desenvolvi-mento de células-tronco (que, acre-dita-se, são capazes de produzir órgãose tecidos humanos) a partir de em-brião humano clonado, numa técnicasemelhante àquela usada para gerarDolly, a ovelha clonada, precocemen-te falecida, fato que não levantou mai-ores indagações da comunidade cien-tífica. Na realidade, para se extraircélulas-tronco é necessário que seaguarde a formação de um embrião decinco dias (um aglomerado de cercade 100 células, chamado blastocisto).

No cerne da discussão ética so-bre a clonagem terapêutica, a pergun-ta: o embrião em estágio muito pre-coce de desenvolvimento é vida? Paraa Igreja Católica, a vida já existe noencontro de um óvulo com umespermatozóide. Entre os protestan-tes, não há preocupação em sacralizaro embrião, mas o interesse no desen-volvimento e na saúde da mulher. Osjudeus são mais liberais com relação apráticas de reprodução assistida eprivilegiam a saúde da mãe quando ofilho in utero é sinônimo de estressemoral ou risco físico para ela. Cientis-tas como René Frydman, professor daUniversidade de Paris V, preferem de-finir o embrião como “potencialidadede pessoa”, “um quase nada” quepode se tornar “um quase tudo”.“Portador de um projeto de família,ele é sagrado. Sem projeto, sem fu-turo, ele não é um nada, mas ‘umquase nada’”.

Com toda a sua complexidade éti-ca, o tema atrai a imprensa. O Globode 13/2 trouxe matéria em tom favo-rável à clonagem terapêutica. Ouviusimpatizantes da prática e bioeticistasa ela favoráveis. Woo Suk Hwang, umdos cientistas envolvidos na pesqui-sa, revelou a preocupação de que atecnologia caia em mãos de aventu-reiros interessados em clonar sereshumanos.

O Estado de S. Paulo, reescreven-do textos internacionais — New YorkTimes, Boston Globe, Reuters eAssociated Press — registrou, na mes-ma data, opiniões favoráveis à clonagemterapêutica, a resistência dos EstadosUnidos e os eventuais impedimentoslegais no Brasil. Se o Projeto de Lei deBiossegurança que tramita no Sena-do for aprovado sem alterações, se-

rão proibidas as pesquisas no país comcélulas-tronco embrionárias. No diaseguinte, o jornal paulista reprodu-ziu entrevistas dos pesquisadores sul-coreanos, revelando que os pacientesnão devem ter ilusões: a pesquisa develevar décadas.

Destaque também foi dado àproeza pelas revistas semanais,como Veja e IstoÉ. A Veja de 18 defevereiro (p. 64), em matéria de pá-gina inteira, deteve-se mais na des-crição do processo técnico dospesquisadores Woo Suk Hwang eMoon Shin-yong, da UniversidadeNacional de Seul. Menção aos pro-blemas éticos da experiência tam-bém é feita: “A questão ética é que[a técnica] também abre as portaspara aventureiros que queiram fazerum bebê clonado, mas não conse-guiam desenvolver a tecnologia paraisso”. Se implantados no útero deuma mulher, embriões desenvolvidosneste experimento sul-coreano da-riam origem a um clone humano. Noentanto, para que se retirem as cé-lulas-tronco destes embriões é ne-cessário destruí-los, o que lançanovos problemas éticos.

A referida matéria informa que,dos 30 embriões clonados, apenas umresultou em células formadoras detecidos, o que revela que entre a téc-nica e o sonho de cura uma distânciaconsiderável precisa ser percorrida.Além disso, informa que, por algumarazão, a técnica não funcionou quan-do foi tentada a clonagem de célulasmasculinas (fato que coloca em ques-tão o eventual potencial terapêuticopara homens).

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SÚMULA é produzida a partir do acom-panhamento crítico do que é divulgadona mídia impressa e eletrônica.

DIAZEPAM OU DIAS SEM PÃO? — Fon-tes Fidedignas, o repórter, acompa-nha de perto o delicado processo dareforma psiquiátrica implementado peloatual governo. Neste novo modelo,como se sabe, o hospital psiquiátricodeixa de ser o principal dispositivo deassistência, e os Centros de AtençãoPsicossocial vão sendo gradualmentecriados para substituí-lo. Prova de queo modelo hospitalocêntrico do passa-do precisa ser superado foi dada emfevereiro. Um hospital psiquiátrico pri-vado do Rio, cadastrado no SUS, re-cebeu a visita de técnicos da Secre-taria Municipal de Saúde, queconstataram: o consumo de proteínaper capita na instituição equivalia adois frangos para 120 pacientes! OMinistério Público (MP) foi acionadoe a secretaria deu prazo para o hos-pital tomar jeito: receberá visitas-sur-presa de inspeção.

Vale lembrar que em 2000 a Ca-ravana da Cidadania percorreu o paíse constatou que 16 hospitais psiqui-átricos eram uma catástrofe. Entreeles, a Casa de Saúde Dr. Eiras deParacambi (RJ). O MP determinou adispensa dos 1.500 pacientes, masapenas 600 foram retirados pela Se-cretaria Estadual de Saúde. Claro,tirar pacientes de um hospital su-põe acolhida em outro lugar. A se-cretaria pediu prazo maior, pois adireção do hospital cria todo tipode dificuldade.

Eis o perfil atual dos pacientes:40 anos, do sexo masculino, de corparda, analfabeto funcional, média de20 anos de internação, sem vínculoafetivo. Nenhum deles reside emParacambi. Roupas íntimas femininaslá não existem; dois auxiliares de en-fermagem atendem 60 pacientes que,por conta disso, recebem comida emmamadeira. O MP critica a lentidãodo processo e culpa os servidores en-carregados da desativação. FontesFidedignas lastima que esses profissi-onais comecem a ser vistos como cri-minosos, como os proprietários dasclínicas, por certa insensibilidade doMP quanto às especificidades destedelicado processo.

POLÊMICA — A polêmica do início doano sobre planejamento familiarcontinua repercutindo em Brasília.O governo decidiu aumentar a ofertagratuita às mulheres mais pobres, nasunidades do SUS, de camisinhas, an-ticoncepcionais, DIUs e até pílulas dodia seguinte, entre outros métodos.O Ministério da Saúde ressalvou queas novas políticas de planejamento fa-miliar não serão autoritárias, determi-nadas de cima para baixo: será res-peitado o direito de opção da mulher.

INTRIGA CARNAVALESCA — No desfiledas escolas de samba do Rio não deupara a Acadêmicos do Grande Rio,que desafiou o conservadorismo comseu samba-enredo em defesa do usoda camisinha. Mas o segundo lugar daUnidos da Tijuca foi uma certa com-pensação — na área de ciência etecnologia: o carro alegórico da se-qüência do DNA revolucionou a his-tória dos desfiles. O enredo, “O so-nho da criação e a criação do sonho:a arte da ciência no tempo do impos-sível”, foi resultado de seis meses detrabalho dos pesquisadores da Casada Ciência, do Centro Cultural de Ci-ência e Tecnologia da UFRJ.

Inocêncio Foca, nosso repórter-estagiário, notou que a ala da escoladedicada a Sherlock Holmes, persona-gem-detetive de Conan Doyle, foi con-siderada uma gafe por muitos pesqui-sadores. Afinal, em Um estudo emvermelho (1887), Holmes diz a Watson:“Você afirma que giramos em torno doSol. Se girássemos em torno da Lua nãofaria a menor diferença para o meu tra-balho”. Se Holmes nada sabia, em ple-no século 19, da teoria de Copérnicoou da composição do sistema solar,como concluiu Watson, estava fazen-do o que num enredo de ciência?

CONVOCAÇÃO DA OMS — Para gestores,ONGs, escolas e cidadãos anotarem nocaderninho: neste 2004, o lema do DiaMundial da Saúde (7 de abril, data decriação da Organização Mundial daSaúde) é "Segurança no trânsito nãoé acidente". Não espanta que a OMSesteja chocada com esta guerra san-grenta, que mata 1,2 milhão de pesso-as por ano, e a considere gravíssimoproblema de saúde pública. Hora decobrar postura ativa de governos, ins-tituições, sociedade civil e, por quenão?, de cada motorista.

A IstoÉ abriu seu primeiro pará-grafo mencionando uma “corrida acir-rada” para uma “revolução na medi-cina” vencida pela Coréia do Sul. Maisadiante, afirma que “como todo pro-gresso científico esse tipo de pesqui-sa dá margem a discussões éticas de-licadas”. Mayana Zatz, geneticistaque coordena o Centro de Estudosde Genoma Humano, em São Paulo,lembra na matéria que embriões ex-cedentes de clínica de fertilizaçãopoderiam ter sido aproveitados no ex-perimento, já que são descartados. Areportagem relata o empenho deMayana em alterar o Projeto de Leida Biossegurança que, recentemen-te modificado, tramita no Congresso.A matéria afirma, em seguida, que“ninguém duvida” da importância dotratamento com células-tronco pararegenerar órgãos ou tecidos.

