filhos de santo flihos de comte

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1 publicado como “Filhos-de-Santo e Filhos de Comte: Crítica, Dominação e Ressignificação da Religião Afro-Brasileira pela Ciência Social”, em Mauro Passos (org.), Diálogos Cruzados: Religião, História e Construção Social, Belo Horizonte, Argumentum, 2010, 111-131, 304 pp.. ISBN 978-85-98885-91-9. Filhos-de-Santo e Filhos de Comte: Crítica, Dominação e Ressignificação da Religião Afro-Brasileira pela Ciência Social Roberto MOTTA, Ph.D. Univ. Estadual da Paraíba (Campina Grande) Sumário A Sociologia, desde sua fundação, tem tido a crítica da religião como premissa de toda crítica. Correspondendo, em termos de Augusto Comte, ao “estado positivo” que sucede ao “estado teológico”, a ciência social vem substituir a religião, em perda acelerada de pl ausibilidade como decorrência do Iluminismo, da Revolução Francesa e de seus prolongamentos. Mas esta substituição constitui um processo histórico de duração imprevisível. Compete então à ciência social administrar essa “massa falida”, antes do seu total desaparecimento. Neste artigo, que não trata apenas de teoria social, mas também de uma questão concreta de etnologia da religião, examina-se, como exemplo dessa tendência geral, alguns aspectos do relacionamento entre a ciência social e a religião afro-brasileira, compreendendo a formação de uma “santa aliança” entre cientistas e religiosos, bem como a imposição de um “protetorado teórico” dos primeiros sobre os segundos. Modernidade e Religião Vou entrar abruptamente no assunto, in medias res, como antigamente se dizia, enunciando minha tese central. 1 A Sociologia veio para substituir a religião. 2 Esta intuição inicial pode exprimir-se em diversos vocabulários, mas corresponde, de acordo com Augusto Comte, à passagem do “estado teológico” ao “estado positivo”. Gravemos bem este ponto de partida. Como o personagem de Nietzsche, a Sociologia anuncia “a morte de Deus”. 3 Surpreendemos também aí, in statu nascendi, a Sociologia da Religião, e não simplesmente a Sociologia. 4 Por menos cursos que sejam oferecidos, por menor que seja a importância atribuída a essa disciplina nos programas pós-graduados de nosso País, a Sociologia já nasce como Sociologia da Religião, mesmo porque, como assinalava Marx A crítica da religião é a premissa de toda crítica(Marx 1959: 262). 5 A religião passa a ser entendida como uma espécie de emanação ideológica e mistificada da sociedade, embora nem todos os grandes sociólogos o afirmem com a força e a 1 A primeira seção deste artigo incorpora, com modificações, parte das notas do curso de Sociologia da Religião, que ministrei no Programa Pós-Graduado de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco, no 2º semestre de 2002. Desejo aqui agradecer à médica e antropóloga, a duplamente doutora Maria Odete Vasconcelos, precocemente falecida em agosto de 2009, pela honra e pelo prazer que me concedeu, assistindo minhas aulas e enriquecendo-as com suas sugestões e seu apoio de colega e de amiga. 2 Por “Sociologia” entendemos, neste artigo, não apenas a disciplina da Sociologia em sentido estrito, porém, de maneira mais ampla, a ciência social, incluindo Antropologia (muitas vezes sobretudo Antropologia), História e campos afins. 3 A referência se dirige a Assim Falou Zaratustra, no original alemão Also Sprach Zarathustra (1ª. edição 1883), desde então traduzido em diversos idiomas, em diversas traduções e edições). 4 A Sociologia da Religião, no contexto deste artigo, abrange também a Antropologia da Religião. 5 Ao que ele acrescenta “O ponto de partida da crítica da religião é o seguinte: o homem é que faz a religião e não a religião que faz o homem. Em outras palavras, a religião é a autoconsciência e a autopercepção do homem, que ou ainda não se achou a si mesmo ou se perdeu outra vez a si mesmo” (Marx 1959: 262).

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Page 1: Filhos de Santo Flihos de Comte

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publicado como “Filhos-de-Santo e Filhos de Comte: Crítica, Dominação e Ressignificação da Religião Afro-Brasileira pela Ciência Social”,

em Mauro Passos (org.), Diálogos Cruzados: Religião, História e Construção Social, Belo Horizonte, Argumentum, 2010, 111-131, 304 pp..

ISBN 978-85-98885-91-9.

Filhos-de-Santo e Filhos de Comte: Crítica, Dominação e Ressignificação da

Religião Afro-Brasileira pela Ciência Social

Roberto MOTTA, Ph.D.

Univ. Estadual da Paraíba (Campina Grande)

Sumário

A Sociologia, desde sua fundação, tem tido a crítica da religião como premissa de toda crítica.

Correspondendo, em termos de Augusto Comte, ao “estado positivo” que sucede ao “estado

teológico”, a ciência social vem substituir a religião, em perda acelerada de plausibilidade como

decorrência do Iluminismo, da Revolução Francesa e de seus prolongamentos. Mas esta

substituição constitui um processo histórico de duração imprevisível. Compete então à ciência

social administrar essa “massa falida”, antes do seu total desaparecimento. Neste artigo, que não

trata apenas de teoria social, mas também de uma questão concreta de etnologia da religião,

examina-se, como exemplo dessa tendência geral, alguns aspectos do relacionamento entre a

ciência social e a religião afro-brasileira, compreendendo a formação de uma “santa aliança”

entre cientistas e religiosos, bem como a imposição de um “protetorado teórico” dos primeiros

sobre os segundos.

Modernidade e Religião

Vou entrar abruptamente no assunto, in medias res, como antigamente se dizia,

enunciando minha tese central.1 A Sociologia veio para substituir a religião.

2 Esta intuição

inicial pode exprimir-se em diversos vocabulários, mas corresponde, de acordo com Augusto

Comte, à passagem do “estado teológico” ao “estado positivo”. Gravemos bem este ponto de

partida. Como o personagem de Nietzsche, a Sociologia anuncia “a morte de Deus”.3

Surpreendemos também aí, in statu nascendi, a Sociologia da Religião, e não simplesmente a

Sociologia.4 Por menos cursos que sejam oferecidos, por menor que seja a importância

atribuída a essa disciplina nos programas pós-graduados de nosso País, a Sociologia já nasce

como Sociologia da Religião, mesmo porque, como assinalava Marx “A crítica da religião é

a premissa de toda crítica” (Marx 1959: 262). 5

A religião passa a ser entendida como uma espécie de emanação ideológica e

mistificada da sociedade, embora nem todos os grandes sociólogos o afirmem com a força e a

1A primeira seção deste artigo incorpora, com modificações, parte das notas do curso de Sociologia da Religião,

que ministrei no Programa Pós-Graduado de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco, no 2º semestre

de 2002. Desejo aqui agradecer à médica e antropóloga, a duplamente doutora Maria Odete Vasconcelos,

precocemente falecida em agosto de 2009, pela honra e pelo prazer que me concedeu, assistindo minhas aulas e

enriquecendo-as com suas sugestões e seu apoio de colega e de amiga. 2 Por “Sociologia” entendemos, neste artigo, não apenas a disciplina da Sociologia em sentido estrito, porém, de

maneira mais ampla, a ciência social, incluindo Antropologia (muitas vezes sobretudo Antropologia), História e

campos afins. 3 A referência se dirige a Assim Falou Zaratustra, no original alemão Also Sprach Zarathustra (1ª. edição 1883),

desde então traduzido em diversos idiomas, em diversas traduções e edições). 4 A Sociologia da Religião, no contexto deste artigo, abrange também a Antropologia da Religião.

