educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos
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P149 Paiva, Jane. Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos /
Jane Paiva. – 2005. 480 f. Orientador: Osmar Fávero. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação, 2005. Bibliografia: f. 462-477.
1. Educação de jovens e adultos. 2. Alfabetização de adultos. 3. Direito à educação. I. Fávero, Osmar. II. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Educação. III. Título.
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AAGGRRAADDEECCIIMMEENNTTOOSS
Muitos são os agradecimentos a fazer, por ocasião do término deste trabalho.
Reconhecer aqueles que me ajudaram a realizá-lo, mesmo sem saber, e generosamente dizer
obrigada!, compartilhando as alegrias — muito maiores que as dores — de chegar até aqui.
Ao meu orientador, Prof. Osmar Fávero, pela confiança em mim e no tema —
presença e firmeza na condução dessa pesquisa.
Pela minha disciplina com a vida intelectual, devo começar por agradecer à UERJ, na
figura de meus pares e direções, que compreenderam meus limites em algumas negativas de
que precisei lançar mão, e nos tempos roubados em que passei dedicada às atividades da
pesquisa, superando a falta de condições para o doutorado, realizado em concomitância com
todas as minhas atividades acadêmicas.
Por esse mesmo critério, sou grata aos meus alunos, em especial a minhas bolsistas,
com quem o diálogo permanente formou-me mais que a elas.
Grata aos espaços conquistados de trabalho e à confiança em mim depositada,
principalmente de Sandra Sales e Fátima Lobato, parceiras de muitas horas na formação
continuada de professores de EJA, com quem dividi a coordenação de projetos, as apostas em
um coletivo interinstitucional de formadores, ao qual também, reverenciadamente, agradeço
os múltiplos aprendizados, os reconhecimentos, as cumplicidades. Grata a Pablo Gentili,
coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da UERJ, que confiou no Núcleo de
Educação de Jovens e Adultos (NEJA) e valorizou nossos empreendimentos.
Na esfera pessoal, muitas gratidões: à minha mãe, que soube me esperar muitas vezes,
sem que fosse possível chegar até ela, mas presente no seu cuidado à distância com a minha
saúde e minhas muitas horas de trabalho diante do computador. Ao Padilha, companheiro leal
que enfrenta, pela segunda vez, a maratona da pós-graduação, esperando/contribuindo a/para
a conclusão, paciente e impacientemente. À Jéssica, nas muitas apostas que me perpetuam. À
Fabrízia, ousadia e desafio permanentes. Ao Beto, mano, isso basta. À minha sobrinha
Vanessa, que me surpreende sempre, com quem com-partilhei pedaços de um tempo comum
de estudos, na sua conquista do título de Mestre.
À Ira, companheira de partilha de muitos e preciosos momentos pessoais e
profissionais, vivenciando criativamente a prática do trabalho coletivo e o exercício da
democracia nesse fazer.
À banca, mais que examinadores, companheiros de muitas lides e percursos comuns:
pela leitura atenta, pela escuta acurada, pelo brilho e generosidade dos comentários e
questionamentos. Sou-lhes grata.
A todos os que colaboraram com essa pesquisa respondendo a entrevistas,
questionários, disponibilizando materiais, fazendo-me participar de seus projetos de trabalho,
agora e há muito tempo sem saber o quanto me ajudariam, meu obrigada sincero pelos
subsídios, pelos aprendizados, pelo exercício da construção coletiva.
Aos companheiros do Fórum EJA/RJ que, como eu, têm permanecido vigilantes,
nesses quase dez anos de embates pela educação como direito, redescobrindo e multiplicando
as forças dos movimentos da sociedade e reinventando a ação coletiva. Nas pessoas de Eliane
Andrade —a Lili —, de Alex Aguiar e de Aline Dantas, simbolizo minha gratidão.
À Edna, companheira mais que constante, com quem partilhei um momento comum
do doutorado, apostando nos mesmos sonhos, nas mesmas esperas, no encontro e
consolidação de respeito e amizade. Obrigada, companheira, pelo que pudemos ser, juntas.
Por fim, não um agradecimento, mas o reconhecimento do quanto a esfera pública
possibilitou-me a formação, desde a escola primária, até este curso de doutoramento. Porque
reconheço o que isto significa de privilégio na sociedade excludente em que vivemos, sinto-
me responsável por devolver o que recebi, em serviço à educação de jovens e adultos. Para
que eu tivesse esse direito, uma grande parte da população não chegou sequer a ser
alfabetizada. A luta de minha vida continuará sem titubeações por essas escolhas, pelas quais
tenho feito apostas éticas, rigorosas e trabalhado incansavelmente, sem que a vida seja, por
isso, fardo, ou culpa. Mas seguirá, como risco que me desafiará ainda por muito tempo, todo
que eu puder, enquanto houver um único que não saiba ler e escrever como eu.
Aos brasileiros que não me sabendo aqui neste momento, nem sabendo ler e escrever,
possibilitam e são razão suficiente para que eu não os abandone, mas siga em luta pelo direito
à educação para todos.
[...] os direitos não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer. Nascem quando o aumento do poder do homem sobre o homem — que acompanha inevitavelmente o
progresso técnico, isto é, o progresso da capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens — ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo, ou permite novos remédios para as suas
indigências: [..]. (BOBBIO, 1992, p. 6).
A realidade não passa de uma tradução redutora da enormidade do mundo, e o louco é aquele que não se adapta a essa linguagem. (MONTERO, 2004, p. 138-139).
[...] Sempre recusei os fatalismos. Prefiro a rebeldia que me confirma como gente e que jamais deixou de provar que o ser humano é maior do que os mecanicismos que o minimizam. (PAULO FREIRE,
1996, p. 129-130).
Porque os seres humanos não apenas são menores que seus sonhos [...]. A imaginação sem freio é como um raio no meio da noite: abrasa mas ilumina o mundo. Enquanto dura essa faísca
deslumbrante, tentamos vislumbrar a totalidade [...]. Na pequena noite da vida humana, a louca da casa acende as velas. (MONTERO, 2004, p. 141).
RREESSUUMMOO
Os programas e projetos na área da educação de jovens e adultos, na contemporaneidade, vêm revelando formas de compreender e apreender sentidos e necessidades dos variados públicos que os buscam, intentando fazer cumprir, mais do que a perspectiva do aprender por toda a vida, o direito à educação sistematicamente negado a tantos na população brasileira. Com essa premissa inicial, a pesquisa escavou os modos como as propostas de atendimento de seis entidades — públicas, não-governamentais, de movimento social e do Sistema S — têm enunciado as formulações na área e realizado práticas, visando a compreendê-las na história política nacional e internacional da educação de jovens e adultos, e as conexões, sentidos, nexos, articulações e imbricamentos que se produzem entre elas, para além dos limites das entidades — no complexo tecido social. Movida pela perspectiva do direito, investiguei em busca de penetrar os diferentes níveis de realidade, assim possibilitando fazer emergir as produções subjacentes aos programas e projetos, com vista a cartografar a complexidade com que se fazem prática, evidenciando e visibilizando elementos constituintes e instituidores de suas concepções.
Palavras-chave: educação de jovens e adultos – direito à educação – concepções – alfabetização
AABBSSTTRRAACCTT
At present, programs and projects in the area of Youth and Adult Education have been unveiling different ways of understanding and apprehending the meanings and needs which emerge in the various groups who are in search of such educational proposals, less so with life-long education in perspective than to assert their right to education, a right that has systematically been denied to so many Brazilians. Based on this initial premise, this study has explored the different ways in which six organizations have formally stated their postulates as well as carried out their practical work in this area. Such organizations are characterized by being public, non-governmental, and pertaining to the Social Movement and the S System. The aim of the study is to comprehend such postulates and practices, in the light of the national and international youth and adult educational policies, as well as the interconnections, meanings, nexus, articulations and overlappings which are produced within and beyond their dominions, more precisely inside the complex social network. Impelled by a view centered on rights, this investigation has attempted to gain access to the different layers of reality, so as to make it possible for the productions underlying those programs and projects to emerge, for the sake of mapping out the complexity of that practice, thus identifying and giving visibility to the elements which are constitutive and institutive of their conceptions.
Key-words: Youth and Adult Education - right to education – conceptions - literacy
SSUUMMÁÁRRIIOO
1. INTRODUÇÃO: A ARQUEOLOGIA DA PESQUISA.....................................................................11
2. COMO CIGANA: O PERCURSO METODOLÓGICO....................................................................25
2.1 Questões da pesquisa................................................................................................................37
2.2 De critérios, opções, escolhas...................................................................................................40
3. CAROS CONCEITOS: DIREITO À EDUCAÇÃO COMO BASE DA DEMOCRACIA........................46
3.1 Premissas iniciais para pensar o conceito de direito à educação: contribuições de educadores brasileiros.................................................................................................................................46
3.2 Perspectiva histórica do direito e imbricações com a perspectiva democrática.......................53
3.3 Direito à educação na escola brasileira....................................................................................70
4. TRABALHOS DE HÉRCULES: OS SENTIDOS DO DIREITO À EDUCAÇÃO NAS CONFERÊNCIAS E ACORDOS INTERNACIONAIS.................................................................................................76
4.1 Onde tudo começou: Dinamarca, Elsinore, 1949.....................................................................77
4.2 II Conferência Internacional de Educação de Adultos — Montréal, Canadá, 21 a 31 de agosto de 1960.....................................................................................................................................78
4.3 III Conferência Internacional – Tóquio – 25 de julho a 7 de agosto 1972...............................82
4.4 Conferência Geral Unesco 19ª Reunião — Nairóbi, 26 a 30 de novembro de 1976...............86
4.5 IV Conferência Internacional sobre Educação de Adultos – Paris, 19-29 de março de 1985..88
4.6 Aportes internacionais protagonizados pela Unesco, revisitados até a metade da década de 1990..........................................................................................................................................91
4.7 V Conferência Internacional de Educação de Adultos – CONFINTEA – Hamburgo, Alemanha, julho 1997 — Aprendizagem de adultos, uma chave para o século XXI............105
4.8 Seminário Nacional de Educação de Pessoas Jovens e Adultas Pós-CONFINTEA..............128
4.9 O Marco de Ação de Dacar — reafirmando compromissos de 1990, reeditando o mito de Sísifo em 2000........................................................................................................................129
4.10 Projeto Principal de Educação para América Latina e Caribe 2002-2017.............................133
4.11 A presença da sociedade civil organizada – o CEAAL..........................................................137
4.12 A sociedade civil em rede — o Pronunciamento Latino-americano......................................138
4.13 Conferência de seguimento à CONFINTEA V: balanço seis anos pós-Hamburgo — Bangcoc, setembro 2003........................................................................................................................141
4.14 Grupo de alto nível de educação para todos — Declaração de Brasília.................................147
4.15 Algumas conquistas de Hércules............................................................................................147
5. O DIREITO À EDUCAÇÃO PARA TODOS NO BRASIL: CONQUISTAS HISTÓRICAS E PERSPECTIVAS NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS.......................................................149
5.1 Evocando o mito de Sísifo: direito formal e realidade social.................................................149
5.2 Tensões conceituais e sentido do direito à EJA.....................................................................160
5.3 O poder da sociedade na constituição do direito à educação de jovens e adultos..................165
5.4 EJA em tempos autoritários — onde o direito?.....................................................................170
5.5 A luta pelo direito à educação na Constituição Cidadã..........................................................179
5.6 Direito à educação na década de 1990...................................................................................185
6. PROGRAMA DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS DA SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DO ESTADO DA BAHIA — DAS VIVÊNCIAS ÀS COMPREENSÕES................................................210
6.1 Constituintes e determinantes da concepção de EJA e de alfabetização expressos em discursos e em documentos....................................................................................................213
6.2 Concepção de EJA na rede estadual: artes de fazer...............................................................229
6.3 Emergências do mergulhador: compreensões vêm à tona.....................................................263
7. PROGRAMA DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS – PEJA: EM CENA, O PÚBLICO JOVEM....................................................................................................................................267
7.1 O útero político, social e teórico do Programa de Educação Juvenil – PEJ...........................269
7.2 Do útero à luz do dia: nascimento do PDT desfraldando a educação como bandeira............275
7.3 Constituintes e determinantes da concepção de EJA e de alfabetização expressos em discursos e em documentos do PEJ........................................................................................280
7.4 Revelações recentes do PEJ: artes de fazer a mudança de concepções..................................289
7.5 “Deixem os velhinhos morrerem em paz! Deixem os velhinhos morrerem em paz!” Resistir é preciso....................................................................................................................................310
8. PROGRAMA SESI EDUCAÇÃO DO TRABALHADOR — TRAVESSIAS...................................313
8.1 Programa SESI Educação do Trabalhador — concepções e direito para a classe-que-vive-do-trabalho...................................................................................................................................323
8.2 A rede SESI de educação e o projeto pedagógico..................................................................330
8.3 Constituintes e determinantes da concepção de EJA e de alfabetização expressos no Programa SESI Educação do Trabalhador..............................................................................................332
8.4 Apreensões e significados para o Programa Brasil Alfabetizado: novas formas de parceria?.................................................................................................................................340
8.5 Algumas reflexões sobre o cenário de EJA e a ação do SESI na esfera pública....................344
9. PROGRAMA DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS DO SESC: A PROPOSTA PEDAGÓGICA E O PROGRAMA SESC LER — A EXPERIÊNCIA “QUE NOS PASSA”....................................347
9.1 A proposta pedagógica da educação de jovens e adultos — concepções e direito para a classe-que-vive-do-trabalho..............................................................................................................349
9.2 A proposta pedagógica do Projeto SESC Ler — ação/concepção de alfabetização..............358
9.3 A experiência que me acontece: SESC Ler em parceria com o Programa Brasil Alfabetizado no interior do Piauí.................................................................................................................371
10. “O LATIFÚNDIO DO CONHECIMENTO SE TORNOU ROÇA COLETIVA” – EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E ALFABETIZAÇÃO NO MST................................................................381
10.1 A pesquisa nacional da educação na reforma agrária – PNERA: dados que se somam à compreensão da educação do campo.....................................................................................382
10.2 O movimento social fez 20 anos e atinge a maioridade em 2005..........................................386
10.3 Constituintes e determinantes da concepção de EJA e de alfabetização expressos na proposta pedagógica do MST para o trabalhador do campo.................................................................393
10.4 “Tirando a viseira”.................................................................................................................416
11. PROGRAMA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA: BENEVOLÊNCIA DO ESTADO EMERGINDO NA ESFERA PÚBLICA?..................................................................................................................419
11.1 Constituintes e determinantes da concepção de EJA e de alfabetização expressos em documentos............................................................................................................................428
11.2 Concepção de EJA e de alfabetização no PAS......................................................................431
11.3 Algumas indicações para repensar a ação do PAS na esfera pública....................................445
12. TRAMANDO CONCEPÇÕES E SENTIDOS PARA REDIZER O DIREITO À EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS.............................................................................................................................444
12.1 Perspectivas internacionais do direito....................................................................................445
12.2 Parcerias e financiamentos.....................................................................................................447
12.3 Os fóruns — tecidos conjuntivos constituem redes de projetos.............................................449
12.4 Direito à educação...................................................................................................................451
12.5 Presença freireana...................................................................................................................453
12.6 Sucesso e continuidade na EJA...............................................................................................456
12.7 Concepções de formação continuada de professores..............................................................457
12.8 Sujeitos alunos — foco e identidades......................................................................................458
12.9 Concepções de alfabetização...................................................................................................460
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................................................462
ANEXO 1...............................................................................................................................................478
ANEXO 2...............................................................................................................................................479
ANEXO 3................................................................................................................................................480
11
11.. IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO:: AA AARRQQUUEEOOLLOOGGIIAA DDAA PPEESSQQUUIISSAA
Recuperar parte da história da educação de jovens e adultos (EJA), buscando fazê-la
pela compreensão das negações e conquistas do direito, é trazer minha própria história como
protagonista, há 28 anos, da mesma luta.
Os recentes acontecimentos do mundo, antes insuspeitados, e que causam horror e
insegurança, abalam em grande parte nossas convicções na humanidade, e por isso mesmo
não podem estar fora das reflexões e de necessárias revisões aos sentidos que vêm sendo
produzidos, porque sem dúvida os acontecimentos que acirram intolerâncias e ódios colocam
em cheque mais do que os direitos sociais, se não a perspectiva mesma de direito humano,
valor tão caro ao tema que escolhi discutir. Cotidianamente, a própria condição de vida que as
opressões produzidas pelo sistema econômico mundial vêm determinando às populações se vê
atravessada pela possibilidade de novas ameaças, em tempos inimagináveis. O refazer da
história pelo direito à educação, desafia-nos, no que a “louca da casa”1 pode ser motivada,
para de novo imaginar que é possível acreditar na história como possibilidade, que reinvente o
direito à vida, com todas as diferenças, como iguais.
Quem somos, que lugar ocupamos na história, com que direito se pode sonhar e pensar
educação, pensar um mundo novo diante das fragilidades dos supostos poderosos e das
resistências inventivas que criam rupturas nos esquemas seguros desses poderosos, em reação,
talvez recusa, dos que se sabem vítimas e que não aceitam a morte, escolhida como modelo,
passivamente, nem que para isso muitas mortes devam ser perpetradas, incluindo e iniciando
pelas próprias? De que direito se falará daqui para diante: dos já interiorizados como idéia e
valor, dos que se (re)criam e cerceiam liberdades atestando legítima defesa, ou será preciso
confrontar o corpus teórico que se põe a nu diante de nós, testemunhas e co-protagonistas do
tempo presente?
A questão do direito envolve, inelutavelmente, a condição democrática, valor
assumido pelas sociedades contemporâneas em processos históricos de luta e conquista da
igualdade entre os seres humanos. Admitindo que é impossível pensar o direito sem pensar
democracia, alerto que, no entanto, esses conceitos serão tratados pelas imbricações que entre
eles se estabelecem no campo da educação de jovens e adultos, restringindo-se ao movimento
de buscar as raízes históricas do que se consagrou, na contemporaneidade como direito à
1 A louca da casa é a expressão de Santa Teresa de Jesus referindo-se à imaginação, recuperada por Rosa Montero In: A louca da casa. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
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educação, uma categoria de direitos de segunda geração, que comporta valores que me
constituíram e dos quais ainda não sei abrir mão.
Com base nesse fundamento, verifiquei que a educação de jovens e adultos ganhou
oficialmente, ao longo de pouco mais de meio século, novos sentidos e concepções,
produzidos no interior dos países, nas tensões sociais em tentativas de reafirmação de direitos
de maiorias vistas, na sociedade desigual, como minorias.
Historicamente a prática social (re)significava o campo de atuação, exigindo dos
pesquisadores outras formulações para compreender e apreender esses sentidos, no âmbito da
cultura de suas populações. Esses novos sentidos e concepções, acredito, estiveram sempre
formulados em função da oposição ter ou não ter direito, e quando se optou pelo direito, as
concepções formais deram conta de delimitar e restringir sua abrangência e magnitude.
Ora, os nomes são muitos e debaixo deles: educação popular, educação de base, educação de adultos, educação fundamental, educação comunitária, educação permanente, há coisas e intenções iguais, semelhantes e até opostas. Neste emaranhado estão escondidas idéias iguais com rótulos diferentes e idéias diferentes com rótulos iguais. Há projetos e sobretudo há propósitos, muitas vezes opostos, que se cobrem das mesmas falas e, com palavras que pela superfície parecem apontar para um mesmo horizonte, procuram envolver as mesmas pessoas, prometendo a elas mudanças nas suas vidas, ou em seus mundos. (BRANDÃO, 1984, p. 15).
Brandão revela-me, nesse trecho de conhecido artigo em que trata Da educação
fundamental ao fundamental na educação, a confusão dos nomes que não são inocentes, mas
trazem imbricados sentidos e significados de fortes marcas ideológicas, orientadoras dos
caminhos e das escolhas dos projetos educativos/educacionais. Porque com ele compartilho a
mesma preocupação, vivenciando também em minha prática essa confusão, assumo explicitar
uma concepção provisória sobre educação de jovens e adultos para, ao longo do estudo,
questioná-la e com ela dialogar à exaustão, com a finalidade de favorecer a compreensão de
inevitáveis mudanças de concepção na educação de jovens e adultos, historicamente, guiada
pela perspectiva do direito.
Essa confusão tem sido percebida por mim em vários momentos de formação
continuada de professores, quando se discutem as propostas, os projetos, as práticas.
Professores quase sempre formados para lidar com crianças acabam “caindo”, no âmbito dos
sistemas, em classes de jovens e adultos com pouco ou nenhum apoio ao que devem realizar.
Em outros espaços, educadores populares, plenos de verdades sob o prestígio da educação
popular, descrevem concepções pautadas em um tempo, em uma realidade social cujo
13
movimento da história há muito alterou, sem que as enunciações o acompanhassem. Além
disso, observo um nível de discurso muitas vezes revelador de novas enunciações, mas em
franco descompasso com as práticas, eivadas de “escolarismo”, praticadas sem muito saber
porque fazê-las, defendendo rituais e procedimentos distantes de alguns princípios caros à
educação que se pensa como direito, como possibilidade de exercitar a igualdade entre
sujeitos diferentes, democraticamente. Pouco consigo reconhecer dos discursos de ambos nas
práticas que realizam. Tanto professores de redes públicas, quanto educadores populares, uns
e outros com diferenciados paradigmas, quase sem exceção denotam discursos e práticas que
mais se afastam, do que se aproximam, deixando-me com um amargo sabor de desesperança
pelo muito que ainda precisa ser feito, diante do tempo-espaço possível para fazê-lo, com
vista a alterar, de fato, as relações entre sujeitos aprendizes, entre eles e a sociedade, entre eles
e seu estar no mundo.
Na contemporaneidade, pois, a educação de jovens e adultos continuou adquirindo
novo sentido. Fruto das práticas que se vão fazendo nos espaços que educam nas sociedades,
este sentido se produz em escolas, em movimentos sociais, no trabalho, nas práticas
cotidianas. Para além da alfabetização, cada vez se afastou mais, nas políticas públicas, das
conquistas e reconhecimento do valor da educação como base ao desenvolvimento humano,
social e solidário. Mais que a alfabetização, o direito constitucional de ensino fundamental
para todos, sintetizou o mínimo a que se chegara, o de aprender a ler e a escrever com
autonomia e domínio suficientes para, em processo de aprendizado continuado, manter-se em
condições de acompanhar a velocidade e a contemporaneidade do desenvolvimento das
ciências, técnicas, tecnologia; das artes, expressões, linguagens, culturas; enfim, do que o
mundo, especialmente globalizado no tocante à difusão de informações, conferia à história.
Ao mesmo tempo, a complexidade do mundo contemporâneo exige um aprender
continuadamente, por toda a vida, ante os avanços do conhecimento e a permanente criação
de códigos, linguagens, símbolos e de sua recriação diária. Exige não só o domínio do código
da leitura e da escrita, mas exige também competência como leitor e escritor de seu próprio
texto, de sua história, de sua passagem pelo mundo. Exige reinventar os modos de sobreviver,
transformando o mundo.
As mudanças no mundo do trabalho produziram multidões de desempregados e a
oportunidade de emprego não existe mais para muitos, com e sem qualificação. Nesta
“desordem do progresso” (BUARQUE, 1992), ricos e pobres assustam e se assustam em todas
as partes do planeta, em países ricos e em países pobres. Crescem as intolerâncias e as
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discriminações que fertilizam o ódio por desconhecer o próximo como outro. Sua presença
obstrui e ameaça.
A experiência da sociedade civil tem ensinado algumas importantes lições,
especialmente aos poderes públicos devotos do valor do pensamento único, que esvazia de
sentido as resistências e os pensamentos divergentes. A forma de pensar hegemônica, somada
ao quadro de pobreza das maiorias e à perda de direitos historicamente conquistados (como é
o caso do trabalho), compõem os marcos com os quais se exige propor a educação de jovens e
adultos neste terceiro milênio.
Muitas municipalidades, sensíveis aos anseios das pessoas, têm dado respostas para a
educação de jovens e adultos e sabem que governam para todos, não devendo excluir
ninguém. Estas são, de fato, as experiências mais significativas, porque vêm construindo
saberes, lideranças e legitimidade política. Os profissionais participam da formulação
pedagógica e sua formação continuada segue sendo um outro processo de educação de jovens
e adultos.
Pós-Hamburgo, duas importantes vertentes consolidam a educação de jovens e
adultos: a primeira, a da escolarização, assegurando o direito à educação básica a todos os
sujeitos, independente da idade, e considerando a educação como direito humano
fundamental; a segunda, a da educação continuada, entendida pela exigência do aprender por
toda a vida, independente da educação formal e do nível de escolaridade, o que inclui ações
educativas de gênero, de etnia, de profissionalização, questões ambientais etc., assim como a
formação continuada de educadores, estes também jovens e adultos em processos de
aprendizagem. Como verdadeiro sentido da EJA, ressignificando os processos de
aprendizagem pelos quais os sujeitos se produzem e se humanizam, ao longo de toda a vida,
não mais se pode mantê-la restrita à questão da escolarização, ou da alfabetização, como foi
vista por largo tempo. Assim desenvolvida, a EJA legitima-se por meio de ordenações
jurídicas, de acordos, firmados e aprovados pelas instâncias de representação que conformam
as normas da ordem social.
Este é, sem dúvida, um dilema para o mundo contemporâneo que, mesmo em regimes
produtores de exclusão, obrigatoriamente carece do fortalecimento de uma concepção de
educação voltada para o regime de colaboração entre as esferas governamentais e não-
governamentais, em que, necessariamente, a sensação de agravamento da exclusão social
demanda do Estado políticas públicas eficazes na área social, principalmente voltadas para os
setores populacionais mais vulneráveis às transformações econômicas.
15
O que tento compreender, como tese que defendo, é que as mudanças conceituais
estiveram ocorrendo, por um lado, pelas formas como o Estado, a serviço dos interesses
dominantes, regulou os alcances dessas concepções, traduzindo-as como direitos. Por outro
lado, como as compreensões dos sujeitos de direito / não-direito envolvidos com o campo da
prática, do fazer cotidiano, ressignificaram e transformaram esses conceitos, apropriando-se
deles segundo necessidades, usos, interesses, costumes. Nessa tensão, observei que caros
conceitos, valorizados pela questão ideológica que representaram, permaneceram
conservados, passando incólumes na defesa de suas formulações, mas não resistindo a
qualquer teste da prática, da experiência. E seguem assim formulados e apregoados, mas
encerrando sentidos distintos dos originalmente praticados.
Essas percepções me surgem com mais visibilidade quando eu, interessada em
conhecer como se produzem os saberes e o conhecimento pela população, especialmente
tematizado, ao longo dos anos, na educação de jovens e adultos, e a forma como os poderes
“negociam” esse direito para os excluídos dele, participei, por quatro anos, da vivência de um
projeto de pesquisa-ação em educação ambiental, em um bairro do município de Nova Iguaçu
(Rancho Fundo, área da Baixada Fluminense, no Estado do Rio de Janeiro), no intuito de
acompanhar moradores na organização de um espaço de luta capaz de mudar/melhorar as
condições de vida no lugar. Essa organização tomou como questão primeira o lixo mas, com o
tempo, muitas outras se foram pondo à frente das pessoas e — o que é mais relevante —
muitos saberes e compreensões da realidade se produziram, tanto para mim, quanto para os
moradores diretamente envolvidos nesse processo de organização2.
A ação política dos movimentos sociais, tão cara na década de 1970, não era — e nem
podia ser — mais a mesma. Os embates e o enfrentamento visíveis como estratégias de luta
do projeto original eram superados pelas produções táticas (CERTEAU, 1994) dos sujeitos no
cotidiano (LÉFÈBVRE, 1991), criando maneiras de fazer próprias, autônomas, não
padronizadas, criativas, em que as subjetividades se revelavam inteiras, não apenas pela
lógica da razão, mas admitindo outras lógicas que a mim, enquanto pesquisadora, cabia
compreender e desvelar, para acompanhar o movimento que repensava a melhoria da vida
cotidiana, ao mesmo tempo em que transformava os sujeitos, em interação. O emaranhado de
saberes, que se punham à minha frente, enredavam-me em uma trama complexa, em que a
linearidade não podia ser o fio de compreensão, pois o desafio estava, justamente, em seguir 2 Esta pesquisa encontra-se publicada In: CECCON, Claudius, PAIVA, Jane (coord.). Bem pra lá do fim do mundo. Histórias de uma experiência em Rancho Fundo, Baixada Fluminense, Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: CECIP, União Européia, CCFD, 2000.
16
os pontos e nós que urdiam os saberes, poderes e conflitos que essas novas e diferentes
práticas mostravam.
Vi emergirem, ali, sujeitos políticos capazes de fazer valer seus direitos de cidadania e
de, tomando a palavra, fazê-la sua e permitir a pronúncia de seu mundo, à semelhança do que
me ensina Paulo Freire, tanto pela forma como a linguagem passou a mediar suas relações
com o meio social em que vivem, quanto com a classe política dirigente, pelo modo como se
apropriaram da argumentação, da lógica e como, pelo diálogo, estabeleceram relações
dialéticas com a realidade. Linguagem que se fez ouvir não apenas nas relações imediatas,
mas se tornou permanente com a escritura e a publicação de um jornal, no qual seu poder
ampliou-se tanto quanto a abrangência que este alcançou. Linguagem do vídeo, que registrou
suas intervenções e roteirizou suas histórias, de diversas maneiras, fazendo-os, uma vez mais,
atores sociais cuja imagem e papel se difundiam pelos diferentes pontos de exibição dos
vídeos. Linguagem que encontrou outros interlocutores, postos também nos espaços
acadêmicos, em universidades, como a USP, por exemplo, sempre que puderam participar,
levando sua experiência e discutindo os caminhos metodológicos que construíram ao longo do
tempo em que se envolveram com o trabalho.
Histórias, muitas histórias e muitas questões instigantes para desvendar. A das
mulheres, presença maciça no trabalho, marcando com seus modos próprios a luta com o
poder público, eminentemente masculino, e produzindo saberes na rede de relações novas e
desafiadoras a que se lançavam.
Acompanhei, com respeito e olhar atento de investigadora, cada movimento que o
trabalho foi produzindo. O movimento social instaurado, entendido como ação coletiva
(RIBEIRO, 1992) de quem faz história, porque se sabe sujeito de mudança da realidade, foi
redefinindo a compreensão e o saber disponíveis quanto aos movimentos sociais. Ao mesmo
tempo, suscitava-me, a cada dia, novas questões, que permitiram ir caminhando no sentido da
produção de um conhecimento mais ampliado sobre a realidade de jovens e adultos que,
intervindo no meio ambiente social, se educavam na luta, (re)construindo novos sentidos para
o que é educar.
O movimento gesta uma importante dimensão educativa. Aceitar que o processo de
conhecimento é uma produção social e coletiva, sem desprezar a indispensável participação
do indivíduo, é romper com muito da lógica de que a aprendizagem é resultado de
"transmissão de conhecimentos" e de que o lugar de fazer isto é a escola. Mesmo sabendo, na
prática, que esse saber da escola, quando se deu, não mudou as condições de vida, a
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representação que as pessoas trazem da escola é fortemente impregnada dessa fantasia. E
porque entre eles a escolaridade não configurava o fundamento de seu saber, nem sempre os
protagonistas do movimento percebiam a importância que esse outro saber, tecido na luta, tem
como arma e poder para transformar a dura realidade em que vivem. Entender-se como parte
de um coletivo que produz, em conjunto, um conhecimento; que, como parte desse coletivo,
cabe a cada um contribuir sempre para o seguimento desse processo; que o conhecimento não
é produzido apenas nos limites daquele grupo, mas em todos os espaços sociais é tarefa
grandiosa, de permanente vigilância. A dicotomização do grupo com o mundo, e deste com o
grupo, não dá conta de entrever a rede de relações de aprendizagem a que cada um
participante esteve inextricavelmente ligado. E mais, que não era necessário romper ou
renunciar a qualquer dessas relações para que novas produções de conhecimento tivessem
lugar. Pelo contrário, são:
[...] relações que se desenvolvem na participação e a descoberta dos espaços públicos (que) recriam situações que ensinam muito, porque desvelam situações de desigualdade, criam desafios nesse movimento de apropriação do público. [...] A consciência da relação desigual é o primeiro momento que pode explicitar uma nova necessidade. (SPOSITO, 1993, p. 375).
A luta social ensina e o processo de apropriação do conhecimento é (re)significado, na
luta. Novos conteúdos dão-se a conhecer. Ao se aliarem, "os que não sabem" — diante do
saber técnico da autoridade — descobrem-se como iguais no "não saber", e acabam por
desvelar o saber que têm, mas que é negado pela escola e pela sociedade. O saber, produzido
socialmente, de modo geral só significa porque expressa um conjunto de necessidades
históricas, determinadas pelas relações econômicas. O movimento, enquanto luta política que
interferia nas condições de vida da população de Rancho Fundo, criava um outro significado
para o saber: o que revela o caráter não econômico dessas necessidades, porque construído de
modo a permitir a satisfação social, e que acaba por preencher as necessidades de um claro
sentido político.
Muitas outras questões surgiram. Dentre elas, a que aproximou, inevitavelmente, os
movimentos sociais e o saber neles produzido com a área da educação de jovens e adultos, até
então muito restrita à questão da escolarização. Com isto, iniciei um processo de reflexão para
tentar compreender de que forma, tanto no Brasil, quanto na América Latina, foram-se
constituindo os movimentos de educação de jovens e adultos. De que forma uns e outros se
aproximavam, historicamente, e que dados da realidade determinavam essa necessária
aproximação. De tal modo esta questão agigantou-se em minha busca de pesquisadora, que
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pensei ser indispensável formulá-la como uma hipótese de trabalho a ser verificada, capaz de,
enquanto possibilidade, anunciar a ampliação das concepções com que até então lidara sobre
o que se entende por educação de jovens e adultos, no Brasil de hoje.
Brandão (1984, p. 8) já levantava esta questão, buscando perceber o movimento que as
práticas educativas com adultos anunciavam, especialmente as de educação popular, em
relação às direções políticas que se encaminhavam.
Houve um tempo em que sobre a educação popular julgávamos possuir coletivamente um repertório sólido de conceitos, métodos e técnicas profeticamente renovadores de tudo o que houve e se fez antes. Hoje sabemos, também coletivamente, que esta, como tantas outras práticas especiais de trabalho político, possui múltiplas faces, de que as mais estáveis e sistematizadas, como a própria alfabetização, são apenas uma modalidade e, nem sempre, a mais importante. Da década dos anos 60 para cá envelhecemos palavras, como conscientização e criamos outras, como participação. Símbolos sonoros de efeito poderoso que, apenas instrumentos de trabalho no momento da gênese, ameaçam sempre tornar-se o mito da prática, ou uma espécie de senha que, aos que sabem pronunciá-la, sugerem poder abrir todas as portas.
Alerta-nos sobre o risco da crença na solidez dos conceitos, e na mitificação das
palavras, que não se cristalizam, e por isso mesmo se redizem, e no meu entender atualizam
esses conceitos.
Desde o pós-guerra a educação de adultos veio sendo marcada por significados e
compreensões diversas, em função dos inúmeros movimentos realizados junto aos setores
populares, tanto originados na Igreja Católica, quanto por governos de diferentes matizes,
quanto por entidades representativas dos interesses de empregadores e de grupos da sociedade
civil, organizando movimentos e campanhas. O caráter desenvolvimentista, marcadamente
posto na condição de homem-trabalhador-força-de-trabalho, teve papel fundamental na
história da educação de adultos e na conceituação que o termo assumiu entre nós.
Desse caráter são representantes o Sistema S na década de 1940 (SESI, SESC, SENAI,
SENAC; bem mais tarde também o SENAR, em 1991), a Campanha Nacional de Erradicação
do Analfabetismo, a Cruzada Nacional de Educação, a Campanha Nacional de Educação de
Adultos (1947) e o Movimento de Educação de Base (1961), a Fundação Movimento
Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) criada em 1967 e com início das atividades em 1970,
todos contribuindo, ainda que com intensas contradições, para a formulação do conceito e a
delimitação do campo de conhecimento.
19
Nos anos 1970, com o advento da Lei nº. 5692 em 1971, da Educação Nacional, o
ensino supletivo passa, paralelamente ao MOBRAL, a configurar no interior dos sistemas de
ensino, uma modalidade compensatória de educação, firmemente ancorada nos valores da
teoria do capital humano, de caráter desenvolvimentista, que a ditadura militar assumiu para
tirar o país do atraso, mas que passava ao largo da perspectiva do direito, principalmente
porque aqueles não eram tempos de respeito aos direitos sociais, nem políticos, nem humanos:
a face mais evidente desse tempo de negação de direitos se expunha pela tortura e atrocidades
cometidas nos porões da ditadura militar.
Destaque-se que, no caso do MOBRAL, este constituiu a entidade formuladora e
executora das políticas federais na área que por mais tempo esteve estruturada para essa
finalidade (admitida sua sucedânea Fundação Nacional para Educação de Jovens e Adultos –
Fundação EDUCAR, extinta em 1990), e para ela foram destinadas fontes rubricadas para
financiamento e desenvolvimento das ações. Paradoxalmente, foi apenas durante a ditadura
militar que a área viveu definição governamental clara e aporte de recursos significativos,
desvinculados das variações orçamentárias que tanto ameaçam programas e projetos, gozando
a Fundação de expressiva autonomia, inclusive quanto a plano de carreiras e cargos e salários.
Mas até aí a questão do analfabetismo era tratada pelas políticas como problema do
sujeito analfabeto, a ser resolvido nesse âmbito. Fixada uma década para a “erradicação do
mal”, ao seu final os resultados eram desanimadores. Se por um lado alguns pontos
percentuais se reduziam nas estatísticas oficiais, por outro, o contingente absoluto
demonstrava como o sistema público de ensino era insuficiente em número, em propostas, em
qualidade para absorver todos os que deveriam ser escolarizados na “época própria”, aliado ao
fato de que o agravamento das condições estruturais e conjunturais do país favorecia o
aumento quantitativo desses excluídos de direitos. Entretanto, esse aspecto não vinha sendo
considerado para a compreensão da complexidade do fenômeno do analfabetismo, adotando-
se a idéia simplificadora de que o problema se encontra no próprio analfabeto. Esta idéia
ainda hoje é corrente, pregnante em educadores e em muitos dirigentes, ajudando a
compreender a lógica de que qualquer investimento que aí se faça é inócuo.
O campo da educação de adultos já então abrangia não apenas a idéia da alfabetização,
mas incorporava a de educação permanente, pelas exigências da chegada da industrialização
tardia em países pobres, do mesmo modo que incorporava a idéia de qualificação profissional,
para atender às novas demandas do setor produtivo.
20
Mais recentemente, os caminhos de democratização no país vieram exigindo a
condição de cidadania para todos, e não apenas para alguns e, dessa feita, a educação de
adultos passa a tratar de questões relativas a direitos de cidadania, como tarefa eminentemente
educativa, ao lado da consciência das exclusões — por exemplo, de etnia e gênero, que se
vinham reproduzindo historicamente no país, mitificadas pelo ideário da democracia racial.
Essa perspectiva se adensa na década de 1980, pelas lutas em prol do Estado de
direito, articuladas e estimuladas em formas de organizações sociais que surgiam em resposta
à repressão empreendida pela ditadura militar. Metas primeiras dessas organizações se
coroam com a Constituinte e com a mobilização de inúmeros fóruns da sociedade3,
propositores de temas e princípios para incorporação na nova Carta.
A Constituição de 1988 vem contribuir para a legitimação dessas tensões históricas,
garantindo no texto da lei a educação para todos como direito, novamente, e as Conferências
Internacionais e os acordos firmados na década de 1990, reafirmam o papel da educação
continuadamente nas políticas de todas as áreas, embora esse entendimento e a garantia
constitucional não sejam suficientes para mudar as práticas.
Ao mesmo tempo em que esses outros conteúdos adubavam esse campo, implicava
pensar com que lógicas deveria conhecê-los: se com aquelas que os pensavam como
conhecimento objetivo e, portanto, absoluto e eterno, do “homem desencarnado”, ou se
concebido à semelhança do que propõe Najmanovich (1995, p. 46), como objetivado por uma
cultura em contextos sociais específicos. O que significa dizer: com que pressupostos
(teórico-)metodológicos punha-me a compreender a sua presença e o seu significado?
Formulada nesse plano político, já não se pensa mais a educação restrita aos
instrumentos do saber ler e escrever, imprescindíveis, mas insuficientes para dar conta da
complexidade do mundo contemporâneo. As outras dimensões que adentram a área da
educação de jovens e adultos alargam seu espectro para a idéia de educação continuada, e a
retomada de um novo sentido para o que se chamara de educação permanente. Uma intricada
rede de relações, de conhecimentos, de saberes, de atores sociais, de sujeitos que conhecem e
3 Um dos Fóruns mais significativos dessa época foi o Fórum em Defesa da Escola Pública, constituído em 1987, por entidades científicas, acadêmicas, profissionais, sindicais, estudantis e movimentos populares de âmbito nacional, para atuar na defesa intransigente da universalização da educação pública, gratuita, laica, com qualidade social, em todos os níveis. Inicialmente organizado para atuar na Constituinte, foi responsável pelas principais conquistas que os setores sociais, comprometidos com essa concepção de educação, conseguiram inserir na Constituição Federal de 1988, na LDB e no PNE. Ao longo de 17 anos de existência, o Fórum e as entidades que dele fazem parte assumiram, em inúmeras situações e ocasiões, o papel de espaço crítico e combativo em relação às políticas de regulação e gestão desenvolvidas.
21
se dão a conhecer, se tece no cotidiano das populações, em âmbito local, alterando e exigindo
o debruçamento dos que pensam os destinos do mundo na esfera global sobre as relações que
uns e outros estabelecem, mesmo quando distanciados pelo tempo e pelo espaço. Não mais a
dicotomia e a dualidade que se pensava capazes de, relacionadas, dar conta da completude do
conhecimento. Pensar o mundo pela perspectiva do conhecimento em sua incompletude, pela
contribuição do pensamento complexo, que não luta contra a incompletude, mas contra a
mutilação (MORIN, 1998, p. 176). Aí, certamente, inclui-se a educação, pelas formas
complexas como necessariamente se expressa, o que exige repensar os paradigmas que até
então nortearam nossos modos de ler a realidade. Para isso, Morin (1998, p. 176-177) afirma
ser necessário desfazer o primeiro mal-entendido, que:
[...] consiste em conceber a complexidade como receita, como resposta, em vez de considerá-la como desafio e como uma motivação para pensar. [...] nesse sentido, é evidente que a ambição da complexidade é prestar contas das articulações despedaçadas pelos cortes entre disciplinas, entre categorias cognitivas e entre tipos de conhecimento. De fato, a aspiração à complexidade tende para o conhecimento multidimensional. Ela não quer dar todas as informações sobre um fenômeno estudado, mas respeitar suas diversas dimensões.
A experiência de Rancho Fundo foi provocadora de um processo de reflexão que
assumiu em mim a disposição para enfrentar os caminhos de desenvolvimento dessa pesquisa.
Emblemática, trouxe-a para o texto para melhor situar esses caminhos e fundamentar a tese,
alimentada pelo compromisso político que tenho mantido com a EJA, nas diversas esferas de
minha atuação. No entanto, a experiência não limita, nela, a riqueza das ações na área, nem
esgota meu rol de questionamentos.
Rancho Fundo mostrou ser um processo educativo de ação sistemática de intervenção
na realidade. Aproxima-se da atuação pedagógica — intervenção intencional — agindo,
também, de modo sistemático. Os saberes que a experiência foi produzindo nas tessituras em
rede que os sujeitos urdiram — para meu uso e da própria população — eram inequívocos em
me afirmar que ali havia um claro — e renovado — processo de educação de adultos e de
jovens, reconceptualizado. E que a mim, cabia pensá-lo complexamente, compreendê-lo e
(re)significá-lo.
Esta compreensão alargada dos processos de educação de jovens e adultos, no entanto,
nem sempre se revela de modo a assumi-la como conteúdo dessa educação — o educar-se na
luta —, nem também aparece como demanda expressiva nos movimentos por escola para
jovens e adultos, nem para trabalhadores. Sposito (1993, p. 135) estudando a luta social pela
22
escola pública, na periferia de São Paulo, ilustra como a reivindicação por educação se
organizou, pela população, entre 1970 e 1985, apontando que a pesquisa não confirmava a
hipótese de que essas lutas eram pela qualidade do serviço oferecido, mas sim pelo acesso.
Expressas em jornais da época, as reivindicações se referem à expansão da rede em 40%
delas, e destas, a luta pelo acesso ao ensino de primeiro grau4 chega a 52% dos
encaminhamentos. Ampliação da pré-escola e do segundo grau vêm em seguida com 17% e
19% respectivamente do total de demandas de expansão; e 40% das reivindicações pela
expansão da rede referem-se à conquista de novos direitos, tanto pela antecipação do
atendimento, quanto pelo prolongamento da escolaridade, ou pelo direito à escolaridade para
adultos. Sobre esses dados, Sposito assinala que:
[...] em todo o período a luta mais inovadora sob a ótica da intervenção do Estado em outras modalidades de ensino consiste na criação de unidades de ensino supletivo de primeiro e segundo graus. Não obstante inexista até o momento uma clara definição sobre a educação de adultos no país, a conquista do ensino supletivo público em alguns estados, como São Paulo, parece ser irreversível, ao menos, enquanto direito de acesso aos cursos. Resta, no entanto, para os grupos populares o desafio de conquistar, de fato, uma prática pedagógica e um processo de escolarização mais adequados às suas necessidades e condições de vida. (SPOSITO, 1993, p. 138).
Como se observa, a expansão do direito ocupa apenas 40% das demandas, e não
exclusivamente para a educação de jovens e adultos, mas vem acompanhada da pré-escola (a
antecipação do atendimento) e do prolongamento dos cursos (após o ensino de primeiro grau,
ou seja, o atual ensino médio), o que significa dizer que é, ainda, muito tímida, diante do
universo de sujeitos não-alfabetizados e pouco escolarizados, não-concluintes do ensino
fundamental oriundos principalmente das áreas pobres. O fato notável é que a conquista de
novos direitos passa a se incorporar como horizonte possível a setores antes socialmente
segregados, assim como, assinala Sposito, o acesso aos cursos não vem acompanhado de
práticas pedagógicas nem de processos de escolarização adequados aos sujeitos que os
acessam.
As observações empíricas têm mostrado que mesmo pais de pequena ou nenhuma
escolaridade reivindicam, primeiro, para seus filhos a condição de direito à educação, diversa
da deles próprios, e poucas vezes se incluem como credores desse direito. Quando a
perspectiva de direitos passa a constituir demanda, novas relações se estabelecem com o
poder público e o exercício da democracia passa a ser praticado nas intermináveis
4 Mantenho a expressão primeiro grau utilizada pela autora, pois esta era a denominação do ensino fundamental à época da pesquisa.
23
negociações em defesa desses novos direitos. Que concepções os poderes assumem ao
responder as tensões criadas pelos movimentos? Que resposta os movimentos e os sujeitos
esperam receber?
A pesquisa, portanto, pretendeu desvelar a face atual da área da educação de jovens e
adultos, nos movimentos que experiências e práticas vêm realizando e na relação com as
proposições políticas que as instâncias oficiais têm assumido. Para esse desvelamento, estou
propondo escavações em torno de concepções, propondo um entendimento não de supressão
de outros entendimentos, mas uma incorporação de perspectivas que possam permitir
compreender mais amplamente o campo do fenômeno, percebidas na complexidade das
relações em que se dão, levando em conta que ou sempre estiveram presentes sem serem
consideradas, ou tenderam a aparecer diante das transformações que afetam as sociedades e as
culturas na economia globalizada.
Para fazê-lo, passei pela necessária organização e sistematização teórico-metodológica
de formulações e práticas de EJA, buscando estabelecer relações entre elas, como fios e nós
da rede de saberes que constituem.
Com vista à constituição de meu objeto, propus-me a lidar com “novos paradigmas
[que] questionam um conjunto de premissas e noções que orientaram até hoje a atividade
científica, dando lugar a reflexões filosóficas sobre a ação social e sobre a subjetividade” no
dizer de Schnitman (1996, p. 16), para quem a base dessas perspectivas se assenta na
“exploração que inclui em seu desenvolvimento a consideração do próprio processo de
conhecer, do sujeito cognitivo, da rede social na qual este conhecimento está distribuído”, ou
de outras produções teóricas que sem comportarem o arcabouço paradigmático, vêm
buscando contribuir para o repensar do que está posto. Dentre elas, as noções de pensamento
complexo, de sujeito, como proposto por Morin (2001) e de rede, como metáfora para o
processo de conhecimento, de que Schnitman (1996), Dabas e Najmanovich (1996) e Alves
(1998) se valem. Para isso, exigiu-se o esforço de uma construção metodológica coerente com
esse novo paradigma, que permitisse a mim e aos meus interlocutores trabalhar em um tempo
de criatividade, de restauração de elementos singulares e da abertura de novas
potencialidades, experimentando a vivência de que:
Sentir-se partícipes/autores de uma narrativa, da construção de relatos históricos, é uma das vias de que dispõem os indivíduos e os grupos humanos para tentar atuar como protagonistas de suas vidas, incluindo a reflexão de como emergimos como sujeitos, de como somos participantes de e participados pelos desenhos sociais. (SCHNITMAN, 1996, p. 17).
24
Entendendo que a questão da educação de jovens e adultos inclui a perspectiva de
inclusão em sociedades democráticas, e que esta inclusão passa a se dar pela conquista de
direitos, tomei como matrizes conceituais direito e democracia, admitindo que são eles os
conceitos fundantes da ampliação da compreensão do que é a EJA, na contemporaneidade.
Meu objeto de pesquisa, à procura de novos “achados” entre as concepções de
educação de jovens e adultos, compõe um corpus em que os movimentos da sociedade
revelam-se pelas práticas dos últimos anos, alterando os sentidos que lhes são atribuídos
originalmente, quando formulados e retratados em documentos e em aparatos jurídicos.
Contrapondo formulações do cotidiano a textos legais, experimento compreender a educação
de jovens e adultos a partir de carecimento e necessidade social, essencialmente produzidos
na história, que vêm constituir o que se reconhece como direito em resposta a esses
carecimento e necessidade, fundamentais ao entendimento teórico, por ser o direito
freqüentemente negado e em poucos momentos respeitado, em relação a todos os cidadãos.
Portanto, o que apresento nesse texto, mais do que um trabalho acabado, traduz um
conjunto de reflexões de quem percorre um caminho de estudo teórico que ultrapassa os
conhecimentos já disponíveis para, crítica e criativamente, ampliá-los. A escritura, como obra
aberta, segundo Eco, à medida que se ascende no seu uso, estabelece novas significações,
tanto mudando seus sentidos, quanto seus sujeitos enunciadores.
25
22.. CCOOMMOO CCIIGGAANNAA:: OO PPEERRCCUURRSSOO MMEETTOODDOOLLÓÓGGIICCOO
[...] há cerca de quarenta anos, estamos diante de um mundo singularmente novo. E temos de nos situar neste mundo, do qual não passamos, evidentemente, de uma minúscula parte. [...] essa parte se encontra num todo gigantesco, o todo se encontra, ao mesmo tempo, no interior dessas parcelas ínfimas que nós somos, [...] Somos os filhos do cosmos e, ao mesmo tempo, como disse Jacques Monod, nele vivemos como “ciganos”. Somos diferentes e distantes dele devido a nossa cultura, nosso espírito, nosso pensamento, nossa consciência, e é esse distanciamento que nos permite tentar conhecê-lo e interrogá-lo. (MORIN, 2001, p. 27).
Tomar a fala de Morin como epígrafe deste capítulo remete-me ao sentimento errante
de que muitos de nós somos tomados, quando precisamos definir e fazer escolhas teórico-
metodológicas. Vagueando como ciganos, intentamos caminhos, aproximamo-nos e
distanciamo-nos do todo e da parte e do objeto, parecendo sempre perguntar, como Cecília
Meireles (1994, p. 335), no poema Noite:
Tão perto! Tão longe! Por onde é o deserto? [...] Somos um ou dois? Às vezes, nenhum. E em seguida, tantos! A vida transborda por todos os cantos.
Com essas incertezas, que me acompanharam em todo o percurso, fui traçando um
caminho para dar conta de responder as questões que há alguns anos vêm ocupando espaços e
tempos diversos das minhas reflexões e práticas profissionais no campo da EJA. Esse
percurso, que por exigência do curso e da titulação supõe-se ser solitário, produzido por um
sujeito como requisito ao doutoramento, no entanto, mostrou-se, no meu caso — por não ter
me afastado de minhas atividades acadêmicas na universidade, nem de atividades
profissionais conformadas longamente em minha trajetória — como um percurso solidário,
trilhado — sempre como cigana — com muitos outros sujeitos com os quais compartilhei
minhas produções, modos de compreender, e com os quais fui trançando e tecendo fios e
enredando saberes, num espaço-tempo social inimaginável. Difícil, ao redigir esse capítulo,
ocultar a participação direta de meus alunos, nas diversas disciplinas que permitiram múltiplas
26
interlocuções e intercâmbios5; de minhas bolsistas (no feminino mesmo, porque sempre
mulheres), atentas, aprendizes/tecelãs de novas tramas/saberes; de autores — dos livros
técnicos aos livros de literatura dos quais jamais ousei afastar-me; de pares escolhidos; de
outros não-escolhidos, mas que se fizeram presentes sem que eu demandasse ou esperasse,
tudo isso constituindo, inequivocamente, um saber coletivo, que a mim, porque guiada por um
olho de ver6,7 para além da experiência física, surpreendeu e possibilitou sistematizar, junto a
outros sujeitos discursivos escolhidos, as idéias que compõem esse trabalho. Posso afirmar
que foi vivendo as experiências8 e a práxis que a idéia de rede e de complexidade, aos poucos,
fez-se viva como metodologia de pesquisa, assumindo o lugar central para compor o método
de investigação utilizado.
Minha investigação orientou-se, teoricamente, pelas postulações de autores que me
ajudaram a perceber, multirreferencialmente, o tempo histórico em que as experiências se
dão/se deram, de modo a que eu, ao investigar, pudesse “ejercer una función historizante para
construir una narración posible y coherente que permita producir sentido en nuestro navegar
histórico” (NAJMANOVICH, 1994, p. 37). São todas elas fruto de trabalhos e reflexões dos
últimos anos e de meu envolvimento e encontro com outros interlocutores em reuniões
científicas, conferências nacionais e internacionais no âmbito das políticas que envolvem
práticas educativas com jovens e adultos, tanto as “escolarizadas” como as que ocorrem em
relação a outros direitos ainda não democratizados, negados à maioria da população.
5 Inter-câmbio, apreendendo o sentido de Najmanovich (1994, p. 66), de trocas e mudanças entre sujeitos, efetivamente, que também mudam modos de pensar e de ver a realidade. 6 Soares (2005, p. 173), discutindo a idéia do que é ver, e não ver, conclui que “se o olhar transporta para a imagem daquilo que é olhado um pouco da pessoa que olha, se o olhar transporta para a imagem a relação entre o que vê e o que é visto, deduz-se que ver é relacionar-se”. E continua: “Isso é surpreendente para quem pensa que o ato de olhar serviria como uma metáfora perfeita para designar a suposta objetividade do vínculo entre o sujeito da ciência e seu objeto. Pelo contrário, não há pureza nem objetividade no olhar. Nossa visão das coisas e das pessoas é carregada de expectativas e sentimentos, valores e crenças, compromissos e culpas, desejos e frustrações. Acima de tudo, é necessário reter na memória esse ponto: ver é relacionar-se”. 7 Sacks (1995, p. 129), do mesmo modo, pela neurologia, discutindo o caso de um paciente em “Ver e não ver”, afirma: “Quando abrimos nossos olhos todas as manhãs, damos de cara com um mundo que passamos a vida aprendendo a ver. O mundo não nos é dado: construímos nosso mundo através da experiência, classificação, memória e reconhecimento incessantes”. 8 Retomo como conceito central da produção de conhecimento a recomendação de Larrosa (1999, p. 20-28) sobre experiência e o saber de experiência — “é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” —, pelo alerta que faz de que, por vivermos em uma sociedade de informações, deixamos de viver as experiências, supondo que informações podem substituí-las. Do mesmo modo, alerta que a experiência é cada vez mais rara por falta de tempo, pela velocidade e a obsessão pela novidade que caracteriza o mundo moderno, assim como pelo excesso de trabalho e pelo excesso de opinião, que não é conhecimento, tudo isso impedindo a conexão significativa entre os acontecimentos. Evoca a reintegração dessa forma de conhecer em nossas vidas, pelo fato de a experiência produzir diferença, heterogeneidade e pluralidade; por ser irrepetível, e uma dimensão de incerteza, que não pode ser reduzida.
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Historicamente, a educação de jovens e adultos vem assumindo concepções e práticas
bastante diferenciadas. Da visão ainda muito corrente de que ela se faz para recuperar o tempo
perdido daqueles que não aprenderam a ler e a escrever; passando pelo resgate da dívida
social; até chegar à concepção de direito à educação para todos, da presente década, e do
aprender por toda a vida, as enunciações variaram, deixando, no entanto, no imaginário social,
a sua marca mais forte, ligada à volta à escola, para fazer, no tempo presente, o que não foi
feito no tempo da infância.
Essas diferentes concepções pelas quais passou a área foram produzidas em contextos
históricos e culturais9 que favoreceram seu alargamento ou sua variação, mais ou menos
tensionados pelas forças sociais que se colocavam em jogo. Ao mesmo tempo, revelavam
enunciações que, nem sempre, caminharam pari passu com as práticas e com as necessidades
dos jovens e adultos envolvidos, nem com o sentido de que a oferta de EJA deve-se fazer
como direito, em sociedades democráticas, e muito menos com a idéia projetada a um futuro
próximo do aprender por toda a vida.
O objeto da pesquisa seguiu um percurso inicial bastante ambicioso, mas considerado
exigentemente necessário, porque se propunha a estudar projetos e práticas, confrontando-os
entre si e com as formulações políticas e teóricas na área, visando à compreensão e à
apreensão das concepções da educação de jovens e adultos, na vertente escolarizada, ao
tempo em que se enunciam pela perspectiva, ou não, de direito de todos à educação. Mas o
diálogo com meu orientador e com a banca de qualificação, intenso principalmente neste item,
mostrou-me — e acabou por convencer-me — da necessidade de um recorte, do mesmo modo
representativo das diferentes experiências e contornos que a área vem assumindo, sem
abranger o espectro todo que inicialmente eu formulara.
Voltando outra vez como cigana aos projetos, vivenciei uma nova etapa exploratória,
com a finalidade de, sem perder os critérios definidores daqueles que deveriam constituir meu
objeto, recortar a amostra com a qual eu, finalmente, trabalharia. Para isso, intensifiquei o
olhar sobre esses critérios, buscando ver em relação, no dizer de Soares (2005, p. 173),
garantindo relevância ao recorte tomado como objeto de estudo e compreensão da realidade,
9 Estou tomando a concepção de cultura segundo Freire, por meio da qual influencia Bosi (1992, p. 319), ao expressá-la como conceito antropológico: “conjunto de modos de ser, viver, pensar e falar de uma dada formação social”. O caráter difuso dessa cultura, espraiada em lugares, tempos e modos que não os da vida acadêmica, mescla-a intimamente com a vida psicológica e social do povo (BOSI, 1992, p. 320), e é com esta vida, cujos símbolos e bens nem sempre são objeto de análise ou de interpretação sistemática, mas sim vividos e pensados esporadicamente e não tematizados em abstrato, que Paulo Freire identifica seu modo de pensar a educação e de propor a metodologia que possibilita o aprendizado dos sujeitos jovens e adultos.
28
recorte esse que pudesse estabelecer algumas enunciações conceituais sobre o campo, cujo
conhecimento produzido estivesse também orientado para a surpresa e a partilha
(NICOLESCU, 2003, p. 46), diferentemente do saber do conhecimento disciplinar, orientado
para o poder e a posse.
A surpresa, sempre bem-vinda e necessária, deveria levar-me, como conhecedora do
campo, a novos estranhamentos, capazes de objetivar a compreensão do mundo presente, no
movimento, na dinâmica gerada pela ação dos vários níveis de realidade10 ao mesmo tempo,
onde poderia apreender os objetos, realizando também movimentos que possibilitassem
percebê-los nas múltiplas relações em que ocorrem, e não referidos como fragmentos de um
mesmo e único nível de realidade (NICOLESCU, 2003, p. 44).
Para Nicolescu (2003, p. 46), ainda, o conhecimento produzido por meio dessa
abordagem — transdisciplinar —, gera a compreensão, enquanto a abordagem disciplinar
produz o saber; na primeira abordagem há um novo tipo de inteligência, que implica o
equilíbrio entre o mental, os sentimentos e o corpo, incluindo-se os valores, e atuando-se com
a lógica do terceiro incluído; na disciplinar a inteligência é analítica, a lógica é binária e há
exclusão dos valores. Pode-se dizer que, pela abordagem transdisciplinar, há uma evolução do
conhecimento, ou seja, o conhecimento permanece aberto para sempre.
A definição dos critérios de seleção dos projetos foi estabelecida, então, pela
necessidade de que a pesquisa tivesse abrangência nacional, face ao fato de que deveria tomar
referências mais amplas para empreender a aventura do estudo proposto — compreender as
concepções da EJA, por entender que concepções, porque históricas, têm temporalidade e
espacialidade, são multidimensionais, organizando-se segundo diversas ordens de fatores que
não permanecem duradouramente, mas são sensíveis aos movimentos dos sujeitos nas suas
ações de fazer e desfazer, pensar e transformar o mundo. Burke (1992, p. 24-25) discutindo a
perspectiva da história como um problema dos historiadores sociais contemporâneos, observa
10 Nicolescu (2003, p. 46-47) parte da idéia inicial de que Realidade (com R maiúsculo), é tudo aquilo que resiste às nossas experiências, representações, descrições, imagens ou formalizações matemáticas, porque o real, por definição, está oculto para sempre (aquilo que é). Por nível de Realidade, diz o autor, “deve-se entender um conjunto de sistemas invariante à ação de um certo número de leis gerais: por exemplo, as entidades quânticas subordinadas às leis quânticas, que divergem radicalmente das leis do mundo macrofísico. Isso quer dizer que dois níveis de realidade são diferentes se, ao passar de um para o outro, houver ruptura das leis e ruptura dos conceitos fundamentais (por exemplo, da causalidade)”. A visão transdisciplinar parte dos questionamentos de Edmund Husserl e de outros pesquisadores sobre os fundamentos da ciência, descobrindo a existência de diferentes níveis de percepção da Realidade pelo sujeito-observador, o que já fora afirmado por diferentes tradições e civilizações, mas baseada em dogmas religiosos ou em explorações do universo interior. Essa forma de visão propõe “considerar uma Realidade multidimensional, estruturada em múltiplos níveis, que substituiria a Realidade unidimensional, num único nível, do pensamento clássico”. (NICOLESCU, 2003, p. 48).
29
o quanto difícil é descrever ou compreender a relação entre as estruturas do cotidiano e a
mudança, indicando que um foco de atenção deve estar posto no “processo de interação entre
acontecimentos importantes e as tendências por um lado, e as estruturas da vida cotidiana por
outro”. Este, portanto, consistiu em mais um importante alerta para o exercício empreendido
de captar as concepções de EJA, como me propus.
Os critérios, então, construídos, foram considerados isoladamente ou cruzados um
com outro, reforçando-se e/ou intensificando-se. São eles:
Abrangência nacional — independente da proposta/concepção, a prática está sendo
realizada em vários estados da federação, por um ou mais organismos, envolvendo
um largo número de sujeitos, o que quase sempre contraria as lógicas da EJA, de
pequenas experiências, localizadas.
Antiguidade e permanência da organização na rede pública — independente da
concepção, o fato de estar institucionalizada, ininterruptamente, como modalidade
de atendimento, no sistema de ensino.
Necessidade de oferecer resposta específica, considerando a realidade de uma dada
região/sujeitos — verificar a consistência de propostas que se orientaram pela ação
de EJA com formato próprio, considerando a especificidade de uma região.
A metodologia previu, assim, o estudo prévio das origens e sentidos que direito à
educação assume na história como fundamento para melhor apreender as proposições de
programas/projetos e suas formulações conceituais, assim como a compreensão de práticas
desenvolvidas, quando possível, pela voz do coordenador, do dirigente, do professor/educador
confrontando-as quanto ao pensar (dos especialistas que formulam) e o fazer cotidiano dos
sujeitos que coordenam, dirigem, realizam essas propostas. Porque propostas não definem,
necessariamente, seus fazeres, suas práticas, busquei a perspectiva metodológica da
experiência, em maior aproximação com os quefazeres de algumas delas, no intuito de poder
compreender as apreensões dos sujeitos que as desenvolvem, na expressão de suas
concepções, nos contextos socioculturais em que se dão.
Desde o início orientei a construção metodológica do projeto pela noção de redes e de
complexidade, procurando tecer um modo de apreender não apenas as expressões conceptuais
dos projetos e práticas, mas as teias que se formam entre eles, relacionadas às diversas
dimensões da vida sociopolítica em que se dão/são possíveis. Mas, apesar da minha
determinação, ditada pela experiência que vivencio há tantos anos com projetos de EJA e
30
sujeitos, que me levava à quase certeza de que só chegaria a capturar suas concepções se os
pensasse pela perspectiva da complexidade, como redes, o esforço feito não chegou a me
assegurar que tenha sido bem-sucedida na tentativa metodológica, o que exige a leitura de
meus pares e estudiosos da área, para apontar e auxiliar meu próprio juízo crítico, quanto ao
que consegui formular por meio desse percurso intentado. Não se trata de negar ou
desqualificar a abordagem definida mas, exatamente, como por ela proposto, dialogicamente
interrogá-la para perceber o quanto o exercício da pesquisa possibilitou aproximar-me ou não
da intenção original, tratando essa produção como “obra aberta”, pela possibilidade de
garantir a ambigüidade, fundamental e constante em qualquer “obra” em qualquer tempo, no
dizer de Eco (1988, p. 25-26), que “representa um modelo hipotético”, embora elaborado com
a ajuda de numerosas interpretações concretas.
Estava aí o desafio: aproximar as enunciações e compreensões sobre redes, a
complexidade e as formulações da transdisciplinaridade, que percebo muito próximas do que
as redes vêm apontando. Por ser esse um campo novo para transitar, empreendi, mais uma vez
como cigana, a aventura de tentar dialogar com essas concepções, em torno do meu objeto,
compreendendo-o, não pela análise, mas pela busca de um outro modo de conhecer, que
intentei produzir como metodologia de pesquisa.
Alguns autores nacionais vêm encabeçando a discussão sobre redes de conhecimentos,
em contraposição à metáfora da árvore, e para isso vêm se valendo de estudos empreendidos
por um grupo de pesquisadores de diversas áreas, em busca de modelos explicativos mais
adequados ao lugar epistemológico do conhecimento na contemporaneidade. Morin, um
desses pensadores, junto a outros como Prigogine, Maturana representam os mais conhecidos,
embora Basarab Nicolescu, Lima de Freitas, o próprio Morin e muitos outros tenham
participado do Primeiro Congresso Mundial da Transdisciplinaridade, ocorrido no Convento
da Arrábida, em Portugal, em novembro de 1994, quando foi adotada a Carta da
Transdisciplinaridade11.
11 No O manifesto da transdisciplinaridade, Basarab Nicolescu informa que outra iniciativa do grupo de estudiosos da área foi fundar o CIRET – Centre International de Recherches et Études Transdisciplinaires, em Paris. Em outra obra, denominada Transdisciplinarité, posso observar a presença, dentre os estudiosos integrantes do CIRET, a presença de Ubiratan D’Ambrosio, brasileiro com estudos e pesquisas na área da etnomatemática. O Segundo Congresso tem lugar em setembro de 2005, em Vitória, Espírito Santo.
31
Alves (2002, p. 113)12 assinala que é em rede — rede de relações entre sujeitos —,
contrapondo-se à grafia em árvore13, que se tecem os saberes e as subjetividades que formam
esses sujeitos. Assim a autora se expressa sobre a forma de representar e organizar o
conhecimento em nossa sociedade, que valoriza a chamada “teoria”, em detrimento da
“prática” dos sujeitos, produzida nas mais diversas instâncias sociais.
a construção do conhecimento se dá de modo linear e hierarquizado, com uma antecedência claramente estabelecida de disciplinas teóricas (formadoras do campo científico específico) sobre as disciplinas práticas, sempre subordinadas, quer quanto ao lugar posterior ocupado, quer pelo tempo menor geralmente dedicado ao seu desenvolvimento.
Conquistas e avanços a esse modo de pensar e conceber o conhecimento, no entanto,
só são possíveis a partir de um movimento histórico que contribuiu com as teorias crítico-
reprodutivistas, construtivistas e sociointeracionistas para seu repensar. Pensar conhecimento
em rede, portanto, é ato histórico, possível a partir das produções dos sujeitos sociais em
interação. Como produção, sofre as contradições e as tentativas de apreensão — e
conseqüentes leituras — por parte dos que o tomam como possibilidade de compreensão. Por
um lado, há tendências que acabam por lidar com as redes com lógicas semelhantes de
aprendizagem aos modelos convencionais de disseminar informações; por outro, elas (as
redes) exigem dos usuários uma condição de “estar aberto ao novo” para enfrentar os desafios
que agregam ao uso e às questões impostas aos modos de buscar informação.
Apesar da polissemia do vocábulo rede, cada vez mais se configura a sua enunciação
como uma noção aglutinadora do fazer coletivo. Como assinala Kohn (1994), a rede atravessa
o espaço, o tempo e a ordem estabelecida, aglutina elementos dispersos, cria um território
intersticial onde menos se espera. Como objeto de dupla constituição, espacial e social,
nenhuma rede pode existir sem base material e técnico-organizacional, mesmo que reduzida,
assim como não pode destituir as relações interpessoais, por serem os sujeitos os tecelões
dessa trama.
A interação assim possibilitada, retratada como subjetividade, refere-se às criações de
sujeitos individuais e coletivos, que em redes, as mais diversas, estabelecem novas formas de
12 Um desses autores nacionais é Nilda Alves, que vem produzindo conhecimento nessa área, por meio da constituição, exercício e consolidação de uma rede de estudos e pesquisas, atualmente sediada no Programa de Pós-graduação em Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. 13 Grafia em árvore diz respeito ao modo como o conhecimento se estrutura na modernidade, de forma disciplinar, exigente de hierarquias que pressupõem aprendizagens “mais fáceis” antecedendo “as mais difíceis”, ocasionando, por isso mesmo, caminhos únicos para o aprender, que não admitem rupturas nem atalhos, exigindo linearidade e nenhuma surpresa, nem “saltos”.
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contato e expressão no mundo e do mundo, não mais como consumidores das produções, mas
autores/produtores, cujas formas de resistência constituem modos de declarar sua negação à
passividade, à disciplina, à condição de espectador da ciência e da técnica, fetichizadas pelo
capital.
As redes podem, ainda, disponibilizar com agilidade as informações circulantes,
tornando-se capazes de promover a atualização dos conhecimentos gerados de forma intensa
pela cultura e pela ciência humana. Esta condição coloca, por exemplo, a formação
continuada como uma prática que acompanhará toda a vida social dos sujeitos.
Dessa concepção de conhecimento, segundo Gallo (1997), emerge como representação
a metáfora do rizoma, construída por Deleuze e Guattari, que subverte a metáfora arbórea.
Essa nova metáfora implica, para sua configuração, entradas múltiplas, próprias dos sistemas
complexos. Assim compreendida, inaugura rupturas que precisam ser objetos de estudos e
pesquisas nos múltiplos campos de conhecimento e, em especial, na área de educação.