Mais cautelosos, alguns veículosda imprensa mundial não embarcaramno otimismo triunfante das matériasnacionais. O Los Angeles Times (13/2)diz que “o informe de uma clonagemhumana bem-sucedida foi um marcono campo da pesquisa com células-tronco”, mas ressalva que “a promes-sa médica de tal empreendimento ain-da está a muitos anos de distância”.

Gina Kolata, repórter de ciên-cia do New York Times, escreve que,ao discutir a promessa da pesquisaem células-tronco, alguns pesquisa-dores dizem que medem suas palavrascom cuidado. “Nós estamos preocu-pados com a badalação em torno des-se campo”, diz Irving Weisman, quedirige o instituto de células-troncoda Universidade de Stanford. Mas,quando tenta diminuir as expectati-vas de seus pacientes diante disso,Weisman se sente “como que gritan-do ao vento”.

De fato, as esperanças com rela-ção a esta técnica ganharam uma du-cha de água fria quando o New YorkTimes noticiou, em agosto de 2001: “Umcuidadoso estudo que tentou tratar adoença de Parkinson com o implantede células de fetos abortados em cé-rebros de pacientes falhou não só emrevelar um benefício global, mas aoevidenciar desastrosos efeitoscolaterais”. A pesquisa foi liderada porcientistas do Centro de Ciências daSaúde da Universidade do Colorado edo Colégio de Médicos e Cirurgiões daUniversidade de Colúmbia. (C.C.)

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saúde da população negra

Katia Machado e Marinilda Carvalho

A dor da invisibilidade de que fala acima o perso-nagem negro do romance de Ellison aflige igual-mente, meio século depois, a população negrabrasileira. É uma população “de substância, de

carne e osso, fibras e líquidos”, uma população com men-te, alma e cultura e, ainda assim, invisível, mantida emsilêncio pela cultura do “racismo cordial” – fincada nasfalácias da evidente desigualdade social (“a discrimina-ção é contra o pobre, não contra o negro”) e da conve-niente “democracia racial” (“o brasileiro não é racista,brancos e negros convivem muito bem”).

“O racismo é tão eficiente no Brasil que o próprionegro fica invisível e nem se vê a si próprio”, afirmou na 12ªConferência Nacional de Saúde, em dezembro, Maria doCarmo Sales Monteiro, da Rede Feminista de Saúde-SP.Também pensa assim Fátima Oliveira, médica e diretora daRede Nacional Feminista de Saúde: “Invisibilizar é uma ve-lha e vitoriosa estratégia política racista”. Luciano Toledo,diretor da unidade da Fiocruz na Amazônia e um dos coor-denadores do Projeto Quilombo, acrescenta que o negroacaba não vendo a si próprio porque lhe falta, entre mui-tas oportunidades, o acesso à informação. “Ele não co-nhece sequer as doenças genéticas de sua etnia”, afirma.

No ano do 10º aniversário do Programa Saúde da Famí-lia, que enfatiza a atenção à saúde, esta é uma constataçãodolorosa de desatenção. Alaerte Leandro Martins, enfer-meira da Secretaria de Saúde do Paraná e ex-presidentedo Comitê Estadual de Prevenção da Mortalidade Mater-na, considera a invisibilidade do negro brasileiro conseqü-ência concreta do racismo – inclusive, e por muitas déca-das, na esfera governamental. “Realmente, poucos negrosse classificam como tal, e é por isso que, em qualquerbase de dados que se analise, a população de pardos ebrancos é sempre maior”, diz. Isso não é casual. A informa-ção sobre cor desapareceu do Censo de 1970, durante aditadura, e deixou enorme vazio, lembra a demógrafa ElzaBerquó no livro Saúde da População Negra, que Fátima Oli-veira escreveu em 2001 para a Organização Pan-Americanada Saúde, em preparação à III Conferência Mundial da ONUcontra o Racismo, em Durban, África do Sul.

— Tínhamos dados sobre cor nos censos de 40, 50 e60. Acontece que o Censo de 1960 só veio a público em1978 e, ainda assim, incompleto — sua divulgação nunca foicompletada. Então, quando em 1970 a informação sobrecor não entrou, isto significou que tivemos um vazio deinformações sobre a população negra brasileira de 1960até 1978. Durante 20 anos não havia nenhuma idéia sobrecomo estava evoluindo a população negra — lamenta Elza.Durante a preparação do Censo de 80, ela presidiu uma

Sou um homem invisível. Não, não sou um fantasmacomo os que assombravam Edgar Allan Poe... Sou umhomem de substância, de carne e osso, fibras e líqui-dos — talvez se possa até dizer que possuo uma mente.Sou invisível, compreendam, simplesmente porque aspessoas se recusam a me ver... Minha invisibilidadetambém não é, digamos, o resultado de algum aciden-te bioquímico da minha epiderme. A invisibilidade àqual me refiro ocorre em função da disposição peculiardos olhos das pessoas com quem entro em contato...

O Homem Invisível (1952), de Ralph Ellison (1914-1994)

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I N V I S I B I L I D A D Ea ma io r da s do re s

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mesa de debates na reunião anual daSociedade Brasileira para o Progressoda Ciência, com plenário lotado, quecontribuiu para que o quesito cor vol-tasse ao censo.

“Enquanto isso, o negro ficou namarginalidade como pobre, sujo, dosubúrbio, da favela, sem escolarida-de, desempregado”, diz AlaerteMartins. “Ou seja, no Brasil, gênero,raça e classe social se confundem.Se você não é homem, branco e ricovocê é invisível.” Elza conta no livroque uma pessoa negra do auditórioperguntou por que uma pesquisado-ra branca queria trabalhar com ademografia do negro. Uma das razões,respondeu ela, é que não haviademógrafos negros no Brasil.

O QUESITO COR“Em todo o mundo, minorias étnicas

continuam a ser desproporcionalmen-te mais pobres, desproporcionalmentemais afetadas pelo desemprego edesproporcionalmente menos escola-rizadas do que os grupos dominantes.Estão sub-representadas nas estrutu-ras políticas e super-representadas nasprisões. Têm menos acesso a serviçosde saúde de qualidade e, conseqüen-temente, menor expectativa de vida.Estas e outras formas de injustiça ra-cial são a cruel realidade do nosso tem-po, mas não precisam ser inevitáveisno nosso futuro”. O alerta, de marçode 2001, foi de Kofi Annan, secretá-rio-geral da Organização das NaçõesUnidas (ONU).

A “cruel realidade” é clara naPesquisa Nacional por Amostra de Do-micílios (Pnad), de 1999, do InstitutoBrasileiro de Geografia e Estatística(IBGE). No levantamento da populaçãoindigente, 30,73% são brancos e68,85%, negros. A população pobrebranca representa 35,95%, e a negra,

63,63%. Conferindo a média da popu-lação jovem — entre 15 e 25 anos deidade — e analfabeta, o Pnad aponta2,6% de brancos e 7,6% de negros.Quanto à população acima de 25 anos,com menos de quatro anos de estu-do, 35% são de brancos e 46,9%, denegros; 7,85% de brancos têm abaste-cimento de água inadequado, e essepercentual sobe para 26,15% entre osnegros. Já os domicílios com esgotosanitário inadequado são habitados por27,73% de brancos e 52,12% de negros.

Como se fosse pouco, há doen-ças que lhes são características: ane-mia falciforme, deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase, diabetesmelito (tipo II), hipertensão arteriale miomas uterinos (ver box abaixo).Fátima Oliveira, tomando como basea literatura médica americana, cons-tata que a prevalência de miomas emmulheres negras é cinco vezes maiordo que em mulheres brancas. Pesqui-sa com mulheres negras e brancas re-alizada em 1995 na cidade de São Paulopela especialista Vera Cristina de Sou-

za, do Centro Brasileiro de Análise ePlanejamento, detalhou: 41,6% deprevalência de miomas entre mulhe-res negras e 22,9% entre brancas, e21,9% de reincidência entre negrascontra 6% entre brancas.