5 Ao que ele acrescenta “O ponto de partida da crítica da religião é o seguinte: o homem é que faz a religião e

não a religião que faz o homem. Em outras palavras, a religião é a autoconsciência e a autopercepção do

homem, que ou ainda não se achou a si mesmo ou se perdeu outra vez a si mesmo” (Marx 1959: 262).

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2

clareza de Marx em Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: “A luta contra

a religião é portanto a luta contra o outro mundo, do qual a religião é a emanação

espiritual” (Marx 1959:263). Ou seja, a religião, em essência, é vista como um

Doppelgänger, uma duplicação fantasmagórica da sociedade real. Ou ainda (tudo isso se

combina e vem quase a dar no mesmo) como uma espécie de Sociologia tosca e primitiva, a

ser, logo que possível, substituída pela Sociologia positiva e científica. É muito importante

que prestemos atenção a essa intuição inicial, que nos abrirá portas para muita coisa, que

talvez nós não entendêssemos sem esse principio de base. Muita coisa que se diz hoje em dia,

não só na ciência social, mas também na Teologia, parte dessa intuição fundadora, que marca

a obra de Comte, sem falar evidentemente em Marx ou Durkheim.6 Mesmo Max Weber pode

ser interpretado, a seu modo, e mesmo muito a seu modo, como mais um comentador da

“morte de Deus”, de maneira especial pela ênfase que atribui à ascensão da racionalidade,

sobretudo ao que denomina “a ação social, racional referente a fins, [...] para alcançar com

sucesso objetivos próprios, ponderados e perseguidos racionalmente” (Weber 1994:35,

cotejado com Weber 1978:25),7 fins portanto diferentes dos da “ação racional referente a

valores” e diferentes precisamente porque a racionalidade pura, a “ação racional referente a

fins” abstrai, seguindo a lógica profunda da Modernidade, de toda referência a Deus ou ao

mundo sobrenatural ou “encantado” da religião8, ou, em certos casos, da arte ou de outros

valores, buscados de modo independente e transcendente à utilidade material, ao lucro

financeiro ou resultados semelhantes.

6 Marx e Max Weber são, neste artigo, referenciados à proporção em que citados. Sobre nosso assunto o trabalho

fundamental de Durkheim é Les Formes Élémentaires de la Vie Religieuse (1960, or. 1912). Quanto a Auguste

Comte, mencionemos, por desencargo de consciência (embora neste trabalho ele seja utilizado através de

comentadores), que a primeira edição do Cours de Philosophie Positive data de 1830. 7 Apesar de utilizá-la neste artigo, é, a meu ver, precária a diferença entre “a ação racional referente a fins” e

“ação racional referente a valores: pela crença consciente no valor --ético, estético, religioso ou qualquer que

seja sua interpretação absoluta e inerente a determinado comportamento como tal, independentemente do

resultado” (Weber:ibid.). Se Weber quer dizer, como se pode subentender, que a ação racional referente a fins é

a ação que visa essencialmente, ou de modo “ideal típico”, a reprodução e a acumulação do capital, de maneira

utilitária e secularizada, enquanto a ação racional referente a valores teria sobretudo objetivos religiosos, éticos,

estéticos ou assemelhados, a distinção pode ser aceita como tipologia de fenômenos históricos e é importante

para o que se discute neste artigo. Entretanto, não há nem pode haver ação que não busque algum resultado,

tangível ou intangível, nem há tampouco ação que, em última análise não seja motivada por alguma espécie de

paixão (em sentido muito amplo), como a paixão do sucesso, da ambição, do poder, da acumulação ou da cobiça.

Talvez tenha faltado a Weber uma leitura atenta dos capítulos IV a X do livro II das Confissões de Santo

Agostinho, que têm como assunto as motivações mais recônditas das ações humanas. “Por que isto? Por que foi

assim? [...] Nem o próprio Catilina [encarado como protótipo do mal e tão demonizado quanto Adolfo Hitler em

nossos dias] amou seus crimes, mas alguma outra coisa, por causa da qual os cometeu” (livro II, capítulo V,

perto do fim). Do mesmo modo ninguém adota um comportamento racional salvo se houver alguma outra coisa,

por amor da qual o adota. Não existe portanto uma “racionalidade autônoma”, mas pode existir, e efetivamente

existe, uma economia autônoma e guiada por suas próprias regras tendentes à ampliação e à acumulação do

capital, sem atenção a valores éticos ou religiosos. 8 Notemos entretanto que Max Weber nunca fez (do que consta a este comentador) profissão expressa de

ateísmo.

Page 3: Filhos de Santo Flihos de Comte

3

Vou agora fazer uma citação, talvez um pouquinho longa, de um dos autores que mais

me influenciaram no tratamento deste assunto, que é Nicolaus Sombart, 9

que escreve o

seguinte:

“A Sociologia é possível, porque Deus morreu. De fato, torna-se necessária

porque Deus morreu. [...] O sentido mais profundo da Revolução é o abandono

de Deus pelos homens. [...] A história da salvação é secularizada: é agora

História. O homem se torna auto-suficiente e assume a regulação do seu próprio

destino. O Plano toma o lugar da Providência. [...] A dominação da Teologia

acabou, chegou o tempo da dominação da Sociologia. E não precisamos dizer

que a dominação da Sociologia é, na prática, equivalente à dominação dos

sociólogos” (Sombart, N. 1955:100-101).10

Eu não posso deixar de admirar o texto que acabei de citar, que muito me tem

influenciado desde que o li pela primeira vez na década de 60. E sobre a vocação do

sociólogo, retenhamos também esta beleza de passagem:

“Como é que o filósofo –isto é, o sociólogo-- pode saber que o passado, de um

modo e não de outro, costura o futuro através do buraco da agulha do presente?

Muito simples, ele sabe porque ele mesmo é esse buraco de agulha. Ele é o ponto

mais alto do presente,11

a culminância absoluta da História,12

„aquele que está à

altura do século‟.” (Sombart, N. 1955:90).

Embora não o cite, Nicolaus Sombart defende pontos de vista muito próximos aos de

Karl Löwith, cujo livro, Meaning in History, data de 1949, em versão inglesa, e na versão

alemã, Weltgeschichte und Heilsgeschehen, de 1953.13

Este trabalho de Löwith é considerado

como uma das obras fundamentais sobre o processo de secularização ou de “mundanização”

da religião. No capítulo muito significativamente intitulado “Progresso contra Providência”,

Löwith, a propósito de Comte, exprime-se do seguinte modo: “Comte transporta a teologia

para a sociologia, a teocracia para a sociocracia e o culto de Deus para a religião da

9 Nicolaus Sombart não deve ser confundido com o pai, Werner Sombart, um dos maiores sociólogos alemães da

primeira metade do século XX, um tanto ofuscado por seu colega e concorrente, Max Weber, nos estudos sobre a

origem do Capitalismo. Max Weber nasceu em 1864 e morreu em 1920, 13 anos antes da tomada do poder, na

Alemanha, por Adolf Hitler, enquanto Werner Sombart nasceu em 1863 e morreu em 1941, tendo tido, por

conseguinte, tempo e ocasião para tomar atitudes que viriam a ser consideradas, após a derrota da Alemanha em

1945, como politicamente incorretas, o que veio a também afetar, justa ou injustamente, sua reputação científica.