Dialogando com Morin (2001, p. 490), em busca de sentido para a idéia de
complexidade, inequívoca e incessantemente presente no cotidiano de pesquisadores do
campo da educação, e alertada de que “todo conhecimento é uma tradução a partir dos
estímulos que recebemos do mundo exterior e, ao mesmo tempo, reconstrução mental,
primeiramente sob forma perceptiva e depois por palavras, idéias, teorias”, passei a assumir
determinados conceitos, estabelecidos como guia para o processo de captar o objeto de meu
estudo como um sistema complexo, ao mesmo tempo em que ousei discuti-lo por meio de
uma formulação que desejou incorporar também modos mais complexos de apreender a
realidade, para o que evoco o mesmo Morin (2001, p. 491), ao explicar as relações entre o
todo e as partes, indispensáveis para a produção/apreensão do conhecimento:
[...] a partir do momento em que temos um certo número de instrumentos conceituais (grifo meu) que permitem reorganizar os conhecimentos — como para as ciências da Terra, que permitem concebê-la como um sistema complexo e que permitem utilizar uma causalidade feita de interações e de retroações incessantes —, temos a possibilidade de começar a descobrir o semblante de um conhecimento global, mas não para chegar a uma homogeneidade no sentido holista, uma homogeneidade que sacrifique a visão das coisas particulares e concretas em nome de uma espécie de névoa generalizada. Sem dúvida, é a relação que é a passarela permanente do conhecimento das partes ao do todo, do todo à das partes, segundo a perspectiva de uma frase de Pascal pela qual sinto um apego especial: “Sendo todas as coisas causadas e causadoras, auxiliadas e auxiliantes, mediatas e imediatas, e sustentando-se todas mutuamente por meio de um elo natural e insensível que liga as mais distantes e diferentes, eu assevero que é impossível conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes.”
33
Meus instrumentos conceituais, portanto, passaram a ser visibilizados à medida que
fui dando conta dos limites da minha compreensão, para apreender meu objeto, no sentido
antes exposto. Ardoino (2001, p. 548, 550) chama a atenção de que complexo, ao contrário de
simples e claro, que privilegiam um conhecimento baseado na evidência e na transparência,
também não se alinha com a acepção ainda subsistente de complicado, mas assume os usos
triviais advindos do latim, que lhe conferem os sentidos de tecido, trançado, enroscado,
cingido, enlaçado, apreendido pelo pensamento, e que segundo Morin corresponde
essencialmente a uma reforma, uma revolução do procedimento de conhecimento que quer
manter juntas perspectivas tradicionalmente consideradas antagônicas: universalidade e
singularidade. Para Morin (2001, p. 562) a questão posta pode ser assim resumida: “como
conceber a relação específica entre aquilo que é ordem, desordem e organização?”
A máxima de Pascal para quem o conhecimento do todo precisa do conhecimento das
partes, que precisam do conhecimento do todo, para Morin (2001, p. 563) indica a idéia de
organização, ou seja, o autor entende que o conceito de sistema leva à idéia de organização,
que produz emergências, não expressas nas partes, mas que exigem organização — o todo —,
para assumir propriedades constitutivas que só se expressam quando organizadas em um
sistema. Porém, como
a complexidade reconhece a parcela inevitável de desordem e de eventualidade em todas as coisas, ela reconhece a parcela inevitável de incerteza no conhecimento. [...] A complexidade repousa ao mesmo tempo sobre o caráter de “tecido” e sobre a incerteza.
[...] se quisermos um conhecimento pertinente, precisamos reunir, contextualizar, globalizar nossas informações e nossos saberes, buscar, portanto, um conhecimento complexo. (MORIN, 2001, p. 564, 566).
Assumindo a necessidade de, na metodologia da pesquisa, trabalhar com o
pensamento complexo — e suas formas de apreender o objeto —, adotei os instrumentos
conceituais sugeridos por Ardoino (2001, p. 550-555): complexidade e heterogeneidade (esta
constitutiva da complexidade, por sua natureza plural, que inclui o conflito, a alteração, o
reconhecimento da importância do tempo e da história para a compreensão dos fenômenos, o
que significa admitir os processos olhados em seus funcionamentos específicos, com sua
duração e sua memória); ambição de domínio (traduzida não pelo sentido de quem tem
controle sobre o outro, como uma capacidade de superioridade e controle, mas sim traduzida
pela familiaridade com o objeto, ligada à duração e à experiência; é o domínio de
acompanhamento, o que implica mais o tempo, do que o espaço, ou seja, domínio, por
exemplo, de um artista por sua arte; ou o domínio de uma associação de trabalhadores sobre
34
seus processos de luta política); e multirreferencialidade (uma pluralidade de olhares, tanto
concorrentes, quanto eventualmente mantidos unidos por um jogo de articulações, que
possibilita, pelos variados sistemas de referência, alterá-los e elaborar significações mestiças,
em favor de uma história).
Embora assumindo a idéia de instrumentos conceituais, devo concordar com Soares
(2005, p. 130), quando discutindo os sentidos para categoria, ao buscar compreender as
associações dos sujeitos com o tráfico, diz que ela “funciona como um guarda-chuva: contém
e destaca o objeto que descreve, mas também, sob a sombra protetora, por vezes esconde e
dissolve aspectos seus, essenciais”. Não estive livre desse risco do esconder à sombra o que
deveria ser visto, quando atuei na formulação do objeto, tanto quanto no momento em que me
dispus a torná-lo visível. “A janela secreta que devassa a experiência humana está na
diferença, está nas qualidades que distinguem e particularizam, assim como estão aí as chaves
para eventuais soluções dos problemas”. (SOARES, 2005, p. 130). Essas realidades, afirma o
autor na mesma página, singulares e estranhas, “[...] amiúde traem as categorias. Essa
estranheza (este excesso que desafina e transborda limites e classificações, exigindo de nós o
refinamento dos instrumentos de percepção) talvez carregue o que realmente importa”, e
conclui dizendo que, “com freqüência, as categorias, mesmo a serviço da ciência, acabam
rotulando e estigmatizando grupos humanos e indivíduos”. Tomei os alertas de Soares à risca.
No dizer de Najmanovich (1995, p. 68), o sujeito complexo produziu um giro
fundamental e irreversível no modo de pensar, porque “sabe que todo conocimiento del
mundo lo incluye necesariamente, como Velázquez, que aparece pintado en su obra Las
Meninas. El sujeto de la perspectiva, que se había sustraído del cuadro del universo, reingresó
en él”.
Para captar essas redes do conhecimento que tais projetos produzem, incluída, como
Velázquez, empreendi um modo de investigação visando a alcançar a complexidade presente
nas formas como se operam os projetos, mas nem sempre visível sem lentes especiais até para
pesquisadores experimentados. Aí estava, efetivamente o desafio: tecer essa rede para além
dos contatos físicos com os quais ela opera, ou seja, sendo capaz de simbolizar as conexões
imateriais existentes entre sujeitos e saberes, promovendo uma atitude de escuta em que
pudesse situar os acontecimentos — a experiência — com toda a intensidade que eles
geravam. Mas, ao mesmo tempo, mergulhando fundo nas formulações escritas nos múltiplos
documentos coletados. Com eles deveria travar um diálogo sistemático, não das faltas, nem
das lacunas, mas das consistências inventivas e nômades que contêm, e das fragilidades
35
transitórias que os atam, revelando os liames que se entrelaçam e rebusqueiam as formas de
fazer a EJA sem que, necessariamente, se alterem as práticas, ou se mudem os quefazeres
pedagógicos, para além dos discursos que enunciam essas práticas como novas. Cabia-me
fazer emergir a singularidade e a potência de cada projeto, não apenas no quanto a prática
cotidiana reproduz o funcionamento do social, mas no tanto que a promoção de
acontecimentos ressaltava e produzia processos novos e consistentes de participação e de
exercício de democracia para sujeitos antes excluídos do direito à educação.
Mas se o movimento da pesquisa desafiou-me a estabelecer um modo de captar a
realidade conectando os projetos de forma a tecer uma rede que ressignificasse a educação de
jovens e adultos, apropriando-me das concepções que os sustentam, a escrita deste trabalho
desafiou-me, também, por me exigir pensar em rede, como “una estrategia que nos habilita a
relacionar las producciones sociales y la subjetividad que en ellas se despliega, y a partir de
esta concepción planteamos la necessidad de desarrollar una política de subjetividad”.
(SAIDÓN, 1995, p. 204).
Havia, então, ainda, o desafio da escrita para enfrentar. Se uma certa clareza conceitual
e uma formulação se anunciavam para que eu tecesse, na pesquisa, a rede de relações e de
conhecimentos, não deixando com que se dissolvessem as experiências, de que modo
organizá-las; organizar o percurso vivido — sua história e nexos; as compreensões, guardando
o devido cuidado para não provocar mutilações, nem perder, pela narrativa, a textura, o
entrelaçar de fios que não se alinhavam em nenhuma simetria, mas se enredavam,
complexamente?
Assim, tentando criar o campo material do corpus teórico que compus, idealizei a
ilustração que busca mostrar a teia figurada que se forma entre os projetos selecionados,
enredando-os, em uma aproximação semelhante à das sinapses na cadeia neuronal —
representadas pelas inúmeras pontas das figuras estelares em conexão com outras figuras —
que estabelecem relação de contigüidade entre os neurônios, fazendo passar o impulso
nervoso que leva as informações. No caso, os neurônios são projetos/programas
institucionais, e não há continuidade entre eles, mas também contigüidade. As trocas se dão
por passagem, ao mesmo tempo, de um ao outro, ao nível das sinapses, sem que, no entanto,
haja desidentificação do que cada um é, da unidade totalizante que forma cada um. A cor
amarela, que compõe o fundo e os espaços entre os projetos, constitui o interstício, uma
espécie de tecido conjuntivo, o ambiente social de aprendizagens que preenche os espaços e
onde, em última instância, as intervenções pedagógicas se dão no tempo, afetando — ao
36
mesmo tempo em que afetadas —, (por) esse mesmo ambiente. Esse interstício é ocupado
pelos Fóruns de EJA, integradores nas redes dos múltiplos projetos/programas, que nesse
espaço interagem e dialogam. Por último, representar esta imagem no plano peca por não
demonstrar a tridimensionalidade, e, melhor, ainda, a multidimensionalidade, possibilidade
unicamente espacial de perceber que todo o conjunto se move, não é estático, podendo
estabelecer por vezes outras relações de maior proximidade, ou seja, mais diretas ou, ainda,
relações indiretas, pelo lugar que ocupam em dados momentos da realidade histórica. A
bidimensionalidade representada no plano tem, do mesmo modo que no espaço, os sujeitos de
aprendizagem como essência — produtores e consumidores de conhecimentos, que se alteram
entre si, tanto no interior das instituições, quanto nos interstícios.
Tal como na célula viva, a relação estabelecida com o meio é de interpenetração, por
ser a membrana celular um limite semipermeável, em que moléculas entram e saem da célula,
enquanto outras não são capazes de fazê-lo. Mas cada molécula que entra passa a fazer parte
da organização celular que sustenta a vida da célula e, com a rede de relações que estabelece e
com as propriedades emergentes da interação. Quando as moléculas atravessam a membrana,
transformam a rede de relações, gerando, assim, transformações na identidade — não mais
pensada em si e por si mesma, mas no emaranhado relacional co-evolutivo.
(NAJMANOVICH, 2001, p. 24-25).
Os fios que os unem, criando relações entre eles, são atos de aprendizagem, feitos
pelas inúmeras situações a que os sujeitos se submetem, em encontros materiais e imateriais
37
— estes do nível do simbólico —, tanto provocadas pela proximidade de afetos e modos de
ser/viver/conviver, quanto pelas ferramentas que organizam as próprias situações de
aprendizagem: currículos, conteúdos, estrutura didática, organização pedagógica etc. Ao
tentar compreender objetos complexos, cujo conhecimento sobre eles — dados e idéias que
elaboramos a propósito dos objetos — revelam “a qualidade do olhar do pesquisador, quando
os empreendimentos de inteligibilidade mais clássicos, canônicos tiverem se mostrado vãos,
que convém, sobretudo, refletir em vez de pensar nas propriedades assim emprestadas ao
material da pesquisa”. (ARDOINO, 2001, p. 551).
Sou, portanto, nesse processo de compreensão, um sujeito encarnado, “nome de uma
categoria heterogênea, facetada e de limites difusos. Uma categoria não clássica, já que os
elementos que a formam não compartilham de uma propriedade comum, mas têm entre si um
‘traço de família’” (NAJMANOVICH, 2001, p. 28), que me permite compô-la em relação à
minha experiência, aos cruzamentos teóricos, estéticos, éticos, afetivos, emotivos que incluam
meu estar no mundo, implicado com o campo e o corpus da pesquisa, desenvolvendo-a na
trama evolutiva de minha vida, inseparavelmente ligada à minha experiência pessoal e social,
às tecnologias cognitivas, sociais, físico-químicas, biológicas e comunicacionais nas quais
estou imersa.
Com Najmanovich (2001, p. 28-29), tendo a concordar ainda quanto ao desafio que se
tem, na contemporaneidade:
[...] se relaciona com a riqueza de perspectivas e, por outro lado, de mundos possíveis onde conviver, mas também exige nos fazer responsáveis pelo lugar em que escolhemos fazê-lo. O sujeito encarnado desfruta do poder e da criatividade e da escolha, mas deve assumir o mundo que co-criou.
22..11 QQUUEESSTTÕÕEESS DDAA PPEESSQQUUIISSAA
A compreensão dos muitos sentidos produzidos pelos projetos de educação de jovens e
adultos fez emergir uma rica trama que vem sendo urdida no tecido social com forte
componente da sociedade civil, por meio de sujeitos coletivos que se engajam em processos
decisórios e participantes de uma história também coletiva, retomando o controle da situação
que se supunha desacreditada.
Por lo tanto, pensar en red para facilitar las ligazones reconstructivas del tejido social no puede estar guiado por una actitud voluntarista, sino que requiere un pensamiento acerca de la complejidad, que tenga en cuenta la producción de subjetividad social en los más diversos acontecimientos. (SAIDÓN, 1995, p. 205).
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Mas não são as concepções e, sim, especialmente as práticas, que vêm definindo a área
da educação de jovens e adultos, na vertente da escolarização. Essas práticas, por muito
tempo, e até hoje, estão compreendidas como aquelas que prestam atendimento aos que se
encontram privados, porque não sabem ler e escrever, da rede de conhecimentos que se
produz, se organiza, se dissemina, se socializa por meio da escrita. A educação de jovens e
adultos muito acumulou de experiências de alfabetização, no sentido estrito de aprendizagem
do código, ao longo de décadas, embora não se possa associar esse acúmulo a nenhuma
medida que indique sucesso, na luta que se trava “contra o analfabetismo”, buscando ensinar a
ler e a escrever.
De uma visão inicial coerente com o conhecimento disponível nos estudos da
alfabetização, o dado diferencial da educação de adultos para a educação infantil, quando esta
diferença existia, foi quase sempre a proposição de livros de leitura elaborados com palavras
do universo vocabular do adulto, abandonando as até então utilizadas cartilhas infantis, que
partiam da premissa de que era o método que alfabetizava. Se por um lado as palavras,
“grávidas de mundo” no dizer de Paulo Freire (1984) ganhavam novos sentidos, no entanto
pouco se avançava quanto aos processos mentais que desenvolviam os sujeitos diante desse
objeto de conhecimento simbolizado pelo texto escrito. Às experiências freireanas e seus
ensinamentos (pelas metodologias de que se valeram) — coerentes com o modo de
reconhecer e respeitar saberes, valores pessoais e sujeitos em interação e em processos de
interlocução e diálogo entre pessoas e conhecimentos diferentes, mas não desiguais —, mais
do que ao método e às palavras que usavam (porque eles continuavam a tomar a palavra como
base e a sílaba como unidade de conhecimento e aprendizagem da língua) pode-se creditar
grande parte dos avanços na área. Ainda hoje, esta visão do método como o que alfabetiza
marca muitos programas de alfabetização de adultos, como também o de crianças, a despeito
dos estudos e pesquisas disponíveis, que custam a alterar as práticas pedagógicas.
As concepções de alfabetização, por exemplo, são ainda um grande desafio a
enfrentar, marcadas que estão por processos que formaram — e formam — educadores,
fazendo-os crer que são eles os que ensinam, e que se não o fizerem, os alunos não serão
capazes de aprender. A recíproca, no entanto, não é verdadeira, pois quando os alunos não
aprendem, historicamente a “culpa” do fracasso tem sido exclusivamente deles próprios, não
cabendo responsabilidade aos professores. Os saberes e conhecimentos dos sujeitos formados
fora da escola têm pouca chance de serem aí considerados e, quase sempre, são negados
quando se os põem em condição de aprender a ler e a escrever. Minha pergunta-guia, então,
39
pode ser assim resumida, no tocante à alfabetização de jovens e adultos: que concepções de
alfabetização e de escolarização fundamentam, então, as propostas curriculares na EJA e
como contribuem para atualizar as concepções próprias do campo da educação de jovens e
adultos?
Outro aspecto importante para pensar os processos que cercam as experiências de
alfabetização é o de acreditar que durante este período devem-se ler livros de “aprender a ler”,
cartilhas ou assemelhados, deixando de fora todos os materiais disponíveis e favorecedores do
encontro de textos, em suportes diversos nos quais se lê, na prática social. A ausência do
livro, especialmente entre as populações mais pobres, faz com que ler só tenha sentido na
escola, por não se criarem demandas sociais pela leitura e pela escrita. A inacessibilidade dos
textos, das informações, a não-percepção do para que serve ler e escrever faz com que mesmo
os que aprendem, rapidamente possam tornar-se analfabetos funcionais, pelo desuso da
aprendizagem e o domínio de um sistema que lhes parece de pouca utilidade prática. A
complexidade social encerra, nesses tempos em que vivemos, muitas outras linguagens e seus
códigos, necessitando conhecimento, apreensão e apropriação, como instrumentos de poder
simbólico que os discursos, em suas mais variadas formas e manifestações produzem. Essas
outras linguagens, embora venham sendo apropriadas por força das contingências da prática,
são quase abandonadas na escola, que tem constituído um campo próprio de linguagens,
descolado das práticas e envolvido por seus muros e demarcado pelas fronteiras do que se
concebeu como “conteúdos formais”. O “não-formal”, freqüentemente desqualificado, está
fora da escola, hierarquicamente colocado como saber inferior, por constituir saber da prática,
não-sistematizado. Apesar de ser por esta via que mais se ampliam os aprendizados, se for
considerada conceitualmente, segue-se negando-a, por se entender que o locus da
aprendizagem é a escola.
As concepções de educação permanente, elaboradas na década de 1970, encerrando
concepções mais ideológicas do que epistemológicas, voltam à cena no final da década de
1990, reconceitualizadas, face à necessidade de se pensar desenvolvimento e educação,
cidadania e empregabilidade, conhecimento e cultura, diversidade e unidade. A educação de
adultos passa da idéia de recuperação de tempo perdido à concepção de direito, tanto
englobando o saber ler e escrever em sociedades letradas como condição de busca de
igualdade, às concepções de promoção de cidadania, pela tomada de consciência de direitos
de gênero, de etnia, à qualidade de vida, ao bem-estar social, à opção por estratégias de
desenvolvimento local sustentável. Embora estes sejam, também, projetos de EJA, por
40
lidarem com a educação em direitos, o escopo desta pesquisa não tratou deles, embora se
admita que esses projetos apontam novos caminhos para repensar a área e inserir o restrito
campo — até então vinculado à alfabetização ou à educação básica, no domínio da
escolarização — em projeto social mais amplo, de educação permanente, em que a
escolarização é etapa fundamental, sim, mas associada à perspectiva de educação continuada,
pelo direito de aprender pela vida inteira. Coube-me, por fim, investigar com que perspectivas
teórico-metodológicas os saberes da prática social passam a constituir as redes de
conhecimento em projetos de educação que visam ao direito de todos à educação, e que
implicação têm no repensar os sentidos contemporâneos da educação de jovens e adultos.
22..22 DDEE CCRRIITTÉÉRRIIOOSS,, OOPPÇÇÕÕEESS,, EESSCCOOLLHHAASS
Com vistas a organizar o conjunto de projetos selecionados, segundo os critérios
definidos, retomo-os, apresentando aqueles que atendem primordialmente à definição, ainda
que possam/devam corresponder a mais de um deles:
Abrangência nacional — independente da proposta/concepção, a prática está sendo
realizada em vários estados da federação, por um ou mais organismos, envolvendo
um largo número de sujeitos, o que quase sempre contraria as lógicas da EJA, de
pequenas experiências, localizadas.
Os projetos selecionados que atendem ao critério foram: Programa Alfabetização
Solidária; Programa SESI Educação do Trabalhador – SESIeduca; Programa SESC Ler.
Antiguidade e permanência da organização na rede pública — independente da
concepção, o fato de estar institucionalizada, ininterruptamente, como modalidade
de atendimento, no sistema de ensino.
Projetos selecionados: Programa de Educação de Jovens e Adultos - PEJA, da
Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro; Programa de Educação de Jovens e
Adultos, do Estado da Bahia.
Necessidade de oferecer resposta específica, considerando a realidade de uma dada
região/sujeitos — verificar a consistência de propostas que se orientaram pela ação
de EJA com formato próprio, considerando a especificidade de uma região/sujeitos.
Projetos selecionados: Programa de educação de jovens e adultos, desenvolvido pelo
MST — Sempre é tempo de aprender / Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária
(PRONERA); Programa SESC Ler.
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A escolha desses projetos não se coloca com nenhuma superioridade sobre qualquer
outra, devendo destacar que outros programas/projetos têm estatura e envergadura para
enfrentarem estudos que se disponham a capturar concepções e sentidos. As circunstâncias e
os acessos a estes, no entanto, acabaram por defini-los como integrantes do corpus da
pesquisa, recomendando-se, entretanto, futuras investigações sobre outras construções no
campo da educação de jovens e adultos.
Para apreender os sentidos e as concepções que os programas/projetos selecionados
portam, tanto nas formulações, quanto nas práticas, busquei:
a) os constituintes e determinantes da concepção de EJA e de alfabetização expressos nos
discursos e nos documentos.
▪ a existência de histórico demarcando o lugar da educação de jovens e adultos no sistema
de ensino, com referência à situação educacional da população (dados do Censo – IBGE,
de analfabetismo etc.) e o atendimento que vem sendo realizado no sistema, ou fora dele;
▪ princípios/fundamentos reveladores das concepções do que é ensinar e aprender na
educação de jovens e adultos: demarcação dos sujeitos e especificidades para o conjunto
especificado; existência de saberes prévios; participação ativa no processo de aprendizado;
metodologias adequadas à condição de jovem e/ou adulto;
▪ a abrangência da compreensão do direito à educação para jovens e adultos: concepção do
que é EJA e, conseqüentemente, da oferta de atendimento;
▪ evidências justificadoras da concepção / identificação com políticas de financiamento
federal a programas na área;
▪ indícios de continuidade da ação, seja pela própria entidade, seja pelo encaminhamento
adotado/enunciado.
b) as concepções submersas, fazendo-as emergirem, a partir dos instrumentos conceituais e
das ferramentas que organizam as próprias situações de aprendizagem — currículo (rede
de conhecimentos/estruturação de disciplinas); concepção de conteúdo das disciplinas
(construção ou “passar conteúdo”); níveis de atendimento na EJA (só alfa, 1º segmento,
ensino fundamental, regular noturno); espaço-tempo de leitura e escrita / oralidade;
escrita (a existência ou não de recursos tecnológicos, vencendo a questão da “mão
endurecida”); avaliação e continuidade.
▪ currículo — entendido como noção central para compreender as formas como se
tecem/produzem os conhecimentos; se se supera, ou não, a concepção formalista de
currículo, admitindo a incorporação, aos seus aspectos formais, de elementos mais
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dinâmicos do cotidiano das escolas/classes e as práticas cotidianas, reveladoras de
trabalhos pedagógicos diferenciados; concepções de práticas pedagógicas X autonomia do
professor;
▪ concepção de conteúdos das disciplinas — concepções sobre a seleção e o modo de
organizar os conteúdos na proposta de EJA: tempo e espaço para realizá-lo; campos de
conhecimento; hierarquias: seriação, pré-requisitos, valorização de campos de
conhecimento sobre outros, invisibilidade de alguns etc.;
▪ níveis de atendimento na EJA — se alfabetização; se curso em nível do primeiro segmento
do ensino fundamental; se curso em nível do ensino fundamental completo, se educação
continuada, com o sentido do aprender por toda a vida;
▪ espaço-tempo de leitura e escrita / oralidade; escrita — evidências dos objetivos reais X
formais da proposta de alfa/EJA; concepções do que é ler e escrever; tempos de
aprendizagem: duração do projeto; organização diária das aulas/atividades; seguimento;
recursos materiais e tecnológicos à aprendizagem.
▪ avaliação / continuidade — sentido de satisfação na terminalidade oferecida X perspectiva
de continuidade X direito à continuidade de estudos; usos dos resultados da avaliação;
onde se coloca o objetivo da conclusão do curso: na certificação, na aprendizagem, no
saber ler e escrever? Reconhecimento formal ao curso: direito à continuidade.
Os modos como cada programa/projeto foi abordado estiveram condicionados também
a fatores de ordem conjuntural, que tanto favoreceram a construção da abordagem, quanto a
restringiram.
De todos os programas/projetos, no entanto, os documentos básicos estiveram sob o
foco da pesquisadora, sem exceções, limitados apenas pela quantidade de textos
sistematizados e pela disponibilização que cada instituição fez deles.
As práticas, no entanto, não atenderam aos mesmos modos de abordagem, pelo fato de
implicarem, na maior parte dos casos, deslocamentos aéreos e estadias em locais nem sempre
de fácil acesso, previsíveis para uma pesquisa de abrangência nacional. Ainda assim, o apoio
do Programa de Pós-graduação da UFF foi decisivo para possibilitar algum trabalho de
campo. Uma variedade de métodos de abordagem, com vistas a captar os diversos níveis de
realidade, possibilitaram a escuta e a apreensão dessas práticas, por meio dos discursos de
participantes dos programas/projetos, de variados níveis institucionais. O quadro a seguir
demonstra o material recolhido pela pesquisa, objeto de discussão nesse capítulo e nos demais
seqüentes.
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Programas /
projetos Documentos Entrevista Grupo focal Visita
técnica
SEC/BA Portaria SEE-BA nº. 14158 de 26/10/2004; Ensino Fundamental – Aceleração I e II; CPA – levantamento estatístico 2003; Programa de Educação de Jovens e Adultos do estado da Bahia: concepção, princípios e projetos; Documentos e publicações do Programa AJA Bahia; Ensino Fundamental para a EJA 2002/2003; Portaria nº. 12235/2002; Resolução CEE 138/2001; Comissões Permanentes de Avaliação 2002/2003
Entrevistas semi-estruturadas, gravadas com gestora do sistema de ensino; com diretora de unidade escolar; coletiva, com diretor e vice-diretora
Gestores e equipe técnica central; supervisor e professores.
Unidade escolar e a centro de referência em EJA
PEJA/RJ Projeto de Educação Juvenil s/d Dissertação de Mestrado de Marilda de Jesus Henriques sobre a implantação do PEJ Relatório de campo para o estudo de caso da Pesquisa Juventude, Escolarização e Poder Local: Novos desenhos da Educação de Jovens e Adultos na esfera local e Relatório final (versão preliminar) Documento Entre expectativas e incertezas: os dez primeiros anos do projeto de educação juvenil (1985-1995), de Ênio José Serra dos Santos
Entrevistas semi-estruturadas com ex-gestores e com gestor atual Entrevistas gravadas com diretores e coordenadores pedagógicos de dois CIEPs e do CREJA
Professores e alunos de duas escolas públi-cas e de centro de referência EJA
—
SESI Vol. 1, 2 e 3 da Série SESI Educação do Trabalhador – A empresa e a educação do trabalhador; Para falar em Andragogia e Andragogia facilitando a aprendizagem; A educação de jovens e adultos, instrumento privilegiado de mudança social; Programa SESI Educação do Trabalhador – elevação da escolaridade básica; Metodologia SESIeduca – Educação de Jovens e Adultos; Programa Nacional de Ensino Fundamental de Adultos; Rede SESI de Educação
Entrevista semi-estruturada, gravada, com gestor em nível nacional
— —
SESC Ler SESC Educação – Proposta pedagógica da Educação de Jovens e Adultos; SESC Educação – Proposta pedagógica do SESC Ler Questionário para técnicos em nível
nacional — —
MST Relatório da avaliação do PRONERA Documentos orientadores da formulação do PRONERA Cadernos de Educação n. 8, 11; Boletim de Educação n. 9 Relatório Geral. Avaliação Externa do Programa PRONERA Diretrizes operacionais para a educação básica nas escolas do campo. Resolução CNE/CEB n. 1, de 3 abr. 2002. Referências para uma política nacional de educação do campo: caderno de subsídios. MEC/SEMTEC Pesquisa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PNERA (versão preliminar)
Questionário com gestora de nível nacional; entrevista semi-estruturada gravada com gestora estadual e com educadores no campo.
— —
PAS Programa Alfabetização Solidária – Proposta político-pedagógica – 1ª versão; Boletim Alfabetização Solidária – dez 1998; Relatório de 4 anos de atividades do PAS 1997-2000; Revista da Alfabetização Solidária n. 4 – 2004. A Educação de Jovens e Adultos em discussão; Escrevendo juntos n. 28 e 29 – 2004; Trajetória 2004 - 8 anos Responsabilidade e inclusão social
Questionário para gestor e técnicos de duas universidades
— —
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A discussão que estabeleço nos capítulos que virão a seguir busca apreender os
sentidos do direito à educação produzidos no campo mais amplo da conquista dos direitos
nas sociedades, e como esse direito se faz para jovens e adultos, como um dos
fundamentos de sociedades democráticas. Percorro, então, os movimentos internacionais
que constituem o campo e asseguram comprometimentos aos países-membros da ONU,
historicamente, assim como o faço no nível nacional, conectando os sistemas complexos
que envolvem o pensar e o fazer da educação de jovens e adultos. Em seguida, remeto-me
aos programas e projetos selecionados, ativos, recentes, sobre os quais meu envolvimento
como profissional da área se antecipa ao de pesquisadora desse tema, ao tomá-los como
referência.
Seguindo os instrumentos conceituais a que me referi neste capítulo, no dizer de
Morin e Ardoino (2001) e buscando as ferramentas teóricas que intentam alcançar as
concepções, com vistas a capturar a complexidade com que estes programas/projetos se
dão, inicio a discussão com aqueles que se produzem no interior dos sistemas públicos
estadual e municipal. Trago à compreensão, a seguir, os que se fazem no espaço do
Sistema S para, por fim, apresentar um projeto do âmbito do movimento social organizado
e de uma organização não-governamental, com vista a — partindo de todo esse amplo
conjunto formulado/praticado — fazer emergir as concepções da educação de jovens e
adultos que se podem manejar no intuito de compreender a configuração do campo e as
implicações desse campo, como espaço de direito, com outros movimentos da sociedade.
46
33.. CCAARROOSS CCOONNCCEEIITTOOSS:: DDIIRREEIITTOO ÀÀ EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO CCOOMMOO BBAASSEE DDAA
DDEEMMOOCCRRAACCIIAA
A proposta da pesquisa exigiu a definição de um arcabouço teórico que erigi a partir
de dois conceitos, para compreender os sentidos assumidos pela EJA na atualidade. São eles:
direito, entendido pela conquista do direito à educação e esse mesmo direito, como
fundamento da perspectiva democrática.
33..11 PPRREEMMIISSSSAASS IINNIICCIIAAIISS PPAARRAA PPEENNSSAARR OO CCOONNCCEEIITTOO DDEE DDIIRREEIITTOO ÀÀ EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO::
CCOONNTTRRIIBBUUIIÇÇÕÕEESS DDEE EEDDUUCCAADDOORREESS BBRRAASSIILLEEIIRROOSS
A questão do “direito a” emerge em um conjunto de oposições existentes em práticas
sociais a que alguns têm acesso e outros não, tanto configurando a negação de participar
dessas práticas, quanto configurando o privilégio de alguns de poder participar dessas mesmas
práticas: alfabetizado - não-alfabetizado; escolarizado - não-escolarizado; leitor - não-leitor;
incluído - excluído; e, ainda, os conceitos de analfabetos - analfabetos funcionais;
desescolarizados; e não-incluídos, todos eles refletindo a situação de sujeitos segundo as
condições de acesso a alguns direitos — sociais, nesses casos — caros ao exercício da
cidadania.
Essas oposições, visíveis para mim no campo educacional a partir do interesse que me
despertam, porque aproximam ou afastam e até mesmo apartam sujeitos de
fundamentos/instrumentos das sociedades grafocêntricas — o saber ler e escrever —,
desempenham, nessa mesma sociedade, de classe, capitalista, um papel decisório para definir
o lugar social dos sujeitos que por ela são categorizados. Categorias essas que se hierarquizam
no mesmo modelo social, quando se parte do que se pode considerar o “grau” menor — talvez
o não-alfabetizado —, seguindo-se até um topo, que tanto se identifica com o status de leitor,
quanto com o de escolarizado.
Para alguns, a condição de passar de um lado a outro dessas oposições (saindo do que
representa o nulo para o pleno) constituiu um privilégio, enquanto para outros, trata-se de
dom, de direito natural, inconteste.
Como todas elas dizem respeito a uma construção social conhecida como direito à
educação — forma pela qual o conhecimento é alcançado, por meio de um sistema
codificado, tornado bem cultural simbólico das civilizações — ter acesso, ou não, a esse bem
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constitui o direito e, por oposição, não ter acesso, o não-direito, freqüentemente traduzido
como exclusão/apartação, por não ser ele direito natural, mas construção social.
Ao longo da história da educação podem-se acompanhar diversos modos como o
direito à educação veio sendo conquistado, destacando-se algumas personagens como centrais
nessa história. No Brasil, uma delas, Anísio Teixeira, para quem “a educação é um direito”
(NUNES, 1996, p. 7), título e tema de seu terceiro livro publicado em 1968, que se segue a
um segundo, de 1957, que discute a tese de que “educação não é privilégio”, ambas como
fundamentos das formas democráticas de vida social. Seu pensamento sobre educação e
formas de mudança para a situação da escola brasileira14, além de sua capacidade de intervir
na realidade, exercendo funções de destaque, aliaram teoria e prática política. A outra, Paulo
Freire, para quem a concepção libertadora da educação é, sem dúvida, a síntese pela qual
reúne o método democrático e a forma do direito para tratar de um conteúdo — a liberdade —
que resume o caráter humanizador da educação.
Anísio Teixeira, analisando o papel do Estado democrático em relação à educação,
destaca a condição de interesse público desta, generalizada apenas no século XX. Admitindo
o lugar fundamental da educação para a perpetuação da vida social, associa a ela, no século
em que vive, o conhecimento como elemento novo capaz de possibilitar a obtenção de
homens diferentes, porque capazes de organizar e produzir modos de pensar racionais
diferentes, em condições também diferentes. Considera esse acesso ao conhecimento e a
novos modos de pensar o aparelhamento necessário a uma sociedade democrática e científica
e, para isso, invoca a exigência de uma escola especial, em que velhos processos de educação
já não eram possíveis. A forte crença de Anísio no vínculo entre sociedade democrática e
educação escolar, admite que a primeira:
[...] só subsistirá se produzir um tipo especial de educação escolar, a educação escolar democrática, capaz de inculcar atitudes muito especiais e particularmente difíceis, por isto que contrárias a velhas atitudes milenárias do homem. Terá de inculcar o espírito de objetividade, o espírito de tolerância, o espírito de investigação, o espírito de ciência, o espírito de confiança e de amor ao homem e o da aceitação e utilização do novo — que a ciência a cada momento lhe traz — com um largo e generoso sentido humano. (TEIXEIRA, 1996, p. 43).
14 Escola brasileira não é uma nomenclatura muito adequada, no meu entender, mas de que me valho criticamente. A inadequação reside no fato de que não se tem uma única escola brasileira, um único modelo de escola, dada a variedade de condições, a diversidade de culturas e de sujeitos, a multiplicidade de respostas que professores e alunos constroem no cotidiano da vida escolar, na prática docente e pedagógica. Porque aposto na criatividade e na resistência dos professores para recriarem o cotidiano sempre tão massacrado pelo descaso das políticas públicas, assumo essa crítica, pela pseudo-incoerência do meu texto, com meu discurso como formadora e praticante.
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Ao defender a democracia, não o fazia considerando a carência dos sujeitos pobres,
mas sim a omissão dos governos no refazimento das condições sociais e escolares, atuando
estrategicamente para alargar as chances educativas das crianças das classes populares e dotar
a escola pública de ensino de qualidade. Defensor implacável da educação como direito de
todos, pôs-se sempre contra o analfabetismo e à falta de consciência para os graves problemas
da educação, propondo cursos para adultos que atendiam ao desejo e à necessidade de
aprimoramento de conhecimentos desses estudantes. Trabalhou incansavelmente pela
redistribuição da educação como bem social — fundamento prático da visão filosófica de
democracia com a qual contribuiu em muitas reformas conduzidas, a partir de seu papel
também como intelectual.
Anísio Teixeira exerceu uma espécie de equilíbrio diacrônico entre o nível das
políticas públicas, das idéias pedagógicas e das práticas escolares, oferecendo seu pensamento
sobre a educação à causa política do fazer, tentando minimizar as distâncias entre as
mudanças que ocorrem em cada um desses níveis, cada uma delas com tempos e lógicas
distintos, graduais e de ritmos diversos, gerando o que Nunes (In: TEIXEIRA, 1996, p. 13)
chama de “tensão descontínua”. Opondo forma democrática de vida à forma aristocrática,
Anísio Teixeira (1996, p. 23) explicita a compreensão do princípio da igualdade individual,
que se baseia na igualdade política, e não na igualdade psicológica dos indivíduos. Afirma
que tanto se pode construir uma teoria de desigualdade social, quanto de igualdade, a partir da
constatação da desigualdade dos indivíduos, e que a forma democrática de vida exprime a
convicção de que isto não lhes incapacita à participação na experiência social, nem à
contribuição à sociedade, no tocante à afirmação de valores.
Com visão perspicaz sobre seu tempo e projetando o porvir, explicita como na história
se constrói a justificação da desigualdade, a serviço de interesses em ascensão na nova
sociedade industrial, pelas teorias do indivíduo soberano, assim como do laissez-faire
econômico, com a “mão invisível” das “leis naturais” na economia e o desprezo à
dependência desse tal regime a um novo nível educacional da humanidade, “mantendo-se o
sistema de educação das elites fundamentalmente fechado às classes populares”. (TEIXEIRA,
1996, p. 29).
Nesse quadro, o Estado nacional, segundo seu entendimento, cumpre papel essencial
substituindo a ordem feudal e aristocrática, a partir das bases do Estado moderno, produzindo
a grande riqueza das nações do oeste europeu e da América. Essa mudança na civilização
(TEIXEIRA, 1996, p. 29), dia-a-dia mais acelerada, teria sido capaz de ocorrer pelo
49
desenvolvimento da ciência e sua aplicação à vida sem que, necessariamente, mudasse
positivamente a estrutura social:
A moderna sociedade industrial, explorando ao máximo as possibilidades financeiras das novas invenções por meio de um sistema científico e impessoal de trabalho e, por outro lado, lutando com todas as forças para se manter conservadora, se não reacionária, deu em resultado a situação presente, em que um máximo de integração mecânica se alia a um mínimo de integração social, produzindo em conseqüência o indivíduo perdido, fragmentado e neurótico, em que se vem transformando o homem moderno, sensível apenas a formas de excitação ou de sensação, isto é, a choques e rupturas que se fazem indispensáveis aos seus nervos gastos e distendidos por uma vida absurda. (TEIXEIRA, 1996, p. 30).
Contesta, ainda, a chamada natureza individual do homem, a que se referia Stuart
Mill, que acredita não existir, porque atribui a condição de social a essa natureza, sem que o
individual se oponha ao social, nem o indivíduo às sociedades, nas quais revela atitudes
diferenciadas, mais ou menos adaptadas e integradas, mas sempre sociais.
Por essa complexidade, entende que a educação necessita ser cada vez mais extensa
em anos de escolaridade, o que não lhe basta sem que seja reconstruída com novos sentidos,
adequados às exigências dos interesses públicos de formação do cidadão, membro de um
corpo social extremamente complexo e plural em que a sociedade se transformou. Nessa
extensão em anos de escolaridade, percebo no pensamento de Anísio a idéia de alargamento
da formação do cidadão, não restrita às séries iniciais nem à educação básica, mas contínua e
sistemática; como também percebo o embrião do sentido que se atribui à educação de jovens e
adultos, contemporaneamente, de educação continuada, pelo direito de aprender por toda a
vida.
Por essa mesma complexidade, defende que as escolas sejam organizações locais,
administradas por conselhos leigos e locais, com o máximo de autonomia possível, o que
implica a constituição de um caráter pluralista e democrático ao Estado, contrário a qualquer
outro monolítico e uniformizante, portanto não-democrático. Educação pública, então, para
Anísio Teixeira, “será a educação que melhor serve aos interesses múltiplos e complexos dos
indivíduos e não algo que se lhes oponha e de que eles se tenham de defender. A escola
pública é por excelência a escola da comunidade [...]”. (TEIXEIRA, 1996, p. 47).
Anísio Teixeira, apontado como pensador liberal, foi coerente em toda a sua vida, na
defesa da democratização da cultura e da educação, encarnando desejos de liberdade e de
construção da autonomia do povo brasileiro. Suas idéias sobre educação, caráter público,
direito e democracia são, incontestavelmente, fundantes para pensar o direito de todos à
50
educação como direito público subjetivo e direito humano fundamental, o que exige a
inclusão da modalidade de educação de jovens e adultos no âmbito desse direito.
Entretanto, a existência da formulação legal do direito à educação, como defendido
por Anísio Teixeira, não significa sua prática, assim como a luta pelo direito nem sempre
chega a constituí-lo.
Também Paulo Freire, cujos vínculos com a cultura antropológica determinou outro
olhar sobre os processos educativos, fez na prática, mais do que no discurso, a vivência da
democracia. Buscando compreender os fenômenos de nossa formação social, pelo ponto de
vista psicossocial, e como a questão da opressão se introduz e se instala no universo subjetivo
do próprio oprimido, produzindo não apenas atitudes submissas, mas extremamente
autoritárias quando em situação favorecida — oprimidos que oprimem, aderentes ao conteúdo
do opressor — Freire revela intensa preocupação com a desigualdade das relações de poder da
sociedade e as necessárias rupturas para que outras práticas mais igualitárias possibilitem a
conquista de direitos iguais para todos.
Ao mesmo tempo, Freire experimenta e busca práticas educativas que incorporam a
sociedade nas escolhas político-pedagógicas, fazendo-a participar da proposição de novos
projetos que interessem a classes sociais diferenciadas, com o objetivo da eqüidade, e defende
o papel do sistema público como espaço de direito de todos, a ser modificado, alterado, pela
participação de novos sujeitos no cenário escolar.
Para além do sentido do educar que cabe à escola, incorporou, no breve tempo passado
à frente da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, durante o mandato de Luísa
Erundina (1989-1992), amplos setores da sociedade nas múltiplas tarefas que assumiu para
consubstanciar uma educação para todos, porque até então estiveram excluídos do debate, por
não se considerar a função educadora que toda a sociedade — e suas instâncias estruturais e
conjunturais — produz nos sujeitos.
Não hesitaria em afirmar que, tendo-se tornado historicamente o ser mais a vocação ontológica de mulheres e homens, será a democrática a forma de luta ou de busca mais adequada à realização humana do ser mais. Há, assim, um fundamento ontológico e histórico para a luta política em torno não apenas da democracia mas de seu constante aperfeiçoamento. (FREIRE, 1994, p. 185).
Paulo Freire, nesta afirmação, impõe-se a mim para pensar o sentido educador — e até
mesmo pedagógico — que a condição humana, em busca do ser mais, fundamenta na luta
51
política pela igualdade e pela liberdade, o que passa a ser possível, no plano histórico, por
meio da vivência do método democrático.
Esta questão remete-me a duas considerações: a primeira, a que considera suficiente
defender o acesso à escola para todos como modo de assegurar a base democrática; e a
segunda, a que exige interrogar o modelo de democracia do qual se fala. A primeira
consideração interage imediatamente com o campo de estudos em que transito, o da educação
de jovens e adultos, especificamente quando se a defende como direito. Para o Estado
democrático, é dever estrito proporcionar educação a todas as crianças, jovens e adultos.
Portanto, “o Estado neocapitalista, já que dificilmente chega a ser democrático, não pode ser
menos que liberal”. (BOSI, 1992, p. 341).
Para a segunda, interrogando o modelo de democracia do qual se fala, apóio-me ainda
em Bosi (1992, p. 341):
Se o projeto educacional brasileiro fosse realmente democrático, se ele quisesse penetrar, de fato, na riqueza da sociedade civil, ele promoveria a um plano prioritário tudo quanto significasse, na cultura erudita (universitária ou não), um dobrar-se atento à vida e à expressão do povo; e, igualmente, tudo quanto fosse uma reflexão sobre as possibilidades, ou as imposturas, veiculadas pela indústria e pelo comércio cultural. Friso as duas direções: uma, de acolhimento e entendimento profundo das manifestações e aspirações populares; outra, de controle e de crítica, ou, positivamente, de orientação das mensagens veiculadas pelos meios que atingem a massa da população.
Para Freire, é esse exatamente o sentido de um projeto educador: não apenas ensinar a
letra, mas levar o homem à consciência de si, do outro, da natureza.
Sintetizando essa questão, o educador propõe-se, na Décima Quarta Carta do livro
Cartas a Cristina (FREIRE, 1984, p. 183-184), a tomá-la, como objeto da curiosidade
intelectual, formulando-a do seguinte modo: “que queremos dizer quando dizemos educação e
democracia?”. E, logo em seguida, indaga: “é possível ensinar democracia? Que significa
educar para a democracia?”
Para compreender a questão proposta, remete suas reflexões às relações contraditórias,
dialéticas entre autoridade e liberdade, assinalando que, no entanto, essas reflexões não
podem se fazer afastadas das questões que envolvem o poder, o econômico, a igualdade, a
justiça, a ética. Reconhece, assim, que a democracia não prescinde de fundamentos
52
ontológicos e históricos — a vocação humana do ser mais —, o que implica não restringi-la,
apenas, à dimensão política15, com o que se negaria a si mesma.
Uma idéia central em seu pensamento é a de que a luta incessante em favor da
democratização da sociedade implica a democratização da escola, e nesta a democratização
dos conteúdos e do ensino. E alerta aos educadores progressistas que não há como esperar que
a sociedade brasileira se democratize para que comecem a ter práticas democráticas na escola,
lembrando que essas práticas não podem ser autoritárias hoje, para serem democráticas
amanhã. (FREIRE, 1992, p. 113-114). Em muitos textos, Freire discute a relação que o
diálogo, a consideração do saber dos sujeitos e do nível em que os educandos se encontram
têm com a perspectiva democrática. Sua crença na democracia como fundamento da
igualdade na educação, além de forte preocupação em demonstrar como é possível ensinar
democracia, não deixa dúvidas: é preciso, para isso, testemunhá-la, lutar para que seja vivida,
e que não apenas se resuma em discurso sobre ela, muitas vezes contraposto por
comportamentos autoritários.
Engajar-se em experiências democráticas, fora de que não há ensino da democracia, é tarefa permanente de progressistas coerentes que, compreendendo e vivendo a história como possibilidade, não se cansam de lutar por ela, democracia. (FREIRE, 1992, p. 195).
Monteiro (1998, p. 10), discorrendo sobre Paulo Freire e o direito à educação no I
Encontro Internacional no ano do 50º aniversário do reconhecimento e proclamação do
“direito à educação”, na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), assim se refere
ao legado de Freire para a compreensão e a prática do direito, atribuindo-lhe a autoria de uma
pedagogia do direito à educação como fundamento de seu pensamento educacional:
[...] na medida em que problematizou radicalmente a educação como poder e o poder da educação, em que afirmou o primado da universalidade sobre a domesticidade e do reconhecimento sobre o conhecimento — numa palavra, o primado da Ética do sujeito sobre a política do objecto da educação — a Pedagogia de Paulo Freire não podia deixar de ser revolucionária, crítica do pragmatismo neoliberal e de um certo pensamento pósmoderno, relativista e pessimista, porque é uma Pedagogia do direito à educação.
15 Freire assinala que, entendida assim, a democracia se limita ao direito do voto, que se oferece às massas populares, o que demonstra como historicamente esta sempre foi a escolha das elites, acentuando a desigualdade e a negação de direitos em geral, assim como as discriminações de toda a sorte, que negam a tolerância, para ele um sine qua da democracia.
53
Percorrendo alguns caminhos pelos quais passa a construção teórica dos sentidos do
direito, historicamente, busco compreender o momento em que vivemos no campo da EJA,
seus avanços e estagnações.
33..22 PPEERRSSPPEECCTTIIVVAA HHIISSTTÓÓRRIICCAA DDOO DDIIRREEIITTOO EE IIMMBBRRIICCAAÇÇÕÕEESS CCOOMM AA PPEERRSSPPEECCTTIIVVAA
DDEEMMOOCCRRÁÁTTIICCAA
A questão do direito na vida das populações e das sociedades, tal como se o entende
nos dias atuais, passa por largos processos de construção de práticas e de sentidos,
historicamente constituidores da noção teórica que diversos autores vêm estudando e
formulando, para o entendimento das relações de poder nas sociedades.
A palavra direito, etimologicamente, entre muitos sentidos, significa “aquilo que é
justo, reto e conforme à lei; faculdade concedida pela lei; poder legítimo; complexo de
normas não formuladas que regem o comportamento humano; lei natural: direito universal”
(BUARQUE DE HOLLANDA, 1975, p. 478). No Dicionário Eletrônico Houaiss (2001),
encontro, com sentido jurídico: “conjunto de normas da vida em sociedade que buscam
expressar e também alcançar um ideal de justiça, traçando as fronteiras do ilegal e do
obrigatório; ciência que estuda as regras de convivência na sociedade humana; jurisprudência;
conjunto de leis e normas jurídicas vigentes num país”. Buscar, então, o campo do direito para
compreender a formação dos sentidos que regem o direito à educação, em princípio, foi o
caminho inaugural, embora tenha tropeçado em dificuldades que, ainda não transpostas,
exigirão de mim novos mergulhos nessa literatura para ampliar o campo de sentidos que
pretendo produzir.
Esse trânsito pelo Direito, enquanto campo de estudos, não se trata de perspectiva
diletante16, mas de exigência mesmo, face à ordem de privações que muitos sujeitos vêm
sofrendo, fazendo-se indispensável melhor compreender a constituição dessa faculdade, do
ponto de vista jurídico, até mesmo para promover ações eficazes que garantam, nos tribunais,
se for o caso, o direito educacional sistematicamente negado a larga parcela da população.
16 Minha primeira incursão pelo tema se fez em biblioteca de Direito, tentando levantar autores e obras cujo interesse se fazia pelo direito à educação. Percorri alguns constitucionalistas mas, infelizmente, minha pouca intimidade com a área acabou por organizar um conjunto restrito, poderia mesmo dizer, ainda empobrecido. Desse modo, esta primeira incursão deverá ser seguida por uma outra melhor orientada, para objetivar minha busca e a necessidade de contrapor meu olhar de investigadora a outros olhares cuja formação possa desvendar-me novas perspectivas de estudo e de compreensão.
54
Alertando quanto à penetração do Direito no campo educacional, Cury, Baia Horta,
Fávero (2001, p. 30) afirmam:
[...] muitas vezes foi absorvida apenas como uma técnica jurídica, sem ser considerada como uma concepção de sociedade. Está ainda presente, muitas vezes, na área educacional, a percepção da razão jurídica como formalismo. Por isso, é relevante não só mostrar a importância da formalização como decorrência de uma prática histórica, como também evidenciar uma concepção de sociedade, no interior de práticas jurídicas, que tem a ver com a própria prática educacional.
Num momento em que as ciências humanas se renovam pela busca da construção de campos interdisciplinares, direito e educação podem travar fecundo diálogo em vista de uma democratização educacional.
A primeira grande compreensão a assinalar está marcada em Bobbio (1992, p. 4)
sustentando que “no plano histórico a afirmação dos direitos do homem deriva de uma radical
inversão de perspectiva, característica da formação do Estado moderno, na representação da
relação política, ou seja na relação Estado/cidadão ou soberano/súditos [...]”. O autor vai mais
longe, apontando
[...] que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. (BOBBIO, 1992, p. 5).
O autor também destaca que as liberdades fundamentais que os indivíduos
conquistaram nas lutas contra a opressão são “fundamentais porque naturais, e naturais porque
cabem ao homem enquanto tal e não dependem do beneplácito do soberano” (BOBBIO, 1992,
p. 4), reafirmando o modelo jusnaturalista, em contraposição ao modelo aristotélico17 que,
segundo ele, sempre renasce.
Assinala, ainda, que entre os juristas europeus continentais, a distinção clássica se dá
entre direitos naturais e direitos positivos, enquanto para juristas americanos e ingleses esta se
põe entre direitos morais e legais. Essa distinção é facilmente rejeitada, por exemplo, entre
franceses, italianos e alemães, para os quais se colocam redundâncias e contradições nessas
expressões, mostrando que o debate na área se faz confuso, até mesmo pela imprecisão do
conceito. Dependendo da origem e do fundamento, o conceito pode assumir sentido distinto,
com linguagem bastante ambígua e imprecisa, freqüentemente usada de modo retórico.
Resguarda, no entanto, a idéia de que direito subjetivo faz sempre alusão “a um sistema 17 Modelo aristotélico é aquele que pensa o indivíduo ligado à Cidade-Estado, a pólis grega, submetendo-o e suas ações ao bem comum, o que pode vir a produzir, com isso, a anulação de sua individualidade.
55
normativo, seja ele chamado de moral ou natural, jurídico ou positivo”. (BOBBIO, 1992, p.
8).
Marshall (1967, p. 63-64), associa a questão do direito ao conceito de cidadania,
destacando, até o final do século XIX, três partes nesse conceito como elementos que o
constituem: civil, composto pelos direitos necessários à liberdade individual; político, o que
compreende o direito de participar do exercício do poder político, como membro investido de
poder político ou como eleitor; social, o que vai do direito a um mínimo de bem-estar ao
direito de participar, completamente, da herança social e dos padrões que prevalecem na
sociedade. Sistema educacional e serviços sociais se incluem nesse conjunto. De início,
[...] os direitos sociais do indivíduo igualmente faziam parte do mesmo amálgama e eram originários do status que também determinava que espécie de justiça ele podia esperar e onde podia obtê-la, e a maneira pela qual podia participar da administração dos negócios da comunidade à qual pertencia. [...] Na sociedade feudal, o status era a marca distintiva de classe e a medida de desigualdade. (MARSHALL, 1967, p. 64).
O mesmo autor (1967, p. 66) ressalta, ainda, um divórcio acentuado entre os
elementos constituidores da cidadania, o que permite demarcar os séculos em que cada um
deles se formou: direitos civis no século XVIII; políticos no século XIX e sociais no século
XX.
O direito civil básico reconhecido desde cedo é o direito de trabalhar, constantemente
e até hoje ainda associado à exigência de treinamento/educação. Do trabalho servil ao
trabalho livre, a característica dos direitos civis é a que associa novos direitos, a um status já
existente, significando na Inglaterra do século XVII, a liberdade, por serem todos os homens
livres. Como bem acentuou Bobbio (1967), essa trajetória dos direitos se faz segundo um
momento histórico e sob determinadas condições, sendo impossível transpô-la para a
realidade (histórica) de outros países. De onde se escreve esta história trazida por Bobbio —
da perspectiva européia, de países em torno dos quais girava a riqueza e o poder econômico
—, pode-se pensar o que ocorria, nessa mesma época, entre nós, no Brasil, cuja luta pela
independência ainda tentava desatrelar o país da condição de colônia.
A história dos direitos políticos, que se consolida no século XIX, não se faz pela
perspectiva de ampliação de direitos, enriquecendo o status de liberdade já usufruído por
todos, mas no sentido da doação de velhos direitos a novos setores da população. Nesse caso
situa-se a parcela de eleitores, restrita a um quinto da população masculina adulta, por ser
ainda o direito de voto um monopólio de grupos.
56
No século XIX a cidadania na forma de direitos civis era universal, direitos esses
acentuadamente individuais, harmonizando-se, por isso mesmo, muito bem com o período
individualista do capitalismo. Nos direitos de cidadania, no entanto, não se incluíam os
direitos políticos. Estes constituíam o privilégio de uma classe econômica restrita, não
consistindo um direito, mas reconhecendo uma capacidade. A sociedade capitalista do século
XIX vai tratar os direitos políticos como produtos secundários dos direitos civis. No século
XX essa posição é abandonada e esses direitos são associados diretamente à cidadania. É
ainda do século XIX a Lei dos Pobres (Poor Law) que tenta equilibrar a renda real às
necessidades sociais e ao status do cidadão e não apenas ao valor de mercado de seu trabalho.
Fracassando logo em seguida, para que as reivindicações dos pobres fossem atendidas foi
preciso renunciar aos direitos de cidadãos.
O divórcio entre direitos sociais e o status de cidadania se mostra tanto nessa lei
quanto, em seguida, nos primeiros Factory Acts, que embora levassem a uma melhora das
condições de trabalho, só protegiam os não-protegidos — as crianças e as mulheres, ambos
não-cidadãos. Se as últimas quisessem gozar da cidadania, deviam desistir da proteção.
Todos esses elementos não se encontram isolados do que se passou na história da
educação. Se é verdade que a legislação industrial protegeu as crianças do excesso de trabalho
e da maquinaria perigosa, não afetando seu status de cidadão — o que elas não são —, educá-
las, tomado como garantia do dever do Estado, significa admitir e ter em mente as exigências
da cidadania, ou seja, a formação de cidadãos.
O direito à educação é um direito social de cidadania genuíno porque o objetivo da educação durante a infância é moldar o adulto em perspectiva. Basicamente, deveria ser considerado não como o direito da criança freqüentar a escola, mas como o direito do cidadão adulto ter sido educado. [...] A educação é um pré-requisito necessário da liberdade civil. (MARSHALL, 1967, p. 73).
Essa afirmação de Marshall coloca-me diante, talvez, de uma defesa inexorável para o
direito de todos à educação, independente da idade. Ao creditar à educação na infância o
objetivo de “moldar o adulto em perspectiva” — e nesse ponto poder-se-ia discutir este
modelo de educação que não vê a criança como criança, mas pelo que ela virá a ser —, admite
que, ao chegar à vida adulta, o exercício de sua cidadania se faz com base na educação que
deveria ter recebido na infância. Pode-se, então, depreender que, se isto não aconteceu nesta
fase, a sociedade deve-lhe educação, para que possa exercer, adequadamente a cidadania.
57
Marshall indica, ainda, que a educação primária européia, desde o final do século XIX,
é não apenas gratuita, mas obrigatória18. Essa conquista tem início em 1763, no século XVIII,
como assinala Baia Horta (1998, p. 7), recuperando historicamente o surgimento na Europa
do direito ao ensino primário de todos os cidadãos e dever do Estado, na Prússia de Frederico
II, primeiro país a estabelecer a instrução primária obrigatória. Assinala Baia Horta, ainda,
que só em 1878-1882, na Terceira República, a França terá a escola primária obrigatória,
gratuita e laica, quase ao mesmo tempo em que o ensino elementar assume caráter obrigatório
na Inglaterra e no País de Gales. Marshall afirma que essa educação do final do século XIX é
um direito individual, vinculado a um dever público de cumpri-lo, o que conferiu a cada
comunidade que exigiu o cumprimento dessa obrigação pelo Estado a consciência de que “sua
cultura é uma unidade orgânica e sua civilização uma herança nacional”. (MARSHALL,
1967, p. 74). Esse direito à educação primária pública vem a ser o grande passo que
restabelecerá, no século XX, os direitos sociais da cidadania, estabelecendo um plano de
igualdade com os outros dois elementos da cidadania. A despeito do crescimento do
capitalismo, sistema econômico e de relações sociais desiguais, em direção oposta,
paradoxalmente, também cresce a cidadania, em guerra com o sistema de classes capitalista.
Baia Horta (1998, p. 7) também aponta que “depois da Segunda Guerra Mundial
assiste-se a uma considerável democratização do ensino e a um aumento da duração da
escolaridade obrigatória” e relembra que a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
proclamada em Paris em 10 de dezembro de 1948, pela Assembléia Geral das Nações Unidas
assim determinava:
Art. 26 – Toda pessoa tem direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos no que se refere à instrução elementar e fundamental. A instrução elementar será obrigatória.
O mundo no pós-guerra iniciava um forte conjunto de transformações, tanto derivadas
dos avanços tecnológicos e da ciência, promovidos para o enfrentamento do conflito quanto
nascidas das necessidades para fazer face aos desarranjos sociais que se estabeleceram. Dentre
essas, a educação, e dentro dela a de adultos surge como necessidade premente, forma e
conteúdo do mundo que se reorganiza na Europa, carente de sujeitos que possam gestar a vida
que ressurge do conflito e de suas conseqüências. Mais significativo, ainda, é admitir que o
18 Sobre este aspecto vale destacar a distância que a educação pública no Brasil assume dessa realidade histórica, quando em meados do século XX, a instrução pública, que fazia o status de filhos de famílias médias, era vista como um distintivo de lugar social subalterno, e não pela garantia do direito à educação para todos, como dever do Estado. Representava um privilégio, este sim, para as elites, que seus filhos pertencessem às escolas privadas, tidas como de qualidade, capazes de conferir a formação adequada ao padrão exigido pela classe social.
58
que até então se traduzia como direito social, passa, desde 1948, a ser proclamado como
direito humano, estendido a toda pessoa, nos termos da Declaração.
Nem sempre, no entanto, o conceito de cidadania esteve vinculado a direitos sociais,
mas, em determinado momento, a direitos civis, dando ao homem o poder de participar na
concorrência econômica, negando-lhe, por isso, a proteção, por entender que estava
capacitado a proteger-se a si mesmo.
Se por um lado a educação primária conferia status de cidadania, aumentando o valor
do trabalhador, por outro não ameaçava o capitalismo, porque apenas o educava no nível de
sua condição de subsistência.
Reiterando a idéia de que no século XIX os direitos sociais compreendiam um mínimo
e não faziam parte, de início, do conceito de cidadania, observa-se que sua finalidade era
reduzir o ônus da pobreza, sem alterar o padrão de desigualdade, que gera(va) a própria
pobreza. No entanto, os modos de produção em massa e o crescente interesse da indústria
pelas necessidades e gostos das massas fizeram com que os menos favorecidos
desenvolvessem uma condição de qualidade material que pouco diferia dos mais favorecidos.
Diminuída a desigualdade, cresce a luta por sua abolição, especialmente em relação à essência
do bem-estar social.
Os direitos sociais, então, abandonam a idéia de alívio da pobreza para adquirir um
sentido de ação capaz de mudar a origem das desigualdades, buscando transformar a
superestrutura, mantenedora dessas desigualdades. Aqui cabe observar o quanto dessa idéia
tem sido resgatado, na contemporaneidade, no âmbito do projeto neoliberal, para quem os
direitos sociais têm sido objeto de identificação com o alívio da pobreza, negando toda a
conquista histórica dos trabalhadores e dos movimentos organizados, feita direito, ao longo de
vasto processo de lutas sociais.
Marcadamente agora como benefícios oferecidos em forma de serviços, os direitos
sociais são imensuráveis e incontroláveis. Pode ser fácil fazer com que todas as crianças
passem um determinado número de horas na escola, mas como dimensionar a qualidade dos
professores que lá estão com elas e os serviços que lhes são oferecidos?
Para a exigência das políticas públicas, o ritmo das reivindicações é desigual em
relação aos recursos orçamentários, não podendo o Estado prever quais serão os custos dos
serviços oferecidos, já que eles vão aumentando o padrão de exigência, principalmente
quando as obrigações para a cidadania ficam mais pesadas. Há um contínuo movimento para a
59
frente, sempre inalcançável, no que diz respeito às exigências que prenunciam novos direitos.
Desse modo, coloca-se ao Estado a questão de que sua obrigação é com a sociedade como um
todo, embora esse todo admita questões individuais, passíveis de buscar recursos junto a
tribunais, se não atendidas ou parcialmente atendidas. O equilíbrio entre esse coletivo e esse
individual se põe como um dos desafios do Estado democrático, tentando contrabalançar,
ainda, os interesses das classes dominantes.
No tocante à educação, pode-se observar, no caso brasileiro, o tensionamento que
ocorre nas escolhas feitas pelos poderes constituídos, no que deveria representar o equilíbrio
entre direitos individuais e coletivos. Debaixo de uma falsa prioridade do direito igual, por
exemplo, para todos os jovens ingressarem no ensino médio, preceituado, como horizonte,
pela Constituição de 1988, reduziu-se, pela lei do ensino médio, a qualidade do que se
entende mínima para a formação desses jovens e, ainda se estabeleceu prioridade para os
direitos individuais, criando mecanismos de seguimento e de acesso a vagas que comportam a
visão de capacidades (ou competências como vêm sendo chamadas) para alguns, enquanto
para outros os caminhos já estão pré-traçados, tendo em vista sua “reconhecida incapacidade”.
Resolve-se, dessa forma, a questão das vagas e do atendimento, pela menor qualidade e tempo
de permanência dedicados aos cursos diferenciados. Essa forma de fazer política pública não
apenas reduz o espectro do que foi, um dia, direito, mas também resgata a idéia de que a
“naturalmente” desiguais, oferecem-se projetos segundo “suas capacidades”, legitimando as
escolhas políticas e reforçando lugares sociais imutáveis.
Por outro lado, a relação entre educação e trabalho continua reforçando o sistema de
certificação, sem o que não se qualifica para empregos. Certificados, declarações são,
freqüentemente, a finalidade última do direito à educação, não importando se o direito exige o
processo de ensino-aprendizagem para todos, o que efetivamente, em muitos casos, não chega
a acontecer. Esse sistema de reconhecimento do mérito (a terminalidade de uma etapa da
educação), quando existe, constitui um “abre-te sésamo” que dura a vida inteira, não
importando se o modo como essa legitimação se deu tenha sido, ou não, de terceira ou
primeira classe, e não admitindo, também, o trânsito desse lugar conquistado para outro
melhor, mesmo quando a prática possa ter conferido qualificação adicional à certificação
obtida. É esta que permanece valendo, pela vida afora. O status adquirido pela educação
acompanha inexoravelmente o sujeito, legitimado pela aprovação social à instituição escola.
60
O discurso da igualdade de oportunidades está presente, necessariamente, encobrindo
o que uma sociedade de classes, de lugares desiguais, admite como ponto de partida: que o
acesso a essas oportunidades já está definido, antecipadamente aos processos seletivos.
Marshall (1967), por fim, defende a tese de que a preservação das desigualdades
econômicas ficou mais difícil, à medida que avançou e se enriqueceu o status de cidadania.
Com isso, cresce a justiça social, como direito que visa a equilibrar as relações entre as
necessidades econômicas e a cidadania.
No sistema de direitos sociais que a civilização veio construindo, ao longo da história,
a educação, de direito, passa a ser legitimamente entendida como direito obrigatório, passível
de punição aos pais/responsáveis que deixem de propiciar esse direito aos filhos. A
complexidade das fronteiras que se estabelecem entre direitos e deveres aponta, no século
XXI, para a investigação sistemática do que se tomou como fundamento da vida social, nos
sistemas de contratos e de regras democráticas.
Bobbio (1992, p. 5-6) reconhece, a partir dos chamados direitos naturais, ou
fundamentais, de primeira geração, um conjunto de novos direitos nascidos de necessidades e
carecimentos em tensão com usos e costumes dos quais os indivíduos sociais faziam parte (os
direitos consuetudinários), conjunto esse de direitos agora chamados de segunda geração —
os direitos sociais. A partir daí reconhece também que desses emergem, na atualidade, os
direitos chamados de terceira geração (categoria ainda heterogênea e vaga, mas indispensável
para compreender, por exemplo, as reivindicações dos movimentos ecológicos quanto a viver
em ambientes não poluídos) e, por último, os direitos de quarta geração, que envolvem as
manipulações de patrimônio genético, por exemplo.
Entretanto, assinala que a linguagem dos direitos tem uma grande função prática,
porque empresta força particular aos movimentos que reivindicam a satisfação de novos
carecimentos e necessidades, tanto materiais quanto morais, embora sua formulação, por si só,
não garanta a proteção que o direito deveria conferir. A massa dos sem-direitos, apesar da
proclamação de muitos deles, não invalida a busca permanente por novos direitos, no
horizonte de novos carecimentos sociais.
Os direitos individuais tradicionais, que constituem as liberdades não são, ainda hoje,
gozados por todos os homens. Os direitos sociais, que consistem em poderes, são
continuamente objeto de luta e de reafirmação, face às hegemonias e os pensares dominantes
que incessantemente aviltam as obrigações positivas de que eles carecem. Concordando com
61
Bobbio (1992, p. 21) quanto mais aumentam os poderes dos indivíduos, tanto mais diminuem
as liberdades dos mesmos indivíduos.
Não é a busca do fundamento absoluto (nem de sua superação), diz Bobbio, que está
em jogo, na perspectiva dos direitos, mas a de buscar os vários fundamentos possíveis em
cada caso concreto, que sustente a proteção aos direitos, mais que a sua justificação. É o fato
de serem históricos que permite a possibilidade de busca dos vários fundamentos, não
negáveis por questões do próprio fundamento, mas porque pertencem a uma determinada
razão histórica. O problema dos direitos não reside no campo da filosofia, apenas, deixando
sozinhos os filósofos, mas exige a compreensão dos problemas sociais, econômicos,
históricos, psicológicos, inerentes à sua realização. É, sobretudo, um problema político.
A relação entre direito e cidadania é recente na cultura humana. Três séculos de
tensões, proposições, novas tensões, direito e desigualdade. Lutas sociais e avanços, mas
também perpetração desigual de privilégios e de negação da igualdade entre sujeitos
marcaram essa história.
Para Souza Filho (1999, p. 332), os novos direitos coletivos, sociais, difusos,
“florescem com o avanço do Estado do Bem-Estar Social, mas frutificam apenas quando se
vive a democracia”. Acredita que a democracia é um pressuposto, porque é também
“pressuposto destes direitos a possibilidade de serem exercidos ainda contra a vontade do
Estado, não para substituí-lo, mas para compeli-lo a agir nas omissões e corrigir suas ações
nefastas”. Sem democracia enfatiza, esses direitos se confundem com as razões do Estado,
persistindo em forma de simulacro ou de rebeldia, desprovido do conteúdo da cidadania, dos
direitos humanos, dos direitos coletivos.
Souza Filho (1999, p. 311, 309) ainda, assinalando que o direito do Estado moderno se
assenta na concepção de direitos individuais, que para existirem estiveram apoiados, na
sociedade capitalista, na propriedade19 (de um bem, de uma coisa, de um objeto que
componha o patrimônio individual), destaca que esse direito era, em verdade, a possibilidade
de cada homem livre adquirir direitos. Para isso, conclui, fora criada a organização estatal:
garantir, individualmente, o exercício de direitos.
Necessária se faz essa compreensão, pois, a partir dela, se entende porque o direito
coletivo só poderia ser pensado como conjunto ou soma de direitos individuais e, como tal, 19 Segundo Souza Filho (1999, p. 309) “o direito se construiu sobre a idéia da propriedade privada capaz de ser patrimoniada, isto é, de ser um bem, uma coisa que pudesse ser usada, fruída, gozada. Portanto, esta propriedade é material, concreta. Isto significa que o direito individual é, ele também, físico, concreto”.
62
tratados. Os problemas coletivos, de todos, tiveram de ser tratados como do Estado, opondo-
se público a privado. A pessoa jurídica, una, é, sempre, formada de pessoas individuais
múltiplas. A reafirmação da pessoa jurídica garante a idéia do patrimônio individual. A
direitos correspondem deveres e, por isso, os titulares de direito no Estado moderno precisam
ser unos e identificáveis.
Não é outra a razão porque os direitos coletivos têm sido tão invisibilizados. Desde a
Revolução Francesa, nenhum poder deveria existir entre o Estado e o cidadão, o que exige,
portanto, um sujeito de direitos e, conseqüentemente, um bem, uma propriedade. Como os
direitos coletivos nem sempre são materializáveis, escapa o objeto do qual o poder judiciário
pode reconhecer a propriedade, fazendo com que tudo que seja coletivo seja também estatal,
ou seja omitido, invisível. Sindicatos e partidos políticos em certa medida rompem essa
lógica, tratando de interesses coletivos, embora os sujeitos de direitos tenham, em relações
trabalhistas, contratos individuais.