Os negros dos dois sexos adoe-cem e morrem de males provocadospelas condições precárias de moradiae de vida: desnutrição, mortes violen-tas, mortalidade infantil elevada, abor-tos sépticos, altos índices de Aids edoenças de trabalho, transtornosmentais resultantes da exposição aoracismo e derivados do abuso de subs-tâncias psicoativas, como álcool e dro-gas. “Sabemos que saúde é resultadode diversos fatores, ambientais, soci-ais, econômicos, culturais, e a popu-lação negra, em nosso país, apresen-ta os piores índices de escolaridade,salários baixos e baixa expectativa devida”, ressalta o dentista José Marmoda Silva, coordenador do Projeto Ato-Ire/Religiões Afro-Brasileiras e Saúde,responsável pela articulação nacionalda Rede de Religiões Afro-Brasileiras e

As doenças da população negra

Entre as doenças genéticas ouhereditárias mais comuns da po-

pulação negra destacam-se:Anemia falciforme — Doença here-ditária, decorrente de uma muta-ção genética ocorrida há milharesde anos, no continente africano. Adoença, que chegou ao Brasil, pelotráfico de escravos, é causada porum gene recessivo, que pode serencontrado em freqüências quevariam de 2% a 6% na populaçãobrasileira em geral, e de 6% a 10%na população negra. Apesar da tri-agem de doenças falciformes oudaquelas de caráter congênito re-alizada no período neonatal, comoexige a Portaria nº 822 do Ministé-rio da Saúde, de 6 junho de 2001,grande parte da população aindadesconhece o problema.Diabete melito (tipo II) — Esse tipode diabete se desenvolve na faseadulta e evolui causando danos emtodo o organismo. É a quarta causade morte e a principal causa de ce-gueira adquirida no Brasil. Essa do-ença atinge com mais freqüência oshomens negros — 9% a mais que oshomens brancos — e as mulheresnegras — em torno de 50% a mais doque as mulheres brancas.Hipertensão arterial — A doença,que atinge 10% a 20% dos adultos,é a causa direta ou indireta de

12% a 14% de todos os óbitos noBrasil. Segundo a médica FátimaOliveira, a doença é resultante defatores como predisposição bio-lógica, associada a variáveis comosexo, idade, obesidade, maioringestão de sal, estresse e raça.Em geral, a hipertensão é mais altaentre os homens e tende ser maiscomplicada em negros, de ambosos sexos.Deficiência de glicose-6-fosfatodesidrogenase — Afeta mais de 200milhões de pessoas no mundo. Apre-senta freqüência relativamente altaem negros americanos (13%) e po-pulações do Mediterrâneo, comona Itália e no Oriente Médio (5% a40%). A falta dessa enzima resultana destruição dos glóbulos verme-lhos, levando à anemia hemolíticae, por ser um distúrbio genéticoligado ao cromossomo X, é mais fre-qüente nos meninos.Miomas — Tumores benignos (não-cancerosos) comuns do trato genitalfeminino. Também são conhecidoscomo fibromas, fi-bromiomas ouleiomiomas e se desenvolvem na pa-rede muscular do útero. Embora nemsempre causem sintomas, seu tama-nho e localização podem provocarproblemas como sangramento gine-cológico importante e dor em baixoventre.

Maria Inês Barbosa, da Seppir,diz que raça é um conceito

socialmente construído. “Se ana-lisarmos segundo um conceito bi-ológico, a raça negra não existe,e sim a raça humana”. Usa-se atéhoje a palavra raça, em vez deetnia, como forma de desconstruirtal conceito. Afinal, diz ela, “nãofoi em torno das etnias que seestabeleceram as relações soci-ais e o racismo”. A etnia, comoexplica o dicionário Aurélio, étoda população ou grupo so-cial que apresente relativahomogeneidade cultural e lin-güística, compartilhando históriae origem comuns.

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Saúde. “E o SUS ainda não funcionana prática como foi estabelecido epensado, ainda não é uma conquistade toda a população”.

A pergunta que surge naturalmen-te, quando se trata deste assunto: cri-ar uma política específica para a popu-lação negra não esbarraria no princípioda universalidade que, com a eqüida-de e a integralidade, forma os pilaresdo Sistema Único de Saúde?.

Fátima Oliveira tem a resposta naponta da língua: “A universalidade naatenção e no acesso à saúde só exis-te quando se consideram as singulari-dades o caminho para a eqüidade”.Alaerte Martins concorda: “Equidadeé um dos princípios do SUS, assim comouniversalidade, e estes não se contra-põem: deve-se atender o universo mascom eqüidade, e isso significa dar aten-ção às particularidades de cada umou de cada parcela da população”.

Maria Inês Barbosa, da SecretariaEspecial de Políticas de Promoção daIgualdade Racial (Seppir), destaca umaparticularidade básica: a pobreza de-termina a gravidade dos problemas desaúde da população negra. “É impor-tante que transformemos dados eminformações e assumamos que o racis-mo faz a diferença”, diz (ver entrevistana página 12). Segundo ela, a popula-ção negra tem vida 6 anos menor que ada população branca (64/70 anos). Asmulheres negras perdem mais anospotenciais de vida que os homens bran-cos, contrariando a esperada diferen-ça por sexo; 69,5% dos óbitos de ho-mens negros ocorrem até 54 anos,enquanto a taxa para os homens bran-cos é de 45,1% em São Paulo. Estudosna cidade apontam que pretos morremmais que brancos por causas externasem todas as faixas etárias (10 a 44 anos).Quanto às crianças, a diferença relati-va entre níveis de mortalidade de ne-gras e brancas aumentou, em 20 anos,de 21% para 40%. Em relação às mortesmaternas, em algumas localidades, o ris-co chega a ser 7 vezes maior para mu-lheres negras.

A pesquisadora Fernanda Lopes,assessora para Eqüidade Racial em Saú-de do Programa de Combate ao Racis-mo Institucional (parceria OPAS/OMS-Brasil/governo britânico), destacaoutras particularidades. “As mulheresnegras apresentam menores chancesde passar por consultas ginecológicascompletas e por consultas de pré-na-tal”, informa. “Para aquelas que têmacesso à assistência pré-natal, a pos-sibilidade de iniciar o acompanhamentoem período igual ou inferior ao quar-to mês de gravidez é menor”.

“Outro grave problema”, dizFernanda, “refere-se à maior vulnera-bilidade da mulher negra em desen-volver o vírus da Aids”. Em sua tesede doutorado na USP, para a qualFernanda entrevistou 542 mulheresnegras portadoras do vírus HIV e 526mulheres brancas também soropositivas,fica claro que a vulnerabilidade au-menta à medida que o amparo socialdiminui. Ou seja, vivem mais as quetêm acesso a serviços de saúdeespecializados de boa qualidade, sãobem-informadas sobre seus direitos ese relacionam bem com os profissio-nais de saúde. “A atenção à mulhernegra com Aids é menor porque, en-tre as entrevistadas, as negras apre-sentavam menor escolaridade e maio-res chances de serem analfabetas,menor renda individual e familiar e maisdificuldade para chegar aos serviços desaúde, sem falar que a maioria delasdemonstrou menos facilidade para en-tender o que os médicos diziam”.

A POLÍTICA DE SAÚDEA dura realidade da população

negra aparece também nos índices demortalidade infantil — 37,3% de mor-tes em cada mil crianças brancas e62,3% entre as crianças negras. Naopinião de Fátima Oliveira, a mortali-dade precoce dos negros desnuda oracismo no que ela chama de“desatenção à saúde”.

“No Brasil, negros morrem antesdo tempo em todas as faixas etárias”,diz. Segundo ela, apesar de a morta-lidade infantil no país estar caindo,consideravelmente, há 20 anos, oquadro é dramático: em 1980, crian-ças negras apresentavam índice demortalidade 21% maior do que o dasbrancas (para cada mil nascidos vivosmorriam 76 brancos e 96 negros); em1991, a proporção cresceu 40% (paracada mil nascidos vivos morriam 43brancos e 72 negros). “Parece quemuito pouco ou quase nada se fazpara amenizar e melhorar o quadrode saúde e de mortalidade da popu-lação negra”, afirma Fátima. “Entre

1977 e 1993, a mortalidade de meno-res de 1 ano no país foi de 51%, masao incluir-se o quesito cor a desigual-dade racial aflora: a mortalidade debrancos foi reduzida em 43%; a denegros em apenas 25%”.

As primeiras experiências gover-namentais com foco na questão raci-al na área da saúde surgiram no iní-cio dos anos 80, quando setores doMovimento Negro, em São Paulo, atu-aram com as secretarias de Saúde.Surgiram vários estudos sobre a saú-de dos negros. Em 1995, em respostaàs demandas da Marcha Zumbi dosPalmares contra o Racismo, pela Ci-dadania e a Vida, o governo federalinstituiu, por decreto presidencial,o Grupo de Trabalho Interministerialpara a Valorização da População Ne-gra (GTI). Daí formou-se um subgrupoSaúde, que procurou implementarrecomendações do Movimento Negro:considerar as variáveis sexo e corpontos essenciais na demarcação doperfil epidemiológico da população,para identificar a evolução de doen-ças em grupos como brancos, indíge-nas, amarelos, negros e judeus.

Era a gestão de Adib Jatene noMinistério da Saúde (MS), e o primei-ro embrião de uma Política de Saúdepara a População Negra, definida naadministração seguinte, do ministroCarlos Albuquerque — desativada pou-co a pouco, até ser extinta no perío-do José Serra.

Hoje, o Ministério da Saúde e aSeppir buscam a formulação de umaPolítica Nacional de Saúde da Popu-lação Negra que dê conta das pecu-liaridades desse grupo, com base noPrograma Saúde da Família. Para tan-to, como explica Maria Inês Barbosa,da Seppir, caberá a essa secretaria eao ministério formar um comitê téc-nico de saúde da população negra eum comitê consultivo com participa-ção de pesquisadores e ativistas docampo da saúde da população negra.“Esse trabalho impulsiona a introdu-ção do recorte racial no Plano Naci-onal de Saúde, com metas específi-cas”, informa. O objetivo é diminuire eliminar as desigualdades raciais emsaúde, principalmente em torno dasmortalidades precoces, que caracte-rizam dramaticamente o perfil de saú-de da população negra.