Werner Sombart escreveu muito sobre o assunto. Destacam-se aqui Sombart, W. 1913 (traduzido para o francês

em 1928, com reimpressões recentes) e Sombart, W. 1927 (traduzido para o espanhol em 1946 e várias vezes

reimpresso). 10

A tradução dos originais das citações de trabalhos estrangeiros foi feita pelo próprio autor deste artigo. 11

Quer Nicolaus Sombart queira ou não, também desta vez, citar seu predecessor, ele parece em tais passagens

influenciado por um texto de Karl Jaspers, que em primeira versão remonta a 1920, e que é o elogio fúnebre de

Max Weber. Transcrevo aqui uma passagem: “Para muitos de nós Max Weber é acima de tudo o filósofo. […]

E o filósofo é mais do que aquele que simplesmente conhece. […] Ele é o representante do tempo. [...] Ele é o

coração vivo do tempo, mas é ainda mais do que isso. Ele permite que o tempo se exprima, é o espelho em que

o tempo se reflete e reconhece e é portanto o filósofo que confere ao tempo o rumo que vai seguir” (Jaspers,

1988 [orig. 1920]:32-36; tradução de Roberto Motta) 12

“Die absolute Spitze der Geschichte”, como diz com toda força o original alemão. 13

Aqui citado através da versão francesa, Histoire du Salut, de 2002. Onde as bibliotecas deixam a desejar,

como é o caso de muitas universidades brasileiras, torna-se necessário citar e mencionar de acordo com o que

pode ser encontrado, se ao menos puder ser encontrado.

Page 4: Filhos de Santo Flihos de Comte

4

humanidade. [...] Entretanto, a religião da humanidade se utilizaria, no princípio, das

igrejas cristãs, na medida em que estas fossem sendo progressivamente liberadas” (Löwith

2002:121).14

Quer isto então dizer que nós, sociólogos, antropólogos e outros cientistas e

pensadores sociais, com relação à religião somos como se fôssemos os administradores de

uma massa falida. A religião evidentemente ainda não desapareceu, mas enquanto isto não

acontece, compete a nós governá-la. E esta administração, nós a faremos o mais possível no

sentido dos nossos interesses teóricos e práticos. Dessa intervenção, dessa, pode-se chamar,

tomada de posse da religião pela ciência social, envolvendo o estabelecimento de uma espécie

de protetorado teórico da segunda sobre a primeira, poderemos encontrar diversos exemplos

com referência a diversas religiões em diversos países. Mas ficaremos aqui limitados a um

caso bem determinado, que é o do Candomblé,15

para o qual os cientistas sociais têm, entre

outras coisas, elaborado toda uma teologia altamente racionalizada, o que constitui um

excelente exemplo da dominação, ou tentativa de dominação, da religião pela Sociologia, pela

Antropologia ou por disciplinas análogas.16

A Modernidade Brasileira e a Desetnização do Candomblé

Para melhor entendimento da questão, quero destacar algumas especificidades

brasileiras, entre as quais, parecendo desafiar toda forma de evolucionismo, o crescimento

simultâneo, por um lado da Modernidade, com seus aspectos não apenas sociais e

econômicos, como também culturais e ideológicos e, por outro, de formas de religião, nas

quais muitos, e não sem razão, querem descobrir exatamente o contrário das “religiões do

homem abstrato” e da chamada “ética protestante”,17

com seu horror por tudo que é

“mágico”, concreto, imediato e, por conseguinte, contrário à lógica da racionalidade. Refiro-

14

Parece aí previsto o programa tanto dos afro-brasilianistas que assumem a administração do Candomblé, tanto

quanto o de muitos dos teóricos da Teologia da Liberação, que têm tentado ressignificar a teologia católica em

termos de “mundanização”. 15

O termo “Candomblé” é aqui empregado, em sentido amplo, para designar o conjunto das religiões afro-

brasileiras. 16

Já, em parte, tratei do assunto em meu artigo “As Ciências Sociais e a Administração das Religiões Afro-

Brasileiras” (Motta 2001), no qual falo sobre a tomada de posse (ou tentativa) dessa religião, por sociólogos,

antropólogos e assemelhados. Deste artigo há versões publicadas na Europa (Motta 1997, 1999), anteriores à

tradução brasileira. 17

O conceito de “religiões do homem abstrato”, tal como aqui mencionado, procede diretamente de Marx em O

Capital: “O mundo religioso é simplesmente o reflexo do mundo real. E para uma sociedade baseada na

produção de mercadorias, na qual os produtores em geral estabelecem relações sociais uns com os outros

tratando seus produtos como mercadorias e valores, através do que reduzem seu trabalho privado individual

ao padrão do trabalho humano homogêneo --para uma tal sociedade, o Cristianismo, com seu culto do

homem abstrato, especialmente em seus desenvolvimentos burgueses, Protestantismo, Deísmo, etc., é a forma

mais adequada de religião” (Marx 1967: 79). O conceito de “ética protestante”, em ligação com o espírito do

capitalismo, já se encontra, ao menos virtualmente, na citação de Marx que acaba de ser feita. Max Weber, como

se sabe, expande muito este conceito, mas numa direção teórica e epistemológica que representa o exato oposto

da concepção marxista (Weber 1996).

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me à expansão das religiões afro-brasileiras, e isto, ao contrário do que teria desejado certo

simplismo evolucionista, não nas regiões mais atrasadas do País, mas, muito pelo contrário,

nas grandes cidades das regiões mais modernizadas, Rio de Janeiro, São Paulo e até mesmo

Porto Alegre, situado no extremo sul do País largamente povoado por descendentes de

alemães e italianos.

Um primeiro paradoxo ligado a essas religiões encontra-se, portanto, em sua

“desetnização”.18

Esses cultos, no princípio associados a certas populações de origem

africana, recrutam atualmente seus adeptos por toda a sociedade brasileira, sem nenhuma

preocupação de exclusivismo. Mas nem por isso repudiam suas tradições originárias, as quais,

ainda que sujeitas a todo um trabalho de reinterpretação e de codificação por parte de sábios e

teólogos,19

concebem-se como garantia da qualidade dos ritos e das crenças oferecidas a

pessoas de todas as origens.

Ora, as religiões afro-brasileiras implicam todo um sistema de manipulação mágica do

mundo. Os fiéis estabelecem relações personalizadas de dependência com as divindades, às

quais oferecem sacrifícios de animais. Fazem-lhes também o dom de seus próprios corpos,

para que os deuses os habitem e através deles se manifestem, sobretudo pela dança e pelo

transe, no qual a identidade do deus se confunde com a do homem. Nada mais afastado dessas

religiões do que preocupações ascéticas e éticas, no sentido que tais termos possuem, por

exemplo, na obra de Max Weber.