A cultura contratual e constitucional da aquisição de direitos e da propriedade como
suprema liberdade permanecem vinculadas ao campo do Direito, mesmo com a evolução de
novos conceitos, institutos e razões, enquanto o Estado do Bem-Estar Social, revendo suas
funções, redefine o Direito Público, fazendo avançar o espaço público sobre o privado e
modificando o conceito de função social da propriedade. “São direitos da sociedade, que
interferem, alteram e modificam a relação jurídica do sujeito com o objeto de seu direito. São
interferências com poder de limitar a propriedade por questões ambientais, sociais, sanitárias,
estéticas, históricas, culturais etc.”. (SOUZA FILHO, 1999, p. 316).
A existência de instâncias cada vez mais intermediárias entre a sociedade e o Estado
vai se fazendo, tanto por exigência da democracia, como da luta interna da sociedade e de sua
estrutura coletivizada, enquanto processo produtivo. Organizações não-governamentais
praticam, sem ser Estado, mas coletivamente, políticas públicas, e defendem direitos que não
são individuais. (SOUZA FILHO, 1999, p. 317).
É por essa via que o movimento social produz, em seu interior, projetos de educação
de jovens e adultos, nos quais um dos objetivos — a escolarização —, se faz com base no
resgate da cultura e dos elementos cotidianos dos sujeitos que vivem, sem saber ler e escrever,
a cultura do escrito que organiza a sociedade.
63
Ao mesmo tempo em que projetos oficiais desenvolvem modos, métodos e práticas
com recursos públicos, outros se fazem com a experiência de entidades religiosas,
filantrópicas, associativas etc., de modo geral também com recursos públicos.
Tanto assim que, na atualidade, discute-se o que foi chamado por Bobbio de direitos
de 4ª geração, ou direitos emergentes. O próprio entendimento de direitos humanos, que
segundo Grzybowski (2004, p. 50)
[...] condensam em si mesmos uma importante parte da história da humanidade: forjaram-se nas lutas de movimentos de inspiração emancipatória, portadores de valores de liberdade, igualdade, diversidade e solidariedade para todos os seres humanos. Do ponto de vista sociológico e político, antes de serem reconhecidos por leis e exigidos nos tribunais, os direitos humanos estão no centro das lutas sociais — nas quais consciência, desejos, vontade e circunstâncias reais de vida de cada agrupamento humano também influenciam.
A discussão do sentido de direito, e de seus beneficiários, expõe outro lado da questão,
ou seja, os não-incluídos nas diversas categorias do direito. Os processos de inclusão nos
direitos sociais vão se fazendo como conquista; não são, em muitos casos, dados, o que
significa dizer que não basta constituí-los como direitos para auferir de sua proteção. Nos
processos de luta e conquista, pode-se falar de não-incluídos, admitindo-se que o serão
gradativamente, no cumprimento do que passa a ser um dever para o Estado. No entanto, na
prática, essa condição não permanece absoluta, sendo necessário admitir que a ela se juntarão
os excluídos, ou seja, os que, já tendo sido incluídos algum dia, perderam a condição de sê-lo,
por razão posta fora do sentido do direito, acirrando, de fato, as desigualdades.
A idéia de exclusão se opõe, necessariamente, à de não-inclusão, por oposição,
significando os que não são nem serão beneficiários de direitos, por princípio, iguais para
todos. Um ou outro sentido, no entanto, força o encontro de não-incluídos com os excluídos,
dentre as múltiplas situações que revelam as desigualdades sociais e que, especificamente, o
não-pertencimento ao benefício do direito à educação pode gerar, como
alfabetizado/analfabeto/não-alfabetizado etc.
Buarque (2001, p.155), na obra singular de dicionarizar, pessoalmente, conceitos que
reconstrói para compreender os sentidos que assumem no mundo globalizado, assim escreve
no verbete sobre exclusão:
As gerações anteriores não podiam imaginar a dimensão que seria alcançada pelas maravilhas criadas pelo avanço técnico, ao longo do século XX. Nem mesmo os escritores de ficção científica mais visionários conseguiram
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vislumbrar todos os benefícios que foram conquistados. Ainda menos poderiam conceber que imensa parte da humanidade estaria excluída de tais benefícios. Mesmo reconhecendo as dificuldades de uma delimitação clara da linha que separa excluídos e incluídos, sobretudo em face da dinâmica com que mudam gostos, desejos e possibilidades sociais, é possível assumir o conceito de exclusão no acesso aos bens e serviços essenciais.
Complementar a este, quando se refere ao conceito de incluídos, remete-se ao conceito
de exclusão e, por oposição, conceitua o primeiro. Passo a citar parte de seu verbete,
ampliando a conceituação:
Mas a história social não cumpriu a parte que lhe cabia no acordo, e uma parte considerável da humanidade ficou excluída dos benefícios. Ainda mais grave, o avanço técnico ocorreu a uma velocidade tão grande que passou a aumentar a desigualdade e ameaçar a estabilidade ecológica do planeta. A exclusão deixou de ser uma etapa a ser superada: é um estado no qual bilhões de seres humanos — os excluídos da modernidade — estão condenados. (BUARQUE, 2001, p. 188).
O que surpreende, nessa formulação, é o confronto com a idéia de que, por essa lógica,
não há chance de superar a condição de não-incluído/excluído, porque para muitos direitos o
caminho é sem volta, só restando o que o autor chama de condenação.
Esta condenação de que fala Buarque, parece ser ainda bastante visível no Brasil,
apesar do processo de industrialização e urbanização pelo qual passou, desde a segunda
metade dos anos 1990. Se por um lado a industrialização garantiu uma mudança radical nos
modos de produção e definiu uma nova organização social e do mundo do trabalho,
possibilitando ao país o ingresso em um concerto de nações de outro nível econômico, por
outro fez-se à custa de processos de produção em que os homens — trabalhadores e
integrantes desses processos de desenvolvimento não viveram, nem como sujeitos, nem como
trabalhadores, o próprio desenvolvimento20, integrando os processos à margem deles, se isto é
possível de ser pensado, sem acompanhar nem usufruir das aceleradas transformações a eles
submetidas, para continuar a produzir lucro e competitividade. As mudanças não foram
somente provocadas pela industrialização, mas também pela “reforma agrária” às avessas, que
ocorreu quase no mesmo período. As exigências dessa “reforma agrária” incluíram projetos
de educação tipicamente alternativos aos “modelos” urbanos, em disputa não apenas ao
direito à educação, enunciado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, como
20 Cândido Grzybowski reconhece o direito ao desenvolvimento como direito humano, e apresentou, inclusive, propostas para uma declaração de direitos humanos emergentes como contribuição ao diálogo Direitos humanos, necessidades emergentes e novos compromissos no Fórum Universal das Culturas, em Barcelona, 2004.
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também a um tipo de educação chamada “do campo”, defensora e propagadora de valores da
terra, de um ambiente sustentável e de um outro projeto de sociedade.
Fundamento e princípio da constituição do direito à educação, a questão democrática,
outro tema central desse estudo, será tratado com o concurso de pensadores da educação,
tendo o horizonte da sua prática efetiva nos sistemas educacionais. Esse percurso é
indispensável para compreender a negação do direito para muitos, excluídos da cidadania e do
que a educação pode oferecer para exercê-la e dela participar. Isto define meu recorte, restrito
à educação de adultos, inicialmente assim considerada, até a forma como expressa a
ampliação da negação de direitos, pelo uso do termo educação de jovens e adultos, que
incorpora um segmento etário destituído, mesmo em tempos de ênfase na universalização do
ensino fundamental, do direito a passar pelos processos de escolarização com sucesso, ou
seja, aprendendo.
No entanto, não tem sido automática a assunção do direito à educação com o dever de
oferta pelo Estado, e em inúmeros momentos a sociedade civil assume um protagonismo
essencial na conquista de direitos. Semeraro, parafraseando Coutinho (1993) na análise das
relações dos movimentos organizados com o Estado, em defesa de direitos, afirma:
É no decorrer das últimas décadas, de fato, que setores crescentes de trabalhadores perceberam as diversas formas da sociedade civil como um terreno importante de luta de classe, uma esfera privilegiada onde travar a intensa disputa pela hegemonia, um espaço político criativo e decisivo para avançar suas reivindicações, desenvolver as suas potencialidades subjetivas e sociais, para construir um consenso ativo entre forças convergentes e instituir formas de uma democracia popular capaz de recriar uma nova concepção de Estado e novas relações sócio-político-econômicas (SEMERARO, 1999, p. 7).
Mas também afirma que, contraditoriamente, na contemporaneidade, ficou mais difícil
visualizar e articular este “projeto aglutinador das classes trabalhadoras e das forças populares
em torno de uma concepção de sociedade e de Estado alternativos ao liberalismo”
(SEMERARO, 1999, p. 7), principalmente pela hegemonia de um discurso que, segundo
Rancière (1996), apontado por Semeraro (1999, p. 7), “tenta anular as contradições sociais e
visa (a) neutralizar as relações dialéticas que, em uma verdadeira democracia, perpassam a
sociedade política e a sociedade civil”.
Paradoxalmente, jovens e adultos excluídos do direito à educação são os mesmos que
integram a PEA, produzindo, com sua força de trabalho, a riqueza do país. Tanto que, na
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análise de Furtado (Jornal do Brasil, 3 out 1993, p. 13), sobre a lógica da acumulação de
riqueza, a condição da maioria dos brasileiros assim é exposta:
Durante 50 anos o Brasil cresceu mais do que qualquer país do mundo, alcançou uma das taxas de crescimento mais altas, 7% ao ano — a cada 10 anos o PIB dobrava. Mas o país fez isso acumulando miséria. O crescimento é necessário, mas não suficiente.
O movimento de globalização do capitalismo, ao final do século XX, carregando
consigo a globalização do mundo do trabalho, o que compreende tanto a questão social,
quanto o movimento dos próprios trabalhadores, altera suas demandas educacionais. Tanto o
mundo do trabalho quanto o dos trabalhadores apresentam características mundiais, ou seja,
não se restringem apenas aos locais onde as relações se dão:
[...] são desiguais, estão dispersos pelo mundo, atravessando nações e nacionalidades, implicando diversidades e desigualdades sociais, econômicas, políticas, culturais, religiosas, lingüísticas, raciais e outras. Inclusive apresentam as particularidades de cada lugar, país ou região, por suas características históricas, geográficas e outras. Entretanto, há relações, processos e estruturas de alcance global que constituem o mundo do trabalho e estabelecem as condições do movimento operário. (IANNI, 1996, p. 17)
As modificações da organização da produção — o padrão flexível — também
modificam as condições sociais e as técnicas de organização do trabalho, o que exige do
trabalhador polivalência, abrindo perspectivas em sentidos diversos, ao mesmo tempo em que
potencializa a força produtiva do trabalho, tornando-a mais técnica. A flexibilização do
trabalho e do trabalhador está sob o comando de uma nova racionalidade do processo
(re)produtivo do capital, vigorando de forma globalizada.
Essa acumulação flexível parece, ao mesmo tempo, implicar níveis relativamente altos
de desemprego estrutural, ganhos modestos (quando existem) de salários reais, retrocesso do
poder sindical e rápida destruição e reconstrução de habilidades. Criam-se novas
especializações, alteram-se as relações entre as forças produtivas e articula-se diferentemente
o trabalho intelectual e manual. Profissionais de nível superior, de nível técnico e operários
são postos diante de novas relações recíprocas, contínuas, diversificadas e inovadoras, no
interior do processo produtivo. O trabalhador, agora, não é apenas individual, mas coletivo. O
que afeta um, afeta toda a categoria em escala global. Mas, ao mesmo tempo em que a
produção se desterritorializa, migrando vorazmente pela velocidade que as comunicações
imprimiram para a virtualidade do capital, também os trabalhadores migram,
desterritorializam-se, em busca de espaços e horizontes que incorporem suas condições de
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raça, sexo, língua, tradição, idade, religião, expectativa, sonho, ilusão. Um novo mapa do
mundo se redefine, pelo movimento mundial do capital, mas especialmente pelo movimento
migratório dos trabalhadores.
Grzybowski (2004, p. 52) defendendo o direito humano ao desenvolvimento,
entendendo que esse é, ainda, um campo de disputas, afirma que “o drama de migrantes é
exemplar na revelação das contradições da globalização dominante e do empecilho que ela
representa para se pensar em desenvolvimento, e muito mais em justiça social e democracia
promotora de liberdade e dignidade humanas.” Discutindo a flexibilização advinda com o
princípio base da globalização, o do livre mercado, afirma que:
[...] o direito dos detentores do dinheiro e capital se sobrepõe aos direitos humanos. Como conseqüência prática, flexibilizam-se direitos humanos, em particular tudo o que se refere ao trabalho, desregula-se e se reduz o papel do Estado na economia, privatizam-se e abrem-se os mercados nacionais (GRZYBOWSKI, 2004, p. 52).
Nesse contexto, a questão social surge como um novo desafio, porque precisa ser
pensada não apenas na ordem local, dentro das conjunturas e das construções históricas em
que foi produzida, especialmente considerando-se, no caso do Brasil, os fortes traços
colonialistas que ainda marcam o modo produtivo nacional. Agora a questão social manifesta-
se em escala mundial, recriando diferentes aspectos, bem como engendrando novos. E estes
vêm afetando tanto os países subdesenvolvidos, como criando subdesenvolvimento na
periferia das cidades do chamado Primeiro Mundo. Alguns desses aspectos podem ser
traduzidos pelo desemprego cíclico e estrutural; pelo acirramento das intolerâncias,
preconceitos e discriminações ligadas à condição sexual, racial, política, de idade, de credo
religioso, fazendo ressurgir movimentos racistas, xenófobos, separatistas, fundamentalistas,
entre outros; pela migração que dissocia e desagrega famílias, ampliando a pauperização e
provocando o crescente abandono da escola pela indiscutível necessidade do trabalho infantil
e da exploração de menores; pelo crescimento de subclasses e de padrões indignos e
subumanos de habitação, de fome, de saúde e de vida.
A perda do emprego é um processo seletivo, que tem e não tem relação direta com o
nível de escolarização — a chamada “educação” — dos trabalhadores. Ao mesmo tempo em
que se adensam os trabalhos informais, pela prestação de serviços, admitindo a pouca
escolaridade como “natural”, no âmbito dos trabalhos qualificados, a seleção se estabelece
pelo predomínio das tecnologias e dos sistemas eletrônicos — trabalhadores desencarnados
68
que substituem, com vantagem, na linguagem do capital, os profissionais habilitados para
funções precisas.
O direito ao trabalho e à educação do trabalhador, como direito social, se
complexificam, tanto pela forma como se passa a conceber um projeto pedagógico para a
educação desses sujeitos produtivos, quanto pelo modo como se desarticula e desorganiza o
valor do trabalho, assim como seus cânones, suas premissas, suas consolidações jurídicas.
Tensionam-se as relações entre velhos e novos trabalhadores, uns apegados às conquistas
históricas das quais usufruíram direitos, outros em disputa pelo direito ao trabalho, agora visto
pela ótica de ter alguma ocupação, em uma sociedade sem emprego. Os trabalhadores que se
constituíram como tais pelo trabalho, e por esta via constituíram-se cidadãos, questionam-se
sobre um futuro incerto, duvidoso, e freqüentemente admitem que a insegurança é culpa
individual, pela baixa escolaridade, pela pouca “educação”. No entanto, como trabalhadores
constituíram suas vidas, família, prole, educaram seus filhos, exerceram a cidadania,
ensinando o mesmo valor que os constituiu, embora na prática, nem para si próprios, os
valores estejam sendo mantidos. Desempregados, alimentam a ilusão de novo emprego,
buscando a chance renovada na escola ou nos cursos de formação profissional, para conseguir
novos empregos, para mantê-los ou para ascender a níveis de maior prestígio.
O que caracteriza o mundo do trabalho nesse início de século é que este se tornou,
realmente, global. Não se globaliza apenas o capitalismo, mas também o mundo do trabalho,
impondo-lhe novas formas e novos significados. As mudanças afetam não apenas as forças
produtivas em seus processos e dinâmicas, mas também a composição e a dinâmica da classe
operária e a própria estrutura social, em âmbito local, nacional, regional e mundial. As
questões sociais daí decorrentes não são retóricas, mas rompem com paradigmas e modos de
pensar até então constituídos, para exigir novas compreensões e (re)significações de sentidos
e manifestações.
Se, por um lado, a realidade do crescimento tem como aliados fortes representantes do
poder econômico para garantir a investida do capital pela via do modelo neoliberal, ao mesmo
tempo esse mesmo poder, representado por agências multilaterais, como o Fundo Monetário
Internacional (FMI), já não pode mais deixar de defender, nem prescindir, da educação dos
trabalhadores para constituir o avanço do projeto capitalista.
Tanto assim que a recomendação das agências é a formação dos trabalhadores, e não
apenas de treinamento profissional, que a prática mostrou ser insuficiente para dar conta da
complexidade das exigências que as novas relações da produção fazem aos trabalhadores e
69
aos sistemas produtivos. Se por um lado esta é uma realidade, por outro, a especialização
constitui um fator a mais de exclusão do mercado de trabalho, que se vem reduzindo
sensivelmente. As exigências não apenas impulsionam a formação dos trabalhadores como, ao
mesmo tempo, tornam desnecessários postos de trabalho, pelas substituições que as
tecnologias tendem a criar. Desse modo, para os trabalhadores não basta saber ler e escrever,
mas há que ser leitor experiente, capaz de interpretar e (re)significar códigos e registros,
situando seu processo de trabalho em um espectro mais amplo, que ultrapassa o âmbito do
chão da fábrica. Já não é mais um trabalhador situado apenas em um tempo-espaço definido
pelos limites da fábrica, mas um trabalhador do mundo globalizado, para o qual concorre,
com seu trabalho, para a internacionalização da economia.
Contrariamente ao que se apregoava, “o mito da ‘fábrica sem homens’”, o capital não
se basta com a ciência e a tecnologia, sem a necessária intervenção da experiência humana do
trabalho,
Muito ao contrário, ela nunca foi tão importante. Reduzido o apêndice da máquina-ferramenta durante a revolução industrial, o homem, a partir de agora e inversamente aos lugares-comuns, deve exercer na automação funções muito mais abstratas, muito mais intelectuais. Não lhe compete, como anteriormente, alimentar a máquina, vigiá-la passivamente: compete-lhe controlá-la, prevenir defeitos e, sobretudo, otimizar o seu funcionamento. A distância entre o engenheiro e o operário que manipula os sistemas automatizados tende a desaparecer ou pelo menos deverá diminuir, se se quiser utilizar eficazmente tais sistemas. Assim, novas convergências surgem entre a concepção, a manutenção e uma produção material que cada vez menos implica trabalho manual e exige cada vez mais, em troca, a manipulação simbólica. (LOJKINE apud IANNI, 1997, p. 19).
Pode-se assinalar como os trabalhadores, por exemplo, através dos conselhos em que
se fazem representar, conquistam espaço para reivindicar o ensino fundamental e auferir os
recursos capazes de fomentar e financiar ações de educação continuada para jovens e adultos.
No espaço de participação que conseguem conquistar, inscrevem outros modos de negociar
suas necessidades, promovendo instâncias mais democratizadas de decisão. Diferentes
instituições passaram, então, a se ocupar com mais empenho da educação de adultos,
representando uma prioridade significativa nas ações da área do trabalho.
Em muitos casos, os sistemas federal, estaduais e municipais de ensino têm sido
insuficientes para o desafio da garantia do direito à educação para os trabalhadores.
Impossível confiar unicamente ao Estado a responsabilidade da questão educacional, sem
envolver outros setores da sociedade civil, conjugados em uma ação visando a garantir o
direito da cidadania. Sindicatos, associações de classe, federações, conselhos, centrais
70
sindicais ocuparam este lugar, rompendo com a tradição de desacertos históricos que isolaram
das propostas pedagógicas dirigidas aos trabalhadores a dimensão educativa da área do
trabalho, com os diferentes e múltiplos conhecimentos que vêm sendo produzidos pelos
próprios trabalhadores. Assim como romperam com a tradição autoritária de que só as elites
são capazes de definir o que é melhor para os trabalhadores, não apenas buscando
implementar os projetos que lhes são caros como classe, mas também instaurar procedimentos
democráticos, que incluem a negociação, o conflito de interesses, os jogos de poder.
Essa afirmação remonta às condições pelas quais ainda hoje se convive com um Brasil
dito moderno e um país antigo, marcado fortemente pelos traços escravocratas que
constituíram a história nacional e que reforçam um modo de pensar e promover política
educacional cúmplice desse modelo hierarquizado e excludente. Semeraro (1999, p. 6) resume
a situação do país:
Assim, sem ter chegado a se constituir como um país realmente moderno, o Brasil se viu, nestes últimos anos, tomado pelas mais diversas expressões sociais e culturais, muitas das quais de conotação tipicamente pós-modernas decorrentes, basicamente, das metamorfoses de uma nova face do capitalismo implantado rápida e acriticamente. É neste contexto que está se estruturando o quadro complexo e controvertido da atual sociedade civil brasileira.
Em busca de espaços de participação democrática, ressalta, no pensamento do senso
comum, o valor que se atribui à democracia, que pode ser expresso do modo como Weffort
(1992, p. 119) o enuncia: “A democracia é um valor universal pela razão de que suas
conquistas, depois de terem chegado aos trabalhadores, passam a dizer respeito a todos os
homens”. Além disso, posso concordar com Bobbio (apud WEFFORT, 1992, p. 119) quando
afirma:
A democracia é subversiva. E é subversiva no sentido mais radical da palavra, porque, ali onde ela chega, subverte a concepção tradicional do poder, tão tradicional que é considerada natural, segundo a qual o poder — seja o poder político ou o econômico, seja o poder paterno ou o sacerdotal — vem de cima para baixo.
33..33 DDIIRREEIITTOO ÀÀ EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO NNAA EESSCCOOLLAA BBRRAASSIILLEEIIRRAA
A tradição democrática, no entanto, no país, é ainda precária. Os muitos contornos
autoritários na frágil República, os golpes constantes a essa ordem, as ditaduras civis e
militares não podem ser desconsideradas quando se trata da questão da democracia na escola
brasileira, cujo modelo se conforma a partir do modo societário de poder e de produção
71
capitalista. Movimentos de resistência da sociedade às formas como a ditadura articulava seu
projeto de nação (incluído o de educação), ou seja, de assunção, por parte da sociedade, de
tarefas até então de responsabilidade do Estado, no âmbito da educação, tensionam os
poderes.
Desde os anos 1950 e 1960, os movimentos de educação popular, principalmente no
Nordeste, vinculados à cultura e a projetos de base nacional, haviam indicado e produzido
caminhos de aproximação com as classes desfavorecidas, não pelas carências expostas pelos
projetos dirigentes como causadoras da pobreza e do analfabetismo, mas pela valorização,
reconhecimento e aprofundamento da cultura popular, como gérmen de qualquer projeto
educativo.
Observando como a democracia vai sendo constituída no pós-ditadura, Coutinho
(2002, p. 23) afirma que “O Brasil emerge da ditadura como uma sociedade de tipo
‘ocidental’, onde havia uma sociedade civil bem mais forte e articulada do que aquela que
havia antes da ditadura”. Cresce o associativismo no Brasil, a sindicalização urbana, e,
sobretudo, a rural e nasce um novo partido político – o PT.
Educação como base da democracia tem sido uma premissa fundamental para a
compreensão dos movimentos e das políticas que se vão constituindo no país. Não se costuma
pôr em dúvida que o exercício da democracia implica uma sociedade educada, e que esta
educação à qual se refere o senso comum não é outra se não a escolar. Parece-me que, neste
modo de pensar a questão, está implícita a idéia de direito, para uma ação pública
indispensável aos modos como se organizou a vida social. Ser educado, no sentido assim
atribuído tem espectro restrito, delimitado pelos conteúdos de que a escola se vale para tornar
democrático o acesso ao saber, saber este posto como exigência da participação social. Este
saber — traduzido no meio pedagógico como “conteúdos da escola” —, no entanto, tem-se
mostrado, na prática social, anacrônico e defasado ao tempo histórico e aos progressivos
avanços da ciência, da técnica, das artes, da tecnologia. Mas permanece referencial para
apartar os que sabem, dos que não sabem, pelo fato de terem, ou não, passado por, e
concluído, determinados níveis de ensino. Ao fazê-lo, estabelece a desigualdade, sustentando-
a exatamente por um não-saber. Entretanto, o saber cujo domínio é, em verdade,
indispensável para a maioria dos trabalhadores, resume-se a uma trilogia aparentemente
72
simples: ler, escrever e contar (calcular), precipuamente, apesar de, contraditoriamente, vir-se
apontando o fracasso da instituição escola em cumprir, justamente, esta função21.
A maioria das práticas sociais exige dos sujeitos, em algum momento, intervenções
que partem da cultura escrita, o que termina por colocá-los em situações precarizadas, por não
exercerem nem o domínio da leitura, nem a autonomia para dizer sua palavra. Quanto mais
uma sociedade se democratiza, mais se vincula à exigência de práticas de escrita,
representadas pelos modos como, organizados, os sujeitos reivindicam, denunciam, requerem,
posicionam-se, criticam, emitem opiniões pela oralidade, mas com um sentido preciso do
poder do escrito, de sua permanência e da possibilidade de resgatar seus pleitos, comprovar
suas petições, exigir resultados e respostas. Essa não é outra que a prática política, assentada
em exercícios cotidianos de participação, luta e embates, galgando posições e demarcando
novas ordens de poder.
A prática da democracia, sem dúvida, implica direitos e também deveres políticos,
como alerta Freire (1994, p.185): “A democracia que seja estritamente política se nega a si
mesma. Nela, o direito que se oferece às massas populares é o do voto”. Esse foi o direito
formal que, antes mesmo da promulgação da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, se
assegurara, inclusive, às massas populares não-alfabetizadas22.
Almeida (2000, p. 37) na História da instrução pública no Brasil (1500-1889), escrita
em 1889, cita comentário de Robert Southey de que no Brasil colônia “havia um grande
número de negociantes ricos que não sabiam ler”. Prova disso é que no Império admitia-se o
voto do analfabeto desde que este possuísse bens e títulos, o que confirma Souza Filho (1999)
com a idéia de direito e propriedade.
Desde 1971, com a aprovação da Lei nº. 5692/71, o ensino de 1º Grau23, obrigatório
dos sete aos 14 anos, passou a produzir, legalmente, a exclusão da escola, para os que não
conseguissem aprovação em qualquer uma das séries cursadas, que acabavam ultrapassando
os 14 anos, limite da obrigatoriedade. Como também o ingresso na escola nem sempre se faz
aos sete anos, e como os fortes índices de retenção no sistema estão postos, principalmente,
21 Resultados de exames de leitura realizados tanto pelos sistemas de avaliação criados no governo federal anterior, pelo MEC, quanto os elaborados no âmbito do PISA revelam baixa compreensão do que lêem os estudantes brasileiros, carecendo de intervenção até hoje em discussão, face à metodologia e às premissas consideradas como fundamentos iguais para conjuntos populacionais muito diversos. 22 A Emenda Constitucional de 1969 garantiu o voto do analfabeto, em clara demonstração do uso político-eleitoral do que deveria constituir direito, diante dos riscos de uma eleição que começava a mudar o jogo de forças. 23 O ensino de 1º Grau correspondia a oito anos de escolaridade, hoje equivalente ao ensino fundamental.
73
nas 1ª e 5ª séries, grande parte dos alunos, ao repetir, já se candidatava a não-concluintes, pois
ao atingirem a idade de 15 anos, quando então deveriam, no mínimo, estar alcançando a 8ª
série, tinham suas matrículas negadas pelas direções de escolas, sob a égide da lei. Ou seja,
apenas os alunos que conseguissem seguir o fluxo direto, sem descontinuidades ou retenções,
tendo iniciado a vida escolar aos sete anos, conseguiam concluir o 1º Grau, o que também não
significava aprender a ler e a escrever com autonomia e expressão próprias. Este modelo de
escola “um ano - uma série”, a “escola dos bem-sucedidos”, até 1988, sem dúvida, em muito
contribuiu para a expulsão dos alunos, ampliando significativamente o número dos
“escolarizados” — os que “passaram” pela escola, sem conclusão de nível fundamental.
Destaque-se, uma vez mais, que desde a Constituição Federal de 1988, e da formulação e
aprovação da lei ordinária LDB nº. 9394/96, dentre muitas mudanças, reconquista-se o direito
de todos ao ensino fundamental, independente da idade, extinguindo-se qualquer referência a
faixa etária obrigatória. Posto como dever do Estado e direito público subjetivo, o ensino
fundamental ganhou status legal, mas ainda hoje, passados tantos anos, esse direito não se fez
prática para um imenso contingente populacional.
A regra democrática do direito à escola pública, praticada, começa a alcançar a
maioria das crianças, no que diz respeito apenas ao acesso. Nos últimos anos, como se pode
observar, sua simples enunciação, traduzindo a “linguagem” do direito, é insuficiente para
mudar a realidade. Instituir efetivamente esse direito novamente proclamado, implica
introduzir mudanças fortes na cultura cotidiana que unge poderes a determinadas autoridades
que, mesmo ferindo direitos, permanecem exercitando práticas excludentes e autoritárias,
traduzidas por políticas públicas, ou expressas por ações personalistas, no nível do cotidiano
das escolas.
Praticar a democracia, além disso, não se restringe à mudança de relações nas escolas
ou nos sistemas de ensino, mas precisa envolver, também, direitos sociais, econômicos,
culturais e humanos, e para exercê-la em sociedades grafocêntricas, indiscutivelmente a
condição de leitor e escritor autônomo é fundamental.
O desafio de pensar direito e democracia na educação para segmentos tão
desfavorecidos — que se superpõem a outros muitos direitos negados, em um mundo de
exclusão crescente — é, no atual contexto histórico brasileiro, assumido pelo Governo de
Luiz Inácio Lula da Silva como prioridade.
No entanto, como ensina Santos (1999, p. 109), “os riscos que corremos em face da
erosão do contrato social são demasiado sérios para que ante eles cruzemos os braços”. Para
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superar esses riscos, o autor propõe reinventar a deliberação democrática a partir de uma
“outra epistemologia24 para a qual o ponto de ignorância é o colonialismo e o ponto de saber é
a solidariedade (conhecimento como emancipação)” (SANTOS, 1999, p. 110), e em que o
trânsito da epistemologia moderna para esta se faça não simplesmente pela própria concepção
de epistemologia, mas entre conhecimento e ação — ação rebelde, a que denomina ação-com-
clinamen25. O autor assinala ainda que essa é uma ação turbulenta de um pensamento em
turbulência. Por fim, entende que esta reinvenção da deliberação democrática implica a
reconstrução de novos espaços-tempos que façam frente à compressão e à segmentação do
espaço-tempo, e que possam incluir o local, o regional e o global, além de atender as
exigências cosmopolitas, cujo sentido último é a construção de um novo contrato social.
Atribuindo aos sujeitos, no cotidiano, a possibilidade de reinventar a emancipação
social, Santos (2002, passim) propõe a todos nós democratizar a democracia, sem o que a
injustiça e a desigualdade não dão trégua às populações.
Para Semeraro (2002, p. 222):
A democracia, assim, não é um sistema político entre tantos, mas é a prática específica pela qual o povo se institui como sujeito. Nela, os indivíduos se tornam sujeitos públicos enquanto seres políticos ativos, se transformam em seres socializados porque desenvolvem relações sociais e responsabilidades coletivas.
A educação de jovens e adultos tem estado ousadamente lutando por essa
transformação, assumindo lugares diversos da participação, capazes de instituir, dessa forma,
outros sujeitos públicos. No entanto, uma sensação remanescente de repetição, de
redundância, permanece, pelo tanto que tem sido dito, pelo pouco que tem sido feito. Anísio
Teixeira (1996, p. 107) traduz, no olhar de outros tempos, com tal atualidade os tempos que
vimos vivendo, que ainda uma vez mais preciso dele, dialetizando este texto, entre o
desespero e a esperança:
Confesso que não venho, até aqui, falar-vos sobre o problema da Educação sem certo constrangimento: quem percorrer a legislação do país a respeito da Educação, tudo aí encontrará. Sobre assunto algum se falou tanto no Brasil e, em nenhum outro, tão pouco se realizou. Não há, assim, como fugir à
24 Boaventura de Souza Santos (1995, p. 25, apud 1999, p. 110) define que a epistemologia moderna faz sua trajetória de um ponto de ignorância, designado por ele de caos, para um ponto de saber, que designa de ordem, tomando o conhecimento como regulação. 25 “Clinamen é a capacidade de desvio atribuída por Epicuro aos átomos de Demócrito, um quantum inexplicável que perturba as relações de causa e efeito. O clinamen investe os átomos de criatividade e de movimento espontâneo. O conhecimento-como-emancipação é um conhecimento que se traduz em ações-com-clinamen”. (SANTOS, 1999, p. 110).
75
impressão penosa de nos estarmos a repetir. Há cem anos os educadores se repetem entre nós. Esvaem-se em palavras, esvaímo-nos em palavras e nada fazemos. Atacou-nos, por isso mesmo, um estranho pudor pela palavra. Pouco falamos, os educadores de hoje. Estamos possuídos de um desespero mudo pela ação.
Nós, educadores de jovens e adultos de hoje, andamos movidos mais pelas palavras do
que pelas ações. Dir-se-ia que delas não temos tido nenhum pudor, mas envergonhamo-nos
dos atos que têm gerado. Apesar de existirem — e muitas — nos últimos anos, não
conseguiram, como historicamente, ultrapassar o lugar de “experiências”. O desespero pela
ação não é mudo, mas ainda é lenta agonia.
A EJA como direito, nesse país de tantas necessidades, e inserida no amplo desafio de
resgatar os princípios da igualdade e da liberdade que desde a Revolução Francesa
permanecem caros à democracia, ocupa, sem dúvida nenhuma, depois de tantos anos, uma
nova cena política, onde se vislumbram cenários em mudança. A formulação que lhe
reconhece como direito vem sendo assumida nos discursos. Um discurso fortemente de
esperança que, lembrando Coutinho (2002, p. 39), é apenas um estímulo para a ação. O que
revelarão as práticas?
76
44.. TTRRAABBAALLHHOOSS DDEE HHÉÉRRCCUULLEESS:: OOSS SSEENNTTIIDDOOSS DDOO DDIIRREEIITTOO ÀÀ EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO
NNAASS CCOONNFFEERRÊÊNNCCIIAASS EE AACCOORRDDOOSS IINNTTEERRNNAACCIIOONNAAIISS
Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras. (Thiago de Mello, Os Estatutos do Homem, Art. V)
O percurso em busca dos sentidos do direito à educação para jovens e adultos no plano
internacional, se inicia a partir da I Conferência Internacional, em 1949, até os últimos e
atuais movimentos, situando ainda a relação intrínseca da área com os demais temas, objetos
de conferências mundiais durante a década de 1990.
Certamente não serão apenas doze como os de Hércules, os desafios enfrentados pela
educação de jovens e adultos (primeiramente educação de adultos) ao longo dos anos, desde a
primeira Conferência de Elsinore, na Dinamarca, em 1949, que demarca o corte temporal e
histórico estabelecido para resgatar as lutas pelo direito à educação de jovens e adultos. O
marco relevante, no entanto, simbolizado na epígrafe desse capítulo pelo Artigo V d’Os
Estatutos do Homem, de Thiago de Mello, deve fazer justiça ao desafio anterior, quando
adotada e proclamada a Declaração Universal dos Direitos do Homem, pela Assembléia
Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948:
[...] como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações, a fim de que todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade, tendo-a constantemente no espírito, se esforcem, pelo ensino e pela educação, por desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e por promover, por medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o seu reconhecimento e a sua aplicação universais e efetivos, tanto entre as populações dos próprios Estados membros como entre as dos territórios colocados sob a sua jurisdição.
Quarenta e oito Estados-membro votaram a favor da Declaração, nenhum votou contra
e houve oito abstenções. A Declaração, com um preâmbulo e 30 artigos, enumera os direitos
humanos e as liberdades fundamentais de que são titulares todos os homens e mulheres, de
todo o mundo, sem qualquer discriminação. No Artigo 1.º, expressando a filosofia subjacente
à Declaração, encontra-se: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e
direitos”, com o claro sentido de que o direito à liberdade e à igualdade é direito inato e não
pode ser alienado; e por ser o homem um ser racional e moral, é titular exclusivo de direitos e
liberdades. O direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal; os direitos econômicos, sociais
e culturais — indispensáveis à dignidade humana — incluem o direito à segurança social, o
77
direito ao trabalho, ao salário igual por trabalho igual, o direito ao repouso e aos lazeres, o
direito a um nível de vida suficiente para assegurar a saúde e o bem-estar, o direito à
educação e o direito de tomar parte na vida cultural da comunidade.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem tornou-se, ao longo dos anos, um
padrão de referência por meio do qual se avalia o grau de respeito e cumprimento das normas
internacionais de direitos humanos. E é nesse marco que busco compreender as forças
internacionais protagonizadas pela Unesco que, mesmo atuando contraditoriamente em
muitos casos, porque eivadas dos interesses do capital, atuam como a alegoria de Hércules,
nos imensos desafios de tornar direito de todos a educação, o que implica considerar, também,
iguais no direito, jovens e adultos que demandam alfabetização, cuja chave — a leitura e a
escrita — lhes autoriza, diferenciadamente, o acesso e as oportunidades aos bens da cultura
escrita.
44..11 OONNDDEE TTUUDDOO CCOOMMEEÇÇOOUU:: DDIINNAAMMAARRCCAA,, EELLSSIINNOORREE,, 11994499
O mundo tentava reorganizar-se no pós-guerra. A Europa, partida, fragmentada, e o
mundo em imenso impacto pelos aprendizados que a II Guerra impunha aos cidadãos, de
todos os continentes. O potencial bélico demonstrava os avanços tecnológicos e científicos, e
a bomba atômica não era uma ilusão. Surgia a necessidade de pensar um outro mundo.
Neste contexto de reconstrução, não apenas material, mas político, ideológico,
educacional, social, cultural, muitas iniciativas se fazem em busca de encontrar alternativas
viáveis para superar os horrores da guerra, a destruição em massa, os símbolos desfeitos, os
ícones mutilados.
De 19 a 25 de junho de 1949, a I Conferência Internacional de Educação de adultos,
convocada pela Unesco, acontece em Elsinore, na Dinamarca, e o Relatório sumarizado das
Recomendações da Comissão 426 apresenta um conjunto de recomendações à própria
organização internacional, entendendo-a portadora da responsabilidade de retirar o povo
alemão do isolamento em que se encontrava, privado do contato democrático-cultural com
outras nações. Isto proposto no marco da educação de adultos.
No Relatório apontava-se que os problemas especiais gerados no mundo exigiam
cooperação internacional, e atribuía-se à Unesco o papel de “facilitadora” dessa cooperação:
26 Disponibilizada na página eletrônica da Unesco Institute for Education – UIE, de Hamburgo, Alemanha (http://www.Unesco.org/education/uie/publications/confintea. Acesso em 9 fev. 2005).
78
apoiando missões de educadores de países menos desenvolvidos a países com mais longa
tradição e experiência em educação de adultos; organizando escolas internacionais de verão;
promovendo seminários em assuntos de interesse especial na área; organizando instalações
satisfatórias para a realização de pesquisas de base internacional no campo da educação de
adultos; estimulando operários e estudantes a participarem; divulgando e disseminando
pesquisas, conhecimentos produzidos, traduzindo e publicando materiais de reconhecida
utilidade em vários idiomas. Ainda uma última recomendação era feita à Unesco: que
assegurasse formas e procedimentos para garantir a continuidade da cooperação internacional.
Não se observa, nesse Relatório, nenhuma alusão ao que se entende por educação de
adultos, embora, certamente, a concepção corrente deva ter sustentado as discussões da I
Conferência, permitindo chegar a tais recomendações. O que se destaca é o fato de a educação
de adultos exigir uma espécie de “tutor”, mediando as relações entre países, em um mundo
recém-saído da hostilidade e do jugo da ideologia nazista. As tarefas cabem à Unesco não aos
países, que embora presentes não parecem assumir diretamente nem responsabilidades, nem
metas com a educação de adultos. Observa-se, por exemplo, o fundamento que justifica a
responsabilização da Unesco, considerada como entidade que poderia favorecer a
aproximação com o povo alemão, privado do “contato democrático-cultural”. E a educação de
adultos, nessa busca de relações democráticas, situa-se como possibilidade, para a qual a
própria Unesco tem tarefa relevante a cumprir. Verifique-se, ainda, a atenção dedicada aos
sujeitos operários e aos estudantes, estes como voluntários para os esforços que o
tema/problema merece.
A perspectiva do direito não está presente no texto. Ressalta-se a necessidade de
sustentar a educação dos adultos, todos novamente aprendizes de um mundo que se modifica,
dramaticamente.
44..22 IIII CCOONNFFEERRÊÊNNCCIIAA IINNTTEERRNNAACCIIOONNAALL DDEE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE AADDUULLTTOOSS —— MMOONNTTRRÉÉAALL,,
CCAANNAADDÁÁ,, 2211 AA 3311 DDEE AAGGOOSSTTOO DDEE 11996600
A Conferência de Montréal, no Canadá, em 1960, começava a marcar os intervalos em
que essas conferências se dariam: 11 anos depois de Elsinore, os países, convocados
novamente pela Unesco, reuniam-se por dez dias para discutir, dentre vários temas conexos, o
papel e o conteúdo da educação de adultos.
Um primeiro aspecto a destacar revela a preocupação que o mundo político de 1960
apresentava para a educação de adultos: a relação entre humanismo e técnica, que a essa
79
altura já avançava dentre os valores estabelecidos para o ato educativo — o aperfeiçoamento
profissional de cada um, pareado a valores que dignificassem a condição humana e o
progresso social. Para isso, o papel da ciência e da técnica ganhava relevância, sem
desconsiderar as diferenças de origem social e profissional que deveriam embasar as
concepções sobre o significado de ciência e técnica para o desenvolvimento da sociedade e
para o progresso da humanidade.
No momento dessa Conferência, atribuía-se à idéia de progresso um conteúdo realista
e científico ligado à vida, para formar o que era então denominado de homem moderno,
possibilitando o conhecimento e a estima recíproca dos povos e de seus valores culturais, em
reforço à paz. Destacava-se o papel desempenhado pela linguagem da arte, e intelectuais e
artistas eram convocados para participarem da educação de adultos. Observa-se que a
preocupação com a paz, onze anos depois de Elsinore, ainda está presente, talvez pela
insegurança sucedânea à memória recente da guerra.
O humanismo e os valores culturais são retratados pela rejeição a qualquer
discriminação de raça (e o ódio decorrente, explicitamente apontado); de sexo (compreendido
aqui como gênero); nacionalidade; religião, e com a atribuição de contribuírem para a
igualdade em direitos de mulheres e de homens em todos os setores da vida social, reduzindo
o desequilíbrio entre educação rural e urbana. O modo de conceber a formação educacional
dos sujeitos incluía o desenvolvimento da capacidade intelectual, de julgamento e de reflexão
e o senso estético dos cidadãos que se elevariam, assim, como indivíduos e em respeito a seus
pares e a seu trabalho. Nesse sentido, valorizavam-se as formas tradicionais de manifestação
da arte popular, como patrimônio a ser preservado, para que não se perdesse.
A Conferência encarrega a Unesco de um imediato levantamento, principalmente em
países da Ásia e da África, de experiências que pudessem atender às necessidades educativas
de adultos e de seu desenvolvimento cultural. Para isso, reconhecia a importância de métodos
que respeitassem as aspirações dos diversos públicos da cidade e do campo, em países
desenvolvidos e subdesenvolvidos. Do mesmo modo, atribuía à pesquisa científica a
investigação necessária e rigorosa para encontrar caminhos que elevassem o nível cultural das
sociedades — estes não menos importantes do que aqueles que ampliassem os níveis de vida
material. Previa, ainda, a divulgação eficaz de resultados no campo das ciências econômicas,
sociológicas, psicológicas e pedagógicas, recomendando a cada país investigações específicas
indispensáveis ao progresso da própria ação, assim como uma política pedagógica em que os
investigadores não se comprometessem apenas com o resultado de suas pesquisas, mas com o
80
avanço completo das ações e indicações por elas geradas, fomentando a formação de
institutos de pesquisa voltados às questões culturais.
Também a Conferência recomendava que a Unesco realizasse reuniões internacionais
de especialistas, para a troca de conhecimentos produzidos, visando a ampliar os meios de
comunicação de massa que se prestavam à formação dos adultos, como o cinema, o rádio e a
televisão — esta última nascente nos anos 1950. Atribuía-se a esses meios o sentido de “tocar
o coração dos homens”, atendendo às exigências do espírito e de preservar e enriquecer
patrimônios artísticos e intelectuais, considerando os efeitos educativos, ou até mesmo
nefastos, dos que ascendiam a novas condições econômicas e sociais, subestimando a cultura.
Para esse fim, a Conferência convida as organizações responsáveis por meios de
diversão e lazer populares a examinar como o cinema, o rádio e a televisão podem colaborar,
com traços construtivos, para uma vida melhor, aproximando educadores e quadros culturais
para que apresentem sugestões à preparação de programas recreativos que, conservando os
atrativos desses meios, enriqueçam o pensamento e os modos de vida das pessoas.
Um dado importante a destacar é que a Conferência demarca, ainda, que a educação de
adultos deve integrar o sistema educacional, não devendo existir como um apêndice. Pelo
reconhecimento da exigência crescente de educação, mesmo para os que foram à escola desde
pequenos, a vinculação orgânica a um sistema implica beneficiá-lo com recursos adequados
para tarefas necessárias, segundo características de cada país. Destaca, também, o papel que
os institutos das Nações Unidas devem ter em fomento e apoio à realidade de países
subdesenvolvidos, pela imperiosa necessidade de integrar a educação de adultos a todos os
esforços de desenvolvimento de modo geral.
Quanto ao planejamento e à orçamentação de recursos indispensáveis para a educação
de adultos, notadamente no campo do ensino, a Conferência entende que um organismo
representante da sociedade deve orientar, coordenar e dirigir a execução de programas, e que
esse papel cabe, indubitavelmente ao Estado, sem ressalvas ao que já vem sendo
compreendido e realizado pelos Estados democráticos. Por reconhecer que o concurso de
governos à educação de adultos lidava com tradições educativas, costumes e práticas, alertava
os dirigentes quanto à necessidade de criar condições financeiras e administrativas para que a
educação de adultos pudesse ter conseqüência.
Um aspecto já surge, desde essa data, no documento: a relação entre nível de vida e
educação de adultos, alertando ser impossível aproveitar dos benefícios da educação se não
81
forem asseguradas condições mínimas de vida às populações. O concurso e o suporte das
organizações não-governamentais para a educação de adultos já estava presente em 1960,
assim como a orientação aos governos no sentido de estimularem a participação desses
organismos, que necessitariam de liberdade de ação, de recursos criativos e de espírito
pragmático para atender à educação de adultos. O trabalho de adultos junto às organizações
privadas representava a oportunidade de partilhar experiências educativas que contribuiriam
para desenvolver, na sociedade e nos indivíduos, o senso de responsabilidade e de iniciativa.
A perspectiva do direito surgia, então, no marco dessas referências, reconhecendo que
todo adulto, homem ou mulher, tinha possibilidades suficientes para a educação geral e
profissional, e demandava a todos os Estados medidas que assegurassem essas possibilidades,
chegando a recomendar ajudas de custo e de viagens para que adultos de qualquer grupo
profissional pudessem se liberar de parte de seu tempo, ou temporariamente, de modo a
aproveitar ofertas públicas e privadas de serviços de educação profissional, cívica, social e
cultural.
A idéia de voluntariado sob os auspícios das Nações Unidas também se fazia presente,
sendo sugerida a criação de um corpo de voluntários, contribuindo por um ano com seu
trabalho, associado ao de outros corpos voluntários, para a luta mundial contra a miséria, a
doença e o analfabetismo, fortalecendo a compreensão e a cooperação internacionais.
Também o papel dos jovens surgia com destaque, prevendo que organizações de jovens e de
estudantes apoiassem a educação de adultos, considerando o interesse e o compromisso que
essas organizações deviam ter com o conhecimento na área e com o desenvolvimento de seus
compatriotas.
Ainda como recomendações, a Conferência aponta a necessidade de tradução em
quatro línguas — inglês, espanhol, francês e russo — nos próximos eventos, considerando a
diversidade de Estados-membros da Unesco e os obstáculos decorrentes dessa questão à livre
circulação e à troca de idéias entre as delegações.
Sobre o estado da arte na educação de adultos e na alfabetização, a Conferência
considera indispensável que a Unesco organizasse, no curso dos dois anos seguintes, na
América Latina, na Ásia e na África, estágios de estudos regionais considerando os problemas
comuns sobre as duas questões, com vista a permitir o estudo e a adoção de soluções práticas
que revelassem o nível cultural das regiões estudadas.
82
A Conferência sublinha, ainda, a necessidade de um Comitê permanente de educação
de adultos, considerando as exigências de um mundo em rápida transformação, e a obrigação
que caberia aos governantes de acompanhar as conseqüências práticas desta situação. Para
isso recomenda que a Unesco assegurasse recursos e pessoal necessários para fazer face de
modo eficaz às atividades de EDA nas organizações engajadas. Sugeria um comitê
permanente de composição determinada que acompanharia as ações desenvolvidas desde
1949 pelo Comitê consultivo então criado, e no limite do Ato Constitutivo da Unesco
recomenda que o Diretor Geral buscasse assegurar o concurso de pessoas com experiência em
atividades governamentais nos Estados-membros em matéria de EDA; em atividade nas
principais instituições de educação de adultos (centros de educação operários, escolas
noturnas públicas ou privadas, cursos de extensão universitária, colégios populares com
internato, centros encarregados da produção de material para a EDA etc.); em atividades em
organizações não-governamentais a partir das quais a Unesco pudesse entrar em contato com
as populações do mundo; em atividade em organizações nacionais ou regionais cujo objeto
seria coordenar os diferentes esforços das instituições de educação de adultos.
Por último, a Conferência recomendava a inversão de fundos especiais na luta contra o
analfabetismo, com um fundo adicional destinado expressamente à eliminação do
analfabetismo nos países em vias de desenvolvimento e que recentemente tivessem
conquistado a independência.
44..33 IIIIII CCOONNFFEERRÊÊNNCCIIAA IINNTTEERRNNAACCIIOONNAALL –– TTÓÓQQUUIIOO –– 2255 DDEE JJUULLHHOO AA 77 DDEE AAGGOOSSTTOO 11997722
A III Conferência Internacional de Educação de adultos teve lugar dez anos após a de
Montréal, no Canadá, de 1962, tendo as principais conclusões agrupadas nos seguintes itens:
educação e necessidades humanas; participação; utilização dos meios de informação;
administração, organização e financiamento; cooperação internacional. Como se observa,
alguns temas são recorrentes, e já se faz a associação, pela primeira vez, da educação às
necessidades humanas, mais tarde traduzidas por necessidades básicas de aprendizagem,
recortando a abrangência que nesse momento aparecia.
Na discussão do tema educação e necessidades humanas, o texto parte do princípio de
que a educação é produto da sociedade que, como tal, se constitui por ação dessa mesma
educação. Transformações na sociedade e objetivos de desenvolvimento da comunidade
implicam mudanças no sistema de educação, e inversamente, os objetivos da educação
83
demandam mudanças econômicas, sociais, culturais, políticas, entendendo ser dever do
educador definir e propor tais reformas.
Os obstáculos que impedem os adultos a aprender deveriam ser objeto de atenção,
prevendo-se várias medidas que favorecessem principalmente os trabalhadores de
participarem de situações de aprendizagem, destacando a Conferência as seguintes categorias
tradicionalmente desfavorecidas, em numerosas sociedades: jovens sem emprego, jovens que
deixaram prematuramente a escola em países em via de desenvolvimento, populações rurais
em numerosos países, trabalhadores migrantes, pessoas idosas e desempregadas. No interior
dessas categorias, mulheres e moças são particularmente desfavorecidas.
Para ampliar o acesso à educação, entende-se que a informação e sua disseminação
devem oferecer modos de as pessoas saberem de que forma e com que métodos podem
continuar a aprender. A supressão do analfabetismo é fundamental para o desenvolvimento, e
a alfabetização é a pedra de toque da educação de adultos, mas vista como meio, e não como
fim em si mesmo.
O desenvolvimento rural, na maior parte dos países exigiria um esforço da educação
de adultos focado nas necessidades do agricultor praticante da economia de subsistência e do
trabalhador agrícola desprovido de terra, o que andaria pari passu com reformas sociais e
econômicas. Também o desenvolvimento industrial exigiria programas de educação de
adultos, a fim de que todos pudessem participar das transformações científicas e técnicas. Um
dos principais objetivos da educação de adultos deveria ser: estudar e fazer compreender as
questões relacionadas ao meio ambiente, como a erosão, a conservação da água, a poluição e
os problemas demográficos.
As principais conclusões a que se chega nesse tópico destacam que a educação, mais
do que institucional, deveria ser funcional, devendo penetrar a sociedade, o trabalho, o lazer,
as atividades cívicas. Como proclamado no Seminário Latino-americano de Educação de
Adultos, ocorrido em Havana em março de 1972, o papel funcional poderia se definir como:
educação funcional de adultos fundada sobre os laços existentes entre o homem e o trabalho
(em sentido amplo) e desenvolvimento geral da comunidade, integrado aos interesses do
indivíduo e da sociedade. A educação funcional entendida como aquela pela qual o homem se
realiza no quadro de uma sociedade em que a estrutura e os elementos de superestrutura
facilitam o pleno desenvolvimento da personalidade humana, contribuiria para a formação de
um homem criador de bens materiais e espirituais, ao mesmo tempo em que lhe permitiria
usufruir, sem restrições, de sua obra criativa. Quanto à participação, considerava-se
84
indispensável que os adultos tivessem um ativo papel no planejamento, na gestão e na
condução de seus próprios estudos, cabendo aos educadores trabalhar no meio natural em que
os alunos vivem, a fim de que estes se sentissem seguros e experimentassem motivações
autênticas. Para essa valiosa participação na vida cultural da comunidade, a dimensão cultural
da educação de adultos deveria manter-se interdependente ao desenvolvimento cultural.
Nesse momento, já se destacava a participação e os aprendizados mútuos da relação
tradicional professor-aluno, tendo como eixo a aplicação prática dos conhecimentos para a
solução de problemas, assim como a utilização de meios de informação beneficiando o
desenvolvimento econômico, social e cultural. O interesse público deveria suplantar os
interesses comerciais ou privados, reforçando a participação dos alunos adultos a diferentes
níveis de programação de emissões educativas.
A recomendação aos governos era para que colocassem a educação de adultos no
plano primeiro de suas preocupações, em pé de igualdade à educação escolar, reconhecendo o
papel essencial que os organismos privados e os movimentos populares desempenham para a
educação de adultos, freqüentemente capazes de alcançar os desfavorecidos em matéria de
educação onde os serviços oficiais não conseguem chegar. Para isso, os investimentos
deveriam ser sensivelmente aumentados. Instituições e organizações internacionais como a
Unesco e agências bilaterais de cooperação para o desenvolvimento, destinando à educação de
adultos uma parte importante dos recursos, tornariam financeiramente possível, em alguns
casos, expandir consideravelmente as possibilidades da educação de adultos.
Porque a força da educação de adultos está posta em sua diversidade, a difusão de suas
funções na sociedade mobilizaria instituições e organizações como sindicatos, serviços
governamentais, empresas, comunidades e cooperativas agrícolas.
Mas a educação de adultos tinha objetivos mais amplos: favorecendo um sistema
funcional de educação permanente, os estabelecimentos escolares tomariam toda a
comunidade como objeto de preocupação, passando a atuar como agentes de instrução, entre
muitos outros, por ter o papel precípuo de ensinar os alunos a aprender. Valorizam-se, ainda,
os estreitos laços existentes entre os objetivos da educação de adultos e a causa da paz
mundial.
Educadores de adultos, representados nos organismos que produzem políticas de
educação, necessitariam, para fazê-lo, de formação que privilegiasse métodos e técnicas de
educação de adultos. Também das universidades, nesse sentido, esperava-se a assunção de
85
papel mais amplo na educação de adultos, não apenas reconhecendo os saberes dos
educadores de adultos, o que os dispensaria de títulos prévios para o acesso ao nível superior,
mas também definindo e executando programas de ensino, pesquisa e de formação em função
das necessidades da sociedade toda, e não somente de setores privilegiados. Sobre este
aspecto, cabe considerar a valorização dos professores leigos, institucionalizando, de alguma
forma, programas de aproveitamento e sistematização de conhecimentos que convalida e
amplia as aprendizagens da prática.
Em conclusão, a Conferência sublinha os seguintes pontos: que a educação é um
processo permanente, e que tanto a de adultos, como a de crianças e adolescentes não se
separam. Como agente eficaz de transformação, a educação tem necessidade da participação e
do engajamento ativo dos adultos que, para isso, devem obter melhores condições e qualidade
de vida. Causas da pouca qualidade de vida, atribuídas à apatia, à miséria, à doença, à fome
são consideradas chagas da humanidade, que necessitariam da consciência de por quê
acontecem, e dos métodos de como combatê-las. À educação de adultos atribuía-se papel
complementar à melhoria da sociedade e, embora a interdependência entre os países cada vez
se demonstrasse com mais intensidade, a Conferência reconhecia que se agravava a distância
entre eles e entre suas populações e as condições de vida — problema moral, cuja supressão
não significaria apenas uma questão de justiça social, mas um imperativo econômico e
condição indispensável à paz no mundo.
Assim, a tarefa essencial da educação de adultos durante a Segunda Década das
Nações Unidades para o desenvolvimento, consistiria em determinar quais populações são
entregues à própria sorte e atender as suas necessidades, sem mais delongas.
A Conferência, pródiga em idéias, encerrou seus trabalhos com um conjunto de 33
recomendações, das quais, pelo objeto deste trabalho, destacaria: políticas nacionais de
educação de adultos; metas da educação de adultos; educação extra-escolar para jovens;
medidas em favor da educação dos trabalhadores; reconhecimento da educação de adultos
como setor essencial do sistema de educação e reforço da ação da Unesco nesse domínio;
ação internacional de luta contra o analfabetismo; educação de adultos nas pautas das
conferências gerais da Unesco; campanhas de mobilização para a eliminação do
analfabetismo; e a idéia que retorna, sempre, às ações da Unesco, a da educação de pais.
86
44..44 CCOONNFFEERRÊÊNNCCIIAA GGEERRAALL UUNNEESSCCOO 1199ªª RREEUUNNIIÃÃOO —— NNAAIIRRÓÓBBII,, 2266 AA 3300 DDEE NNOOVVEEMMBBRROO DDEE
11997766
A Conferência Geral, ocorrida em Nairóbi de 26 a 30 de novembro de 1976, ocorre
quatro anos após a III Conferência de Educação de Adultos, em Tóquio, 1972. Em 26 de
novembro é aprovado, pelos Estados-Membros, um conjunto de Recomendações relativo ao
desenvolvimento da educação de adultos, tal como recomendado na III Conferência, quanto à
prioridade de pauta para a educação de adultos.
Buscando compreender o momento histórico em que ela se dá e os marcos que
estabelece como referência ao que recomendará, alguns comentários podem ser
sistematizados. Inicio pela referência que a 19ª Reunião estabelece, de pronto, com a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, Art. 26 e 27, quando especifica o direito de
toda pessoa à educação e a uma livre participação na vida cultural, artística e científica,
assim como a inseparabilidade de educação e democracia, e de educação e abolição de
privilégios, o que é previsto para ser feito pela educação permanente, por estar assumido que
a educação de adultos é parte integrante da educação permanente. Mais: a educação
permanente é aspecto fundamental constitutivo do direito à educação, e um meio para facilitar
o exercício do direito à participação na vida política, cultural, artística e científica (UNESCO,
1976, p. 2). Nesse sentido, os consideranda que a Recomendação assume partem, sempre, da
educação de adultos como integrante de um projeto global de educação permanente (cf.
próximo parágrafo), vinculando-a a todos os aspectos da vida social, cultural, econômica; a
questões de gênero, grupos sociais, gerações e relações entre elas; a meios, modos e métodos
educativos; à formação geral e profissional; às possibilidades de mudança e reestruturação dos
sistemas de ensino; à possibilidade da paz e da justiça social. Do mesmo modo, destaca a
relação estreita com o trabalho, que a garantia do direito à educação estabelece (UNESCO,
1976, passim). Um último aspecto a destacar diz respeito à preocupação já observada com os
jovens. Inicialmente, a indicação é a de que os jovens sejam orientados para a educação
permanente, progressivamente, beneficiando-se, para isso, da educação de adultos —
condição seguinte ao deixarem de ser jovens e integrarem o chamado mundo adulto. Mas, em
seguida, a questão da existência de programas para jovens adultos é atestada em todas as
partes do mundo, o que faz a Conferência recomendar prioridade absoluta para esses
programas, por constituir esse segmento massa expressiva da população, destacando que sua
87
educação é de suma importância para o desenvolvimento político, econômico, social e
cultural da sociedade em que vivem (UNESCO, 1976, p. 7, 11).
Este conceito, de educação permanente, tem abordagem enfática no documento,
entendida como a que se expressa por um projeto global voltado para reestruturar o sistema
educativo existente, assim como para desenvolver todas as possibilidades de formação fora do
sistema educativo. Assinala, ainda, que longe de limitar-se ao período de escolaridade — da
educação formal, deve abarcar todas as dimensões da vida, todas as áreas do saber e todos os
conhecimentos práticos que possam ser adquiridos por todos os meios e contribuir para todas
as formas de desenvolvimento da personalidade. Completa afirmando que os processos
educativos que crianças, jovens e adultos seguem ao longo da vida, de qualquer forma, devem
ser considerados como um todo (UNESCO, 1976, p. 2).
No projeto global da educação permanente se insere a educação de adultos, como um
subconjunto integrado. Por educação de adultos, o documento designa a totalidade dos
processos organizados de educação, seja qual for o conteúdo, o nível ou o método, formais ou
não-formais, que prolonguem ou recoloquem a educação inicial oferecida nas escolas e
universidades, e sob a forma de aprendizagem profissional, graças às quais as pessoas
consideradas adultas pela sociedade a que pertencem, desenvolvem suas atitudes, enriquecem
seus conhecimentos, melhoram suas competências técnicas ou profissionais, ou as reorientam,
fazendo evoluir suas atitudes ou seu comportamento na dupla perspectiva de enriquecimento
integral do homem e de participação no desenvolvimento socioeconômico e cultural,
equilibrado e independente (UNESCO, 1976, p. 2).
Nas muitas funções atribuídas à educação de adultos, observa-se que esta se vincula,
precipuamente, à idéia de desenvolvimento, cara para a década de 1970. Nos anos 1970
alguns paradigmas alimentaram a educação, pelo ressurgimento da teoria do capital humano
(BLAUG, 1975)27, assim como pela compreensão do papel da escola como reprodutora das
27 Blaug (1975, p. 1), discutindo a questão do capital humano como metáfora ou analogia, inicia afirmando que “em todas as economias de que temos notícia, as pessoas que receberam mais educação percebem, em média, rendimentos mais elevados do que aquelas que receberam menos, pelo menos quando se comparam pessoas da mesma idade”. Segue, levantando questões sobre educação adicional e diz que “[...] a educação continua a ser um tipo de investimento, não para o indivíduo mas para a sociedade como um todo”. Assinala, ainda, que Marshall, quase um século depois de Adam Smith, em 1776, rejeitava “a idéia de ‘capital humano’ como irrealista, e [...] que sua autoridade magisterial tenha sido responsável pelo desaparecimento da mesma”, embora concordasse com Smith de que o homem educado pudesse ser comparado a uma máquina dispendiosa (o que ocasionaria diferencial em seu resultado e nos seus salários, indenizando-o dos gastos com a própria educação) (BLAUG, 1975, p. 2-3), mas divergindo da idéia de incluir as habilidades adquiridas de uma população na medida da “riqueza” ou “capital” de uma economia. Blaug (1975, p. 6-7) segue, mostrando como o conceito de capital humano foi abandonado até Marshall e depois dele (o que considera um mistério), mas mostrando como
88
ideologias sociais (BOURDIEU, PASSERON28, 1975) e aparelho ideológico do Estado
(ALTHUSSER29, 1985).
Apesar de o desenvolvimento subsumido não estar restrito ao econômico, pelo
contrário, às diversas expressões que assume na humanização dos sujeitos, esta idéia-força
impregna o conjunto das recomendações como objeto da educação de adultos. Já nesse
momento, também a capacidade de aprender a aprender, que mais tarde será fundamento de
concepções educacionais que se alastram pelo mundo, se enuncia nos termos da
Recomendação.
A participação de entidades da sociedade civil em concurso às ações da educação de
adultos são destacadas, no esforço de os Estados-Membros responderem às recomendações da
19ª Reunião, que reitera os compromissos da III Conferência de Educação de Adultos de
1972.
44..55 IIVV CCOONNFFEERRÊÊNNCCIIAA IINNTTEERRNNAACCIIOONNAALL SSOOBBRREE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE AADDUULLTTOOSS –– PPAARRIISS,, 1199--2299
DDEE MMAARRÇÇOO DDEE 11998855
A Conferência de Paris traz marca diferenciada das anteriores, fruto do estado do
conhecimento levado a termo desde Tóquio, na década anterior. Nesta Conferência as idéias
até então defendidas para a educação de adultos, como integrante de um sistema de educação
“a doutrina smithiana de que a educação e o treinamento podem ser encarados como um tipo de investimento em ‘capital humano’ constitui antes um programa para pesquisa do que a manifestação de um inquestionável insight, em 1970 não menos do que em 1890”. 28 Bourdieu e Passeron (1975, p. 204), na obra A Reprodução, assim questiona: “não é suficiente perceber as falhas comuns às duas tentativas de análise para chegar à verdade da relação entre a autonomia relativa do sistema de ensino e sua dependência relativa à estrutura das relações de classe: como levar em conta a autonomia relativa que a Escola deve à sua função própria sem deixar escapar as funções de classe que ela preenche necessariamente numa sociedade dividida em classes?” 29 Althusser (1985, p.67-71), assinalando o avanço à teoria marxista empreendido por Gramsci, diz que este foi o “único” que avançou no caminho que ele próprio retoma, de que o Estado não se restringia ao aparelho (repressivo) de Estado, compreendendo também certo número de instituições da “sociedade civil”, como Igreja, escolas, sindicatos etc., mas que Gramsci não teria sistematizado suas intuições, ficando estas apenas como anotações argutas, mas parciais. Designa, então, como aparelho ideológico do Estado – AIE -- “um certo número de realidades que apresentam-se (sic) ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas”, incluindo nessa lista as instituições religiosas, escolares, familiares, jurídicas, políticas, sindicais, de informação, culturais, implicando a diferença entre essas e o aparelho (repressivo) de Estado o fato de que este é um, para a pluralidade de aparelhos ideológicos do estado, não imediatamente visíveis; que enquanto o primeiro pertence ao domínio público, a maior parte dos AIE remete ao domínio privado, indicando que pouco importa a condição de pública ou privada, mas o funcionamento dessas instituições, em nome dos interesses do Estado (da classe dominante). Por fim, assinala que a diferença fundamental é que o aparelho repressivo do Estado funciona predominantemente através da repressão, inclusive a física, ao passo que os aparelhos ideológicos do Estado funcionam principalmente através da ideologia, e secundariamente através da repressão (atenuada, dissimulada ou simbólica). Explicita, também, que “nenhuma classe pode, de forma duradoura, deter o poder do Estado sem exercer ao mesmo tempo sua hegemonia sobre e nos Aparelhos Ideológicos do Estado”.
89
permanente estão marcadas pela necessidade não apenas de vínculo entre a educação e o
desenvolvimento econômico, assim como de todas as demais áreas, como também pela idéia,
que toma força nesta década, de andragogia, uma ciência equivalente à pedagogia, só que
aqui proposta para sujeitos adultos, com suas especificidades e requerimentos relativos ao
mundo adulto, a que a andragogia deveria responder com conhecimento adequado sobre as
formas de ensinar e educar adultos. Justamente no item relativo à formação de educadores é
que se dará ênfase a este conceito, para constatar e criticar os modos como profissionais
vinham sendo formados, e recomendar a necessidade do desenvolvimento de pesquisas que
produzam conhecimentos específicos sobre o campo e o mundo adulto e seus processos de
aprendizagem. Mas apenas nesta Conferência há alusão a este termo, deixando de aparecer
nas subseqüentes, possivelmente pela imprecisão do conceito que se anunciava como solução
para os problemas da educação de adultos30.
Quanto aos fins e políticas da educação de adultos, e tomando em conta conferências
anteriores, recomendações e a própria Declaração Universal de Direitos Humanos, que
configura um viés de educação humanista nos consideranda do relatório final, pode-se
encontrar estreita vinculação entre educação permanente e desenvolvimento econômico,
30 Pode-se, então, dizer que, de curta existência, o termo “não pegou”, por vários motivos. O primeiro, e mais significativo, em meu entendimento, é porque a etimologia da palavra não se refere (andros) a homem, com o sentido de humanidade, portanto incluindo homens e mulheres adultos, mas a masculino, havendo uma total identificação desse prefixo no campo da biologia, em que a diferenciação sexual se faz entre homem (andros) e mulher (gino), determinando, por exemplo, palavras como androceu (relativa às estruturas masculinas nas flores) e gineceu (relativa às estruturas femininas); andrologia (estudo dos aspectos masculinos na diferenciação sexual) e ginecologia (aspectos femininos) etc. O segundo motivo, é que se a origem é esta, e ainda que se quisesse estender o significado para as mulheres, se estaria, uma vez mais, lidando com a lógica masculina como generalizante (os professores, para designar a maioria de professoras; os trabalhadores, idem; todos os presentes etc.), e indo contra a denúncia de muitos autores adeptos da explicitação dos sujeitos homens e mulheres na enunciação dos textos, por não caber mais as formas dominantes de pensar e nomear o mundo pela lógica estritamente masculina, coerente com as lutas dos grupos de mulheres em todo o mundo, pelo apagamento de suas presenças em diversas culturas, anuladoras do lugar social das mulheres. Um terceiro motivo, conseqüente a estes, faz-se pelo fato de que a imprecisão/precisão (na oposição pedagogia/andragogia), justamente, não se coloca sobre os sujeitos, quando se explicita educação infantil, ensino regular de crianças, educação de adultos, porque nesses termos os sujeitos são bastante nítidos e visíveis. Também quando se usa pedagogia para se referir a crianças e a adultos, não se põe o problema. A questão está, justamente, na imprecisão de concepções sobre o que é ensinar crianças e o que é ensinar adultos, assim como sobre como se faz isto, para uns e para outros. O grande problema que a educação de adultos compartilha com a pedagogia (se se quiser tomá-la restritivamente aos sujeitos crianças) é a falta de conhecimento dos que fazem a educação sobre os modos e meios de intervir para produzir situações de aprendizagem que levem em conta a diversidade de sujeitos, suas origens, culturas, experiências, saberes prévios etc. Talvez por isso, o esforço de introduzir um novo termo tenha se esvanecido, no labirinto de problemas com o qual se defronta a educação de adultos, para desfocar e debater, inocuamente, um novo termo, facilmente demolido pelos estudiosos da área, pelos limites e ardis que contém. No Brasil, somente o SESI ainda hoje insiste em defender esta idéia como o diferencial da proposta de educação de adultos que estabelecem para os trabalhadores. Dois documentos a que tive acesso (MADEIRA, s/d.; OLIVEIRA, s/d.) não conseguem estabelecer rigor científico para assumir tal termo, para além de uma inovação e marca que a instituição gostaria de deixar na área ao propô-lo. Nem assim, no entanto, conseguem mudar as formas de dizer, pensar, fazer dos seus técnicos, também eles pouco convencidos da propriedade da mudança.
