a felicidade desesperadamente - andré comte sponville

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  • 1. Este livro foi digitalizado pelo time do Portal Do Criador (antigamente www.portaldocriador.org, hoje http://portaldocriador.cajueiro.org). Toda sugesto, dvida ou reclamao bem-vinda. Junte-se a ns! Digitalizao: Mulder Reviso: Mulder e Lamps Reviso final: Lamps Gostaramos de dedicar este trabalho ao Argo, o pirata que nos ensinou como digitalizar livros, como organizar-se na internet sem autoritarismo, e at como construir casas (!) . ============================================== =============================== Voc se sente mal por fazer uso de um livro pirata? Por qu? Conhea as ideias dos partidos piratas em www.partidopirata.org ! ============================================== ===============================

2. Andr Comte-Sponville A FELICIDADE, DESESPERADAMENTE Traduo de Eduardo Brando Martins Fontes Esta obra foi publicada originalmente em francs com o ttulo LE BONHEUR, DSESPRMENT, por ditions Pleins Feux, Nantes. Copyright ditions Pleins Feux. Copyright 2001, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., So Paulo, para a presente edio. 1 edio 2001 4 tiragem 2010 Traduo EDUARDO BRANDO Reviso grfica Renato da Rocha Carlos Lilian Jenkino Produo grfica Geraldo Alves Paginao/Fotolitos Studio 3 Desenvolvimento Editorial O texto que segue a transcrio, revista e corrigida pelo autor, da conferncia-debate pronunciada por Andr Comte-Sponville no dia 18 de outubro de 1999, no mbito dos LundisPhilo [Segundas-feiras de Filosofia], no Piandcktail, em Bouguenais (44340). Comte-Sponville, Andr, 1952- A felicidade, desesperadamente / Andr Comte-Sponville ; traduo Eduardo Brando. - So Paulo : Martins Fontes, 2001. Ttulo original: Le bonheur, dsesprment. ISBN 85-336-1368-7 1. Filosofia - Ensaios I. Ttulo. 01-1116 CDD-190.2 ndices para catlogo sistemtico: 3. Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CEP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) A felicidade, desesperadamente Vou falar, ento, da felicidade... Confesso que, diante de tal tema, estou dividido entre dois sentimentos opostos. Primeiro, o sentimento da evidncia, da banalidade mesmo: porque a felicidade, quase por definio, interessa a todo o mundo (lembrem-se de Pascal1 : "Todos os homens procuram ser felizes; isso no tem exceo... esse o motivo de todas as aes de todos os homens, inclusive dos que vo se enforcar...") , e deveria interessar ainda mais ao filsofo. Tradicionalmente, historicamente, desde que os gregos inventaram a palavra e a coisa philosophia, todos sabem que a felicidade faz parte dos objetos privilegiados da reflexo filosfica, que at um dos mais importantes e dos mais constantes. Vejam Scrates ou Plato, Aristteles ou Epicuro, Spinoza ou Kant, Diderot ou Alain... "No verdade que ns, homens, desejamos todos ser felizes?"2 A resposta to evidente, nota Plato, que a pergunta quase no merece ser feita. "De fato, quem no deseja ser feliz?"3 A busca da felicidade a coisa mais bem distribuda do mundo. No entanto, ao mesmo tempo que esse sentimento de evidncia ou de banalidade, tenho tambm o de certa singularidade, certa solido, para no dizer de certa audcia: esse tema, que pertence desde h tanto tradio filosfica, a maioria dos filsofos contemporneos - digamos, os que dominaram a segunda metade do sculo XX - tinha quase completamente esquecido, como se de repente a felicidade houvesse deixado de ser um problema filosfico. Foi o que surpreendeu meus colegas, quando publiquei meu primeiro livro, o Trait du dsespoiret de la batitude...4 Parecia-lhes 1 Penses, fr. 148-425 (o primeiro nmero o da ed. fran-cesa de Lafuma, Seuil, 1963; o segundo o da ed. Bruns-chvicg, Hachette, 1897). [Trad. bras.: Pensamentos, So Paulo, Martins Fontes, 2001.] 2 Plato, Eutidemo, 278 e. 3 Ibid. 4 Tomo 1, Le mythe dlcare, PUF, 1984; tomo 2, Vivre, PUF, 1988. [Trad. bras., respectivamente: Tratado do desespero e da beatitude, So Paulo, Martins Fontes, 4. que eu reatava com velhas noes - a da felicidade, a da sabedoria... - que lhes soavam obsoletas, arcaicas, superadas, que eu filosofava, foi o que me disse na poca meu ex-professor do curso preparatrio para a cole Normale Suprieure, como j no se fazia "havia sculos", acrescentara ele, eu nunca soube se era um elogio ou uma crtica, "como j no se ousa fazer..." Em suma, eu estava com alguns sculos de atraso, e no deixaram de me chamar a ateno para isso... Sero quase sempre os mesmos que, alguns anos depois, me acusaro de seguir a onda (que onda? a da sabedoria, da filosofia antiga ou antiga, da tica, da felicidade...). No mudei muito, porm, nem eles. O pblico que mudou, e tanto melhor se eu tiver alguma coisa a ver com isso. Meu primeiro livro apareceu em janeiro de 1984: parecia ento, de fato, que eu estava com vrios sculos de atraso... Depois veio o sucesso, pouco a pouco, e compreendi que eu estivera uns dez anos adiantado. No me gabo. O que so dez anos para a filosofia? Mas tambm no tenho por que me envergonhar. A verdade que o passado da filosofia est sempre diante de ns, que nunca terminaremos de explor-lo, de compreend-lo, de tentar prolong-lo... E que foi por no ter medo de parecer superado ou atrasado que talvez, s vezes, eu tenha estado um pouco adiantado... O fato que meu ponto de partida, em filosofia, foi reatar com essa velha questo grega e filosfica, a questo da felicidade, da vida boa, da sabedoria. No por gosto de remar contra a corrente, mas porque eu tinha vontade de fazer filosofia como a faziam os mestres que eu apreciava e admirava, apesar de alguns deles terem morrido havia vrios sculos: os gregos primeiro, claro, mas tambm Montaigne ou Descartes, Spinoza ou Alain... Nesse caminho, alis, havia pelo menos um contemporneo que me precedera: Mareei Conche. Depois outro, que, sem o seguir pessoalmente, me incentivava a explor-lo: Louis Althusser. Segui o exemplo ou o conselho deles. Subi muito a montante, na histria da filosofia, para tentar avanar um pouco. No tinha escolha: no teria podido filosofar de outro modo. Em suma, quis reatar no apenas com a etimologia, que no passa de um pequeno aspecto da questo, mas com essa tradio filosfica que faz que a philosophia, como diziam os gregos, seja, etimolgica e conceitualmente, o amor sabedoria, a busca da sabedoria, sabedoria que se reconhece de fato, para quem a atinge e segundo a quase totalidade dos autores, por uma certa qualidade de felicidade. Se a filosofia no nos ajuda a ser felizes, ou a ser menos infelizes, para que serve a filosofia? O filsofo que mais me marcou, durante todos os meus anos de estudo, mais ainda que Spinoza, mais ainda que Marx ou Althusser, foi sem dvida Epicuro, que descobri no curso preparatrio e a quem mais tarde consagrei minha dissertao de mestrado. Fiz logo minha a belssima definio que ele dava da filosofia. Lembrem-se da primeira aula de filosofia que vocs tiveram, vocs que chegaram ao ltimo ano do segundo ciclo... H uma pergunta que os professores de filosofia fazem quase inevitavelmente no 1997; Viver, So Paulo, Martins Fontes, 2000.] 5. colegial (eu prprio fui professor de filosofia por vrios anos) na primeira aula do ano, no incio do ms de setembro. preciso explicar a adolescentes que nunca estudaram filosofia o que ela , em outras palavras, o que eles vo estudar, razo de oito, cinco ou trs horas por semana, conforme o curso, durante todo um ano; o que essa nova disciplina - nova para eles! - que se chama desde h tanto tempo filosofia... Contaram-me que um colega, na primeira aula do ano, pergunta "O que a filosofia?" respondia: "A filosofia uma coisa extraordinria. Faz vinte anos que ensino e continuo sem saber o que !" Se fosse verdade, eu acharia muito mais inquietante do que extraordinrio. O que poderia valer uma disciplina intelectual que no fosse capaz nem sequer de se definir? Mas no creio que seja assim. A verdade que perfeitamente possvel responder pergunta "O que a filosofia?" e at mesmo de vrias maneiras diferentes - essa pluralidade mesma j filosfica. Quanto a mim, adotei a resposta que Epicuro dava a essa pergunta. Ela assume devidamente a forma de uma definio: "A filosofia uma atividade que, por discursos e raciocnios, nos proporciona uma vida feliz. "5 Gosto de tudo nessa definio. Gosto em primeiro lugar de que a filosofia seja uma "atividade", energeia, e no apenas um sistema, uma especulao ou uma contemplao. Gosto de que ela seja feita por "discursos e raciocnios", e no por vises, bons sentimentos ou xtases. Gosto enfim de que ela nos proporcione "uma vida feliz", e no apenas o saber e, menos ainda, o poder... Ou, em todo caso, de que ela tenda a nos proporcionar uma vida feliz. Porque, se eu tinha uma reserva a fazer, e tenho, a essa bela definio de Epicuro, que no estou convencido de que tenhamos, ns, modernos, os meios de assumir o belo otimismo grego ou a bela confiana grega. Onde Epicuro escrevia que "a filosofia uma atividade que, por discursos e raciocnios, nos proporciona uma vida feliz", eu diria antes, mais modestamente, "que tende a nos proporcionar uma vida feliz". Fora essa reserva, a definio, que data de vinte e trs sculos atrs e que me ilumina j h quase trinta anos, continua me convindo. O que a filosofia? Para diz-lo com palavras que sejam minhas (mas vocs vero que minha definio est calcada na de Epicuro), responderei: a filosofia uma prtica discursiva (ela procede "por discursos e raciocnios") que tem a vida por objeto, a razo por meio e a felicidade por fim. Trata-se de pensar melhor para viver melhor. A felicidade a meta da filosofia. Ou, mais exatamente, a meta da filosofia a sabedoria, portanto a felicidade - j que, mais uma vez, uma das ideias mais aceitas em toda a tradio filosfica, especialmente na tradio grega, que se reconhece a sabedoria pela felicidade, em todo caso por certo tipo de felicidade. Porque, se o sbio feliz, no de uma maneira qualquer nem a um preo qualquer. Se a sabedoria uma felicidade, no uma felicidade qualquer! No , por exemplo, uma felicidade obtida custa de drogas, iluses ou diverses. Imaginem que nossos mdicos inventem, nos 5 Fragmento 218 da ed. Usener, transmitido por Sexto Emprico (Adv. Math., XI, 169), trad. fr. M. Conche, Epicuro, Lettres et maximes, PUF, 1987, p. 41. 