18

Pelo menos no que se refere às religiões afro-brasileiras, o autor do presente artigo crê ter sido o primeiro a

sugerir o conceito de “desetnização” em Motta 1994b, do qual Motta 2003 representa tradução em língua

portuguesa. Uma vez “desetnizadas”, passam essas religiões a ser oferecidas ao “mercado” abstrato e anônimo

dos bens e serviços mágico-religiosos. Mas, apesar dessa reivindicação de possível prioridade do presente autor

no que se refere às religiões afro-brasileiras, este mesmo tema (sob várias denominações) é um lugar-comum no

estudo da história e da sociologia das religiões, tendo ocupado a atenção de muitos autores. O exemplo mais

famoso é o da prodigiosa revolução, ligada especialmente à obra de São Paulo (principalmente nas cartas aos

Romanos e aos Gálatas), representada pela “desetnização” do Cristianismo com relação ao Judaísmo (que aliás

esteve longe de ser aceita unanimemente pela liderança da Igreja primitiva) e que permitiu a difusão da nova fé

por todo o “ecúmeno” (isto é, por todo o mundo greco-romano) e além. A seguinte passagem é altamente

significativa deste processo: “Todos sois filhos de Deus segundo a fé em Jesus Cristo. Porque todos quantos

fostes batizados em Cristo já vos revestistes de Cristo. Nisto não há Judeu nem Grego; não há escravo nem livre;

não há homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus. E, se sois de Cristo, então sois

descendência de Abraão e herdeiros conforme a promessa” (Gálatas 3:26-29). Notemos também que, nem por se

ter separado do Judaísmo, representado pela circuncisão e pela observância dos preceitos da Lei de Moisés, a

Igreja repudiou as tradições originárias da antiga religião, as quais, ainda que sujeitas a todo um trabalho de

reinterpretação, concebem-se, junto com as Escrituras (o “Velho Testamento”), igualmente submetidas a intenso

processo de ressignificação, como garantia da nova crença, oferecida a pessoas de todas as origens. 19

Aí se encontra o processo de “aculturação” ou “ocidentalização” das religiões africanas no Brasil (ou nas

Américas), encarado com grande pessimismo por Roger Bastide, que dizia, em termos quase literais, que o pior

acontecerá quando o Negro tiver terminado de internalizar os valores religiosos dos Brancos (Bastide 1969:81).

Sobre a evolução do Candomblé, nosso autor, ao menos em algumas passagens, fala igualmente em tom

sombrio, considerando-a equivalente a uma “degradação” (Bastide 2001:241) e referindo-se com desprezo aos

“candomblés ditos comerciais ou turísticos, chefiados por esses novos empresários teatrais, esses bailarinos, que

repensam o Candomblé através da mentalidade dos brancos e o reinterpretam em termos ocidentais” (ibid.: 143).

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6

Os fiéis não dão importância a princípios abstratos nem a concepções teóricas do bem

e do mal, que para eles são categorias que, por assim dizer, negociam-se de acordo com as

circunstâncias.20

Nem tampouco existe, nessa forma de religião, caracterizada por atitude

essencialmente “naturalista” e conformista com relação ao status quo, a concepção de um

“reino de Deus”, acarretando a noção de um progresso histórico ou do projeto de uma nova

sociedade.21

Toda a realidade é a que se acha no mundo das aparências, aceito tal qual se

oferece à experiência quotidiana dos fiéis. Por que mudá-lo, se quanto mais muda, mais fica

como era, com seus ricos e seus pobres, seus patrões e seus dependentes, seus poderosos e

seus oprimidos?

Verdadeiramente, estamos aqui nas antípodas das religiões da abstração e da

racionalização. Apesar disso tudo, o Candomblé não deixa, em mais um paradoxo, de

demonstrar afinidade com alguns aspectos da Modernidade. Por pouco que esta seja

compreendida como a crença na bondade natural do homem e na possibilidade de um

progresso baseado unicamente nas forças da razão, sem necessidade da “graça”, isto é, de

apoio sobrenatural, ela rejeitará toda noção de pecado, “original” ou “atual”, de culpa,

redenção, expiação, salvação e assemelhadas.22

Estas, na verdade, representam algumas das

noções mais repugnantes à ideologia da Modernidade e aí também se encontra o mais forte

dos obstáculos a um acordo durável entre ela e o Cristianismo, sobretudo com o Catolicismo,

o qual muito dificilmente poderia liberar-se, sem deixar de ser o que é e sem portanto

enveredar por um processo de “capitulação cognitiva” 23

e autodestruição, das noções de

queda, pecado e corrupção da natureza humana, tais como formuladas por São Paulo, Santo

Agostinho, São Tomás de Aquino e outros teólogos.24

Ora, baseada, como já se assinalou, sobre a noção de uma reciprocidade entre os

deuses e os homens, que permutam certo número de bens e de serviços, a religião afro-

20

Isto porém não implica, mesmo que não o formulem em termos de teologia abstrata, que desconheçam, no

concreto, um princípio fundamental de toda ética, “não faças aos outros aquilo que não queres que te façam”, ou

que o pratiquem menos do que os adeptos de outras religiões ou de nenhuma religião. 21

Tais como essas representações se encontram em versão “encantada”, porém susceptíveis a interpretações

secularizadas, no tratamento da Nova Jerusalém dos capítulos 21 e 22 do livro do Apocalipse. 22

Algumas destas considerações (mas só algumas) são afins a algumas das idéias (mas, outra vez, só algumas)

do filósofo francês Jacques Maritain (1882-1973), sobretudo em Humanismo Integral (1962), do qual extraímos

o seguinte trecho: “Quer nos dirijamos a Rousseau, a Comte ou a Hegel, constatamos, nestes grandes

representantes da idade moderna, que o homem é visto como um ser puramente natural, destacado de toda

conexão com uma ordem sobrenatural referente ao pecado original e à graça [...] de sorte que o homem pode

reivindicar tudo para si mesmo, como sendo o herdeiro de Deus” (Maritain 1962:21), estando esta última

reivindicação bem próxima da reivindicação da Sociologia (ou, de maneira mais ampla, da ciência social) de ser

a herdeira e substituta da religião, sociólogos, antropólogos e assemelhados representando, por conseguinte, o

sacerdócio da “religião da humanidade”. 23

Este é aqui usado em sentido muito próximo ao que Peter Berger (1969) atribui a “cognitive capitulation”

(1969). 24

Notemos aqui que a Reforma, tal como representada por Lutero e Calvino, aceita o essencial dessas noções,

chegando até, em alguns aspectos, a radicalizar as suas conseqüências.

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brasileira não se preocupa com uma concepção de pecado que encontraria seu ponto de

partida em alguma falha original da natureza humana, nem tampouco se preocupa com uma

noção de ascese, de repressão e de conduta de vida,25

que visasse reparar ou corrigir as falhas

dessa natureza.26

Trata-se inclusive de uma religião que, no domínio do comportamento

sexual, e isto em toda a sua variedade, considera-o como perfeitamente indiferente aos deuses,

quando não diretamente influenciado por suas preferências.27

A Santa Aliança

Dessas afinidades eletivas, decorre a sábia e santa aliança que se estabeleceu, no

Brasil, entre a religião afro-brasileira e os sociólogos, antropólogos, filósofos e outros, que

definem e representam os valores da Modernidade. Porque, tudo bem pensado e repensado, o

que é a ciência social, segundo o projeto de Comte, retomado, ao menos implicitamente, não

só por Durkheim, mas por antropólogos como Radcliffe-Brown (1952), Geertz (1966), etc.,

etc., senão uma forma aperfeiçoada de religião, a verdadeira “religião da humanidade”, quer

se declare ou não enquanto tal, ou, pelo menos, o que é a religião senão uma forma atrasada

de ciência social? Desse modo, os pesquisadores deram ao Candomblé (o qual de certo

sempre foi religião em si, com seus ritos e seus mitos), um sistema teológico bem estruturado,

que lhe permitiria transformar-se em religião para si, que tenta “eclesificar-se”, com dogmas

definidos, rituais padronizados, sacerdócio devidamente consagrado de acordo com alguma

ordem de sucessão moral ou genealógica, assumindo, o Candomblé, clara consciência de sua

especificidade e de sua independência com relação às outras religiões, com as quais se

encontra atualmente em competição pelo recrutamento de novos adeptos.