90
social, científico e tecnológico do mundo contemporâneo, mantendo a associação entre
população educada e desenvolvimento econômico, marcadamente pela existência de setores
mais marginalizados na sociedade — representados pelas mulheres, idosos, jovens —
privados da educação e de bens e serviços que o acesso a ela proporciona, sabendo ler e
escrever.
A Conferência, por fim, declara o direito de aprender como desafio capital da
humanidade, traduzindo-o por:
— o direito de saber ler e escrever; — o direito de fazer perguntas e de reflexionar; — o direito à imaginação e à criação; — o direito de interpretar o meio circundante e ser protagonista da história; — o direito de ter acesso aos recursos educativos; — o direito de desenvolver as competências individuais e coletivas.
Ainda reforça a importância desse direito, enunciando que:
O direito de aprender não é um luxo cultural que se possa dispensar; [...] não é uma etapa posterior à satisfação das necessidades básicas; o direito de aprender constitui, desde agora, um instrumento indispensável para a sobrevivência da humanidade. [...] Para que os povos possam satisfazer eles mesmos suas necessidades essenciais [...]; para que as mulheres e os homens possam gozar de boa saúde, deverão ter o direito de aprender; para evitar a guerra, será preciso aprender a viver em paz, aprender para compreender-se. Aprender é a palavra-chave. O direito de aprender é uma condição prévia do desenvolvimento humano; [...] é uma exigência necessária também para a solução dos problemas agrícolas e industriais, o progresso da saúde comunitária e a própria transformação das condições pedagógicas. Sem o direito de aprender não se poderão melhorar as condições de vida dos trabalhadores da cidade e do campo. (IV CONFERÊNCIA DE EDUCAÇÃO DE ADULTOS, 1985, p. 30).
Entende, também, que o direito de aprender não pode ser só um instrumento
econômico, mas ser reconhecido como direito fundamental. Como direito humano
fundamental, portanto, sua legitimidade é universal, não se restringindo somente a parte da
humanidade: aos homens, aos países industrializados, ou somente a classes pujantes, ou aos
jovens que tiveram o privilégio de ir à escola. Conclama a todos os países que reconheçam o
direito de todos, criando condições necessárias para o exercício universal, com recursos
humanos e materiais necessários, e termina questionando sobre quem decidirá como será a
humanidade do futuro, como questão para todos os governos, sociedades e indivíduos, ao
tempo em que a educação de adultos prega a condução dos destinos humanos por todos os
protagonistas da história.
91
44..66 AAPPOORRTTEESS IINNTTEERRNNAACCIIOONNAAIISS PPRROOTTAAGGOONNIIZZAADDOOSS PPEELLAA UUNNEESSCCOO,, RREEVVIISSIITTAADDOOSS AATTÉÉ AA
MMEETTAADDEE DDAA DDÉÉCCAADDAA DDEE 11999900
No interregno entre a IV Conferência e a V CONFINTEA, alguns estudos realizados
por comissões protagonizadas pela Unesco e/ou por especialistas, além de conferências de
educação tiveram lugar nesse tempo-espaço recente com que a memória compactua e que
influenciaram, seguramente, os caminhos, as ações e as políticas desenvolvidas pelos países,
em especial o Brasil, destaque dessa pesquisa.
Assim, o olhar sobre essas iniciativas, sem pretender esgotá-las, focará algumas, em
busca das marcas e das concepções de educação de jovens e adultos que aportam.
Para chegar à questão da educação, no entanto, é necessário compreender o processo
de mudanças instalado, nesta década, na América Latina, com grande intensidade, conhecido
como globalização, expressão de sentido amplo, que representa, em verdade, para Chesnais
(1996, p. 14) a fase denominada de mundialização do capital, em que:
[...] o capitalismo parece ter triunfado e parece dominar todo o planeta, mas os dirigentes políticos, industriais e financeiros do G7 cuidam de se apresentarem como portadores de uma missão histórica de progresso social.
[...] É na produção que se cria riqueza, a partir da combinação social de formas de trabalho humano, de diferentes qualificações. Mas é a esfera financeira que comanda, cada vez mais, a repartição e a destinação social dessa riqueza.
A compreensão desse processo, da forma de destinação social da riqueza produzida, e
os modos como os países dele participaram — por adesão ou compulsoriamente —, exige
admitir, como afirma Chesnais (1996, p. 34), que:
A mundialização é o resultado de dois movimentos conjuntos, estreitamente interligados, mas distintos. O primeiro pode ser caracterizado como a mais longa fase de acumulação ininterrupta do capital que o capitalismo conheceu desde 1914. O segundo diz respeito às políticas de liberalização, de privatização, de desregulamentação e de desmantelamento de conquistas sociais e democráticas, que foram aplicadas desde o início da década de 1980, sob o impulso dos governos Thatcher e Reagan.
As conseqüências desse processo de mundialização do capital, e que a América Latina
ainda vive até a contemporaneidade, buscando entender suas manifestações, apropriações e as
resistências criativas de movimentos sociais, sindicais, de trabalhadores, em geral, é explicada
dessa forma pelo autor:
A perda, para a esmagadora maioria dos países capitalistas, de boa parte de sua capacidade de conduzir um desenvolvimento parcialmente autocentrado
92
e independente; o desaparecimento de certa especificidade dos mercados nacionais e a destruição, para muitos Estados, da possibilidade de levar adiante políticas próprias, não são conseqüência mecânica da globalização, intervindo como processo “externo”, sempre mais coercitivo, impondo a cada país, a seus partidos e a seus governos uma determinada linha de conduta. Sem a intervenção política ativa dos governos Thatcher e Reagan, e também do conjunto dos governos que aceitaram não resistir a eles, e sem a implementação de políticas de desregulamentação, de privatização e de liberalização do comércio, o capital financeiro internacional e os grandes grupos multinacionais não teriam podido destruir tão depressa e tão radicalmente os entraves e freios à liberdade deles de se expandirem à vontade e de explorarem os recursos econômicos, humanos e naturais, onde lhes for conveniente. (CHESNAIS, 1996, p. 34).
Essa perda da capacidade de conduzir seu próprio desenvolvimento, no tocante ao
setor educacional, tem ativamente o protagonismo do Banco Interamericano de
Desenvolvimento – Banco Mundial (1995, p. XI apud CORAGGIO, 1996, p. 99), que no
documento Priorities and strategies for education: a World Bank sector review, assim se
expressa:
A educação é o instrumento principal para promover o crescimento econômico e reduzir a pobreza. [...] A educação em todos os níveis aumenta o crescimento, mas a educação sozinha não gera crescimento. O crescimento requer não apenas investimento em capital humano, mas também em capital físico; ambos os tipos de investimento dão sua maior contribuição ao crescimento em economias abertas, competitivas e que estão num equilíbrio macro-econômico.
Coraggio (1996, p. 100-101) discute esta posição do Banco Mundial, afirmando que o
Banco “sabe” muitas coisas sobre os países, e que esse “saber” passa a direcionar as políticas
impostas aos governos latino-americanos. Descentralização dos sistemas educativos,
desenvolvendo capacidades básicas em determinados níveis de ensino, satisfaz a demandas de
trabalhadores flexíveis; recursos escassos orientados para alunos que têm capacidade de
aprender, mas não podem pagar pela educação, reduzem a pobreza e potencializam a
capacidade produtiva; a avaliação de estabelecimentos de ensino deve ser realizada pelo
aprendizado dos alunos e a eficiência pelo custo por diplomado; o corpo docente deve ser
capacitado, mas com programas paliativos em serviço (se possível a distância), não investindo
mais na formação inicial; maior oferta de livros didáticos, educação pré-escolar, programas de
saúde e nutrição para a “fome de curto prazo” etc. são algumas das ações que revelam as
lógicas com as quais opera o Banco Mundial, deixando pequeníssima margem de autonomia
para pensar e propor políticas educacionais autônomas. O autor ainda indaga como o Banco
“sabe” tanto, o que implica saber que procedimentos emprega para produzir esse
conhecimento.
93
O problema que, mais cedo ou mais tarde, os intelectuais e técnicos do Banco deverão assumir, e que agora nossas sociedades enfrentam perante as novas políticas educativas, é que nossa realidade histórica (e sobretudo em algumas sociedades de outras regiões do mundo) não se ajusta ao modelo, e que aceitar as propostas sem discuti-las pode significar a aceitação de uma intervenção política externa, ou a introjeção de valores não propostos abertamente à sociedade como uma opção. (CORAGGIO, 1996, p. 103).
Como decorrência desse processo, são promovidas reformas educacionais submetidas
ao condicionamento imposto pelo ajuste econômico de restrição aos gastos públicos,
produzindo conflitos educacionais de diversas ordens.
Influenciadas pelo assessoramento do Banco Mundial, que vem financiando crescentemente o setor, as reformas redirecionam e focalizam o gasto público na educação básica de crianças e adolescentes das camadas sociais mais pobres, de vez que se considera esse nível como aquele que provê maior taxa de retorno econômico individual e social (Banco Mundial, 1995; Coraggio, 1996). A educação básica é entendida pelo Banco Mundial estritamente como ensino primário e secundário de primeiro ciclo, o que, no Brasil, corresponde ao ensino fundamental. Considerando que as taxas de escolarização no ensino básico já são elevadas e que o problema de cobertura resolver-se-á com a melhoria do fluxo escolar, privilegiam-se medidas que visam à melhoria da qualidade, reduzindo os índices de evasão e repetência escolar e elevando os padrões de aprendizagem. [...] (DI PIERRO, 2000, p. 20).
Soares (1996, p. 35) indica a evolução da participação da educação nos empréstimos
do Banco Mundial, para o Brasil, de 1987 a 1990, como da ordem de 2%, contra 98% para as
demais áreas, assinalando o crescimento dos empréstimos de 1991 a 1994 — e depois ainda
mais expressivos no governo Fernando Henrique —, assim como da participação da educação
nesses empréstimos, para 29% do total.
Gentili e Suárez (2004, p. 22), analisando os conflitos educacionais, no cenário das
reformas em curso na América Latina, cujo pano de fundo, por sua vez, compõe-se dos
conflitos sociais e políticos, intensificados nos últimos 20 anos em todos os países, indicam
que esses conflitos foram protagonizados, principalmente, pelos movimentos docentes, na
última década. Movimentos docentes de resistência às políticas neoliberais juntaram-se às
lutas promovidas pelos demais trabalhadores, protagonistas e vítimas de protestos e
mobilização reivindicativa dos assalariados sindicalizados. Economias e sociedades em crise,
sistemas educacionais enfraquecidos, organizados centralmente, desprovidos de recursos,
fragmentados por dentro em contraponto com:
[...] ambiciosos processos de reforma educacional que, sob o lema da “qualidade, eqüidade e eficiência” e uma importante mobilização de recursos e esferas públicos, pretenderam modificar de uma só vez a estrutura do sistema escolar, o currículo de todos os níveis e modalidades educacionais, a
94
organização e a gestão dos sistemas e dos estabelecimentos de ensino, bem como a cultura organizacional instituída neste campo. (GENTILI, SUÁREZ, 2004, p. 23).
Apontam, ainda, os autores, que esse cenário faz parte de um processo global de
reestruturação do Estado, e do aprofundamento da crise econômica traduzida pela recessão,
desemprego, pobreza, ausência de investimento público, e à redefinição das condições
internacionais para o desenvolvimento e crescimento sustentável, e processos de
pauperização, desigualdade e exclusão social que castiga os países latino-americanos. Esse
processo incide diretamente nas formas de construção da experiência dos professores, assim
como em sua subjetividade, redefinindo as tarefas docentes e as qualificações requeridas, ao
mesmo tempo em que os salários, com perdas vertiginosas reais e simbólicas, nos espaços de
reconhecimento social. (GENTILI, SUÁREZ, 2004, p. 23).
Do ponto de vista da educação de jovens e adultos, a questão não é diferente:
A oportunidade aberta pelas recentes reformas educativas implementadas no continente tampouco modificou a posição relativa da educação de jovens e adultos nas políticas educacionais. Ao contrário, a lógica segundo a qual as reformas vêm sendo implementadas reiterou essa posição desfavorável, ao dicotomizar e estabelecer uma falsa disjuntiva entre a prioridade conferida à educação básica de crianças e adolescentes e as possibilidades de revalorização e desenvolvimento da educação de jovens e adultos. (DI PIERRO, 2000, p. 23).
Ribeiro (2004, p. 11), corrobora a citação anterior, acrescentando:
Ao mesmo tempo em que as agências financiadoras estimulam uma redução do atendimento a jovens e adultos, os organismos internacionais, pressionados por educadores comprometidos com a ampliação e qualidade do atendimento da EJA, promovem debates internacionais com o intuito de mudar tal orientação. Analisando os documentos internacionais, marcos e impulsionadores do desenvolvimento da EJA, como os elaborados na V Conferência Internacional sobre Educação de adultos – CONFINTEA, realizada em Hamburgo, em 1997, observa-se o esforço de legitimação da área.
É neste contexto, portanto, que a década de 1990, em especial, vivencia tensões,
conflitos e novos protagonismos no campo educacional, prenunciando os acontecimentos à
Conferência Mundial de Educação para Todos, em Jomtiem, Tailândia.
44..66..11 CCoonnffeerrêênncciiaa MMuunnddiiaall ddee EEdduuccaaççããoo ppaarraa TTooddooss –– JJoommttiieemm,, TTaaiillâânnddiiaa –– 11999900
Internamente, o Brasil vivia tempos de adaptação à nova Constituição Federal e, para
cumprir o Art. 60 das Disposições Gerais e Transitórias, governo federal e sociedade civil
deveriam encarregar-se de juntar esforços para erradicar o analfabetismo no país em dez anos.
95
A Fundação EDUCAR, até então, era a principal responsável pela coordenação da execução
desta tarefa, o que a levou, juntamente com o MEC, em 1989, a convocar uma comissão
composta por especialistas — que desenvolviam trabalhos e pesquisas no campo da EJA —,
para que discutissem a preparação do Ano Internacional da Alfabetização, definido para 1990,
pela Unesco. A comissão, denominada Comissão Nacional para o Ano Internacional da
Alfabetização - CNAIA, foi desarticulada com a extinção da Fundação EDUCAR pelo
governo de Fernando Collor de Melo, tão logo assumiu a Presidência da República, em
janeiro de 1990, deixando a EJA sem organismo articulador de políticas, justamente no ano
comemorativo à alfabetização. A esse tempo, eram realizados, em todo o país, debates,
encontros, congressos e seminários por entidades governamentais e não-governamentais, no
sentido de discutir e apresentar propostas para a erradicação do analfabetismo no Brasil. Para
ocupar o lugar da Fundação EDUCAR, o governo Collor lança o Programa Nacional de
Alfabetização e Cidadania - PNAC31, que pretendia reduzir em 70% o número de analfabetos
no país, nos cinco anos seguintes, ou seja, 12.433.840 pessoas alfabetizadas para um total de
população de 17.762.629 de pessoas não-alfabetizadas.
Logo em seguida é formada a Comissão do Programa Nacional de Alfabetização e
Cidadania32, composta de diversas organizações e "personalidades de notório conhecimento
em programas de alfabetização" e, meses depois do lançamento do PNAC, verificou-se uma
completa desvinculação do Programa com a Comissão, principalmente pela forma como os
recursos eram liberados para instituições e empresas que, freqüentemente, não tinham
envolvimento anterior com a área. Tão logo o governo se iniciou, acontecia em Jomtien, na
Tailândia, de 5 a 9 de março de 1990, a Conferência Internacional de Educação para Todos.
31 O folheto de lançamento do Programa, de 11 páginas, com cinco dedicadas a definir os compromissos do Governo do Brasil Novo, conclamando poder público e sociedade civil para a “desafiante caminhada de resgatar a dívida social para com crianças, jovens e adultos marginalizados do direito à educação” (BRASIL, 1990, p. 7), é composto de sete itens: I) universalização do ensino fundamental e eliminação do analfabetismo; II) princípios norteadores, que incluem a formação da cidadania, a responsabilidade solidária, a responsabilidade financeira compartida, o fortalecimento da instituição escolar, a valorização do professor; III) o compromisso do poder público e a colaboração da sociedade civil; IV) metodologia para a formulação do Programa, defendendo a elaboração de planos municipais, estadual e nacional consolidados e integrados, pela constituição de comissões e conselhos consultivos; V) duração para um período de cinco anos (coincidente com o do governo, 1990-1995); VI) metas, que incluíam o aumento da escolarização de crianças de 7 a 14 anos, com 100% de vagas garantidas e a ampliação da taxa de alfabetização para as pessoas de 15 anos e mais, “assegurando-lhes progressivamente o ensino fundamental”, dentre outras ligadas à pré-escola, valorização do magistério, compromisso com a qualidade e incorporação dos portadores de deficiência (todos, com exceção dos de 7 a 14 anos, sem metas quantitativas, ou percentuais, nesse documento); VII) financiamento, também um conjunto de intenções. 32Membros da Comissão Nacional do Programa Nacional de Alfabetização e Cidadania (D.O. de 12/09/90, Seção II): Anna Bernardes da Silveira Rocha, Celso Beisegel, Eglê Franchi, Luiza de Teodoro Vieira, Maria Odozinda Costa, Walter Garcia, Sérgio Antônio da Silva Leite, Sônia Kramer, Thereza Penna Firme, Maria Valderez de Souza Barbosa, Lúcia Rolla Senna, Adolfo Homma, Maria Regina Cabral, Abiacy Fradique, Eurides Brito, Júlia Cury e Creuza Maria Gomes Aragão.
96
Jomtien inaugura a década marcada por inúmeras conferências protagonizadas pela
ONU, o chamado ciclo social — a Década Mundial de Desenvolvimento Cultural (1988-
1997); a Década Mundial de Desenvolvimento (1991-2000) promovida pelo Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD); a Conferência sobre Meio Ambiente do Rio
de Janeiro, Brasil, 1992; a Conferência sobre Direitos Humanos em Viena, Áustria, 1993; a
Comissão Internacional sobre Educação para o Século 21, de 1993 a 1996; a Conferência
Internacional sobre Populações no Cairo, Egito, 1994; a Conferência Internacional sobre a
Mulher em Beijing, na China, 1995; a Cúpula de Desenvolvimento Social de Copenhague,
Dinamarca, 1995; a Conferência sobre Segurança Alimentar em Roma, Itália, 1996; a
Conferência sobre Assentamentos Humanos (Habitat II) em Istambul, Turquia, 1996; a V
Conferência sobre Educação de adultos em Hamburgo, Alemanha, 1997; a Conferência sobre
a Paz em Haia, Holanda, 1999; a Conferência sobre Educação para Todos em Dacar, no
Senegal, 2000; a Conferência contra o Racismo e a Xenofobia em Durban, África do Sul,
2001, todos com vista a pactuar acordos face à chegada do novo século e milênio.
A importância simbólica dessa Conferência inaugural mobilizou a comunidade
internacional, assolada pelos ventos e efeitos do neoliberalismo, principalmente econômicos,
mascarados pela face da globalização, pelo que de positivo, apenas, poderia conferir à vida
planetária.
Foram tempos de discutir o meio ambiente, populações, mulheres, assentamentos
humanos etc., e em que a ação educativa se fez fortemente presente, em temas de variadas
naturezas, por se entender que novos paradigmas de vida societária exigiriam essa ação, para
além das intervenções educacionais já acertadas como básicas para a humanização e
desenvolvimento das pessoas.
Havia mais de 40 anos que as nações do mundo afirmaram que "toda pessoa tem
direito à educação”, na Declaração Universal dos Direitos Humanos. No entanto, em 1990, a
Declaração de Educação para Todos constatava a presença de mais de 100 milhões de
crianças sem acesso ao ensino primário, das quais pelo menos 60 milhões eram meninas; de
mais de 960 milhões de adultos analfabetos, dos quais dois terços eram mulheres, somados ao
analfabetismo funcional — problema em todos os países industrializados ou em
desenvolvimento; de mais de um terço de adultos do mundo sem acesso ao conhecimento
impresso e a tecnologias; de mais de 100 milhões de crianças e de largo contingente de
adultos que não concluíram o ciclo básico, e de outros milhões para os quais o fato de o terem
97
concluído não possibilitou a aquisição de novos conhecimentos, nem de habilidades
essenciais à vida.
A Declaração afirmava, também, que durante a década de 1980, problemas ligados à
dívida externa, ao empobrecimento, à devastação ambiental, guerra, ocupações, lutas civis,
rápido aumento populacional, decadência econômica haviam dificultado os avanços da
educação básica em muitos países menos desenvolvidos. Nos que o crescimento econômico
permitira financiar a expansão da educação, assistia-se o aprofundamento da desigualdade,
com cada vez mais populações pobres privadas de escolaridade ou analfabetas, além de que,
mesmo em muitos países industrializados, os cortes nos gastos públicos contribuíram para a
deterioração do ensino. Reafirmava a esperança no novo século, pelas imensas conquistas
científicas e tecnológicas que revolucionavam o conhecimento e poderiam contribuir para
melhor qualidade de vida, de maior cooperação entre as nações, como aposta nas soluções
pacíficas, com a queda do muro de Berlim e a mudança política na antiga União Soviética, do
mesmo modo que no reconhecimento dos direitos essenciais das mulheres, em franca
desigualdade em relação aos homens no aspecto educativo e, principalmente, cultural. O
volume das informações é saudado também como possibilidade de compartilhamento, pelos
recursos disponíveis de disseminação, em ritmo crescente e aceleração constante, assim como
a combinação da experiência acumulada de reformas, inovações, pesquisas, e o progresso em
educação registrado em muitos países. Os conferencistas se encantavam e assumiam que, pela
primeira vez na história, a educação para todos passava a ser uma meta viável. Di Pierro
(2000, p. 14-15) chega a afirmar:
Em meio às divergências e polêmicas características dos períodos de transição, produziu-se no pensamento social contemporâneo um surpreendente consenso em torno da prioridade a ser conferida à universalização da educação básica. A Declaração da Conferência Mundial de Educação para Todos (Jomtien, Tailândia, 1990) e o informe à Unesco da Comissão Internacional sobre a Educação para o Século XXI (DELORS, 1996) são expressões desse consenso que, entretanto, não produziu ainda os resultados pretendidos no campo das políticas educacionais concretas dos países periféricos e das políticas de cooperação dos organismos multilaterais.
O anúncio dos compromissos assumidos na Declaração é precedido de alguns
aspectos inolvidáveis, relembrando aos delegados-membros que se põem de acordo, ao
declarar que a educação:
[...] é um direito fundamental de todos, mulheres e homens, de todas as idades, no mundo inteiro;
[...] pode contribuir para conquistar um mundo mais seguro, mais sadio, mais próspero e ambientalmente mais puro, e que, ao mesmo tempo,
98
favoreça o progresso social, econômico e cultural, a tolerância e a cooperação internacional;
[...] embora não seja condição suficiente, é de importância fundamental para o progresso pessoal e social;
[...] reconhece que o conhecimento tradicional e o patrimônio cultural têm utilidade e valor próprios, assim como a capacidade de definir e promover o desenvolvimento;
[...] que hoje é ministrada apresenta graves deficiências, que se faz necessário torná-la mais relevante e melhorar sua qualidade, e que ela deve estar universalmente disponível;
[...] básica adequada é fundamental para fortalecer os níveis superiores de educação e de ensino, a formação científica e tecnológica e, por conseguinte, para alcançar um desenvolvimento autônomo; [...]
e, por fim, “reconhecendo a necessidade de proporcionar às gerações presentes e
futuras uma visão abrangente de educação básica e um renovado compromisso a favor dela,
para enfrentar a amplitude e a complexidade do desafio”, finaliza-se o preâmbulo e inicia-se o
texto propriamente dito da Declaração.
44..66..22 NNeecceessssiiddaaddeess bbáássiiccaass ddee aapprreennddiizzaaggeemm ——aa ccoonnttrriibbuuiiççããoo ddee SSyyllvviiaa SScchhmmeellkkeess aaoo
ccuurrrrííccuulloo ddaa EEJJAA nnaa AAmméérriiccaa LLaattiinnaa
No âmbito das ocorrências na América Latina, ainda na década de 1990, para a EJA, o
Seminario Taller Regional Unesco/CEAAL33 sobre Los nuevos desarrollos curriculares de la
educación de jóvenes y adultos de América Latina aconteceu de 22 a 26 de janeiro de 1996,
na cidade de Monterrey, no México. Tinha como base o documento Las necesidades básicas
de aprendizaje de los jóvenes y adultos en América Latina, elaborado por Sylvia Schmelkes,
em revisão a um outro, previamente apresentado ao Seminario Consulta Educación de
Adultos: prioridades de acción estratégicas para la última década del siglo, celebrado em
Bogotá, Colômbia, em 1992.
A pesquisadora, do Centro de Investigación y Estudios Avanzados del Instituto
Politécnico Nacional, México, D.F., sustenta algumas teses/propostas sobre o que se faz
necessário para que a educação de adultos possa ser conseqüente na América Latina:
a) reivindicação de prioridade para a educação de adultos na política educativa
e social dos países latino-americanos.
Apóia-se nos orçamentos negligenciados, no quadro de pessoal não-profissional,
motivado pela boa-vontade, bastando saber ler e escrever para ser alfabetizador. Indica, então,
33 Conselho de Educação de Adultos de América Latina – CEAAL.
99
que as causas desta situação são complexas, e que os escassos resultados das atividades de
educação de adultos estão relacionados à qualidade da oferta proporcionada; a desimportância
política desse atendimento, para o qual não existiria demanda efetiva, por parte dos
beneficiários; a influência do Banco Mundial, autorizada pelos países sobre políticas sociais,
entre elas as educativas, priorizando com apoio e recursos a atenção compensatória em
educação escolar básica.
b) vinculação da educação de adultos às necessidades e interesses dos diversos
grupos de adultos, tendo como horizonte as características da realidade em
que vivem, considerando que é esta mesma realidade que interpõe demandas
sobre informação, conhecimentos, habilidades e valores a esses adultos.
Nessa tese, sustenta a idéia de que a solução das problemáticas nas quais se inserem os
adultos só se dará em conjunção com outros programas de desenvolvimento e transformação
social. Do mesmo modo, assume que, na consideração de adultos nessas realidades, o grande
público envolvido na América Latina não é adulto, mas jovem, sujeito não levado em conta
nos programas que atendem a adultos, com expectativas de escolarização diversas das dos
adultos, sem emprego e sem ter tido oportunidades educativas, o que conformaria a dupla
problemática em que estão envolvidos. A situação é agravada, ainda mais, se considerado que
os jovens dos setores populares urbanos e rurais mal saem da adolescência e se vêem com
responsabilidades do mundo adulto, o que não significa que as necessidades próprias de sua
idade e de seu mundo não estejam carenciadas, seja pelas questões que eles próprios se põem
diante do mundo, seja pela vontade de aprender. Sustenta que essas características fazem com
que respondam mais efetivamente a ofertas educativas, desde que se adaptem às suas
necessidades.
c) a acumulação de experiência e pesquisa na América Latina sobre a educação
de adultos permite algumas certezas com as quais construir uma proposta
própria;
d) a principal pergunta da educação de adultos não deve ser quais as
necessidades básicas de aprendizagem, mas quais as necessidades básicas
em geral, e dos adultos em situação de pobreza em particular. Perguntar
primeiro que realidade transformar e, depois, o que pode fazer a educação
para que a transformação seja de melhor qualidade;
e) as necessidades básicas são, na essência, os direitos humanos;
100
f) as necessidades básicas de aprendizagem (chamadas de competências, pela
autora) em resposta do quefazer educativo à vigência dos direitos humanos,
como base para a construção do currículo da educação de adultos.
Para tornar-se sujeito educativo, afirma que o sujeito tem que sentir, ou chegar a sentir
que tem uma necessidade, ou que não exerce um direito. Definir o que caberia à educação
frente a direitos não exercidos — questão central da tese — implica assumir a categoria de
competência, como um complexo que abarca, pelo menos, quatro componentes: informação,
conhecimento, habilidade e valor. Ao conceito de competência, no sentido que pretende lhe
seja atribuído, nomeia-o como qualidade de vida, afirmando que a tarefa educativa é oferecer
competências para uma vida de qualidade. No caso de adultos, qualidade de vida está referida
ao aqui e agora. No caso de crianças, é formar para, no futuro, enfrentar as exigências da vida
pessoal e social com qualidade.
44..66..33 OO RReellaattóórriioo JJaaccqquueess DDeelloorrss —— ddee ““tteessoouurroo aa ddeessccoobbrriirr”” aa ““aacchhaaddooss iiddeeoollóóggiiccooss””
eemm mmeeaaddooss ddooss aannooss 11999900
O Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o Século
XXI - Relatório Jacques Delors, iniciado em março de 1993 e concluído em setembro de
1996, teve a contribuição de especialistas do mundo todo, no movimento dos processos de
globalização de relações econômicas e culturais que assolavam os países e afetavam as
políticas públicas de modo geral, e a educacional em especial, assim como os modos de viver.
O Relatório reuniu um conjunto expressivo de membros, de vários países, a saber:
França (na pessoa de Jacques Delors, que presidiu a Comissão Internacional sobre Educação
para o Século XXI, antigo Ministro da Economia e Finanças e ex-presidente da Comissão
Européia de 1985 a 1995); Jordânia, Japão, Portugal, Zimbábue, Polônia, Estados Unidos,
Eslovênia, Jamaica, Venezuela, Senegal, Índia, México, Coréia do Sul e China. Como
princípios fundamentais básicos para o trabalho da Comissão, foram estabelecidos:
[...] a educação é um direito fundamental da pessoa humana, e possui um valor humano universal: a aprendizagem e a educação são fins em si mesmos [...] desenvolvidos e mantidos ao longo de toda a vida;
[...] a educação, formal e não-formal, deve ser útil à sociedade, funcionando como um instrumento que favoreça a criação, o progresso e a difusão do saber e da ciência, e colocando o conhecimento e o ensino ao alcance de todos;
[...] qualquer política de educação se deve orientar pela tripla preocupação da eqüidade, da pertinência e da excelência [...];
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[...] a renovação da educação e qualquer reforma correspondente devem se basear numa análise refletida e aprofundada das informações de que dispomos a respeito das idéias e das práticas [...], devem ser decididas de comum acordo, mediante pactos apropriados entre as partes interessadas, num processo de médio prazo;
[...] se a grande variedade de situações econômicas, sociais e culturais exige, evidentemente, diversas formas de desenvolvimento da educação, todos devem levar em conta os valores e preocupações fundamentais sobre os quais já existe consenso no seio da comunidade internacional e no sistema das Nações Unidas: direitos humanos, tolerância e compreensão mútua, democracia, responsabilidade, universalidade, identidade cultural, busca da paz, preservação do meio ambiente, partilha de conhecimentos, luta contra a pobreza, regulação demográfica e saúde;
[...] a responsabilidade pela educação corresponde a toda a sociedade [...].
Com base nesses seis princípios, o relatório foi organizado como um conjunto de
textos em três partes e nove capítulos, além de um prefácio e um epílogo, sob as seguintes
temáticas: no prefácio, a educação é apresentada pelo presidente da Comissão como utopia
necessária; na primeira parte — horizontes —, onde se faz a leitura de mundo da sociedade
planetária atual, passa-se da coesão social à participação democrática e do crescimento
econômico ao desenvolvimento humano; na segunda parte, estabelecem-se princípios,
tecendo-se considerações sobre “quatro pilares da educação” e sobre a educação ao longo de
toda a vida; na terceira parte, fornecem-se orientações aos níveis educativos e de ensino, aos
professores, ao papel político exercido pela educação, à cooperação internacional. No epílogo,
onze autores discorrem sobre questões atinentes à educação e seu papel social.
Um dos destaques ao relatório faz-se sobre o conceito de long life education que, na
atual situação histórica, deve ser pensado pelo reforço da educação básica; abertura maior dos
países à entrada do universo da ciência na escola preparando pessoas para o impacto da
tecnologia e transformações do século XXI; educação básica contextualizada para países
desfavorecidos; alfabetização e educação básica para adultos; valorização da relação
professor-aluno; ensino secundário na perspectiva de continuidade por toda a vida; debates
sobre seletividade e orientação para permitir aos jovens pluralidade de opções; existência de
outros estabelecimentos de ensino superior, além da universidade; ensino que veicule
responsabilidades éticas e sociais; diversidade do ensino secundário e universitário e
alternância estudo/trabalho; novas formas de certificação para o resto da vida, de forma a
levar em conta o conjunto de competências a serem adquiridas. (UNESCO, 1998, p. 150-151).
Outro destaque se assenta nos “quatro pilares” que têm conduzido inúmeras iniciativas
educacionais, inclusive quanto a propostas metodológicas e teóricas. Cabe, portanto,
compreender o que essas propostas significam para o contexto em que foram produzidas e
102
porque significaram tanto. Tratarei primeiro das abordagens e concepções que o relatório
imputa a cada um deles para, depois, tecer comentários e trançar os necessários fios com o
modelo de educação que interessa à globalização do capital, em franca expansão no momento
político em que o mundo se encontrava.
Como aprender a conhecer, o Relatório afirma que esse tipo de aprendizagem visa
não tanto à aquisição de um repertório de saberes codificados, mas antes ao domínio dos
próprios instrumentos do conhecimento, considerando-o, simultaneamente, como meio e
finalidade da vida humana. Sobre esse aspecto alerta para dois riscos, caso não seja assim
considerado: um, a tentação de imaginar possível a omnidisciplinaridade, em um mundo
como o que se vive; outro, a superespecialização, porque esta não prescinde nem da cultura
geral, nem de diálogo com outros campos de saber. Dessa forma, relaciona aprender a
conhecer a aprender a aprender, pelo fato de o processo do conhecimento nunca estar
acabado, podendo enriquecer-se com qualquer experiência.
Para aprender a fazer, a primeira indicação é a sua indissociabilidade de aprender a
conhecer, mas ligando a aprendizagem do fazer, no entanto, mais à questão da formação
profissional, com o seguinte questionamento: “como ensinar o aluno a pôr em prática os seus
conhecimentos e, também, como adaptar a educação ao trabalho futuro quando não se pode
prever qual será a sua evolução?” O pilar se assenta no abandono do conceito de qualificação
profissional, substituindo-o pelo de competência pessoal, exigido pelo progresso técnico, que
também justificaria a “desmaterialização do trabalho”. Por essa idéia, a competência pessoal
não prescinde de qualificação técnica, em sentido estrito, resultante de formação técnica e
profissional mas, além disso, o comportamento social, a aptidão para o trabalho em equipe, a
capacidade de iniciativa, o gosto pelo risco, no que denomina de coquetel individual,
identificado com os modelos perseguidos nas indústrias japonesas. No caso da
desmaterialização no setor serviços entende o Relatório que matéria e técnica devem ser
complementadas com aptidão para as relações interpessoais, qualidades consideradas “mais
ou menos inatas”. Na economia informal, em que não existe assalariamento, a economia de
subsistência é compreendida como tradicional, o que indicaria à aprendizagem a função mais
de qualificação social, do que profissional.
Aprender a viver juntos, aprender a viver com os outros, é considerada uma
aprendizagem desafiadora para a educação. Opondo violência e esperança como as questões
que o progresso da humanidade trouxe ao mundo atual, reconhece o conflito subjacente à
história humana, mas acentua o perigo de elementos novos, como o potencial de destruição
103
criado no decorrer do século XX. A proposta é o ensino da não-violência na escola “mesmo
que apenas constitua um instrumento, entre outros, para lutar contra os preconceitos geradores
de conflitos”, entendendo que “a atividade econômica no interior de cada país, e sobretudo em
nível internacional, tem tendência de dar prioridade ao espírito de competição e ao sucesso
individual”. (UNESCO, 1998, p. 96-97). Para a melhoria dessa questão, propõe o contato dos
iguais em contexto igualitário, com objetivos e propósitos comuns, acreditando, com isso, que
“os preconceitos e a hostilidade latente podem desaparecer e dar lugar a uma cooperação mais
serena e até à amizade”. À educação escolar cabe reconhecer o outro, por meio do diálogo e
da troca de argumentos, assim como reservar tempo e ocasiões para iniciar os jovens em
projetos de cooperação, em atividades desportivas e culturais, desde a infância, e em
atividades sociais e humanitárias (Unesco, 1998, p. 98-99).
Por último, aprender a ser compromete-se com o desenvolvimento total da pessoa, e
para isso precisa ser preparado pela educação que recebe na juventude, especialmente, com
vista a “elaborar pensamentos autônomos e críticos e para formular os seus próprios juízos de
valor, de modo a poder decidir, por si mesmo, como agir nas diferentes circunstâncias da
vida”34. Por fim, destaco que o relatório entende que, mais do que privilegiar o acesso ao
conhecimento — característica dos sistemas educativos formais — em detrimento de outras
formas de aprendizagem, importa conceber a educação como um todo, o que deve inspirar
reformas educativas e definição de políticas pedagógicas.
Chama a atenção, nesses pilares que têm sido tão cortejados, os vínculos, pelos quais
se sustentam, com o modelo capitalista em crise, gerador de desigualdades nunca dantes
vistas, em tempos curtos e tão acelerados. O aprender a fazer carrega a concepção inata da
inteligência e das capacidades e, assim sendo, justifica as não-competências, que acomodam
as insatisfações pelas inserções diferentes dos trabalhadores no mundo do trabalho, cada vez
mais especializado e complexo, e não admite lugar para a qualificação, esta insuficiente e, por
isso mesmo, justificadora dos maus lugares de muitos. Nenhuma dessas condições está posta
no modelo em que se faz a educação, mas no sujeito, incapaz, se não detiver a competência
social, atributo eficiente das aptidões dos indivíduos.
As desigualdades de classe, fomentadoras desses lugares na sociedade e no mundo do
trabalho não são objeto de discussão e seguem, na mesma compreensão, só subrepticiamente,
a explicitar a competição individual — condição formal do modelo capitalista excludente,
34 Este item remete-se ao relatório da Comissão Internacional sobre o Desenvolvimento da Educação, de Edgar Faure e outros, Apprendre à être. Unesco, Paris, 1972.
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como resultante de preconceitos geradores de conflitos, pela tendência nas atividades
econômicas do interior dos países, a “estimular o espírito de competição e o sucesso
individual”, como se esses não fossem os elementos fundantes do modelo. Às desigualdades,
encobertas, atribui-se o valor de preconceitos, admitindo-se, portanto, que se se aprende a
trabalhar com projetos comuns, entre iguais, mitiga-se o conflito, encobrindo-se a apartação
que essa proposta significa. E finalmente, de posse de uma educação com esse perfil,
chegando-se ao sujeito apassivado, que aprende a ser dessa maneira, forjado para o sistema,
recomendam-se reformas e projetos políticos.
Em tese de doutoramento que aprofunda a constituição do “sujeito Delors”, ou seja, o
sujeito da educação como proposto pelo Relatório Delors, e põe em cheque os papéis
multifacetados da ONU e da Unesco diante da concertação de acordos no mundo, Rizo (2005,
p. 28) alerta para as incertezas e a imprevisibilidade de futuro com que lidam as comunidades
humanas diante dos fenômenos da globalização: “vistos por alguns como benefícios, mas para
outros revelam o aumento da polarização mundial, ou seja, os muito ricos estão cada vez mais
distantes dos muito pobres, e, sobretudo para os excluídos, a imprevisibilidade de seu futuro
os coloca à deriva, entregando suas vidas aos mais poderosos”. A respeito dessa
imprevisibilidade dos tempos, assinala ser ela a condição que faz a todos “indubitavelmente
submetidos à mesma demanda educacional, qual seja, capacitamo-nos necessariamente para
analisar e construir o futuro de forma a evitarmos nossa própria eliminação e de nossa
cultura”. E acrescenta:
Ainda que a educação não possa sanar os problemas existentes, por seu caráter teleológico, visa utopicamente estabelecer metas para a possível superação dos problemas do presente, uma vez identificados, em função de um projeto futuro – no caso da Unesco, este projeto é a paz mundial, e para a ONU, trata-se da segurança planetária (RIZO, 2005, p. 28).
A educação, como um “tesouro a descobrir”, pode ser pensada, realmente, como ainda
não-descoberta, mas expressa o equívoco de ser pensada como tal. Em verdade, a chave que
abriu esse “tesouro” em governos neoliberais possibilitou encontrar, sem pejo, propostas
focalizadas, excludentes, apartadoras, ainda não adequadamente avaliadas. Mas os efeitos
dessa descoberta são sentidos, principalmente pelos danos causados às populações dos países
mais pobres, impedidas de ter acesso à educação, e inegavelmente os dados da Conferência de
Dacar vieram, posteriormente, confirmar os ônus da escolha dos organismos ligados à ONU
que patrocinam e regulam a educação mundo afora.
105
44..77 VV CCOONNFFEERRÊÊNNCCIIAA IINNTTEERRNNAACCIIOONNAALL DDEE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE AADDUULLTTOOSS –– CCOONNFFIINNTTEEAA ––
HHAAMMBBUURRGGOO,, AALLEEMMAANNHHAA,, JJUULLHHOO 11999977 —— AAPPRREENNDDIIZZAAGGEEMM DDEE AADDUULLTTOOSS,, UUMMAA CCHHAAVVEE
PPAARRAA OO SSÉÉCCUULLOO XXXXII
A última e mais recente Conferência Internacional faz-se aos pés do Instituto
Internacional de Educação da Unesco, na cidade-sede na qual se desenvolvem estudos e se
decidem políticas para a cooperação internacional. Esta Conferência, precedida por
mobilização nacional desde meados de 1996, com vistas a cumprir a metodologia de trabalho
recomendada pela Unesco, no sentido de reunir e agregar estudiosos, pesquisadores,
militantes, professores, educadores de órgãos públicos e privados, governamentais e não-
governamentais, teve no Brasil uma forte movimentação, em direção à própria Conferência, e
em novos e legítimos desdobramentos, que marcaram em definitivo a história política da EJA
no país.
Pela proximidade do tempo histórico em que ocorre, e pela minha própria inserção
como pesquisadora e estudiosa do tema além de militante em defesa do direito à EJA em
vários espaços e, principalmente, nos Fóruns de EJA, situar o contexto dessa Conferência e
todas as etapas que a precedem, no âmbito brasileiro, é tarefa indispensável para a
compreensão das formulações e das tensões fortemente vivenciadas naqueles anos, não
apenas como estudiosa, mas como protagonista dessa história, da qual sou ativa testemunha.
Para chegar a Hamburgo, portanto, percorro um conhecido, porque vivenciado caminho, para
que as imbricações que lhe dão sentido possam ser feitas no tempo histórico em que
ocorreram.
44..77..11 OOss eennccoonnttrrooss pprreeppaarraattóórriiooss eemm ââmmbbiittoo nnaacciioonnaall ee rreeggiioonnaall:: mmeettooddoollooggiiaa ddee aaççããoo
Inicialmente, devo registrar que os encontros de nível estadual ocorreram em muitos
estados, recolhendo dados, organizando documentos com informações e concepções, com
fronteiras mais definidas. Desse momento inicial não participei diretamente; apenas
acompanhei os trabalhos por meio dos companheiros que o fizeram, pelo fato de estar com
outro compromisso agendado. A ausência nesse primeiro encontro estadual impediu-me de
concorrer, como delegada, a um lugar para o subseqüente encontro regional. Mas não me
impediu de inserir-me, como membro fundador do Fórum de Educação de Jovens e Adultos
do Estado do Rio de Janeiro, que nasce justamente da possibilidade concreta criada por esse
106
encontro, ao reunir pessoas da EJA, dispersas desde a extinção da Fundação EDUCAR, pelo
território fluminense, sem nenhum tipo de organização que as agremiasse35.
Os encontros estaduais preparatórios à CONFINTEA, tanto quanto os regionais,
envolvendo diversos setores da sociedade civil, as universidades e as várias instâncias de
governo seguiam orientações36 da então Secretaria de Educação Fundamental (SEF) do MEC,
por meio da Coordenação Geral do Magistério e de Educação de Jovens e Adultos. Essas
orientações eram oriundas de uma discussão realizada entre a Comissão Nacional de
Educação de Jovens e Adultos, ainda existente, àquela época, e a SEF, para cumprir os
acordos firmados com a Unesco e orientados, no tocante à América Latina, pela Oficina
Regional de Educação para a América Latina e Caribe (OREALC). O documento orientador
indicava às secretarias de educação estaduais que, munidas de demais documentos
encaminhados pela SEF37, promovessem encontros estaduais, nos quais seriam escolhidos
delegados aos encontros regionais, em um total de quatro por estado, da seguinte forma: o
responsável pela EJA no estado; um representante das secretarias municipais; um
representante das universidades; um dos demais setores da sociedade civil (organizações não-
governamentais, sindicatos, movimentos etc.). Os encontros regionais foram assim agrupados:
um encontro na região Nordeste, ocorrido nos dias 11 e 12 de junho, em Salvador, Bahia; um
encontro das regiões Sul e Sudeste, ocorrido em 25 e 26 de junho em Curitiba, Paraná; e um
encontro das regiões Norte e Centro-Oeste dias 9 e 10 de julho, em Campo Grande, Mato
Grosso do Sul. Os encontros regionais foram concebidos como reuniões de trabalho, devendo
produzir subsídios e recomendações de cada região, com vista à elaboração de um documento
final, previsto para o encontro nacional. Recomendava-se que as reuniões de trabalho fossem
acompanhadas, na mesma ocasião, por reuniões ou seminários mais amplos, abertos ao
público, como espaços de mobilização e de discussão de idéias sobre a temática da EJA. Para
o encontro nacional o documento orientador indicava como participantes os representantes
regionais, os membros da Comissão Nacional de EJA, além de convidados do MEC. Naquele
espaço seria produzido o documento nacional e escolhidos os representantes nacionais que 35 A história do Fórum de EJA/RJ ocupa o capítulo 5, a ser consultado para melhor compreender as motivações que o constituíram. 36 O documento intitula-se Orientações gerais visando a participação do Brasil na Conferência Regional, preparatória à Conferência Internacional de Educação de Adultos, e se encontra nos arquivos do Fórum EJA/RJ. 37 Os documentos encaminhados pela SEF foram: Convocatoria para la Conferencia Regional Preparatoria de la Quinta Conferencia Internacional de Educación de Adultos (CONFINTEA V) (Anexo 1); orientaciones para la realización de las reuniones nacionales (Anexo 2); La educación con personas jóvenes y adultas en América Latina en la transición al siglo XXI (Anexo 3); Aprendizaje de adultos: una clave para el siglo veintiuno (Anexo 4); Diretrizes políticas para a educação de jovens e adultos em 1996.
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participariam da Conferência Regional, que o documento também indicava estar a cargo do
Brasil sediá-la.
No conjunto de documentos encaminhados, podem-se destacar alguns aspectos.
O Anexo 1, a Convocatória, oriundo da OREALC, indica a metodologia adotada para
a Conferência Regional38, e o uso dos subsídios produzidos para os encontros preparatórios.
Indica, ainda, o acordo e o aceite do Ministro da Educação e do Desporto para sediá-la.
Reafirma também o objetivo geral da V CONFINTEA, que toma em conta as quatro
conferências anteriores, e os formula no marco do cenário das iniciativas de longo prazo em
que a ONU desenvolveu o chamado ciclo de conferências da década de 1990. Afirma-se:
[...] manifestar la importancia del aprendizaje de los adultos y forjar compromisos de alcance universal para la educación continua y de adultos en la perspectiva de un aprendizaje permanente orientado a i) posibilitar la participación de todos en la construcción de un desarrollo sustentable y equitativo; ii) promover una cultura de paz basada en la libertad, la justicia y el respeto mutuo; iii) un mayor acceso de las mujeres a fuentes de poder; y iv) crear sinergia entre la educación formal y la no formal.
O Anexo 2, Orientações para as reuniões nacionais, estabelece dois temas-eixo das
discussões, a saber:
a) ¿Cuál es la importancia que tiene hoy la educación de jóvenes y adultos u cuáles son los procesos institucionales para enfrentar los desafíos de la construcción de una sociedad democrática, equitativa y económicamente competitiva en el país?
b) ¿Cómo articular la educación de jóvenes y adultos con los actuales procesos de reforma educativa para que éstos tengan más relevancia económica, política y social, en términos de:
contribuir a evitar la reproducción generacional de la pobreza;
obtener aprendizajes, competencias y actitudes significativas para el logro del desarrollo personal, ciudadano y social, productivo?
O Anexo 3, contendo subsídios aos trabalhos das reuniões nacionais, informa ter sido
preparado pela OREALC e CEAAL, como insumo à Conferência Regional. Uma demarcação
importante feita nesse documento diz respeito à característica latino-americana de encontrar,
nos programas, à parte dos adultos, propriamente, adultos e jovens em sua grande maioria,
assim como mulheres pobres, com demandas de aprendizagem e situações de vida distintas à
dos adultos escolarizados e dos jovens e das mulheres de setores sociais mais favorecidos. As
38 Para facilitar os trabalhos da reunião regional, a Unesco, através da OREALC, em acordo com o CEAAL estabelece definições prévias para a convocação de organizações não-governamentais e obter de um governo da região o compromisso de sediar a referida reunião.
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necessidades e modos de vida incluem o fato de serem pessoas com baixa qualificação
profissional, trabalhadores informais; pais ou mães prematuros; evadidos do sistema escolar,
seja pelo baixo rendimento, seja pela necessidade de se incorporar ao mundo do trabalho. O
reconhecimento do caráter juvenil e feminino dos participantes dos programas indica, para os
formuladores do documento, a necessidade de mudar a referência até então feita à educação
de adultos, assumindo-a como de pessoas jovens e adultas. Outro aspecto relevante que o
documento destaca é o fato de que a educação de adultos não ocupa lugar de prioridade nas
políticas públicas, agravado pela não-existência, em muitos casos, de equipes qualificadas na
área, sem poder para influenciar e transformar as propostas existentes até então.
O Anexo 4, Aprendizaje de adultos: una clave para el siglo ventiuno, destaca os temas
comuns das conferências precedentes, nos 45 anos em que a Unesco opera nessa área,
sintetizando-os da seguinte forma:
Logro la alfabetización universal; establecimiento de la paz y cooperación internacionales; creación de un espíritu genuino de democracia; aumento de las oportunidades de aprendizaje para todos los grupos de edad; promoción de la igualdad de géneros; contribución al desarrollo sostenido (p. 1).
Acrescenta, ainda, que nos anos 1960, com a descolonização crescente, novos temas se
incluíram, como o da cooperação internacional para apoio aos países em desenvolvimento; o
do comprometimento das organizações não-governamentais; a reflexão sobre valores estéticos
e morais; o papel da ciência e da tecnologia para o progresso social; a relação entre
aprendizagem de adultos e educação inicial. Mas também destaca que, a partir da Conferência
de 1985, temas-chave foram sublinhados: a intensificação da luta contra o analfabetismo, sob
as novas alianças entre governos e instituições não-governamentais; a alta prioridade à
educação de mulheres; o vínculo da educação formal e não-formal na perspectiva de
aprendizagem; o impacto decisivo dos meios de comunicação para os processos de
aprendizagem; a necessidade de criatividade e inovação na aprendizagem de adultos; a
preocupação com o analfabetismo funcional em países industrializados.
Também está em destaque o fato de que a aprendizagem de adultos chega a ser parte
integrante de estratégias de prevenção em saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS), de
políticas de população e programas mundiais de meio ambiente, e de desenvolvimento
sustentável dos planos de economia de todos os entes das Nações Unidas: Organização das
Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), Fundo das Nações Unidas para a População (FNUAP), Fundo das
Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas
109
para a Mulher (UNIFEM), Banco Mundial, sem deixar de mencionar ainda a Organização dos
Estados Americanos (OEA), e a Organização para a Unidade Africana, a Secretaria da
Comunidade Britânica, outras organizações regionais inter-governamentais junto às
organizações não-governamentais reconhecidas em todas as regiões, em nível internacional.
Sobre o tema Aprendizaje de adultos: uma clave para el siglo ventiuno, o documento
afirma ser ela não apenas uma chave e uma ferramenta, mas “ao mesmo tempo, um direito
(grifo meu), uma alegria e uma responsabilidade compartilhada”.
Para desenvolvê-lo, são propostos dez subtemas, a saber:
a) aprendizagem de adultos e desafios do século XXI;
b) melhoria de condições e da qualidade da aprendizagem dos adultos;
c) assegurar o direito universal à alfabetização e à educação;
d) promoção de maior poder à mulher por meio da aprendizagem de adultos;
e) aprendizagem de adultos e evolução do mundo do trabalho;
f) aprendizagem do adulto em contexto de prevenção e segurança: meio ambiente, saúde e população;
g) aprendizagem de adultos, meios de comunicação e cultura;
h) aprendizagem de adultos e de grupos com necessidades especiais;
i) a economia e a aprendizagem de adultos;
j) ampliação da cooperação e solidariedade internacional.
Por último, destaco o texto Diretrizes para a educação de jovens e adultos em 1996,
também encaminhado pela SEF/MEC, na mesma ocasião. Esse documento trata de afirmar o
pensamento e a forma de conduzir a área de EJA por meio das políticas públicas. Por ele
observam-se as discrepantes concepções metodológicas do governo brasileiro e a perspectiva
apontada pela Unesco/OREALC na condução das atividades preparatórias e para a própria
Conferência. Embora afirmando a área como uma das prioridades do Governo Fernando
Henrique Cardoso, a leitura do texto, no entanto, vai trazendo à luz o verdadeiro lugar
reservado à EJA, assim como a concepção restrita — a de escolarização de quem não teve
sucesso na escola — com a qual os dirigentes da SEF se pautavam para responder às
“demandas de uma parcela da população que não foi atendida na época devida por
interposição de determinantes internos e externos ao sistema educacional.” (BRASIL, 1996, p.
1).
Explicitando o que entende como determinantes externos, diz que são relevantes “a
insuficiência e ineficiência da oferta — representados pelos limites de acesso e, quando
110
superados estes, pela decorrência do fracasso” (BRASIL, 1996, p. 1). E segue, na mesma
página:
A Educação de Jovens e Adultos aparece, então, como medida curativa. Assim, não é possível ignorar que todos os esforços na direção da melhoria do ensino fundamental para crianças de 7 a 14 anos representam, na forma de medidas preventivas, intervenções positivas na área de Educação de Jovens e Adultos, uma vez que acabam por diminuir a necessidade de um atendimento extemporâneo.
Este parágrafo, emblemático, revela toda forma de pensar EJA do então governo,
denunciando, contraditoriamente, aspectos questionáveis da própria política adotada.
A primeira questão a destacar é a assertiva de que a EJA é medida curativa, revelando
preconceito em relação ao analfabetismo, visto como doença — daí a necessidade de curá-lo
—, assim como o passar ao largo da conquista constitucional da EJA como direito. A segunda
questão é a explicitação do entendimento de que a EJA só se justifica pela desescolarização,
não assumindo a perspectiva de educação continuada, como integrante da condição de sujeitos
adultos, que aprendem continuadamente, como forma precípua do estar no mundo, vivendo. A
terceira questão é a ausência de crítica ao fracasso do próprio sistema, que mesmo priorizando
crianças de 7 a 14 anos, produz analfabetismo — pelo fracasso e pela insuficiência de vagas
—, porque a relevância implicitamente admite que o fracasso apontado é culpa dos sujeitos, e
jamais de uma escola inadequada para aceitar os integrantes de classes sociais diversas, com
suas expressões de classe, promovendo e produzindo currículos que tomam em conta seus
valores, suas aprendizagens e expressões culturais. Assim, ao conferir prioridade a um
segmento etário, deixando os demais sem atendimento (ou quase sem), e revelando os dados
do IBGE (1991) sobre analfabetismo absoluto (20 milhões), e em 1987 de 87 milhões de
brasileiros com escolaridade somente até a 4ª série do 1º grau (sic), não submete estes dados
ao crivo da crítica, quanto ao fracasso dessa estratégia, já que a prioridade não se converte em
sucesso dos que passam pela escola, pelo contrário, indicam que até a acessam, mas que não
permanecem (vide o baixo nível de escolaridade), nem obtêm êxito.
Apesar de alegar atendimento e financiamento expressivo, em comparação a anos
anteriores, observa-se a sugestão de critérios, indicados pela Comissão Nacional de EJA à
SEF, para a distribuição de recursos disponíveis (em 1996, 36 milhões, contra 17 milhões em
1995), que representam percentualmente 5% para ações internas de EJA; 45% para
transferência a estados; 35% para transferência a municípios; e 15% para transferência a
organizações não-governamentais. No tocante ao repasse a estados e a municípios, a
Comissão propôs alguns critérios, acatados parcialmente pela SEF, alegando ausência de
111
tempo hábil para avaliação da capacidade financeira dos municípios e de dados estatísticos
referentes à EJA no Censo Escolar, e acrescentando um novo critério. Dessa forma, a seleção
de projetos deveria contemplar: número absoluto de analfabetos, em razão direta e peso 5;
taxa de analfabetismo, razão direta e peso 4; existência de órgão de EJA na estrutura, razão
direta e peso 1. No entanto, para os mais de 5500 municípios, a prioridade vai para dez
municípios de cada estado que apresentem maiores taxas de analfabetismo, apenas, e a
conseqüente prioridade para o estado que os englobe. Como se pode observar, a política
proposta é focalizada e excludente, com baixíssima perspectiva de atendimento e de
constituir, efetivamente, ação pública, o que também se encontra explicitado no documento,
ao indicar recursos para organizações não-governamentais, e definir, no texto, a estratégia de
apoio e estímulo a iniciativas no campo da alfabetização. Por 1996 ser ano eleitoral, o
documento anuncia que em 30 de junho reavaliará a distribuição de recursos, por estar
impedida de realizar repasses após essa data.
Por último, o documento indica os eventos que se seguirão, com vista a cumprir o
calendário dos encontros preparatórios à V CONFINTEA.
44..77..22 EEnnccoonnttrrooss pprreeppaarraattóórriiooss:: ddeessddoobbrraammeennttooss iimmpprreevviissttooss —— ddoo RRiioo ddee JJaanneeiirroo aa
NNaattaall//RRNN
O encontro estadual do Rio de Janeiro foi marcado por uma ação enérgica da
Delegacia Regional do MEC (DEMEC/RJ), mobilizando o poder estadual e organizando o
encontro, pois se aproximava o tempo de fazê-lo e a secretaria estadual de educação não
iniciava as providências. Um grupo de técnicos, integrantes da equipe da DEMEC/RJ,
interessados na EJA, pressionou o coordenador de EJA dessa secretaria no sentido de atender
ao chamamento da Unesco, segundo recomendações já explicitadas. De pouco êxito, a equipe
iniciou a organização do evento, que acabou por acontecer, marcando um precioso lugar de
encontro de interessados na EJA dispersos em todo o território fluminense.
É desse momento que se origina o Fórum de Educação de Jovens e Adultos do Estado
do Rio de Janeiro, como espaço de encontro de muitos e variados atores da EJA que se
encontravam dispersos em várias instituições, sem mais haver um “lugar” de agregação. A
idéia é encampada de imediato pelo grupo contatado e estendida a outras pessoas, iniciando-
se um movimento social novo e revelador da disposição de luta da sociedade, que inaugurou
formas e táticas de resistência, diante do quadro a que vinha sendo relegada a EJA.
112
Nos acervos disponíveis, encontro um documento-síntese de um dos grupos de
trabalho nesse encontro estadual, integrado por participantes até hoje engajados na EJA, em
sua maioria, e dele destaco que as trocas efetivadas entre os presentes apontaram para
questões como o vácuo na área, provocado pela extinção da Fundação EDUCAR;
preocupação com a transferência de encargos e recursos públicos para empresas e
organizações não-governamentais; falta de iniciativas no Rio de Janeiro para responder à
crescente demanda de EJA; e expectativa positiva com a perspectiva aberta pelas reuniões
preparatórias da V CONFINTEA, acenando para a retomada de políticas governamentais na
área.
As recomendações desse grupo já apontavam para a necessidade de que a política
nacional de EJA contemplasse democraticamente a pluralidade de concepções e paradigmas,
atuando nas interfaces entre eles, atendendo à perspectiva de ser uma política de inclusão para
os analfabetos, aos quais essa condição tem determinado condições sociais mais frágeis e
desvantajosas. O grupo recomendava, ainda, que a EJA fosse desenvolvida no contexto da
educação permanente, com pressupostos antropológicos, culturais e epistemológicos das
formas de saber e conhecimentos dos adultos e jovens, e jamais pautada pelos princípios da
educação regular ou de forma compensatória, mas como resgate de uma dívida social para
com os jovens e adultos. E, por último, recomendava que o MEC assumisse a coordenação
política nacional, estimulando as universidades para o ensino, a pesquisa e a extensão na área,
além de uma política efetiva de monitoramento, acompanhamento e avaliação em relação às
determinações constitucionais e dos acordos internacionais sobre EJA.
Como se pode observar nos registros desse grupo, à época já havia bastante clareza em
relação ao que se devia propor no tocante à EJA, oriundo de participantes tanto de
universidades, como de sindicato patronal, Sistema S, secretarias municipais, organizações
não-governamentais, empresas públicas, ressaltando-se, no entanto, ainda uma visão
reforçadora da idéia de dívida social, e não de direito. De todo modo, é surpreendente
verificar, quase dez anos depois, como estava constituída a reflexão sobre a EJA, com
perspectivas tão próximas às assumidas ainda hoje, e, ao mesmo tempo, lamentar o quão
pouco se caminhou nas práticas em direção à consecução das compreensões explicitadas.
Do encontro regional Sul-Sudeste, do qual participou a delegação do Rio de Janeiro,
em 25 e 26 de julho, em Curitiba, no Paraná, não localizei qualquer registro passível de leitura
e discussão.
113
Nos encontros regionais foram firmados documentos, e novas delegações indicadas
para participação no encontro nacional, ocorrido em setembro de 1996, em Natal, objetivando
consolidar o documento nacional que representaria o Brasil no seguinte Encontro Regional
Latino-americano, assim como definir a delegação participante desse momento mais amplo.
Antes, porém, de destacar os fatos envolvidos com o Encontro Regional, cabe demarcar os
acontecimentos políticos vinculados ao Encontro de Natal.
O Encontro de Natal foi marcado pela surpresa de, na abertura, a delegação se ver
como platéia para o lançamento do Programa Alfabetização Solidária - PAS, como resposta
às demandas de alfabetização do país, no âmbito do Programa Comunidade Solidária,
coordenado pela então primeira-dama Ruth Cardoso. O PAS, que será tratado adiante, passava
a ser a resposta política ao chamamento da Unesco, e sequer fora alocado no MEC, estando
fora dos espaços norteadores de políticas públicas. Alterando a lógica da mobilização nacional
até então realizada, como também a discussão que se fazia com empenho da sociedade e
muito pouca colaboração do MEC, o lançamento extemporâneo não conseguiu que os
delegados desistissem de promover os grupos de trabalho e fechar um documento final.
O documento desse momento, intitulado Documento final do Seminário Nacional de
Educação de Jovens e Adultos - Natal / RN: 8 - 10 set. 1996 Elementos para um diagnóstico
da EJA no Brasil foi aprovado pelos delegados reunidos em plenária e origina-se da
consolidação dos relatórios dos encontros preparatórios realizados nas regiões Nordeste, Sul e
Sudeste, Norte e Centro-Oeste39. Contempla dados de contextualização da educação de jovens
e adultos, no tocante a população, analfabetismo e escolarização, e ainda o atendimento
prestado nas Regiões Nordeste; Norte e Centro-Oeste — nesta o aumento do problema
também; Região Sul e Sudeste, com a focalização no contexto social e na questão do
analfabetismo. Enuncia, em seguida, princípios orientadores e compromissos firmados pelos
participantes do evento, percebendo-se dentre esses compromissos a preocupação em pensar a
questão social mais amplamente, entendendo que a educação de jovens e adultos não terá
sucesso, enquanto não se resolverem questões de forma integrada, em perspectiva totalizadora
do processo de reversão da pobreza e da desigualdade. Do mesmo modo, a perspectiva da
educação de jovens e adultos carrega uma concepção mais ampla, de educação continuada:
[...] desenvolver políticas voltadas à resolução dos problemas da exclusão social, promovendo políticas industrial, agrícola e de reforma agrária, de forma a estimular a geração de emprego, a redistribuição da renda e da terra.
39 Os encontros regionais deram-se em Campo Grande, no Mato Grosso (Norte e Centro-Oeste); Salvador, na Bahia (Nordeste); Curitiba, Paraná (Sul-Sudeste).
114
[...] Promover a reflexão e discussão permanentes sobre a vinculação da EJA à melhoria de vida e ao desenvolvimento socioeconômico do país e sobre as políticas educacionais mais adequadas, comprometendo os governos Federal, estaduais e municipais com a superação do analfabetismo e a elevação dos níveis de escolaridade da população.
[...] Promover a continuidade e institucionalização de programas e projetos educacionais em todas as instâncias governamentais e não-governamentais, visando à consolidação de uma política nacional de educação continuada. (p. 32).
É reiterada a defesa do direito à educação, nos termos da Constituição Federal de
1988, assim como a responsabilidade das esferas públicas em parceria com entidades da
sociedade civil, exigindo-se pensar planejadamente as alternativas de cumprimento do direito
em planos plurianuais, com financiamento próprio e condições adequadas, destacadamente no
tocante à formação docente, para o que recomendam o concurso das universidades, como
também para a sistematização e produção de conhecimentos em subsídio ao avanço do
estatuto epistemológico da EJA.
O resgate da idéia de planos plurianuais se fazia — e ainda se faz — como uma
necessidade no planejamento público, fortemente sujeito às condições orçamentárias
condicionadas pela correlação de forças políticas no Legislativo. Especialmente em se
tratando de EJA, cujo déficit de atendimento é imenso, exigia-se reorganização e
reestruturação dos sistemas de ensino — o que incluía concursos públicos, ampliação de
escolas, equipes técnicas gestoras qualificadas etc. Pensar planejada e prospectivamente a
ação do Estado fazia-se indispensável, tomado a sério o dever constitucional de garantir o
direito do ensino fundamental para todos, considerado o largo contingente desescolarizado ou
subescolarizado constituído, principalmente, por jovens, a quem o poder público era devedor
de permanência e sucesso, na passagem pelo ensino fundamental, especialmente nos últimos
anos. Assim sendo, a delegação, sensível à tarefa que o Estado brasileiro teria pela frente para
enfrentar o desafio de cumprir o dever que lhe cabia, recomendava apropriadamente a
necessidade de prever condições exeqüíveis, para executar a ação de EJA para toda a
população.
115
44..77..33 CCoonnffeerrêênncciiaa RReeggiioonnaall PPrreeppaarraattóórriiaa LLaattiinnoo--aammeerriiccaannaa:: aarrddiiss ddoo ppooddeerr ààss
pprrooppoossttaass ddaa OORREEAALLCC
A última etapa no continente, a da Conferência Regional Preparatória Latino-
americana, ocorreu de 22 a 24 de janeiro de 1997, em Brasília — cidade-sede desse nível
preparatório da Conferência Internacional —, com certo atraso (inicialmente era prevista para
novembro de 1996), sob a alegação de impossibilidade para a organização, frente à destituição
da Profª. Consuelo Jardon, coordenadora de EJA no MEC, em seguida ao Encontro de Natal.
Tendo em vista esse e vários outros fatos, a Comissão Nacional de Educação de
Jovens e Adultos, pela pessoa do professor Moacir Gadotti, como membro titular da referida
Comissão e com a autorização de onze entidades-membro40, enviou correspondência ao
Ministro Paulo Renato, datada de 2 de outubro de 1996, com uma série de consideranda em
relação a acontecimentos sobre os quais não foram notificados, entre eles a exoneração da
Coordenadora, que também integrava a Comissão, e a alteração da data do evento regional, de
que foram informados através do CEAAL, solicitando audiência ao Ministro para
esclarecimentos adicionais sobre o papel da Comissão.
Primeiro ardil: negando Paulo Freire em sua pátria
Para esse momento, a OREALC negociara, na pessoa de José Rivero – o Pepe,
representante de longa data daquele escritório e bastante conhecido dos educadores da área
pelos longos anos em que atuou em toda a América Latina e Caribe —, além do local como
sede, também uma justa homenagem a Paulo Freire, a ser feita em sua pátria, pela
representação latino-americana, que tanto respeitou e apreendeu de suas discussões. Aí se
encontra o primeiro ardil.
O governo brasileiro rejeitou a idéia, por considerar o educador pertencente a um
passado distante, e sem maior expressão no presente histórico e político nacional. Assim, a
40 Autorizam a correspondência os representantes da União dos Dirigentes Municipais de Educação - UNDIME; Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras - CRUB; Central Única dos Trabalhadores - CUT; Movimento de Educação de Base - MEB; Pensamento Nacional das Bases Empresariais - PNBE; Rede de Apoio à Ação Alfabetizadora no Brasil - RAAAB; Instituto Sócio-ambiental de Ação Educativa; Sindicato da Construção Civil Rio - SINDUSCON-RJ; Associação Brasileira de Organizações Não-governamentais - ABONG; Associação Projeto Educação do Assalariado Rural Temporário - APEART; Associação Nacional de Cooperação Agrícola - ANCA.
116
OREALC levou a proposta da homenagem ao UIE/Hamburgo, para que fosse feita durante a
V CONFINTEA, o que de fato ocorreu, mas como homenagem póstuma41.
À Conferência Regional participaram representantes dos governos de cada país;
representantes das organizações não-governamentais em nível nacional e regional; consultores
e especialistas regionais em educação de jovens e adultos. Manteve os objetivos previstos
para todas as etapas preparatórias, em consonância com os objetivos da V CONFINTEA,
adotando metodologia de trabalho com grupos por temas, analisando, elaborando,
compatibilizando, sistematizando e aprovando a declaração e as recomendações da
Conferência Regional Preparatória da América Latina e Caribe.
Segundo ardil: negando a produção coletiva nacionalmente constituída
O segundo ardil foi quanto ao documento brasileiro levado à Conferência Regional:
não o sistematizado em Natal — embora os delegados indicados na reunião nacional tivessem
sido conservados —, mas outro documento, produzido nos gabinetes ministeriais,
expressando posição bem distante daquela assumida como síntese dos pensamentos diversos
que se fundiram em uma proposta coletiva no Rio Grande do Norte. Sobre esse documento,
cabe leitura e reflexão detalhada, pelo conteúdo teórico e ideológico, em rigorosa sintonia
com o pensamento neoliberal que orientava a ação política do governo Fernando Henrique
Cardoso e, particularmente, do ministério Paulo Renato.
O documento do MEC, intitulado A educação de jovens e adultos no Brasil, no
contexto da educação fundamental, historia a metodologia de trabalho recomendada pela
Unesco, indicando que nos encontros regionais foram compatibilizados documentos em
subsídio ao Seminário Nacional, e que neste, “as discussões [...], por sua vez, ofereceram
subsídios para a consolidação dos encaminhamentos que dizem respeito, não apenas ao papel
do Estado, mas caracterizam, sobretudo, um compromisso social da nação brasileira”.
(BRASIL, 1996-1997, p. 1). Nesta citação, retirada da introdução, observa-se o caráter
dispensado ao trabalho dos delegados participantes do Seminário Nacional — responsáveis
pelas discussões, em subsídio ao documento a ser formulado pelo MEC. Este caráter é
reforçado pela ausência absoluta de referências bibliográficas que demonstrem levantamento
de fontes para sustentar as afirmações feitas, e não inclui, evidentemente, qualquer alusão ao
documento de Natal.
41 Paulo Freire morreu em 2 de maio de 1997, pouco antes da Conferência que o homenagearia.
117
O documento itemiza aspectos referentes, ainda, a: contexto; educação de jovens e
adultos: demanda e atendimento; atuação do Ministério da Educação e do Desporto;
recomendações e encaminhamentos. Dele, algumas questões devem ser destacadas.