Entre muitas ações, o quesito corprecisa estar presente em todos osdocumentos do SUS, do cartão aosprontuários médicos. Tal lacuna nainformação compromete as estatísti-cas, vitais para um quadro preciso dapopulação brasileira, em toda a suadiversidade. É a partir deste quadro

O dever que tem o Estado deatender as necessidades de

saúde de todo cidadão brasilei-ro. A integralidade vem sendo en-tendida como a articulaçãoentre as várias áreas de conheci-mento e a busca pelas reais ne-cessidades de saúde da popula-ção. A eqüidade é a tarefa quetem o Estado de reconhecer quetodos têm direito à saúde, res-peitando a diversidade entre po-vos e regiões.

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A realidade quilombolaHá bastante trabalho pela frente”.

José Marmo da Silva, do ProjetoAto-Ire, considera que a invisibilidadecontinua, mas acha também que nãose pode esquecer o que já foi con-quistado —, por exemplo na 12ª Confe-rência Nacional de Saúde. “Consegui-mos várias vitórias no que diz respeitoà inclusão da população negra, das mu-lheres negras e dos terreiros em diver-sos espaços de negociação.”

Falta então estender as intençõesà prática. Como disse no programa Roda-Viva de 15/3 (TV Cultura — SP) a edu-cadora Arany Santana, 52 anos, titularda Secretaria Municipal da Reparação,de Salvador – a primeira do país, cria-da em dezembro de 2003 para atenu-ar a exclusão social que subjuga a po-pulação negra: “Não dá mais parausar nomezinho com penduricalho. Éhora de reparar.”

Mais informaçõesO Livro da Saúde das Mulheres Negras:nossos passos vêm de longe, org. deJurema Werneck, Maisa Mendonça eEvelyn C. White, (Ed. Pallas/Criola, Riode Janeiro, 1994).

Pesquisa Nacional por Amostra de Do-micílios (IBGE, 1999) www.ibge.gov.br

Saúde da População Negra, de FátimaOliveira (Opas-Brasil, 2001)w w w. o p a s . o r g . b r / p u b l i c m o .cfm?codigo=68

Saúde da População Negra: construindopolíticas universais e equânimes no Bra-sil (Ministério da Saúde, 2001). http://dtr2001.saude.gov.br/bvs/publicacoes/populacao_negra.pdf

Temos que nosarrepender nesta

geração, não tantopelas más ações de

pessoas más, mas pelosilêncio assustador das

pessoas boas

Martin Luther King

Dentro do grupo da populaçãonegra, podemos destacar os

remanescentes dos quilombos.Além das doenças que lhes são pe-culiares devido à etnia, esse gru-po populacional está hoje esque-cido nas matas brasi leiras eperiferias das cidades. “Observa-mos muitos problemas de saúdeespecíficos da população negra e,principalmente, dos remanescen-tes de quilombos”, alerta LucianoToledo. Para entender a realida-de dos quilombolas, o Centro dePesquisa Leônidas e Maria Deane,da unidade Fiocruz Amazônia, vemdesenvolvendo pesquisa cuja pro-posta é levantar os principais pro-

blemas de saúde que atingem osremanescentes de quilombos daRegião Norte.

Os resultados preliminaresdo segundo levantamento reali-zado pelo Projeto Quilombos, em650 comunidades localizados emáreas de Várzea de Saracura eArapemã, mostram crianças em ris-co nutricional. O trabalho cons-tata também que a desnutriçãoé problema preocupante entre osidosos, enquanto na populaçãoadulta ocorrem obesidade, diabe-tes, hipertensão e o primeirocaso de anemia falciforme, infor-ma Ana Felisa Gerrero, coordena-dora do projeto.

que se produzem as análises que vãofundamentar as políticas públicas.

Para o movimento negro, repre-sentado por várias instituições na12ª Conferência, a política nacionalde saúde para a população negra deveser baseada em quatro pilares interli-gados: a produção do conhecimentocientífico, a capacitação dos profissi-onais de saúde, a informação eficaz dapopulação negra e a atenção à saúdedesta população transformada em ro-tina assistencial e acesso facilitado emtodos os níveis do sistema de saúde.

Em discurso no dia 12 de março,na cerimônia de lançamento da AçãoKalunga, no quilombo goiano de Ca-valcante, o presidente Luiz InácioLula da Silva disse a descendentes deescravos que acabou o tempo em queeles eram segregados. Aludindo à mi-nistra Matilde Ribeiro, da Seppir, opresidente afirmou: “Nós não colo-camos uma negra de ministra para serenfeite lá em Brasília, mas para queela levante os problemas com os quaisvivem os negros e as negras no Brasil,para que a gente possa começar aresolvê-los, senão não os resol-veremos nunca.”

É verdade que nessemesmo dia a ONU fez críti-ca enérgica à políticabrasileira de combateao racismo, e pediuque o governoLula aplique alegis laçãopara mini-mizar adiscri-mina-ção.

O texto, citado pelo jornal O Estadode S. Paulo, foi produzido pelo Co-mitê de Combate ao Racismo da ONUe aponta, entre outras censuras, “apersistência de desigualdades pro-fundas e estruturais que afetam ascomunidades negras, mestiças e in-dígenas no Brasil”.

Rebeca Oliveira Duarte, advogadae conselheira-gestora da Djumbay, en-tidade do movimento negro pernambu-cano, disse em 15/3 à Agência Ibase(www.ibase.br) que houve um avançoconsiderável no combate ao racismonos últimos anos no Brasil, principal-mente a partir do momento em que odebate sobre as cotas para negros nauniversidade atingiu a opinião públi-ca, fortalecendo os argumentos dosmilitantes e conquistando adeptos àcausa. “Mas ainda estamos muito lon-ge de estremecer os funda-mentos do racismo,que têm raízesp r o f u n -das.

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entrevista

Valcler Rangel Fernandes e Maria Inês da Silva Barbosa

“Romper o silêncio é tarefa de todos”

Katia Machado

Hoje, a discussão sobreuma política de saúdepara a população negratem como princípios bá-

sicos a redução da desigualdade so-cial e o combate à discriminação ra-cial. Esta entrevista, com Valcler RangelFernandes, subsecretário de Planeja-mento e Orçamento do Ministério daSaúde, e Maria Inês da Silva Barbosa,secretária-adjunta da Secretaria Espe-cial de Políticas de Promoção da Igual-dade Racial, é um resumo do que pen-sam esses especialistas sobre o assuntoe como o poder público se organiza naformulação dessa política.

Por que se faz necessária a constru-ção de uma política de saúde espe-cífica para a população negra? Essapolítica não esbarraria no princípioda universalidade do SUS, garantidopela Lei Orgânica 8.080?

Valcler: O acesso se mantémenquanto universal. Só que é preci-so tratar os diferentes de acordo comsuas necessidades. E há evidências deprocessos de adoecimento e morteque também evidenciam o racismo.Mais do que uma necessidade, é umaobrigação nossa tratar de maneira di-ferenciada essa população que, naverdade, não é a minoria, mas maio-ria na população brasileira.

Maria Inês: O racismo impacta deforma perversa o viver, o adoecer e omorrer da população negra, confor-me expresso nos diferentes indica-dores sociais. Essa política não esbar-ra no princípio da universalidade,porque aliado a ele temos o princí-pio da eqüidade, que é tratar os de-siguais de forma diferente, de acor-do com suas especificidades.

Como construir uma política inter-disciplinar?

Maria Inês: Uma política para apopulação negra deve considerar adiscriminação racial, o trabalho e aeducação. Deve estar atenta para oprocesso de formação dos profissio-nais na área de saúde, visto que essa

ação de discriminação racial é parteda cultura do país, e os profissionaissão formados nesta ideologia racista.

Valcler: Deve ser destacado ocombate à discriminação racial, e res-saltados o trabalho e a educação, quetêm a ver com o profissional de saú-de. Certamente, um trabalho que sópode ser interdisciplinar deverá serrealizado com o profissional que estátrabalhando hoje nas unidades, nosentido de humanização do serviço.

A invisibilidade do negro é real?Valcler: É real. Na área da saúde,

a base do sistema, com os técnicos eauxiliares de enfermagem, é compostapor maioria negra. Entre médicos e ou-tros profissionais de nível superior, a pre-sença do negro vai diminuindo. Isso re-vela um problema e também se associa àquestão de o negro não estar se vendona definição de questões que o afetam.Quanto à valorização de aspectos cultu-rais na organização do SUS: se o sistemapretende ser adequado culturalmenteà população, a observação de práticascomo as existentes em terreiros, muitasvezes grandes centros terapêuticos, nãoé levada em consideração.

Maria Inês: A invisibilidade donegro é uma construção do racismo,de desconsiderar as estatísticas dedesigualdades raciais na formulaçãode políticas públicas, em não incor-porar cerca de 50% da população aoprojeto de desenvolvimento econô-mico. Ela é real nesses termos, nãono sentido de que o próprio negro seconceba invisível, ele é tornado invisí-vel por determinada construção his-

tórica, que nega sua origem e contri-buição, suas manifestações culturais.São exemplo as religiões de matriz afri-cana, alvo de discriminação, de não-consideração. Poucos sabem da Lei nº10.639, decretada pelo presidenteLula em janeiro de 2003, tornandoobrigatória a história afro-brasileira noensino fundamental e médio. Duranteanos nos usurparam do conhecimen-to da nossa origem, da nossa sabedo-ria, da nossa ciência. É isso que tornainvisível o negro, impede seu acesso auma riqueza que é construída por to-dos nós. Ela é real nestes termos, sematerializa dessa forma.