6. anos futuros - alguns dizem que j inventaram, mas, tranqilizem-se, ainda h muito o que esperar -, um novo remdio, uma espcie de ansioltico e antidepressivo absoluto, que seria ao mesmo tempo um tnico e um euforizante: a plula da felicidade. Uma pilulazinha azul, cor-de-rosa ou verde, que bastaria tomar todas as manhs para se sentir permanentemente (sem nenhum efeito secundrio, sem viciar, sem dependncia) num estado de completo bem-estar, de completa felicidade... No digo que nos recusaramos a experiment-la, nem s vezes, quando a vida est mesmo muito difcil, at a us-la com certa regularidade... Mas digo que quase todos ns nos recusaramos a nos satisfazer com ela e que, em todo caso, nos recusaramos a chamar de sabedoria essa felicidade que deveramos a um remdio. A mesma coisa vale, claro, para uma felicidade que proviesse apenas de um sistema eficaz de iluses, mentiras ou esquecimentos. Porque a felicidade que queremos, a felicidade que os gregos chamavam de sabedoria, aquela que a meta da filosofia, uma felicidade que no se obtm por meio de drogas, mentiras, iluses, diverso, no sentido pascaliano do termo; uma felicidade que se obteria em certa relao com a verdade: uma verdadeira felicidade ou uma felicidade verdadeira. O que a sabedoria? a felicidade na verdade, ou "a alegria que nasce da verdade". Esta a expresso que Santo Agostinho6 utiliza para definir a beatitude, a vida verdadeiramente feliz, em oposio a nossas pequenas felicidades, sempre mais ou menos factcias ou ilusrias. Sou sensvel ao fato de que a mesma palavra beatitude que Spinoza retomar, bem mais tarde, para designar a felicidade do sbio, a felicidade que no a recompensa da virtude mas a prpria virtude... A batitude a felicidade do sbio, em oposio s felicidades que ns, que no somos sbios, conhecemos comumente, ou, digamos, s nossas aparncias de felicidade, que s vezes so alimentadas por drogas ou lcoois, muitas vezes por iluses, diverso ou m f. Pequenas mendras, pequenos derivativos, remedinhos, estimulantezinhos... No sejamos severos demais. Nem sempre podemos dispens-los. Mas a sabedoria outra coisa. A sabedoria seria a felicidade na verdade. A sabedoria? uma felicidade verdadeira ou uma verdade feliz. No faamos disso um absoluto, porm. Podemos ser mais ou menos sbios, do mesmo modo que podemos ser mais ou menos loucos. Digamos que a sabedoria aponta para uma direo: a do mximo de felicidade no mximo de lucidez. 6 Confisses, X, 23. Sobre o "eudemonismo radical" de Santo Agostinho, ver E. Gilson, Introduction Vtude de saint Augustin, Vrin, 1982, pp. 1-10, 149-63. Mas esse eudemonis-mo na verdade apenas prolonga o eudemonismo grego: "Um grego, qualquer que seja a concepo que ele tenha da essncia da moralidade, no v outro fim para a atividade que no a obteno e a conservao da felicidade" (Lon Robin, La morale antique, PUF, 1963, p. 72). 7. Portanto a felicidade a meta da filosofia. Para que serve filosofar? Serve para ser feliz, para ser mais feliz. Mas, se a felicidade a meta da filosofia, no sua norma. O que entendo por isso? A meta de uma atividade aquilo a que ela tende; sua norma aquilo a que ela se submete. Quando digo que a felicidade a meta da filosofia mas no sua norma, quero dizer que no porque uma ideia me faz feliz que devo pens-la - porque muitas iluses confortveis me tornariam mais facilmente feliz do que vrias verdades desagradveis que conheo. Se devo pensar uma ideia, no porque ela me faz feliz (seno a filosofia no passaria de uma verso sofisticada, e sofstica, do mtodo Cou: trata-se de pensar "positivo", como se diz, em outras palavras ludibriar-se). No, se devo pensar uma idia porque ela me parece verdadeira. A felicidade a meta da filosofia mas no sua norma, porque a norma da filosofia a verdade, pelo menos a verdade possvel (porque nunca a conhecemos por inteiro, nem absolutamente, nem com total certeza), o que chamaria de bom grado, corrigindo Spinoza por Montaigne, a norma da ideia verdadeira dada ou possvel. Trata-se de pensar no o que me torna feliz, mas o que me parece verdadeiro - e fica a meu encargo tentar encontrar, diante dessa verdade, seja ela triste ou angustiante, o mximo de felicidade possvel. A felicidade a meta; a verdade o caminho ou a norma. Isso significa que, se o filsofo puder optar entre uma verdade e uma felicidade - felizmente, o problema nem sempre se coloca nesses termos, s s vezes -, se o filsofo puder optar entre uma verdade e uma felicidade, ele s ser filsofo, ou s ser digno de s-lo, se optar pela verdade. Mais vale uma verdadeira tristeza do que uma falsa alegria. Sobre este ltimo ponto, nem todo o mundo estar de acordo. Sem dvida vrios de vocs, na sala, estaro se dizendo que, pensando bem, entre uma verdadeira tristeza e uma falsa alegria, vocs prefeririam a falsa alegria... Vrios, mas no todos. Pois bem: dispomos aqui de uma excelente pedra de toque, para saber quem filsofo na alma e quem no . Toda definio da filosofia j acarreta uma filosofia. Do meu ponto de vista, s verdadeiramente filsofo quem ama a felicidade, como todo o mundo, mas ama mais ainda a verdade - s filsofo quem prefere uma verdadeira tristeza a uma falsa alegria. Nesse sentido, muitos so filsofos sem ser profissionais da filosofia, e melhor assim; e alguns so profissionais ou professores de filosofia sem que por isso sejam filsofos, e azar deles. O essencial no mentir, e antes de mais nada no se mentir. No se mentir sobre a vida, sobre ns mesmos, sobre a felicidade. E porque eu gostaria de no mentir que adotei o projeto que se segue. Num primeiro tempo, tentarei compreender por que no somos felizes, ou to pouco, ou to mal, ou to raramente: o que chamarei de a felicidade malograda7 , ou as armadilhas da esperana. Num segundo tempo, a fim de tentar sair dessa armadilha, exporei uma crtica da esperana, desembocando no que chamarei de a felicidade em ato. Enfim, num terceiro tempo, que poderia se chamar a felicidade desesperadamente, terminarei evocando o que poderia 7 No original, bonheur manque. (N. do T.) 8. ser uma sabedoria do desespero, num sentido que especificarei e que seria tambm uma sabedoria da felicidade, da ao e do amor. I - A felicidade malograda, ou as armadilhas da esperana Por que a sabedoria necessria? No fundo, vocs poderiam me fazer ou se fazer essa pergunta. Precisamos da sabedoria? A tradio responde que sim, mas o que nos prova que ela tem razo? Nossa infelicidade. Nossa insatisfao. Nossa angstia. Por que a sabedoria necessria? Porque no somos felizes. Se h nesta sala pessoas plenamente felizes, evidente que nada tenho a lhes dar, pelo menos se a felicidade delas uma felicidade na verdade: elas so mais sbias que eu. Autorizo-as de bom grado a deixar a sala. Mas por que teriam vindo? O que um sbio teria a fazer com um filsofo? Por que a sabedoria necessria? Porque no somos felizes. Isso coincide com uma frmula de Camus, que tinha o dom de dizer simplesmente coisas graves e fortes: "Os homens morrem, e no so felizes." Acrescentarei: por isso a sabedoria necessria. Porque morremos e porque no somos felizes. Se no morrssemos, mesmo sem ser felizes, teramos tempo de aguardar, diramos a ns mesmos que a felicidade acabaria chegando, nem que daqui a alguns sculos... Se fssemos plenamente felizes, aqui e agora, poderamos talvez aceitar morrer: esta vida, tal como , em sua finitude, em sua brevidade, bastaria para nos satisfazer... Se fssemos felizes sem ser imortais, ou imortais sem ser felizes, nossa situao seria aceitvel. Mas ser ao mesmo tempo mortal e infeliz, ou se saber mortal sem se julgar feliz, uma razo forte para tentar se safar, para filosofar de verdade, como dizia Epicuro8 , em suma, para tentar ser sbio. Isso tambm vai ao encontro de outra frmula, relatada por Malraux. Certo dia, Malraux encontra um velho padre catlico; e o que fascina o livre- pensador que era Malraux, no personagem do velho padre, principalmente o que ele supe a justo ttulo que seja sua experincia de confessor. Malraux interroga-o: padre, diga-me o que descobriu em toda essa sua vida de confessor, o que lhe ensinou essa longa intimidade com o segredo das almas... O velho padre reflete alguns instantes, depois responde a Malraux (eu cito de memria): 'Vou lhe dizer duas coisas. A primeira que as pessoas so muito mais infelizes do que se imagina. A segunda que no h grandes pessoas." Acrescentarei mais uma vez: por isso a sabedoria necessria, por isso preciso filosofar. Porque somos muito mais infelizes, ou muito menos felizes, do que os outros imaginam; e porque no h grandes pessoas. meu ponto de partida: no somos felizes, ou no o somos suficientemente, ou demasiado raramente. Mas por qu? 8 Sentence vaticane 54 (trad. fr. M. Conche, p. 261). 9. No somos felizes, s vezes, porque tudo vai mal. Quero dizer com isso que os que no eram felizes em Ruanda ou na ex-Iugoslvia, nos piores momentos dos massacres, ou os que no so felizes hoje no Timor Leste ou, mais perto de ns, os que sofrem a misria, o desemprego, a excluso, os que so afetados por uma doena grave ou tm um prximo morrendo..., que estes no sejam felizes, compreendo facilmente, e a maior urgncia, para eles, sem dvida no filosofar. No digo que no cabe filosofar no Timor Leste ou num servio de cancerologia, mas diria que no a principal urgncia: antes preciso sobreviver e lutar, ajudar e tratar. Mas, se no somos felizes, nem sempre porque tudo vai mal. Tambm acontece, e com maior freqncia, no sermos felizes quando tudo vai mais ou menos bem, pelo menos para ns. Penso em todos os momentos em que nos dizemos "tenho tudo para ser feliz". S que, como vocs notaram to bem quanto eu, no basta ter tudo para ser feliz... para s-lo de fato. O que nos falta para ser feliz, quando temos tudo para ser e no somos? Falta-nos a sabedoria. Sei perfeitamente que os esticos (e os epicurianos no eram menos ambiciosos) pretendiam que o sbio feliz em toda e qualquer circunstncia, independentemente do que lhe possa acontecer. Sua casa acaba de pegar fogo? No tem importncia: se voc tem sabedoria, voc feliz! "Mas na minha casa estavam minha mulher, meus filhos... Morreram todos!" No tem importncia: se voc tem sabedoria, voc feliz. Pode ser... Confesso que me sinto incapaz dessa sabedoria. No me sinto nem mesmo capaz de desej-la verdadeiramente. Alis, os prprios esticos reconheciam ser possvel que nenhum sbio, no sentido em que empregavam a palavra, jamais tivesse existido... Essa sabedoria, absoluta, desumana ou sobre-humana, no passa de um ideal que nos ofusca pelo menos tanto quanto nos ilumina. Sou como Montaigne: "Esses humores transcendentes me assustam, como os lugares altos e inacessveis."9 Eu me contentaria perfeitamente com uma sabedoria menos ambiciosa ou menos assustadora, com uma sabedoria de segunda linha, que me permitisse ser feliz no quando tudo vai mal (no sou capaz disso e no o peo tanto assim), mas quando tudo vai mais ou menos bem, como acontece - nos pases um pouco mais favorecidos pela histria e para muitos de ns - com maior freqncia. Uma sabedoria da vida cotidiana; se quiserem, uma sabedoria Montaigne: uma sabedoria para todos os dias e para todos ns... "To sbio quanto queira", escreve ainda Montaigne, "mas afinal um homem: o que h de mais frgil, mais miservel e mais nulo? A sabedoria no fortalece nossas condies naturais..."10 No uma razo para viver de uma maneira qualquer, nem para renunciar felicidade. O que nos falta para ser feliz, quando temos tudo para s-lo e no somos? O que nos falta a sabedoria, em outras palavras, saber viver, no no sentido 9 Essais, III, 13 (p. 1115 da ed. Ir. Villey-Saulnier, PUF, 1978). 10 Essais, II, 2 (trad. bras.: Os ensaios, II, So Paulo, Martins Fontes, 2000). 