É provável que o autor deste artigo tenha sido o primeiro, na bibliografia sobre as

religiões afro-brasileiras, a fazer uso do conceito de “eclesificação” (Motta 1988a),

envolvendo o rompimento dos vínculos sincréticos do Candomblé com o Catolicismo, que

deixavam o primeiro em posição de subordinação em face do segundo, e o desenvolvimento

ou acentuação das características específicas do primeiro nos planos das crenças, dos ritos e

da organização. Entretanto, nos últimos anos, tenho reconsiderado meu próprio ponto de vista,

25

Estamos aqui lidando com um conceito equivalente ao de Lebensführung (na terminologia de Max Weber), o

qual, em tradução literal, significa exatamente conduta, condução ou mesmo regulamento de vida. 26

Se, de acordo com o Freud de Totem e Tabu (1918), concebermos que a culpa constitui uma estrutura

fundamental e universal do psiquismo humano, digamos então que a expiação, entre os adeptos das religiões

afro-brasileiras é efetuada pelo sacrifício material, em contraposição à expiação ascética das igrejas cristãs.

Notemos a este propósito que Max Weber, mesmo dentro do Cristianismo, encontrava, com ou sem razão, um

alto grau de materialidade e reificação (que não hesitava em considerar como “magia”) nas formas “vulgares” de

Catolicismo (“Vulgarkatholizismus”). 27

Acredito entretanto que aqui estejamos menos diante de uma crença na bondade natural do homem, ao gosto

dos filósofos da Ilustração, do que de uma espécie de realismo trágico, que aceita a condição humana, tanto no

plano do indivíduo como no da sociedade, com suas contradições e desigualdades, sem esperança alguma de

uma libertação final, de ordem política ou sobrenatural. Tratei extensamente deste tema em Motta 2002.

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parecendo-me que o Candomblé não se preste a mais do que um esboço dessa tendência, não

obstante o esforço dos intelectuais que o apóiam.28

Seu caráter marcadamente concreto,

fundamentalmente orientado para o alívio dos problemas do quotidiano, através de rituais

considerados como eficazes quando adequadamente praticados, reconduz-nos a um problema

central para a compreensão desta religião ou, em geral, da religião.

Dito de outra maneira, devido precisamente à sua concretude, ao seu cuidado pelos

problemas práticos, banais, constantes e inevitáveis, ligados ao trabalho, ao sexo, à saúde, à

doença, etc., que tenta resolver através de sacrifícios e ritos análogos, a religião afro-brasileira

é, ao mesmo tempo, susceptível às mais diversas explicações teológicas e refratária a todas

elas. Isto não chega a anular, mas, como aparece pelo fim da primeira década do século XXI,

limita o alcance do processo de eclesificação, que requer uma consistência teológica que

supere a simples manipulação ritual dos acontecimentos. O Candomblé tenta fornecer alívio a

curto prazo para o sofrimento, mas não dispõe, em si mesmo considerado, de uma teodicéia

articulada e consistente, que é, ou pretende ser, a forma suprema de alívio, com uma

explicação elaborada para os males e os limites da condição humana, conferindo (ou tentando

conferir) sentido à vida do indivíduo e à existência do mundo como um todo.29

E esta é, ao mesmo tempo, a grande vantagem e a grande desvantagem da religião

afro-brasileira no contexto do “mercado” religioso do Brasil, estendendo-se por outros países

da América Latina. O Candomblé fornece alívio imediato para as dores que resultam dos

inescapáveis limites da nossa condição, através do sacrifício continuado pela festa e pelo

transe, baseados na intuição direta do Santo e do Belo, aqui entendidos em sentido próximo

ao que possuem no pensamento de Hegel.30

Sem que seja esta a ocasião para digressões de

caráter metafísico, lembremos que a Arte, a Religião e a Filosofia constituem as três grandes

formas de manifestação do Espírito Absoluto ao Espírito do Homem. A Filosofia representa o

domínio da apreensão desse Espírito através da racionalidade dos conceitos e da lógica das

demonstrações. Notemos que, em muitos casos, esses três modos de apreensão se

interpenetram e confundem. Na Teologia cristã, tal como exemplificada pela escolástica

tomista (largamente elaborada sob a influência da filosofia de Aristóteles), ou pela obra de

28

Inclusive das minhas próprias mal traçadas linhas, algumas das quais mencionadas nas referências

bibliográficas deste artigo. 29

A questão da teodicéia é central na obra de Max Weber sobre a Sociologia da Religião e isto tanto em A Ética

Protestante e o Espírito do Capitalismo (1996), como nos outros textos que compõem os Ensaios Reunidos

sobre a Sociologia da Religião (1988) sobretudo no muito famoso ensaio sobre as “Rejeições Religiosas do

Mundo e Suas Direções”, também conhecido como “Considerações Intermediárias” (“Zwischenbetrachtungen”)

e incluído, em tradução brasileira, em Weber 1982. A mesma questão é ainda tratada por Weber no capítulo V

(em algumas edições VI), especificamente dedicado à Sociologia da Religião, de Economia e Sociedade (Weber

1994). 30

Sobre esse pensamento, podem ser consultados, entre muitos outros, Kojève 1947 e Meneses 1985.

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Calvino (sobretudo no seu monumental tratado sobre As Instituições da Religião Cristã), há

uma penetração da Religião pela Filosofia, equivalente a uma racionalização da Teologia ou,

se assim preferirmos, a elaboração teológica equivale à racionalização da Religião. A

teodicéia é também elaborada e expandida sob influência da Filosofia. É isto exatamente que

não se encontra na religião afro-brasileira, ou encontra-se apenas em esboço. Em

compensação --se posso assim exprimir-me-- essa religião (penso em primeiro lugar no

Xangô de Pernambuco, tal como o tenho conhecido através de uma longa experiência

etnográfica), é penetrada pela beleza do canto e da dança. Acredito que esse distanciamento

com relação à racionalidade e essa compenetração pela beleza dos corpos em movimento e da

experiência do transe, que vai muito além de toda racionalidade, sejam justamente o que, no

Candomblé da Bahia e no Xangô de Pernambuco, tenha fascinado o eminente autor que foi

Pierre Verger, sobretudo em Notes sur le Culte des Orisa et Vodun (Verger 1957) e,

guardadas as proporções, o próprio autor deste artigo.

A Umbanda, ao menos nas versões mais influenciadas pelo espiritismo de Allan

Kardec, envolve igualmente um processo de racionalização teológica que, enquanto tal,

desvaloriza e atenua o lado artístico da religião afro-brasileira. Mas, ao mesmo tempo, como

se tem aqui insistido, o Candomblé é bem menos efetivo do que outras religiões na elaboração

de um sistema de crenças capaz de conferir um sentido articulado --mesmo se porventura

fictício-- à vida e à morte do ser humano. Notemos que é justamente este imediatismo que o

faz tão atraente para os intelectuais que tendem a considerar o Candomblé, quando bem

administrado por sociólogos e antropólogos, como a religião ideal justamente porque permite

a saída definitiva de toda religião.