Qual a relação entre violência e saúde?Valcler: A violência é um problema

de saúde pública e atravessa a violência po-licial, a do crime, a que ocorre dentro decasa e na escola, a violência no sistema desaúde e contra a mulher. É a primeira causade óbito na população jovem. Pesquisa deLuiz Eduardo Soares, em 1992, revelou que,na Zona Norte do Rio, os negros foram 66,7%das vítimas de homicídio, emboracorrespondessem a 18,8 % da população.

Maria Inês: Numa cidade como SãoPaulo, o homicídio é a primeira causade morte para a população negra. MartinLuther King disse: “Temos que nos ar-repender nesta geração, não tanto pe-las más ações de pessoas más, mas pelosilêncio assustador das pessoas boas”.O rompimento do silêncio é tarefa quecabe a todos nós, de todas as cores eraças. Está posto o desafio.� Leia a íntegra da entrevista emwww.ensp.fiocruz.br/publi/radis/20-web-01.html

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Saúde Mental

Governo inicia política “firme e segura”de redução de leitos psiquiátricos

Cláudio Cordovil

Coordenadores de saúdemental de 84 municípios ouseus representantes, alémde alguns secretários esta-

duais e municipais de saúde, estive-ram reunidos no dia 9 de marçono Hotel Torre, em Brasília, parad i scut i r o Prog rama Anua l deReestruturação da Assistência Psiqui-átrica Hospitalar no SUS. O objetivodo encontro foi informar às autorida-des estaduais e aos gestores destesmunicípios, que têm hospitais psiquiá-tricos com mais de 160 leitos, sobre asnovas decisões ministeriais a respeitode sua redução e gradual substituiçãopor serviços extra-hospitalares de saú-de mental, como determinam as por-tarias ministeriais 52 e 53, de 20 dejaneiro de 2004 e 1º de março de 2004.

Muita atividade também ocorreuentre os dias 10 e 12 de março. Aprovei-tando a presença de representantes detantos municípios em Brasília, a Coor-denação de Saúde Mental do MS apre-sentou no dia 10 interessante e deta-lhada radiografia da situação atual dasredes assistenciais em todos os estadosbrasileiros. No dia seguinte, foi promo-vida a primeira reunião entre coorde-nadores de saúde mental e coordena-dores da atenção básica na saúde. A idéiaé incluir ações de saúde mental no Pro-grama Saúde da Família, que completa10 anos em 2004, de forma maisesquemática e planejada. A maratona seencerrou no dia 12, com o anúncio ofi-cial da realização do I Congresso Brasi-leiro de Caps (Centro de AtençãoPsicossocial), de 27 a 30 de abril, emSão Paulo.

Na abertura, no dia 9, o secre-tário de Atenção à Saúde, Jorge Solla,informou que foram incluídos no or-çamento da saúde deste ano R$ 42milhões para serem empregados ex-clusivamente na reestruturação darede hospitalar psiquiátrica, com au-mento das diárias de hospitais meno-res e daqueles que tiveram melhoravaliação no PNASH (Programa Nacio-nal de Avaliação do Sistema Hospita-lar). A ênfase em premiar hospitais

m e n o r e stem sua ra-zão de ser.“O hospitalde grandeporte é a-quele queatende pa-cientes detodos os lu-gares e fun-ciona comoo espaço emque eles sed e s c o l a mcompleta-mente deseu meio so-cial e vão sofrer longas internações”,afirmou no encontro Pedro GabrielDelgado, coordenador de saúde men-tal do MS.

NÃO FALTARÁ DINHEIROSolla foi absolutamente enfático

ao assegurar que não faltará dinhei-ro para novos Caps em 2004. “Gosta-ria de frisar que não há nenhuma li-mitação financeira no orçamento doministério para 2004, com vistas aocredenciamento de novos Caps”. Des-ta forma, afirmou, os leitos que per-manecerem serão mais bem remu-nerados. Além disso, outra partedestes recursos não ficará no hospi-tal: vai para o teto financeiro (cus-teio da esfera federal para assistên-cia ambulatorial e hospitalar) domunicípio ou do estado, para melhoriada capacidade de assistência extra-hospitalar em saúde mental.

“Queremos estabelecer com esseplano uma transição do modelohospitalocêntrico para o extra-hospi-talar, de maneira segura e firme”, dis-se Delgado. “Tudo somado, nossa esti-mativa é que tenhamos redução entre2.000 e 2.500 leitos em 2004. No anode 2003, reduzimos 1.900 leitos”.

Pela Portaria nº 52 do Ministérioda Saúde, os hospitais com mais de160 leitos deverão retificar seu núme-ro para menos até o fim de abril, des-de que seja um múltiplo de 40. Assim,um hospital com 168 leitos deverá re-duzi-los nessa primeira fase para 160,

módulo imediatamente inferior. Já ode 416 leitos deverá se ajustar para400, também imediatamente inferior.Nesta fase de “retificação” não seexigem reduções substanciais no nú-mero de leitos, somente que remetaao módulo imediatamente inferior. Istoé proposital. Afinal, o governo não querpromover a desospitalização irrespon-sável. Esta operação faz automatica-mente o hospital subir uma categoriaem sua classificação, com conseqüen-te aumento das diárias.

Nesta primeira fase, de “retifica-ção”, os gestores municipais de saúdede localidades com hospitais de mais de160 leitos deverão firmar um Termo deCompromisso e Ajustamento comprestadores públicos e privados, em queserão definidas as obrigações de ambasas partes na garantia do adequado aten-dimento aos pacientes. Ali o prestadorse compromete, informando, por exem-plo, a equipe mínima de que disporá paraa assistência.

Num segundo momento, a partir demaio de 2004, os hospitais que conserva-rem entre 160 e 600 leitos após a “retifi-cação” deverão reduzir ainda mais seusleitos. Cada redução de um módulo de40 leitos nesta fase leva o hospital à clas-se imediatamente superior, com ganhosnas diárias. Mas há limites para a redu-ção de leitos nesta fase. Hospitais com160 a 240 leitos só poderão reduzir ummódulo (40 leitos) neste ano. Já os en-tre 241 e 360 leitos poderão reduzir atédois módulos (80 leitos) em 2004.

Jorge Solla, secretário de Atenção à Saúde, anunciou a reserva deR$ 42 milhões para a reestruturação de hospitais

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HEMODERIVADOS

Fábrica nacional,golpe nas multinacionais

Jesuan Xavier

Aaguardada construção deuma fábrica de hemoderi-vados no país, prevista noPlano Plurianual de Saúde e

prometida a Pernambuco, agora divi-de as atenções dos especialistas como anúncio de empreendimento seme-lhante pela Secretaria Estadual de Saú-de de São Paulo. Esta corrida de mi-lhões de dólares promete se converternum duro golpe nos interesses dasmultinacionais, que há anos vendemao Brasil remédios fabricados com aproteína do sangue.

Não por acaso, o projeto brasi-leiro que dará autonomia aoprocessamento de plasma ficouengavetado por décadas. “Tivemosuma monumental interferência exter-na”, acusa o pesquisador Isaias Raw,diretor da Divisão de Desenvolvimen-to Tecnológico e Produção do Insti-tuto Butantan, em São Paulo.

Raw coordena um estudo para aimplantação de uma fábrica em SãoPaulo, e afirma que o país detémtecnologia para se tornar auto-sufi-ciente na produção de insumos dosangue há muito tempo. “Interessespolíticos e econômicos é que nãopermitiram que o país já tivesse umafábrica de hemoderivados em plenofuncionamento”, denuncia.

Segundo a Agência Nacional de Vi-gilância Sanitária (Anvisa), o Brasil gas-ta cerca de US$ 150 milhões por anocom a importação de hemoderivados.No mesmo período, desperdiça ou-tros US$ 30 milhões com o sangue quesobra das transfusões.

UM MERCADO DE BILHÕESO mercado de hemoderivados

movimenta anualmente o montantede US$ 20 bilhões, de acordo comlevantamento feito por Luiz Amorim,chefe do serviço de Hemoterapia doRio de Janeiro. Estados Unidos, Ale-manha, Áustria, França e Inglaterrasão os maiores produtores mundiais.

Aredução mais significativa devalor ocorreu na aquisição do

Fator 8 da coagulação. Na últimadécada, a unidade custava US$0,42, um gasto anual de US$ 65milhões. Com a nova política decompra do governo, uma espéciede leilão, o preço baixou para US$0,12 — queda de 71,5% no preçoda unidade. O consumo anual deFator 8 ultrapassa 150 milhões deunidades, atendendo a cerca desete mil hemofílicos.

O Brasil importa hemoderivadosbasicamente dos Estados Unidos e daEuropa. Empresas como Baxter (ame-ricana), LFB (francesa), Bayer, GRK,Kedrion (alemãs) e Kedrion (italiana)seriam as mais afetadas pela constru-ção de uma fábrica nacional.