10. em que se fala do savoir-vivre como boa educao, mas no sentido profundo do termo, no sentido em que Montaigne dizia que "no h cincia to rdua quanto a de saber viver bem e naturalmente esta vida"11 . Essa cincia no uma cincia no sentido moderno do termo. antes uma arte ou um aprendizado: trata-se de aprender a viver; apenas isso filosofar de verdade"(11). Aprender a viver? Seja. Mas ento no podemos evitar o verso de Aragon, to lindamente popularizado por Brassens: "Le temps d'apprendre vivre il est dj trop tard..."12 *(asterisco) Quando eu era professor no terceiro colegial, no dia dessa clebre primeira aula do ano, em que era preciso explicar aos alunos o que a filosofia, eu costumava citar a definio de Epicuro pela qual comecei esta conferncia, e depois este verso de Aragon: Le temps dapprendre vivre il est dj trop tard (eu ainda no sabia que uma idia prxima se encontra em Montaigne: "Ensinam-nos a viver quando a vida passou..."13 ). E eu lhes dizia: " isso: filosofar serve para aprender a viver, se possvel antes que seja tarde demais, antes que seja absolutamente tarde demais." Por fim acrescentava, com Epicuro, que nunca "nem cedo demais nem tarde demais" para filosofar14 , j que nunca nem cedo nem tarde demais para "assegurar a sade da alma"15 , em outras palavras para aprender a viver ou para ser feliz. Temos uma idia de felicidade. sempre a idia de Pascal: todo homem quer ser feliz, inclusive o que vai se enforcar. Se ele se enforca, para escapar da infelicidade; e escapar da infelicidade ainda se aproximar, pelo menos tanto quanto possvel, de uma certa felicidade, nem que ela seja negativa ou o prprio nada... No se escapa do princpio de prazer: querer escapar-lhe (pela morte, pelo ascetismo...) ficar submetido a ele. Portanto temos um desejo de felicidade, e esse desejo frustrado, decepcionado, ferido. Mais um verso de Aragon, no mesmo poema: "Dites 11 Essais, III, 13 (p. 1110). 12 Quando aprendemos a viver, j tarde demais... (N. do T.) 11 Cf. Essais, I, 26 (" a filosofia quem nos ensina a viver..."). (Trad. bras.: Os ensaios, I, So Paulo, Martins Fontes, 2000.) 13 Os ensaios, I, 26. O pensamento de Montaigne menos geral, porm, e menos sombrio, que o de Aragon: ele quer dizer simplesmente que um erro no ensinar filosofia desde a infncia: "Cem escolares pegaram varola antes de chegar aula de Aristteles sobre a temperana." 14 Lettre Mnce, 122 (trad. fr. M. Conche, p. 217). 15 Ibid. 11. ces mots 'Ma vie' et retenez vos larmes..."16 A felicidade nos falta; a felicidade est perdida. Por qu? Temos de partir do desejo. No apenas porque "o desejo a prpria essncia do homem", como escrevia Spinoza17 , mas tambm porque a felicidade o desejvel absoluto, como mostra Aristteles18 , e enfim porque ser feliz - pelo menos numa primeira aproximao - ter o que desejamos. Encontramos esta ltima idia em Plato, em Epicuro, em Kant e, no fundo, em cada um de ns. Voltarei a isso mais adiante. O que o desejo? A resposta que gostaria de evocar em primeiro lugar, e que vai atravessar toda a histria da filosofia, formulada por Plato num dos seus livros mais famosos, O banquete. Como seu ttulo indica, trata-se de uma refeio entre amigos, no caso para festejar o sucesso de um deles num concurso de tragdia. Como eles sabem que quando se janta entre amigos o principal prazer no a qualidade dos pratos mas a qualidade da conversa - quanto comida, os criados cuidam dela -, resolvem escolher um bom tema de discusso: o amor. Cada um vai dar sua definio e fazer seu elogio do amor. Como no meu tema, s retenho aqui a definio de Scrates, por cuja boca Plato costuma se exprimir. O que o amor? Para resumir, Scrates d a seguinte resposta: o amor desejo, e o desejo falta. E Plato refora: "O que no temos, o que no somos, o que nos falta, eis os objetos do desejo e do amor."19 Essa idia vai at os dias de hoje. Por exemplo, em Sartre: "O homem fundamentalmente desejo de ser" e "o desejo falta"20 . o que nos fada ao nada ou caverna, digamos ao idealismo: o ser est alhures, o ser o que falta! A est por que a felicidade, necessariamente, perdida. Na medida em que Plato tem razo, ou na medida em que somos platnicos (mas no sentido de um platonismo espontneo), na medida em que desejamos o que nos falta, impossvel sermos felizes. Por qu? Porque o desejo falta, e porque a falta um sofrimento. Como voc pode querer ser feliz se lhe falta, precisamente, aquilo que voc deseja? No fundo, o que ser feliz? Evoquei a resposta que encontramos em Plato, Epicuro, Kant, em qualquer um: ser feliz ter o que se deseja. No necessariamente tudo o que se deseja, porque nesse caso fcil compreender que nunca seremos felizes e 16 Digam as palavras "minha vida" e contenham as lgrimas... (N. do T.) 17 thique, III, def. 1 das afeies (trad. fr. Appuhn, G.-F., 1965, p. 196). 18 thique Nicomaque, I, 1-5 (1094 a- 1097 b) e X, 6 (1176 a 30 -1177 a 10). Ver tambm o verbete "Bonheur" [felicidade] 19 Le banquet, 200 e (trad. fr. E. Chambry, G.-F.). 20 L'tre et le nant, Gallimard, 1943, reed. 1969, p. 652. 12. que a felicidade, como diz Kant, seria um ideal no da razo mas da imaginao21 . Ser feliz no ter tudo o que se deseja, mas pelo menos uma boa parte, talvez a maior parte, do que se deseja. Seja. Mas, se o desejo falta, s desejamos, por definio, o que no temos. Ora, se s desejamos o que no temos, nunca temos o que desejamos, logo nunca somos felizes. No que o desejo nunca seja satisfeito, a vida no to difcil assim. Mas que, assim que um desejo satisfeito, j no h falta, logo j no h desejo. Assim que um desejo satisfeito, ele se abole como desejo: "O prazer", escrever Sartre, " a morte e o fracasso do desejo."22 E, longe de ter o que desejamos, temos ento o que desejvamos e j no desejamos. Como ser feliz no ter o que desejvamos mas ter o que desejamos, isso nunca pode acontecer (j que, mais uma vez, s desejamos o que no temos). De modo que ora desejamos o que no temos, e sofremos com essa falta, ora temos o que, portanto, j no desejamos -e nos entediamos, como escrever Schopenhauer, ou nos apressamos a desejar outra coisa. Lucrcio, bem antes de Schopenhauer, dissera o essencial: "Giramos sempre no mesmo crculo sem poder sair... Enquanto o objeto de nossos desejos permanece distante, ele nos parece superior a todo o resto; se ele nosso, passamos a desejar outra coisa, e a mesma sede da vida nos mantm em permanente tenso..."23 No h amor feliz: na medida em que o desejo falta, a felicidade perdida. Alguns exemplos para ilustrar esse ponto. Darei quatro, de gravidade desigual. Comeo pelo mais leve. o exemplo da tarde de Natal. Todas as crianas so diferentes, mas h muitas, em nossos pases ricos, que desde o incio do ms de novembro, para no dizer desde o fim do ms de outubro, escolhem num catlogo de vendas por correspondncia, ou na vitrine de uma loja, o brinquedo que vo pedir no Natal. Elas o desejam tanto, esse brinquedo lhes falta tanto, que impossvel serem felizes um s instante at o Natal. Estamos no fim de outubro: a felicidade diferida por dois meses. Por sorte, as crianas esquecem de vez em quando que esse brinquedo lhes falta; ento acontece-lhes s vezes serem felizes por inadvertncia. Mas, assim 21 Fondements de la mtaphysique des moeurs (trad. fr. Delbos-Philonenko, Vrin, 1980, p. 91). Sobre a idia de felicidade em Kant, ver a Critique de la raison pure, "Do ideal do soberano bem" (especialmente pp. 543-5 da trad. fr. Tremesaygues e Pacaud, PUF): "A felicidade a satisfao de todas as nossas propenses, seja extensiva, quanto variedade destas, seja intensiva, quanto ao grau, seja protensiva, quanto durao..." Ver tambm Critique de la raison pratique, "Determinao do conceito do soberano bem" (especialmente p. 134 da trad. fr. F. Picavet, PUF, 1971): "A felicidade o estado no mundo de um ser razovel, a quem, em todo o curso da sua existncia, tudo acontece de acordo com seu desejo e sua vontade." 22 L'tre et le nant, p. 467. E por isso que "o desejo est fadado ao fracasso" (ibid., p. 466). 23 De rerum natura, III, 1080-1084 (trad. fr. Ernout, Les Belles Lettres, 1968). 13. que pensam no brinquedo, j no possvel: ele lhes faz muita falta! A criana se diz: "Como eu seria feliz se o tivesse ou quando o tiver!" Ora, ela no o tem e, portanto, no feliz. A criana est separada da felicidade por sua espera. Chega a manh de Natal... Quando tudo corre bem, quando os pais puderam comprar o presente, quando o pai consegue mont-lo, quando o manual inteligvel, quando se lembraram de comprar as pilhas, etc, a manh de Natal faz parte dos momentos mais fceis de viver. Se bem que... Bom, digamos que h coisas piores e que logo vamos nos dar conta disso. E que, depois da manh de Natal, temos, inevitavelmente, a tarde de Natal. E a algo comea obscuramente a se corromper, a se anuviar, a se deteriorar... A criana fica mais nervosa, rabugenta, contrariada, como que descontente. Os pais por sua vez se irritam: "O que foi? No est contente? No era o que voc queria?" A criana responde: "Sim, exatamente o que eu queria..." E ento? Como no leu Plato, a criana na verdade no sabe responder. Mas, se tivesse lido, diria aos pais: "O que estou compreendendo, sabe, que muito fcil desejar o brinquedo que no tenho, o que me falta, e pensar que eu seria feliz se o tivesse... Mas que muito mais difcil desejar o brinquedo que eu tenho, o que j no me falta! No fundo, o que Plato explica: o desejo falta. O brinquedo que voc me deu j no me faz falta, pois eu o tenho, e portanto eu j no o desejo... Como eu poderia ser feliz? No tenho o que desejo, mas simplesmente o que eu desejava..." Como a criana no leu Plato e como boazinha, ela se contenta com brincar como pode; para agradar os pais, finge estar feliz... A tarde passa, depois o jantar... As crianas vo dormir e, quando voc vai lhes fazer os carinhos costumeiros, o menino pergunta: "Quando o Natal, papai?" O pai fica meio desarmado: "U, que histria essa... Foi hoje, o Natal!" "Eu sei", responde o garoto, "estou falando do Natal que vem..." E comea tudo outra vez... O segundo exemplo mais grave: o exemplo do desemprego. Todos compreendem que o desemprego uma desgraa, e ningum se espantaria se um desempregado lhe dissesse: "Como eu seria feliz se arranjasse trabalho!" O desemprego uma infelicidade. Mas onde j se viu o trabalho ser uma felicidade? Quando voc est desempregado, principalmente se o desemprego dura muito, voc pensa: "Como eu seria feliz se tivesse um trabalho!" Mas isso s vale para quem no tem. Para o desempregado, o trabalho poderia ser uma felicidade; mas, quando voc tem um trabalho, o trabalho no uma felicidade: o trabalho um trabalho. Terceiro exemplo, o mais trgico dos quatro. um exemplo pessoal, mas no no sentido de que eu tenha vivido a tragdia. uma lembrana da infncia, e sem dvida a primeira ideia filosfica que tive - uma ideia bem ingnua, como convm a uma primeira ideia. Eu devia ter sete ou oito anos. Vejo um cego. J tinha visto outros antes, mas entendo pela primeira vez o que ser cego, o que isso significa. Fao como fazem as crianas: fecho os olhos alguns segundos, caminho s cegas, parece-me atroz... Digo comigo 14. mesmo: "Se esse cego recuperasse a viso, ele seria loucamente feliz, simplesmente por enxergar! E eu, que no sou cego", comentava c com meus botes, "devia ser loucamente feliz por enxergar!" E eu achava - a ideia ingnua que evoquei - ter descoberto o segredo da felicidade: eu seria doravante perpetuamente feliz, j que a viso no me faltava, j que eu via! Tentei... No funcionou. Porque, to certamente quanto ser cego uma infelicidade, o fato de enxergar nunca bastou para fazer a felicidade de quem quer que seja. Todo o trgico da nossa condio se resume nisto: a viso s pode fazer a