Congressos, Grupos de Trabalho e Protetorado Teórico

O Candomblé também agrada aos defensores de certa Modernidade por seu aspecto de

religião popular, praticada, pelo menos na origem, pelos escravos ou seus descendentes. Uma

vez adotado esse ponto de vista, quis-se recusar todo sincretismo entre os deuses da África e

os santos da Igreja, pois tal mistura fatalmente significaria uma modalidade latente de

controle social. Já Thales de Azevedo, em trabalho originariamente publicado em 1955,

destaca que

“aqueles cultos [afro-brasileiros] estão, por diversas razões, numa fase de

ressurgimento e expansão em todo o país. [...] Uma causa única, como a atração

do turismo para os candomblés, não chega a explicar este fenômeno” (Azevedo

2002:37-38)

acrescentando discretamente, em nota de fim e atenuando desta maneira a incorreção política

de suas observações, que

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“várias explicações se aventam para aquilo, uma delas [...] o prestígio dado por

autoridades civis, professores universitários e pessoas de influência social aos

pais-de-santo e às suas atividades; outra, o trabalho de agentes comunistas, entre

os quais, ao menos em certo período, conforme denúncia de Artur Ramos,31

etnólogos e sociólogos, no sentido de fomentar a luta de classes, acentuando a

diferença de religião entre a gente do povo e as demais camadas sociais” (ibid.:

59).

A autenticidade africana, que se quis a todo custo conservar ou recuperar,

representaria, por conseguinte, uma forma de pureza ideológica e correção política.32

Os

filhos-de-santo (e outros afro-brasileiros) se assemelhariam a uma camada oprimida, que, no

plano simbólico, teria resistido ao opressor precisamente pela preservação da religião,

encarada como uma pré-consciência de classe, à qual se considera que não faltam

potencialidades revolucionárias. E isto, aliás, parece, ao autor deste artigo, diametralmente

contrário à evidência empírica, que recolheu em muitos anos de observação das religiões ou

da religião afro-brasileira,33

pois (na prática, mais do que através de formulações teóricas)

seus adeptos consideram que as estruturas sociais são basicamente estáveis, na verdade

imutáveis, embora um certo número de indivíduos possa, com auxílio sobrenatural, mudar de

posição dentro dessas estruturas. Se só com muita dificuldade poderíamos atribuir uma

teodicéia (ou seu esboço) ao Candomblé, menos ainda podemos falar, a seu propósito, de uma

“sociodicéia”, isto é, de uma visão coerente e explicita da sociedade global, dentro da qual

coubesse a possibilidade de transformações ou revoluções. Trata-se, na verdade, de uma

religião dominada por um conformismo fundamental.34

Os sábios, aliás, não deixaram de tomar conhecimento do papel que desempenharam

nessa verdadeira criação de uma nova religião. Roger Bastide, por exemplo, em pequeno texto

publicado há mais de 50 anos, antes até da publicação de seus livros mais importantes,

exprimia-se do seguinte modo:

“Lembro-me que Anísio Teixeira, com a inteligência tão lúcida que o caracteriza,

censurou-me um dia, a mim, a Ramos, a Herskovits, a Pierson, a Edison

Carneiro, por termos fortificado a subsistência dos candomblés e impedido ou

31

Com toda probabilidade há, nesta passagem, uma alusão a Edison Carneiro, autor de muitos trabalhos sobre o

Candomblé da Bahia e outras formas de religião afro-brasileira (Carneiro 1948, 1959, etc.), organizador

principal do segundo Congresso Afro-Brasileiro, realizado em Salvador no ano de 1937, cujas ligações com o

Movimento Comunista e suas divergências com Arthur Ramos são bem conhecidas dos estudiosos. Em

Pernambuco, Gilberto Freyre e Aderbal Jurema, organizadores, em 1934, do primeiro Congresso Afro-

Brasileiro, foram também acusados, com ou sem razão, de tendências comunistas. 32

Essas idéias, que representam ainda a opinião corrente da maior parte dos estudiosos, têm seu ponto de partida

em Carneiro 1936. Depois --e isso assegurou o seu êxito-- foram retomadas por Bastide 1970. 33

O singular, “religião afro-brasileira”, pode perfeitamente ser utilizado com referência aos pontos essenciais,

nos quais convergem as diferentes formas dessa religião, que, em pontos acidentais, divergem de acordo com as

regiões e com certas particularidades de crença e de ritual. 34

E foi isto que, deixando à parte qualquer modéstia, eu destaquei num dos meus primeiros textos sobre assunto

afro-brasileiro: “Exu: Protesto e Conformismo no Xangô do Recife” (Motta 1979), depois incorporado à minha

tese de doutorado (Motta 1988b).

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retardado a obra de assimilação do negro do Nordeste à cultura ocidental. Em

parte, ele tinha razão. Os „pais-de-santo‟ servem-se de nossos trabalhos para

voltar-se para a África...” (Bastide 1953: 521; apud Azevedo, 1955: 32.)

Não vamos aqui seguir os detalhes e meandros desse processo, através do qual se

chegou ao ponto de inventar toda uma nova África, para uso do Candomblé (Motta 1994a;

1994c). Também não entraremos nos detalhes do papel desempenhado pelos encontros

científicos, na elaboração das crenças afro-brasileiras, e em sua transmissão a seu clero e a

seus fiéis que, nessas e noutras ocasiões, convivem com os cientistas em toda igualdade e

fraternidade. Como já referimos, o primeiro “congresso afro-brasileiro” reuniu-se no Recife

em 1934, convocado por Gilberto Freyre, que acabava de publicar Casa Grande & Senzala. O

segundo teve lugar na Bahia, em 1937, largamente sob a liderança de Edison Carneiro. Muitas

outras reuniões, às vezes com grande reforço internacional de verbas e de sábios, foram

realizadas nos últimos 70 anos, entre as quais avultam os chamados III Congresso Afro-

Brasileiro, em 1982, IV Congresso Afro-Brasileiro, em 1994, realizados ambos no Recife

por iniciativa da Fundação Joaquim Nabuco, o grande Congresso Internacional sobre a

Escravidão, organizado pela Universidade de São Paulo, em 1988, e o V Congresso Afro-

Brasileiro, em 1997, organizado, na Bahia, por um grupo de antropólogos soteropolitanos. E

houve congressos e reuniões porventura menores, mas nem por isto menos eficazes, como tal

GT da Associação Brasileira de Antropologia, em plano nacional ou regional, ou tal outro GT

ou mesa redonda da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais,

que organiza também encontros nacionais e regionais, sem falar noutras organizações que às

vezes ultrapassam as fronteiras do Brasil, abrangendo a Argentina e o Uruguai.

A moda dos “congressos afro-brasileiros” parece ter passado no século XXI. Em nosso

tempo de quotas, a própria denominação se torna politicamente incorreta, como se implicasse

que os sábios brancos ou “brancarrões” (como gostava de dizer Gilberto Freyre) estivessem

fazendo o “dom da inteligibilidade” (a expressão é de Claude Lévi-Strauss em polêmica

contra Sartre) aos filhos-de-santo. Mas como na natureza e na sociedade nada se perde, nem

nada se cria, porém tudo se transforma ou se disfarça,35

os “congressos” vêm sendo

substituídos por outros tipos de reunião com patrocínio e financiamento, direto ou indireto, de

poderosas organizações internacionais. Não desapareceu absolutamente a tendência de

intelectuais a conferirem uma sistematização teológica, além de especificamente sociológica e

antropológica, isto é, a fazerem, noutras palavras, o “dom da inteligibilidade”, que se acaba de

35

Assim formulado, este princípio não é apenas uma paródia da lei da conservação das massas, ou da matéria,

formulada por Lavoisier, mas quer também refletir, com talvez leve toque de humor, a teoria implícita dos

filhos-de-santo sobre a permanência das estruturas básicas da sociedade e da cultura.