A primeira, no item contexto, apresenta o que se poderia chamar de concepção oficial
da EJA vigente naqueles anos, por ser formulada pelo MEC, em sua instância máxima de
representação, produzida para uma conferência regional, integrando um processo
internacional. Analisando o papel da escola em contexto de países subdesenvolvidos, ou em
desenvolvimento da América Latina, incluído o Brasil, aponta que o desafio não se põe
apenas na transformação indispensável à escola tradicional com crianças provenientes de
famílias com tradição de freqüência à escola, mas da incorporação de crianças sem tradição
familiar de escolarização, com recursos muito escassos, sem professores qualificados, e com o
agravante de ser feito com altas taxas de crescimento demográfico e extensão de anos de
atendimento da escolaridade obrigatória (BRASIL, 1996-1997, s.p.). Nesse contexto, segue
apontando o desafio — tema da reunião: “recuperar, para os jovens e adultos que ficaram à
margem do processo educativo, a oferta de uma formação que lhes garanta condições
mínimas de ingresso e competição no mercado de trabalho”. (BRASIL, 1996-1997, s.p.). E
segue indicando, também, que a “história educacional recente demonstra que o esforço
nacional para universalizar o acesso ao ensino fundamental obrigatório tem sido bem recebido
no sentido de diminuir substancialmente os índices de analfabetismo no país”. (BRASIL,
1996-1997, s.p.).
Essas primeiras idéias subsidiam e organizam todo o documento. Parece-me que, aqui,
está a objetivação da política que o MEC cumpriu durante todo o mandato Fernando Henrique
Cardoso. Inicialmente, entendo que há clareza discursiva para assegurar que, mesmo com o
esforço de universalização (ainda que de resultados discutíveis), a idéia de incorporação de
todas as crianças aos sistemas de ensino não se colocava como convicção para o governo,
justificado pela cultura societária de não-valorização da escola pelas classes populares (a que
o documento não nomeia como tal, mas o faço eu), o que certamente punha em dúvida o êxito
da empreitada. Adicionado a essa falta de convicção, observa-se a descrença no corpo de
professores, uma tônica dos oito anos do Ministro Paulo Renato Souza à frente do Ministério
da Educação. Em seguida, é apresentada a compreensão do por que educar jovens e adultos
marginados do processo educativo — sobre o porquê, nenhuma hipótese é levantada —,
associada à relação da formação (de que tipo, de que espécie, também não se explicita), com
condições mínimas (o grifo é meu, mas a atenção deve ser dada ao fato de que, segundo o
118
MEC/SEF, para esses bastam condições mínimas, nada além) é apresentada, com a finalidade
do ingresso e competição no mercado de trabalho (provavelmente mínimo, de qualificação
mínima, salários idem, portanto). Ou seja, para jovens e adultos não-escolarizados, o destino é
o mercado de trabalho subalternizado, sem qualquer referência ao direito constitucional que
lhes é devido, desde 1988. Esta idéia retorna, na página seguinte, ampliando a concepção
expressa, pela agregação de novos elementos: a oferta é reconhecida como a de formação
“supletiva” (grifo meu, e aqui se esclarece a qualidade da formação referida anteriormente) ou
“complementar para milhares de jovens e adultos”, destacando, no entanto, que a formação
destes ainda é melhor que a de seus pais, embora permaneça “inadequada em face das novas
exigências do mercado de trabalho e da sociedade”.
Por último, destaque-se entre essas idéias a da relação entre ensino fundamental
obrigatório e diminuição do analfabetismo, na mesma direção das concepções que propõem
“estancar a fonte de analfabetos”, pelo investimento nas crianças, até que os primeiros
desapareçam da face vergonhosa/envergonhada do país com a sua presença.
Em seguida, dois gráficos demonstram que duas são as fontes de geração de demanda
na EJA: uma, o insucesso verificado nos índices de repetência; outra nos índices de evasão do
ensino fundamental regular. A despeito de afirmações, no seguimento do texto, que põem em
cheque concepções anteriores, demonstrando inconsistência e contradições na formulação dos
primeiros argumentos, novamente volta-se, ao encerrar o item contexto, a enunciar, agora sem
maiores dúvidas, a “posição brasileira”, assumida diante da Conferência:
[...] continua a ser a de que o objetivo primeiro da política educacional é o de oferecer a formação adequada, na idade própria, no ensino fundamental, superando a repetência e a evasão e elevando a porcentagem de concluintes do ensino fundamental. Esta política eliminará, em muito, a necessidade de prover EJA, a não ser como educação continuada, cada vez mais necessária num mercado de trabalho em transformação, que coloca exigências crescentes em termos de escolarização. [...] o equacionamento do problema do analfabetismo e de escolarização insuficiente da população jovem e adulta passa, necessariamente, pela ampliação da oferta de ensino regular e pela melhoria de sua qualidade, de forma a atender, plenamente, às necessidades de escolarização das crianças e jovens na idade adequada. Trata-se, portanto, de afirmar a prioridade da ação preventiva.
Ainda que concentre seus esforços no fortalecimento da educação básica regular, o Brasil vem também se empenhando em conceber e implantar estratégias para recuperar as vítimas do déficit escolar passado e presente. (BRASIL, 1996-1997, s.p.).
Este trecho não deixa dúvida sobre a concepção assumida pelo MEC no tocante à EJA.
Preservam-se os elementos constitutivos da patologia que o analfabetismo representou
119
historicamente — ação preventiva; vítimas —, e todos os que acompanharam de perto as
políticas educacionais desses anos são testemunhas das práticas coerentes com a enunciação
desse discurso. Quanto à educação continuada, possível como alternativa pelo esvaziamento
de demanda da EJA se executada a política proposta, essa jamais surgiu ou teve lugar no
âmbito do Ministério da Educação, nos oito anos de controle do poder do Estado pelo PSDB.
Justificando a proposta, o documento exemplifica com alternativas voltadas a
populações específicas o atendimento diferenciado, e não por razões de princípio da EJA,
assim como justifica a redução da oferta pelo clichê usual nesses casos — o do país-
continente. Um aspecto importante a destacar é que, quando se referindo às alternativas de
oferta, embora a maioria delas esteja posta como supletivo, não há qualquer comentário
quanto à enunciação da LDB nº. 9394 em negociação, aprovada em 20 de dezembro de 1996,
que já apontava para uma concepção diferente da concepção de supletivo.
Outro aspecto relevante, citado no item sobre a atuação do MEC, faz alusão ao
FUNDEF, em tramitação final no Congresso Nacional, à época, como passível de aplicação
para jovens e adultos. O texto em questão contraria a recomendação feita quase
simultaneamente pelo Ministro da Educação ao Presidente, para que este vetasse, dentre
outros, justamente o artigo que contabilizava as matrículas dessa oferta de atendimento, para
efeito de cálculo dos recursos destinados ao ensino fundamental de jovens e adultos.
Destacando, ainda, sua atuação na área, o MEC evidencia a quase desobrigação do
poder público no cumprimento da oferta da EJA como dever do Estado, para defender as
parcerias que faz com entidades. Assim, explicita como “iniciativa mais importante” o
Programa Educação para a qualidade do trabalho, feito em parceria com organizações
governamentais e não-governamentais, e especialmente com o setor empresarial42. No tocante
à formação inicial e continuada de professores, cria uma linha de financiamento para as
universidades, em atenção a esse fazer e com vista à produção de material didático43. Por
último, explicita o Programa Alfabetização Solidária, como estratégia do governo brasileiro, 42 O Programa se amplia e passa a representar o coração do fazer da EJA desses tempos, com recursos oriundos do FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador, sendo, ao final dos anos 1990, a forma de fazer política educacional para a EJA, e deslocando as orientações pedagógicas do MEC para o Ministério do Trabalho, que coordenava e administrava, como visibilizado no I Encontro Nacional de EJA em 1999, no Rio de Janeiro, cerca de 2 bilhões de reais, contra o orçamento do MEC para a área da ordem de, aproximadamente, 35 milhões. 43 Esta estratégia foi, em seguida, modificada, deixando as universidades de receberem esses recursos para a formação, disputada, desde então, por firmas de assessoria que oferecem, com qualidade discutível, serviços de formação continuada às prefeituras. A dificuldade de oferta por parte das universidades se ampliou quando um decreto da Presidência, reeditado recentemente pelo Governo Lula, passou a impedir o pagamento de pró-labores a servidores públicos, desconsiderando até mesmo os casos previstos pela Constituição, de duplicidade de matrículas para médicos e professores.
120
alinhando cinco parceiros: MEC, Conselho da Comunidade Solidária, empresas,
universidades e prefeituras, estruturado em forma de projeto-piloto, com previsão de
ampliação, para o que concorre com as “características de baixo-custo e gestão simplificada”,
iniciando-se nos 32 municípios brasileiros com maior índice de analfabetismo, dividindo seus
custos com empresas, selecionando e oferecendo materiais didáticos através da SEF/MEC e
atribuindo “às universidades o papel de capacitar monitores/professores”. Um penúltimo
destaque cabe à referência à Proposta Curricular de EJA, que “publica, socializa e
recomenda”, elaborada por Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação, com o
objetivo de:
[...] promover a melhoria do ensino de EJA, por meio da oferta de referenciais, que pressupõem sua adequação às peculiaridades locais, favorecendo a revisão dos conteúdos, da elaboração de material didático e da capacitação docente, apoiando a elaboração e reestruturação das propostas curriculares das secretarias estaduais e municipais (s.p.).
Como destaque, cabe a referência à instituição da Comissão Nacional de Educação de
Jovens e Adultos, sob a Coordenação da SEF, com a “finalidade de fazer convergir a
formulação e implantação de políticas públicas para a educação de jovens e adultos para os
legítimos interesses e necessidades nacionais”44.
No item final do documento, a SEF/MEC “reafirma seu papel de articulador da
política nacional de Educação de Jovens e Adultos, apoiando eqüitativamente a
operacionalização das ações para a área nos estados e municípios”, e “orientado pelos
princípios de integração, autonomia, qualidade, eqüidade, flexibilidade e pluralidade”, resume
a posição brasileira, nos seguintes pontos: a) EJA como política de Estado, inserida nas
políticas de educação básica; b) EJA como alavanca necessária, mas não suficiente para a
construção da cidadania dos povos latino-americanos; c) continuidade e ampliação
dependentes da participação eficaz da sociedade civil, com mecanismos que possam garanti-
44 A Comissão instituída não foi a primeira, já tendo existido outras, desde o tempo da Fundação EDUCAR, tendo, inclusive, o Prof. Paulo Freire como integrante. A última, que se extingue por falta de convocação, teve a contribuição da sociedade civil organizada em pressão para a sua atuação, nos tempos de absoluta ausência de resposta do Estado à EJA. Esta Comissão contava com a participação de representantes de 16 entidades, nem todas de reconhecimento e legitimação pelos educadores e estudiosos da EJA: CONSED – Conselho de Secretários Estaduais de Educação; UNDIME – União dos Dirigentes Municipais de Educação; ABONG – Associação Brasileira de Organizações Não-governamentais; MEB – Movimento de Educação de Base; CMB – Confederação das Mulheres do Brasil; CGT – Confederação Geral de Trabalhadores; ANCA – Associação Nacional de Cooperação Agrícola; APEART – Associação Projeto Educação Assalariado Rural; SESI – Serviço Social da Indústria; SINDUSCON – Sindicato da Indústria da Construção Civil; IPF – Instituto Paulo Freire; Ação Educativa, Assessoria, Pesquisa e Informação; IBEAC – Instituto Brasileiro de Estudo e Apoio Comunitário; RAAAB – Rede de Apoio à Ação Alfabetizadora no Brasil; CRUB – Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras; PNBE – Pensamento Nacional de Bases Empresariais.
121
la; d) EJA concebida segundo princípios de modelo inovador e de qualidade, orientado para a
formação de cidadãos democráticos e sujeitos de sua ação, com currículo variado, em respeito
a etnias e culturas populares, com relação ensino-aprendizagem predominantemente de troca
de saberes; com conteúdos básicos, interdisciplinar; articulada à formação profissional, com
modelo educacional voltado para a formação do cidadão e do ser humano em todas as suas
dimensões; com recursos das modernas tecnologias da comunicação; com gestão democrática,
instituindo conselhos e formas variadas de participação para o acompanhamento, controle,
fiscalização e avaliação das ações e recursos.
Terceiro ardil: negando a educação de jovens e adultos e assumindo caráter corretivo para
as ações na área
Um terceiro e último ardil se anuncia, este ao fim do documento, reiterando o MEC
sua disposição de manter-se na contramão da história, segundo a minha ótica, mas estando
seguro de que o fazia por estar comprometido com os novos tempos, enquanto os demais, de
pensamento diverso ao seu, representavam o atraso político e teórico. Diante de toda a
América Latina, o Brasil reafirmava seu compromisso de investimento na educação
fundamental de qualidade para todas as crianças de 7 a 14 anos, em caráter preventivo, e
simultaneamente para jovens e adultos, em caráter corretivo, recomendando ainda, à Unesco,
a criação de um fórum permanente de discussão e linhas de apoio à formação permanente dos
educadores, de um banco de dados e a efetivação de pesquisas na área, reforçando a
concepção compensatória e tutorial para a EJA, que impede pensar prospectivamente essa
ação educativa e benefícios futuros dela advindos.
Di Pierro (2000, p. 24-25), analisando a posição de críticos sobre a concepção
compensatória sob a qual as políticas públicas de EJA vêm se fazendo, assim se expressa:
[...] ela se baseia em um conjunto de argumentos equivocados, o primeiro dos quais consiste em referir-se aos problemas do analfabetismo e dos baixos níveis de escolarização como se fossem resquícios do passado, o que resulta em estratégias de educação de jovens e adultos visando à reposição da escolaridade perdida na "idade apropriada" (Flecha, 1990a; 1990b). Ao projetar no passado a origem do problema, produz-se um argumento que resulta operacional àqueles que defendem ser prioritário investir na educação de crianças e adolescentes, delegando à sucessão "natural" das gerações a tarefa de extinguir o problema. [...] ao propor a reposição da escolaridade não recebida na infância por meio da reprodução do modelo de ensino escolar de crianças, a educação de jovens e adultos resulta ineficaz e desmoraliza-se como investimento social e politicamente relevante. [...] a concepção compensatória acaba legitimando no campo psicopedagógico as teorias do déficit que supõem a existência de uma idade apropriada para
122
aprender, a partir da qual as aprendizagens possíveis são limitadas e os resultados pouco expressivos, teorias estas que fomentam preconceitos etários e ignoram desenvolvimentos recentes das ciências cognitivas. A persistência da concepção compensatória dificulta que a sociedade vislumbre os benefícios futuros da educação de pessoas adultas, dispondo-se a nela investir no presente, o que limita a construção de consensos sociais amplos que possam sustentar políticas públicas continuadas para esses grupos etários.
No conjunto de idéias finais do documento, a SEF/MEC mantém sempre uma posição
ambígua em relação à EJA, ao enunciar papéis e finalidades e, de outro lado, definir
prioridades. Atribuindo à EJA sentidos desejáveis, escapa imediatamente pela via
denunciadora dos projetos neoliberais, contidos nos recursos aplicados à área social e
praticando políticas focalizadas, discriminando e excluindo setores e segmentos sociais com
discursos palatáveis que, em muitos casos, passam despercebidos de educadores e de
professores que até defendem essas políticas.
Sobre os resultados dessa Conferência, conforme indicado no documento preliminar, o
livreto da Unesco, CEAAL, Centro de Cooperación Regional para la Educación de Adultos
en América Latina y el Caribe (CREFAL) e Instituto Nacional para la Educación de los
Adultos (INEA - México) Hacia una educación sin exclusiones (1998, p. 25) assim se refere:
“se planteó la necesidad de considerar una nueva política de EDJA en el contexto de las
transformaciones de la educación en la región y del sector educativo particularmente”.
Constata-se o fato de que no momento em que se analisava a EJA e seu fazer político na
América Latina, vivenciavam-se as intensas reformas educativas de traço predominantemente
economicista, com eixo forte na educação básica impostas pelos organismos multilaterais,
como por exemplo o Banco Mundial que ditava políticas educacionais no continente durante a
década de 1990. Essas mudanças e transformações tanto afetaram a EJA pelo descaso que a
ela se impunha, como resposta política, como definiram um espaço de independência para que
ela se pensasse — e até mesmo se realizasse, em muitos casos —, com escassos recursos, mas
com autonomia pedagógica, criatividade e autenticidade, pelos cursos promovidos pela
sociedade civil e assumidos pelos protagonistas, de certa forma “abandonados” pelo Estado
quanto ao direito à educação, exercendo pressão sobre esse mesmo Estado. No nível dos
governos, o que se observa é que as ações de EJA eram assumidas como compensatórias, com
recursos escassos e equipes técnicas mal formadas e desatualizadas.
Na Conferência de Brasília definiram-se algumas opções estratégicas, como forma de
pressão regional sobre a V CONFINTEA: a) centrar o foco da EJA no ensino e na
aprendizagem, melhorando a qualidade dos processos educativos; b) atenção especial aos
123
jovens; c) vínculos com a transformação produtiva e com o trabalho; d) superação do círculo
vicioso da pobreza e ampliação de políticas de manejo sustentável do meio ambiente, no
marco de um desenvolvimento justo; e) práticas orientadas para desenvolver valores
democráticos e os direitos humanos; f) universalidade do direito à educação por toda a vida e
adoção da perspectiva de aprendizagem permanente como expressão do desenvolvimento
humano.
44..77..44 AA VV CCOONNFFIINNTTEEAA —— aa EEJJAA ddiiaannttee ddoo ssééccuulloo XXXXII
A V CONFINTEA marcou diferenças de outras reuniões semelhantes pelo
protagonismo dado à sociedade civil, representada por organizações não-governamentais, que
junto com delegados governamentais, definiram seus principais documentos.
Dos 1.507 participantes, 41 eram ministros e 18 vice-ministros; 734 representavam
135 Estados-membro da Unesco; 478 representavam a sociedade civil, fundamentalmente
organizações não-governamentais; 14 representavam outros organismos da ONU; 37
representavam fundações ou instituições, ou eram especialistas convidados (Unesco-CEAAL-
CREFAL-INEA, 1998, p. 26). Na condição de representante da sociedade civil, pude
participar dos trabalhos, aportando questões da prática dos educadores brasileiros, no âmbito
em que atuava, assim como a de pesquisadora, à ocasião, de um projeto de educação
ambiental — uma vertente da educação de adultos, a educação continuada ao longo da vida
— em bairro da Baixada Fluminense.
O tema central da Conferência, Aprendizagem de adultos: a chave para o século XXI,
já recebera aportes variados, inclusive do conhecido Relatório Delors, de 1996. Rivero (2000,
p. 112), referindo-se à contribuição latino-americana na V CONFINTEA, assim se expressa:
A contribuição latino-americana foi importante. Foi a região que insistiu na necessidade de considerar prioritário o trabalho educativo com jovens carentes e de conceder ao problema de gênero valor especial; seus representantes exigiram a necessidade de superar uma educação centrada em desempenhos; passar de uma educação controlada por exames a outra, baseada na responsabilidade individual e coletiva; de uma educação acumuladora de informação para uma educação que processe e utilize essa informação.
O mesmo livreto da Unesco-CEAAL-CREFAL-INEA Hacia una educación sin
exclusiones (1998, p. 35) também explicita o significado da contribuição da América Latina,
principalmente no tocante à presença juvenil na EJA:
124
[...] que los jóvenes constituyen hoy en día uno de los principales públicos de la denominada DEJA y de que es necesario establecer nuevas estrategias que den respuesta adecuada a las demandas educativas juveniles. El eco de esta iniciativa latinoamericana fue mayor en representaciones de Africa, Estados Arabes y parte del Asia que en las de países del Norte desarrollado, con realidades etáreas y poblaciones distintas a las nuestras. [...]
Se plantean por lo menos tres áreas de acción prioritaria:
— Generar motivaciones para una mayor participación ciudadana juvenil
— Programas en apoyo a la inserción laboral de la Juventud
— Enfasis en la educación media de jóvenes con escasos recursos.
Da Conferência dois documentos ganham o mundo: a Declaração de Hamburgo e a
Agenda para o Futuro, este último formulado a partir de dez temas de estudo, para os quais a
Conferência indicou compromissos entre os Estados-membro. O reconhecimento desses
países e governos como prioritários para garantir os compromissos com a educação de adultos
mantém-se enfático na Declaração, não prescindindo, no entanto, das demais forças sociais
com as quais devem interagir e somar para o atendimento aos desafios da EJA.
A Declaração reafirma que “apenas o desenvolvimento centrado no ser humano e a
existência de uma sociedade participativa, baseada no respeito integral aos direitos humanos
[grifo meu], levarão a um desenvolvimento justo e sustentável”. E continua, assumindo que
[...] “A educação de adultos, dentro desse contexto, torna-se mais que um direito [grifo meu]:
é a chave para o século XXI; é tanto conseqüência do exercício da cidadania como condição
para uma plena participação na sociedade”. (BRASIL, 1998, p. 89). Dois importantes aspectos
são destacados no texto dessa Declaração: o primeiro, a reafirmação do direito à educação –
mais que direito —, e o segundo, o vínculo inalienável na materialidade do ser humano como
centro de ações de desenvolvimento, o que, inegavelmente, leva aos direitos humanos como
pacto maior de qualquer ação em que a pessoa humana esteja envolvida. Ausente a
perspectiva do direito de algumas conferências anteriores, nessa década, a reafirmação do
direito — e mais ainda, do direito à educação — não somente é reforçada, como modo pelo
qual acordos em torno do meio ambiente, de mulheres, de populações, de assentamentos
humanos etc. apóiam suas proposições. Eis como a Conferência expressa os sentidos para
direito à educação e para o direito a aprender por toda a vida:
O reconhecimento do “Direito à Educação” e do “Direito a Aprender por Toda a Vida” é, mais do que nunca, uma necessidade: é o direito de ler e de escrever; de questionar e de analisar; de ter acesso a recursos e de desenvolver e praticar habilidades e competências individuais e coletivas. (BRASIL, 1998, p. 93).
125
Ainda enfatiza a educação de jovens e adultos como processo de longo prazo,
destacando “uma nova visão de educação, onde o aprendizado acontece durante a vida
inteira”, a começar da infância, e não apenas em relação a jovens e adultos, ou seja, como
educação continuada por toda a vida. Reafirma, com isso, o vínculo entre modalidades de
educação, na constituição de um sistema, descartando as formas paralelas pelas quais a EJA
vem sendo realizada, regra geral: “O novo conceito de educação de jovens e adultos apresenta
novos desafios às práticas existentes, devido à exigência de um maior relacionamento entre os
sistemas formais e os não-formais e de inovação, além de criatividade e flexibilidade”.
(BRASIL, 1998, p. 90, 92).
Tema de compromisso dos participantes, a educação básica para todos “significa dar
às pessoas, independentemente da idade, a oportunidade de desenvolver seu potencial,
coletiva ou individualmente. Não é apenas um direito, mas também um dever e uma
responsabilidade para com os outros e com toda a sociedade”. (BRASIL, 1998, p. 91). O que
a Declaração não faz é definir o que seria chamado de básico, cabendo a cada país,
estabelecer o conceito, segundo seus próprios entendimentos e corpo legal.
Quanto à alfabetização, esta é destacada dos contributos da educação de adultos e da
educação continuada “para a erradicação do analfabetismo” e, concebida “como o
conhecimento básico, necessário a todos num mundo em transformação em sentido amplo, é
um direito humano fundamental”. A proteção da cultura oral, para assegurar oportunidades
para que todos possam ser alfabetizados surge como elemento de destaque, quase sempre
desprezada quando se põe sob foco a cultura do escrito. (BRASIL, 1998, p. 90, 92).
As preocupações da Unesco com as questões candentes do mundo seja pela
intolerância seja por razões de segurança internacional, presentes no texto, não apenas
reafirmam os direitos das populações excluídas e marginalizadas, sobre a expressão de sua
cultura e natureza, como também reafirmam direitos à saúde (como direito humano básico), à
informação, à diversidade, e a sustentatibilidade ambiental, como um direito emergente, de
vínculo indispensável com a educação, para a garantia de um futuro sustentável. Ou seja, os
direitos cuja conquista se põe na dependência de processos educativos vão dos aspectos micro
da vida cotidiana, às questões macro, fetichizando a função social da educação, num
deslocamento que deixa de fora as questões macro-econômicas, responsáveis, em grande
medida, pelos problemas agravados que o mundo e suas populações mais pobres,
principalmente, têm vivenciado. A educação, no sentido para o qual segue o texto, sem
dúvida, é muito mais do que a chave para o século XXI, porque a ela se credita o poder de
126
mobilização e participação social, democratização das oportunidades, participação no
mercado de trabalho e geração de renda, inclusão na sociedade da informação, participação de
homens, mulheres, jovens, idosos em igualdade de condições, valorizando uma cultura de paz
e apontando para novos paradigmas de desenvolvimento.
Por fim, destaco que a Declaração, representando os participantes que a assinam, se
compromete com “o objetivo de oferecer a homens e mulheres as oportunidades de educação
continuada ao longo de suas vidas” [...], construindo “alianças para mobilizar e compartilhar
recursos, de forma a fazer da educação de adultos um prazer, uma ferramenta, um direito e
uma responsabilidade compartilhada”. (BRASIL, 1998, p. 96).
Embora Hamburgo tenha demarcado a assunção da Unesco para uma concepção de
educação de adultos que inclui o reconhecimento dos jovens como sujeito dessa modalidade
educativa, no texto da Declaração passa-se a usar, indistintamente as expressões educação de
adultos e educação de jovens e adultos, sem que se tenha demarcado o porquê da inclusão do
segmento jovem na segunda expressão adotada. A única alusão mais próxima na Declaração
está quando se enuncia que a “educação de adultos engloba todo o processo de aprendizagem,
formal ou informal, onde pessoas consideradas ‘adultas’ pela sociedade desenvolvem suas
habilidades [...]”. (BRASIL, 1998, p. 89). Este elemento indica, seguramente, um dos
aspectos constitutivos da identidade dos jovens, para além da pouca idade — o fato de
assumirem, precocemente, atribuições e responsabilidades do mundo adulto —, mas deixa de
fora a complexidade das culturas juvenis nas formas como se expressam, em busca de
identidades próprias dos grupos populares a que pertencem. Ribeiro (2004, p. 136), em estudo
sobre a presença dos jovens nas escolas noturnas, e ouvindo suas razões sobre a busca
renovada à escola, traz argumentos incontestáveis para garantir um olhar diverso sobre o que,
com outros estudiosos, denomina de juventudes:
Entretanto, a escola continua sendo um espaço privilegiado de encontro e socialização, apesar de sua inadequação às necessidades desses jovens. A partir dela e dos locais onde vivem, organizam-se em grupos, vivenciam processos de aprendizagem, sociabilidade e, conseqüentemente, de afetividade. São trabalhadores, telespectadores, mães e pais, negros, brancos, consumidores, detentores de diferentes expressões artísticas e religiosas, como também portadores de necessidades especiais, entre muitos outros.
Assumir a presença dos jovens na educação de adultos é reconhecer o fracasso dos
sistemas de ensino, que não conseguem levar os adolescentes e jovens à terminalidade da
educação básica, cuja prioridade, na maioria dos países, nos orçamentos locais e
internacionais não tem correspondido aos investimentos efetivados. Talvez esse ônus a
127
Unesco não tenha querido assumir nessa Declaração, pelas formas políticas como investe e
apóia ações educativas para crianças, pelo mundo afora, especialmente no âmbito do
UNICEF. Mulheres, como expressão de gênero, têm enorme visibilidade, e os idosos, dessa
feita, já aparecem como um segmento de preocupação, reservando-se a eles o direito a
aprender por toda a vida.
Da Agenda para o Futuro devo ressaltar o destaque feito ao Relatório Delors, que 25
anos depois do Aprender a Ser de Edgar Faure, declarando que a educação ao longo da vida
era a chave para o século XXI distinguia-se da tradicional concepção de educação básica e
educação permanente, ligando-se a “outro conceito”: [...], “o da sociedade educativa, na qual
tudo pode ser ocasião para que o indivíduo aprenda e desenvolva seus talentos”. (BRASIL,
1998, p. 99). A Agenda, assumindo os princípios da Declaração, tratava de estabelecer, para
cada tema, a compreensão básica, e os compromissos para que a concepção por ele assumida
pudesse ser empreendida nas práticas sociais dos países. São dez os temas: educação de
adultos e democracia: o desafio do século XXI; a melhoria das condições e da qualidade da
educação de adultos; garantia do direito universal à alfabetização e à educação básica; a
educação de adultos como meio de se promover o fortalecimento das mulheres; a educação de
adultos e as transformações no mundo do trabalho; a educação de adultos em relação ao meio
ambiente, à saúde e à população; a educação de adultos, cultura, meios de comunicação e
novas tecnologias de informação; a educação para todos os adultos: os direitos e aspirações
dos diferentes grupos; os aspectos econômicos da educação de adultos; a promoção da
cooperação e da solidariedade internacionais.
O retorno de Hamburgo teve seguimento, para alguns participantes, na IV Feira
Latino-americana de Alfabetização, em Recife, quando 1.624 educadores de jovens e adultos,
de todo o Brasil, reuniram-se de 28 de julho a 1 de agosto, sob a promoção da Rede de Apoio
à Ação Alfabetizadora no Brasil – RAAAB, aprofundando o tema Educação popular:
participação vs. exclusão na América Latina. México, Colômbia e Chile garantiram o caráter
latino-americano, constituindo o primeiro e imediato momento para tornar conhecidas a
Declaração e a Agenda. Dessa Feira, os participantes enviaram carta ao Ministro da
Educação, datada de 2 de agosto de 1997, comprometendo-se com o MEC a possibilitar a
concretização de compromissos firmados na Conferência, a lutar pela derrubada dos vetos ao
FUNDEF, entre outras, com o objetivo de “reversão da injusta situação de milhões de jovens
e adultos, privados do direito à educação básica, na idade própria”.
128
44..88 SSEEMMIINNÁÁRRIIOO NNAACCIIOONNAALL DDEE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE PPEESSSSOOAASS JJOOVVEENNSS EE AADDUULLTTAASS PPÓÓSS--
CCOONNFFIINNTTEEAA
A partir da V CONFINTEA, os países membros, que firmaram os acordos,
comprometeram-se a cumprir a agenda proposta para dez anos, na condição de,
periodicamente, “prestar contas” entre si, sob coordenação da Unesco, quanto aos
encaminhamentos propostos em nível nacional para alcançar as metas estabelecidas.
A primeira prestação de contas ocorreu em 1998, intermediada pela OREALC, que
convocou os países da região latino-americana e caribenha para participarem de seminários
regionalizados, assim distribuídos: no México, envolvendo este país e os da América Central
e Caribe; na Colômbia, envolvendo os países andinos; em Montevidéu, com os países
integrantes do Mercosul. Até chegar à reunião regional, cada país deveria organizar um
seminário nacional, com a participação dos parceiros ou de representantes que discutissem o
estado das políticas e das ações na EJA. A tarefa, em princípio confiada ao MEC, foi por ele
descartada, sob a alegação de contenção de custos, conferindo, apenas, apoio ao evento. A
organização do evento coube, então, ao CONSED, à UNDIME e ao CEAAL, sendo realizado
em 29 e 30 de outubro, tendo a Secretaria de Estado de Educação do Paraná, em Curitiba,
como anfitriã. Da proposta técnica das atividades e da organização dos documentos básicos
ficou encarregado o CEAAL, que orientou o trabalho de formulação de subsídios temáticos,
feitos por especialistas convidados. A abertura oficial do evento contou com a presença de
representantes dos organismos envolvidos, incluindo José Rivero, pela Unesco. O MEC,
presente na pessoa da coordenadora de EJA, Ana Lúcia Jatobá, participava como observador,
sem qualquer função diretora.
De posse das sínteses das discussões dos grupos, a plenária ouviu as proposições sobre
cada tema e discutiu-as, incorporando as questões na redação do documento final. Deste
Seminário saíram indicados delegados que participariam da reunião regional em
Montevidéu45.
O conhecimento da OREALC sobre a questão brasileira no tocante à EJA permitiu
uma atuação mais contundente, pressionando o MEC a ampliar a participação para outros
órgãos, na sua ausência oficialmente assumida. Pela experiência anterior de Natal, a definição
45 Em Montevidéu ocorreu a Reunião Sub-regional para os países do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai) e Chile, de 17 a 20 de novembro de 1998. Outras duas reuniões ocorreram na América Latina, agrupando os países da região, como uma estratégia de seguimento das conclusões da V CONFINTEA, com vistas a enriquecer com propostas as sete áreas de ação regional e estabelecer acordos de ação, considerando os subsídios disponíveis e os esforços nacionais de cada país para a educação de jovens e adultos.
129
do documento final e da delegação ocorreram no âmbito do próprio seminário, reservando ao
Ministério da Educação três vagas para indicação de seus representantes, sem diminuir os
demais. Já naquele momento, a existência do Fórum de EJA do Estado do Rio de Janeiro, era
reconhecida por todo o país, inspirando múltiplas experiências semelhantes em diversos
estados. A própria OREALC, conhecedora da experiência, ressaltava sua importância, tendo
registrado no Instituto Internacional de Planejamento Educacional da UNESCO (IIEP-
UNESCO) em Paris e em Hamburgo o modelo de ação coletiva de luta pela EJA.
O seminário demonstrou alguns aspectos sobre o modo de configuração do campo da
EJA, à ocasião: a base da ação que acontecia, em nível nacional, era de âmbito municipal,
devendo-se registrar o esvaziamento das Secretarias de Estado, de modo geral, na área. No
entanto, a multiplicidade de experiências dava-se sem que houvesse política mais ampla,
fazendo da EJA um campo de responsabilização do Estado com essa modalidade de educação,
com a parceria da sociedade civil. A Carta de Curitiba firmava a posição política dos
participantes/representantes dos diversos segmentos da EJA presentes, e foi assumida
coletivamente.
44..99 OO MMAARRCCOO DDEE AAÇÇÃÃOO DDEE DDAACCAARR —— RREEAAFFIIRRMMAANNDDOO CCOOMMPPRROOMMIISSSSOOSS DDEE 11999900,,
RREEEEDDIITTAANNDDOO OO MMIITTOO DDEE SSÍÍSSIIFFOO EEMM 22000000
O esperado ano 2000 chegou e uma nova ação política da ONU reuniu Estados-
membro na Cúpula Mundial de Educação, em Dacar, de 26 a 28 de abril que, uma vez mais,
comprometeram-se “a alcançar os objetivos e as metas de Educação Para Todos (EPT) para
cada cidadão e cada sociedade” (UNESCO, 2000, p. 1). Entendem, como exposto no item 2,
que esse é um compromisso coletivo para a ação, que deve ser realizada com “amplas
parcerias no âmbito de cada país, apoiada pela cooperação com agências e instituições
regionais e internacionais” (UNESCO, 2000, p. 1).
A leitura desse documento não deixa dúvidas: a imagem mais forte que suscita é,
novamente, a do mito de Sísifo, mais uma vez tentando levar montanha acima a enorme pedra
que, teimosamente, insiste em rolar morro abaixo. A ação da gravidade, mais forte do que o
quase-herói atua sem que qualquer interferência humana possa contê-la, apenas pela
correlação desigual de forças ascendentes e descendentes.
Do mesmo modo — e apesar dos esforços da ONU/Unesco — em reequilibrar as
forças desiguais que atuam no tocante à distribuição de riquezas entre os Estados-nação e os
organismos bi e multilaterais, representantes das forças do capital internacional, os resultados
130
e o balanço de ações educacionais feito em Dacar, dez anos após Jomtien, são inequívocos em
revelar como a educação — a pedra, no mito —, é “fardo” pesado demais para ser alçado ao
cimo da montanha, sem que outras forças contribuam para fazê-la chegar até lá. De
Arquimedes a Newton, Pascal, Galileu e tantos outros que consolidaram as leis da Física
clássica, é impossível admitir que qualquer um deles veja solução para o caso, apenas com os
recursos que o mantêm.
Como as tarefas de acompanhamento e monitoramento dos acordos firmados são
muitas, e os países têm exigências diversificadas de cooperação internacional para atender os
compromissos, a Unesco mantém escritórios regionais. No caso de América Latina e Caribe, a
OREALC teve atuação destacada, ao longo dos anos, com forte aproximação, durante o
tempo de José Rivero Herrera à frente da Oficina, com o Brasil e com educadores brasileiros.
Diversas estratégias foram possíveis pelo fato de essa aproximação ter municiado a Oficina no
sentido de decodificar os bastidores das políticas negadoras de EJA, no nível nacional, para
fazer avançar, pelo chamamento internacional, no sentido minimamente necessário. Com a
aposentadoria de José Rivero, uma brasileira, Ana Luiza Machado, assumiu o lugar, e desde
então os laços anteriores não mais se confirmaram com a Oficina Regional, no apoio e
interlocução para políticas brasileiras. Uma das ações importantes da Oficina é, justamente,
disseminar os textos de acordos e subsidiar as temáticas, com documentos, pesquisas e
produção de conhecimento, com vista a ampliar a compreensão da dinâmica da região e
estabelecer aproximação entre os países, fortalecendo uns aos outros, pelas saídas comuns.
O Marco de Dacar afirma que uma avaliação da Educação para Todos 2000 demonstra
que houve progresso significativo em muitos países, mas considera inaceitável que ainda
existam mais de 113 milhões de crianças sem acesso ao ensino primário, e que 880 milhões de
adultos sejam analfabetos. Para isso, restabelece a meta de melhoria de 50% nos níveis de
alfabetização de adultos até 2015, especialmente para as mulheres, assim como acesso
eqüitativo à educação básica e continuada para todos os adultos, reafirmando seis objetivos
dos quais dois pactuados referem-se à alfabetização e à educação de jovens e adultos, ao
longo de toda a vida.
No caso da América Latina e Caribe, a crítica situação latino-americana que ultrapassa
as questões educacionais, indica o agravamento da pobreza e a ineficácia das políticas sociais
voltadas para esse fim, como se pode ler, na apresentação assinada por Ana Luiza Machado,
diretora regional, no folheto Educação para todos: compartilhar desafios, multiplicar
resultados, organizado com a finalidade de prestar contas das ações empreendidas pela
131
Oficina e demonstrar possibilidades de apoio aos países da região em direção ao atingimento
das metas de Dacar:
América Latina e Caribe formam a região com maior desigualdade do planeta e onde a pobreza cresce de maneira surpreendente. Em 1980 havia 80 milhões de pobres, ao final dos anos 90 a cifra havia subido para 192 milhões; hoje mais de 250 milhões, isto é, cerca de metade da população, vivem na pobreza. As políticas sociais não têm sido capazes de reverter essa tendência. A educação não tem conseguido diminuir esta brecha, nem aumentar a mobilidade social através de uma oferta educativa que assegure igualdade de oportunidades à população.
Garantir uma educação básica de boa qualidade para todos, reduzir as taxas de analfabetismo e possibilitar a formação das pessoas ao longo da vida são desafios que precisam ser enfrentados por toda a sociedade. Os recursos e esforços para melhorar a qualidade e eqüidade da educação necessitam ser intensificados em prol de um desenvolvimento mais justo e humano. (OREALC/UNESCO, 2004, p.5).
Apesar do reconhecimento da situação e da aceleração intensa da pobreza na região,
nos últimos 25 anos, quando a população pobre praticamente triplicou, o organismo
internacional, mesmo demarcando o fracasso das políticas sociais, traz ainda marcas do
pensamento que admite ser a educação capaz de reduzir essa tendência, pelo aumento da
mobilidade social. Esse pensamento parece sugerir a interpretação regional para a questão,
pois o Marco de Ação de Dacar, ao reafirmar a “educação como direito humano fundamental
(grifo meu) e chave para um desenvolvimento sustentável, assim como para assegurar a paz e
a estabilidade dentro e entre países e, portanto, um meio indispensável para alcançar a
participação efetiva nas sociedades e economias do século XXI” (UNESCO, 2000, p. 1),
toma, uma vez mais, a educação como direito humano fundamental, sem atribuir a ela
qualquer finalidade no sentido da mobilidade social. Ao reiterar a educação no marco da
Declaração Universal de Direitos Humanos, o que a coloca para além da perspectiva de
direito social conquistado no início do século XX, Dacar recomenda que a aprendizagem de
jovens e adultos seja feita a partir do atendimento às necessidades, nos seguintes termos:
“assegurar que as necessidades de aprendizagem de todos os jovens e adultos sejam atendidas
pelo acesso eqüitativo à aprendizagem apropriada, a habilidades para a vida e a programas de
formação para a cidadania” (UNESCO, 2000, p. 2).
No folheto da OREALC, a compreensão desse objetivo se faz por uma ilustração e
texto que informam que, na região, metade dos países já conseguiu ter 70% dos jovens em
idade escolar cursando o ensino médio, mas que o atraso pronunciado de atendimento em
alguns países, como El Salvador, República Dominicana, Nicarágua e Guatemala, em ordem
decrescente, faz com que esse atendimento não alcance 50%. (OREALC, 2004, p. 10). O que
132
se observa é que a preparação para a vida ativa se coloca em termos da escolaridade de nível
médio, não se destacando a importante função dos currículos próprios e adequados a jovens e
adultos, cujo marco regulador não pode continuar a ser a escola regular, mas as necessidades
cotidianas do estar no mundo, aprendendo, agindo, transformando-o.
No segundo objetivo que envolve a EJA — que estabelece o compromisso em
melhorar o acesso à alfabetização de 50% dos adultos, até o ano 2015, e nessa meta,
destacadamente, a alfabetização de mulheres, assim como facilitando a todos os adultos o
acesso eqüitativo à educação básica e à educação permanente —, Dacar estende no tempo —
15 anos — a meta que os países não conseguiram atingir em dez anos. O folheto da OREALC
explicita o sentido que atribui a essa meta, colocando em cheque a metodologia que, de modo
geral, assumem os recenseadores/pesquisadores em relação à condição ser ou não ser
alfabetizado: saber/não saber ler e escrever. Por ser assim, o quantitativo expresso no Informe
Regional de Monitoramento de Educação para Todos 2003 é questionado, pelo fato de a
resposta possível – binária - não revelar o que cada informante entende por saber/não saber ler
e escrever, o que deve alterar, se modificada a metodologia, os resultados constatados até esse
momento:
Segundo consta do Informe Regional de Monitoramento de EPT 2003, 89% da população de 15 anos ou mais declaram saber ler e escrever. Isto significa que ainda existem mais de 36 milhões de pessoas que declaram não estar nessa condição. Entretanto, essa declaração baseada em uma pergunta bipolar (sabe/não sabe ler e escrever) não é suficiente para captar os diferentes graus em que as pessoas têm desenvolvido suas competências de alfabetização. Por esse motivo a Unesco iniciou um novo programa (LAMP: Programa de Monitoramento e Avaliação da Alfabetização) destinado a obter informação mais precisa e que possa subsidiar com informações mais úteis a definição dos programas de alfabetização de adultos. (OREALC, 2004, p. 11).
O documento de Dacar traz, também, uma importante bandeira de luta no campo dos
direitos, que se anunciou a partir das Conferências da ONU na década de 1990: o aumento da
ajuda para o desenvolvimento e o perdão da dívida em prol da educação por parte dos
credores bilaterais e multilaterais, além da demanda de apoio financeiro adicional dos países,
para atender às exigências dos compromissos da Educação Para Todos, o que custará em
torno de U$ 8 bilhões por ano.
Às vésperas do novo século e do novo milênio, a construção do mundo civilizado não
passava de textos escritos, de cartas de intenções e de compromissos, reveladores do poder
dos que podem ler e escrever, fazendo desses textos poderosos instrumentos que exigem
133
reuniões, seminários internacionais, conferências — enquanto a palavra, a que precisava ser,
imediatamente, tornada prática, continuava a navegar errante nos becos, nos porões, nos
gabinetes, nos palácios, sem que tivesse a chance de cumprir seu destino humanizador:
educação para todos.
44..1100 PPRROOJJEETTOO PPRRIINNCCIIPPAALL DDEE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO PPAARRAA AAMMÉÉRRIICCAA LLAATTIINNAA EE CCAARRIIBBEE 22000022--22001177
O Projeto Principal de Educação para América Latina e Caribe – PROMEDLAC
1980-2000, conhecido entre nós como Projeto Principal, que antecede o momento aqui
abordado, contribuiu para o esforço regional dos países, com vista a ampliar a abrangência
dos sistemas educativos, reduzir o analfabetismo de forte monta na região, e introduzir
reformas para melhorar a qualidade em educação.
O Projeto Principal balizou a política regional dos países da região na área de EJA,
atentos à presença forte e incisiva da Oficina Regional da Unesco no Chile, e aos
chamamentos temáticos para conferências, seminários, reuniões regionais.
Esgotados os 20 anos para os quais o Projeto foi pensado, avaliou-se, durante a VII
Reunião do Comitê Regional Intergovernamental do Projeto Principal de Educação em
América Latina e Caribe, realizada em Cochabamba, na Bolívia, entre 5 e 7 de março de
2001, que, apesar dos esforços, os três objetivos do Projeto não haviam sido alcançados em
sua totalidade, podendo-se apontar que o melhor deles estava representado pela ampliação da
abrangência da oferta da educação básica, sem que a permanência e a qualidade tivessem
chegado a um mesmo patamar, e que a melhoria nos índices de analfabetismo absoluto, em
toda região, ainda implicava a convivência com 41 milhões de analfabetos. Mas, de todo
modo, ali se criavam bases objetivas e subjetivas para declarar o direito de todos a uma
educação de qualidade, nos marcos anteriores dos variados fóruns de educação.
Nessa Reunião, os ministros de educação demandaram à Unesco a elaboração de um
novo Projeto Regional de Educação com uma perspectiva de 15 anos, projeto esse largamente
difundido pela rede mundial de computadores, de forma aberta e pública, recebendo
contribuições a partir desse dispositivo eletrônico. Em agosto de 2002, em Santiago do Chile,
uma segunda versão foi submetida à Mesa de PROMEDLAC VII, composta pelos vice-
ministros de Bolívia, Costa Rica, Cuba, México, Panamá e Chile, como país anfitrião, para
mais uma rodada de consultas, precedendo a convocatória da Primeira Reunião
Intergovernamental do Projeto Regional de Educação para América Latina e Caribe, realizada
em Havana, Cuba, de 14 a 16 de novembro de 2002.
134
Com a participação de 29 Estados-membro e quatro estados associados da região —
além de observadores de Estados-membro de outras regiões, representantes do sistema das
Nações Unidas, observadores de organizações intergovernamentais e de organismos
internacionais não-governamentais, assim como diretores de instituições multilaterais e
fundações — o texto cuja versão era discutida foi, finalmente, aprovado, saindo desta Reunião
a Declaração de Havana e o Informe Final que contempla toda a dinâmica da Reunião e o
novo Projeto Regional de Educação para América Latina e Caribe - PRELAC, para o
período de 2002 a 2017.
Na Declaração de Havana, os Ministros reconheceram que a execução do Projeto para
mais 15 anos representava um desafio aos países, para que a educação se tornasse o eixo que
permitisse níveis elevados de desenvolvimento humano e de dignidade às populações, nos
umbrais do século XXI e, além do Projeto Regional, aprovaram o Modelo de
Acompanhamento do Projeto Regional de Educação para América Latina e Caribe 2002-
2017.
Declararam, reafirmando, a prioridade aos processos de alfabetização como etapa
inicial ao futuro desenvolvimento educativo das pessoas e um meio de enriquecimento
cultural, que deveria envolver todos os aspectos sociais, valorizando as experiências com
métodos ajustados à realidade, utilizando rádio, televisão e recursos compatíveis com as
economias latino-americanas. Tudo isso com a finalidade de reduzir em cinco anos os índices
de analfabetismo e erradicá-lo em dez anos, para o que os ministros se comprometiam a
coordenar os esforços necessários. Declararam, também, a necessidade de promover a
educação ao longo de toda a vida, em múltiplos ambientes humanos e educativos, em
interação, educação esta centrada em valores — como núcleo da formação da personalidade
—, promovendo aprendizagens orientadas a possibilitar o ser, o fazer e conhecer e a favorecer
a convivência humana, destacando como aspecto positivo a diversidade étnica e cultural dos
povos da região.
A diversidade étnica, nas formas como vem sendo defendida para o fundamento de
políticas educacionais, tenta inverter a concepção explicativa dos modelos de poder que
impuseram aos povos latino-americanos a colonialidade, caracterizando assim o processo
político da região, de dominação racial e de negação de direitos. Quijano (2000, p. 242),
assim se refere ao que se pode avançar e conquistar em termos de direitos políticos e civis, na
necessária redistribuição de poder, da qual a descolonização da sociedade é pressuposto e
ponto de partida:
135
[...] está ahora siendo arrasado en el proceso de reconcentración del control del poder en el capitalismo mundial y con la gestión de los mismos funcionarios de la colonialidad del poder. En consecuencia, es tiempo de aprender a liberarnos del espejo eurocéntrico donde nuestra imagen es siempre, necesariamente, distorsionada. Es tiempo, en fin, de dejar de ser lo que no somos.
Principalmente no tocante a recursos, as formas colonialistas têm-se imposto, talvez
apenas mudando o eixo do mundo que o faz, depois de mais de 500 anos.
No novo Projeto Regional, o compromisso com o cumprimento dos direitos humanos
de todos e da cada um, mulheres e homens, é requisito essencial para gerar processos de
desenvolvimento sustentável, a consolidação de instituições democráticas e o estabelecimento
da transparência nas leis, ao mesmo tempo responsáveis e efetivas. O documento destaca que
o direcionamento tendo em vista a consolidação democrática é um dos êxitos recentes na
América Latina, ainda que a situação econômica da região, definida pelos poderosos do
mundo, venha impondo duras penas aos países, desde há muito, dificultando a integração
regional e o fortalecimento de laços comuns.
O Projeto Regional recupera os pilares da aprendizagem para o século XXI, definidos
pela Unesco, a partir do Relatório Delors, considerado guia quanto aos sentidos e conteúdos
da educação. Assim, seis anos depois, o paradigma ainda se mantém sobre o aprender a ser;
aprender a fazer; aprender a conhecer; aprender a viver juntos; aos quais o documento
acrescenta o aprender a empreender, como atitude proativa e inovadora, para formular
propostas e tomar iniciativas.
Entende, também, que o sentimento da sociedade, participando de decisões, a moverá
no sentido de ocupar os espaços em que se faça protagonista do próprio desenvolvimento.
Tanto o desenvolvimento humano, como a educação, têm aspiração à liberdade, ao bem-estar
e à dignidade de todos, em todos os lugares. As políticas públicas em educação devem para
isso contribuir, para o que o Projeto Regional propõe cinco focos estratégicos, para os
próximos 15 anos, relacionados a seguir, com os principais elementos constitutivos das
concepções que revelam:
1. Foco nos conteúdos e práticas da educação para construir sentidos sobre nós
mesmos, sobre os demais e sobre o mundo em que vivemos.
Nesse foco, a intenção é discernir qual o sentido da educação em um mundo de
incertezas, em que os conhecimentos mudam em grande velocidade e se ampliam
permanentemente. Muitas questões advêm dessa constatação e têm reflexo direto sobre as
136
formas organizativas do currículo escolar e do que devem saber os alunos, ou seja, que peso
dar ao conhecimento nas escolas e como aproveitar as aprendizagens de fora da escola?
2. Foco nos docentes e fortalecimento de seu protagonismo para a mudança educativa
que responda às necessidades de aprendizagem dos alunos.
Defende o apoio nas políticas públicas que valorizem os docentes e seus saberes, como
aportes às transformações necessárias dos sistemas educativos, pelo esgotamento dos modelos
em que se lhes não atribui autonomia para formular e interferir nos desenhos e sistemas de
avaliação, propondo modos menos individuais e mais cooperativos de trabalho.
3. Foco na cultura das escolas para que se convertam em comunidades de
aprendizagem e de participação
Lida com a constatação de que lugares e tempos de aprendizagem se ampliam cada
vez mais e que a escola não é o único locus do saber, ainda que seja a única a assegurar a
eqüidade do acesso, oferecendo oportunidades de aprendizagem qualificada para todos,
contribuindo, assim, para a distribuição de oportunidades sociais.
4. Foco na gestão e flexibilização dos sistemas educativos para oferecer
oportunidades de aprendizagem efetiva ao longo da vida
Trata-se de fazer efetivo o direito de todos à educação, oferecendo oportunidades de
aprendizagem ao longo da vida, o que exige transformar a organização e as estruturas dos
sistemas — rígidos e com propostas homogêneas, para necessidades educativas heterogêneas.
Significa oferecer respostas diversas a necessidades diferenciadas, ditadas pelas condições de
cada público, fortalecendo a demanda pela educação de qualidade dos coletivos, em situação
de maior vulnerabilidade social.
5. Foco na responsabilidade social pela educação para gerar compromissos com seu
desenvolvimento e resultados
Como o Estado é o primeiro responsável pela educação, as políticas públicas devem
consolidar visões cidadãs sobre a educação nacional, com diferentes visadas sobre a realidade.
Se não há canais de expressão social sobre os conteúdos da realidade, há que haver vontade
política, por parte dos governos, para possibilitar a participação da população, exercendo
controle, com responsabilidade, sobre a educação de seus filhos, como um direito da
cidadania.
137
A finalidade do Projeto Principal é, pois, promover mudanças nas políticas educativas,
partindo da transformação de paradigmas educativos vigentes para assegurar aprendizagem de
qualidade, voltada ao desenvolvimento humano, para todos, ao longo de toda a vida. A
educação ao longo da vida vai mais além da distinção entre educação básica e educação
permanente: significa conquistar uma sociedade educadora em que existam oportunidades
múltiplas para aprender e desenvolver as capacidades das pessoas.
O Projeto Regional ainda afirma que a distinção entre educação formal e não-formal e
educação presencial e a distância, é cada vez menos nítida, pela existência de diversos
âmbitos de aprendizagem que não passam pela educação escolarizada. Credita importância à
flexibilidade da oferta educativa e à multiplicidade de itinerários formativos, no sentido de
superar os índices de analfabetismo absoluto e funcional, assim como garantir a continuidade
de estudos para os que superaram o analfabetismo.
Reafirma o papel da implementação integrada de políticas sociais e econômicas que,
se não agregadas, permanecem gerando desigualdades nos sistemas educativos, impedindo
que se interrompa o círculo vicioso da pobreza e da exclusão.
44..1111 AA PPRREESSEENNÇÇAA DDAA SSOOCCIIEEDDAADDEE CCIIVVIILL OORRGGAANNIIZZAADDAA –– OO CCEEAAAALL
O CEAAL é uma associação de 200 organizações não-governamentais distribuídas em
21 países da América Latina e Caribe. Há 20 anos trabalha pela produção de conhecimentos a
partir de práticas de educação popular dos membros, em toda a região. Por ocasião do
lançamento do novo Projeto Regional, associado à OREALC como promotor do evento, o
CEAAL ratificou a afirmação da educação como direito humano fundamental, entendendo a
responsabilidade preponderante do Estado para assegurar essa conquista, de modo que a
cidadania possa fazer valer seus direitos, chamando os governos presentes para que
manifestassem decidida vontade política em favor da educação e da eqüidade.
Alertou para as cifras regionais da ordem de 41 milhões de pessoas analfabetas e cerca
de 110 milhões de jovens e adultos que não completaram os estudos do primeiro segmento,
portanto analfabetos funcionais, o que exigiria um esforço de escolarização intenso, mas
assumindo a posição, entretanto, de que a dinâmica educativa não pode estar restrita à
escolarização, o que exige a ampliação de espaços múltiplos e de todos os recursos de
aprendizagem que garantam a possibilidade de aprender por toda a vida, o que se esperaria,
também, dos sistemas educativos nacionais. Para isso, assevera a necessidade de
reestruturação dos sistemas, interrompendo processos de uniformização, segmentação e
138
desarticulação que os sustentam. Condenou a privatização da educação, assim como as
tendências de priorizar a educação de crianças, esquecendo todo o restante da população,
mantendo visões economicistas que aprofundam os ressentimentos e a iniqüidade social. Do
mesmo modo, condenou o papel que o Banco Mundial tem representado na América Latina e
em outras partes do mundo, orientando reformas e políticas educativas. Defendeu para o
Banco o apoio financeiro, com recomendações que não sejam impostas como condição para
seus préstimos. Aos governos, incitou-os a afirmar sua soberania e servir-se do que tiverem de
mais qualificado no próprio povo e na comunidade internacional para recuperar e renovar os
sistemas educativos. Reconheceu limitações financeiras graves nos países, absurdas, se
consideradas as riquezas econômicas, de recursos naturais, culturais e intelectual, e o quanto a
globalização econômica ata as possibilidades de futuro diante da dívida externa e da vergonha
da ação predadora das elites políticas dos países.
Reafirmando, por fim, o compromisso com os focos estratégicos do Projeto Regional,
o CEAAL assumiu que o aprender a viver juntos e que a educação cidadã para a paz, e o
cultivo dos direitos humanos tornam-se fatores imprescindíveis na reconstituição do tecido
social.
44..1122 AA SSOOCCIIEEDDAADDEE CCIIVVIILL EEMM RREEDDEE —— OO PPRROONNUUNNCCIIAAMMEENNTTOO LLAATTIINNOO--AAMMEERRIICCAANNOO
O Pronunciamento Latino-americano sobre “Educação para Todos” foi uma
iniciativa levada a cabo por Pablo Latapí (México), Sylvia Schmelkes (México) e Rosa María
Torres (Equador), que redigiram um texto firmando algumas posições críticas e propositivas
em relação à avaliação da década de Educação para Todos, e ao papel assumido por governos,
sociedade e agências internacionais, para serem apresentadas no Fórum Mundial de Educação
realizado em Dacar, no Senegal, em abril 2000. O texto, submetido a uma comunidade
educativa da região, foi firmado na ocasião por mais de 600 educadores, continuando a
receber adesões a partir da sua divulgação no evento. Alcança, atualmente, mais de 4.000
firmantes da América Latina e de outras regiões do mundo, provenientes de universidades,
movimentos sociais, Estado, organizações de base, sindicatos docentes, partidos políticos,
igrejas, meios de comunicação, organismos de direitos humanos, sistemas escolares, agências
internacionais.
O compromisso dessa comunidade de firmantes latino-americanos desencadeou o
monitoramento dos acordos postergados até 2015, assim como de outros compromissos
firmados pelos governos da região nos últimos anos, como a Cumbre das Américas (2004-
139
2010), a Declaração e Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (2000-2015) e, mais
recentemente, o Projeto Regional de Educação para a América Latina e Caribe - PRELAC
(2002-2017), no contexto social, político e econômico sem o qual não é possível compreender
os cenários da educação.
O documento organiza-se em torno de três distintas partes: Nossos povos merecem
mais e melhor educação; Retificações necessárias; Salvaguardar os valores latino-
americanos.
Na primeira parte, sustenta que a América Latina tem produzido pensamento
pedagógico, inovações, e práticas no sentido de cumprir o objetivo da educação de
aprendizagem e formação integral da pessoa, sem que venha sendo relevada toda essa
experiência e produção. Faz crítica à forma como se desenvolveram as políticas educacionais
na década de 1990, que apesar de se comprometerem a melhorar a aprendizagem,
demonstram, pelas avaliações realizadas, a pobreza de resultados e a falta de indicadores de
êxito. A despeito das sobrepostas reuniões, declarações, seminários na região, demarcadas a
partir de 1979, com a Declaração do México, que aprova, definitivamente em 1981, o Projeto
Principal de Educação para América Latina e Caribe - PPE, priorizando o acesso à escola, a
eliminação do analfabetismo adulto e a melhoria da qualidade e da eficiência educativa; em
1990, com a assunção das seis metas da Educação para Todos, coincidentes com o PPE até
2000; e em 1994, com a Cumbre de Miami, convocada pelo então presidente dos Estados
Unidos da América Bill Clinton, conformando o Plano de Acesso Universal de Educação até
2010, depois ratificado como Iniciativas de Educação, pela II Cúpula em 1998, em Santiago
do Chile, prevendo metas educacionais para os três níveis, sob a liderança dos EUA, e
coordenada por México, Argentina e Chile, além de OEA, Banco Mundial, BID e United
States Agency for International Development (USAID), o Fórum de Dacar estenderá os prazos
para atingimento de metas até 2015, porque estas não se cumpriram nos dez anos precedentes,
tomando Jomtien como marco inicial.
Argumenta, ainda, que a tradição para o desacerto do acordo tem culpado a falta de
recursos e a execução de programas e projetos, quando, o que se observa é a estrita
necessidade de revisar o desenho das políticas e de como os organismos mundiais encaram o
tema educação. Exemplifica com o caso de Cuba — único país que tem resultados diversos
dos demais, e não segue nem as políticas, nem as exigências dos financiamentos externos.
No item Retificações necessárias, afirma ser indispensável inspirar as opções
educacionais, os apoios e indicadores de avaliação em valores fundamentais, e não no avanço
140
da cobertura e da eficiência dos sistemas, considerando que o desenvolvimento integral do
educando, a formação de consciência, o exercício responsável da liberdade e a capacidade de
relacionar-se com os demais e respeito a todos são, estes sim, os marcos que devem reger a
educação nos acordos firmados.
Invoca, como tarefa dos que decidem, nova postura no plano ético, por não ser a
educação engrenagem a serviço da economia, do consumo e do progresso material,
demonstrando que a questão da eqüidade – traduzida pelo acesso, permanência, sucesso, e
participação nos processos de produção do conhecimento não vem sendo enfrentada com a
devida ação política, que reduza as distâncias dos grupos mais marginalizados da educação.
Para essa tarefa, entende que a diversidade cultural dos povos latino-americanos é a
forma de garantir a qualidade, não pela homogeneização, mas justamente pela diversificação.
Nesse sentido, exige recuperar da Educação para Todos a visão ampliada de educação, como
a que se faz não apenas dentro dos sistemas escolares, mas fora também, em toda a sociedade,
resgatando, para isso: a visão multissetorial — que não entende ser a educação capaz,
sozinha, de dar conta da complexidade de múltiplas questões envolvidas nos processos
educativos; a visão de sistema, que implica pensar o todo e não isoladamente as partes, níveis
e modalidades que compõem o conjunto educacional; e, por último, resgatar a visão de longo
prazo que assume ser a educação tarefa para várias gerações.
Por fim, o Pronunciamento aborda o item Salvaguardar os valores latino-americanos,
defendendo o valor supremo da pessoa e da busca de sentido para a existência humana,
assentado em características dos povos latino-americanos, que propiciariam outras formas de
pensar a educação: o sentido comunitário da vida, principalmente entre a população indígena,
que se expressa por culturas mais solidárias do que competitivas; a multiculturalidade e a
interculturalidade produzida no interior dos povos; a abertura e valorização de formas de
conhecimento que transcendem a racionalidade, para assumir valores e fundamentos das
culturas regionais; o valor da liberdade, no sentido freireano, de autonomia da pessoa e
responsabilidade; de sustentar o trabalho como direito fundamental; da busca do outro na
construção do nós, o que garantiria a presença da utopia e da esperança, fundantes para a
construção da identidade, da conquista da paz e da justiça para todos.
Para isso, invoca-se a participação da sociedade não apenas na execução, mas na
formulação e discussão de políticas, e o redobrar de esforços de países, governos e agências
em prol da eqüidade, o que exige assumir a prioridade para os grupos marginalizados, assim
como a preservação da diversidade cultural, antepondo-a à globalização hegemônica e
141
homogeneizadora. Uma enorme preocupação é levantada, com o protagonismo da banca
internacional, que o faz mediante a defesa do pensamento único e de modos de cooperação
internacional atinentes a esse modelo, o que exigiria revisão.
Convoca, por fim, os governos e a sociedade a recuperar a liderança em matéria
educacional, não deixando de assumir o protagonismo das políticas educacionais, e termina
com um convite à comunidade educacional do Fórum de Dacar, para que compartilhe
fraternalmente das reflexões levadas como contribuição ao evento.
O Pronunciamento Latino-americano, na área da educação, é inaugural no sentido de
reduzir a fragilidade dos que pensam a educação nos países, diante das formas e mecanismos
como as reformas educacionais e os financiamentos têm sido tramados pelos agentes do
capital internacional. As forças sociais, ressurgentes, parecem ter encontrado uma ferramenta
de reforço, de certo modo recuperadora da esperança, contra os avassaladores movimentos
concertados em bloco nos países pobres e em desenvolvimento: a rede Internet, capaz de
mobilizar, com rapidez e eficiência, uma multiplicidade de atores e demarcar, assim, lugares
de resistência nos espaços consorciados de iguais pela submissão, em que a divergência não
costuma ter assento, pela posição com que o poder instaura e convoca os que, de pronto, e a
priori, não lhe podem fazer oposição.
44..1133 CCOONNFFEERRÊÊNNCCIIAA DDEE SSEEGGUUIIMMEENNTTOO ÀÀ CCOONNFFIINNTTEEAA VV:: BBAALLAANNÇÇOO SSEEIISS AANNOOSS PPÓÓSS--
HHAAMMBBUURRGGOO —— BBAANNGGCCOOCC,, SSEETTEEMMBBRROO 22000033
As iniciativas da Unesco em relação ao monitoramento dos acordos não esmorecem. A
Declaração de Hamburgo e a Agenda para o Futuro submetidas à prova seis anos depois, na
metade do intervalo para a próxima Conferência (2009), mereciam ser avaliadas, o que foi
feito em setembro de 2003, em Bangcoc, Tailândia.
Cerca de 300 pessoas, de mais de 90 países convocados, avaliaram os pontos de
chegada às recomendações de Hamburgo e os compromissos assumidos. Ireland (2004, p. 1)
presente à Conferência e escrevendo sobre seus significados, diz ter tido a “impressão de que
a reunião intermediária possuía uma importância política maior, no sentido de garantir a
própria continuidade das CONFINTEA’s, marcando a próxima para o ano 2009”. Atesta o
fato pela participação restrita de apenas 50 países com delegações oficiais.
A fase preparatória a Bangcoc foi bastante limitada para a constituição de um amplo
relatório. Especialistas convidados de alguns países redigiram um informe sobre a realidade
142
das políticas e dos programas de alfabetização e EJA; sobre a condução pública dessas
políticas e o investimento aportado, com dados de atendimento, propostas curriculares,
materiais didáticos, formação de professores. O relatório brasileiro, datado de junho de 2003,
foi redigido por Maria Clara Di Pierro e Mariângela Graciano, ambas de Ação Educativa, de
São Paulo46. O texto formulado, totalmente apropriado no Informe Regional — apresentando
a situação da EJA na região latino-americana —, ilustra o estudo de caso Brasil, conforme
estrutura do documento da América Latina.
O Informe Regional La Educación de Jóvenes y Adultos en América Latina y el
Caribe Hacia un estado del arte (OREALC, 2003) inicia com a descrição do marco analítico-
político geral da EJA na região, recolhendo práticas em alfabetização e educação de jovens e
adultos. Apresenta uma análise geral do contexto e sete estudos de caso baseados na
experiência dos países selecionados – Brasil, Chile, Equador, Honduras, Jamaica e Trinidad e
Tobago e México.
Uma das características relevantes destacada pelo Informe Regional diz respeito ao
conceito que a EJA assume na região. Observe-se:
Durante la década de los noventa se desarrolló una nueva política de la EPJA, poniendo énfasis en la incorporación de la juventud socialmente marginada al empleo. Modelos de una educación “secundaria” para jóvenes y adultos, la mayoría de las veces a través de programas acelerados, se convirtieron en la primera prioridad en los distintos países considerados. Chile ofrece un modelo en esta dirección. Por otro lado, observamos la integración de sistemas de formación vocacional tradicional para los trabajadores en una nueva dimensión, en la que se han incorporado las destrezas generales básicas y secundarias. En varios países, estrategias tripartitas, en las que cooperan gobierno, trabajadores y juventud, así como el sector privado, indican soluciones para el desempleo juvenil que merecen ser replicadas (ver los capítulos de Brasil e Jamaica). México y algunos países del caribe inglés han tomado una dirección distinta y están desarrollando un acercamiento más integrado y holístico, que combina la búsqueda de oportunidades de empleo con las siete áreas temáticas de CONFINTEA antes mencionadas. (OREALC, 2003, p. 10).
O documento informa, ainda, que há uma variedade de estratégias que demonstram as
disparidades sociais e econômicas da América Latina e uma tendência à formalização na EJA,
assim como à funcionalidade da educação básica, como aspecto central. Em alguns casos,
aponta o documento, a ênfase está no emprego e trabalho, de tal forma, que se subestimam os
aspectos sociais e políticos que afetam a vida das pessoas beneficiadas pelos programas.
(OREALC, 2003, p. 37). 46 A Profª. Maria Clara, desde o início de 2005, integra a Faculdade de Educação da USP, não sendo mais técnica e pesquisadora de Ação Educativa.
143
Tanto as Metas de Desenvolvimento do Milênio da ONU não fazem referência ao
analfabetismo, como a Iniciativa de Via Rápida (Fast Track Initiative), coordenada pelo
Banco Mundial, manteve a aposta e o apoio à proposta de educação básica para crianças e
adolescentes. Um desafio restava: seria o Plano Internacional de Ação da Década de
Alfabetização das Nações Unidas - UNLD (2003-2012), na perspectiva da aprendizagem ao
longo da vida capaz de incorporar as recomendações da V CONFINTEA para a alfabetização
e educação básica de adultos?
Bangcoc não inovou do ponto de vista das tendências que a educação de jovens e
adultos assumia no interior dos países. Mesmo diante de concepções cujo enfrentamento
exigiria investimentos fortes — o caso da juventude como público de grande expressividade
—, não questionou as orientações dos agentes financeiros que têm ditado as regras para o
campo, contendo as políticas de largo atendimento a propostas tímidas e compensatórias. Ao
contrário, reafirmou as metas estabelecidas e sustentou o monitoramento nas mesmas bases,
embora atestando a distância dos países, decorridos seis anos, dessas metas e sua
inexeqüibilidade prática.
44..1133..11 AA pprreesseennççaa iinntteerrnnaacciioonnaall ddee ppeessqquuiissaaddoorreess ddaa EEJJAA àà CCoonnffeerrêênncciiaa
Apesar das limitações da fase preparatória e da sistemática adotada durante a reunião,
a Conferência ressaltou a vitalidade da área para enfrentar ambientes adversos, presentes nos
informes de muitas regiões. As mudanças no cenário mundial, desde Hamburgo,
inequivocamente demonstravam o fôlego da área, para sobreviver em ambientes tão hostis às
populações marginalizadas. Desemprego, desmonte do mundo do trabalho até então
conhecido e as perplexidades geradas para as multidões; o individualismo exacerbado das
políticas neoliberais; o ressurgimento de ações discriminatórias e intolerantes contra
manifestações religiosas, raciais, ideológicas, expressas pelo terrorismo, no vácuo da luta
contra o comunismo, conformando terrorismo de Estado, especialmente contra o mundo
islâmico; e a substituição de princípios éticos por valores de mercado, em que tudo tem seu
preço, compunham o doloroso cenário sobre o qual Bangcoc operou.
A educação de adultos revelou, rotineiramente, a importância marginal nas políticas
educacionais da maioria dos governos, cuja concepção, no mais das vezes, restringe-se a
metas de educação básica para todos, no caso brasileiro afeto ao nível de ensino fundamental.
Também se destaca que:
144
Os conceitos de educação continuada e de educação como aprendizagem no seu sentido amplo, de um processo que possui uma centralidade fundamental para a consolidação e o aprofundamento da democracia, para a igualdade de oportunidades e a afirmação do papel social das mulheres, não foram postos em prática em muitos países. (IRELAND, 2005, p. 4).
Porque tanto a educação de adultos quanto o ensino superior estão incluídos para
negociação no Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio – GATT, da Organização Mundial do
Comércio – OMC, sugere-se que os governos andam a reboque do mercado, perspicaz como
sempre.
Uma última anotação relevante destaquei de Ireland (2005, p. 6), alertando para as
dificuldades relativas a ser a EJA um campo desprestigiado no rol das áreas de interesse
segundo a lógica hegemônica: “Não existem soluções fáceis, mas é difícil imaginar um futuro
melhor que não dê a devida importância à educação e à aprendizagem de adultos.