felicidade de um cego. Ora, ela no faz sua felicidade, j que ele cego e a viso lhe falta; e no faz a nossa, porque enxergamos e, por conseguinte, a viso no nos falta. No h viso feliz, em todo caso no h viso que baste felicidade. ltimo exemplo, mais leve: o do amor, do casal. Lembrem-se de Proust em Em busca do tempo perdido: "Albertine presente, Albertine desaparecida..." Quando ela no est presente, ele sofre atrozmente: est disposto a tudo para que ela volte. Quando ela est presente, ele se entedia: est disposto a tudo para que ela v embora. No h nada mais fcil do que amar quem no temos, quem nos falta: isso se chama estar apaixonado, e est ao alcance de qualquer um. Mas amar quem temos, aquele ou aquela com quem vivemos, outra coisa! Quem no viveu essas oscilaes, essas intermitncias do corao? Ora amamos quem no temos, e sofremos com essa falta: o que se chama de um tormento amoroso; ora temos quem j no nos falta e nos entediamos: o que chamamos um casal. E raro que isso baste felicidade. o que Schopenhauer, como discpulo genial de Plato, resumir bem mais tarde, no sculo XIX, numa frase que costumo dizer que a mais triste da histria da filosofia. Quando desejo o que no tenho, a falta, a frustrao, o que Schopenhauer chama de sofrimento. E quando o desejo satisfeito? J no sofrimento, uma vez que j no h falta. No felicidade, uma vez que j no h desejo. o que Schopenhauer chama de tdio, que a ausncia da felicidade no lugar mesmo da sua presena esperada. Voc pensava: "Como eu seria feliz se..." E ora o se no se realiza, e voc infeliz; ora ele se realiza, e voc nem por isso feliz: voc se entedia ou deseja outra coisa. Donde a frase que eu anunciava e que resume to tristemente o essencial: "A vida oscila pois, como um pndulo, da direita para a esquerda, do sofrimento ao tdio."24 Sofrimento porque eu desejo o que no tenho e porque sofro com essa falta; tdio porque tenho o que, por conseguinte, j no desejo. "H duas catstrofes na existncia", dizia George Bernard Shaw: "a primeira quando nossos desejos no so satisfeitos; a segunda quando so." Frustrao ou decepo. Sofrimento ou tdio. Inanio ou inanidade. o mundo do Eclesiastes: tudo vaidade e correr atrs do vento. 24 Le monde comme volont et comme reprsentation, IV, 57, trad. fr. Burdeau- Roos, PUF, 1978, p. 394. 15. Porque o desejo falta e, na medida em que falta, a felicidade necessariamente perdida. o que eu chamo de as armadilhas da esperana - sendo a esperana a prpria falta (voltarei ao assunto) no tempo e na ignorncia. S esperamos o que no temos. Tentem um pouco, s para ver, ter esperana de estarem sentados! No vo conseguir, simplesmente porque esto sentados. S esperamos o que no temos, e por isso mesmo somos tanto menos felizes quando mais esperamos ser felizes. Estamos constantemente separados da felicidade pela prpria esperana que a busca. A partir do momento em que esperamos a felicidade ("Como eu seria feliz se..."), no podemos escapar da decepo: seja porque a esperana no satisfeita (sofrimento, frustrao), seja porque ela o (tdio ou, mais uma vez, frustrao: como s podemos desejar o que falta, desejamos imediatamente outra coisa e por isso no somos felizes...). o que Woody Allen resume numa frmula: "Como eu seria feliz se fosse feliz". impossvel portanto que ele o seja algum dia, j que est constantemente esperando vir a s-lo. tambm o que Pascal, num nvel de genialidade no mnimo comparvel, resume a seu modo nos Pensamentos. Trata-se de um fragmento de umas vinte linhas, consagrado ao tempo. Pascal explica que jamais vivemos para o presente: vivemos um pouco para o passado, explica ele, e principalmente muito, muito, para o futuro. O fragmento termina da seguinte maneira: "Assim, nunca vivemos, esperamos viver; e, dispondo- nos sempre a ser felizes, inevitvel que nunca o sejamos."25 Que fazer? Como escapar desse ciclo da frustrao e do tdio, da esperana e da decepo? H vrias estratgias possveis. Em primeiro lugar, o esquecimento, a diverso, como diz Pascal. Pensemos rpido em outra coisa! Faamos como todo o mundo: finjamos ser felizes, finjamos no nos entediar, finjamos no morrer... No vou me deter nisso. uma estratgia no-filosfica, pois, em filosofia, trata-se justamente de no fingir. Segunda estratgia possvel: o que chamarei de fuga para a frente, de esperanas em esperanas. Mais ou menos como esses jogadores da loto, que todas as semanas se consolam de terem perdido com a esperana de que ganharo na semana seguinte... Se isso os ajuda a viver, no sou eu quem vai critic-los. Mas, aqui tambm, vocs ho de convir que isso no filosofia, e muito menos sabedoria. A terceira estratgia prolonga a precedente, mas mudando de nvel. J no uma fuga para a frente, de esperanas em esperanas, mas antes um salto, como diria Camus, numa esperana absoluta, religiosa, que no 25 Pensamentos, 47-172. Ver tambm a oitava Lettre aux Roannez [Carta aos roannenses], de dezembro de 1656 (p. 270 da ed. Lafuma, Seuil, col. "L'Intgrale", 1963): "O mundo est to inquieto que quase nunca pensamos no presente e no instante em que vivemos; mas no que viveremos. De sorte que estamos sempre no estado de viver no futuro, e nunca de viver agora. Ou ainda o fragmento 148-425 dos Pensamentos: Esperamos que nossa espera no sofra uma decepo nesta ocasio como na outra; e, assim, como o presente nunca nos satisfaz, a experincia nos logra, e de infelicidade em infelicidade nos leva at a morte, que sua culminncia eterna. 16. suscetvel, acredita-se, de ser decepcionada (j que, se no h vida depois da morte, no haver mais ningum para perceb-lo). No fundo, a estratgia de Pascal. O mesmo Pascal que explica to bem que, "dispondo- nos sempre a ser felizes, inevitvel que nunca o sejamos", o que escreve em outro fragmento dos Pensamentos: "S h bem nesta vida na esperana de outra vida."26 E o salto religioso: esperar a felicidade para depois da morte. Ou, em termos teolgicos: passar da esperana (como paixo) esperana (como virtude teologal: porque ela tem Deus mesmo por objeto). Essa estratgia tem suas cartas de nobreza filosfica... Mas preciso, alm do mais, ter f, e vocs sabem que no a tenho. Ou estar disposto a apostar a vida, como diria Pascal, e a isso eu me recuso: o pensamento deve se submeter ao mais verdadeiro, ou ao mais verossmil, e no ao mais vantajoso. Portanto tive de tentar inventar, ou reinventar, outra estratgia. No mais o esquecimento ou a diverso, no mais a fuga para a frente de esperanas em esperanas, no mais o salto numa esperana absoluta, mas, ao contrrio, uma tentativa de nos libertar desse ciclo da esperana e da decepo, da angstia e do tdio, uma tentativa - j que toda esperana sempre decepcionada - de nos libertar da prpria esperana. o que me leva a meu segundo ponto... II - Crtica da esperana, ou a felicidade em ato No o caso de, em to pouco tempo, fazer aqui histria da filosofia, nem de penetrar de fato no pensamento de cada um dos autores que acabo de evocar. Permitam-me, para ser rpido, tom-los juntos, em bloco, e de uma forma um tanto brusca, como se faz necessrio. Parece-me que, apesar de toda a admirao que tenho por eles, Plato, Pascal, Schopenhauer ou Sartre foram um pouco a mo, como dizemos familiarmente... No somos infelizes a esse ponto. Que sejamos menos felizes do que os outros imaginam ou que finjamos s-lo, evidente; mas, apesar de tudo, no to infelizes quanto deveramos ser, se Plato, Pascal, Schopenhauer ou Sartre tivessem razo, parece-me, em todo caso nem sempre. E que entre a felicidade esperada ("Como eu seria feliz se...") e a felicidade, em outras palavras, entre a esperana e a decepo, entre o sofrimento e o tdio, h uma ou duas pequenas coisas que Plato, Pascal, Schopenhauer ou Sartre esquecem, ou cuja importncia eles subestimam gravemente. Essas duas pequenas coisas so o prazer e a alegria. Ora, quando h prazer? Quando h alegria? H prazer, h alegria, quando desejamos o que temos, o que fazemos, o que : h prazer, h alegria 26 Pensamentos, 427-194. Ver tambm o clebre argumento da aposta, no fragmento 418-233. 17. quando desejamos o que no falta! Dizendo de outra maneira: h prazer, h alegria todas as vezes que Plato est errado27 . O que ainda no uma refutao do platonismo - o que nos prova que o prazer ou a alegria tm razo? -, mas constitui, apesar de tudo, uma motivao forte para no sermos platnicos ou para resistirmos a Plato. Alguns exemplos... Voc est passeando no campo, faz calor, voc est com sede. Voc no pensa "Como eu seria feliz se pudesse tomar uma cerveja bem gelada", voc no tolo a esse ponto, mas sim "Que prazer seria tomar uma cerveja bem gelada!" Numa curva da estrada, voc d com uma pousada, onde lhe servem uma cerveja geladinha. Voc comea a tom-la... E a sombra de Schopenhauer, sarcstica, murmura no seu ouvido: "Pois , eu sei, no passa disso... A mesma cerveja to desejvel, enquanto lhe faltava, j o est entediando..." E voc lhe responde: "Nada disso, imbecil! Como bom tomar uma cerveja bem gelada quando a gente tem sede!" Voc est fazendo amor com o homem ou a mulher que voc ama, ou que voc deseja, e a sombra de Schopenhauer, que segura a vela, murmura, sarcstica, em seu ouvido: " - Pois , eu sei, sempre a mesma coisa: no passa disso... Voc pensava 'Como gostaria de possu-la, como seria feliz se a possusse!' Sim, enquanto ela lhe faltava, enquanto ele lhe faltava. Mas, agora que voc a tem, ela no lhe falta mais, e voc j comea a se entediar... - Que nada, imbecil! o contrrio: como bom fazer amor quando se tem vontade, com a pessoa que se deseja, tanto mais quando ela no nos falta, quando est aqui, quando se entrega, maravilhosamente presente, maravilhosamente oferecida, maravilhosamente disponvel!" Sinceramente, se s pudssemos desejar o que nos falta, aquele ou aquela que no est presente, nossa vida sexual - em particular a nossa, senhores - seria ainda mais complicada do que ... E como eu poderia ter prazer em falar a vocs, como vocs talvez possam ter em me ouvir, se s pudssemos desejar o que nos falta? Para falar a vocs, eu tenho de desejar cada palavra que pronuncio, e no, como responderia provavelmente Plato, a palavra que pronunciarei daqui a pouco - tentem falar desejando a palavra que vo pronunciar daqui a pouco e me contem o que aconteceu... Se tenho prazer em falar com vocs porque desejo falar com vocs e porque isso no me falta de modo nenhum, j que exatamente o que estou fazendo, aqui e agora! 27 Pelo menos o Plato do Banquete, aquele para o qual s podemos desejar "o que no nem atual nem presente", em outras palavras o que falta. Sem reabilitar totalmente o prazer, Plato lhe atribuir porm um lugar (distinguindo "prazeres puros" e "impuros") na vida feliz: ver especialmente o Filebo e a Repblica (principalmente livros IV e IX). 