Em média, o Brasil compra anual-mente 160 milhões de unidades inter-nacionais (UI) de Fator 8 de coagula-ção, 20 milhões de Fator 9, 10 milhõesde gramas de albumina e 500 mil gra-mas de imunoglobulina. É bem verda-de que desde 2003, a partir da mu-dança na forma da compra dessesderivados — de licitação para pregão—, o custo baixou um pouco. Mas, ain-da assim, é muito alto, afirma Raw.

Em 1988, o sociólogo e cientistapolítico Herbert de Souza, o Betinho,já criticava o comércio do sangue. Emdepoimento à revista Tema, do Radis,ele atacou: “Quem vive industrialmen-te, comercialmente, financeiramentedo sangue deve refletir e pensar em,se quiser lucro, mudar de ramo, desetor, vender refrigerantes, abrir umaboutique, fazer outra coisa...”

Mas esse mercado só fez cres-cer ainda mais. No estudo de Amorimhá interessante comparação entre ovalor do plasma e o preço do petró-leo. Ele demonstra que o barril do cha-mado “ouro negro” é vendido mundi-almente ao preço médio de US$ 25,enquanto a mesma quantidade deplasma “bruto” atinge até US$ 16 mil.

Hoje, o valor de apenas um gra-ma de hemoderivado no mercado in-ternacional chega a US$ 30. Esse altovalor de mercado se explica pela re-

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A crise do sangue contaminado

levância dos elementos derivados dosangue: plasma, plaquetas, hemáciasetc. Com eles, que podem ser utiliza-dos isoladamente, através de trans-fusão, produzem-se diversos medica-mentos para combater doenças comohemofilia, neoplasia, hepatite e vári-as formas de câncer.

DOIS PROJETOS EM ESTUDONo começo deste ano, a Secre-

taria de Estado da Saúde de São Pau-lo anunciou que planeja investir naconstrução de uma fábrica dehemoderivados. O projeto prevê umgasto de R$ 100 milhões, totalmentefinanciado pelo governo paulista. “Emno máximo um ano e meio, após a li-citação, a fábrica já estará em ativi-dade”, garante Isaias Raw.

Ele explica que a intenção é pro-duzir 300 mil litros de plasma por ano,gerando imunoglobulina, albumina efator anti-hemofílico 8 e 9, sufici-entes para atender à demanda in-terna. “Será a primeira fábrica deprocessamento de plasma de toda aAmérica do Sul”, diz o professor doInstituto Butantan.

Uma das pioneiras na defesa deuma fábrica nacional de hemoderivados,a médica Beatriz Macdowell Soares,atualmente gerente-geral da área deSangue e Hemoderivados da AgênciaNacional de Vigilância Sanitária(Anvisa), lembra que o Ministério

da Saúde também tem um proje-to pa ra a cons t rução de umaunidade de processamento de plas-ma. Beatriz ressalva: “O desperdíciode plasma é muito grande, mas nãoem quantidade suficiente para se jus-tificar a construção de duas fábricas”.

Segundo Beatriz, o governopaulista não tem autonomia para de-cidir sobre a construção de uma fá-brica. Precisa contar com autoriza-ção do Ministério da Saúde, que aindanão recebeu qualquer pedido oficialdas autoridades paulistas.

Ela conta que o projeto do gover-no já foi encaminhado ao CongressoNacional pelo próprio presidente daRepública, Luiz Inácio Lula da Silva. “Oplasma pertence à nação brasileira”,diz Beatriz. De acordo com o Ministé-rio da Saúde, o Brasil importa hoje 90%dos derivados de sangue usados no aten-dimento de pacientes do Sistema Úni-co de Saúde. A construção da fábricade hemoderivados faz parte do PlanoPlurianual de Saúde, informa. “O pre-sidente entende que a fábrica estádentro do projeto social do país”.

A expectativa é que, com a fábri-ca construída, o Brasil passe a econo-mizar quase metade das despesas comhemoderivados — cerca de US$ 60 mi-lhões por ano. “O projeto prevê ofracionamento de 400 mil a 500 millitros de plasma por ano”, afirma. Como fracionamento do plasma, conse-

guem-se 60 proteínas, metade jáidentificada para uso terapêutico. “Cal-culamos, com essa produção interna,uma redução de custo de 50%”.

Beatriz explica que o sangue paratransplante tem validade de um anoe, para a produção de hemoderivados,de cinco. Após esse período, a sobraé jogada fora. Enquanto a nova fábri-ca não sai do papel, o Ministério daSaúde vem fazendo licitações paraaproveitar o sangue “dispensado”.

A idéia de construção de umafábrica de hemoderivados já fazia par-te da dissertação de mestrado deBeatriz, defendida na Universidadede Brasília. “Estou tendo a oportu-nidade, aqui na Anvisa, de colocarem prática um trabalho de muitosanos”. Na obra “Política Nacional deHemoderivados: desafios e perspec-tivas”, a pesquisadora chamava aatenção para a dependência do paísem conseguir remédios tão importan-tes para a saúde do brasileiro. “Te-mos todas as condições para aten-der muito melhor a população, já queos remédios terão um custo mais bai-xo”, acredita.

A Fábrica Nacional de Fra-cionamento de Plasma, a Hemobrás,deverá ser construída em Pernambuco.A previsão é que atinja seu pleno fun-cionamento em até quatro anos. “Secorrermos muito, se tudo for bem,em três”, espera Beatriz.

Com as galerias do Congresso Na-cional lotadas por representan-

tes de sindicatos de trabalhadoresda área da saúde, entidades médi-cas, conselhos regionais e nacionaisde diversas profissões, secretáriosmunicipais e estaduais de saúde ede diversas instituições ligadas aosetor, como a Fundação OswaldoCruz (Fiocruz), a Assembléia Naci-onal aprovou, em primeiro turno,a proibição da comercialização dosangue e seus derivados por 313votos contra 127 e 37 abstenções.Aos gritos de “salve o sangue dopovo brasileiro”, os representantesdo setor saúde comemoraram aaprovação da emenda do sangue,única a ser votada em separado de-vido à impossibilidade de se che-gar a um acordo em torno de tematão polêmico.

O trecho acima, retirado darevista Tema/Radis, de 1988, retra-ta bem a dura batalha travada na

Constituinte contra o poderosolobby das multinacionais do sanguee seus aliados internos, pela legali-zação do comércio. “Alguns fato-res foram decisivos para que a novaConstituição brasileira definitiva-mente proibisse o comércio de san-gue no país”, analisava o sociólogoHerbert de Souza, o Betinho, emartigo da época.

Para ele, o ponto principal foia descoberta dramática de que osangue no Brasil era um dos modosfundamentais de transmissão do ví-rus da Aids. “Alguns mortos muitoconhecidos provocaram essa desco-berta”, dizia. Betinho falava, entreoutros, de seus próprios irmãos,Henrique de Souza Filho, o Henfil,e Chico Mário, também hemofílicos,que morreram naquele ano.

Apenas no Rio de Janeiro, qua-se metade dos hemofílicos tinham ossintomas da Aids: dos 1.100 cadastra-dos na Casa do Hemofílico, 43% já

demonstravam sintomas do HIV.Betinho fez relato dramático assim querecebeu as primeiras informaçõessobre a transmissão da Aids via san-gue. “Quando deixei de tomar trans-fusões, sabia que 95% dos hemofílicosjá deveriam estar contaminados eque a probabilidade estatística de eutambém estar era altíssima”, contou,em entrevista à Tema.

Mas a crise do sangue conta-minado não era privilégio nacional.Na década de 80, houve escândalosem vários países. Calcula-se que naFrança, entre 1982 e 1985, cerca desete mil pessoas que fizeram trans-fusão de sangue tenham sidoinfectadas pelo vírus HIV. A maioriados países tornou obrigatórios ostestes de sangue — no Brasil, issoocorreu em maio de 1987 – e muitosproibiram a doação remunerada.EUA, Alemanha e Áustria ainda cole-tam sangue mediante remuneraçãoao doador.

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panorama da saúde

Rir é o melhor remédioMinistro visita o Pasquim 21 e dá entrevista

bem-humorada ao semanário carioca

Oministro da Saúde, Humberto Costa, visitou aredação de O Pasquim 21, no Rio de Janeiro,no dia 13 de fevereiro, para dar entrevista àbriosa equipe do semanário carioca mais bem-

humorado do país, sob o comando do cartunista Ziraldo.Descontraído e espirituoso, o ministro surpreendeu osentrevistadores por não deixar pergunta sem resposta. Aconversa, que durou animadas duas horas e meia, teve detudo. De sucateamento de hospitais a saneamento básico,de transplantes a Viagra e Carnaval. Pontual, o ministroadentrou a redação às 11h, mas teve que esperar 40 minu-tos pelo anfitrião, Ziraldo. Um código de etiqueta é sagra-do na redação: a entrevista semanal com autoridades oucelebridades não começa sem a presença de Ziraldo. Anão ser que esteja em outro compromisso. A reportagemda Radis esteve lá e reproduz os melhores momentos doencontro — alguns não-publicados no semanário por falta

de espaço. Participaram da entrevista Cláudio Iusi, IlclemarNunes, Jesus Chediak, Maria Célia, Nei Sroulevich, RickyGoodwin, Zezé Sack e Ziraldo, além deste repórter.