44..1133..22 AA nnoovvaa pprreesseennççaa bbrraassiilleeiirraa —— oo MMEECC ddee CCrriissttoovvaamm BBuuaarrqquuee nnoo ggoovveerrnnoo LLuullaa,,
eemm BBaannggccoocc
Diferentemente do momento anterior, na V CONFINTEA, um novo governo, afeito à
alfabetização de jovens e adultos, teve a responsabilidade de preparar o Relatório Nacional da
Educação de Jovens e Adultos para Bangcoc. Sob a coordenação do Ministro Cristovam
Buarque, o MEC tentava fazer da alfabetização de adultos, como prioridade do governo
federal, uma realidade no país. Mas o fazia pela via restrita, e sempre autoritária a que se
apegam os dirigentes, sem escuta dos setores que atuam sobre o campo e que sobre ele
pensam sistematicamente. A despeito das diversas tentativas de chegar ao núcleo de poder e
viabilizar o diálogo, a posição do Ministro — e conseqüentemente a do Ministério —, não se
sensibilizaram. Louvável a prerrogativa de não ser ético propor a alfabetização para alguns, e
não para todos os 20 milhões47, como pregava o Ministro, mas na prática inexeqüível em
quatro anos, se não se consolidasse um plano de ação de médio e longo prazos, e não um
programa; assim como se a continuidade dessa etapa do processo de formação de leitores não
se enraizasse nos sistemas, dando oportunidade de estudos mais amplos, cumprindo pelo
menos o dever do Estado, e direito de todos, ao ensino fundamental. Entre a esperança e a
insatisfação imediata, assistiu-se ao lançamento do Programa Brasil Alfabetizado, cujo
assento na nova Secretaria Extraordinária de Erradicação do Analfabetismo (SEEA) assustava
pela exumação de um termo sepultado na prática social da EJA.
47 O número 20 milhões foi usado todo o tempo do exercício do Ministro Cristovam Buarque à frente do MEC, embora o Censo IBGE 2000 apontasse cerca de 17 milhões como o quantitativo de analfabetos absolutos.
145
Para a Conferência Internacional Mid Term em Educação de adultos, em setembro de
2003, no primeiro ano de um governo que representava a chegada dos pensamentos de
esquerda ao poder, ainda que sob alianças contestáveis, o MEC formulou um documento de
que vale destacar alguns aspectos, pelo fato de se dirigir ao cenário internacional, no qual
demarcaria um novo momento do país, diante das anteriores concepções levadas a termo até
Hamburgo.
A primeira afirmativa é a de que o MEC, para concretizar a Agenda para o Futuro,
acordada em Hamburgo, fortalece “iniciativas e parcerias com os sistemas municipais e
estaduais de educação e organizações não-governamentais, atuando junto aos Fóruns que
discutem a ampliação e a melhoria da qualidade da educação de pessoas adultas no Brasil”
(BRASIL, 2003 In: IRELAND, MACHADO, PAIVA, 2004, p. 187), e ressalta que a EJA é a
única modalidade de ensino que transfere recursos a instituições não-governamentais.
Nesse momento já se observa a legitimidade sendo conferida aos fóruns de EJA,
visibilizados no novo governo; e o compartilhamento da LDBEN, sobre a qual se alude a
importância de ter trazido “nova perspectiva à educação de jovens e adultos, incorporando-a
como modalidade da Educação Básica e reafirmando a obrigatoriedade e gratuidade de sua
oferta” (BRASIL, 2003 In: IRELAND, MACHADO, PAIVA, 2004, p. 188). Do mesmo
modo, são destacadas as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação de Jovens e Adultos
- Resolução Nº. 01/2000, do Conselho Nacional de Educação, ressaltando “o direito à
educação escolar para jovens e adultos, observando a formação inicial e continuada de
professores e a formulação de propostas pedagógicas coerentes com as especificidades desta
modalidade” (BRASIL, 2003 In: IRELAND, MACHADO, PAIVA, 2004, p. 188). Por fim, o
documento afirma ser um dos objetivos do MEC “definir e implementar uma política nacional
para a educação de jovens e adultos”. ((BRASIL, 2003 In: IRELAND, MACHADO, PAIVA,
2004, p. 188).
Por esse documento, o MEC também assume que o mapeamento do analfabetismo no
país coincide com o mapa das desigualdades regionais, sociais e étnicas, assim como sinaliza
para o número de jovens e adultos que não cumpriram a escolarização obrigatória de 8 anos,
dizendo que faltam orientações curriculares que apóiem educadores na compreensão das
inovações metodológicas e nas temáticas adequadas ao universo desse público. Indica que a
orientação do material até então existente, a Proposta Curricular para o 1º Segmento do
Ensino Fundamental, elaborada por Ação Educativa e utilizado pelos sistemas públicos de
ensino, segue em subsídio ao trabalho pedagógico na EJA, não se estabelecendo um currículo
146
obrigatório a ser implementado em nível local, regional ou nacional, o que estimula o debate
em torno da questão curricular e a busca de outras propostas.
Acentuando a meta prioritária de assegurar o ingresso, a permanência e a conclusão do
ensino fundamental com qualidade, em parceria com estados, municípios e sociedade civil a
todos os brasileiros de 15 anos e mais que não tiveram acesso à escola, ou dela foram
excluídos precocemente, o documento afirma que o MEC implementa um conjunto de ações
visando à ampliação da oferta, recuperação e melhoria da escola pública e valorização do
professor. (BRASIL, 2003 In: IRELAND, MACHADO, PAIVA, 2004, p. 201). Na
conclusão, o documento aponta o que ocorreu nos últimos seis anos, prestando contas das
ações de EJA, finalmente, à Conferência, tendo em vista os acordos de Hamburgo.
Uma das ocorrências a que o MEC atribui importância diz respeito aos fóruns
permanentes de educação de jovens e adultos, naquela ocasião já existentes em quinze estados
brasileiros, o que teria promovido, segundo o texto, ampla discussão com a sociedade sobre as
políticas públicas para jovens e adultos, configurando avanço democrático na área.
Outra, as formas de parceria com instituições governamentais e não-governamentais,
“visando resgatar a dívida social que tem com essa camada da população” (BRASIL, 2003 In:
IRELAND, MACHADO, PAIVA, 2004, p. 202). Informa ter apoiado financeiramente cerca
de 3.136 instituições governamentais e dez não-governamentais, em todas as unidades da
federação, assim como dá destaque ao crescimento de matrícula no período de 2000 a 2002,
nas Regiões Norte e Nordeste do Brasil de 48% e 102,5%, respectivamente, e
conseqüentemente, o aumento em 104% no montante de recursos transferidos. Destaca, por
fim, a criação da SEEA, em 2003, para elaboração e execução de políticas públicas com vistas
à superação do analfabetismo no Brasil e o lançamento do Programa Brasil Alfabetizado
(BRASIL, 2003 In: IRELAND, MACHADO, PAIVA, 2004, p. 203).
Apesar de o Brasil, naquele momento, demonstrar a retomada dos compromissos com
a EJA, não consegue realizar o esperado balanço dos seis anos pós-Hamburgo, pelo fato de
concentrar a descrição de suas ações no período mais recente de atuação governamental.
Mesmo que os dados não fossem de relevo — e até admite-se que não tenham sido, face à
opção política do governo anterior —, a memória desse tempo e sua crítica deixam de ser
feitas, denotando a parcialidade, também, com que se assume o compromisso internacional.
Além dessa questão, a crítica da sociedade sobre a prioridade para a alfabetização, e as
tensões geradas pela pressão dos fóruns, não aparece, se não pelo enaltecimento do papel
social que estes têm exercido. Se é verdade que conferir a eles legitimidade é significativo,
147
não é verdade que estes tenham se alinhado sem crítica à política do MEC, o que exigiria
“passar a limpo” a história desse tempo, para que o jogo de poder e as disputas contra-
hegemônicas pudessem aflorar multifacetadamente.
44..1144 GGRRUUPPOO DDEE AALLTTOO NNÍÍVVEELL DDEE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO PPAARRAA TTOODDOOSS —— DDEECCLLAARRAAÇÇÃÃOO DDEE BBRRAASSÍÍLLIIAA
Chefes de Estado, Ministros, dirigentes de instituições e agências internacionais,
governamentais e não-governamentais, reunidos de 8 a 10 de novembro de 2004 em Brasília,
a convite do Diretor Geral da Unesco, participaram da quarta reunião do Grupo de Alto Nível
de Educação para Todos. A primeira declaração feita à comunidade internacional é a de que
não alcançaram a meta de assegurar um número igual de meninos e meninas na educação
fundamental e básica, antes de 2005, encontrando-se ameaçada a meta de alcançar a educação
com igualdade de gênero e educação primária universal para todos que estão fora da escola
até 2015, assim como todas as demais metas da Educação para Todos. O acesso à educação
vincula-se ao imperativo da qualidade, as metas depois de Dacar vêm melhorando, e a
despeito de mais 100 milhões de crianças nas escolas, no esforço dos países, desde 1990,
segue o enorme contingente dos que não concluem os níveis mais elementares, dos
analfabetos e dos grupos marginalizados de direitos, exigindo pensar políticas integradas para
diferentes problemas que atingem concomitantemente as mesmas populações pobres do
mundo. Reafirmando os problemas da maioria das questões reiteradas em todas as
conferências e reuniões internacionais, a Declaração enfatiza três pontos a serem enfrentados
com primazia: gênero e educação de meninas; professores e recursos financeiros. O indicativo
de data da próxima reunião do Grupo aponta para 28 a 30 de novembro 2005 e o país a
República Popular Democrática da China, sob o tema alfabetização.
Como se observa pela Declaração, as questões referentes à
alfabetização/escolarização de jovens e adultos, por não ser tratada como prioridade,
apresenta, nos dados da educação, a tendência de outras reuniões mais gerais, consonantes
com as orientações das agências que continuam priorizando os investimentos na educação de
crianças, como forma preventiva ao analfabetismo, com ênfase na educação do campo.
44..1155 AALLGGUUMMAASS CCOONNQQUUIISSTTAASS DDEE HHÉÉRRCCUULLEESS
Dos muitos eventos, seminários, conferências recolhidos, que em absoluto esgotam a
riqueza desse recorte histórico que me propus fazer, assinalando principalmente os eventos
internacionais protagonizados pela Unesco, pode-se ir verificando a recorrência de
148
concepções e perspectivas nos documentos sistematizadores, que assumem sentidos e fazem
emergir novas intencionalidades, à mercê dos cenários que mudam. Nesses cenários em
mudança, a educação de jovens e adultos vem lutando — e resistindo — pelo espaço de
existir/não-existir; ser/não-ser, em busca da constituição de um lugar de direito para se fazer a
humanidade de muitos homens e mulheres, que desde muito jovens vivem destituídos do
direito, negado convictamente pelos dirigentes em muitos governos do mundo,
convincentemente justificando a iniqüidade das escolhas políticas. Nos percursos históricos, o
embate, o bom combate, tem demonstrado que o risco, inerente à aventura da vida, consegue
produzir saídas, alternativas para reinventar a educação e a vida.
149
55.. OO DDIIRREEIITTOO ÀÀ EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO PPAARRAA TTOODDOOSS NNOO BBRRAASSIILL:: CCOONNQQUUIISSTTAASS
HHIISSTTÓÓRRIICCAASS EE PPEERRSSPPEECCTTIIVVAASS NNAA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE JJOOVVEENNSS EE AADDUULLTTOOSS
Cabe acrescentar que, mesmo independentemente desse ideal de cultura, a simples alfabetização em massa não constitui talvez um benefício sem-par. Desacompanhada de outros elementos fundamentais da educação, que a completem, é comparável, em certos casos, a uma arma de fogo posta nas mãos de um cego. (BUARQUE DE HOLANDA, 1995, p. 166).
Para melhor compreender os caminhos como esse direito à educação vem-se fazendo
no país, no sentido de consolidar um espaço de igualdade de condições para a participação de
todos na vida social — princípio da cidadania e da democracia —, encaminho este capítulo
pelo percurso nacional, naturalmente ligado ao percurso internacional, porque
sincronicamente acontecidos e com imbricações concomitantes, mas separados pela escritura,
para efeito de facilidade da argumentação. No plano nacional o percurso encontra-se marcado
não apenas por determinados momentos-símbolo da educação de adultos e das lutas de
resistência pela educação popular, historicizados por autores viventes em muitos casos do
tempo histórico em que se deram, mas também marcado pela história recente dos que,
vivendo e fazendo a EJA, são personagens ativos dessa história, que busco compreender sob a
perspectiva do direito e da democracia. Esse percurso incorpora, posteriormente, as
expressões da EJA reveladas pelos programas e projetos, suas concepções e sentidos
atribuídos à área nos últimos anos, para cumprir o direito e consolidar a perspectiva
democrática.
55..11 EEVVOOCCAANNDDOO OO MMIITTOO DDEE SSÍÍSSIIFFOO:: DDIIRREEIITTOO FFOORRMMAALL EE RREEAALLIIDDAADDEE SSOOCCIIAALL
No Brasil, pode-se observar, acompanhando estudos sobre a educação nas
constituintes brasileiras (FÁVERO, 2001), como só em 1934, pela primeira vez, a
Constituição Federal declara que “a educação é direito de todos e deve ser ministrada pela
família e pelos poderes públicos (art.149)”. Segundo Rocha (2001, p. 111), um dos autores da
coletânea de artigos organizada por Fávero, essa declaração traduz, por parte dos legisladores,
o lado “histórico-crítico inovador (que) estendeu-se também à renovação do campo
educacional”. E segue afirmando que “a concepção doutrinária dos renovadores é a de
considerar que o Estado moderno constitucional exige que se faça a afirmação da educação
como um direito individual à semelhança do direito ao trabalho, à subsistência etc., já
consagrados nas constituições modernas”. (ROCHA, 2001, p. 125).
150
Bosi (apud FÁVERO, 2001, p. 249), analisando a educação e a cultura nas
constituições brasileiras, afirma que no Império e na República Velha a educação foi tratada
como assunto privado, e que tanto a Constituição de 1967, quanto a Emenda de 1969, durante
o regime autoritário, mais ainda se prestam a confundir público e privado, antes separados
pela Constituição de 1934, no tocante, principalmente, aos recursos públicos. Legitimando o
projeto nacional do golpe militar, tanto a Constituição Federal de 1967, quanto a Emenda de
1969, e todas as intervenções decorrentes na área educacional, asseguram o mínimo à
educação, assim como adequam “o projeto educacional, em todos os níveis e em todas as
modalidades de ensino e da formação profissional, ao novo projeto nacional” (FÁVERO,
2001, p. 253), marcado pela relação educação e desenvolvimento e pela idéia de educação
como investimento. Na Emenda Constitucional de 1969 (Art. 176, § 3º incisos I e II) aparece,
pela primeira vez, a educação como dever do Estado, assegurado, apenas, o ensino primário
obrigatório para todos, dos sete aos 14 anos como direito. Baia Horta (1998, p. 24) assinala,
ainda, que essa mesma Constituição “retoma dispositivos legais presentes na educação
brasileira desde o Império, relacionando a obrigatoriedade escolar com a faixa etária e com o
nível de ensino”. Mais tarde, a Lei nº. 5692/71 consagra esta relação (constante nos Art. 176 e
178 da Constituição), entendendo o ensino primário como o de 1º Grau, já de oito anos, agora,
e de obrigatoriedade dos sete aos 14 anos.
Mas é a “Constituição Federal de 1988 que fecha o círculo com relação ao direito à
educação e à obrigatoriedade escolar na legislação brasileira, recuperando o conceito de
educação como direito público subjetivo, abandonado desde a década de 30” (BAIA HORTA,
1998, p. 25), cuidando, segundo o autor, para que a proteção ao direito estivesse assegurada.
Mas a assunção da educação como direito público subjetivo amplia a dimensão democrática da educação, sobretudo quando toda ela é declarada, exigida e protegida para todo o ensino fundamental e em todo o território nacional. Isto, sem dúvida, pode cooperar com a universalização do direito à educação fundamental e gratuita. O direito público subjetivo auxilia e traz um instrumento jurídico institucional capaz de transformar este direito num caminho real de efetivação de uma democracia educacional. (CURY, BAIA HORTA, FÁVERO, 2001, p. 26).
Pela formulação constitucional, e no entendimento dos autores, a perspectiva do
direito como caminho da efetivação da democracia educacional inaugura não apenas para as
crianças, mas principalmente para jovens e adultos, uma nova história na educação brasileira.
É também Cury, na qualidade de relator do Parecer nº. 11/2000 da Câmara de
Educação Básica do Conselho Nacional de Educação – CNE, que estabelece as Diretrizes
151
Nacionais Curriculares para a EJA, discorrendo em um dos muitos momentos em que o faz,
em bela defesa do direito à educação para todos e na linha de argumentação que segue, quem
assim se refere à nova concepção de EJA, sua vinculação com a redemocratização dos anos
1980 e a ampliação da noção de direito:
[...] é no processo de redemocratização dos anos 80 que a Constituição dará o passo significativo em direção a uma nova concepção de educação de jovens e de adultos. Foi muito significativa a presença de segmentos sociais identificados com a EJA no sentido de recuperar e ampliar a noção de direito ao ensino fundamental extensivo aos adultos já posta na Constituição de 1934. (BRASIL, 2000, p. 21).
Poder-se-ia questionar em que medida a Constituição Federal de 1988 agregou, com
êxito, os direitos coletivos, ou anexou princípios destes, tratando-os, no entanto, como direitos
individuais. Apenas após a Assembléia Constituinte que promulgou o texto da atual
Constituição brasileira em 5 de outubro de 1988, e depois de muitas lutas e tensões no
plenário, defendendo interesses públicos e privados, e de intensas negociações com instâncias
da sociedade organizada48, a educação volta a assumir o caráter de direito de todos, vista
como direito social (Cap. II, Art. 6º), ao lado da saúde, do trabalho, do lazer, da segurança, da
previdência social, da proteção à maternidade e à infância, da assistência aos desamparados e
tratada como direito individual no Capítulo III, Art. 205, 206, 208. Embora exista a
preocupação de assegurá-la como direito de todos, não se confere a ela o status de direito
coletivo. Constituída como direito público subjetivo (Art. 208, VII,§ 1º), traz a dimensão
individual expressa, no caso de ações contra o poder público que deixe de oferecer o ensino
obrigatório. Este ensino obrigatório, de nível fundamental, é garantido na Constituição
Federal de 1988, como direito de todos, pela seguinte formulação, já incorporando a redação
dada pelo Inciso I da Emenda Constitucional 14 de 1996:
[...] Art.208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
I – ensino fundamental obrigatório e gratuito assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria; [...]
A Emenda Constitucional 14 trouxe, quando realizada, uma polêmica discussão sobre
a retirada da obrigatoriedade da oferta do ensino fundamental gratuito, tal como formulado no
texto constitucional original. À primeira vista, alterar a formulação original de “ensino 48 É possível admitir que esses dados venham mudando, face às intervenções que o governo federal vem fazendo na área, desde 2003, com a assunção de Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência, e a defesa da alfabetização para todos os brasileiros não-alfabetizados, por intermédio do Programa Brasil Alfabetizado.
152
fundamental obrigatório e gratuito para todos os que a ele não tiveram acesso na idade
própria” para esta anteriormente reproduzida, pode significar que a oferta fica comprometida
como dever do Estado. Mas há a compreensão, também, expressa, inclusive, pelo legislador,
de que a questão em jogo não era essa, mas a de retirar dos sujeitos jovens e adultos a
obrigatoriedade do cumprimento do ensino fundamental, como se faz com crianças, pela
impossibilidade de exigi-la. Assim sendo, não se trataria de desobrigar o Estado da oferta
gratuita do ensino fundamental a quem quer que seja, mas de deixar os sujeitos jovens e
adultos livres para decidir por ela. Ou seja, garante-se o direito para todos, mas se deixa ao
livre arbítrio, no caso de jovens e adultos não escolarizados na chamada “idade própria” —
conceito também discutível quando se trata de aprendizagem para além da escolarização, mas
ao longo da vida, como vem sendo conceituado na educação de jovens e adultos —, o direito
de escolha para decidir pela assunção da oferta.
Essa questão foi bastante questionada pelos educadores e pesquisadores da área no
governo FHC, quando o MEC não oferecia educação de jovens e adultos (entenda-se essa
oferta como a de recursos substantivos e políticas públicas), alegando não haver demanda.
Analisando-se o texto da Emenda 14, assim como o da formulação original na interpretação
que estou assumindo, percebe-se que, por ser dever do Estado a oferta, prescinde-se de
demanda para que os sistemas sejam organizados independentemente de haver ou não
procura. Acrescente-se que, a imperar a lógica governamental, a demanda pouco existiria
(como efetivamente aconteceu), porque historicamente a procura pela educação de jovens e
adultos, especialmente no nível da alfabetização, nunca foi expressiva, pelos estigmas que
carregam os sujeitos quanto ao que significa ser analfabeto, o que muito freqüentemente
impede que eles se assumam em tal condição. O estigma, que vitima duas vezes o analfabeto,
porque além da vergonha ainda o coloca como culpado pelo seu não-saber, traz arraigada a
não-consciência do direito, e quando a chance reaparece, é percebida como prêmio, como
bênção. Para a lógica do poder que rejeita e nega o direito a esses jovens e adultos, é
confortável que assim seja, porque a demanda permanece contida pela opressão do próprio
estigma, sem que haja cobrança dos beneficiários do direito quanto a políticas públicas que
traduzam esse direito em oferta.
Direito à educação, assim entendido, tem existido como fundamento à idéia de
educação como condição necessária, ainda que não suficiente, para se pensar o modelo
democrático de sociedade, no qual o papel do Estado, como garantidor desse direito, tem sido
insubstituível.
153
Cury, no Parecer CEB nº. 11/2000, assim se expressa:
O direito à educação para todos, aí compreendidos os jovens e adultos, sempre esteve presente em importantes atos internacionais, como declarações, acordos, convênios e convenções.
Veja-se como exemplo, além das declarações assinaladas neste parecer, como a Declaração de Jomtien e a de Hamburgo, a Convenção relativa à luta contra a discriminação no campo do ensino, da UNESCO, de 1960. Essa Convenção foi assinada e assumida pelo Brasil mediante Decreto Legislativo n.º 40 de 1967 do Congresso Nacional e promulgada pela Presidência da República mediante o Decreto n.º 63.223 de 1968. (BRASIL, 2000, p. 20).
O mesmo autor, em nota ao último parágrafo, chama a atenção para o fato de a
Constituição Federal dizer, no art. 5º, § 2º, que os direitos e garantias expressos na
Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou
dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, preceituando
ainda que a celebração de tais atos é competência privativa da Presidência da República e
sujeita a referendo do Congresso Nacional. (BRASIL, 1988, art.84, VIII). O que equivale
dizer que, para que qualquer um dos tratados ser incorporado ao ordenamento jurídico,
ganhando força de lei federal, precisa tomar a forma de decreto-legislativo.
Para que o direito, entretanto, se faça prática, é preciso mais do que sua declaração
legal. Assim é que se chega ao novo século e milênio com dados colhidos pelo Censo de 2000
que revelam a face cruel da desigualdade no tocante não apenas ao campo econômico, mas
também no tocante ao direito social da educação. Vários estudos, como o Mapa do
analfabetismo realizado pelo INEP, revelam com clareza o quanto a sociedade brasileira tem
sido vítima das políticas e conduções de seqüentes governantes imóveis ao problema do
analfabetismo e da interdição histórica de brasileiros e brasileiras aos instrumentos da leitura e
da escrita.
55..11..11 IInnddiiccaaddoorreess ee ddaaddooss eedduuccaacciioonnaaiiss:: aauuxxíílliioo àà ccoonntteexxttuuaalliizzaaççããoo ddoo ddiirreeiittoo àà EEJJAA
No interessante trabalho publicado em 2000 pelo Instituto Nacional de Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (INEP), denominado Mapa do analfabetismo, alguns dados
ajudam a compreensão de como o direito à educação esteve sempre tão vilipendiado no
Brasil. Um deles é o de que, em 1886, o percentual da população escolarizada no Brasil era de
1,8%, enquanto na Argentina era de 6%. Em 2000, no ranking do Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH), enquanto o Brasil ocupava a 73ª posição, em situação inferior a muitos países
154
da América Latina, a Argentina ocupava o 34º lugar. Chile, Costa Rica, Trinidad e Tobago,
México, Colômbia, todos esses à frente do Brasil, nos estudos do PNUD e UNESCO.
Embora a queda percentual do analfabetismo de maiores de 15 anos tenha caído
fortemente no século XX, passando de 65,3% em 1900 para 13,6% em 2000, esse percentual
ainda corresponde ao número absoluto de 16.295 milhões, nada desprezível, porque são
pessoas, e não percentuais, que nos obrigam a um acurado senso crítico de admitir o quanto
nos envergonham esses dados de apartação. Desde 1953 Anísio Teixeira (1971) assinalava
essa preocupação de que os números absolutos é que importam, não nos devendo vangloriar
com os percentuais em queda. Em 2000, a população analfabeta, em números absolutos,
representava duas vezes e meia o número de 1900.
O Mapa ainda alerta, no entanto, que, se considerarmos o conceito de analfabetismo,
que evolui historicamente, adotando a idéia de que é analfabeto funcional quem não cumpriu
quatro anos de escolaridade, esse número pula para mais de 30 milhões, considerando a
população de 15 anos e mais. Do ponto de vista das diversidades regionais, o Mapa confirma
o Nordeste como o campeão da desigualdade, com quase 8 milhões de analfabetos, quase
50% do total do país. Mas, na distribuição de analfabetos absolutos entre os estados, Bahia,
São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco e Ceará respondem por cerca de metade deles no país.
Nos 100 primeiros municípios em concentração de analfabetos, do ponto de vista do
direito, a situação da população de mais de 60 anos é crítica, porque representa 22,6% de
analfabetos, seguida pelo mesmo índice entre os de 30 a 59 anos (1.828.686), o que
corresponde a cerca de mais 700.000 pessoas em relação ao número de idosos (1.153.770).
Uma das questões também relevante é a que 35% dos analfabetos já freqüentou a
escola, e o Mapa sugere que a dispersão da taxa de analfabetismo entre as faixas de idade,
pode indicar a necessidade de estratégias específicas no tocante a políticas públicas para os
diferentes segmentos. Além disso, a continuidade que não vem sendo assegurada para os
recém-alfabetizados indica o risco do analfabetismo funcional em curto tempo, sem o
correspondente aumento da escolaridade da população.
Muitos são os indicadores disponíveis, sinalizando no sentido da afirmação de
Semeraro (cf. 1999, p. 6) quanto à convivência de um país ainda não realmente moderno e
com expressões sociais e culturais de conotação tipicamente pós-modernas, oriundas da face
metamorfoseada do capitalismo implantado rápida e acriticamente. Se por um lado vive-se a
influência da mais moderna tecnologia da informação e da robótica, por outro, por exemplo,
155
convive-se com um contingente de cerca de 13% de analfabetos, que participam da cultura
escrita e de todas as suas construções, porque nenhuma organização na sociedade se faz
voltada aos que não sabem ler, sem sequer dominar o código do sistema escrito. Segundo o
IBGE, em dados referentes à coleta feita pelo Censo 2000, considerando-se a distribuição da
população de 10 anos ou mais de idade, observa-se que 31,4% tinha até três anos de estudo,
ou seja, que o terço da população brasileira que conseguiu ir à escola não chega à metade do
ensino fundamental de oito anos. O Piauí e o Maranhão detêm as taxas mais altas (56,6% e
53,2%, respectivamente) e o Distrito Federal (16,1%) a mais baixa. Levando-se em conta a
distribuição dos estudantes por nível de ensino freqüentado, verifica-se que o ensino
fundamental absorve o maior número de alunos. Nesse nível a matrícula atinge 58,2%, sendo
que nas regiões Norte e Nordeste esta proporção é ainda maior, 62,6% e 64,1%,
respectivamente. Entre os jovens de 15 a 17 anos de idade, a taxa de escolarização passou de
55,3% para 78,8%, o que significa dizer que os jovens estão tendo mais acesso à escola e nela
permanecem por mais tempo, embora os dados de conclusão do ensino fundamental ainda
demonstrem um distanciamento forte em relação aos dados de ingresso, e os dados do ensino
médio não revelam que essa escolarização ampliada se faça nesse nível de ensino, como era
de se esperar, pela faixa etária envolvida. Em relação às pessoas de 18 e 19 anos de idade, a
proporção é menor: apenas 50,3% do grupo estava estudando e, entre os jovens de 20 a 24
anos, a proporção é de 26,5%. No grupo de 25 anos ou mais de idade, embora a taxa de
escolarização seja baixa, e tenha triplicado de 1991 para 2000 — passou de 2,2% para 5,9%
—, é insuficiente para revelar algum movimento efetivo de retorno à escola por parte dos que
interromperam os estudos. Essa afirmação é ainda mais contundente quando se explicita que o
indicador inclui desde os estudantes que estão aprendendo a ler e a escrever até os que
estavam na pós-graduação. Pela primeira vez o Censo revela a freqüência escolar pela rede
freqüentada: 79% dos alunos estão matriculados na rede pública de ensino, o que reforça a
necessidade de compreensão da oferta pública de educação como direito. A despeito desses
dados, o número absoluto de sujeitos de 15 anos ou mais (que representam 119,5 milhões de
pessoas do total da população) sem conclusão do ensino fundamental (oito anos de
escolaridade), como etapa constituidora do direito constitucional de todos à educação, é ainda
de 65,9 milhões de brasileiros. Da população economicamente ativa, 10 milhões de pessoas
maiores de 14 anos e integradas à atividade produtiva são analfabetas ou subescolarizadas.
Atualizando esses dados, a PNAD de 2001 aponta que os analfabetos com mais de 15
anos representam 12,4% da população. No Gráfico 1, observa-se a distribuição desigual da
156
Média de anos de estudo da população de 10 anos ou mais de idade
Cor ou raça Grandes Regiões
Total Branca Preta Parda
Brasil (1) 6,1 7,0 5,0 5,0 Norte (2) 6,1 7,0 5,2 5,7 Nordeste 4,7 5,7 4,2 4,3 Sudeste 6,8 7,4 5,4 5,7 Sul 6,6 6,8 5,5 5,1 C-Oeste 6,3 7,2 5,2 5,6
população analfabeta, que pode estar associada, nas regiões, às condições econômicas, e à
rarefação na ocupação do território, no Norte do país. Haddad (2002) já assinalava que os
analfabetos não são pobres porque são analfabetos, mas são analfabetos porque são pobres.
Gráfico 1
Taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais, segundo as grandes regiões. Brasil, 1999/2001
Taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais de idade. Brasile Grandes Regiões - 1999/2001
13,311,6
26,6
7,8 7,8
10,812,4
10,6
24,3
7,5 7,1
10,2
Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste
1999 2001
%
Fonte: IBGE, PNAD 1999 e 2001.
Como reflexo das desigualdades, negros e pardos com mais de dez anos de idade
também são mais vitimados nesse processo, com menos anos de escolarização do que
brancos. Nas Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste as diferenças se apresentam de forma
mais aguda, como indicada na Tabela 1, a seguir.
Tabela 1 Média de anos de estudo da população de 10 anos ou mais de idade, por cor ou raça, segundo as Grandes Regiões. Brasil, 2001.
Fonte: IBGE - Síntese de Indicadores Sociais, 2002. (1) Exclusive a população rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá. (2) Exclusive a população rural.
157
A grave situação educacional que os números revelam exige refletir o quanto têm
estado equivocadas as políticas públicas para a EJA, restritas, no mais das vezes, à questão do
analfabetismo, sem articulação com a educação básica como um todo, nem com a formação
para o trabalho, assim como com as especificidades setoriais, traduzidas pelas questões de
saúde, gênero, raça, rurais, geracionais etc. Alterar as políticas públicas no sentido de tornar
indissociável alfabetização e educação básica, como integrantes de um mesmo processo, tem
sido o grande desafio para a EJA no Brasil.
O imenso contingente de jovens que demanda a EJA, resultante de taxas de abandono
de 12% no ensino fundamental regular e de 16,7% no ensino médio, acrescido de distorção
idade-série de 39,1% no ensino fundamental e de 53,3% no ensino médio (BRASIL, 2001),
revela a urgência de tratamento não fragmentado, mas totalizante, sem o que se corre o risco
de manter invisibilizada socialmente essa população, frente ao sistema escolar e, seguramente,
no mundo do trabalho formal, exigente de certificações e comprovações de escolaridade
formal.
Marcadamente quando as políticas públicas voltam-se para o que tem sido chamado de
universalização do atendimento49 e a escola básica deixa de ser elitizada, passando a atender,
preferencialmente, as classes populares, não é o acesso suficiente para dar conta do saber ler e
escrever, porque os fundamentos das práticas pedagógicas permanecem reproduzindo
modelos culturais de classes sociais diversas das dos alunos, produzindo o fracasso escolar e a
chamada “evasão”, o que, ainda hoje, faz sair, mesmo os que chegam ao final, sem dominar a
leitura e a escrita. Este fato tem representado um aumento substantivo de jovens na EJA,
todos com escolaridade descontínua, não-concluintes com êxito do ensino fundamental,
obrigados a abandonar o percurso, ou pelas reiteradas repetências, indicadoras do próprio
“fracasso”, ou pelas exigências de compor renda familiar, insuficiente para a sobrevivência,
face ao desemprego crescente, à informalidade das relações de trabalho, ao decréscimo do
número de postos. Essa presença marcante de jovens na EJA, principalmente nas áreas
metropolitanas, vem desafiando os educadores do ponto de vista das metodologias e das
intervenções pedagógicas, obrigando-os a refletirem sobre os sentidos das juventudes — e de
seus direitos — que permeiam as classes de jovens e adultos.
49 O percentual de cerca de 97% de atendimento significa cerca de três milhões de alunos, na idade e etapa obrigatórias, fora da escola. Os dados do acesso foram anunciados sempre pelo Ministro Paulo Renato Souza, no Governo Fernando Henrique Cardoso, como conquista política, sem análise de que não representavam nem permanência, nem sucesso na escola básica.
158
Distorções idade-série e idade-conclusão também vêm influenciando a composição de
um contingente jovem na EJA. Na prática, a grande maioria de alunos de EJA provém de
situações típicas dessas chamadas “distorções”.
Gráfico 2 Distorção idade-conclusão no ensino fundamental e médio na rede pública. Brasil, 2004
0%
50%
100%
2002 2001 2000
Ensino FundamentalEnsino Médio
Fonte: MEC/INEP/EDUDATA, 2004.
Com um leve decréscimo nas porcentagens, em três anos (2000, 2001 e 2002), no
ensino fundamental, o número de alunos concluintes com idade superior a 14 anos, em 2000,
equivalia a 49,3%; em 2002 correspondia a 43,5%, o que indica haver ainda um longo
percurso até que os sistemas de ensino possam corrigir o fluxo de matrículas, melhorar o
rendimento dos alunos, adequar o calendário escolar, dentre outros fatores que podem
contribuir no enfrentamento dos desafios que modifiquem o quadro de exclusão precoce de
crianças, adolescentes e jovens das escolas públicas brasileiras.
No ensino médio, há também queda nos índices de distorção, embora em 2000, do
total de alunos concluintes dessa etapa, 55,1% se encontrava fora da idade prevista para o
término, ou seja, tinha mais de 18 anos; em 2002, o percentual cai para 52,4%, significando
que ainda mais da metade de alunos concluintes se encontra na mesma situação.
Gráfico 3 Distorção idade-série no ensino fundamental e médio na rede pública brasileira, 2000, 2001, 2002, 2003
2000 2001 2002 2003
60%
40%
20%
0%
!ª A 4ª Série5ª A 8ª SérieEnsino Médio
Fonte: MEC/INEP/EDUDATA, 2004.
159
Observando-se o Gráfico 3, verifica-se que os percentuais são proporcionais à
progressão na educação básica: os menores níveis de distorção idade-série estão no primeiro
segmento, crescendo no segundo segmento do ensino fundamental, e ampliando-se, ainda
mais, no ensino médio. Essa observação permite dizer que os fatores de distorção podem estar
direta e indiretamente relacionados à organização e à estrutura dos sistemas de ensino, que
acabam por impedir ou dificultar o fluxo escolar (dentre alguns fatores, destaca-se a
inexistência de vagas, as precárias condições de oferta, a falta de professores, a baixa
qualificação dos profissionais, a inadequação do calendário, além da adoção de um projeto
pedagógico que muitas vezes especifica a importância da diversidade, mas trabalha com uma
concepção de aluno modelar). No ano de 2000, o primeiro segmento do ensino fundamental
apresentava uma taxa de distorção de 38,8%, índice que se eleva para 53% no segundo
segmento e, no ensino médio, alcança 60,1%. No ano de 2003, percebe-se que há uma
sensível melhora desse fluxo, refletida nas taxas de distorção que sofrem queda de 9,5% para
o primeiro segmento do ensino fundamental (29,3%), de 7,2% para o segundo segmento
(45,8%) e de 5,6% para o ensino médio (54,5%).
Indicadores educacionais, como os apresentados, ganham vida quando se circula nos
diferentes espaços da EJA existentes em todo o país, constatando-se que, atrás dos números,
há milhões de pessoas que convivem cotidianamente com condições de oferta e de
permanência precárias; com má qualidade de ensino e com uma modalidade educacional
desvalorizada socialmente. A ausência de oportunidades concretas para vivenciar trajetórias
de sucesso no sistema educacional acaba por culpabilizar a vítima, ou seja, cada sujeito, por
mais uma história de fracasso. Frente aos descaminhos da EJA, torna-se imperativo assumir
uma postura vigilante contra todas as práticas de desumanização.
Esses dados se agravam quando a eles se junta o que revela o quadro dos infratores de
18 a 29 anos, jovens pobres, com escolarização precária, e que privados da liberdade passam
ainda a ser privados de qualquer chance de escolarização, pela insuficiência de atendimento
no sistema penitenciário. Julião (2003, p. 27-28), estudando o sistema penitenciário do Rio de
Janeiro e a oferta pública de ensino que se faz em uma de suas penitenciárias, aponta que os
dados do Censo Penitenciário de 1995 identificavam 129.000 presos no Brasil, país com a
quarta população carcerária do mundo. Desses, 96% são do sexo masculino, jovens, dos quais
53% entre 18 e 30 anos, 42% da população carcerária total composta por negros e mulatos,
75% com escolaridade inferior ao ensino fundamental e 95% em situação de pobreza. Dados
mais atualizados de 2001, do Informações Penitenciárias, do Ministério da Justiça,
160
demonstram a ampliação desse número para 222.330 presos, dos quais 4,4% são mulheres
(9.574), e 95,6% homens (212.756). No caso do Rio de Janeiro, segundo o jornal O Globo (8
ago. 2004), 53% dos internos integram a faixa etária de 18 a 24 anos, que somados aos 19%
de 25 a 29 anos, totalizam uma população de 72% dos condenados com menos de 30 anos.
Como se observa, além da privação da liberdade, gera-se sob a guarda do Estado uma nova
exclusão: a do direito a acessar a escolarização, por não ser ela ofertada para sujeitos
apenados, na maioria dos estabelecimentos prisionais, como dever do Estado.
55..22 TTEENNSSÕÕEESS CCOONNCCEEIITTUUAAIISS EE SSEENNTTIIDDOO DDOO DDIIRREEIITTOO ÀÀ EEJJAA
Quando se pensa a educação de crianças, admitir o seu não atendimento causa
perplexidade e não resta qualquer dúvida, a ninguém, que este direito tem de ser cumprido.
Nenhum cidadão não-escolarizado optaria, em sã consciência, por escolher por sua educação
primeiro, em detrimento da educação de seus filhos. Pelo contrário, a afirmação corrente entre
esses sujeitos é a de que “não quero que meus filhos sejam iguais a mim, analfabetos”50.
Somente quando conseguem assegurar o que para eles não foi possível, é que se dispõem a
pensar na própria educação, o que freqüentemente implica um longo tempo e adiamentos
constantes, já que a essa garantia sucedem-se e acoplam-se outras, todas relativas a não viver
a situação humilhante de ser pobre, analfabeto, excluído. O estigma do analfabetismo não se
encontra apenas no preconceito dos que sabem ler e escrever (os estabelecidos) em relação
aos que não sabem, mas está fortemente interiorizado nos outsiders, o que Elias e Scotson
(2000), chamam de vínculo duplo:
[...] a estigmatização, como um aspecto da relação entre estabelecidos e outsiders, associa-se, muitas vezes, a um tipo específico de fantasia coletiva criada pelo grupo estabelecido. [...] transforma-se, em sua imaginação, num estigma material — é coisificado. [...] O sinal físico serve de símbolo tangível da pretensa anomia do outro grupo, de seu valor humano inferior, de sua maldade intrínseca; [...] (ELIAS, SCOTSON, 2000, p. 35-36).
50Afirmações desse tipo são ouvidas em inúmeros relatos de sujeitos em turmas de alfabetização, ou em entrevistas feitas com não-alfabetizados. Em um projeto de vídeo que produziu Sujeitos, falas, histórias, em 2000, como resultado da disciplina Prática de Ensino e Estágio Supervisionado em Educação de Jovens e Adultos, na Faculdade de Educação da UERJ, gravada com sujeitos-alunos do Projeto de Extensão Educação, Vida e Trabalho, à época coordenado pela Profª. Edmée Salgado, hoje sob a minha coordenação, por aposentadoria da referida professora, pode-se observar como todos os entrevistados assinalam o compromisso que tiveram com seus filhos para que estes não fossem iguais na condição de não-alfabetizados, nem de pouco escolarizados. As histórias de luta, de estigma, de dor que passaram, fizeram com que optassem por, primeiro, educar seus filhos, para que não vivessem a mesma condição. Falavam com orgulho de filhos que estudaram, vários tinham filhos formados e uma delas, Sônia, cabeleireira, tinha, inclusive, uma filha cursando a habilitação de Educação Artística na Faculdade de Educação da UERJ, uma outra filha professora formada em nível de ensino médio e outros dois menores também na escola, regularmente matriculados. Com altivez falavam da luta, de não se sentirem derrotados, mas vencedores, no momento em que seu tempo também chegara.
161
Não seria o dedo polegar a materialização do estigma? Não é este o gesto simbólico
quando se quer humilhar alguém por não ser capaz de compreender alguma coisa? Quantas
pessoas se excluem de determinadas situações exatamente pelo temor de terem de ser
submetidas ao constrangimento de “assinar” com o polegar?
Ainda que de oferta pública insuficiente51 e qualidade discutível, nenhuma dúvida
resta, já se assinalou, quanto à necessidade de o Estado garantir o direito à educação para
todas as crianças. Os dados do MEC que afirmam a universalização do ensino fundamental de
7 a 14 anos, da ordem de 97%, não são submetidos a críticas por parte da sociedade, nem
quanto à qualidade, nem quanto às formas de atendimento. Esse atendimento nem sempre é
feito em escolas públicas, já que grande parte das vagas é comprada às escolas privadas, sob o
sistema de bolsas de estudo, o que faz com que os governos prescindam de investimentos
públicos para a construção de novas unidades escolares e para a composição de quadros
profissionais, além de não sujeitar as escolas privadas a fiscalizações condizentes com a
responsabilidade social que deveriam assumir. Além disso — e os dados dos gráficos
anteriores revelam —, acesso não tem sido suficiente para garantir escolarização, porque não
se consegue a permanência, nem o sucesso dos alunos no ensino fundamental, nem no médio.
Exames integrantes do sistema de avaliação do MEC/INEP também revelam o quanto a
qualidade — que como conceito deve ser precisada, em qualquer caso — qualquer que seja o
atributo a ela dispensado, é baixa na escola brasileira, seja pelos anos de escolaridade, seja
pelos resultados alcançados pelos alunos quando submetidos a diversos tipos de avaliação,
segundo o que o MEC, nos anos do governo Fernando Henrique, definiu como básico e
nacional.
Pode-se afirmar que a escola brasileira continua, por assim dizer, produzindo em
grande parte o analfabetismo e a subescolarização, expulsando dela alunos (e até mesmo
professores) que não encontram respostas para o que buscam. Os primeiros, porque não
aprendem (segundo os modelos escolares), têm na escola um dos modelos constitutivos das
formas de exclusão social, reproduzida sob a forma de preconceitos, rótulos, discriminações,
tanto étnicas, quanto sociais e de gênero. Os segundos, porque não conseguem subsistir na
51 Deve-se destacar que o modelo de educação nacional traduzido pelos Parâmetros Curriculares que foram objetos principais da ação política do MEC, na tentativa de garantir, por cima, a qualidade, pela formulação competente de propostas e concepções (segundo um modo de pensar a escola e a educação), não alcançou mudanças concretas na base do sistema — este sim o lugar da prática pedagógica, do fazer e da transformação. Por desprezar os saberes docentes produzidos por professores na prática pedagógica, diante das carências, dos improvisos e da existência real de poucas condições, que acabam definindo graus de autonomia e de criatividade, as propostas, extremamente elitizadas, não conseguiram estabelecer diálogo com os professores que, no máximo, mudam discursos pedagógicos, sem alterar as práticas.
162
condição profissional de professores e abandonam o emprego. Os que ficam, resistindo a
projetos de detratação da escola pública, conseguem em alguns casos formular projetos
alternativos de educação capazes de fazer frente aos interesses populistas e domesticadores de
muitas administrações eleitas. Uns poucos, de escolas bem aquinhoadas, não precisam de
qualquer esforço para que sejam “bem-sucedidos”, porque os alunos, pertencendo a classes
economicamente favorecidas, deixam ao trabalho pedagógico (e até mesmo apesar dele)
pouco a fazer para que tenham sucesso.
Os dados dos que entram no ensino fundamental ainda revelam que cerca da metade,
apenas, o conclui. Dado historicamente resistente, como se observou, sofreu poucas mudanças
nos últimos anos. Se o ensino fundamental, de oito anos obrigatórios vai mal, necessariamente
o nível que lhe segue, o médio, reforça esta condição de exclusão, em primeiro lugar, pela
escassez de matrículas, o que não o disponibiliza para a maioria e, em segundo lugar, por não
ter clareza em suas finalidades e objetivos. O ensino médio, reformado no governo FHC,
criou a dicotomia escola propedêutica x profissionalização, debatendo-se entre os que
defendem o caráter profissionalizante — para as classes populares, evidentemente — e os que
o querem com viés humanista, para se fazer, na prática, nem uma coisa, nem outra,
desfigurado na identidade ainda não-adequadamente constituída.
Se o direito à educação pela via do acesso não mais se põe como problema quando se
trata de crianças, tanto pela existência de consenso social que considera essa oferta prioritária
quanto pela chamada “universalização” alcançada, novos direitos emergem, no entanto, como
por exemplo, o que resume a idéia de educação pública de “qualidade social”, que tem sido a
tônica dos movimentos organizados em defesa de direitos emergentes no campo da educação.
Mas esta questão encerra a lógica do direito apenas para um conjunto etário — as crianças —,
deixando de problematizar o conjunto de jovens e adultos, cujo direito primeiro de acesso ao
ensino fundamental sequer se fez prática, não existindo consenso mesmo entre os que dela
precisam quanto a se fazer prioridade, assim como entre dirigentes e formuladores de políticas
públicas.
Historicamente, nem sempre o direito à educação esteve resguardado. Apesar da
formulação do texto constitucional, no entanto, não se fez prática. A forma como as políticas
públicas conceituam a EJA, e como vêm desenvolvendo ações como oferta pública merece
atenção, especialmente quando vinculam ações de educação ao utilitarismo do voto, ou
defendem este último, sem precisar da primeira. Embora pareça ultrapassada essa
problemática, no “país” que não chega a ser moderno, a utilidade do voto ainda consegue
163
sobrepor-se à da oferta da alfabetização. Assim é que Cury (2001, p. 194), estudando a
cidadania republicana e a educação e relacionando a questão ao voto do analfabeto, mostra
como este último encontrava vozes que lhe eram favoráveis, mas não ao ensino público
obrigatório:
O serviço à pátria, independendo do domínio da escrita, é um serviço voltado para o bem público e, portanto, não se deve diferenciar o cidadão pelo critério de escolarização. O voto deveria ser extensivo a todos. Eis, em síntese, o pensamento de Moniz Freire.52
A história da educação brasileira e, nela, da EJA, tem revezes já amplamente
estudados por alguns pesquisadores (PAIVA, 1973, BEISIEGEL, 1974, principalmente).
Parte dessa história se imbrica com a da educação popular, de que Brandão (2002) tem sido
importante guardião, mas que tem em Osmar Fávero, Aída Bezerra, Nazira Vargas, José
Carlos Barreto e Vera Barreto, dentre outros, protagonistas ativos até os dias atuais,
sintonizados com a história e sua origem, mas também com o tempo em que vivem
contemporaneamente a EJA. História que leva Paulo Freire ao desenvolvimento da Pedagogia
do oprimido, não sem antes passar por uma breve incursão na política pública, no mesmo
governo em que é deposto João Goulart. As ações que passaram com ênfase à história, em sua
maioria, não nasceram do poder público, mas da luta e da resistência social aos projetos de
dominação que, desde a República, conformaram — e ainda conformam — a nação brasileira.
Estudantes e intelectuais, junto a grupos populares, desenvolveram novas perspectivas de
cultura e educação popular. No início dos anos 1960, o Movimento de Cultura Popular,
nascido em Recife; os Centros de Cultura Popular da União Nacional dos Estudantes; o
Movimento de Educação de Base (MEB), ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), representando a Igreja Católica; iniciativas como a da Prefeitura de Natal com a
Campanha "De Pé no Chão Também se Aprende a Ler", tocada pelo educador Moacyr de
Góes; e a Campanha de Educação Popular da Paraíba (CEPLAR), são alguns exemplos do
que foi o fértil período da educação para adultos, pensada na sociedade, enraizada na cultura
popular.
O golpe de 1964 interrompeu a efetivação do Plano Nacional de Alfabetização,
coordenado por Paulo Freire. Programas, movimentos e campanhas foram extintos ou
fechados por constituírem, segundo os novos donos do poder, ameaças à ordem. A educação
popular é minada pela desconfiança e pelas práticas da repressão, que prendem e isolam, até o
52 Moniz Freire, constituinte pelo ES, assim se expressa na sessão de 12 de janeiro de 1891. (ANNAES, I, p. 233).
164
exílio, muitas lideranças. Mas o analfabetismo resiste e expõe as feridas abertas de um país
cujo projeto de desenvolvimento implica a escolarização das massas. A expansão da Cruzada
ABC, entre 1965 e 1967 e, depois de 1970, o Movimento Brasileiro de Alfabetização
(MOBRAL) passam a ser as primeiras respostas do regime.
A educação de jovens e adultos, nas décadas recentes, teve seu campo conceitual tanto
vinculado aos sujeitos a quem se destinava — os adultos — e, por isso mesmo denominava-se
educação de adultos, quanto ao tipo de intervenção pedagógica a ser feita, restrito, no mais
das vezes, à alfabetização e à pós-alfabetização. Também se tem caracterizado por ser,
quando se trata de atendimento de massa, de cunho governamental, mantida por instâncias
oficiais e marcadamente com concepção compensatória, para pessoas consideradas
“culpadas” por não saberem ler e escrever. Quando vivenciada por pequenos grupos de
sujeitos populares adultos, em iniciativas da sociedade, com natureza epistemológica e
ideológica diferente dos projetos/ofertas governamentais, resumidas como experiências,
intencionalmente fortalecendo as populações, tratando seus integrantes como sujeitos
portadores de cultura, saberes e direitos, aos quais se confere poder pelo domínio dos
conhecimentos da leitura e da escrita, tem sido identificada com o que se conhece por
educação popular.
Beisiegel (1974, p. 56-57) em amplo estudo sobre a educação de adultos, discutindo as
origens da educação popular no Brasil, afirma que remonta ao Império o surgimento, pelo
ideário liberal, sob influência do pensamento europeu, da educação para todos nas
constituições brasileiras. Mas afirma, também, que as principais características da evolução da
educação popular, entre nós, localizam-se: na atuação do poder público, que se antecipa às
demandas das comunidades; na idéia de educação que, como dimensão necessária da utopia,
conformaria o instrumento de preparação dos homens para a construção da nova sociedade e,
portanto, do futuro (e que por isso mesmo traria a idéia de obrigatoriedade, devendo ser
imposta a todos). Ressalta que essas características só se esclarecem quando analisadas no
contexto das orientações globais da atuação do Estado, do mesmo modo que a compreensão
dessas origens exige conhecer os caminhos das vicissitudes da educação para o povo, o que
passa pela análise das ideologias em que se exprimem as orientações do Estado. Em
continuidade, Beisiegel (1974, p. 59) afirma que as origens da história da educação de adultos
no Brasil se iniciam nos anos 1940, embora as preocupações — e algumas práticas jesuíticas,
por exemplo — venham de longa data, atendendo ao que se observa como característica da
educação comum para todos os cidadãos, e que se apresenta também como tarefa do Estado,
165
no âmbito das novas orientações de atuação desse Estado, conformadas pelas ideologias que
prevalecem no país nesse período. Assim, localiza alguns marcos significativos da inclusão da
educação de todos os adolescentes e adultos analfabetos entre os objetivos da atuação do
Estado no Brasil:
[...] a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, em 1930; a fixação da idéia de um plano nacional de educação, na Constituição de 1934; a criação do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, no Ministério da Educação e Saúde, em 1938; os resultados do Recenseamento Geral do Brasil, de 1940; a instituição do Fundo Nacional de Ensino Primário, em 1942, e sua regulamentação, em 1945; e, acima de tudo, a criação de um Serviço de Educação de Adultos, no Ministério da Educação e Saúde, em 1947, e a aprovação, nesse mesmo ano, de um plano nacional de educação supletiva para adolescentes e adultos analfabetos. (BEISIEGEL, 1974, p. 68).
Beisiegel (1974, p. 68) chama a atenção, porém, que as profundas mudanças no campo
da educação comum, no Brasil, após 1930, e a inauguração de serviços oficiais para
atendimento às demandas educacionais de adolescentes e adultos analfabetos “se explicam,
por isso mesmo, basicamente, a partir da emergência das denominadas ‘massas populares
urbanas’ como um dos elementos que passam a informar a atuação do Estado brasileiro nesse
período”.
Essa educação de adultos vai, lentamente, pelas práticas, absorvendo para o campo
conceitual os novos sujeitos que a ela chegam, produzidos tanto pela ausência de atendimento
escolar, quanto pelo fracasso no interior das escolas, não mais adultos — que respondem pela
imagem estereotipada que se tem deles, idosos, velhinhos de cabelos brancos —, mas agora
jovens, apartados e expulsos para um sistema53 que inicialmente também não os reconhece
como sujeitos, mas que com o tempo e a pressão da demanda, transforma a concepção
original em educação de jovens e adultos.
55..33 OO PPOODDEERR DDAA SSOOCCIIEEDDAADDEE NNAA CCOONNSSTTIITTUUIIÇÇÃÃOO DDOO DDIIRREEIITTOO ÀÀ EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE JJOOVVEENNSS EE
AADDUULLTTOOSS
Estudos importantes, nos últimos anos (CAMPOS, 1982; SPOSITO, 1993; CAMPOS,
1989) vêm mostrando como os serviços públicos de educação sofrem, para sua oferta, a ação
direta dos demandantes, em busca de direitos. Esses estudos, portanto, explicam as demandas
53 Uso o termo sistema sem nenhuma convicção, porque nem sempre se pode reconhecer a existência de sistema, como organizador das ofertas de educação de adultos.
166
populares e as formas de negociação estabelecidas com os poderes públicos, em defesa dos
serviços que lhes sabem devidos.
Para tratar do poder da sociedade na constituição do direito à educação de jovens e
adultos, nesse item, trabalharei a perspectiva da educação popular, como uma das fontes
desse poder, por um lado, e da luta dos trabalhadores pela educação, por outro.
Dos anos 1950 a 1970 muitas formas de participação social organizada ficaram
conhecidas como educação popular. Segundo Haddad (1994, p. 101):
A EDA54, de fato, acabou por se constituir numa das principais ações educativas dos movimentos organizados da sociedade civil, durante o regime militar. [...] os movimentos educativos de educação popular, [...] se organizaram sob dois influxos: crítica ao Estado autoritário e crítica ao modelo excludente e diretivo da educação e dos sistemas escolares de uma maneira geral.
Beisiegel (1974), apontado anteriormente, discute na história desde o Império, como a
educação de jovens e adultos se faz a partir de uma idéia-embrião de educação popular, que
nasce não das demandas populares, mas da atuação do Estado, que também a ela associa a
necessidade de pensar a sociedade e o futuro.
Percebo em Brandão (1984, p. 8-9) uma compreensão diversa da que Beisiegel aponta,
quando associa ao Estado, como garantidor histórico da educação para todos, o papel
fundador da educação popular.
Uma das mais importantes características da educação popular é o fato de que ela emerge historicamente, onde quer que surja no continente, como um movimento de educação ou, se quisermos, como a educação em estado de movimento. Como um momento em que, política, teórica e metodologicamente a educação quer ser uma transgressão de si mesma. Nos primeiros anos da década de 60 ela não apareceu como um desdobramento simples de teorias e métodos de uma educação de adultos antecedente, mas como a experiência da possibilidade de sua subversão. Como uma sucessão de movimentos de diferentes tipos de educadores em favor de tornar a educação algo absolutamente diverso daquilo que ela sempre fora. Ao invés de pensá-la como um tipo de atividade profissional competente, destinada a um tipo de ensino compensatório a sujeitos pobres e defasados, ela pretendeu ser uma espécie de re-totalização de todo o sentido da educação, desde um ponto de vista não apenas estrategicamente popular, mas historicamente situado como um serviço pedagógico a projetos políticos das classes populares. (BRANDÃO, 1984, p. 8-9).
54 EDA é a sigla designativa de educação de adultos, como até então era conhecida, antes de absorver oficialmente o segmento jovem que passa a integrar, juvenilizando, essa modalidade educativa. (Nota da autora).
167
Coraggio (1994, p. 92-93), discutindo os sentidos da educação para a participação e
para a democratização, lembra que o caráter do Estado capitalista, em tempos neoliberais e de
globalização, reduzindo sua função reguladora sobre a economia e a vigilância da eqüidade
social, tem determinado a transferência de funções do Estado nacional para o reino das ONGs,
alterando as correlações de poder em relação à sociedade, inclusive mesmo fazendo,
paradoxalmente, o redesenho “em nome de bandeiras forjadas pelos próprios intelectuais do
campo popular, como a devolução do poder à sociedade, a descentralização do Estado,
autogestão, autogoverno local, participação, controle direto da sociedade civil sobre suas
condições de vida, criatividade popular etc.”
Na esteira dos poderes locais supostamente assumidos pela sociedade, Coraggio
(1994, p. 94) indaga se a descentralização do Estado pelo poder global gera, efetivamente,
poderes populares, ou se reforça as práticas populistas, de caciquismo, dos “grandes do
lugar”, questionando, por fim, qual a definição de democracia que essa participação gesta/ou é
por ela gestada. De posse dessas reflexões, Coraggio (1994, p. 98-99) busca verificar os
desafios enfrentados pela educação popular, em contribuição aos processos locais de
democratização. Um deles, localizado na pretensão da educação popular em ser
“‘alternativa’, negando a possibilidade de gerar propostas e de atuar diretamente sobre o
Estado e suas políticas”. Outro desafio a enfrentar, está posto na necessidade de reelaboração
do sentido da educação popular, que “requer uma profunda autocrítica, pela tensão não
resolvida entre a proposta teórico-ideológica e a prática real. A EP assumiria o desafio da
reestruturação de suas bases teóricas, revendo, conseqüentemente, a eficácia de seus
procedimentos, visando a um projeto de desenvolvimento popular”. (CORAGGIO, 1994, p.
99).
Brandão (1984, p. 9) também atualiza e alerta para a mudança de sentido que o
conceito e a prática assumem:
[...] nada há que impeça que ela passe a ser, de um momento da história em diante, um trabalho pedagógico diferencialmente posto a serviço de sujeitos e classes populares que, continuamos acreditando, devem participar da condução daquilo que faz a história de um povo tomar este ou aquele rumo. Por isto mesmo, pelo menos em suas formas mais autônomas ao longo de sua múltipla experiência, a educação popular evoluiu de ser vivida como um movimento em si mesmo, dirigido a camponeses, operários e outras categorias de sujeitos populares, para vir a ser um trabalho do educador que, sem projetos preestabelecidos, submete a sua prática às iniciativas de ação política dos movimentos populares.
168
Osório (1994, p. 112), discutindo a força, a capacidade e as “novas formas de fazer
política” desses movimentos sociais e populares, constituídos como sujeitos coletivos, destaca
as transformações profundas que eles operam na lógica social,
[...] recolocando a questão da relação entre social e político, público e privado, cotidiano e institucional. Desta forma, diminui a visão do político como um espaço homogêneo, emergindo a pluralidade do social, cuja expressividade não se esgota na “política” convencional. Ela se manifesta, sim, na reivindicação das demandas, na socialização de valores e formas de vida e nas diversas formas de articulação de interesses locais e nacionais.
Coraggio (1994, p. 103), alertando para a eficácia que a educação popular pode
assumir, diante dos efeitos vertiginosos da globalização, destaca a necessidade de
conhecimento sobre os processos de gestão popular, em nível local, nacional e supraregional,
incluindo pesquisas que não idealizem as práticas populares, para que estejam abertas a um
novo conhecimento teórico. Prossegue:
Diante da proposta dos organismos multilaterais de “focalizar os recursos nos setores de extrema pobreza”, e ainda que a EP tenha sido pensada basicamente para os setores mais pobres, deve-se sugerir uma política que permita ao campo popular adquirir uma solidariedade orgânica, o que implica ver o popular como campo social, culturalmente heterogêneo. (CORAGGIO, 1994, p. 103).
Nos últimos 15 anos, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – MST
defendendo uma educação do campo tem representado, junto ao movimento dos educadores
indígenas, em defesa de uma escola indígena, os mais significativos e amplos projetos de
educação popular, (re)significados, pautados na visão de uma escola democrática, integrada
ao sistema educacional, mas cuja singularidade/diferença seja respeitada na constituição da
oferta do direito à educação. Não sem tensões, e com a mão forte do Estado buscando brechas
para a regulação, os movimentos avançam, no que Brandão (1984, p. 176) reconhece como “o
limite da educação popular na sociedade de classes”.
No tocante à educação de jovens e adultos e a formação profissional, pode-se iniciar
afirmando que são tênues as iniciativas do Estado para resolver o problema da exclusão dos
trabalhadores da escola. Embora a legislação admita a possibilidade de horários de trabalho
diferenciados, além de metodologias e currículo, concretamente não há ações formais de
reinserção dos trabalhadores não escolarizados para seguirem o fluxo (des)contínuo pelo qual
passaram em algum momento pela escola.
As denúncias e lutas dos trabalhadores mostram um longo caminho a ser percorrido em busca da obtenção de seus direitos à educação; um caminho
169
marcado por promessas, pelo labirinto burocrático dos órgãos responsáveis pela construção da escola, por obstáculos erguidos pela legislação, pelas pressões políticas para conseguir, às vezes depois de anos, a construção de uma escola no bairro, quando há vitória nesse extenuante embate. (CAMPOS, 1989, p. 50).
Educação profissional estrita sempre foi demanda dos setores produtivos. Esta mesma
idéia é freqüentemente evocada em momentos de formação de professores, pelo que entendem
devesse ser a escola para jovens e adultos trabalhadores. A lógica que esta alternativa
encobre, e surpreendentemente acompanha toda a trajetória da sociedade brasileira, é a de que
a educação profissional só é reivindicada para as camadas pobres, porque às camadas médias
ou ricas, destinar-se-á o caminho propedêutico, capaz de possibilitar o seguimento e o acesso
à universidade. Mesmo quando se admite o ensino profissionalizante de nível médio, as
ocupações pensadas quase sempre revelam lugares subalternizados do mundo do trabalho,
jamais oferecendo-se a possibilidade de formação de sujeitos independentes, autônomos,
livres no domínio de suas ocupações profissionais.
Oscilando entre a idéia de qualificação, de empregabilidade (pela suposição de que a
falta de conhecimento é que gera o desemprego), e de competências nos últimos tempos, a
educação profissional para jovens e adultos, no amplo espectro em que pode ser assumida,
vagueia entre as propostas oficiais e as nem sempre ideologicamente claras propostas
sindicais, negociadas pelas centrais de trabalhadores, em convênios tripartites e/ou como
respostas aos fundos de financiamento público, com recursos dos próprios trabalhadores.
Paiva (1994, p. 34) assim se expressa:
A América Latina confronta-se hoje com a baixa qualidade de sua força de trabalho e dos membros de suas sociedades, em geral, num mundo em que se agudizou a consciência de que a produtividade de cada um depende não apenas do seu nível de conhecimentos, mas dos conhecimentos daqueles que o cercam.
A tarefa da sociedade na construção de uma educação de jovens e adultos de caráter
popular, e do interesse dos trabalhadores, entende que o ponto crucial reside na capacidade de
manejo e controle de fundos públicos, na ampliação da esfera pública e na disposição do
embate, da disputa, do conflito, implicando mais sujeitos coletivos com densidade analítica e
organizativo-política para dar densidade ao embate. (FRIGOTTO, 1995, p. 204).
170
55..44 EEJJAA EEMM TTEEMMPPOOSS AAUUTTOORRIITTÁÁRRIIOOSS —— OONNDDEE OO DDIIRREEIITTOO??
Seguindo a linha argumentativa de Beisiegel (1974), de que foi o Estado brasileiro o
indutor da idéia de educação para todos, segundo orientações do pensamento ideológico de
cada período, passo a discutir como a educação de jovens e adultos se organiza durante o
tempo da ditadura militar. A inspiração ideológica do momento, então operada pela visão de
desenvolvimento nacional (já iniciada nos anos JK) em tensão com as forças do capitalismo
internacional, havia levado ao golpe militar.
Santos (2000, p. 94-95) aponta como o surgimento do capital internacional no campo
industrial criara uma nova realidade para o pensamento ideológico da região latino-americana,
gerando um realinhamento de forças que produziu muitas lutas na década de 1950, incluindo a
revolução boliviana de 1952, equatoriana de 1954, venezuelana de 1958, culminando com a
cubana de 1958-1959, contra as velhas oligarquias primário-exportadoras e os regimes
autoritários que as sustentavam. O capital internacional reage fortemente a todas elas, assim
como o governo norte-americano. O pensamento de que havia necessidade de intervir
politicamente na região tem uma de suas bases na Universidade de Stanford, na Califórnia,
consolidando a visão de que a implantação de um processo de desenvolvimento exigia uma
elite militar, empresarial e até mesmo sindical com um regime político forte, esclarecido e
modernizador. O golpe de 1964 foi, no Brasil, o momento fundador desse modelo, segundo
Santos (2000, p. 95), contendo a burguesia nacional e seu projeto, que aspirava ser um poder
internacional, pela riqueza do território, tanto em extensão, quanto em recursos naturais. Em
substituição, a modernização fundava-se na aliança e integração dessa burguesia ao capital
multinacional, conformando um tipo de industrialização dependente da lógica de expansão do
centro hegemônico mundial. Como sócios menores do capital internacional, as burguesias
latino-americanas abandonam suas perspectivas de independência nacional e de
desenvolvimento tecnológico próprio.
O conceito de capital humano, a que foi alçada a educação no final da década de 1950,
e explicativo do desenvolvimento econômico sem precedentes no Japão e na Alemanha do
pós-guerra, desenvolve-se pelos estudos de Schultz nos Estados Unidos da América com a
“descoberta” do fator H (humano) para além da fórmula geral neoclássica de Cobb Douglas
sobre as variações do desenvolvimento e do subdesenvolvimento entre os países. No Brasil,
no contexto do milagre econômico, a teoria é rapidamente incorporada, alimentando a idéia de
171
educação como investimento, e não apenas consumo, subjacente também à de mobilidade
social. Nos países latino-americanos e de Terceiro Mundo, a disseminação é veloz, induzida
por organismos internacionais como Banco Mundial (BID), Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BIRD), Organização Internacional do Trabalho (OIT), Organização das
Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura (UNESCO), Fundo Monetário
Internacional (FMI), United States Agency for International Development (USAID), Fundo
das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e regionais como Comissão Econômica para a
América Latina (CEPAL), Centro Interamericano de Investigação e Documentação sobre
Formação Profissional (CINTERFOR), representantes dos interesses do capitalismo integrado
ao capital internacional.
Por esta via, segundo Frigotto (1995, p. 41-42), Mário Henrique Simonsen defendeu o
desenvolvimento e a eliminação das desigualdades, oferecendo a alternativa da equalização
pelo acesso à escola e pelo alto investimento em educação. Nessa esteira, foi o concebedor do
MOBRAL, como resposta às necessidades do desenvolvimento durante a ditadura militar.
Frigotto (1995, p. 43) ainda chama a atenção para o fato de que, no plano da política, e de
forma autocrática, o economicismo serviu às forças promotoras do golpe, sobretudo no
período de 1968 a 1975, ajustando a educação à opção por um modelo de capitalismo
associado e subordinado ao grande capital representados, principalmente, na Reforma
Universitária de 1968 e, sobretudo, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de
1971, que orientava o sistema de ensino para a instrução e a formação de mão-de-obra
qualificada, adotando, como concepção no nível do 2º Grau, o ensino profissionalizante de
nível técnico.
No tocante à educação de jovens e adultos, durante a ditadura militar houve um tempo
de investimentos e de prioridades, animadas justamente pelo ideário economicista da teoria do
capital humano. Um dos projetos em que o Estado brasileiro foi protagônico, está
representado pelo MOBRAL, instância de fôlego, criada em 1967, para servir aos propósitos
desenvolvimentistas. Os recursos, advindos da indicação de até 2% do imposto de renda
devido por pessoas jurídicas, nos primeiros tempos foram ainda somados a recursos
percentuais oriundos da loteria esportiva, e junto com a estrutura de fundação, davam à
entidade uma autonomia e agilidade diversas das encontradas nas instâncias da administração
direta do executivo federal. Outro projeto protagônico para a educação de jovens e adultos,
nesse tempo, foi o da organização do Ensino Supletivo, no interior dos sistemas públicos.
Ambos os projetos integraram os planos nacionais de desenvolvimento econômico e social
172
que planejaram, para médio e longo prazo, as metas educacionais, sob o controle político do
Estado, com o instrumento da tecnocracia, das racionalidades técnica e científica, evitando
erros e desperdícios na acumulação do capital e expansão do capitalismo (DE VARGAS,
1984, p. 17).
Se, por um lado, a organização do MOBRAL representava um reconhecimento da
necessidade de saber ler e escrever, ainda que com finalidade não partilhada pela grande parte
dos educadores que se colocaram contra o golpe, por outro se conferia autonomia
administrativa e financeira, com definição legal de recursos em volume e tamanho para
“resolver”, em dez anos, uma questão nacional: o analfabetismo de largo contingente da
população. Do ponto de vista de política pública, sem dúvida o MOBRAL representou, nos 15
anos de atuação55, uma realidade, ainda que não possa afirmar isto do ponto de vista da
constituição de um direito. O que estava em jogo, no marco do desenvolvimentismo, era a
necessidade de investir na força produtiva dos trabalhadores, apostando que a alfabetização —
e depois a necessidade de pós-alfabetização — contribuiriam para tirar o Brasil do atraso, e
conformar o projeto de país grande, do “pra frente Brasil” que animava a ideologia da época.
Não se criava toda uma estrutura de atendimento que chegava, com certeza, a todos os
municípios brasileiros para conferir o direito de todos à educação. Chegava-se porque o
analfabetismo era um mal, a chaga a ser curada, responsável pelo atraso do processo
produtivo e industrial, sem o que o país não ingressaria no “clube” dos desenvolvidos.
Essa perspectiva era tão forte, que Arlindo Lopes Corrêa, presidente do MOBRAL,
apresentando o ambiente da época de 1965 a 1967, no artigo “MOBRAL — Pedagogia dos
homens livres”, resgata a história de sua gênese, quando sob a batuta de Mário Henrique
Simonsen, é levada ao então Ministro Roberto Campos, uma proposta de criação de um Setor
de Educação no que é hoje o atual Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA,
encarregado de desencadear o processo de planejamento educacional no Brasil. A
argumentação de fazê-lo ali se pauta nas análises econômicas do “desenvolvimento material
da sociedade brasileira”, sob metodologia também herdada da área econômica, que ainda
apontava os déficits de escolarização, a ociosidade dos prédios escolares, equipamentos e
professores e a desatualização de estatísticas — todos indispensáveis para compor
inicialmente um diagnóstico e, a seguir, um Plano Decenal de Educação, como definira o
Ministro. De orientação claramente economicista, a política educacional traçava-se nesse
55 Apesar de ter sido criado em 1967, sua atuação só se inicia em 1970, indo até 1985, setembro, quando então é sucedido pela Fundação EDUCAR, reorientando, sob a égide da Nova República, sua atuação.