18. Poderia multiplicar os exemplos. O prazer do passeio estar onde desejamos estar, dar os passos que estamos dando, desejar d-los, e no desejar estar alhures ou efetuar outros passos, os que daremos mais tarde ou ali adiante... O prazer da viagem, do mesmo modo e como dizia Baudelaire, partir por partir. Triste viajante o que s espera a felicidade na chegada! Qual o erro comum - apesar de tudo o que os separa - de Plato, Pascal, Schopenhauer ou Sartre? O erro deles o seguinte: eles confundiram o desejo com a esperana. Dou como prova que, no Banquete, quando Scrates diz que s desejamos o que no temos, o que no , o que nos falta, ele imagina que um dos seus interlocutores lhe objeta mais ou menos o seguinte: "Mas que nada! Eu, por exemplo, estou gozando de boa sade e desejo a sade. Portanto eu desejo o que no me falta." Scrates, com a sutileza de esprito que conhecemos, logo encontra a resposta: Voc goza de boa sade, claro, e deseja a sade; mas no a mesma sade que voc tem e que voc deseja. Voc est gozando de boa sade agora, e isso voc no pode desejar, j que a tem; o que voc deseja a sade para amanh, para mais tarde, a boa sade por vir, e esta voc no possui: por isso voc a deseja!28 confundir o desejo com a esperana. Ora, so duas coisas diferentes, ligadas, claro, mas diferentes. Mostrei-lhes h pouco que vocs no podem esperar sentar-se e me ouvir, nem eu esperar falar a vocs, j que estou falando. Mas, se vocs no podem esperar sentar-se, vocs podem desejar, e alis todos vocs desejam. Vocs talvez pensem: "Ele est exagerando! O que ele sabe dos meus desejos?" Sei que vocs esto sentados, coisa a que ningum os obriga. Portanto se sentaram voluntariamente, porque desejam estar sentados. Portanto desejam o que no lhes falta. De modo que somos vrias centenas aqui a refutar Plato em ato - j que ele diz que s desejamos o que nos falta e que somos vrias centenas, nesta sala, a desejar ficar sentados, o que evidentemente no nos falta. Alguns de vocs talvez achem que gostariam de se levantar e ir embora, que no lhes falta vontade para tal, mas que nos "Lundis Philo" isso no coisa que se faa: somos gente educada, ouvimos o conferencista at o fim... Eu responderia que os motivos que vocs tm de ficar sentados problema seu. Seja por educao, de fato, seja por cansao, por gosto da comodidade ou por causa do interesse apaixonado que tm por minhas palavras, isso no me diz respeito. Tudo o que constato que vocs permanecem voluntariamente sentados, que ningum os obriga a estar sentados; em outras palavras, que vocs ficam sentados porque desejam (seno j estariam de p ou se levantando) e que, portanto, desejam o que no lhes falta. E, se tenho tanto prazer assim em falar a vocs, pela mesma razo: desejo o que fao, aqui e agora, fao o que desejo! Isso vale para qualquer ao. Ai do corredor que s deseja as passadas por vir, no as que ele d, do militante que s deseja a vitria, no o combate, 28 Ver Le banquet, 200 b-e. 19. do amante que s deseja o orgasmo, no o amor! Mas, se assim fosse, por que e como ele correria? militaria? faria amor? Todo ato necessita de uma causa prxima, eficiente e no final, e o desejo, como notava Aristteles, a nica fora motriz29 . por isso que podemos ser felizes, por isso que s vezes o somos: porque fazemos o que desejamos, porque desejamos o que fazemos! o que chamo de felicidade em ato, que outra coisa no seno o prprio ato como felicidade: desejar o que temos, o que fazemos, o que - o que no falta. Em outras palavras, gozar e regozijar-se. Mas essa felicidade em ato ao mesmo tempo uma felicidade desesperada, pelo menos em certo sentido: uma felicidade que no espera nada. De fato, o que a esperana? um desejo: no podemos esperar o que no desejamos. Toda esperana um desejo; mas nem todo desejo uma esperana. O desejo o gnero prximo, como diria Aristteles, do qual a esperana uma espcie. Resta encontrar a ou as diferenas especficas, isto , a ou as caractersticas que viro especificar a esperana no campo mais geral do desejo. Vou lhes propor trs caractersticas da esperana, trs diferenas especficas. Colocadas uma em seguida da outra, elas constituiro uma definio da esperana. Primeira caracterstica. O que a esperana? Muitos respondero que um desejo referente ao futuro. Foi o que pensei por muito tempo, e que muitas vezes verdade. Mas no o caso de toda esperana nem, como veremos, s da esperana; portanto esta no pode servir de caracterstica definicional. A primeira caracterstica que reterei outra: uma esperana um desejo referente ao que no temos, ou ao que no , em outras palavras, um desejo a que falta seu objeto. o desejo segundo Plato. E de fato o motivo pelo qual, na maioria das vezes, a esperana se refere ao futuro: porque o futuro nunca est aqui, porque do futuro, por definio, no temos o gozo efetivo. por isso que esperamos: esperar desejar sem gozar. Segunda caracterstica. Eu dizia que a esperana se refere na maioria das vezes ao futuro... Na maioria das vezes, sim, mas nem sempre. Podemos tambm esperar algo que no est por vir: a soluo pode se referir ao presente, ou at, paradoxalmente, ao passado. Eu tomaria um exemplo religioso. Quantos esperam que Deus exista (o que pertence ao presente) e 29 Ver De anima, II, 3, 414 b 1-5, e sobretudo III, 10, 433 a 20 b 30 (trad. Fr. Tricot, Vrin, 1982, PP. 81 e 204-7). Claro, ser necessrio reler esse texto de um ponto de vista no-finalista (e, portanto, nessa medida, no- aristotlico), por exemplo do ponto de vista de Spinoza (ver especialmente tica, IV, Prefcio: O que chamamos de causa final nada mais alis que o apetite humano na medida em que considerado como o princpio ou a causa primitiva de uma coisa, [...] e esse apetite na realidade uma causa eficiente). 20. que Cristo tenha ressuscitado (o que pertence ao passado)? Mas isso nos levaria longe demais. Tomemos um exemplo mais simples. Imagine que seu melhor amigo more em Nova York. Ele escreveu uma carta, que voc recebeu h quinze dias, na qual contava que no estava passando bem, que estava meio preocupado, que ia consultar um mdico... A carta no era propriamente alarmante... Voc deixa passar uns oito dias, depois manda- lhe uma carta: "Espero que voc esteja melhor." No "que voc melhore". Ele escreveu h duas semanas; entrementes, deve ter ido ao mdico, tomado remdios, deve estar curado ou se curando... Voc escreve: "Espero que voc esteja melhor." uma esperana, e se refere ao presente. Seu amigo responde que foi de fato ao mdico, mas que no melhorou, que o prprio mdico est preocupado, que ele diagnosticou um problema cardaco grave: "Vou ser operado amanh", escreve seu amigo, "uma operao de peito aberto..." Preocupadssimo agora, voc responde imediatamente, por fax ou e-mail. Mas passaram-se dois dias para a carta dele chegar de Nova York. Ele dizia: "Vou ser operado amanh." Quando voc recebe a carta, ele tinha sido operado na vspera. Voc escreve: "Espero que a operao tenha corrido bem." uma esperana, e se refere ao passado. No estou jogando com as palavras. Imagine que se trate de fato do seu melhor amigo, ou do seu filho, da sua filha, no s uma esperana como a esperana mais forte que voc tem nesse momento. "Tomara que a operao tenha corrido bem!", voc se diz. "Como eu ficarei feliz se a operao tiver corrido bem!" No seu filho, no sua filha, nem mesmo seu melhor amigo. A operao correu mal. Ele morreu. Voc escreve viva: "Espero que ele no tenha sofrido." uma esperana, e se refere ao passado. Essas pequenas experincias de pensamento me interessam, porque elas me permitem formular a seguinte pergunta: como que no podemos esperar sentar (o que pertence ao presente), se podemos esperar que nosso amigo esteja melhor (o que tambm pertence ao presente)? Como que no podemos esperar ter entrado neste anfiteatro (o que pertence ao passado), se podemos esperar que a operao tenha sido um sucesso (o que tambm pertence ao passado)? Por que h esperana num caso e no no outro, se a orientao temporal a mesma? A resposta simples: que sabemos perfeitamente que estamos sentados e que entramos nesta sala, ao passo que no sabemos se nosso amigo vai melhor ou se a operao foi um sucesso. Num caso, h saber, conhecimento, e nenhuma esperana possvel; no outro, h ignorncia, e a esperana, a partir do momento em que h desejo, praticamente inevitvel. Donde minha segunda caracterstica da esperana: uma esperana um desejo que ignora se foi ou ser satisfeito. Eu dizia: esperar desejar sem gozar. Posso acrescentar: esperar desejar sem saber. 21. por isso que, mais uma vez, a esperana se refere na maioria das vezes ao futuro: porque o futuro, na maioria das vezes, desconhecido. Se for conhecido, j no ser objeto de uma esperana. Lembrem-se do eclipse deste vero. Oito dias antes, vocs podiam esperar v-lo em boas condies (se temessem que as nuvens os impedissem de v-lo), mas no - a no ser que voc seja completamente nulo em matria de astronomia - esperar que o eclipse ocorresse. S se espera o que se ignora: quando se sabe, j no h por que esperar. Mesma coisa, claro, no que concerne ao passado. Uma vez que voc sabe do resultado da operao por que seu amigo passou e que esse resultado positivo ou negativo, para voc ele cessa de ser objeto de esperana. Voc s pode esperar outra coisa, que voc no sabe (por exemplo, que ele no tenha uma recada, se a operao foi bem-sucedida, ou que no tenha sofrido, se ela fracassou e ele morreu...). A esperana e o conhecimento nunca se encontram, em todo caso nunca tm o mesmo objeto: nunca esperamos o que sabemos; nunca conhecemos o que esperamos. Portanto nem toda esperana se refere necessariamente ao futuro. Tambm podemos esperar o passado ou o presente, contanto que o ignoremos. H mais, porm: todo desejo referente ao futuro nem sempre tambm uma esperana. Vou provar isso tambm com um exemplo. Imaginem a cara de nosso amigo Didier Prigois, que organiza esses "Lundis Philo", se, quando falei com ele ao telefone, h trs dias (ele ligou para mim para conferir se tudo ia bem, se eu no havia esquecido este compromisso, para marcarmos a hora do encontro, etc), imaginem a cara dele se eu tivesse respondido: "Espero ir!" Ele teria dito: "Epa, no me assuste! Que histria essa de esperar? Vai vir muita gente, a classe j est lotada: contamos com voc!" Vocs podem imaginar que eu no respondi "espero ir", mas sim: "estarei l". E no entanto eu desejava vir. E no entanto isto se situava no futuro, j que ele ligou para mim trs dias atrs. Por que no era uma esperana? Porque vir falar a vocs dependia de mim. Claro, eu poderia morrer entrementes, quebrar a perna, poderia haver uma guerra atmica... Assim sendo, eu teria podido esperar, se tivesse tido tempo ou tal preocupao, que nada disso tudo acontecesse. Mas vir a Nantes, no havendo impedimento de fora maior, s dependia de mim: no era objeto de uma esperana, mas de uma vontade. Ningum espera aquilo de que se sabe capaz. Isso diz muito sobre a esperana. Se algum nesta sala puder nos dizer, em esprito e em verdade, "Espero me levantar daqui a pouco", que est muito doente de corpo ou de cabea. No que algum de ns tenha a inteno de ficar definitivamente sentado... Mas levantar daqui a pouco para ns um projeto, uma inteno, uma previso, mas com toda certeza no uma esperana. Por qu? Porque sabemos muito bem que somos capazes de faz-lo. Em compensao, podemos esperar que no soframos um acidente ao voltar para casa, porque isso no depende de ns. isso que distingue a esperana da vontade: uma esperana um desejo cuja satisfao no depende de ns, 22. como diziam os esticos - diferentemente da vontade, a qual, ao contrrio, um desejo cuja satisfao depende de ns. Se algum lhe disser "Quero que faa um dia bonito amanh", voc poder responder: "Voc, pode dizer 'quero', mas a verdade que voc espera, porque