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mencionar, à religião afro-brasileira, que, pelos motivos que acabamos igualmente de expor,

tomaram sob sua proteção. 36

Conforme já observamos, sociólogos e antropólogos (não apenas no Brasil) gostam

muitas vezes de comportar-se como se formassem, em termos de Augusto Comte, o

sacerdócio da religion de l’humanité, ao qual incumbiria presidir à transição do estado

teológico ao estado positivo. E, conforme também já vimos, o Candomblé, a despeito da sua

prática ostensiva dos sacrifícios de sangue,37

agrada aos representantes da Modernidade, ou de

uma certa Modernidade, devido à rejeição ou, pelo menos, à irrelevância, dentro de suas e

concepções implícitas, das noções de pecado e culpa, sem falar na sua aura de religião de uma

classe oprimida. Assim é que a religião afro-brasileira foi adotada por muitos cientistas

sociais do Brasil e até do exterior, porém isto nem tanto em termos estritamente religiosos,

pois apesar de algumas marcas exteriores de participação --uma batida de bombo em tal lugar,

o oferecimento de animais para sacrifício em tal outro, alguns passos de dança em ainda outro

terreiro--38

, não se pode falar de conversão em massa de sociólogos e antropólogos à “religião

dos orixás” (como também se pode dizer), mas antes do estabelecimento de um protetorado

teórico, exercido pela ciência social sobre o Candomblé. 39

E assim veio a constituir-se, sem

dúvida com conseqüências proveitosas para ambas as partes, uma santa e sábia aliança entre

aquela religião e os cientistas sociais que a estudam, os quais também definem e representam

os valores da Modernidade.

Em acentuado contraste, os Pentecostais e Neo-Pentecostais,40

de modo nenhum têm

querido ajustar ou reinterpretar suas crenças de acordo com os padrões de Modernidade

defendidos pelos colegiados dos cursos de Sociologia e Antropologia. Eles não

36

Sirva como demonstração o ainda recente e muito bem feito número 6 da série Grandes Religiões da revista

História Viva (julho de 2007), dedicada aos Cultos Afros: A Sagração do Sincretismo. O organizador, Vagner

Gonçalves da Silva, é um ilustre professor da Universidade de São Paulo e já tem prestado muitos serviços à

pesquisa afro-brasileira. Os colaboradores (com uma exceção do autor deste artigo, que também colabora nesse

trabalho coletivo) formam, de norte a sul do País, a elite dos afro-brasilianistas. Entre outros trabalhos de Vagner

Gonçalves da Silva, assinalem-se, entre os menos recentes, O Antropólogo e Sua Magia: Trabalho de Campo e

Texto Etnográfico nas Pesquisas Antropológicas sobre Religiões Afro-Brasileiras (Gonçalves da Silva 2000) e

Caminhos da Alma: Memória Afro-Brasileira (Gonçalves da Silva 2002). Mais recentemente, ele organizou

Intolerância religiosa: Impactos do Neopentecostalismo no Campo Religioso Afro-brasileiro (2007), que

apresenta como “um esforço coletivo de analisar, sob vários pontos de vista, o impacto do crescimento das

igrejas neopentecostais, com seus discursos e práticas de ataque e intolerância religiosa, no campo religioso

afro-brasileiro, em várias áreas da vida social, como direitos civis e discriminação por orientação sexual”

(Gonçalves da Silva 2007:24). 37

Prática esta atenuada em algumas variedades da Umbanda. 38

Embora tudo isto possa também ser praticado pela mesma pessoa no mesmo lugar. 39

O autor que faz aqui a crítica da dominação sociológica e antropológica sobre o Candomblé, não deixa de para

ela contribuir, através de muitos trabalhos publicados que, de um modo ou de outro (por certo que de maneira

bem menos grandiosa que de outros nomes da ciência social brasileira ou internacional), não escapam à

consideração de filhos e pais-de-santo, que têm sido seus amigos, informantes e informados. 40

Apesar de uma ou outra concessão, em pontos de detalhe, dos segundos em comparação com os primeiros,

como, por exemplo, no caso da indumentária feminina.

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resumo dos motivos pelos quais os antropólogos adotaram o candomblé
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Os pentecostais não fazem aliança com a academia
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“falam, simbolicamente, de todas as libertações: a libertação dos escravos,

certamente, mas também a libertação dos negros enquanto negros e ainda a

libertação de Eros, do amor louco. Exu e Pomba-Gira, para nós é Eros. É

também Dionísios, o deus grego dos escravos e das mulheres, o deus dos

dominados que lutam por sua libertação, contra Apolo, deus dos Senhores”

(Lapassade e Luz 1972:xix), 41

mas sim de muitas espécies de repressão ou, pelo menos de uma regulamentação dos afetos e

paixões do corpo, considerando, para dizer com as palavras de Weber, como “tarefa mais

premente a eliminação do prazer instintivo da vida, criando ordem no modo de vida dos

seus adeptos” (Weber 1996:103).

Pois o ser humano não vive simplesmente em busca de espontaneidade em nosso

tempo supostamente pós-moderno, mas também de ordem e racionalidade. O apelo que

emana da espontaneidade dionisíaca do inconsciente não é necessariamente mais forte do que

aquele deriva do superego, com sua exigência de regulação e repressão e isto ainda mais

quando estes mecanismos se legitimam por meio de uma teodicéia consistente e encantada. E

aqui se coloca a questão de saber-se por que determinadas pessoas aderem à religião afro-

brasileira, enquanto outras se dirigem para as igrejas pentecostais ou neopentecostais.42

Acredito que a primeira formulação explícita desta questão, na ciência social brasileira ou

brasilianista, deve-se a um artigo de Peter Fry e Gary Howe publicado em 1975. Fazendo aqui

abstração de citações e referências em moda naquele período, a questão fundamental,

formulada com muita pertinência pelos dois autores, era a seguinte:

“Que elementos da sua experiência social levarão alguém a interpretar o mundo

em termos de uma frenética manipulação de entidades espirituais (na Umbanda)

e que outros elementos levarão outros indivíduos a adotarem (no

Pentecostalismo) um sistema unificado baseado num rígido código moral?” (Fry

& Howe 1975:90).

Nossos autores formulam sua resposta em termos cautelosos:

“As igrejas pentecostais podem ser mais atraentes para as pessoas que mantêm

relações sociais de caráter burocrático e impessoal […] enquanto a Umbanda

apelará sobretudo para aqueles cuja vida diária depende da manipulação de

pessoas estrategicamente colocadas em posições de influência e que possuem

pouca experiência da organização burocrática das relações sociais” (Fry & Howe

1975: 91).