173
ninho, e Corrêa assim se refere a momentos precedentes à criação do MOBRAL para
contextualizar o vigor com que nasce e fundamentar sua tese que o compara à criação da vida
na Terra:
O trabalho de planejamento foi intenso e não se restringiu às exaustivas tarefas de coletar e sistematizar informações. Estas estavam dispersas e eram falhas, eminentemente qualitativas, além de incidirem predominantemente sobre aspectos psicológicos, metodológicos e históricos da educação brasileira, ignorando vários de seus mais importantes fatores. A visão econômica procurava atacar a ineficiência e ineficácia do setor e, como estes pontos eram pouco estudados, foi necessário interessar grupos acadêmicos e de consultoria capazes de ampliar o conhecimento nesses campos. Grupos de bom nível técnico eram raros nessa fase de pioneirismo.
Ao mesmo tempo era preciso conquistar os meios intelectuais e a opinião pública para a Economia da Educação. (CORRÊA, 1979, p. 19).
O fato é que, tanto o modelo excludente escolhido para desenvolver o projeto
nacional, assim como as opções teórico-metodológicas feitas, contribuíram, porque
desconectados de outras questões intervenientes na vida civil, social e política dos sujeitos,
para que o esforço não superasse os índices tal como previsto, nem resultasse em mudanças
efetivas no quadro da escolarização de brasileiros.
Muitos foram os programas criados para essas finalidades, cabendo-me questionar o
fato de, mesmo tendo a Emenda Constitucional de 1969 resgatado o direito de todos à
educação, a escolha político-ideológica para a educação de adultos ser conformadora de uma
lógica de adaptação dos sujeitos a um sistema social de classes, em que o capitalismo é senhor
soberanamente. Cito os principais programas desenvolvidos: Programa de Alfabetização
Funcional (PAF), baseado em palavras geradoras supostamente do contexto de vida dos
sujeitos (emblematicamente, tijolo, vida, trabalho), com material didático próprio e único
para todo o território nacional, usando o método silábico; em 1972, a demanda pela
continuidade organiza o Programa de Educação Integrada (PEI), que dá continuidade ao
processo da alfabetização, seguindo as recomendações da UNESCO no tocante à necessidade
da pós-alfabetização, em nível de 4ª série do 1º Grau, também com material didático próprio;
o Programa de Autodidatismo, a partir de volumes temáticos, sob a concepção de estudo
independente, semipresencial, certificado mediante a realização de provas; o Programa de
Saúde (PES); o Programa Cultural, com biblioteca e espaço cultural volantes, a Mobralteca,
com projetos de resgate dos saberes populares na área da alimentação e de medicina caseira,
de manifestações culturais etc.; o Programa de Ação Comunitária; o Programa de
Profissionalização entre muitos outros, valendo-se de metodologias presenciais e a distância
174
— com o uso do rádio, da televisão e de materiais impressos. Além destes, vários outros
programas foram concebidos visando ao alfabetizador, ao educador, a agentes comunitários
de saúde, de ação cultural etc.
Apesar das inúmeras concepções e esforços voltados a dar sustentação aos limites da
ação alfabetizadora que se fazia com maioria de leigos, oferecendo outras propostas
educativas aos mesmos sujeitos da desigualdade que gerava a pobreza e a exclusão social, os
números e as metas fixadas não se portaram segundo o que a tecnocracia imaginava poder
controlar com seus planejamentos tecnicamente bem-feitos. Embora se deva reconhecer
alguma redução nos percentuais do analfabetismo, o esforço realizado e os recursos
empenhados não revelavam a preocupação com o desperdício (o custo-benefício) posta como
fator central nos planos. A complexidade da realidade brasileira daquele tempo exige, ainda
hoje, maiores estudos sobre os significados de todos os projetos e ações nas comunidades,
para além do que as metas revelam, e para além das conclusões a que chegaram os poucos
estudiosos do MOBRAL. A dimensão da instituição, sua abrangência e volume de recursos
investidos, o quadro técnico-profissional formulador de concepções, projetos e ações, durante
15 anos, a evolução dos modos de pensar e atuar na educação de jovens e adultos, a coerência
entre determinadas posições, além das pesquisas e avaliações que a instituição produziu
internamente constituem fontes inexploradas, intocadas por pesquisadores que queiram,
efetivamente, compreender os processos contraditórios e os conhecimentos que em seu
interior foram gerados, tanto em nível de órgão central, quanto nos níveis descentralizados.
A Fundação EDUCAR, sucedânea do MOBRAL, presente desde 1985 no cenário da
EJA, incorporando os ventos da “Nova República”, o primeiro governo civil pós-ditadura
militar, com modos de operar reformulados, já apresentava reconceitualização, especialmente
traduzido na forma como o Estado brasileiro passa a atribuir a si a responsabilidade com a
educação de adultos. Em regime de colaboração, governo federal, estados e municípios são
parceiros no planejamento do atendimento, na formação de educadores, repartindo a
responsabilidade com recursos, tanto financeiros, quanto materiais e humanos. Iniciou-se
assim um processo de invocar à responsabilidade os sistemas educacionais, para que
assumissem a inserção orgânica da EJA nas redes públicas, abandonando o modelo de para-
sistema adotado todo o tempo pelo MOBRAL, o que significou sua subordinação à Secretaria
de Ensino de 1º e 2º Graus do MEC.
O documento Fundação Educar diretrizes político-pedagógicas, de janeiro de 1986,
revela a concepção já presente no pensamento pedagógico, que se consolida no texto
175
elaborado por ampla comissão de 12 pessoas, sendo três da Fundação EDUCAR; três de
representantes da sociedade organizada (uma da Associação de Servidores – ASMOB e duas
de organizações não-governamentais, CEDI56 e IDAC); três de universidades (duas federais
— UFSCar e UnB, e uma estadual paulista - USP); três do MEC (duas da Secretaria de
Ensino de 1º e 2º Graus - SEPS e uma do INEP); além de dois suplentes (SENAR e
Universidade). Observe-se que, entre as universidades integrantes da comissão, aparecem
duas paulistas, enquanto o Rio de Janeiro, sede do MOBRAL por longos anos, não teve
nenhuma representação, embora universidades no estado tivessem envolvimento direto com o
setor de avaliação e pesquisa, tanto pela produção sobre a área, realizada em classes mantidas
pelo MOBRAL, quanto pela atuação de profissionais que tinham duplo vínculo institucional.
Pode-se encontrar o seguinte trecho no referido documento, no item que trata de
Educação e democracia: “O Programa Educação para Todos prevê a universalização do
ensino básico, que a Constituição declara obrigatório e gratuito, como fundamento do regime
democrático que o Governo da Nova República se propõe a construir e consolidar.”
(FUNDAÇÃO EDUCAR, 1986, s/n).
E adiante, segue afirmando:
Entende-se perfeitamente, assim, que os direitos educacionais da cidadania, há muito incorporados no discurso oficial sob a forma de deveres educacionais do Estado, ainda não encontrem correspondência efetiva no plano das realidades sociais — como o atestam os indicadores de não atendimento escolar, de evasão, de repetência, de analfabetismo ou de semi-analfabetismo, em grandes contingentes de crianças, jovens e adultos das camadas populares. (Fundação EDUCAR, 1986, s/n),
o que indica a perspectiva de que os direitos já vinham sendo enunciados, sem que se
fizessem prática. Por fim, enfatizando como recomendações da Comissão, no sentido de
reorientar e transformar a política da educação de jovens e adultos (aqui já assim nomeada,
incluindo-se o segmento jovem), pode-se ler: “reconhecer constitucionalmente o direito de
jovens e adultos à educação básica de 1º grau; considerar, na política global de educação de 1º
grau para toda a população brasileira, a definição de uma política global para educação de
jovens e adultos;”. A passagem de educação de adultos para educação de jovens e adultos
representa um importante momento, na perspectiva do direito.
56 O CEDI foi, posteriormente, desdobrado segundo as atividades específicas que executava, representadas atualmente pela ONG Koinonia e pela Ação Educativa, até hoje de forte presença na educação de jovens e adultos.
176
Mesmo com a reorientação, supostamente oferecendo condições mais democratizantes
às parcerias instituídas formalmente, a situação do analfabetismo no país permaneceu em
tamanho, abrangência e perspectiva não-ética ainda de dimensões escandalosas. Não bastava
admitir redução de índices, nem percentuais de atendimento, porque o dado absoluto de
pessoas interditadas à educação era inadmissível e, mais grave, começava a mudar de perfil,
por demonstrar uma elevadíssima incorporação do segmento jovem nos sem-escolarização.
Apoiando técnica e financeiramente iniciativas inovadoras de prefeituras e da
sociedade civil, em conseqüência da expressão e organização de movimentos sociais urbanos
e rurais, que passavam a gozar de liberdade depois de longo período de obscurantismo,
alargava-se o campo da experimentação pedagógica. A revitalização dessas práticas
influenciou, sem dúvida, os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, cujo maior feito
para a EJA residiu na consagração do direito universal ao ensino fundamental público e
gratuito, independente da idade. (HADDAD, DI PIERRO, 2000, p. 120).
Em setembro de 1988, fruto de um novo trabalho em comissão paritária com
integrantes da Fundação Educar, do MEC, de secretarias de estado de educação e de
secretarias municipais de educação, depois de seis meses de intensas atividades e
contribuições de coordenações estaduais da Fundação Educar, secretarias de educação,
universidades públicas e privadas, fundações públicas (do índio, educacionais, Rondon, do
bem-estar social, universitárias entre muitas outras), institutos de educação, Sistema S,
associações profissionais e de pais, federação de associações de moradores e associações de
bairro, entidades da sociedade civil, Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste
(SUDENE), Associação Cristã de Moços, Ministérios, escolas técnicas e agrotécnicas, centros
de ensino supletivo, comissões municipais de educação, Associações de Pais e Amigos dos
Excepcionais (APAEs), prefeituras, professores e supervisores, sociedades religiosas, obras
sociais, organizações não-governamentais, igrejas, pastorais, empresas, conselhos estaduais de
educação, União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), Delegacias do
MEC, Instituto de Estudos Avançados em Educação, da Fundação Getúlio Vargas (IESAE),
Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) GT Alfabetização
representando 18 estados e o Distrito Federal, divulga-se o documento Diretrizes para uma
política nacional de educação básica de jovens e adultos, atendendo ao disposto na Portaria
MEC n. 173 de 8 de março de 1988, com vistas a propor diretrizes fundamentais para uma
política na área, e não mais visando a atuação apenas da própria Fundação Educar. Depois de
analisar o panorama da sociedade brasileira em que se inscrevia a educação de jovens e
177
adultos, uma segunda parte propõe as diretrizes para essa política nacional. Seis são essas
diretrizes, assim enunciadas:
[...] garantia de educação básica57 para os jovens e adultos das camadas populares; inserção orgânica da educação de jovens e adultos no sistema de ensino do país; alocação de dotação orçamentária para o desenvolvimento dos serviços educacionais para jovens e adultos no conjunto do sistema nacional de ensino; construção da identidade própria da educação de jovens e adultos; garantia de habilitação e profissionalização dos educadores de jovens e adultos; exercício da gestão democrática na educação de jovens e adultos. (FUNDAÇÃO EDUCAR, 1988, p. 18-19).
Como se observa, a proposta que se consolida, e a qual muito antes vinha sendo
defendida, é a de inserção do serviço de atendimento a jovens e adultos nos sistemas
adequados ao público demandante, assim como formação e profissionalização do educador,
com recursos orçamentários próprios, além de pensar essa modalidade educativa com
identidade e com base no exercício da democracia.
Paralelamente a toda a ação que o MOBRAL e a EDUCAR executam nesse para-
sistema que foi constituído pela ditadura militar, e demonstrando como a ideologia do capital
humano estivera presente nos planos de metas de desenvolvimento, cabe agora explicitar a
organização e o crescimento do sistema de ensino supletivo nas redes públicas.
Com a Lei nº. 5692 de 11 de agosto de 1971, capítulo IV, o ensino supletivo passa a
constituir um novo ordenamento na legislação educacional. Essa ordenamento legal é ainda
melhor compreendido por meio do Parecer nº. 699/72 do Conselho Federal de Educação,
exarado pelo relator Valnir Chagas, ideólogo do modo de conceber o ensino supletivo, ainda
hoje fortemente presente entre nós. Entendido a partir de quatro funções — suplência,
suprimento, qualificação e aprendizagem —, manteve, no entanto, como face mais visível da
regulamentação a função suplência, traduzida pela idéia de “suprir a escolaridade regular para
adolescentes e adultos que não a tenham seguido ou concluído em idade própria”. Concebido
como um subsistema integrado, independente do ensino regular, mas com ele intimamente
relacionado, realçava a vinculação com o esforço do desenvolvimento nacional, já propondo
metodologia ajustada às características da modalidade. 57 O documento registra a nota, assinalando que “Na Nova Carta Constitucional, a educação básica é denominada de ensino fundamental” (p. 18), o que não corresponde exatamente à formulação do texto constitucional, já que por educação básica assumiu-se a educação feita a partir de zero anos ao final do ensino médio, estando a referência do direito de todos, independente da idade, esta sim, associada ao ensino fundamental.
178
Ligando o presente ao passado e ao futuro, na mais longa linha de continuidade e coerência histórico-cultural de uma reformulação educacional já feita entre nós, ele constitui — e constituirá cada vez mais daqui por diante — um manancial inesgotável de soluções para ajustar a cada instante, a realidade escolar às mudanças que se operam em ritmo crescente no País e no mundo. (PARECER nº. 699/72, p. 37).
Valnir Chagas demonstrava no Parecer a dificuldade de conceituar o ensino supletivo,
quando se dispõe a fazê-lo pelo que não é, buscando explicitar o que não fosse regular, para
constituí-lo. Segundo De Vargas (1984, p. 31), a complexidade do ensino supletivo foi de tal
monta que exigiu a criação de um organismo federal responsável pela sua coordenação, em
nível nacional. Em 1973, o Departamento de Ensino Supletivo (DSU) do MEC, elaborou um
documento denominado Diagnóstico Preliminar do Ensino Supletivo, com base no Censo de
1970, e nas estatísticas do serviço de Estatística da Educação e Cultura de 1971, estimando a
“clientela provável do supletivo” em 28,5 milhões, sendo 9,9 milhões analfabetos e 18,6
milhões de pessoas nos três graus de ensino fora da escola, entre a população de 15 a 39 anos.
(DE VARGAS, 1984, p. 31). A autora De Vargas (1984, p. 96) identifica quatro tendências,
que se entrelaçavam no desenvolvimento de projetos do Departamento de Ensino Supletivo:
“a) enfoque tecnicista na programação dos projetos e no controle da execução; b)
centralização técnico-financeira da programação; c) ênfase na certificação; d) prioridade à
formação de mão-de-obra”, concorrendo para a perspectiva de “ações corretivas para sanar
(sem o conseguir) as falhas da estrutura educacional.”
MOBRAL e Ensino Supletivo, estruturado nas secretarias estaduais de educação,
compunham, embora o primeiro não se submetesse, na prática, à supervisão do DSU, um
sistema na oferta do serviço: a alfabetização e as quatro primeiras séries do 1º Grau era
realizada pelo primeiro, mediante convênio58, enquanto às secretarias de educação passou a
caber, cada vez mais, o segundo segmento do 1º Grau e sua expansão.
A prática da Fundação EDUCAR, no entanto, alterou em muito a potência executora
do MOBRAL, passando esta a fomentar, inclusive com recursos, a constituição da oferta nos
níveis municipais, sem diretamente executar as ações. Esta medida em muito determinou o
início do enraizamento nos sistemas, que as diretrizes para a formulação de uma política para
a EJA defendiam. Quando a EDUCAR é extinta, em 1990, são os municípios, justamente, os 58 Estes convênios, em muitos casos, incluíam professores das próprias redes, cabendo a formação e a supervisão ao MOBRAL, assim como o material didático. O que se observa é que na prática social, as relações institucionais se estabeleciam com mais facilidade por meio das relações pessoais, do que no nível macro do sistema, em que as estruturas de poder e a disputa entre dirigentes e órgãos se colocavam à frente da construção efetiva de um sistema. O orçamento próprio e a maior flexibilidade de aplicação de recursos por constituir uma fundação, sempre fizeram do MOBRAL um órgão mais ágil do que as secretarias.
179
que a duras penas mantêm a oferta um pouco mais qualificada, segundo a concepção
anunciada em 1988 pela Constituição Federal do direito de todos, e não mais de ensino
supletivo, mas de educação de jovens e adultos.
Sem querer negar as contradições das políticas que MOBRAL e EDUCAR efetivaram,
o fato é que representavam o poder do Estado comprometido com a educação de jovens e
adultos, que com a extinção deixava, então, de acontecer. O MOBRAL não representou, em
nenhum momento, a perspectiva do direito à educação, pois praticava uma concepção
compensatória de atendimento a jovens e adultos, com forte viés da escolarização para
melhorar os níveis de desenvolvimento. A EDUCAR, vagarosamente, mudava sua
formulação, e talvez se possa afirmar que avançou mais nesse nível, do que em suas práticas,
maculadas por uma série de desacertos de gestão que culminaram com sua extinção.
55..55 AA LLUUTTAA PPEELLOO DDIIRREEIITTOO ÀÀ EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO NNAA CCOONNSSTTIITTUUIIÇÇÃÃOO CCIIDDAADDÃÃ
A Constituição Federal de 1988, trazendo de volta à história brasileira a conquista da
educação para todos como direito, passa, em tese, a incluir o largo contingente de analfabetos
e analfabetos funcionais jovens e adultos que o país produzira, mesmo convivendo com
sucessivas propostas alfabetizadoras, expressões até mesmo de políticas públicas, ampliando-
se para a perspectiva de direito público subjetivo.
Segundo Bobbio (1992), o problema mais grave na atualidade, em relação à conquista
de direitos, não é o de sua fundamentação, mas de como protegê-los. Para a população que
luta por direito à educação, é clara a idéia de que a luta é cotidiana, que se luta hoje para
conquistar amanhã, mas que se não houver vigilância, o direito pode se perder, e então é
preciso voltar a lutar. A luta cansa, mas também ensina, e esta é, pois, uma grande
aprendizagem da luta. (SPOSITO, 1993; PAIVA, 2000).
Essa idéia de que a luta por direito inverte a mão tradicional do poder, que passa a vir
de baixo para o alto, leva diretamente à relação entre direito e democracia, assinalada por
Bobbio como subversiva59. Cury, Baia Horta, Fávero (2001, p. 26), referindo-se ao
pensamento de Bobbio quanto a ser a democracia subversiva porque inverte a concepção
descendente do poder em favor da concepção ascendente, dizem poder, talvez, fazê-lo
convergir com Lefort, sua “invenção democrática” como reinvenção permanente do real.
Cury, Baia Horta, Fávero ainda (2001, p. 26) ressaltam:
59 Citação em outro capítulo.
180
O grau de participação da sociedade civil na elaboração da Constituição de 1988 traduziu esta concepção ascendente e. talvez por isso, ela seja reinventora de novos direitos sociais, aí compreendida a própria educação. Ela incluiu novos direitos a fim de possibilitar uma situação de maior participação para aqueles que foram historicamente excluídos do acesso aos bens sociais.
Nas lutas travadas pela educação durante os trabalhos da Constituinte, o Fórum
Nacional da Educação na Constituinte em Defesa da Escola Pública significou uma forma de
participação democrática inédita, ascendente, que se prorrogou, como movimento, durante os
trabalhos de discussão até a aprovação da LDB e se perpetuou até os dias atuais, passando
pelo Plano Nacional de Educação e, atualmente, pelo Fundo Nacional para o
Desenvolvimento da Educação Básica – FUNDEB.
Baia Horta (1998, p. 7-8), indagando como se faz para proteger um direito social,
argumenta que este é mais difícil de proteger do que os direitos de liberdade, porque quanto
mais satisfeitas as necessidades, mais aumentam as pretensões.
Alguns mecanismos jurídicos foram introduzidos pela Constituição Federal, como
proteção ao direito do cidadão, como o mandado de injunção, forma de garantir o direito da
cidadania e o dever do Estado, que constituem o direito público subjetivo.
Afirmando que um dos passos da proteção ao direito à educação se dá quando ela é
definida como direito público subjetivo, Baia Horta (1998, p. 7) diz ainda que embora venha
sendo defendido desde 1930 por juristas, só em 1988 foi proclamado. O poder de ação de uma
pessoa para proteger ou defender um bem inalienável, e ao mesmo tempo legalmente
constituído, é o que se entende por direito público subjetivo, e os dispositivos jurídicos desse
poder traduzem-se pela ação popular, ação civil pública, mandato de segurança coletivo e
mandato de injunção — todos previstos e regulamentados pela Constituição Federal de 1988.
Baia Horta (1998, p. 8-9) também destaca o que Boaventura de Sousa Santos (1989)
considera como “a igualdade dos cidadãos perante a lei” que se choca com “a desigualdade da
lei perante os cidadãos”, assim como a existência da desigualdade na administração da justiça,
e, ainda, na presença necessária do Estado para a proteção dos direitos sociais traduzida por
políticas públicas adequadas.
Recuperando a formulação de Paul Singer (1996), quanto ao atendimento do direito à
educação pelo Estado, Baia Horta (1998) assinala que Singer funda-o em duas posições: a
primeira, chamada de civil democrática, que se traduz pela obrigatoriedade escolar e reafirma
o dever do Estado; a segunda, a que denomina de produtivista, acentuando a perspectiva da
181
oferta e da demanda e deixando em segundo plano o dever e a obrigatoriedade. Pode-se
reconhecer, por exemplo, nessa segunda posição, a mesma adotada durante todo o governo
FHC em relação à EJA, cuja oferta só se daria mediante demanda, ausente, pois, como
política pública, aspecto discutido por mim neste texto.
Cury, Baia Horta, Fávero (2001, p. 28-29) destacam o papel do mandado de injunção e
de outros instrumentos legais, como um conjunto através do qual a sociedade organizada
pode:
[...] educar o educador, estatuindo ou impedindo. Nesse caso, a sociedade civil não educa apenas o Estado-educador no sentido de conduzi-lo a realizar aqueles direitos que, nos limites constitucionais, efetivam a igualdade fundamental entre os cidadãos. Ela também se educa como fonte de poder e pode, reciprocamente, ser educada pelo Estado. Cobra-se, nessa medida, o que é dever do Estado em suas funções clássicas e ao mesmo tempo controla-se o abuso do poder.
É Bobbio (1992, p. 72) quem, em seguimento às idéias até aqui organizadas, ajuda-me
a compreender como o poder do Estado se faz mais necessário, em se tratando de direitos
sociais:
Enquanto os direitos de liberdade nascem contra o superpoder do Estado — e, portanto, com o objetivo de limitar o poder —, os direitos sociais exigem, para a sua realização prática, ou seja, para a passagem da declaração puramente verbal à proteção efetiva, precisamente o contrário, isto é, a ampliação dos poderes do Estado.
Enfoco, então, por entender que devo recortar ainda mais o tema do direito à educação,
a questão posta na EJA, modalidade da educação básica composta de sujeitos não
beneficiários desse direito na época própria, o que lhes impediu o processo de escolarização.
Destaco que este é um dos muitos sentidos da EJA, que não deve ser compreendida, no
entanto, apenas por esse viés. A educação de jovens e adultos, conforme a Declaração de
Hamburgo, firmada em 1997, durante a V Conferência Internacional de Educação de Adultos,
reconheceu que essa área é fundamental à vida em sociedades contemporâneas, em que os
processos de aprender são fundamentos cotidianos. O sentido verdadeiro da EJA é o da
educação continuada, que favorece processos educativos para jovens e adultos, cujas
condições de vida os mantêm afastados dos conhecimentos indispensáveis à sua humanização,
assim como quanto aos direitos sociais à saúde, ao emprego, à qualidade de vida, à formação
profissional etc. Com isto, deve-se conferir-lhes condições mais adequadas para se moverem
na sociedade complexa em que vivem e da qual participam, sem os instrumentos básicos da
cidadania. Mas também o conceito explicitado na V CONFINTEA reafirma a escolarização
182
como uma das dimensões da EJA, pelo reconhecimento da melhoria que a condição cidadã
passa quando os sujeitos dispõem do aprendizado da leitura e da escrita, formando leitores e
escritores dos textos que produzem em suas passagens pelo mundo. Ler e escrever, como
requisitos que a escola legitima para conferir aos sujeitos melhores condições de exercer a
cidadania, atendem à dimensão da escolarização, fundamental para a vida em sociedades
grafocêntricas, constituindo direito em qualquer idade, para quem não o auferiu na época da
infância.
Pelo contrário. Todos os esforços realizados ao longo da história da educação de
adultos no país, no sentido de assegurar a educação aos que não usufruíram da escola regular
quando crianças não conseguiram alcançar a universalização do atendimento, nem sequer o
êxito na tarefa, ou seja, fazer ler e escrever com competência os que se encontram à margem
do domínio do código. Campanhas, instituições, políticas funcionaram em sua maioria na
mesma perspectiva do estigma, do alívio ao analfabetismo, poucas vezes pela razão do direito
de iguais. A ferida, a chaga; erradicação, extirpar o mal, mancha negra, vergonha nacional
são muitas das expressões que acompanham não apenas o imaginário social, mas estão postas
em planos, legislações, cartas magnas.
Cabe, nesse ponto, um comentário adicional quanto à questão do direito. A
alfabetização, tomada como oferta de atendimento para jovens e adultos, em muitas
campanhas e programas no Brasil, foi a medida do que se entendia como educação de adultos.
Em alguns casos, estendia-se essa medida até o nível das quatro primeiras séries, oferecidas
em tempos e com conteúdos reduzidos, no que se chamou de pós-alfabetização. Sob a guarda
da atual Constituição, no entanto, que expressa o dever do Estado com a educação em nível de
ensino fundamental, qualquer proposta menor do que a correspondência a este nível de ensino
não cumpre o preceito da Carta Magna. Assim, defender projetos de alfabetização, ou o
objetivo de alfabetizar não dá conta do compromisso e do dever que o Estado brasileiro
precisa ter com a EJA.
A Constituição Federal de 1988, postulando o direito ao ensino fundamental para
todos, independente da idade, por meio do art. 208 inciso I, representara um avanço. Na
prática, no entanto, começava a ser negado. Alterado o Art. 208, pela Emenda Constitucional
nº. 14/96, propugnou-se, a partir de então, que o ensino fundamental fosse uma possibilidade
para jovens e adultos, e não mais obrigatoriedade, por se entender que não se pode obrigar
adultos e jovens além dos 14 anos a irem à escola, se não o fizeram na chamada idade própria.
Di Pierro (2000) questiona esta expressão “idade própria”, perguntando-se o que significa,
183
diante dos marcos epistemológicos que sustentam o aprender por toda a vida. Se por um lado
pode parecer razoável que o legislador tenha tido este cuidado, para não criar um preceito não
exeqüível na prática, por outro pode estar em jogo o fato de a nova redação sustentar mais
uma forma de desresponsabilização do Estado em relação à oferta da EJA, criando, sem
explicitação, prioridade para a tal “idade própria”. O que se coloca em risco, talvez mais do
que em jogo, é a perspectiva de esgarçar o ainda frágil direito, que muito embora tenha sido
conquistado constitucionalmente, passa a adotar uma formulação ambígua, capaz de admitir o
não-dever do Estado com o direito, e outras possíveis interpretações dele decorrentes.
Os sujeitos da EJA, potenciais trabalhadores, vivenciaram, juntamente com as disputas
relativas à política de direito à educação, o desemprego crescente, a informalidade das
relações de trabalho, o decréscimo do número de postos. Não são mais trabalhadores
modelares, tal como eram concebidos há alguns anos. Identidade e subjetividade desse papel
se deslocam em busca de assumir outras significações. Quem são esses pretensos
trabalhadores? São jovens? Práticos, experientes? Que expectativas têm da vida adulta, que
ainda se organiza pelo trabalho? O que é trabalho, para eles? De que trabalhador esse novo
mundo necessita? A presença marcante de sujeitos que questionam as próprias identidades
pelas quais aprenderam a se constituir, subjetivando-se por elas, vem desafiando os
educadores do ponto de vista das metodologias e das intervenções pedagógicas, obrigando-os
a refletirem sobre os sentidos das juventudes — e de seus direitos — que permeiam as classes
de EJA, mas também atentos para o que cabe à escola fazer, para além do ensinar a ler e a
escrever.
Aqui cabe fazer uma certa digressão quanto à questão dos adolescentes e jovens, na
relação de direito à educação e à condição de trabalhador. Apesar de devidamente ordenada
do ponto de vista jurídico nacional, que ainda admite o trabalho do menor na qualidade de
aprendiz, sem dúvida implica contradição com os acordos internacionais de que o Brasil é
signatário, que visam à eliminação do trabalho infantil. Cury (BRASIL, 2000, p. 23) alerta
para o fato de a Emenda Constitucional nº. 20 de 1998 ter alterado o teor do art. 7º, XXXIII da
Constituição Federal para a seguinte redação: proibição de trabalho noturno, perigoso ou
insalubre a menores de dezoito anos e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos,
salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos, sugerindo a leitura do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), Art. 60-69 e Art. 402 a 414, e 424-441 da Consolidação das
Leis do Trabalho (CLT) que tratam do adolescente aprendiz. A possibilidade admitida, sem
dúvida, acaba encobrindo inúmeros desvios à formulação legal sobre como o trabalho se faz,
184
mas não na condição de aprendiz, muito menos cumprindo a legislação trabalhista. Pode-se
dizer que no Brasil o trabalho infantil só deixará de existir quando for encarado como
problema, porque até então tem sido encarado como solução, admitindo-se a concepção social
que considera melhor que a criança, o adolescente, o jovem trabalhem, do que acabem, pelo
ócio, caindo na marginalidade. Evidentemente que esse modo de pensar não se aplica a todas
as classes sociais, mas apenas às populações pobres, vistas como marginais na essência, e às
quais, diante de “oportunidades”, passam a “desenvolver essa potência”.
Admitindo-se que, pelo menos, a proibição do trabalho noturno ao menor se faça em
respeito à sua condição de sujeito em formação, a oferta de ensino noturno regular, adequado
às condições do educando passa a ser dever do Estado, conforme o Art. 208 inciso VI da
Constituição Federal reiterado pelo inciso VI Art. 4º da LDB., assim como a oferta de
educação escolar regular para jovens e adultos, com características e modalidades
adequadas às suas necessidades e disponibilidades, garantindo-se aos que forem
trabalhadores as condições de acesso e permanência na escola (inciso VII Art. 4º). Este
dever do Estado com a educação escolar pública assim enunciado visa a assegurar a
possibilidade de acesso à escola, horários, metodologias, direito garantido pelo Art. 54, VI da
Lei 8.069/90, que especifica a adequação deste turno às condições do adolescente trabalhador;
do mesmo modo que o Art. 227 da Constituição Federal, ao tratar do direito à proteção
especial, impõe, no inciso III, a garantia de acesso do trabalhador adolescente à escola.
Também visa a assegurar gratuitamente aos jovens e adultos, que não puderam efetuar os
estudos na idade regular, oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as
características do alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho, mediante cursos
e exame e, ainda, caberá ao Poder Público viabilizar e estimular o acesso e a permanência do
trabalhador na escola, mediante ações integradas e complementares entre si. (LDBEN, 1996,
Art. 37 § 1º e 2º).
Ao tempo em que no mundo a educação vem sendo tomada como um direito humano,
mais do que, apenas, direito social, a conquista no aspecto jurídico, entre nós, continua não
garantindo, na prática, esse direito. A letra da lei não consegue alterar o jogo das relações
políticas e dos programas governamentais que vêm excluindo, pelas opções que realizam,
uma dupla vez os brasileiros já excluídos na infância, negando-lhes o atendimento, o
reconhecimento de serem cidadãos de direito, a “chance” renovada do saber sistematizado da
cultura escrita que organiza a vida social nas sociedades grafocêntricas.
185
Como direito humano, busca-se legitimar para a educação a ontologia do ser social,
entendendo-se que, mais do que uma construção da história, ela significa um atributo da
própria humanidade dos sujeitos, sem o qual homens e mulheres não se humanizam
completamente. É por meio dos direitos humanos que o valor da liberdade passa a ser posto
no horizonte como fundamento essencial da vida, cuja realização exige regras e formas de
convivência capazes de garantir a igualdade para todos os sujeitos. O modo possível de operar
com essa igualdade tem sido defendido pela democracia como valor universal.
Observa-se, então, como a construção social inicia seu processo de complexificar o
sentido de direito, já que o que antes poderia resumir um direito — escola para todos —, não
mais se faz suficiente, se esta escola não garante a todos o saber ler e escrever com qualidade.
Isto não configura um outro direito, mas se amalgama à idéia original de tal maneira, que
impõe pensar direito à educação nessa significação ampla: ir à escola e aprender a ler e a
escrever como leitor/escritor experiente, considerando-se a diversidade de sujeitos e suas
experiências e trajetórias de vida.
A enunciação dessa nova significação, no entanto, não basta para que esses “dois”
sentidos — ir à escola e aprender — se encontrem na prática social. Continua-se a lutar pela
escola para todos, não consagrada para enorme contingente, assim como se defende a
qualidade, forma pela qual o saber ler e escrever parece estar associado.
Como conquista, o direito à educação vem se fazendo em movimentos mais ou menos
densos e tensos, tanto provocado como resposta do setor público a exigências populares,
quanto por meio de algumas proposições de políticas públicas cuja face exteriorizada se
afirma com essa intenção e por ela tenta se sustentar.
55..66 DDIIRREEIITTOO ÀÀ EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO NNAA DDÉÉCCAADDAA DDEE 11999900
Na década de 1990, pós-constitucional60, os arranjos da década anterior em torno de
uma nova ordem econômica avançaram, mal dando tempo para que os países que, como o
Brasil, se redemocratizavam, pudessem exercer livremente suas conquistas cidadãs, já
mergulhando nas amarras do poder econômico ditado pelo neoliberalismo e por um governo
discutível, mesmo para a execução dessa tarefa, pela fragilidade de compromisso ético com o
mandato que se iniciava para o mais alto cargo do executivo. Dentre as muitas medidas
60 Refiro-me especificamente ao fato de, em 5 de outubro de 1988, o país voltar a ter uma Constituição democrática, fruto das lutas contra a ditadura militar no Brasil, aprovada após o trabalho de uma Assembléia Nacional Constituinte que para isso foi eleita.
186
imediatas da posse de Fernando Collor de Melo, destaca-se a da extinção da Fundação
EDUCAR, deixando sem qualquer sucedâneo o campo da EJA, e interrompendo o
atendimento de milhares de alunos jovens e adultos.
É desta mesma década o pronunciamento público do Ministro da Educação, José
Goldenberg, afirmando reconhecer que o analfabeto não tinha um bom lugar, mas por já estar
lá e ter conseguido se arranjar assim, não valia a pena mexer com ele, porque a prioridade era
a de prevenir o mal, educando as crianças. Ao lado deste, o educador Darcy Ribeiro, em
Congresso Brasileiro de Alfabetização em São Paulo, 1990, proferiu a frase em sua
conferência que Haddad (1997, p. 106) cristalizou no início de um artigo discutindo a nova
LDB: “Deixem os velhinhos morrerem em paz !”61
A turbulência dos episódios que se seguiram, com o impeachment do presidente,
acabou por adiar, por mais tempo, a definição de leis ordinárias que sucederiam a
Constituição Federal, nesse caso a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN,
fazendo avançar o uso de medidas provisórias que legislavam em nome de um ordenamento
legítimo.
Especialmente a partir daí, e a despeito da assinatura, pelo Brasil, do acordo de
educação para todos em Jomtien, na Tailândia, ainda em 1990, vem-se assistindo o
desmantelamento das políticas na área, alijando do atendimento milhões de jovens e adultos
credores de políticas governamentais, desde que foi extinto o órgão que respondia e
fomentava ações de educação de adultos no país.
Novamente o espaço aberto foi, por isso mesmo, gradativamente sendo ocupado pela
sociedade civil, por meio de suas forças organizadas62, em tamanho e número reduzidos a
experiências, quase sempre de alfabetização, cuja continuidade não se conseguia assegurar,
frustrando e interrompendo projetos de estudo daqueles que tardiamente conseguiam ir à
escola.
61 O artigo denomina-se A educação de pessoas jovens e adultas e a nova LDB e se encontra In: BRZEZINSKI, Iria (Org.). LDB Interpretada: diversos olhares se entrecruzam. São Paulo: Cortez, 1997. Nesse artigo, Haddad resgata o encerramento do Congresso Brasileiro de Alfabetização, organizado pelo GETA – Grupo de Estudos e Trabalhos em Alfabetização, e realizado em São Paulo em 1990, por ocasião das mobilizações que marcaram o Ano Internacional da Alfabetização, quando Darcy Ribeiro, diante de Paulo Freire, de câmaras de vídeo e olhares atônitos de 1500 pessoas, expressou sua posição, desqualificando a educação de jovens e adultos, no auditório da antiga Escola Caetano de Campos. 62 As ONGs, na década de 1990, seguram o atendimento a jovens e adultos, além das iniciativas dispersas em igrejas, movimentos de bairro etc. Mas é de meados dessa década a constituição do Telecurso 2000 que acabou sendo “a alternativa” de EJA, inclusive para muitos municípios que conveniam com o programa, formulado e vendido pela Fundação Roberto Marinho.
187
Por outro lado, muitos municípios, sensíveis e próximos ao drama do abandono
educacional a que novamente jovens e adultos eram protagonistas, assumiram nas redes
públicas o financiamento da área, garantindo a inserção da EJA nos sistemas públicos de
ensino. Assiste-se, nesse momento, a um movimento do poder local, em busca de assegurar
atendimento aos munícipes, cidadãos demandantes da EJA. Algumas prefeituras,
principalmente do PT, cujo compromisso com a educação para todos constituía programa
partidário, seguem os passos da Prefeitura de São Paulo, que com Paulo Freire à frente da
Secretaria Municipal de Educação, constrói o MOVA – Movimento de Alfabetização, uma
iniciativa executada “fora da rede” nas comunidades, mas acompanhada e alimentada pelo
poder público, inclusive com recursos. Desenhos do MOVA aparecem pelo país, inclusive em
governos não-petistas, e permanecem até hoje. A concepção que o MOVA encerra ofereceu
muitas lições aos educadores e aos sistemas públicos, mas seu não-enraizamento na rede
pública, definiu, em quase todos os lugares em que o PT perdeu a continuidade dos mandatos,
a ruptura e o abandono do programa, novamente entregando os então atendidos à própria
sorte. Mesmo onde o partido fez sucessor e o MOVA continuou a ser realizado — o que
poderia configurá-lo como uma política pública — porque permaneceu “fora da rede”, correu
sempre o risco de deixar de ser a expressão política da EJA, a qualquer tempo. Nesses casos
de permanência, os integrantes das redes públicas — professores formados e concursados —
não vêm com bons olhos os “competidores”, muitas vezes mais prestigiados do que os
profissionais da educação, causando disputas internas, forjadas pela crença de que os
educadores populares, por serem das comunidades — o que nem sempre se confirma —
conseguem estar próximos das necessidades e interesses dos educandos.
As prioridades que os sucessivos governos estabelecem para o ensino fundamental de
crianças, no contexto político não apenas nacional, mas internacional, em que as áreas sociais
perdem espaços significativos no cenário de um mundo em que o capital globalizado derruba
fronteiras e desterritorializa nações, fazem, por assim dizer, o pano de fundo da EJA. Que
perspectivas ideopolíticas têm definido as escolhas e as opções feitas pelos diferentes atores
sociais envolvidos com a educação de jovens e adultos?
Momentos significativos nessa década chamaram o Brasil a participar de acordos
sociais firmados internacionalmente em eventos, à medida que proliferavam, paralelamente, a
política neoliberal e seus danos às populações, aos seus direitos de existência e à sua
qualidade de vida, expressos pela voracidade do capitalismo; assim como os acordos de livre
comércio que impõem unilateralmente barreiras aos mercados dos países pobres do sul.
188
Mas a década de 1990 (e de certa forma o início do novo século) foi também pródiga
em organizar conferências internacionais63, sob a égide da ONU e da UNESCO, com o claro
sentido de ordenar o mundo para uma nova lógica econômica, minimizando os efeitos sociais
que adviriam do modelo adotado. De modo geral, privilegiaram a temática da educação,
considerando-a básica para a sustentação de novos modelos de desenvolvimento, e para a
retomada do crescimento econômico. Assim, esse campo esteve fertilizado pelos olhares e
contribuições de muitas áreas do conhecimento, passando pelas questões de direitos dos
excluídos (à habitação, à alimentação, à qualidade de vida etc.) e das diferenças étnicas, de
gênero, culturais, mas sempre reforçado pela destacada necessidade de tomar a ação educativa
como central, para pensar de que educação se fala, para que sujeitos homens e mulheres, para
que sociedades, para que mundo.
Muitos acordos de cúpula também expressam as preocupações com o poder incontido
do modelo capitalista hegemonicamente concentrador nos países desenvolvidos em relação
aos demais países, submetidos pela metáfora da globalização a novas formas de imperialismo.
Dos compromissos assumidos pelo Brasil, um dos mais significativos se expressa na
área da educação, tanto pela exigência de mudar os dados de escolarização — insuficientes
para atrair investimentos estrangeiros, na economia de mercado livre, sem barreiras à
importação e à entrada de corporações que passam a ser mais fortes que o Estado-nação —,
quanto de redimensionar a oferta de serviços educacionais, restringindo os recursos da
pesquisa (possível para os países hegemônicos centrais, mas inviável para os periféricos, que
devem passar a importadores de conhecimento produzido) e padronizando as propostas
curriculares e a formação continuada de professores, com vistas a reduzir investimentos e
custos. A educação de jovens e adultos, mesmo quanto à dimensão da escolarização para
cumprir o direito ao ensino fundamental para todos é esvaziada nas políticas públicas
educacionais, restringindo-se as fontes de financiamento, até quando se destinam
compulsoriamente formas de aplicação de 15% dos recursos obrigatórios, por meio do
FUNDEF (1996). No entanto, a educação do trabalhador, estimulada pela idéia não mais da
ascensão social, mas da empregabilidade, passa a apreender o sentido das políticas educativas
63 As conferências do chamado ciclo social da ONU foram: em Jomtien, Tailândia, 1990, sobre Educação para Todos; no Rio de Janeiro, 1992, sobre Meio Ambiente; em Viena, Áustria, 1993, sobre Direitos Humanos; no Cairo, Egito, 1994, sobre População; em Beijing, na China, 1995, sobre Direitos das Mulheres; em Copenhague, Dinamarca, 1995, sobre Desenvolvimento Humano; em Roma, Itália, 1996, sobre Segurança Alimentar; em Istambul, Turquia, 1996, sobre Assentamentos Humanos (Habitat II); em Hamburgo, Alemanha, 1997, sobre Educação de Adultos; em Haya, Holanda, 1999, sobre a Paz; em Dakar, no Senegal, 2000, sobre Educação para Todos; em Durban, África do Sul, 2001, contra o Racismo e a Xenofobia.
189
do Ministério do Trabalho. Assim, se antes o campo de atuação desse Ministério restringia-se
à formação profissional, passa então a incorporar a formação geral como indispensável à
educação do trabalhador, sem o que de nada adianta investir na formação profissional.
Enquanto se encolhem os recursos para a educação de jovens e adultos no MEC, se ampliam
as do MTb, este sim o mais potente formulador de políticas educativas para jovens e adultos
trabalhadores.
Alguns programas são estimulados em parceria com centrais sindicais, que pensam
modelos de educação próprios, traduzindo as concepções de mundo do trabalho e de formação
de sujeitos trabalhadores críticos aos modelos que o capital modifica, pelo avanço neoliberal.
55..66..11 NNeeggaannddoo oo ddiirreeiittoo àà EEJJAA nnoo FFUUNNDDEEFF
Quando o Presidente da República vetou, em julho de 1996, a inclusão da contagem
das matrículas do existente ensino supletivo (que atendia aos educandos jovens e adultos) para
o cálculo de distribuição de parte dos recursos da educação, submetidos a novos parâmetros
de aplicação, usando a justificação de falta de dados confiáveis de matrículas para a aplicação
da Lei nº. 9424/96 que instituiu o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
Fundamental e de Valorização do Magistério – FUNDEF. A justificativa, oferecida pelo
Ministro da Educação, em subsídio ao veto presidencial, negava todo o trabalho organizador
de dados da educação brasileira — dados até então inexistentes —, promovido pelo INEP,
através do Censo Educacional anual. Apesar de o Fundo destinar-se a garantir maior eqüidade
de recursos para a faixa de ensino obrigatório, e direito de todos desde 1988, não se permitiu a
sua aplicação para o enorme contingente de brasileiros excluídos dos instrumentos da leitura e
da escrita, de subescolarizados e de não concluintes do ensino fundamental quando crianças,
do mesmo nível de ensino.
A luta, a partir daí, pelo resgate do direito à inclusão no FUNDEF tem sido contínua,
propondo a derrubada dos vetos presidenciais que impedem o uso de recursos para a EJA.
Embora passados oito anos da promulgação da Lei, e tendo o PT assumido a chefia do
executivo federal, nenhuma mudança substantiva se consolidou sobre o assunto até agora. A
nova discussão em pauta, proposta pelo executivo, por meio do gabinete da Casa Civil, e
alavancada pelo Ministério da Educação, é a de criação de um novo Fundo de
Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB), que não apenas incluiria a EJA, mas
também a educação infantil, a educação especial e o ensino médio, fechando o ciclo da
educação básica. A proposta, nos moldes de ajuntamento de recursos do FUNDEF, mas sem
190
qualquer recurso extra para o Fundo, e ainda lidando com a aprovação da DRU –
Desvinculação de Recursos da União, o que significa perda de receitas da ordem de 20% na
educação, não reflete a luta até então travada pelos educadores e pela sociedade, embora seja
indispensável, por assumir a EJA no item do financiamento como modalidade que o Estado
tem o dever de oferecer. No entanto, um largo percurso ainda há que ser percorrido, até que o
FUNDEB seja de fato um Fundo para a educação básica, tanto assegurando o financiamento
para níveis e modalidades até então não contemplados, como também assumindo a extensão
da universalização ao ensino médio, sem o que os requisitos de qualidade, como direito
emergente da educação, não se fará. A realidade dos países do primeiro mundo têm
demonstrado que são necessários, no mínimo, 12 a 13 anos de escolaridade para que um
jovem seja, efetivamente, leitor crítico e criativo de textos e escritor de sua palavra, não da
palavra dos outros.
55..66..22 NNoovvoo âânniimmoo nnaa ccoonnqquuiissttaa ddoo ddiirreeiittoo:: oo cchhaammaaddoo iinntteerrnnaacciioonnaall ddaa UUNNEESSCCOO
Nas reuniões preparatórias nacionais, que aconteceram nos estados brasileiros em
1996, antecedendo a V Conferência Internacional de Educação de Adultos em Hamburgo,
Alemanha, o MEC, pela voz de seus representantes, entre eles a Secretária de Ensino
Fundamental, defendeu publicamente, por inúmeras vezes, a prioridade da educação de
crianças, o que estancaria, como a uma fonte, a produção de analfabetos, condenando os
nessa condição (tal como dicionarizado por Buarque), à exclusão definitiva, até que, velhos,
como pregou Darcy Ribeiro, morreriam, reduzindo por inércia os dados que atestam a
inversão das prioridades sociais.
O documento final produzido durante o Encontro Nacional de Natal, em setembro de
1996, pela mobilização de educadores e instituições, cumprindo a metodologia de trabalho
proposta pela ONU, em preparação à V Conferência Internacional de Educação de Adultos,
assim concebia a perspectiva do direito à educação, em contexto mais amplo de direitos
fundamentais da pessoa humana visando à consolidação de uma sociedade democrática:
Para que o Brasil alcance níveis de desenvolvimento compatíveis com as necessidades e interesses das camadas populares urge que, ao lado de mudanças estruturais no âmbito socioeconômico, sejam implementadas medidas visando transformar os processos de aquisição e desenvolvimento das capacidades humanas. O processo de construção e consolidação da democracia por que passa o nosso país está a exigir de seu povo a consciência crítica do momento histórico.
191
A educação fundamental é direito de todos e sua universalização urgente e necessária, devendo ser assegurada por políticas de acesso e permanência na escola. A consecução das metas constitucionais de superação do analfabetismo e universalização do ensino fundamental enseja a integração intra-setorial das políticas de educação de crianças, jovens e adultos e a articulação intersetorial com as demais políticas sociais (saúde, moradia, saneamento básico e assistência social) e de desenvolvimento (reforma agrária, geração de emprego e distribuição de renda). (Documento Final do Seminário Nacional de Educação de Jovens e Adultos. Natal, RN: 8-10 set 1996, p. 9)64
O Ministério da Educação - MEC não reconheceu esse documento, como também não
reconheceu a defesa que a ainda existente Comissão Nacional de Educação de Adultos lhe
fez. Mais que isso, lançou, na abertura do Encontro em Natal, sua concepção de atendimento a
jovens e adultos, expressa no âmbito do Programa Comunidade Solidária: Programa
Alfabetização Solidária – PAS, de viés compensatório, negador de todas as posições que os
representantes, reunidos, dispunham-se a defender na formulação do documento final. Após
esse momento, o MEC formulou, em nível de gabinete, sua própria concepção para a área,
defendida tanto na Conferência Regional Latino-Americana, da qual o Brasil foi sede, quanto
no evento internacional V CONFINTEA, realizado em Hamburgo, Alemanha, em julho de
1997.
Na Conferência Regional Preparatória, 1997, sediada em Brasília, congregando os
países do continente latino-americano, mais uma vez o Brasil sustentou a posição assumida
até então:
[...] continua a ser a de que o objetivo primeiro da política educacional é o de oferecer a formação adequada, na idade própria, no ensino fundamental, superando a repetência e a evasão e elevando a porcentagem de concluintes do ensino fundamental. Esta política eliminará, em muito, a necessidade de prover EJA, a não ser como educação continuada, [...] Trata-se, portanto, de afirmar a prioridade da ação preventiva. [...] Ainda que concentre seus esforços no fortalecimento da educação básica regular, o Brasil vem também se empenhando em conceber e implantar estratégias para recuperar as vítimas do déficit escolar passado e presente. (MEC, 1996-1997, p.6).
O país assumia, sozinho, posição contrária à que afirmava o mundo, que se punha de
acordo pela Declaração de Hamburgo, quanto ao direito à educação de jovens e adultos, mas
também como a chave para o século XXI, tanto conseqüência do exercício da cidadania,
como condição para uma plena participação na sociedade, afirmando, que a educação de
adultos: 64 O texto foi aprovado pelos delegados reunidos no plenário do Seminário Nacional de Educação de Jovens e Adultos (Natal, RN: 8-10/09/1996) e se origina da consolidação dos relatórios dos Encontros preparatórios realizados nas regiões Nordeste, Sul e Sudeste, Norte e Centro Oeste.
192
Além do mais, é um poderoso argumento em favor do desenvolvimento ecológico sustentável, da democracia, da justiça, da igualdade entre os sexos, do desenvolvimento socioeconômico e científico, além de ser um requisito fundamental para a construção de um mundo onde a violência cede lugar ao diálogo e à cultura de paz baseada na justiça. (V CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE EDUCAÇÃO DE ADULTOS, 1998, p. 89).
A concepção brasileira confrontava explicitamente com as posições de todas as
regiões do globo e dos chamados países centrais e periféricos, estes, sem exceção, defendendo
não apenas o direito de todos à educação, como também o de aprender por toda a vida, idéias
fortemente fertilizadas, segundo inúmeros depoimentos, pelo pensamento do educador Paulo
Freire. Destoando do concerto das nações presentes, entendia ser a educação de adultos um
“desvio” causado pelo fracasso do ensino fundamental de crianças. Tão logo este desvio fosse
corrigido, dizia o MEC, cessaria a necessidade da educação de adultos. Desse modo, entendia
a opção política de priorização do ensino fundamental para crianças, mesmo que, para isso,
deixasse de cumprir o direito constitucional, justificando essa priorização pelo aspecto
econômico, alegando falta de recursos para atuar em mais do que uma frente. Por essa lógica,
prometia estancar no primeiro quadriênio do longo Governo FHC a “fonte” de analfabetos,
pela universalização do ensino fundamental. Como a universalização, ou seja, o acesso por si
só não garante nem a permanência, nem o sucesso, esta mesma universalização acabou, por
fim, concorrendo para a manutenção das taxas e dos números que aí estão, porque não foi
conduzida tendo em paralelo a qualidade da educação.
55..66..33 LLDDBB ee ddiirreeiittoo àà EEJJAA
Em dezembro de 1996, oito anos depois da promulgação constitucional, a LDB nº.
9394 regulamentou o direito à educação para todos. Promulgada depois de intensa disputa
entre setores organizados, deputados e senadores, tanto nas Comissões, quanto nos gabinetes,
via seu texto final levado a termo, em manobra não-regimental promovida pelo Congresso
para satisfazer o projeto do Executivo, pelas mãos do Senador Darcy Ribeiro, nesse momento
seriamente doente, que aceita apor seu nome à lei da educação, como uma última
homenagem, ainda em vida. O projeto substituído, dentre muitas mudanças com o texto
original negociado, reafirma e busca ordenar em dois artigos, 37 e 38, a educação de jovens e
adultos, assim nomeada no Capítulo II, Seção V, abandonando de vez a perspectiva
compensatória da antiga formulação do ensino supletivo, rompendo de vez com essa
concepção/nominação.
Cury (BRASIL, 2000, p.21) assim se refere ao que a Lei referendou:
193
A LDB acompanha esta orientação, suprimindo a expressão ensino supletivo, embora mantendo o termo supletivo para os exames. Todavia, trata-se de uma manutenção nominal, já que tal continuidade se dá no interior de uma nova concepção. Termos remanescentes do ordenamento revogado devem ser considerados à luz do novo ordenamento e não pelos ordenamentos vindos da antiga lei. Isto significa vontade expressa de uma outra orientação para a Educação de Jovens e Adultos, a partir da nova concepção trazida pela lei ora aprovada.
Do ponto de vista conceitual, além da extensão da escolaridade obrigatória formalizada em 1967, os artigos 37 e 38 da LDB em vigor dão à EJA uma dignidade própria, mais ampla, e elimina uma visão de externalidade com relação ao assinalado como regular.
E continuando, acrescenta, para justificar a EJA como modalidade da educação básica:
A atual LDB abriga no seu Título V (Dos Níveis e Modalidades de Educação e Ensino), capítulo II (Da Educação Básica) a seção V denominada Da Educação de Jovens e Adultos. Os artigos 37 e 38 compõem esta seção. Logo, a EJA é uma modalidade da educação básica, nas suas etapas fundamental e média.
O termo modalidade é diminutivo latino de modus (modo, maneira) e expressa uma medida dentro de uma forma própria de ser. Ela tem, assim, um perfil próprio, uma feição especial diante de um processo considerado como medida de referência. Trata-se, pois, de um modo de existir com característica própria. (BRASIL, 2000, p. 18-19).
Reduzida a dois artigos, e entendida como modalidade da educação básica, observa-se
que são suficientes para estabelecer referências, porque não extensos e detalhados, não
engessando as possibilidades de pensar e realizar a EJA. Para os que querem muitas
definições, o risco da possível leitura aberta plena de significações e admitindo múltiplos
sentidos está posto, e não raro tem-se visto a mão de conselhos estaduais e municipais de
educação estreitando a interpretação que o legislador, nesse caso, intencionalmente ou por
acaso, deixou escapar.
Demarco aspectos que me parecem fundamentais assinalar nos artigos, como
constituidores das possibilidades pelas quais se deve fazer o direito à educação para todos:
No Art. 37, o primeiro aspecto amplia a abrangência da modalidade, estendendo-a ao
ensino médio, o que implica ampliar também para esse segmento a perspectiva do direito
anunciada pelo Art. 4º, inciso II, que trata do direito e do dever de educar, pela “progressiva
extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio”:
Art. 37. A educação de jovens e adultos será destinada àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e médio na idade própria.
194
No § 1º, garante-se a gratuidade e a especificidade da oferta aos jovens e adultos, ao
quais se devem oferecer “oportunidades educacionais apropriadas consideradas as
características do alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho, mediante cursos e
exames”. Observa-se que, nesse parágrafo, a preocupação está posta em garantir a proposta
pedagógica que possa servir aos objetivos dos sujeitos alunos, tanto pelo currículo proposto,
como também pelas questões estruturantes do atendimento, que dizem respeito a horários,
temáticas, tempo de permanência em classe, apontando, ainda, para as formas de cursos e
exames65, o que, se por um lado garante o processo de aprendizagem nos cursos, por outro
não exclui os exames como forma de atestar e confirmar aprendizados ao longo da vida, não
necessariamente realizados na escola. Parece-me que esse entendimento, no entanto, não tem
sido a tônica nos modelos de exames praticados, mesmo quando as formas de fazê-lo têm
evoluído, rompendo as de massa, para avaliações em bancas, em comissões permanentes etc.
Não pelos modelos, é claro, mas pelos instrumentos que, mesmo nos casos em que se
buscaram alternativas mais condizentes com a realidade dos sujeitos, o “conteúdo” desses
instrumentos é, ainda, pautado firmemente no escolar, sem chance de aferir conteúdos para
além da escola, da prática cotidiana, social e cidadã.
Na leitura do § 2º, atribui-se ao poder público a viabilização e estímulo ao “acesso e
permanência do trabalhador na escola, mediante ações integradas e complementares entre si”.
Cabe pensar, neste ponto, o que vem sendo entendido, na escola regular, como forma de
garantir a permanência: programas de merenda escolar e de livros didáticos — na maioria dos
casos ainda não acessíveis aos jovens e adultos. Como o texto se refere, diretamente, a
trabalhador, depreende-se, também, que a intenção do legislador tenha sido a de, na
perspectiva de fazer cumprir o direito, prever vantagens para empresas, por meio de
programas que favoreçam a redução da jornada de trabalho e acesso a classes mantidas nos
próprios locais de trabalho, garantindo também a permanência. Essas condições estavam
previstas no primeiro projeto da Constituição, no capítulo referente ao Trabalho, e foram
65 Na primeira alusão a exames, a lei não os adjetiva, o que vai fazer no caput do Art. 38, quando os qualifica como exames supletivos. A discussão sobre esse sentido foi travada em plenária de fóruns temáticos (de EJA, de Financiamento, de Ensino Médio e de Formação de Professores) no Rio de Janeiro, em março 2000, com o Conselheiro Jamil Cury, da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, contribuindo para a interpretação que assumiu no Parecer CEB/CNE 11 de 5 de maio de 2000 (p. 22), qual seja: “No art. 38, a concordância do adjetivo supletivos, do ponto de vista gramatical, é ambígua, isto é, pode referir-se tanto a ambos os substantivos - cursos e exames - como pode estar referido somente ao último, ou seja, somente a exames. Se a redação, do ponto de vista gramatical, dá margem à interpretação ambivalente, o novo conceito da EJA sob o novo ordenamento jurídico, considerando-se o conjunto e contexto da lei, reserva o adjetivo somente para os exames.”
195
umas das primeiras idéias derrotadas. Ações integradas entre MEC e Ministério do Trabalho e
Emprego – MTE, de toda forma, vêm acontecendo, embora com vínculos frágeis e esparsos.
Um dos instrumentos mais fortes que veio sendo utilizado pelo Ministério do Trabalho
– MTb (atual MTE), foi o Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT. Como um Fundo voltado
à formação profissional, esteve sempre sob a gestão desse Ministério, regulado a partir de um
comitê tripartite, formado pelo próprio Ministério, centrais sindicais representantes dos
trabalhadores e dos empresários. Essa estrutura reproduzia-se no nível dos estados para a
definição das políticas localizadas, e por meio dessas comissões é que se podia concorrer a
recursos para projetos. A despeito dos inúmeros problemas e das críticas que essa organização
do Fundo recebeu quanto às práticas e às exigências burocráticas criadas, e da dificuldade
para, por exemplo, municípios acessarem recursos, um aspecto teve bastante relevância na
inflexão que a política do Fundo tomou: o reconhecimento de que pouco adianta investir na
formação do trabalhador, se esse trabalhador não detém um mínimo de escolaridade. Esse
reconhecimento fez com que o MTb, por meio do FAT, por um certo tempo, investisse mais
do que o próprio MEC em educação básica de trabalhadores, permanecendo, inclusive, como
organismo responsável pela política de educação de jovens e adultos, então inexistente na
esfera do MEC.
Na leitura do Art. 38 explicita-se que cursos e exames supletivos serão mantidos pelos
sistemas de ensino, e que nesses cursos e exames estará compreendida “a base nacional
comum do currículo, habilitando ao prosseguimento de estudos em caráter regular”, mais uma
vez garante-se o direito, por assegurar a igualdade e a circularidade entre cursos, organizados
pela modalidade EJA, ou organizados pelo ensino regular; quanto por assegurar que a
aprovação em exames, mesmo sem os cursos, é garantia de continuidade. Em ambos os casos,
a continuidade tanto se pode dar pela forma regular quanto pela modalidade EJA, o que
mantém e expressa uma conquista já presente na Lei nº. 5692/71. Nos parágrafos e incisos
deste Artigo, ainda se legisla sobre as idades para esses exames, o que oferece a mão da lei
para conter ímpetos de substituir processos educacionais escolares, por provas de certificação,
que na prática, faltando a fiscalização do Estado, acabam por acontecer, por configurarem
caminhos supostamente mais rápidos de conclusão. “Os exames, sempre oferecidos por
instituição credenciada, são uma decorrência de um direito e não a finalidade dos cursos da
EJA”. (BRASIL, 2000, p. 22).
Devo destacar que um importante aspecto, nesses dois artigos, que possibilitam pensar
a perspectiva democrática, está posto no parágrafo 1º, quando se considera a diversidade dos
196
sujeitos. O reconhecimento dessa diversidade e as singularidades que comportam tem a ver
com democracia hegemônica e suas formas de representação e a tensão que se estabelece com
a participação: “a dificuldade de representar agendas e identidades específicas”, no dizer de
Santos (2002, p. 50), que ainda admite que:
[...] essas questões se colocam de modo mais agudo naqueles países nos quais existe maior diversidade étnica; entre aqueles grupos que têm maior dificuldade para ter seus direitos reconhecidos (BENHABIB, 1996; YOUNG, 2000); nos países nos quais a questão da diversidade de interesses se choca com o particularismo de elites econômicas (BORÓN, 1994).
Destaca, ainda, que essa pluralidade humana, reconhecida em uma concepção não-
hegemônica de democracia é justamente a ênfase para o que chama de uma nova gramática
social e cultural, porque essa democracia não depende primeiro das determinações e da
engenharia institucional para acontecer, mas exatamente o inverso: é a democracia uma forma
sociohistórica, uma forma de aperfeiçoamento da convivência humana, que implica ruptura
com tradições estabelecidas, tentando instituir novas determinações, novas normas e novas
leis. (SANTOS, 2002, p. 50-51).
Se a perspectiva do direito já viesse sendo cumprida, desde 1988, talvez os dados do
Censo 2000 revelassem mudanças concretas quanto à escolarização da população. Treze anos
poderiam representar alguma diferenciação nos projetos políticos que o país tem assumido
pelo voto.
Nesse amplo mosaico que a EJA vai desenhando, em iniciativas dispersas e
desagregadas, e pelo modo como o governo federal, principalmente o MEC, a compreendeu,
configura-se claramente a desresponsabilização política pela EJA, sistematicamente assumida
como ação social solidária, ou deixando-a em larga escala a cargo do Ministério do Trabalho,
que a executou com verbas do Fundo de Amparo ao Trabalhador - FAT, especialmente, a
formação geral do trabalhador, desde a alfabetização, como tarefa precedente à formação
profissional. Dados de 1998, apresentados em plenária, quando da realização do I Encontro
Nacional de EJA – ENEJA, no Rio de Janeiro, espantaram os delegados presentes. Enquanto a
Secretária de Ensino Fundamental do MEC, Profª. Iara Glória Areias Prado afirmava que não
havia demanda para a EJA, pois dos 35 milhões de reais de recursos destinados a projetos de
formação continuada muito pouco havia sido gasto, o representante do Ministério do
Trabalho, Nassim Mehedef, dizia que os gastos com recursos do FAT nessa modalidade
alcançavam dois bilhões de reais, pela concepção que o MTb tinha de que a baixa
escolaridade do trabalhador — e o analfabetismo aí incluído — eram fatores determinantes na
197
nova configuração do mundo do trabalho. Fazia-se o esforço de justificar as questões
estruturais que o modelo econômico impunha, uma vez mais responsabilizando a falta de
escolaridade dos trabalhadores como determinante do desemprego.
55..66..44 RReeaaffiirrmmaannddoo oo ddiirreeiittoo:: PPaarreecceerr CCNNEE nnºº.. 1111//22000000 ee nnoovvaass ccoonnttrraaddiiççõõeess
Recentemente, a necessidade de o Conselho Nacional de Educação – CNE normalizar
as Diretrizes Curriculares Nacionais para a EJA, realizada após um processo de ampla
discussão viabilizada por variados instrumentos, dentre eles o das audiências públicas, como
instrumento da construção democrática, permitiu ao Conselheiro Jamil Cury entabular um
diálogo plural com os atores da EJA pelo país e, ouvindo-os, sensivelmente, incorporar e
apreender sentidos e significados que vêm constituindo as práticas nos mais diversos espaços
de atuação.
Invoco Cury, quando, no texto do Parecer CNE nº. 11/2000, afirma:
No Brasil, país que ainda se ressente de uma formação escravocrata e hierárquica, a EJA foi vista como uma compensação e não como um direito. Esta tradição foi alterada em nossos códigos legais, na medida em que a EJA, tornando-se direito, desloca a idéia de compensação substituindo-a pelas de reparação e eqüidade. Mas ainda resta muito caminho pela frente a fim de que a EJA se efetive como uma educação permanente a serviço do pleno desenvolvimento do educando. (BRASIL, 2000, p. 46).
O Conselheiro, na defesa firme que faz em todo o texto do direito à educação de
jovens e adultos, entende que, para corrigir os erros históricos promotores de exclusão, e
tendo no horizonte os acordos firmados que assumem a perspectiva da educação como direito
humano fundamental, explicita para a EJA três funções: a reparadora (que devolve a
escolarização não conseguida quando criança); a equalizadora (que cuida de pensar
politicamente a necessidade de oferta maior para quem é mais desigual do ponto de vista da
escolarização); a qualificadora (entendida esta como o verdadeiro sentido da EJA, por
possibilitar o aprender por toda a vida, em processos de educação continuada).
No entanto, essa formulação é feita em um contexto em que se assumia uma
compreensão reduzida do que cabia à educação de jovens e adultos, revelada pela política de
quase exclusividade de atendimento à criança no ensino fundamental, tanto em documentos,
planos, ações e declarações de autoridades em momentos de importante definição, como pelas
alternativas compensatórias sob forma de ação social que se prorrogavam pelos dois mandatos
presidenciais de Fernando Henrique Cardoso. Aos não-alfabetizados e aos subescolarizados
198
restavam os programas compensatórios de assistência social, sem a responsabilidade do
referido Ministério. As ofertas “públicas” que surgiram a partir daí vieram pelo viés da
assistência social, obra de voluntários, uma vez mais alívio para a pobreza. A visão estreita
que esta concepção encerra deixa de incorporar toda a construção até então feita, em que a
educação de jovens e adultos é vista como um processo de educação continuada,
indispensável para acompanhar a velocidade e a contemporaneidade do desenvolvimento das
ciências, técnicas, tecnologia, das artes, expressões, linguagens, culturas, enfim, que o mundo
— especialmente a partir do fenômeno da globalização — vem conferindo à história. Na
contramão, as políticas governamentais promoveram a exclusão, deixando de garantir o
direito à “cidadania inteira”66 a tão largo contingente populacional.
Essa política quase excludente do atendimento educacional a outras faixas etárias —
aliada às que favoreceram o empobrecimento das populações e mesmo a miserabilização de
milhões —, agravou-se, quando se analisa a realidade da educação. Somando-a aos resultados
da escola brasileira que cresce em atendimento, inegavelmente, mas não em sua qualidade,
passa-se a produzir, com intensidade, um expressivo contingente de jovens que demandam
uma outra modalidade de educação, então só de adultos. Isto ampliou, não apenas no Brasil,
mas em diversos países, afetados pelas mesmas condições estruturais e conjunturais, o
conceito de educação de adultos de antes, para o de jovens e adultos, pelo reconhecimento
desses novos sujeitos como demandatários dessa modalidade de atendimento. Aponto, nesse
momento, um aspecto extremamente relevante, o surgimento do segmento jovem na
formulação do campo educacional que abrange. Inicialmente, a área limitava-se aos adultos,
como se os jovens já não estivessem, desde sempre, incluídos nessa modalidade de educação.
Os conceitos de juventude e de vida adulta, porque históricos, mudam, marcando e
dissociando segmentos ocultados na área de EJA (ABRAMO, 1997; SPOSITO, 1997;
PERALVA, 1997; MELUCCI, 1997; GOMES, 1997). E o que pode significar a presença
ampliada do jovem em projetos dessa natureza, no sentido de formular novas enunciações
conceituais?
Reconhecer a educação como um direito para todos os segmentos populacionais,
independente de classe, raça, gênero, idade entre outros, ainda faz parte da luta pela
construção de uma sociedade cidadã e plural. Contudo, inserir a EJA efetivamente no
conjunto das políticas públicas de direito ainda é um desafio para os diferentes governos e 66 Estou usando a expressão “cidadania inteira” em oposição à idéia de “meio cidadão”, forma como venho denominando o direito político do voto, nos termos em que consta da Constituição: o analfabeto vota, mas não pode ser votado.
199
para a sociedade como um todo. Como alerta Beisiegel (1997, p. 31), “durante muito tempo
ainda, as miseráveis condições de vida de amplos setores da população e as condições de
funcionamento do próprio sistema no país continuarão a produzir elevados contingentes de
jovens analfabetos. O sistema escolar não pode ignorá-los”.
Resumindo, o MEC assumiu durante anos o não-cumprimento do dever pelo Estado,
sem que até hoje fosse incomodado por ferir um preceito constitucional, posto como direito
público subjetivo, como assumiu também a concepção de que a EJA é tão somente a
escolarização, abandonando por completo a função social da qualificação (cf. Parecer CNE nº.
11/2000), como direito a aprender por toda a vida, continuadamente. A tarefa de zelar pela
Constituição, outorgada ao Ministério Público, ainda é frágil, especialmente em relação a
determinada sorte de direitos. Na sociedade de consumo, em que a cidadania se confunde com
o direito a ser consumidor, quase basta que se garanta a satisfação do cliente, motivo pelo
qual se mobilizam as forças sociais.
No balanço de Dacar, em abril de 200067, verificando o atingimento das metas de
Jomtien, todos os demais países, inclusive os desenvolvidos, chegam ao final da década em
situação educacional mais grave do que exibiam antes de assumir os compromissos da
Declaração. Constatado o descaso com a educação, fruto das políticas neoliberais que
grassaram na década de 1990, redefiniram-se metas e dilataram-se os acordos para os
próximos 15 anos, na tentativa de recuperar o tempo perdido.
Em janeiro de 2001, o Plano Nacional de Educação - PNE, homologado com vetos
presidenciais aos recursos, nasceu frágil, sem deixar ver em curto prazo saídas possíveis para
executar efetivamente um projeto emancipatório para a educação brasileira. No caso da EJA,
as metas e as diretrizes precisavam de sintonia e de vontade política para que se tornassem
realidade. Mais uma vez a educação de jovens e adultos sofre vetos, comprometendo a
construção social do direito que timidamente resiste.