no depende de voc." E ao colegial que diz "Quero passar no exame de bacharelado": "Tem razo de fazer tudo para passar; mas voc pode ficar doente ou pegar um corretor louco na sua prova... A verdade que voc espera passar no exame!" "Muito bem", responde o colegial, "eu espero me preparar seriamente." "No, porque desta vez depende apenas de voc: no se trata mais de esperar, trata-se de querer!" S esperamos o que somos incapazes de fazer, o que no depende de ns. Quando podemos fazer, no cabe mais esperar, trata-se de querer. a terceira caracterstica: a esperana um desejo cuja satisfao no depende de ns. Eu dizia: esperar desejar sem gozar; esperar desejar sem saber. Posso acrescentar: esperar desejar sem poder. Postas uma em seguida da outra, essas trs caractersticas da esperana resultam numa definio. O que a esperana? um desejo que se refere ao que no temos (uma falta), que ignoramos se foi ou ser satisfeito, enfim cuja satisfao no depende de ns: esperar desejar sem gozar, sem saber, sem poder. Vocs podem compreender por que Spinoza via na esperana "uma falta de conhecimento" (esperar desejar sem saber) e como que "uma impotncia da alma" (esperar desejar sem poder), por que ele dizia que "quanto mais nos esforamos para viver sob a conduta da razo, mais nos esforamos para nos tornar menos dependentes da esperana"30 ... Ou por que os esticos consideravam a esperana uma paixo, e no uma virtude; uma fraqueza, e no uma fora. Se o sbio s deseja o que depende dele (suas volies) ou o que ele conhece (o real), por que precisa esperar? o esprito do estoicismo. o esprito de Spinoza. o esprito de Epicuro31 . O prazer, o conhecimento e a ao no tm a ver com a esperana, e at, relativamente realidade deles, a excluem. Por que o prazer? Porque eu dizia: esperar desejar sem gozar. O contrrio de desejar sem gozar, na medida em que haja desejo (mas se estamos vivos h desejo), desejar gozando, desejar aquilo de que gozamos - na sexualidade, na arte, no passeio, na amizade, na gastronomia, no esporte, no trabalho, etc. , portanto, o prprio prazer. Por que o conhecimento? Porque eu dizia: esperar desejar sem saber. O contrrio de desejar sem saber desejar o que se sabe. E portanto o prprio 30 tica, IV, esclio da prop. 47. 31 Mesmo se Epicuro deixa certo espao para a esperana (o que ele chama de "esperana fundada", que eu preferiria chamar de confiana): ver a esse respeito o que eu escrevia em Viver, pp. 260-73. 23. conhecimento, pelo menos para quem o deseja, para aquele que ama a verdade, e tanto mais quanto ela no falta. O sbio, nesse sentido, um "conhecedor", como dizemos em matria de vinhos ou de culinria. O "conhecedor" no apenas aquele que conhece, mas tambm aquele que aprecia. O sbio um conhecedor da vida: ele sabe conhec-la e apreci-la! Por que a ao? Porque eu dizia: esperar desejar sem poder. O contrrio de desejar sem poder desejar o que podemos, logo o que fazemos. A nica maneira de poder efetivamente querer; e a nica maneira verdadeira de querer fazer. Tentem querer esticar o brao sem o esticar de fato... Pode ser que alguns de vocs retenham o brao e pensem: "Est vendo, no posso; eu quero esticar o brao e no consigo!" No. Voc quer se impedir, com a mo esquerda, de esticar o brao direito, e exatamente o que voc est fazendo. Em outras palavras, e a imensa lio estica, sempre queremos o que fazemos, sempre fazemos o que queremos - nem sempre o que desejamos ou o que esperamos, longe disso, mas sempre o que queremos. Mais uma vez, a diferena entre a esperana (desejar o que no depende de ns) e a vontade (desejar o que depende de ns). Donde a bela frmula de Sneca, que escreve em substncia a seu amigo Luclio (cito de memria): "Quando voc desaprender de esperar, eu o ensinarei a querer." Em outras palavras, a agir, j que querer e fazer so uma s e mesma coisa. Considerem por exemplo a poltica. muito bonito esperar a justia, a paz, a liberdade, em todo caso no condenvel. Mas no suficiente: falta agir por elas, o que j no uma esperana, mas uma vontade. a diferena que havia, durante a Ocupao, entre os resistentes, que queriam a derrota do nazismo, e os milhes de boas almas que se contentavam com esper- la... melhor do que ter sido colaboracionista ( melhor no fazer nada do que fazer o mal); mas, se todos os democratas tivessem se contentado com esperar, o nazismo teria vencido a guerra. No a esperana que faz os heris: a coragem e a vontade. Plato, Pascal, Schopenhauer esto portanto errados, ou pelo menos nem sempre tm razo. Se verdade que desejamos principalmente o que no temos e, portanto, se verdade que nossos desejos na maioria das vezes so esperanas, tambm podemos desejar o que gozamos (isso se chama prazer, e todos sabem que h uma alegria do prazer); podemos desejar o que sabemos (isso se chama conhecer, e todos sabem que h uma alegria do conhecimento, pelo menos para quem ama a verdade); podemos desejar o que fazemos (isso se chama agir, e todos sabem que h uma alegria da ao). Se verdade que somos tanto menos felizes quanto mais esperamos s-lo, tambm verdade que esperamos tanto menos s-lo quanto mais j o somos. O contrrio de esperar no temer, como se acredita comumente. Aqui tambm Spinoza tem razo: "No h esperana sem temor, nem temor 24. sem esperana."32 Voc espera passar no exame? Ento que voc tem medo de ser reprovado. Voc tem medo de ser reprovado? Ento voc espera passar. Voc tem medo de ficar doente? Ento voc espera continuar com boa sade. Voc espera continuar com boa sade? Ento voc tem medo de ficar doente... A esperana e o temor no so dois contrrios, mas antes as duas faces da mesma moeda: nunca temos uma sem a outra. O contrrio de esperar no temer; o contrrio de esperar saber, poder e gozar. tambm o que chamamos de felicidade, que s existe no presente (no mais a felicidade perdida, mas a felicidade em ato). tambm o que chamamos amor, que s se refere ao real. a encruzilhada. O desejo a prpria essncia do homem; mas h trs maneiras principais de desejar, trs ocorrncias principais do desejo: o amor, a vontade, a esperana. Que diferena h entre a esperana e a vontade? Em ambos os casos h desejo. Mas, como vimos, a esperana um desejo que se refere ao que no depende de ns; a vontade, um desejo que se refere ao que depende de ns. Que diferena h entre a esperana e o amor? Em ambos os casos, h desejo. Mas a esperana um desejo que se refere ao irreal; o amor, um desejo que se refere ao real. Poder-se-ia objetar que, quando a criana espera seu brinquedo, este bem real... Sim, na loja, atrs da vitrine. Mas o que a criana espera no o brinquedo na loja: o brinquedo em casa, a posse do brinquedo, e isso no , isso irreal. S esperamos o que no ; s gostamos do que . III - A felicidade desesperadamente: uma sabedoria do desespero, da felicidade e do amor O que sabemos que a felicidade desesperadora. Freud escreve em algum lugar, retomando uma frmula de Goethe acho, que no h nada mais difcil a suportar do que uma sucesso ininterrupta de trs lindos dias... Talvez para todos os que s sabem viver de esperana: trs lindos dias que se seguem difcil porque no deixam mais grande coisa a esperar... o estresse do normalien, no ano que segue o exame de ingresso no magistrio. O estudo demorado, difcil, o estudante se dizia anos a fio: "Como serei feliz no dia em que tudo isso tiver acabado, quando eu passar no exame!" E de repente voc professor e lhe oferecem mais um ano na cole Normale, para voc aproveitar a vida ou comear uma tese... O que 32 tica, III, esclio da prop. 50 e explicao das definies 12 e 13 das afeies. 25. mais esperar ou o que de melhor esperar? Nada. o momento mais fcil da vida, o mais feliz, ou que deveria s-lo... Mas a realidade bem diferente: o momento em que o normalien fica deprimido e se pergunta se j no tempo de filosofar de verdade... Alguns deles, em todo caso. H outros que j passam a esperar um cargo de mestre de conferncias, ou que se preparam para o concurso da cole Nationale d'Administration... Cada um tem as diverses que merece. Ento, o que sabemos que a felicidade desesperante; o que tento pensar que o desespero pode ser alegre: que a felicidade seja desesperada e o desespero, feliz! Isso quer dizer que o desespero, no sentido em que eu o tomo, no o extremo da infelicidade ou o acabrunhamento depressivo do suicida. antes o contrrio: emprego a palavra num sentido literal, quase etimolgico, para designar o grau zero da esperana, a pura e simples ausncia de esperana. Tambm poderamos cham-lo de inesperana... Mas no gosto muito de neologismos e, alm do mais, o termo inesperana daria a falsa impresso da facilidade, como se nos tornssemos sbios de um dia para o outro, como se bastasse decidir, como se pudssemos nos instalar na sabedoria como quem se instala numa poltrona... A palavra desespero, em sua dureza, em sua luz escura, exprime a dificuldade do caminho. Ela supe um trabalho, no sentido em que Freud fala de trabalho do luto, e no fundo o mesmo trabalho. A esperana primeira; portanto necessrio perd-la, o que quase sempre doloroso. Eu gosto, na palavra desespero, que se oua um pouco essa dor, esse trabalho, essa dificuldade. Um esforo, dizia Spinoza, para nos tornar menos dependentes da esperana... Portanto o desespero, no sentido em que emprego a palavra, no a tristeza, menos ainda o niilismo, a renncia ou a resignao: antes o que eu chamaria de um gaio desespero, um pouco no mesmo sentido em que Nietzsche falava do gaio saber. Seria o desespero do sbio: seria a sabedoria do desespero. Por qu? Porque o sbio (o sbio que no sou, bom esclarecer, e que sem dvida ningum aqui pretende ser; mas, como diziam os esticos, se voc quer avanar, precisa saber aonde vai; digamos que a sabedoria a meta que fixamos para ns, como uma idia reguladora, para tentar avanar...) , o sbio, dizia eu, no tem mais nada a esperar/aguardar, nem a esperar/ter esperana. Por ser plenamente feliz, no lhe falta nada. E, porque no lhe falta nada, plenamente feliz. Eu evocava a frmula de Spinoza, na tica: "No h esperana sem temor, nem temor sem esperana." Foi assim, para mim, que tudo comeou, quero dizer todos esses livros, todo esse trabalho, todo esse caminho... Foi pouco depois do exame para o magistrio, um ou dois anos talvez: certa manh eu me levanto com essa frase de Spinoza na cabea... Eu a conhecia muito bem, eu a tinha citado ou comentado com freqncia, mas sem apreender todo o seu alcance. E a, de repente, ao acordar, esta evidncia: se no h esperana sem temor nem temor sem esperana, deve-se concluir que o sbio, de acordo com Spinoza, no espera nada. A sabedoria a 26. serenidade, a ausncia de temor... J que no h esperana sem temor, se o sbio no tem temor que no tem esperana. Ento o sbio, para Spinoza, desesperado?. A idia me pareceu ao mesmo tempo inquietante e bela. Abri de novo a tica... E descobri primeiro, claro, que no a palavra que Spinoza utiliza. Desperatio33 , na tica (31), antes o que eu chamaria de decepo ou abatimento. Estamos desesperados, explica Spinoza, quando passamos do temor (sempre mesclado de dvida e de esperana) certeza de que o que temamos se produziu ou vai necessariamente se produzir; em outras palavras, quando j no h motivo de duvidar nem, portanto, de esperar. No nesse sentido, todos