No início da entrevista, uma revelação curiosa. Ziraldoindagou ao ministro sobre eventual ligação com os sanitaristas.

— Eu digo às vezes, brincando com o pessoal quetrabalha comigo, que graças a Deus não sou sanitarista.

Porque o sanitarista tem uma visão muito limitada dapolítica. Eu conheço saúde pública, estudei, aprendina prática, tive uma experiência clínica de trabalharcom pacientes. Como tive também uma experiência demilitância política, acho que você consegue adquiriruma sensibilidade de que as coisas que podem geraralguma visibilidade são fundamentais para legitimar asmudanças estruturais que quer fazer. Sempre me deimuito bem com Arouca, militamos juntos, mas não sousanitarista por formação.

Perguntamos ao ministro sobre o destino das reso-luções da 12a Conferência Nacional de Saúde, que, se-gundo se anunciou na época, seriam todas acatadas peloministério.

— Veja, fui claro no sentido de que as definiçõesgerais, que não fossem administrativas, seriam incor-poradas. O tema da vinculação da receita, por exem-

plo, não foi discutido tecnica-mente. Tem gente que defendeque continue como hoje: como crescimento do PIB, crescetambém o orçamento da Saúde.Tem gente achando que avinculação deva ser semelhanteà dos estados, com receitas cor-rentes. Não é simples e envolveo governo como um todo.

Mais adiante, Ziraldo per-guntou ao ministro se pretenderever as remunerações pagaspelo SUS.

— No ano de 2003, melhora-mos várias coisas, principalmen-te nas diárias hospitalares demédia complexidade. Os trans-plantes e as cirurgias cardíacassão muito bem pagos. Para se teruma idéia, o Hospital AlbertEinstein, de São Paulo, está pe-dindo para ser credenciado. O

problema está nas internações, o paciente que passatrês meses no hospital, e nos exames de média comple-xidade. Neste ano vamos aumentar isso também. Estamostentando criar uma forma pela qual alguns hospitais,em vez de receber pelo que produzem, recebam umorçamento fixo, com um contrato de metas a cumprir.Para conseguir cumpri-las, ele próprio vai ter a preo-

Ao redor de Humberto Costa, da esquerda para a direita, Ziraldo, Zezé Sack,Laércio Portella (assessor de imprensa do ministro), Jesus Chediak, IlclemarNunes, Nei Sroulevich, Cláudio Cordovil, Ricky Goodwin e Cláudio Iusi

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cupação de fiscalizar adequadamenteestes recursos. Outra coisa: qual-quer aumento que formos dar esta-rá condicionado à garantia da qua-lidade da gestão.

O ministro aproveitou para falarda situação da Santa Casa de BeloHorizonte, que ficou sob intervenção.

— Havia ali um débito de R$ 300milhões. Tinha várias gerências e cadagerente ganhava de 7 a 8 mil reais.Tinha uma área de plano de saúde euma de SUS. Nos hospitais, geralmen-te, a área de plano de saúde subsi-dia o SUS. Lá era o contrário: pega-vam dinheiro do SUS e aplicavam naárea de plano de saúde. Agora, a San-ta Casa está sendo arrumada e estásuperavitária.

Em clima agradável, boa parte daentrevista foi dedicada a revelaçõessobre a situação do transplante nopaís. O ministro não poupou críticasà antiga estrutura do Centro de Trans-plantes de Medula Óssea.

— Era três coisas ao mesmotempo: prestador do sistema pú-blico, com o hospital que fazia otransplante; quem definia a políti-ca nacional de transplantes, dizen-do quantos hospitais faziam otransplante de medula e quantose quais laboratórios faziam o exa-me; e era quem controlava a rela-ção de pessoas que aguardavamuma busca internacional. Não ti-nha orçamento, não t inhaplanejament o, a fila era de 600 edizia-se que era de 2 mil e tantos,era uma caixa preta. Quando tive-mos acesso à lista, vimos que uns500 tinham morrido, outro tantoera de estrangeiros que pediam in-formações aqui...

O ministro Humberto Costa mos-trou-se confiante no sucesso de seuprojeto que pretende incluir a saú-de bucal na atenção básica.

— A promoção da saúde bucalno Brasil, com tratamento dentário,sempre foi da classe média pra cima.Como diz o presidente, a boca sem-pre foi esquecida. Queremos forta-lecer a presença dos profissionais deodontologia na equipe da atençãobásica. Já tivemos este ano um cres-cimento de 45%. Apenas 50% das ci-dades brasileiras que têm água tra-tada usam a fluoretação. Isso das quetêm tratamento de água. Nossa metaé fluoretar 100% das cidades comágua tratada no Brasil. Isso é bara-tíssimo: 1 real por habitante/ano! Eo impacto disso em termos de saúdebucal é gigantesco.

Afirmando que odontologiapara pobre “sempre foi extração e

obturação”, o ministro pretendeoferecer na atenção básica servi-ços de tratamento de canal, cor-reção dentária e cuidados com oesmalte dentário. “A dentadura noBrasil sempre foi um negócio depolítico em época de eleições”,disse. “Temos que tornar isso umacoisa de cidadania. Esse programavai ter um impacto interessante nasaúde pública.”

Nei Sroulevich perguntou aoministro se ele se sentia “comoum marido enganado” com rela-ção à CPMF.

— Num primeiro momento elafoi criada para a Saúde e terminousendo desviada para outras coisas,mas ela não tem nenhuma aplicaçãofora da área social. Por que isso émelhor do que se fosse só para aSaúde? Várias contribuições diferen-tes vão para a Saúde, para a Previ-dência e para a Assistência: Cofins,CPMF, a contribuição sobre o lucrolíquido... Uma é sobre o lucro, outraé sobre a movimentação bancária eoutra é sobre a cadeia produtiva. Setivéssemos uma só, como uma fonteúnica, numa alteração conjuntural daeconomia, ela poderia ter um com-portamento ruim, desfinanciandoaquele setor. Sendo três, se uma nãotem o mesmo poder de arrecadaçãoas outras podem compensar. Entãoisso não é ruim.

Perguntamos ao ministro se elenão via um conflito entre a criaçãoda Farmácia Popular e o princípioda integralidade do SUS, que vê oremédio como parte da assistênciaintegral.

— A Farmácia Popular tem comopúblico aquele que não usa muito oSUS. Nós queremos atingir um segmen-to de classe média baixa que já usa afarmácia privada para ter acesso aosmedicamentos. Queremos garantirque essas pessoas tenham remédiosa um preço mais em conta. O que que-remos é ampliar a distribuição do SUS.Do nosso ponto de vista, a FarmáciaPopular não se contrapõe à nossa po-lítica de fortalecer a assistência far-macêutica no SUS. (C.C.)

O Pasquim 21, nº 100, 21/2/2004site www.opasquim21.com.br

Nota da Redação: Ao finalizarmosesta edição, soubemos da mortede Nei Sroulevich, que participouda entrevista. Jornalista e pro-dutor cinematográfico, Nei mor-reu em 14 de março, de infarto.

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SERVIÇOS

EVENTOS

5º CONGRESSO BRASILEIRO DEB IOÉTICA

Oevento, que tem o apoio da So-ciedade Brasileira de Bioética,

abordará cinco grandes temas:Bioética e Cidadania, Ética em pes-quisa envolvendo seres humanos, Con-tribuição das religiões à bioética,Bioética e ética profissional e Ética ebiosfera: desafios rumo ao futuro.Data 13 a 15 de maioLocal Mar Hotel, Recife / PEMais informaçõesTel. (81) 3463-0871 / fax (81) 3463-0853e-mail [email protected] www.cro-pe.org.br/bioetica

1º CONGRESSO SOBRE A SAÚDE

MENTAL NO TRABALHO

Ocongresso vem iniciar no Brasilum debate jurídico multi-

disciplinar sobre a saúde mental notrabalho, e tem como objetivo espe-cífico o estudo e o aprofundamentodo conhecimento na área de quali-dade de vida e saúde do trabalhador,buscando promover, proteger e valo-rizar o ambiente de trabalho saudá-vel e a saúde mental do trabalhador.O evento é resultado de parceria doMinistério Público do Trabalho e daProcuradoria Regional do trabalho da18ª Região/Goiás com o Fórum de Saú-de e Segurança no Trabalho de Goiáse o Instituto Goiano de Direito doTrabalho.Data 3 a 5 de maioLocal Castro’s Park Hotel, Goiânia / GOMais informaçõessite www.prt18.mpt.gov.bre-mails [email protected]

[email protected]

6º CONGRESSO PAULISTA DEDIABETES E METABOLISMO

Dirigido aos grupos de pesquisabásica e clínica e aos clínicos e

especialistas interessados em discu-tir temas relacionados à doença, oevento apresenta como tema centrala “Heterogeneidade do DiabetesMelito: da pesquisa para a clínica”.Data 29 de abril a 2 de maioLocal Campos do Jordão Arts & Con-vention Center, Campos do Jordão / SP