41

O livro de Lapassade e Luz não é o primeiro, mas é um excelente exemplo da recriação ou reinterpretação ou

ainda, como se gosta de dizer atualmente, da “ressignificação” das religiões afro-brasileiras pelos pesquisadores,

no caso largamente sob influência de Nietzsche e Wilhelm Reich. 42

A busca desse fundamentalismo moral (ou identitário) é sem dúvida um dos fatores que explicam o

ressurgimento como força religiosa e política do Islã, em associação com a revolução iraniana de 1979. Tal

ressurgimento não se tem limitado às terras situadas, como se diz, “entre o Marrocos e a Malásia”, mas em muito

as ultrapassam, na Europa (inclusive na França e na Inglaterra, com grandes comunidades de imigrantes ou

descendentes, provenientes de países islâmicos), chegando a atingir o Brasil, onde já começa a inspirar algum

alarme, conforme se pode constatar pelo muito sintomático artigo de Marcos Stefano (2009), “Um Plano para

Islamizar o Brasil”.

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Na verdade, a experiência do senso comum, que constata o forte trânsito entre

Umbanda e Pentecostalismo,43

bem como a convivência dos dois tipos de religião nos

mesmos bairros, nas mesmas ruas, muitas vezes nas mesmas famílias, seus locais de culto às

vezes exatamente ao lado uns dos outros, indica que o problema não se resolve com

facilidade, estando sujeito a fatores imponderáveis, de natureza psicológica ou ligados aos

acidentes das histórias de vida, para que o possamos resolver com grandiosidade teórica.44

Considerações Finais

O relacionamento entre a ciência social e a religião, conduzindo à tomada de posse da

segunda pela primeira,45

em muito ultrapassa o âmbito das religiões afro-brasileiras e está

longe de ser fenômeno apenas brasileiro. Mas, neste artigo, além da exposição teórica inicial,

não nos estendemos a outros exemplos, que poderiam provir da Alemanha, com Ernst

Troeltsch e Max Weber, da França, com o próprio Durkheim e (guardadas as proporções) com

a obra recente de Danièle Hervieu-Léger, que vem exercendo marcada influência sobre os

intérpretes do Catolicismo, inclusive no Brasil, ou, ainda em nosso país, do relacionamento do

ISER (Instituto Superior de Estudos da Religião), do Rio de Janeiro, com a ampla variedade

de formas, denominações e personalidades religiosas que têm recebido a influência dos

autores ligados àquele centro de estudos.46

Na verdade a tomada de posse, a substituição da religião pela Sociologia, estão

essencialmente ligadas, como se observou no princípio deste artigo (com o reforço das

citações de Nicolaus Sombart), ao próprio surgimento da ciência social. O protetorado teórico

sobre as religiões afro-brasileiras, instaurado pelos sociólogos e antropólogos nacionais,

possui, sem duvida, especificidades ligadas ao modo festivo com que se exerce,47

no meio de

encontros ao menos na aparência caracterizados por grande liberdade, igualdade e

fraternidade entre pesquisadores e religiosos, mas nem por isso deixa de ser um subcaso de

uma tendência praticamente universal.

Mas a lógica da Modernidade conduz, para dizer com a expressão de Michel Maffesoli

(1976), talvez inspirado em Nicolaus Sombart, à lógica da dominação. Muitas vezes só o que

parecem ganhar os sociólogos, antropólogos e outros gestores e orientadores, é uma forma de

43

Acredito que Fry e Howe, no artigo de 1975, empregassem o termo “umbanda”, como era habitual nos

primeiros anos da década de 1970, para significar a religião afro-brasileira em sentido amplo. 44

Tratei também do assunto, mas sem preocupação de chegar à resposta definitiva deste importante problema,

em Motta 2009. 45

Embora possamos conceber também um relacionamento que não leva a tal conseqüência e que até mesmo, em

determinadas situações, leva ao oposto, isto é, ao controle da ciência social pela religião. 46

De Ernst Troeltsch a referência mais famosa, originariamente publicada em 1912, é a que se indica mais

adiante. As publicações de Danièle Hervieu-Léger são numerosas e, neste artigo, nos limitaremos à menção de

um único trabalho, muito significativamente intitulado Catholicisme, la Fin d’un Monde (2003). 47

Se tal expressão ainda pode ser admitida na atual ciência social brasileira, eu falaria do modo festivo e

sincrético com que se exerce essa dominação.

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poder bastante vaga, o poder sobre as palavras e as teorias, esse poder sobre os símbolos que é

talvez a forma mais perfeita de dominação. Quanto não ganhou Simone de Beauvoir a partir

do momento em que, como se lê em suas memórias, apresentou-se como gerenciadora da

História?48

O que nos reconduz finalmente a uma sociologia da sociologia (ou a uma

antropologia da antropologia) e aos mitos que cercam o nascimento e a história de nossa

profissão. Volto à frase de Nicolaus Sombart, que gosto tanto de citar segundo a qual o

cientista social “costura o futuro através do buraco da agulha do presente” (Sombart, N.

1955:90).

Por certo que há diversas espécies de cientistas sociais. Mas o que representam os

congressos-concílios que definem a doutrina correta do Candomblé, se não, com o disfarce do

exótico,49

uma situação finalmente muito banal na prática de nossa profissão, com nossas

reuniões, nossos encontros, nossas mesas, em que definimos, ou escutamos definir ex-

cathedra, a ortodoxia, o pensamento correto da religião da ordem e do progresso, a religião da

humanidade, da qual antropólogos, cientistas políticos, sociólogos propriamente ditos, somos

teólogos e sacerdotes, segundo a ordem de Augusto Comte?

Referências

Azevedo, Thales

2002 (or. 1955) O Catolicismo no Brasil: Um Campo para a Pesquisa Social,

Salvador, EDUFBA.

Bastide, Roger

1953 “Carta Aberta a Guerreiro Ramos”, in Anhembi (São Paulo), ano III, vol. 123,

no. 36, 521, citado em Azevedo 2002:59.

1969 “Color, Racism, and Christianity”, in John Hope Franklin, ed., Color and Race,

Boston, Beacon Press, 1969, pp. 34-49.

2001 (or. 1970) Le Prochain et le Lointain, Paris, L'Harmattan.

Beauvoir, Simone de

1963 La Force des Choses, Paris, Gallimard.

Berger, Peter

1969 The Sacred Canopy: Elements of a Sociological Theory of Religion, New York,

Doubleday.

Carneiro, Edison

1948 Candomblés da Bahia, Salvador, Publicações do Museu do Estado, 8.

1959 Os Cultos de Origem Africana no Brasil, Rio de Janeiro, Ministério da Educação

e Cultura, Biblioteca Nacional, 1.

48

Sobretudo em Beauvoir 1963. 49

Conhecem-se casos de religiosos afro-brasileiros que receberam acomodações, nas dependências de alguns

programas pós-graduados, para, com mais facilidade, serem consultados quando da redação de teses,

dissertações e outros trabalhos, como se conhecem muitos casos de pesquisadores que, com pompa e

circunstância, fizeram-se iniciar em terreiros de Candomblé ou de Xangô. Tudo bem pensado, tal situação está

longe de constituir um exotismo sul-americano. Para dar um só exemplo cujas conseqüências não precisamos de

agora explorar, a École Pratique des Hautes Études (EPHE), da Universidade de Paris, que sucedeu, quando da

separação entre a Igreja e o Estado, à antiga Faculdade de Teologia da Sorbonne, até hoje se caracteriza pela

presença, de significativo número de padres e ex-padres, pastores e ex-pastores, rabinos e ex-rabinos (ou

assemelhados), entre seus docentes e pesquisadores.

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Comte, Auguste

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