entenderam, que emprego a palavra "desespero". No portanto uma palavra que tomo emprestada de Spinoza, mas certa idia, mas certo caminho. Que caminho? O da desiluso, da lucidez, do conhecimento, o caminho que deve "nos tornar menos dependentes da esperana e nos libertar do temor"34 . Que idia? A de batitude: a felicidade de quem no tem mais nada a esperar. Porque est perdido? No, porque no tem mais nada a perder, porque est salvo, salvo aqui e agora. Nesta vida. Neste mundo. Porque a verdade lhe basta e o sacia. o que significava o ttulo do meu primeiro livro: Tratado do desespero e da beatitude... Eu queria mostrar que o desespero e a beatitude no so dois contrrios, entre os quais seria preciso escolher, mas antes, aqui tambm, como as duas faces de uma mesma moeda, ou como dois pontos de vista - sub specie temporis, sub specie aeternitatis: do ponto de vista do tempo, do ponto de vista da eternidade - relativos a uma mesma existncia, que a do sbio, que seria a nossa, se soubssemos viv-la e pens-la em verdade. Acontece que, alguns anos depois da publicao desse meu primeiro livro, folheando Chamfort dei com uma idia que eu acreditava ter inventado: "A esperana no passa de um charlato que nos engana sem cessar; e, para mim, a felicidade s comeou quando eu a perdi." Isso eu sabia perfeitamente no ter inventado. Mas Chamfort prossegue: "Eu colocaria de bom grado na porta do paraso o verso que Dante colocou na do inferno: Abandonai toda esperana, vs que entrais!"35 Eu escrevera a mesma coisa, quase palavra por palavra, no Tratado do desespero e da beatitude. O que eu queria dizer? O que queria dizer Chamfort? Que colocar essa frase na porta do inferno intil. Como querer que os danados no tenham esperana? Eles sofrem demais! Eles esperam 33 tica, III, segundo esclio da prop. 18 e def. 15 das afeies. Ver tambm Court trait, II, cap. IX, 3, assim como o que eu escrevia no Tratado do desespero e da beatitude, p. 34]. 34 32. tica, IV, esclio da prop. 47. 35 Maximes, penses, caracteres et anedoctes, II, 93, pp. 71-2 da ed. J. Dagen, G.-F., 1968. A frase de Dante tirada da Divina comdia, claro {Inferno, III, 9). Eu a mudei de lugar da mesma maneira no Tratado do desespero e da beatitude, p. 26]. 27. necessariamente alguma coisa, que aquilo pare, talvez um sobressalto de misericrdia divina, ou simplesmente que acabem se acostumando e sofrendo um pouco menos... No inferno, praticamente impossvel no esperar. Ao contrrio, o bem-aventurado, em seu paraso, que no pode esperar mais nada - pois tem tudo. Santo Agostinho e So Toms escreveram isso explicitamente: no Reino, j no haver esperana, pois no haver mais nada a esperar; j no haver f, pois conheceremos Deus; no haver mais que a verdade e o amor. Do ponto de vista do ateu que sou, s falta acrescentar que no Reino (o inferno e o paraso: a unidade dos dois!) j estamos: ele aqui e agora. Trata-se de habitar esse universo que o nosso, ou antes, que nos contm, em que nada para acreditar, j que tudo para conhecer, em que nada para esperar, j que tudo para fazer ou amar. Eu poderia multiplicar as citaes e as referncias. Estava terminando o segundo volume do meu tratado quando, folheando um livro de Mircea Eliade, dei com uma citao do Samkhya Sutra, que por sua vez citava o Mahabharata, o livro imemorial da espiritualidade indiana: "S feliz quem perdeu toda esperana; porque a esperana a maior tortura, que h, e o desespero, a maior felicidade. "36 Eu estava terminando um livro que se chamava Tratado do desespero e da beatitude, no qual, minha moda laboriosa, a de um intelectual ocidental, eu procurava expressar mais ou menos - em cerca de seiscentas pginas essa idia de que o Mahabharata, em trs linhas, me dava o resumo exato! Foi uma grande emoo e uma grande alegria. Sempre disse a meus alunos: se vocs acham que tm uma idia que nunca ningum teve, de temer que se trata de uma tolice. Inversamente, encontrar uma das suas idias num bom autor do passado sempre tranqilizador. Desde a publicao desse primeiro livro, amigos e leitores tiveram a gentileza de me mandar, ao acaso das suas leituras, certas referncias que coincidiam com minhas idias. Foi assim que descobri Svami Prajnanpad37 , Etty Hillesum38 , Melanie Klein ("quando o desespero est no auge, o amor desponta...")39 , ou simplesmente colecionei certo nmero de citaes. Esta por exemplo do filsofo georgiano Merab Mamardachvili: "Vivi minha vida 36 Samkhya-Sutra, IV, 11 (a segunda parte da frase uma citao do Mahabharata), citado por Mircea Eliade, Le Yoga, Payot, 1972, cap. I ("Les doctrines yoga"), reed. 1983, p. 40. Ver a esse respeito o que eu escrevia em Viver, pp. 356-7]. 37 Eu me expliquei sobre ele no pequeno livro que lhe consagrei: De Vautre ct du dsespoir (Introduction lapense de Svami Prajnanpad), Editions Accarias-L'Originel, Paris, 1997. 38 Etty Hillesum, Une vie bouleverse, dirio, trad. fr., Seuil, 1985. Ver tambm o que eu dizia a seu respeito em De Lautre ct du dsespoir, pp. 107-12. 39 M. Klein, Essais de psychanalyse, p. 328 (trad. fr., Payot, 1982, p. 359). 28. toda sem esperana. Se ultrapassamos o limite do desespero, abre-se ento diante de ns uma plancie serena, diria at jubilosa." Ou esta outra, que meu amigo Michel Piquemal acaba de me mandar por fax, tirada de um autor que no entanto conheo bem - trata-se de Jules Renard, em seu Dirio -, mas de que no me lembrava (encontrei a passagem no meu exemplar: est sublinhada em vermelho, com um ponto de exclamao na margem...): "Nada desejo do passado. J no conto com o futuro. O presente me basta. Sou um homem feliz porque renunciei felicidade."40 Renunciar felicidade? a nica maneira de viver: parando de esperar! Em suma, a ideia central do meu tratado era de que o desespero e a beatitude podem e devem andar juntos - de que s teremos felicidade proporo do desespero que formos capazes de suportar, de habitar, de atravessar. Esse desespero no o cmulo da tristeza, no o desespero do suicida (se ele se suicida que espera morrer), antes o gaio desespero de quem no tem nada mais a esperar porque tem tudo, porque o presente lhe basta ou o sacia. o desespero no sentido em que Gide dizia lindamente: "Eu gostaria de morrer totalmente desesperado." Isso no significava que ele quisesse morrer na tristeza, mas que queria morrer num estado em que no houvesse mais nada a esperar, que seria a nica maneira, de fato, de morrer feliz. Como esperar desejar sem saber, sem poder, sem gozar, o sbio no espera nada. No que ele saiba tudo (ningum sabe tudo), nem que possa tudo (ele no Deus), nem mesmo que ele seja s prazer (o sbio, como qualquer um, pode ter uma dor de dente), mas porque ele cessou de desejar outra coisa alm do que sabe, ou do que pode, ou do que goza. Ele no deseja mais que o real, de que faz parte, e esse desejo, sempre satisfeito - j que o real, por definio, nunca falta: o real nunca est ausente -, esse desejo pois, sempre satisfeito, ento uma alegria plena, que no carece de nada. o que se chama felicidade. tambm o que se chama amor. De fato o que o amor? Eu evocava, ao comear, a definio de Plato, segundo a qual o amor desejo e o desejo falta. Terminemos com a definio de Spinoza. Este ltimo concordaria com Plato para dizer que o amor desejo; mas com certeza no para dizer que o desejo falta. Para Spinoza, o desejo no falta, o desejo potncia: potncia de existir, potncia de agir, potncia de gozar e de se regozijar41 . Potncia, pois, por exemplo no sentido em que se fala de potncia sexual, mas no apenas. Sexualmente, com certeza no a mesma coisa ser frustrado e ser potente. Mas tampouco a mesma coisa ter falta de comida (passar fome) e ter a potncia de gozar o que se come (comer com apetite). No fundo, ser platnico reduzir o apetite (a potncia de gozar o que fazemos) fome ( falta do que no temos): s ter vontade de comer quando estamos com 40 Jules Renard, Journal, 9 de abril de 1895 (ditions 10-18, 1984, t. l,p. 265). 41 Ver tica, III, prop. 6 a 13, com as demonstraes e os esclios. 29. fome, ou mesmo, no limite, quando a comida no est presente, s ter vontade de fazer amor quando nos faz falta, ou mesmo, no limite, quando estamos sozinhos... Uma filosofia para tempos de penria, se quiserem... Mas em tempo de penria sem dvida h coisa melhor a fazer do que filosofia. O desejo, de acordo com Spinoza, seria antes essa fora em ns que nos permite comer com apetite, agir com apetite, amar com apetite42 . Isso no impede que o sbio tenha fome, s vezes ou com freqncia; mas dobra seu prazer, quando ele come. A fome uma falta, um sofrimento, uma fraqueza, uma desgraa; o apetite, uma potncia e uma felicidade. Foi o que perderam o anorxico, o ruim de cama, o deprimido, aquele que no sabe desfrutar o que come, o que faz, o que . No a falta que lhe falta; a potncia de gozar o que no lhe falta. O amor desejo, mas o desejo no falta. O desejo potncia: potncia de gozar o gozo em potencial! Quanto ao amor, tambm no falta (j que desejo e j que o desejo potncia): o amor alegria. uma definio que encontramos no livro III da tica: O amor uma alegria que a idia da sua causa acompanha43 . uma definio de filsofo, abstrata como convm, mas tentemos compreend-la. O que isso quer dizer? O seguinte, que j encontrvamos em Aristteles: "Amar regozijar-se"44 ou, mais exatamente (j que necessria a idia de uma causa), regozijar-se com. Um exemplo? Imagine que algum lhe diga esta noite, daqui a pouco: "Fico contente com a idia de que voc existe." Ou ento: "H uma grande alegria em mim; e a causa da minha alegria a idia de que voc existe." Ou ainda, mais simplesmente: "Quando penso que voc existe, fico contente..." Voc vai considerar isso uma declarao de amor, e evidentemente com razo. Mas ter tambm muita sorte. Primeiro porque uma declarao spinozista de amor, o que no acontece 42 Sobre a noo de apetite em Spinoza, ver tica, III, esclio da prop. 9. O apetite o contato humano (o esforo de todo homem para perseverar em seu ser) na medida em que "se relaciona ao mesmo tempo alma e ao corpo", pelo que no " nada mais que a essncia mesma do homem" ("no h diferena alguma entre o apetite e o desejo, salvo que o desejo geralmente se refere aos homens, na medida em que tm conscincia de seus apetites"). 43 Ver tica, III, esclio da prop. 13, e definio 6 das afeies. Mantenho aqui o enunciado dessa definio tal como ela me veio boca, enunciado que no exatamente idntico ao de Spinoza. Terei a oportunidade de me explicar a respeito no debate que segue esta conferncia. 44 Aristteles, thique Eudme, VII, 2, 1237 a 37-40 (trad. fr. V Dcarie, Vrin-Presses de L'Universit de Montreal, Paris-Montral, 1984, p. 162). Sobre esse pensamento do amor, que s posso esboar aqui, ver meu Petit trait des grandes vertues, PUF, 1955, cap. 18, pp. 291-385 [trad. bras., Pequeno tratado das grandes virtudes, So Paulo, Martins Fontes, 1995, pp. 241-311]. 