Mais informaçõessite www.eventus.com.br/diabetes

NA INTERNET

PORTAL DE MEDICINA SOCIAL

Desenvolvido pelo Departamentode Família e Medicina Social da

Albert Einstein College of Medicine(EUA), o site pretende promover osprincípios e as práticas da medici-na social, colocando os visitantesem contato com estudos e traba-lhos de profissionais especializados.O portal pretende promover maiorinteração entre saúde e sociedade,e pode ser acessado pelo endereçowww.socialmedicine.org

RELAÇÃO DE MEDICAMENTOS

PATENTEADOS

Aorganização internacional Médi-cos Sem Fronteiras lançou recen-

temente o livro Patentes de medica-mentos em evidência. Compartilhan-do experiência prática sobre patentesde produtos farmacêuticos, resulta-do de ampla pesquisa sobre quais sãoos medicamentos e onde estão pa-tenteados, incluindo o prazo de va-lidade de certas patentes. No livroo leitor encontrará esclarecimentossobre este polêmico sistema de pro-teção de produtos e suas conse-qüências para a saúde pública. Ver-são em PDF para download está nosite www.msf.org.br

PUBLICAÇÕES

LANÇAMENTOS — EDITORA FIOCRUZ

A Arte de Enganar a Natureza:contracepção, aborto e infanticídiono início do século XX, de FabíolaRohden, faz parte da Cole-ção História e Saúde, publi-cado pela Editora Fiocruz.O livro revela os inúmerose diversos embates morais,políticos, médicos e jurí-dicos em torno das idéi-as, representações e práticas de con-trole da natalidade no Brasil daprimeira metade do século 20. Asso-ciando antropologia e história, con-ceitos e narrativas, múltiplas fontese análise de casos, a autora oferecedecisiva contribuição, que se esten-

de a vários campos disciplinares etemáticos. Fabíola aborda a história dasexualidade e da reprodução no Brasile das relações de gênero e políticaspúblicas voltadas para as mulheres.

Flebotomíneos do Brasil, organizadopor Elizabeth F. Rangel e Ralph Lainson,é resultado de um tra-balho conjunto envol-vendo entomologistas eparasitologistas reconhe-cidos na área da saúde. Olivro apresenta riqueza deinformações sobre a bio-logia e a ecologia dos flebotomíneos,abordando os inter-relacionamentosentre fatores do ambiente, animaishospedeiros, parasitos e o homem.Com visão concisa e atualizada sobretema tão específico, aponta paranovos caminhos no âmbito da pesqui-sa. É digno de nota o destaque dadoaos flebotomíneos não apenas comotransmissores de doenças humanas,mas, também, de tripanossomas,hemogregarinas e parasitas maláricosde outros animais.Mais informaçõesEditora FiocruzAv. Brasil, 4.036, Manguinhos, Rio deJaneiro / RJ — CEP: 21040-361Tel. (21) 3882-9039Site www.fiocruz.br ou www2.fiocruz.br/editora_fiocruz/index.htm

LANÇAMENTO — UNESCO

O Relatório de Desenvolvimento Ju-venil 2003, lançamento da Unescono Brasil, é fruto de ampla pesquisacoordenada pelo chefe do escritó-rio da Unesco em Pernambuco, Ju-lio Jacobo Waiselfisz, com um pano-rama da situação da juventude nos26 estados e no DF, utilizando as ba-ses de dados da Pesquisa Nacionalpor Amostra de Domicílios (Pnad), doIBGE, do Subsistema de Informaçõesde Mortalidade, do Ministério da Saú-de, e do Sistema Nacional de Avalia-ção do Ensino Básico, do Ministérioda Educação. O relatório apresentao Índice de Desenvolvimento Juvenil(IDJ), criado para medir as condiçõesde vida da juventude brasileira: San-ta Catarina aparece em 1º lugar, comIDJ de 0,673, e Alagoas em último,com 0,337.Mais informações pelo sitewww.unesco.org.br/publica

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PÓS-TUDO

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Henrique Cunha Jr. *

Ahistória da formação social brasi-leira é a história do escravismo

criminoso que produziu ao longo dequase 300 anos a imigração maciça deafricanos. O conhecimento produti-vo do Brasil Colônia é fundamental-mente africano nas áreas de minera-ção, produção de ferro, agricultura,produção de açúcar, manufaturas, te-celagem, construção. O mesmo nocampo da política, se considerarmosque os quilombos foram a forma maissistemática da produção de contes-tação do Estado escravista. Não pa-radoxalmente, as artes e a cultura sefundam também sobre as mesmas he-ranças africanas.

Na produção da pesquisa científi-ca, iniciada nos fins do século 19 e iní-cio do 20, também encontramos a par-ticipação ativa de afrodescendentes.Há casos extremos como o do enge-nheiro Teodoro Sampaio que, filho deescrava, depois de formado na Esco-la Politécnica do Rio de Janeiro vol-tou à Bahia para comprar a liberdadeda mãe. Tornou-se geógrafo, sanita-rista, pesquisador, foi fundador daEscola Politécnica da USP.

Mesmo em face de inúmeras evi-dências históricas, ainda é neces-sária a discussão sobre a pesquisaque trata da população negra e so-bre a formação de pesquisadoresnegros. Os argumentos da histórianão são suficientes para a consci-ência de que existe um erro se per-petrando na composição do corpusde pesquisadores brasileiros, nastemáticas eleitas pela ciência bra-sileira e sobretudo nas políticas ci-entíficas e de formação de pesqui-sadores no país. Surpreendente nãoé apenas a ausência de políticasnesta área, como também a falta depreocupações democráticas comsua implantação. Num país que for-ma 6 mil doutores por ano, menosde 1% é de negros e menos de 1%das teses trata de temas de inte-resse dos afrodescendentes.

“Ninguém discrimina ninguém, arazão disso é que o negro é pobre”,dizem. Errado, a razão é que os mé-todos de discriminação estão tãoinstitucionalizados que não incomo-dam as consciências críticas. Exami-nando o histórico de cerca de doismil mestres e doutores negros, a fai-xa etária das candidaturas e os regi-mes de trabalho estão fora dos perfisprivilegiados pelos programas de pós-graduação. A média dos pesquisado-res negros ingressa no mestrado aos35 anos e sustenta a família. Vêm deensino universitário noturno, que nãodá oportunidades para a iniciaçãocientífica. As disciplinas de base dostemas não existem na graduação. Afonte de formação tem sido o pró-prio movimento negro, e os progra-mas rejeitam pesquisadores militan-tes dos movimentos negros. Bancasde entrevista não conseguem supe-rar a relação patroa-empregada dasrelações sociais cotidianas, tornan-do as entrevistas tensas e as pesqui-sadoras negras antipáticas. Para osque entram não há orientadores queconheçam os temas. A universidadebrasileira, porém, não confessa suaignorância nos temas de interesse dosafrodescendentes.

As populações negras vivem emespaços geográficos que não rece-bem políticas públicas. São áreas so-bre as quais o conhecimento cientí-fico é praticamente inexistente.Forma-se um círculo vicioso: nada sesabe e nada se faz de coerente por-que nada se sabe. As políticasuniversalistas do Estado se mostra-ram inócuas. Pesquisa do IPEA con-cluiu o que os movimentos negrosvinham dizendo há quase 30 anos: hánecessidade de políticas específicas.No entanto, não há pesquisa, não hápolítica pública, não há solução ob-jetiva dos problemas.

Temos uma mentalidade nacionalavessa à existência de negros ou, pelomenos, insensível a qualquer manifes-tação de afirmação da existência deidentidades negras. A aversão não écontra sua existência material, mas

contra sua existência política. Comono período do escravismo criminoso,persiste a ótica dominante do medobranco da onda negra. Pulamos car-naval juntos e jogamos futebol, masnão estudamos juntos e, muito me-nos, pesquisamos juntos.

Desde que organizamos a Asso-ciação de Pesquisadores Negros, em2000, para acelerar o processo depesquisa das temáticas de interessedos afrodescendentes, tenho ouvi-do: pesquisa não tem cor; astemáticas abordadas não são sufici-entemente universais. A pesquisa nãotem cor, mas as políticas científicas,que nada têm a ver com o cerne dofazer científico, essas têm os atribu-tos de cor, de grupo social, de gru-po histórico, de marginalização eprodução das desigualdades sociais,econômicas e políticas.

A formação dos pesquisadoresnegros passa por todos esses obs-táculos ideológicos, pol ít icos,preconceituosos, eurocêntricos, dedominação e até de inocênciasúteis. Problema que a sociedadecientífica (e a esfera governamen-tal, que a reflete) se nega a reco-nhecer como problema.

* Henrique Cunha Jr. é professor-titular

do Departamento de Engenharia Elétri-

ca do Programa de Pós-Graduação em

Educação da Universidade Federal do

Ceará; a íntegra deste artigo está na

revista ComCiência www.comciencia.br/

reportagens/negros/17.shtml

Formação de pesquisadores negros,uma necessidade democrática

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