30. todos os dias (muita gente morreu sem ter entendido isso; aproveite!). Depois, e principalmente, porque uma declarao de amor que no lhe pede nada. E isso simplesmente excepcional. Vocs iro objetar: "Mas, quando algum diz 'Eu te amo', tambm no est pedindo nada..." Est sim. E no apenas que o outro responda "eu tambm". Ou antes, tudo depende de que tipo de amor se declara. Se o amor que voc declara falta (como em Plato, mas a questo no ser platnico ou no em termos de doutrina, a questo estar ou no em Plato; eu nunca fui platnico, mas vivo com freqncia em Plato, como todo o mundo: toda vez que amamos o que falta, estamos em Plato), quando voc diz "Eu te amo", isso significa "Voc me falta" e portanto "Eu te quero" ("Te quiero", como dizem os espanhis). Ento , sim, pedir alguma coisa, at mesmo pedir tudo, j que pedir algum, j que pedir a prpria pessoa! "Eu te amo: quero que voc seja minha." Ao passo que dizer "Estou contente com a idia de que voc existe" no pedir absolutamente nada: manifestar uma alegria, em outras palavras um amor, que, claro, pode ser acompanhado de um desejo de unio ou de posse, mas que no poderia ser reduzido a ele45 . Tudo depende do tipo de amor de que se d prova, por que tipo de objeto. E a que residem, explica Spinoza, "toda a nossa felicidade e toda a nossa misria"46 . Imaginem, senhoras (pois nesse sentido que a coisa costuma acontecer, mas se as senhoras quiserem inverter os papis no sou eu que vou me opor), imaginem que um homem aborde as senhoras na rua, esta noite ou amanh, dizendo: "Senhora, senhorita, estou feliz com a idia de que voc existe!" Como no se pode excluir que ele tenha tirado essa idia desta minha conferncia, eu preciso lhes dar alguns elementos de resposta, com os quais faro o que quiserem... O que poderiam lhe responder? Isto, por exemplo: "- Caro senhor, agrada-me muito saber disso. Est feliz com a idia de que existo; ora, como est vendo, eu existo mesmo, logo vai tudo bem. Boa noite!" Ele sem dvida vai tentar ret-la: "- Espere, no v embora: quero que voc seja minha! - Ah, agora, meu caro senhor, a coisa muda. Releia Spinoza: 'O amor uma alegria que a idia da sua causa acompanha.' Concorda? - Sim... 45 Ver tica, III, explicao da definio 6 das afeies. 46 44. Trait de la reforme de Ventendement, 3 (ed. fr. Appuhn, G.-F., p. 183) ou 9 (ed. Caillois, Pliade, p. 161). Ver tambm Court trait, II, 5 (trad. fr. Appuhn, t. 1, pp. 99-102). Em Spinoza, nota Pierre-Franois Moreau, "s vivemos pelo amor" (Spinoza, Lexprience et Vternit, PUF, 1994, p. 177). 31. - Nesse caso, o que que o deixa contente? Ser que o que o deixa contente a idia de que existo, como entendi primeiro? Nesse caso, concedo-lhe que voc me ama, alegro-me e lhe dou boa-noite. Ou ser que o que o deixa feliz a idia de que eu lhe pertena, como temo ter compreendido agora? Nesse caso, o que voc ama no sou eu, a posse de mim, o que significa, caro senhor, que voc s ama a voc mesmo. E isso no me interessa nem um pouco!" Vocs sem dvida o deixaro desnorteado. Ele vai gaguejar, engasgar, replicar por exemplo: "- No sei... Estou apaixonado, ora bolas! - exatamente o que estou tentando lhe explicar! Voc est apaixonado, voc est em Plato, voc s deseja o que no tem: eu lhe falto, voc quer me possuir. Mas imagine que eu satisfaa suas investidas... De tanto ser sua, de estar presente todas as noites, todas as manhs, necessariamente vou lhe faltar cada vez menos, por fim menos que outra ou menos que a solido. Vivemos o bastante, voc e eu, para saber como isso acaba... Quer mesmo que recomecemos essa histria, mais uma vez? A mim, no interessa mais... A no ser... A no ser que voc seja capaz de amar de outro modo, de ser spinozista, s vezes pelo menos, ou de viver um pouco em Spinoza, quero dizer, amar o que no lhe falta, regozijar-se com o que . Nesse caso, poderia me interessar. Pense nisso. Aqui tem o meu telefone." No h amor feliz, nem felicidade sem amor. No h amor feliz, enquanto falta ao amor seu objeto. No h felicidade sem amor, enquanto a felicidade se regozija. H uma coisa que a falta no explica, que o platonismo no explica: que existam casais felizes s vezes, que haja um amor que no seja de falta mas de alegria, que no seja de frustrao, mas de prazer, que no seja de tdio mas de carinho, que no seja de iluso mas de verdade, de intimidade, de confiana, de desejo, de sensualidade, de gratido, de humor, de felicidade... "Eu te amo", eles se dizem: "sou to feliz por voc existir, feliz por voc me amar, feliz por compartilhar sua cama, sua felicidade, sua vida." Todo casal feliz uma recusa do platonismo. Para mim, um motivo a mais para gostar dos casais, quando so felizes, e desconfiar do platonismo. Mas o amor vai alm do casal, alm at da famlia. "A amizade conduz sua ronda ao redor do mundo", escrevia Epicuro, exortando-nos a despertar para a vida feliz47 . No h sabedoria que no seja de alegria; no h alegria que no seja de amar. o esprito do spinozismo, mas tambm de toda sabedoria verdadeira. Mesmo em Plato ou Scrates, a fortiori em Aristteles ou Epicuro, os momentos de sabedoria esto desse lado. Do lado da alegria, do lado do amor. Regozijar-se com o que , em vez de se 47 Sentena vaticana 52. 32. entristecer (ou s se regozijar de forma inconstante) com o que no . Amar, em vez de esperar ou temer. A beatitude, para retomar a expresso de Spinoza, esse amor inesperado e verdadeiro - eterno, portanto: a verdade sempre o - ao real que eu conheo. E o amor verdadeiro ao verdadeiro. Concluindo, lembrarei simplesmente que o contrrio de esperar no temer, mas saber, poder e regozijar-se. Numa palavra, ou antes em trs, o contrrio de esperar conhecer, agir e amar. a nica felicidade que no nos escapa. No o desejo do que no temos ou do que no (a falta, a esperana, a nostalgia), mas o conhecimento do que , a vontade do que podemos, enfim o amor do que acontece e que, portanto, j nem precisamos possuir. No mais a falta mas a potncia, no mais a esperana mas a confiana e a coragem, no mais a nostalgia mas a fidelidade e a gratido48 . S esperamos o que no depende de ns; s queremos o que depende de ns. S esperamos o que no ; s amamos o que . Trata-se de operar, portanto, uma converso do desejo: quando, espontaneamente, como a criana antes do Natal, s sabemos desejar o que nos falta, o que no depende de ns, trata-se de aprender a desejar o que depende de ns (isto , aprender a querer e a agir), trata-se de aprender a desejar o que (isto , a amar), em vez de desejar sempre o que no (esperar ou lamentar). No que, saindo desta conferncia, vocs devam se impedir de esperar! De jeito nenhum! Vocs no podem amputar vivos sua esperana. Por qu? Porque sempre que h desejo e ignorncia, desejo e impotncia, desejo e falta, h inevitavelmente esperana. Sempre que desejamos o que no sabemos, o que no depende de ns, o que no temos, a esperana est presente, sempre. No se trata de se impedir de esperar: trata-se de aprender a pensar, a querer e a amar! "O sbio sbio", escrevia Alain, "no por menos loucura mas por mais sabedoria." No tentem amputar a sua parte de loucura, de esperana, portanto de angstia e de temor. Aprendam ao contrrio a desenvolver sua parte de sabedoria, de potncia, como diria Spinoza, em outras palavras, de conhecimento, ao e amor. No se impeam de esperar: aprendam a pensar, aprendam a querer um pouco mais e a amar um pouco melhor. Eu diria de bom grado: a sabedoria no existe. S h sbios, e eles so todos diferentes, e nenhum deles cr na sabedoria. A sabedoria apenas um ideal, e nenhum ideal existe. apenas uma palavra, e nenhuma palavra contm o real. Se vocs sarem daqui dizendo-se "Como eu seria feliz se fosse sbio!", que terei fracassado. No faam da sabedoria um novo objeto de esperana, mais um, o que equivaleria a esperar absurdamente o desespero. Se voc quer ir em frente, diziam os esticos, deve saber aonde 48 Sobre essas diferentes noes, que aqui s posso designar de passagem, ver Viver, pp. 260-73], assim como os captulos 2, 5, 10 e 18 do Pequeno tratado das grandes virtudes. 33. vai. Sim. Mas o importante ir em frente. A sabedoria apenas um horizonte, que nunca alcanaremos absolutamente, e que no entanto nos contm: temos nossos momentos de sabedoria, como temos nossos momentos de loucura. A felicidade no um absoluto, um processo, um movimento, um equilbrio, s que instvel (somos mais ou menos felizes), uma vitria, s que frgil, sempre a ser defendida, sempre a ser continuada ou recomeada. No sonhemos a sabedoria; paremos, ao contrrio, de sonhar nossa vida! No se trata de se impedir de esperar, nem de esperar o desespero. Trata- se, na ordem terica, de crer um pouco menos e de conhecer um pouco mais; na ordem prtica, poltica ou tica, trata-se de esperar um pouco menos e de agir um pouco mais; enfim, na ordem afetiva ou espiritual, trata-se de esperar um pouco menos e amar um pouco mais. Agradeo sua ateno. Perguntas a Andr Comte-Sponville (Para facilitar a leitura do debate, as diferentes intervenes foram designadas por letras do alfabeto.) 34. A - H um fator, o do tempo, que mereceria, a meu ver, um desenvolvimento suplementar. Por qu? Podemos temer que o amor que voc props seja passivo ou imvel. A sabedoria, o budismo, por exemplo, consiste na contemplao pura e no retiro que permitiriam a felicidade. Mas nossa concepo ocidental supe sempre a criao de alguma coisa. Portanto, os fatores do tempo e da criao podem contribuir com algo para essa felicidade? No se deve caricaturar o budismo. Muitas vezes v-se nele a apologia da imobilidade, do retiro, da passividade, da inao, para no dizer da preguia. Quem pode acreditar um s instante que as imensas civilizaes que ele irrigou foram baseadas na passividade, na imobilidade ou na inao? Quanto ao tempo, no era meu tema. Mas minha idia de que o tempo - e apenas - o presente. Em Ltre-temps49 , eu me baseio nas anlises de Santo Agostinho para tirar concluses que vo no sentido oposto das dele. Nas Confisses, por exemplo, Santo Agostinho explica que o tempo, numa primeira aproximao, a sucesso do passado, do presente e do futuro. Mas o passado no , observa Santo Agostinho, uma vez que j no ; o futuro no , uma vez que ainda no . Logo, s resta o presente... Mas, se o presente permanecesse presente, no seria o tempo: seria a eternidade. "De modo que o que nos autoriza a afirmar que o tempo existe o fato de que ele tende a no mais existir", conclui Santo Agostinho50 . Eu digo, ao contrrio, que, se o presente permanece presente, o tempo e a eternidade so uma s e mesma coisa: c estamos. Poder-se-ia objetar que o incio da nossa conferncia agora passado... Sim; mas, quando comecei esta conferncia, o presente era presente; ele continuava a s-lo quando terminei minha conferncia; e continua sendo agora, enquanto respondo s perguntas de vocs. O presente permanece presente, de modo que a nica coisa que nos autoriza a afirmar que o tempo , que ele no cessa de se manter. o que Spinoza chama de durao: no a soma de um passado e de um futuro, que s tm uma existncia imaginria, mas a continuao indefinida de uma existncia51 , em outras palavras a perdurao do presente. Ns compartilhamos duas horas de presente: compartilhamos duas horas de eternidade. J estamos no Reino, j salvos. por isso que no h nada mais absurdo do que esperar a eternidade - pois j estamos nela. Portanto o tempo o presente. Mas no confundamos presente com imobilidade! Mostrem-me um movimento que vocs fariam no passado, um 49 PUF, 1999 [trad. bras., O ser-tempo, So Paulo, Martins Fontes, 2000]. 50 Confessions, XI, 14 (trad. fr. J. Trabucco, G.-F., 1964, p. 264). 51 tica, II, definio 5. Ver tambm O ser-tempo