67 El Foro tenía como propósito presentar los resultados globales de la evaluación de la década de "Educación para Todos" (EPT) -lanzada en Jomtien, Tailandia, en marzo de 1990 — y aprobar un nuevo Marco de Acción, fundamentalmente para continuar la tarea. Para continuarla, pues —como ya era evidente desde mitad de la década — no se alcanzaron las seis metas que se fijaron en Jomtien para el año 2000. El Marco de Acción aprobado en Dakar esencialmente “reafirma” la visión y las metas acordadas en Jomtien en 1990 y corre ahora el plazo 15 años más, hasta el año 2015. ¿Por qué 15? Nadie puede dar una respuesta científica o un cálculo razonado. (In: TORRES, Rosa Maria. Que pasó en el Fórum de Dakar? abr. 2000).
200
55..66..55 PPoollííttiiccaass ppúúbblliiccaass ddee EEJJAA —— rreeaacceennddeennddoo aa eessppeerraannççaa
Quando se aprofunda a compreensão e se parte para verificar a questão do
analfabetismo jovem e adulto, a situação é ainda mais grave e sobre ela há muito a refletir. No
intervalo das duas Conferências de Educação para Todos, foi firmada, em julho de 1997, em
Hamburgo, na Alemanha, a Declaração pela Educação de Adultos, reiterando a importância
dessa modalidade para as sociedades contemporâneas, especialmente resgatando o verdadeiro
sentido da EJA, o da educação continuada, pelo direito de aprender por toda a vida68.
Não apenas o Brasil se destacou negativamente no plano educacional nesta última
década, mas todos os países do mundo, reunidos em Dacar, em abril de 2000, confirmaram
que as metas firmadas em Jomtien, em 1990, não foram alcançadas. O que coube, então, à
Conferência? Reafirmar os compromissos, tendo agora 2015 como horizonte:
[...] é inaceitável que, no ano 2000, mais de 113 milhões de crianças continuem sem acesso ao ensino primário, que 880 milhões de adultos sejam analfabetos, [...] Sem o progresso acelerado para uma Educação para Todos, as metas nacionais e internacionais acordadas para a redução da pobreza não serão alcançadas e serão ampliadas as desigualdades entre nações e dentro das sociedades.
O Balanço Intermediário da V Conferência Internacional de Educação de Adultos, a
CONFINTEA + 6, em setembro 2003 em Bangcoc, Tailândia, também reafirmou o quanto
estamos longe dos acordos estabelecidos em Hamburgo69 e faz novo “Chamado à Ação e à
Responsabilização” aos Estados Membros, às agências da ONU, às organizações não-
68 12. O reconhecimento do “Direito à Educação” e do “Direito a Aprender por Toda a Vida” é, mais do que nunca, uma necessidade: é o direito de ler e escrever; de questionar e de analisar; de ter acesso a recursos e de desenvolver e praticar habilidades e competências individuais e coletivas. (DECLARAÇÃO DE HAMBURGO, 1997, p. 93). 69 Nós, participantes do Balanço Intermediário da V Conferência Internacional de Educação de Adultos (V CONFINTEA) chegamos à conclusão de que, não obstante os compromissos assumidos em 1997 com a Declaração de Hamburgo e A Agenda para o Futuro, a educação e aprendizagem de adultos não receberam a atenção que merecem nas principais reformas educacionais e nas recentes iniciativas internacionais para eliminar a pobreza, alcançar a eqüidade de gênero, prover a educação para todos e fomentar o desenvolvimento sustentável. Nosso Balanço Intermediário da situação mundial da educação e aprendizagem de adultos – conduzida de forma temática, global, regional, nacional e local, pelos governos, pelas organizações não-governamentais e da sociedade civil, pelas redes engajadas, pelos movimentos sociais e por outros parceiros – tem revelado, efetivamente, uma regressão inquietante neste campo. Temos constatado um declínio no financiamento público para a educação e aprendizagem de adultos, mesmo considerando que a meta mínima de alfabetismo estabelecida no Marco de Ação de Dakar é alcançável – exigindo apenas US$ 2,8 bilhões por ano. Ademais, o apoio dado tanto pelas agências internacionais quanto por governos nacionais tem se concentrado na educação básica formal para crianças, em detrimento e descuido para com a educação e aprendizagem de adultos. (CHAMADA À AÇÃO E À RESPONSABILIZAÇÃO. Declaração aprovada no Balanço Intermediário da V Conferência Internacional de Educação de Adultos, realizada em Bangcoc, Tailândia, de 8 a 11 de setembro de 2003).
201
governamentais e à sociedade civil, assim como parceiros sociais e privados para organizar a
VI Conferência Internacional de Educação de Adultos em 2009 para, em processo de
monitoramento e avaliação coletiva, acompanhar a situação de aprendizagem e da educação
de adultos no mundo.
Dados brasileiros mostram mudanças de índices, embora o contingente sem
escolaridade de ensino fundamental, obrigatório e direito de todos, por preceito
constitucional, esteja longe de ser atingido. Uma nova Década da Alfabetização se instaura e
reacendem-se os fogos com a prioridade do governo federal instalado em 2003, posta na
alfabetização de jovens e adultos, nunca dantes assumida como tal.
Apesar disso, da prioridade de governo, cujas metas são desafiadoras, os recursos são
ainda restritos, embora o compromisso ético com os desfavorecidos se apresente como
irrenunciável. Entre educadores, as dúvidas surgem de toda parte, os desejos foram frustrados,
porque o direito ainda não está posto no horizonte das políticas públicas. Alfabetizar, sem a
garantia da escolarização é insuficiente para alterar o quadro da desigualdade e da exclusão do
direito à educação. Como sujeitos de um direito interditado socialmente, jovens e adultos,
quando imersos na atividade do trabalho, são exigidos, contraditoriamente, da competência
para aquilo que lhes foi interditado: saber ler e escrever. Se não são trabalhadores, o não saber
ler e escrever acaba sendo a causa eficiente que lhes faz passar de vítimas a culpados.
No atual momento político, depois de passar um ano no embate da prioridade para a
alfabetização de adultos, defendida pelo MEC x continuidade da EJA, bandeira antiga dos
educadores e dos Fóruns, o governo brasileiro reconhece o movimento histórico nacional e
internacional de luta em defesa do direito à educação para todos, assumindo o desafio de
organizar, como política pública, especialmente, a área de EJA, não se restringindo mais ao
campo da alfabetização. A partir de 2004 investe no alargamento político da EJA, entendendo
que um programa de alfabetização, sem garantir o direito à continuidade, é pouco para fazer
justiça social a tantos excluídos do direito à educação. Assim, estabeleceu que a continuidade
de estudos é meta inalienável da EJA, que também se põe, como desafio, a garantia do acesso
ao ensino médio, por via da mesma modalidade. Esse ponto de chegada, no entanto, não é
outorga, nem beneplácito das autoridades e dos dirigentes. É fruto da luta social organizada,
da qual os Fóruns de EJA vêm assumindo estreita responsabilidade. A EJA, com o sentido de
aprender por toda a vida, em múltiplos espaços sociais, responde às exigências do mundo
contemporâneo, para além da escola. Como modalidade de ensino, descortina um modo de
202
fazer educação diferente do regular, que começa na alfabetização, mas não pára aí, porque o
direito remete, pelo menos, ao nível do ensino fundamental.
Desigualdade e exclusão de toda sorte na sociedade brasileira e a perspectiva de
instituição de direitos definem, em verdade, a realidade da EJA, exigindo que o foco em
processos educativos esteja, pois, na diversidade de sujeitos.
É para eles que os projetos de educação de jovens e adultos precisam voltar-se, para
além da escolarização, embora se saiba o quanto ainda devemos avançar, de modo a garantir o
direito à educação negado a tantos jovens e a tantos adultos. As distâncias entre os sujeitos
que têm acesso aos bens culturais, aos avanços tecnológicos e os que não têm é
incomensurável, e cada dia mais se produzem apartações de toda ordem, desafiando a
possibilidade de compreensão, porque imersas numa extensa e complexa rede, à espera de
desvendamentos. Implica traduzir e apreender essa complexidade, não apenas ditada pelas
tecnologias da informação e da comunicação, mas também pelos bens e valores que
conformam a era em que vivemos: câmeras digitais de memórias que desafiam as nossas;
microcomputadores de todos os tamanhos e tipos, que se levam na palma da mão; celulares de
múltiplas funções aliados e confrontados com os livros — páginas que encerram códigos de
talvez mais difícil decifração, associados a crises éticas, violência, ausência de cidadania,
tênue vivência democrática.
Como política pública, pensar a educação nessa modalidade implica não apenas tomar
o sistema educativo formal nas mãos, mas assumir o concurso da sociedade em todas as
iniciativas que vem fazendo, para manter viva a chama do direito ainda não feito prática para
todos. Implica, também, assumir que a sociedade educa em todas as práticas que realiza, que
as cidades educam, e que projetos de nação e políticas de governo têm um vigoroso papel
pedagógico, se intencionalmente dispostos a transformar a realidade, incluindo a idéia de que:
[...] la educación y el aprendizaje de adultos conforman una clave indispensable para liberar las fuerzas creativas de las personas, los movimientos sociales y las naciones. La paz, la justicia, la autoconfianza, el desarrollo económico, la cohesión social y la solidaridad siguen siendo metas y obligaciones indispensables que habrá que seguir persiguiendo y reforzando en y a través de la educación y el aprendizaje de adultos. (CONFINTEA V Mid Term, 2003, p. 22)70.
Educar jovens e adultos, em última instância, não se restringe a tratar de conteúdos
intelectuais, mas implica lidar com valores, com formas de respeitar e reconhecer as 70 In: La renovación del compromiso con la educación y el aprendizaje de adultos. Informe en síntesis sobre el Balance Intermedio, CONFINTEA V, Bangkok, Tailandia, 6–11 de septiembre 2003.
203
diferenças e os iguais. E isto se faz desde o lugar que passam a ocupar nas políticas públicas,
como sujeitos de direitos. Nenhuma aprendizagem, portanto, pode-se fazer destituída do
sentido ético, humano e solidário que justifica a condição de seres humanizados, providos de
inteligência, senhores de direitos inalienáveis.
55..66..66 RReeiinnvveennttaannddoo aa eemmaanncciippaaççããoo ssoocciiaall:: ooss FFóórruunnss ddee EEJJAA ee oo ddiirreeiittoo
Alternativas cidadãs, no entanto, vêm ganhando corpo e legitimidade no cenário
público, talvez inscrevendo outras razões e lógicas que passam a tensionar os poderes, porque,
coletivamente, fundamentam e fortalecem pequenos e indispensáveis atores sociais, em cena,
que ocupam cada vez mais o lugar central dos governos federal e estaduais.
Dessa forma, a sociedade civil ganha um papel extraordinário na consolidação de
direitos, particularmente os relacionados à EJA. A despeito do reconhecimento dessa
realidade, constatam-se avanços significativos no campo das ordenações jurídicas,
legislações, acordos, ampliação do acesso e o reconhecimento de novas práticas em que o
sujeito ganha centralidade nos processos educacionais. Assim, a formulação e execução de
novas políticas públicas acompanham um movimento da sociedade organizada, não como
espaço de outorga do Estado, mas como movimento de resistência, levando à incorporação de
direitos e, conseqüentemente, à perspectiva de inclusão de uma diversidade de sujeitos. Tal
movimento ganha expressão, por meio da construção de uma agenda pela EJA, que vem
sendo sustentada pela mobilização de amplos setores da sociedade organizada, congregando
movimentos sociais e sindicais, organizações não-governamentais, entidades de pesquisa,
universidades e setores técnicos.
Em movimento, a sociedade organizada, representada por articulações informais em
sua maioria, os Fóruns de EJA, vem resistindo às políticas e suas enunciações, propondo
ações e práticas claramente antagônicas e de compreensão ampliada em relação ao lugar que a
EJA deve ocupar oficialmente. Além desses, os atores diretamente envolvidos com as ações
na ponta dos processos — professores e educadores em geral — são, em última instância, os
responsáveis por esses “modos de fazer”, as práticas, que no cotidiano fundam e refundam as
verdadeiras expressões do que é a EJA, nesse tempo histórico que desejo compreender. A
“reinvenção da emancipação social”, no dizer de Santos (2002, p. 22-23) não pode esquecer
que:
[...] esse movimento é baseado em iniciativas locais destinadas a mobilizar lutas locais, mesmo que para resistir a poderes translocais, nacionais ou
204
globais. [...] pode fazer esquecer que a resistência à opressão é uma tarefa quotidiana, protagonizada por gente anônima, fora da atenção e que sem essa resistência o movimento democrático transnacional não é auto-sustentável.
Os estudos de Gohn (2002, p. 251) me levam a compreender o Fórum como um típico
movimento social de meados dos anos 1990, tais como conselhos, articulações etc.,
caracterizados por uma “ação sociopolítica construída por atores sociais coletivos
pertencentes a diferentes classes e camadas sociais, articuladas em certos cenários da
conjuntura econômica e política de um país, criando um campo político de força social na
sociedade”. Gohn (2002, p. 252) ainda afirma: “trata-se de coletivos que no processo de ação
sociopolítica desenvolvem uma identidade de forma que se apresentam como atores
coletivos”.
O Fórum EJA/RJ, estudado por Dantas (2005), tem-se configurado como um espaço
em que diversos atores sociais, de diferentes concepções, identificam-se em torno da
problemática das políticas de EJA no país e unem forças e criam estratégias, encaixando-se na
caracterização proposta. Para Certeau (1994, p. 99) a criação de estratégias dá-se pelo
controle de relações de poder a partir do momento em que o “sujeito de querer e poder” pode
afastar-se das situações conflitantes do cotidiano, conferindo uma visão ampliada sobre os
“alvos”. Pela estratégia é possível dominar elementos que permitem controlar uma relação ou
adversário e constituir um novo poder.
Os Fóruns de EJA têm resistido, como uma dessas alternativas, aos desabamentos
constantes que obstruem os caminhos em construção na EJA, sedimentando, com a própria
matéria que desaba, novas fundações. As ações afirmativas que vêm propondo reafirmam
alguns direitos sociais diluídos e valores antes esgarçados, como a solidariedade, definem e
supõem novas formas de participação cidadã, no espaço das políticas públicas municipais.
Nesse espaço, a constituição do direito ao ensino fundamental para jovens e adultos vem-se
fazendo lentamente, mas institucionalizando, como dever municipal, como se espera da
proteção que um poder público deva oferecer à cidadania.
Com essas preocupações, iniciou-se no Estado do Rio de Janeiro, em junho de 1996,
quando da discussão nacional preparatória para a V Conferência Internacional de Educação de
Adultos – CONFINTEA, uma estratégia de incorporação da EJA aos direitos expressos em
políticas públicas, pautada na articulação informal de entidades públicas, não-governamentais
e educadores em geral, conhecida como Fórum de Educação de Jovens e Adultos. Este, o
primeiro instalado, seguindo-se a ele o Fórum Permanente de Educação Infantil. Mais adiante,
205
foram criados, também no Rio de Janeiro, os Fóruns de Educação Especial, de Ensino Médio
e de Financiamento da Educação, todos de periodicidade mensal. No correr do tempo, apenas
o de EJA e o de Educação Infantil conseguiram se manter íntegros, sem rupturas de qualquer
espécie.
Por articulação informal, deve-se entender que os Fóruns não têm “dono”, não são
propriedade de nenhuma instituição, mas resultam dos esforços de várias pessoas/entidades
que acreditam na idéia e na possibilidade de gestão compartilhada e cooperativa para tomar
decisões e propor alternativas. Significa dizer que o poder circula, não está centralizado, não é
hierárquico. Além disso, por não exigir representação de entidades, seus participantes são
autônomos nas deliberações que tomam, independente das posições e cargos que ocupam, o
que implica, necessariamente, uma negociação constante dos “desejos” acordados nos Fóruns
com os limites expressos pelos poderes constituídos em todos os níveis. Por meio deles, foi
possível fortalecer e consolidar uma rede de saberes de baixa competitividade e alta
cooperatividade, permitindo que todos assumam lugares iguais nas negociações que são ali
estabelecidas. Experimenta-se a democracia, reinventando-a.
Tal estratégia, certamente, contribuiu para a desconstrução de posturas e atitudes
centralizadoras, adquiridas ao longo de muitos anos em nossa sociedade, possibilitando o
estabelecimento de relações paritárias e solidárias, fatores decisivos para um processo de
democratização da educação nas esferas locais, como preconiza a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (Lei nº. 9394, de 20/12/1996).
Questões como essas, trazidas à tona na trajetória dos Fóruns, conferem a eles o
caráter de vasto campo de investigação, sobretudo pelo desconhecimento que ainda se revela
acerca das instâncias locais de ação política e de administração públicas.
O crescimento do Fórum EJA/RJ ocorreu na mesma proporção em que passou a
abordar, progressivamente, temas variados, abrangentes e afetos às questões prementes do
cotidiano dos educadores e das redes públicas, funcionando, quase sempre, como espaço
privilegiado de formação. Guarda, ainda, como característica marcante, o fato de contribuir
para a ampliação dos olhares voltados para a educação e para a interlocução de diferentes
posições políticas, sem que isto signifique adesão a uma específica. Por ser aberto a todos, aos
poucos, a participação de secretarias municipais de educação e de outros órgãos de governo
tornou-se tão significativa quanto a de educadores independentes, de instituições privadas e de
organizações não-governamentais, de universidades, de entidades filantrópicas e de
movimentos sociais.
206
A experiência fluminense deu frutos em muitos outros Estados, com a colaboração de
pessoas do Rio de Janeiro, e depois de outras pessoas dos fóruns que se iam formando, para
iniciar atividades semelhantes. Os Fóruns de EJA, como movimento social, caracterizam-se
pela diversidade na forma como vêm se constituindo e pela capacidade de mobilização com
que se têm instalado, alcançando, atualmente, quase todo o território nacional. Em 2005, são
26 os Fóruns Estaduais presentes e 34 Fóruns regionais e apresentam a seguinte configuração
nos estados e Distrito Federal: Região Norte — Rondônia (RO) e Regional RO (Ji-Paraná),
Roraima (RR), Amazonas (AM), Tocantins (TO), Pará (PA), Acre (AC); Região Sul — Rio
Grande do Sul (RS), Fórum RS e Fóruns Regionais (Serra, Litoral, Fronteira, Santa Cruz,
Central, Pelotas, Noroeste, Porto Alegre/Grande Porto Alegre), Santa Catarina (SC) e Fóruns
Regionais (Grande Florianópolis, Concórdia e Criciúma) Paraná (PR); Região Sudeste —
Espírito Santo (ES), Minas Gerais (MG) e Fóruns Regionais de MG (Vale das Vertentes,
Norte, Sudeste, Leste, Centro-Oeste, Inconfidentes e Zona da Mata), Rio de Janeiro (RJ), São
Paulo (SP) e Fóruns Regionais SP (Nordeste e Oeste); Região Centro-Oeste — Mato Grosso
(MT) e Fórum Regional Norte do Mato Grosso; Mato Grosso do Sul (MS), Distrito Federal
(DF), Goiás (GO); Região Nordeste — Bahia (BA), Fórum Regional BA (Extremo Sul);
Maranhão (MA); Piauí (PI), Alagoas (AL), Sergipe (SE); Rio Grande do Norte (RN), Paraíba
(PB), Pernambuco (PE) e Fóruns Regionais (Metropolitano, Litoral Sul, Mata Sul, Mata
Centro, Vale do Capibaribe, Agreste Meridional, Sertão do Moxotó-Ipanema, Submédio São
Francisco, Sertão do Araripe, Sertão Central e Vale do São Francisco); Ceará (CE).
Com modelos diferenciados, modos de organização e de operação distintos, exigem
estudos e conhecimento de suas formas de gestão; de fortalecimento (como constituidores de
núcleos de poder); de resistência às propostas homogeneizantes que encontram acolhida em
governos de traço autoritário. Organizados como articulação informal, têm encontrado modos
de gestão e apontado perspectivas de resistência que vêm sendo capazes de interferir, em
muitos casos, nas políticas locais e nacionais, no sentido de que, cada vez mais, possam ser
assumidas como políticas públicas, dada a relevância da participação e da consciência do
lugar político dos educadores, em defesa do direito à educação.
A idéia de realizar, anualmente, encontros nacionais, ampliando a agenda pública da
EJA, surgiu no evento ocorrido no Paraná, após um ano de Hamburgo, em 1998, por
convocação da Oficina Regional da UNESCO – OREALC/Chile, para um balanço do
encaminhamento das ações firmadas. A experiência bem-sucedida animou os participantes a
manterem um vínculo anual que, desde aí, não mais se interrompeu. A primeira edição
207
realizou-se em 1999 no Rio de Janeiro, já com o expressivo apoio do Fórum RJ às entidades
mobilizadas para tal fim — SESI/Departamento Nacional, Ministério do Trabalho, Programa
de Alfabetização Solidária, CONSED, UNDIME entre outros, que tentavam fazer o MEC
assumir, de forma diferente da que vinha assumindo, a EJA; em 2000, em Campina Grande,
na Paraíba, as secretarias municipais de educação local e de João Pessoa, principalmente, com
o apoio da UFPB e do Fórum PB, interiorizaram o II ENEJA, enraizando-o no Nordeste, com
toda a complexidade da elevada demanda; em 2001, o Fórum SP, juntando-se à Prefeitura de
São Paulo então eleita, do Partido dos Trabalhadores, realizou o III ENEJA, desenhando um
modelo beneficiador de um largo conjunto de professores da rede pública da capital; já nesse
momento, 11 Fóruns eram registrados pela plenária de Fóruns, constitutiva do evento; em
2002, foi a vez do Fórum Mineiro assumir a coordenação local, em Belo Horizonte, para
acolher os participantes de todos os estados, que vinham integrando delegações de mais
Fóruns já formados, reafirmando a disposição de continuar em marcha o movimento nacional
organizado dos Fóruns EJA; em 2003, em Cuiabá, Mato Grosso, a sexta edição teve lugar,
demonstrando o vigor com que o movimento avançava; em 2004, o Fórum RS, em Porto
Alegre, acolheu, no âmbito da tradição que vem sendo construída nos últimos anos de que
“outro mundo/outra educação é possível”, o VI ENEJA e, em 2005, em Brasília, o VII
ENEJA marcou com sua mobilização o território do poder central, aprofundando e ampliando
as perspectivas de organização nacional, sob o tema da Diversidade na EJA: papel do Estado
e dos movimentos sociais nas políticas públicas.
O Encontro Nacional de Educação de Jovens e Adultos - ENEJA tem representado um
esforço de articulação dos Fóruns com múltiplos parceiros de nível nacional e internacional
— UNESCO, MEC, MTE e entidades a eles correlatas, como CONSED, UNDIME, e ainda o
MRA/INCRA, responsável pelo PRONERA – Programa Nacional de Educação na Reforma
Agrária, todos com maior ou menor participação, em função da conjuntura política de cada
ano. Além desses, o Sistema S, entre outros, tem participado ativamente. De caráter
propositivo, nesse evento, delegados indicados segundo critérios de representação por
segmentos nos Fóruns Estaduais e Regionais somam-se aos indicados em menor número,
pelos poderes estaduais, nos estados em que ainda não há Fórum, garantindo a representação
de todos as unidades da federação ao evento.
Uma importante parceria que para os Encontros Nacionais desempenhou papel
fundamental, principalmente quando o poder público da área mantinha-se reticente e afastado
das demandas políticas dos Fóruns, no sentido de questionar as ações que se vinham
208
desenvolvendo, foi a Rede de Apoio à Ação Alfabetizadora no Brasil – RAAAB. Esta Rede,
originária do Nordeste, em meados dos anos 1980, em prol da alfabetização empreendida por
organizações não-governamentais, cuja expressão máxima foram as Feiras de Alfabetização
(a última em Recife, 1997, em data imediatamente seqüente à da V CONFINTEA), foi
deixando o lugar protagônico da resistência em benefício dos Fóruns, que na prática
conseguiram a adesão e a formação de uma rede muito maior e mais potente, do que o modelo
com o qual a RAAAB se forjara. Embora permaneça associada aos Fóruns e aos ENEJA, com
visibilidade inconteste para muitas questões, inclusive em relação ao Conselho de Educação
de Adultos para a América Latina – CEAAL, em outros casos atua como coadjuvante, o que
de forma alguma tem significado seu desprestígio. Pelo contrário, tem sido fortalecida, desde
que em 1999 sofreu reformulações profundas, abrindo-se para a realidade social da EJA, que
incluía múltiplos atores, para além das ONGs. Pode-se dizer que a RAAAB, que tanto
sustentou a organização nacional dos Fóruns, na atualidade recebe dele a deferência e o
legítimo lugar da tradição de luta dos movimentos sociais — uma espécie de velho sábio com
quem se dialoga e a quem se dedica tempo e escuta atenta.
Os encontros nacionais também têm reservado significativo espaço para a reunião e
troca de experiências dos fazeres dos Fóruns. A plenária dos Fóruns tem possibilitado não
apenas reconhecer as diferentes concepções, metodologias e estratégias de atuação desses
Fóruns, em direção ao sentido democrático da luta pelo direito de todos à educação, mas
também reforçar o conjunto de ações nacionais, mediante a representatividade na Comissão
Nacional de Fóruns de EJA. Esta Comissão, no entanto, tem lidado com muitas dificuldades
para se manter como um novo coletivo, à distância. As inúmeras inserções dos sujeitos ali
representados têm ocupado um tempo ainda não possível de produzir visibilidade e ação
política efetiva na consolidação do sentido desta Comissão.
Os encontros nacionais não trazem apenas o espírito de seminários/congressos, mas se
destacam por serem um espaço político sintonizado com o momento histórico, no sentido de
afirmar e consolidar estratégias, posições e compreensões acerca das políticas públicas
nacionais e dos movimentos internacionais que se fazem na área, com vistas a interferir nessas
políticas, em defesa do direito de todos à educação.
O Brasil tem, certamente, um novo cenário na EJA, e cada vez mais os novos atores
sociais estão se empenhando para que sejam reconhecidos como interlocutores legítimos das
instâncias do poder central — MEC, especialmente, representando a vontade e o
compromisso de educadores e de instituições fazedoras da educação de jovens e adultos, em
209
múltiplos espaços do país. A disposição dos Fóruns em assumir compromissos políticos
efetivos — mantendo sobretudo a sua autonomia —, como parceiros, com ânimo suficiente
para mudar as condições em que a EJA vem se realizando no âmbito de ação local, regional e
nacional, adiciona-se à rede de pessoas, afetos e subjetividades postos em relação. Por meio
deles, toma-se consciência de que as práticas cotidianas são capazes de alterar as lógicas do
jogo político, desde que se as organize para além de táticas (CERTEAU, 1994), e sim como
estratégias de resistência e de transformação.
Enfim, os Fóruns tem como uma das grandes missões ampliar a compreensão de EJA,
clareando toda a riqueza que lhe é inerente, abrindo-se para novas possibilidades e
necessidades do fazer educativo. Resgatando Freire (1997, p. 154) “o sujeito que se abre ao
mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como
inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na história”. A
sustentabilidade dos Fóruns é reflexo dessa abertura e da disposição para a transformação
desse modo de se fazer educação, compreendendo a dimensão solidária e intercultural que
essa prática exige. Poucas experiências com esse caráter têm, ou tiveram, tanta permanência.
210
66.. PPRROOGGRRAAMMAA DDEE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE JJOOVVEENNSS EE AADDUULLTTOOSS DDAA SSEECCRREETTAARRIIAA DDEE
EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDOO EESSTTAADDOO DDAA BBAAHHIIAA —— DDAASS VVIIVVÊÊNNCCIIAASS ÀÀSS
CCOOMMPPRREEEENNSSÕÕEESS
A discussão do Programa de Educação de Jovens e Adultos da Secretaria de Educação
do Estado da Bahia e das formas como tem sido concebido, encaminhado e assumido pelos
profissionais da rede pública, ocorrerá de modo mais subjetivo, pelo fato de ter participado,
em parte desse processo, como consultora de alguns projetos, apoiando as discussões e
contribuindo na reflexão coletiva empreendida durante toda a proposta metodológica, em
2002 e 2003, revisionando as duas etapas do programa voltado ao ensino fundamental.
Como é de se esperar, portanto, o conhecimento sobre o processo de reformulação do
Programa Aceleração I e II71 — sobre o qual incide meu foco — e a nova proposta a partir daí
gerada, indicam um olhar de dentro, próprio de mergulhadores que, do fundo dos oceanos,
falam da visão singular de um mar, de peixes, de paisagens submarinas, visão esta conhecida
de poucos:
[...] mergulhador, sondo a escura voragem Na ânsia de descobrir, nos mais fundos arcanos Sob o oceano, oceanos; e além, a minha imagem. (Vinícius de Moraes, O Mergulhador).
Do mesmo modo, excepcionalmente, nesse caso, dar-se-á o movimento de
compreensão das concepções do pensar e fazer a EJA, como uma pesquisadora —
mergulhador — rigorosamente implicada com esse pensar, mas parcialmente implicada com o
fazer.
Pode-se indagar se esta mestiçagem não enviesaria o esforço de compreensão, mas
argumento que, na busca da complexidade do objeto, impossível seria ignorar que nesse olhar
cabe a experiência direta, conforme recomenda Larrosa (2001), como modo adequado ao
conhecer. Ademais, não assumiria rejeitar a escolha da rede estadual da Bahia como objeto de
investigação, apenas pelo fato de que com ela estive participando, em momentos diversos,
71 Esta denominação é gerada, não apenas no caso da Bahia, mas de vários estados e municípios, a partir do veto presidencial em 1996 aos recursos do FUNDEF para a educação de jovens e adultos. Cada executor encontrou, como Certeau (1992), táticas para reagirem à exclusão que tal procedimento impôs à oferta educativa de alfabetização e sua continuidade nos sistemas públicos. Essas táticas, de modo geral, nomearam os projetos segundo programas federais com recursos, que subsidiavam ações de correção da distorção idade-série (Aceleração da Aprendizagem, que inspirou a Bahia); ensino regular noturno (tomado pelo ensino noturno regular enunciado no Art. 208 da Constituição Federal: “O dever do estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: [...] VI – oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando”), entre outras táticas de obtenção de recursos.
211
mas descontínuos na intensidade dos calendários letivos. A metodologia, pela qual as políticas
públicas de EJA vêm sendo produzidas nesse estado, tem o mérito de incluir a participação, o
coletivo, a rede de saberes e práticas e as possibilidades de escolha como fundamentos,
desejáveis, todos eles, quando se busca a constituição do direito à educação.
Ainda assim, estive perto da trajetória72 e dos percursos que as equipes baianas vêm
realizando, e das práticas e esforços que distinguem o fazer pedagógico da EJA, nesse estado,
do de muitos outros. Acompanhei, incorporando essa experiência à minha própria trajetória, a
assunção que faziam dos distanciamentos existentes entre as formulações e as práticas; entre
as intenções e as execuções, ou seja, de como criticamente admitiam formas progressistas de
pensar a EJA, que esbarravam em diversos aspectos da realidade que compõem o cenário
complexo em que o fazer se dá. Assim, a compreensão de parte do Programa de EJA da
Bahia (EJA/BA) merecerá, de minha parte, uma atenção mais intensa, pelo fato de ser fruto
não simplesmente do momento formal da escrita, mas de reflexões permanentes, que vêm
acontecendo há alguns anos, e que desembocam, inexoravelmente, nessa pesquisa.
Como se pode observar no quadro-síntese do corpus da pesquisa, para além desse
conhecimento direto, fruto da experiência, fui em busca da participação de equipes —
técnicas, da Secretaria de Educação e de professores nas escolas —, tanto em entrevistas,
quanto em grupos focais, que possibilitaram capturar, para além da minha visada,
pensamentos, concepções e questões várias que não poderiam ser silenciadas sobre todo o
conjunto de ofertas do EJA/BA, que inclui projetos de alfabetização e vários de ensino
fundamental — presenciais e semipresenciais.
O trabalho de campo final, de março de 2005, foi acolhido prazerosamente em todos
os níveis, não apenas, em muitos casos, pelas relações afetivas anteriores já travadas, mas
pelo acolhimento caloroso que os professores baianos dispensam à nossa chegada. Com uma
agenda apertada, em curta viagem por dois estados, tive a grata surpresa de constatar que na
Bahia todas as providências solicitadas foram não apenas tomadas, para que o tempo possível
na cidade fosse aproveitado por mim da melhor forma, mas ampliadas, incluindo veículo,
escolas previamente agendadas e apoio integral de toda a equipe que me acompanhou nas
visitas realizadas, sem reservas, limitações ou tensionamentos comuns em pesquisas. Uma
72 Por trajetória estou compreendendo, como Certeau (1994, p. 98), o “movimento temporal no espaço, isto é, a unidade de uma sucessão diacrônica de pontos percorridos, e não a figura que esses pontos formam num lugar supostamente sincrônico ou acrônico”. [...] Tem-se então um traço no lugar dos atos, uma relíquia no lugar das performances: esta é apenas o seu resto, o sinal de seu apagamento. (CERTEAU, 1994, p. 99).
212
relação ética e cúmplice, longamente estabelecida, talvez tenha garantido tantos suportes e
facilidades ao desenvolvimento da pesquisa.
Um grupo focal realizado com a equipe da Secretaria precedeu as visitas às escolas,
quando técnicos e gestores presentes foram pontuando as visões que, do lugar estratégico que
ocupam, conseguem ter de toda a rede, visão multirreferencial, não-linear, vislumbrando
problemas, dificuldades, e sendo capaz de perceber questões, muitas vezes impossíveis de
serem enxergadas, quando se olha o sistema na horizontalidade das percepções, de um mesmo
plano espacial. Olhar de cima, do alto, como alguém que vê o mundo da janela de um avião
deixa antever visadas completamente diversas das que se está habituado a ter, olhando-se no
mesmo plano. Tal como o menino que, deitado no chão contempla as nuvens e imagina
castelos, dragões, animais, enquanto nós, que andamos olhando em frente, ou de “cara para o
chão”, não somos sequer capazes de imaginar o que ele contempla com tanto embevecimento.
Não espanta que uma das cenas mais ricas do filme Sociedade dos Poetas Mortos fosse
justamente o momento em que o professor pede a cada aluno que suba na mesa e olhe para a
classe, para que todos aprendam a considerar novos pontos de vista. Exatamente como esses
jovens alunos, a equipe se esforça para capturar a imagem mais ampla, a da surpresa, a que
não se aprisiona nos modelos clássicos e acríticos em que as equipes centrais, de modo geral,
se escudam para falar de si mesmas, de suas realizações, de seus fazeres, de acertos — e
quase nunca de desacertos, de caminhos ainda não trilhados. Nascimento destaca a
compreensão que faz do papel ambivalente do diretor como gestor e coordenador pedagógico
de um processo que não pode prescindir da tomada de decisão, mas em nome de objetivos e
finalidades educativas que recoloquem a EJA como projeto da escola:
[...] o próprio sistema cria esse impedimento. Às vezes, o gestor fica muito envolvido com questões administrativas, e se perde um pouco, vamos dizer assim, na essência, no objeto de trabalho da escola. Então, é de fundamental importância essa reflexão também com os diretores de escola, retomando o projeto pedagógico de cada escola e a EJA nesse projeto. (Gestora Nascimento).
Outra questão, no entanto, coloca-se de um modo reconhecido como “estrutural”, que
tanto assinala o déficit da formação pedagógica ainda existente, diante do tamanho da rede,
apesar das iniciativas empreendidas, quanto cria o desestímulo para assumir cargos de
coordenação — deixando, com isso, de ser professor regente —, o que implica não receber a
gratificação de regência definida para professores de sala de aula, e evidenciando a lógica
burocrática do poder, que pensa a atuação do professor desarticulada de outras funções da
escola, essenciais para compor um projeto pedagógico e educativo:
213
[...] uma questão que eu diria que é estrutural. Tem toda uma intenção, aqui a gente sempre procura, vamos dizer assim, a participação, sempre não pode chamar todo mundo, é por amostragem. Chama diretor, chama coordenador, mas existe, existe um problema estrutural que a gente não pode esquecer. Primeira coisa: a questão da formação pedagógica. Existe um déficit muito grande de formação pedagógica nas escolas. Estou sabendo até que vai ter um concurso agora. Então, esse papel do coordenador que poderia ser muito importante, pra esse processo... é terrível, porque o coordenador [...] o professor, hoje em dia, de uns anos pra cá, ganha, por exemplo, a regência. O coordenador, se ele não for concursado — e ganha um CAT da Comissão Especial de Trabalho —, ele não tem a regência de sala de aula e não ganha aquela, pela regência. Então, não tem incentivo pra que você seja coordenador. (Gestora 2).
Como iríamos encontrar não apenas professores, mas coordenadores e diretores,
caberia saber como se trançam as atuações de cada profissional no sistema, de modo a melhor
entender suas observações, seus comentários, posicionamentos e críticas.
Assim, as questões expressas pelos profissionais da equipe da SEC/BA, como também
pelos gestores que participaram do mesmo grupo focal, e as compreensões dele decorrentes,
vão sendo por mim apropriadas ao longo do texto, no esforço de ir enredando os diferentes
níveis de realidade para, com eles, melhor compor as concepções que dão corpo, na
atualidade, à educação de jovens e adultos, como política pública do estado da Bahia. Do
mesmo modo, valho-me da entrevista realizada isoladamente com uma gestora, esta
inesperada, não prevista, mas acolhida, no momento da possibilidade, com a mesma
disposição de colaboração e de compartilhamento.
66..11 CCOONNSSTTIITTUUIINNTTEESS EE DDEETTEERRMMIINNAANNTTEESS DDAA CCOONNCCEEPPÇÇÃÃOO DDEE EEJJAA EE DDEE AALLFFAABBEETTIIZZAAÇÇÃÃOO
EEXXPPRREESSSSOOSS EEMM DDIISSCCUURRSSOOSS EE EEMM DDOOCCUUMMEENNTTOOSS
As ações na EJA sob orientação do MEC, de 1994 a 2002, como visto, passaram por
um refluxo, pela priorização do ensino fundamental de crianças e adolescentes. Na Bahia,
como em muitos estados e municípios — que mantiveram a educação de jovens e adultos
acontecendo depois de extinta a Fundação Educar, parceira que fomentava o atendimento com
recursos —, foram sendo instituídas formas de “burla”, “astúcias”73 aos programas
73 Esta forma de referência não indica qualquer condenação, nem desaprovação de minha parte aos modos encontrados para conseguir apoio público às ações na área. Como num jogo de gato e rato, o governo federal, descumprindo um preceito constitucional, instituiu a exclusão do direito pelo FUNDEF, e porque sabia da ilegalidade do ato, para o qual acordos políticos de governabilidade fizeram todo o tempo vistas grossas, com a anuência do Ministério Público, jamais apurou ou agiu contra essas “burlas” dos estados e municípios, que por essas alternativas, cumpriam o dever do Estado com a educação. Certeau (1994, p. 104) denomina de astúcias ou de surpresas táticas os “gestos hábeis do “fraco” na ordem estabelecida pelo “forte”, arte de dar golpes no
214
excludentes que deixavam jovens e adultos sem direito à educação, passando a se tornar
instituintes de concepções e de práticas. Nos sistemas de ensino, percebo serem essas
“saídas”, estratégias, que permitem cumprir o dever do Estado com a educação. No dizer de
Certeau (1994, p. 99), são:
[...] o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças (os clientes ou os concorrentes, os inimigos, o campo em torno da cidade, os objetivos e objetos da pesquisa etc.).
Deve-se destacar que a ausência de financiamento à EJA, que o veto no FUNDEF
determinou, em 1996, levou os sistemas à busca de outras fontes de financiamento para a
modalidade. Isso aconteceu tanto no caso do Programa federal Aceleração da Aprendizagem,
voltado a reduzir a defasagem idade-série (lato sensu, o caso de todos os jovens e adultos),
quanto na alternativa do ensino noturno regular74 adequado às condições do educando (Art.
208 inciso VI, Constituição Federal), tomado por ensino regular noturno, e de matrícula para
jovens e adultos, no nível do ensino fundamental, com verbas do FUNDEF — saídas
indispensáveis para, contando matrículas de alunos de EJA sob esses rótulos, auferir recursos
federais.
As alternativas institucionalizadas, instituídas pelos usos que os sistemas passaram a
fazer de linhas programáticas/programas, com interpretações próprias, para atender a EJA,
traduziram-se, na Bahia, pelo Programa Aceleração, destinado a alunos jovens e adultos do
ensino fundamental, valendo-se da efetiva “defasagem idade-série” desse público. O que a
equipe lamenta, no entanto, é que freqüentemente os dirigentes decidem certas alternativas
políticas, não pelo que elas contêm de obrigação do poder público para cumprir o dever do
Estado, mas porque, de algum modo, essas alternativas podem resolver questões financeiras,
sem criar para os dirigentes a necessidade de produzir fatos políticos que garantam nos
orçamentos os direitos dos cidadãos. Não é, pois, a consciência ética com o cargo e com o
dever que a este cargo se impõe, que os orienta, mas outras são as motivações para o que
fazem.
campo do outro, astúcia de caçadores, mobilidades nas manobras, operações polimórficas, achados alegres, poéticos e bélicos”. 74 Cf. discussão a esse respeito.
215
Mas a visão, geralmente, do executivo, do secretário, tanto municipal quanto estadual, é muito em cima disso de quebrar mesmo. Porque aí eu estou olhando a minha folha de pagamento, a minha folha de... não é uma discussão da educação, nessa concepção de direito, mas que escapole muito isso. Toda vez... é muito difícil quando você vai discutir dinheiro, financiamento, aí parece que você esquece a concepção teórica, a questão do direito que passa por aí. Fica muito na questão, sabe, do técnico, do financeiro... (Gestora Castro).
Essas compreensões são indispensáveis para compreender os movimentos políticos
realizados pela Coordenação de EJA do estado da Bahia, aparentemente contraditórias às
escolhas e formas de conduzir a educação para jovens e adultos.
Do conjunto de programas, denominados de cursos na mais recente Portaria — a de
nº. 14158, de 26 de outubro de 2004, assinada pela Secretária da Educação do Estado da
Bahia, que orienta a oferta da educação básica na modalidade de educação de jovens e
adultos na rede estadual de ensino, observa-se o que vem sendo oferecido a jovens e adultos,
devidamente reestruturados, visando a “garantir padrões de qualidade às diversas ofertas desta
modalidade de ensino, com organização própria e diversificada, compatível com as
necessidades educacionais de jovens e adultos e com o estabelecido na Resolução CEE
(Conselho Estadual de Educação) nº. 138/2001”.
A portaria, em nove artigos, determina, nos dois primeiros, as alterações de estrutura e
duração, inclusive de denominação, para os cursos de Aceleração I, II e III; em seguida,
reorganiza a rede pública estadual, a partir de 2005, com as seguintes ofertas educacionais:
cursos de ensino fundamental – EJA I e II; curso de ensino fundamental – Tempo de
Aprender I e Curso de Ensino Fundamental – Modular I; curso de ensino médio – EJA III;
curso de ensino médio – Tempo de Aprender II e curso de ensino médio – Modular II; exames
supletivos de ensino fundamental e de ensino médio, realizados por meio de Comissões
Permanentes de Avaliação - CPA, também autorizadas pelo CEE, em resolução e portaria
próprias, visando à certificação de escolaridade de jovens e adultos, para fins de terminalidade
de estudos. Nos demais artigos, observa-se que são previstos postos de extensão vinculados a
escolas da rede estadual, mediante celebração de convênios, assim como se definem
atribuições dos diretores de unidades escolares onde há CPA, no tocante ao envio de relações
de notas e concluintes, para fins de publicação e validação dos certificados de conclusão.
Ainda está prevista a definição de indicadores de aprendizagem, compartilhada com a
comunidade escolar (para atender a requisito de um dos artigos anteriores); regula-se a
exigência do registro, na vida escolar do aluno, da equivalência de cursos, com vistas à
circulação de estudos; garante-se aos que cursam Aceleração I a conclusão dos estudos sob a
216
mesma estrutura e denominação; regula-se a continuidade de estudos para egressos do
Programa de Alfabetização de Jovens e Adultos - AJA Bahia nos demais programas, segundo
estágios de aprendizagem alcançados, e conforme critérios previamente definidos e, por fim,
revoga portaria anterior, de 1998.
A educação de jovens e adultos no estado tem, no dizer da gestora Nascimento,
desafios muito intensos, que devem ser enfrentados, no sentido de alterar as práticas
pedagógicas que a rede realiza, em muitas escolas/salas de aula: a diversidade cultural dos
sujeitos, que pouco se revela nas práticas e não como seria desejável; a garantia de padrões de
qualidade, o que exige propor reestruturações na EJA quebrando, principalmente, relações
ainda mantidas com a seriação; a garantia da progressividade dos alunos, eliminando as
segmentações que ainda permanecem nos dois segmentos de ensino fundamental; a produção
de indicadores de ensino-aprendizagem, que favoreçam a avaliação dos professores quanto à
possibilidade de os alunos avançarem, segundo seus progressos; a garantia de
acompanhamento mais efetivo, pela presença constante da equipe central junto às escolas e às
demandas de escolas/alunos/professores; a compreensão plena do que significa, para a EJA,
ser modalidade de ensino.
Modalidade ainda não é compreendida entre prefeituras, entre os Secretários Municipais, o que é essa modalidade que a lei fala e que, necessariamente, não é escolaridade, não é criar uma escola paralela. É uma modalidade que pode desembocar aqui ou não. Aí é isso que eu fico pensando. Como é que a gente vai colocar para as prefeituras pra elas poderem ajudar no sentido de colocar a educação — EJA — como modalidade. Porque todo mundo pensa, pelo histórico, que EJA é uma educação formal.
Para a compreensão do que é essa modalidade, no que ela carreia de perspectiva de
inclusão emerge, também, a presença de portadores de necessidades especiais, invisibilizados
pelos sistemas, que começam a surgir expressivamente nos atendimentos da EJA, talvez pelo
fato de ali não se sentirem — nem serem — rejeitados, talvez pelo fato de se identificarem
com os excluídos da educação que, como eles, têm sido recorrentemente negados como
sujeitos de direito. Essa percepção foi também constatada na recente pesquisa realizada em
2004 e concluída em março de 2005, para avaliação diagnóstica dos Programas Brasil
Alfabetizado e Fazendo Escola, proposta pelo MEC e coordenada pela UNESCO, em que a
presença de portadores de necessidades especiais emerge como um dado que não pode mais
passar despercebido, embora a presença desses sujeitos não se faça somente pela perspectiva
do direito, mas também pela de não-rejeição, que compõe a biografia de muitos deles e dos
demais diferentes, que ocupam na atual concepção do MEC o lugar político denominado de
217
diversidade, e vêm recebendo, ainda que com timidez, atenção por parte do poder público
federal.
Então, a gente não conseguiu fazer ainda com que o público, nós da política pública, entendesse que o cego, surdo e mudo, o... já passou da época, o jovem, o adulto, o índio, a criança, são modalidades que precisam ser tratadas como gente. Ainda a gente não conseguiu, não conseguiu ainda argumentar em favor disso. E que, por isso, precisa de dinheiro, porque eles existem. (Gestora Nascimento).
E a esta tomada de consciência, segue-se outra, a de que as chamadas minorias não o
são, porque englobam um contingente elevado de população cuja exclusão, reforçada pela
diversidade, tem na base econômica — a pobreza — a lógica perversa que as deixa de fora
dos direitos de cidadania. Quando o poder público organiza a oferta e não utiliza mecanismos
sutis para manter essa população ainda apartada, a demanda cresce e aparece, sem medo de,
uma vez mais, ser renegada pela condição de excluída pela origem socioeconômica.
É uma demanda de 240.000, não é uma demanda pequena. Só que só enxerga o povo para entrar na 1ª série, 2ª série, 3ª série. Com 7 anos, 8, 9, 10, 11, 12 e por aí vai. Então, é uma escola burguesa mesmo, onde papai e mamãe conseguem botar o filhinho ali naquele cantinho. Mas se não tem o papai e mamãe pra colocar o filhinho naquele cantinho... (Técnica SEC/BA).
[...] Criança, jovem, adulto. Independente se é do campo, se é da cidade... (Técnica SEC/BA).
Somadas a essas questões, jovens e adultos trabalhadores emergem pelo que, no
máximo, a educação tem definido como finalidade, ao tratar/oferecer atendimento a eles: a
condição de mão-de-obra:
[...] o país nunca viu a educação como educação. Sempre vê como formar uma mão de obra rápida e barata para usufruir. (Técnica SEC/BA).
Presentes e desafiando os que fazem a EJA na Bahia, essas questões são resultantes do
trabalho pedagógico desenvolvido, que em 2005 alcança 250.201 alunos de EJA, sendo
163.308 de ensino fundamental e 86.893 de ensino médio, em 977 unidades escolares, com
10.075 professores de EJA, dos quais 6.645 no ensino fundamental, nos 417 municípios do
estado. O financiamento para a EJA, pelo FNDE, acontece apenas em três municípios,
cobrindo 32 escolas em Barreiras, Ilhéus e Itabuna.
Uma questão decisiva para a EJA, quando se pensa na concepção não restrita à
alfabetização ou ao primeiro segmento, mas na perspectiva do direito ao ensino fundamental,
parece não constituir problema para a rede baiana, pois a organização do sistema não exclui
218
qualquer aluno, seja qual for a sua origem: se “aluno do Sistema S, eles poderão também
utilizar o sistema estadual pra fazer. Porque, no nosso caso, quem é aluno e que sai do Brasil
Alfabetizado, da alfabetização, realmente não tem problema de vaga. Não existe isso. O
reordenamento da rede está mostrando isso”. Mas ainda assim, com a perspectiva da
continuidade assegurada, observam-se problemas detectados por uma técnica da equipe:
“Constatei que muitos alunos continuam estudando na classe de jovens e adultos por conta de
não ter uma continuidade na escola próxima”, ou seja, a questão não se põe apenas na
existência de matrículas para atendimento, mas é complexa, porque nem sempre a distribuição
de vagas se faz nos mesmos lugares em que o público está sendo atendido pelos projetos de
alfabetização. Outra observação diz respeito às expectativas dos próprios alunos nos projetos
nem sempre atendidas, e cuja identificação com ele, projeto, define, ainda assim, sua
permanência, por não desejarem substituir a inserção conseguida, pela incerteza de uma
escola formal, que muitas vezes já os excluiu antes: “o AJA Bahia não me dá o suporte que eu
quero, que é realmente ler e interpretar uma bíblia e eu não estou sabendo interpretar o que
um versículo diz”. (Depoimento de aluno relatado por uma técnica da SEC/BA).
Para ampliar a compreensão da EJA no estado da Bahia, então, a partir desse momento
inicio a leitura do documento Princípios e Diretrizes Político-Pedagógicas da Educação de
Jovens e Adultos do Estado da Bahia — Histórico, Concepção, Programas e Projetos, de
dezembro de 2002, que sistematizou, organicamente, englobando todas as ações, programas e
projetos, o que vinha a ser a política efetiva de educação de jovens e adultos no estado,
revelando suas concepções. É preciso destacar que a história da EJA no estado imbrica-se
fortemente com a do país, mas com contornos próprios, tanto dados pelas iniciativas
levantadas pela equipe da Secretaria, para fins desse trabalho de organização da política,
quanto pelas personagens que estiveram à frente dessas iniciativas, em alguns casos de
protagonismo nacional, muito além do âmbito local e até mesmo estadual. Junto, portanto, os
fios que lhe dão sentido, puxados a partir da história da educação de jovens e adultos na
Bahia, assinalando, em seguida, a diversidade de ofertas que comporta o Programa de
Educação de Jovens e Adultos, visando a atender à multiplicidade de sujeitos em suas
diversas realidades o que, sem dúvida, por si só atesta alguns dos princípios que serão
apresentados a seguir e que, por sua vez, fecundam as ofertas.
219
66..11..11 FFiiooss,, pprriinnccííppiiooss ee nnóóss
Há, no estado da Bahia, uma significativa história na EJA, derivada não apenas das
inúmeras lutas e demandas da população pelo acesso às mais variadas necessidades de
escolarização, mas também pelas respostas que puderam ir sendo produzidas pelo poder
público, de modo a atender a essas necessidades.
Com a promulgação da Constituição, muitas mudanças ocorrem no sistema, e tendo
como referência a experiência acumulada com o funcionamento da Comissão Permanente de
Avaliação no Centro de Educação Supletiva – CESBA, em Salvador, são estabelecidos
estudos e, posteriormente, criadas as Comissões Permanentes de Avaliação – CPA, um novo
projeto de atendimento a jovens e adultos, com estrutura própria e oferta mensal de exames
supletivos, funcionando durante todo o ano, de forma permanente.
Ao longo da década de 1990, a demanda pela escolarização, ampliou-se, pressionada:
pelo mercado da força-de-trabalho, exigindo a certificação de conclusão de escolaridade por
nível de ensino; pela necessidade de competência escolar para a disputa, no mercado, das
poucas ofertas de emprego e de trabalho formal, exigindo respostas das redes públicas
estaduais e municipais quanto à organização de projetos de EJA, em respeito aos
demandantes.
A perspectiva do direito trazida pela Constituição de 1988, e toda a realidade dos
potenciais alunos da EJA acentuaram a necessidade de não adiar a definição de uma política
na área. Partiu a Secretaria, então, para a construção, com a comunidade escolar, de projetos
próprios para o atendimento das necessidades educacionais dos demandantes. Pela grande
procura por cursos, a Secretaria da Educação universalizou o 1º segmento do ensino
fundamental, o que, se por um lado iniciava o processo de assunção do dever da oferta pelo
poder público, dificultava, por outro, o acompanhamento às classes formadas, principalmente
em função da extensão territorial do Estado.
Aí estava a chave que demarcaria a atuação — e a concepção — do fazer política
pública de EJA no estado: a construção coletiva, tanto envolvendo sujeitos professores,
quanto alunos, o que, se por um lado deve ser saudado, como iniciativa democratizadora, por
outro precisa ser problematizado com a realidade dos fatos no meio dos quais se deu. Um
desses fatos revela a convivência, nesse processo metodológico adotado, com a desconfiança
inicial sobre a autenticidade das intenções de participação da comunidade escolar, e, outro,
220
com as dificuldades, por parte dos professores, de lidar com alternativas pedagógicas não-
seriadas, pela cristalização de concepções tradicionais da educação. Enfrentando estas
dificuldades, vivenciaram movimentos de construções curriculares no âmbito das escolas, o
que trouxe um novo ânimo à educação de jovens e adultos: valorizaram-se práticas
pedagógicas que referendavam outra lógica escolar, identificando possibilidades educativas e
ampliando possibilidades, a partir dos projetos pedagógicos das próprias escolas, mediados
por processos de formação continuada de professores.
Mas essas iniciativas, por mim vistas como positividades, não apenas pela forma como
foram sendo desenvolvidas, mas também pelo conteúdo das propostas, no documento
Princípios e diretrizes político-pedagógicas da educação de jovens e adultos do estado da
Bahia — histórico, concepção, programas e projetos (SEC/BA, 2002) trazem uma
preocupação cabível: o fato de os indicadores educacionais de analfabetismo de jovens com
mais de 15 anos e a correlação entre idade e escolaridade ainda exigirem ações políticas mais
intensas do poder estadual. Do mesmo modo, o documento reconhece a lacuna existente entre
o que a equipe central pensa ser necessário para a EJA, do ponto de vista das concepções, e os
praticantes — professores em suas escolas, com suas experiências, realidades, vicissitudes,
solidão, isolamento — próprios dos grandes sistemas, afetados ainda pelas distâncias, restritos
recursos e ainda não-consolidada experiência de participação e de definição coletiva.
Essas concepções devem levar em conta marcas de idade, diferenciação de gênero, de culturas, que precisam ser identificadas no reconhecimento destas diferenças e, principalmente, do direito à educação de acordo com necessidades e aspirações dos sujeitos, de modo que as marcas não os discriminem, mas que sejam positividades na assunção plena da condição de cidadãos, com possibilidades de construírem sentidos para ser, fazer, viver e conviver socialmente com todos as formas de vida na atualidade. (SEC/BA, 2002, p. 10).
Nos dados dos censos educacionais, a confirmação da preocupação com o grande
contingente de jovens e adultos cursando o ensino fundamental e médio revelava, pelas
idades, a forte exclusão sofrida por muitos deles de processos educacionais anteriores, ou o
fato de nunca terem freqüentado a escola, demandando processos extensivos de inclusão,
articulados com a definição de políticas públicas no campo social. Em 1993 os cursos
presenciais de ensino fundamental estavam implantados em 191 escolas atendendo a 42.000
alunos — número insignificante, considerada a população analfabeta no Nordeste, para a qual
o estado da Bahia sempre concorreu com um número muito expressivo.
221
O movimento de inclusão foi crescente e paulatino, motivado principalmente pelas
necessidades dos sujeitos dessa educação: jovens e adultos que precisam estudar para ter
escolaridade — exigência do mundo do trabalho, cuja oferta de postos, contraditoriamente,
reduziu-se na última década; e trabalhadores, que precisam estudar para manterem os seus
empregos. Diz o mesmo documento referenciado:
[...] definir uma política de redução do analfabetismo com metas preestabelecidas exige assegurar possibilidades orçamentárias e financeiras para o atendimento de tal objetivo. Metas deste porte — considerando o tamanho da demanda — têm que ter impacto suficiente para modificar a realidade social e cultural de pessoas que, motivadas por esta nova realidade — inserção no mundo letrado — possam vivenciar outras possibilidades no local onde vivem e serem estimuladas a continuar a aprender. Este é o sentido de uma política para a redução do analfabetismo, que somente tem impacto e efetividade com dimensão que reduza, de forma substantiva, a condição de ser analfabeto, requerendo, portanto, investimentos públicos robustos para tal fim. (SEC/BA, 2002, p. 11).
E continua:
O objetivo da EJA é proporcionar uma educação apropriada aos alunos que estão realizando a educação básica com idades acima das consideradas adequadas, principalmente aqueles que estudam no turno noturno por exigências do trabalho. A garantia de prosseguimento dos estudos expressa o sentido da eqüidade, possibilitando patamares de conhecimentos cada vez mais elevados, ao se assegurar uma educação de qualidade, com identidade própria. (SEC/BA, 2002, p. 11).
O percurso da Secretaria apresentado no documento até então revela o entendimento
de que propostas educacionais somente se tornam legítimas, se expressam aspirações dos
diretamente envolvidos, e se são exercitadas no cotidiano de cada sala de aula, com clareza de
finalidade e objetivos. Para consolidar essa compreensão, o documento Princípios e diretrizes
político-pedagógicas da educação de jovens e adultos do estado da Bahia — histórico,
concepção, programas e projetos defende a formação continuada como:
[...] requisito fundamental, mas não determinante para a melhoria das práticas pedagógicas do professor. As circunstâncias de cada trajetória profissional podem, sem dúvida, referendar o momento de cada um para pensar e agir de acordo com novas concepções. Muitas vezes persiste o medo, a insegurança para fazer o novo e de forma diferente, principalmente, por deficiências no domínio de conhecimentos básicos. (SEC/BA, 2002, p. 11).
Por fim, ainda expõe algumas constatações para pensar a necessidade de avanço
qualitativo e quantitativo na educação de jovens e adultos: a não-apropriação das bases
conceituais que norteiam propostas curriculares para jovens e adultos, gerando um
222
distanciamento entre os referenciais estabelecidos e os processos desenvolvidos em sala de
aula, freqüentemente tradicionais, alicerçados em métodos que privilegiam o ensinar em
detrimento do aprender com significado; o retorno sistemático de jovens e adultos à escola,
mesmo quando o sistema educacional persiste em considerar que não aprendem, reprovando-
os uma vez mais, expondo-os a novos fracassos, ou permitindo que se evadam; a exclusão
sub-reptícia que a escola continua a promover, ao mesmo tempo em que inclui, quando
sonega a possibilidade de utilização dos espaços, dos serviços e dos recursos escolares,
principalmente no turno noturno, para esses educandos.
Em seguida, o documento enuncia os princípios e as diretrizes político-pedagógicas
da Educação de Jovens e Adultos do estado da Bahia, constituídos por um modo próprio de
entender e conceber a EJA. Esse modo tem coerência com o preceito constitucional do direito
ao ensino fundamental, ao mesmo tempo em que se alinha, na forma de consubstanciá-lo, com
os termos do Parecer CNE nº. 11/2000.
O princípio maior e primeiro para ações na EJA, apontado, é o do direito ao ensino
fundamental para todos, independente da idade, direito público subjetivo.
A partir desse, outros princípios são apontados, assinalando que:
[...] atravessam e estabelecem liames entre os diversos projetos que guiam as ações na área. [...] garantem a unidade de concepção da EJA, ao mesmo tempo em que conferem ampla liberdade para fazer opções, tomar decisões, escolher alternativas metodológicas e garantir o pluralismo e a diversidade de respostas às necessidades dos sujeitos da educação de jovens e adultos, afastando a tentação do discurso da uniformidade e da homogeneidade, absolutamente irrelevantes para a área.
Com as referências até então apontadas, retiro do documento Princípios e diretrizes
político-pedagógicas da educação de jovens e adultos do estado da Bahia — histórico,
concepção, programas e projetos os princípios que norteiam a EJA, reconhecidos quando se
trabalhava a pesquisa-ação que revisionou os programas presenciais de ensino fundamental,
dando origem ao programa cuja compreensão, quanto às concepções, enfocarei adiante.
Pluralismo e diversidade — traduzido pela possibilidade — e liberdade — de
criar alternativas capazes de responder, com maior competência, às exigências dos
diversos grupos populacionais/etários, acolhendo a variedade de identidades e
culturas que os sujeitos produzem ao longo da vida, na prática social, quase sempre
ocultadas, fazendo-as emergirem nessas propostas.
223
Continuidade de estudos — a oferta se põe a partir da idéia do direito ao ensino
fundamental. Alguns oferecem segmentos ou parte desse nível de ensino, como
estratégia possível, em situações geográficas exigentes de alternativas que as
estruturas formais muitas vezes não dispõem. Mas todos prevêem e se organizam
com o compromisso da oferta da continuidade de estudos, para todos que o
desejarem, para que a vida escolar se mantenha regularizada e regular.
Inserção orgânica no sistema — os alunos de qualquer projeto de EJA são
sempre matriculados no sistema estadual de ensino, mesmo quando as alternativas
não se desenvolvem em prédios escolares, mantendo a regularidade do
atendimento — e do cumprimento da oferta como direito à educação —, e
auxiliando o processo de auto-estima do aluno, reconhecidamente inserido no
sistema como um sujeito de direito.
Circulação de estudos — assegurada entre todos os projetos/programas da rede
estadual, o que significa dizer que todos têm o direito de circular, tanto passando
da modalidade EJA para a de oferta regular, quanto o contrário. Como modalidade,
a EJA é um modo de organizar e adequar o currículo para jovens e adultos,
segundo as características, condições e traços desses alunos.
Coerência pedagógica — coerência interna de cada projeto, segundo princípios e
fundamentos definidos como próprios da educação de jovens e adultos, buscando
fazê-lo segundo os mesmos fundamentos daquilo que propõe para os alunos, ou
seja, envolvendo professores de diferentes escolas, Diretorias Regionais de
Educação (DIRECs) e regiões do estado, representando coletivos mais amplos, que
participam, como sujeitos, do repensar as práticas pedagógicas que realizam, com
vista a novas e possíveis proposições que as ultrapassam e reorganizam.
Ação coletiva — sintetiza a perspectiva de repensar a escola a partir de seus
sujeitos, com eles, sejam professores e demais especialistas, sejam alunos. A
experiência de trabalho na formulação de projetos vem mostrando o acerto da
aplicação desse princípio, não apenas pela riqueza do que pode ser proposto no
coletivo, mas pela autonomia ganha no pensar a própria prática; pela credibilidade
de saber-se capaz de; e pela responsabilização e compromisso que a ação coletiva
produz.
224
As diretrizes político-pedagógicas orientam, do mesmo modo, as propostas de
avaliação, assim como a carga horária e a sua distribuição, respeitando, sempre, os princípios
que as fundamentam.
66..11..22 PPrrooggrraammaass ee pprroojjeettooss oorriieennttaaddooss ppoorr pprriinnccííppiiooss ee ddiirreettrriizzeess ppoollííttiiccoo--ppeeddaaggóóggiiccaass
ddaa eedduuccaaççããoo ddee jjoovveennss ee aadduullttooss ddoo eessttaaddoo ddaa BBaahhiiaa
Os programas e projetos foram sendo desenvolvidos a partir das demandas de alunos e
de professores, no desenvolvimento de atividades. Surgem, de modo geral, por meio da
participação desses professores, representando as diversas áreas e regiões da Bahia. Todos os
programas e projetos formulados convivem no sistema de ensino, sob a escolha e decisão das
unidades escolares, em função das propostas que apresentam e de sua adequação com as
características do público a ser atendido. Não há qualquer imposição da Coordenação de EJA
nessa decisão, que cabe exclusivamente às escolas. Pode-se observar, na apresentação que se
segue, a existência de mais de uma oferta para o mesmo nível de ensino, seja
aperfeiçoando/atualizando um programa anterior, seja produzindo uma nova alternativa de
atendimento, segundo concepções e modos de perceber a educação de jovens e adultos que,
continuadamente se superam.
AAJJAA BBaahhiiaa
O Programa de Alfabetização de Jovens e Adultos visa a reduzir os índices de
analfabetismo no Estado da Bahia e vem requerendo a mobilização e ação solidária de toda a
sociedade baiana, expressa nas contrapartidas que se fazem necessárias para alfabetizar, com
qualidade, jovens e adultos das áreas urbanas e rurais.
Iniciado em 1996, alfabetiza jovens e adultos, garantindo o acesso e a continuidade de
estudos em escolas da rede pública. As classes são organizadas a partir de projetos definidos
pela comunidade, funcionando em escolas da rede estadual e municipal, em empresas ou em
outros espaços onde se possam desenvolver práticas pedagógicas que possibilitem a vivência
de processos de alfabetização, com alfabetizadores normalistas, em regime de estágio, com
atuação “fora do sistema”, mas gratificados pelo sistema. A continuidade da escolaridade dos
alfabetizandos é garantida pela vinculação de cada espaço educativo a uma escola estadual ou
municipal.
A concepção de alfabetização parte do pressuposto de que, em um mundo repleto de
nomes e números, alfabetizar-se é entrar no mundo da escrita para ler e escrever, com
225
compreensão, nas mais variadas situações de vida. É tornar-se usuário da escrita — usar a
leitura e a escrita na solução dos problemas do dia-a-dia, realizando leituras de mundo de
forma autônoma, crítica e criadora.
O AJA Bahia tem como estratégias básicas garantir a continuidade do processo de
alfabetização dos alunos nas escolas da rede estadual e municipal; a criação de um núcleo
municipal, em que representantes das comunidades atuam na construção e desenvolvimento
do Programa; o uso de espaços educativos e de espaços alternativos, que garantam condições
de abrigar os sujeitos alunos e profissionais do programa, assim como toda a infra-estrutura
necessária ao desenvolvimento das atividades, tanto da própria alfabetização, como de
trabalhos em oficinas de leitura e escrita, de planejamento e avaliação, de apoio para a
distribuição de material etc. Sua revisão, desenvolvida com a consultoria da ONG paulista
Vereda, de Vera e José Carlos Barreto, acontece com metodologia participativa semelhante à
da EJA I e II, exposta adiante, com material didático para professores e alunos, este último
sob a forma de um almanaque.
AAcceelleerraaççããoo II ee IIII —— EEnnssiinnoo FFuunnddaammeennttaall
A proposta de educação básica de jovens e adultos para o ensino fundamental —
Aceleração I e II — desenvolve-se em duas etapas, Aceleração I e II, cada uma delas com
dois estágios, que alcançam todo o ensino fundamental. Destina-se a constituir alternativa
para um grande contingente de jovens e adultos incorporados ao sistema educacional, bem
como para aqueles que não tiveram acesso a uma educação que respeite a sua identidade
cultural e a sua realidade de vida, de forma crítica e produtiva. Tem em vista garantir o
sucesso escolar, revertendo os índices de repetência e de evasão, investindo, também, para
isto, na valorização do profissional em exercício nas classes de EJA, proporcionando
condições para a melhoria da qualidade da formação, do que deverá decorrer a melhoria da
qualidade do ensino e o fortalecimento da escola pública. Incorpora a metodologia do ensino
com avaliação no processo e a sua dinâmica, tanto para o planejamento, como para a
avaliação, está pautada em uma prática pedagógica em que o aproveitamento do aluno é
dimensionado pelos objetivos alcançados. Trabalha com as seguintes diretrizes metodológicas
que norteiam a prática pedagógica:
o ambiente escolar deve conter e considerar toda a diversidade do mundo da
escrita;
o processo do educando tem que ser respeitado;
226
a heterogeneidade da classe é que faz com que se efetive a aprendizagem;
o erro é considerado elemento natural na construção do conhecimento;
a educação para o êxito tem que ser contextualizada;
a prática pedagógica é problematizadora.
EEnnssiinnoo FFuunnddaammeennttaall —— EEJJAA
Trata-se de proposta produzida coletivamente por consultoras e professores do
Programa Aceleração I e II, a partir do revisionamento das bases pensadas originalmente para
a proposta, demarcando o direito ao ensino fundamental, para jovens e adultos, como um
continuum. Para isso, propõe um modo de organização do currículo que tem por base quatro
unidades conceituais, a partir das quais se estabelecem os programas do curso: trabalho,
cultura e ambiente; ética e cidadania; cultura, democracia e poder; gênero e etnia,
perfazendo o projeto de curso o mínimo de 3200h, em um tempo previsto de quatro anos (para
o projeto de curso, e não para o percurso do aluno).
As unidades conceituais escolhidas remetem ao sentido final do projeto educativo, ou
seja, a formação para a cidadania, com domínio dos instrumentos básicos para interferir e
agir, criticamente, sobre o mundo — a leitura, a escrita e o pensamento lógico-matemático.
Para dar-lhes sentido, lança-se mão dos conhecimentos relativos às diferentes áreas do
conhecimento que com ele dialogam, exigindo uma reorganização dos chamados
conhecimentos científicos de cada área, de modo a se conectarem, trançando-se, com os
demais.
AAcceelleerraaççããoo IIIIII —— EEnnssiinnoo MMééddiioo
Este curso organiza-se por áreas do conhecimento, disponibilizando ao aluno e à
escola a compreensão de que a articulação dos conhecimentos possibilita um modo de ver a
realidade de forma mais ampliada e o desenvolvimento de aprendizagens significativas,
conseqüência do entendimento de que o saber se produz na interação e nas práticas sociais.
Assume os princípios curriculares do trabalho, da cidadania e da democratização e da
construção do saber, bem como os seguintes princípios metodológicos: construção
progressiva de uma abordagem interdisciplinar dos conteúdos; o cotidiano do aluno e a
diversidade de suas experiências como ponto de partida da prática pedagógica; e a articulação
entre a teoria e a prática. A estruturação do currículo organiza os contextos teóricos e práticos
227
por áreas do conhecimento, propondo como ação pedagógica a construção progressiva dessas
áreas pela escola. Adota como recurso pedagógico o desenvolvimento de projetos para
concretizar os princípios e linhas metodológicas; um trabalho pedagógico centrado em
acordos e compromissos firmados pelos sujeitos do processo educativo – professores e
alunos; o rompimento progressivo do modelo de currículo compartimentado em disciplinas
isoladas; a vivência coletiva por professores e alunos em suas fases de definição,
desenvolvimento e avaliação.
PPoossttoo ddee EExxtteennssããoo
“A escola vai onde o trabalhador está” define a essência do Posto de Extensão, em que
o trabalhador é o centro do processo educativo. No Posto de Extensão são implantados cursos
de educação de jovens e adultos de ensino fundamental e médio, que se desenvolvem no
próprio ambiente de trabalho, todos vinculados a uma escola estadual, responsável pela
matrícula, acompanhamento pedagógico e certificação.
A concepção de educação pretendida nos cursos dos Postos de Extensão fundamenta-
se na crença da capacidade do homem de produzir conhecimentos, ganhando significações
próprias com suas experiências, tendo como referência a natureza do trabalho das empresas
envolvidas. Realiza-se por meio de parceria (convênio), entre a SEC/Empresa/Órgão, que
juntos, elaboram e discutem um projeto pedagógico próprio, definindo a estrutura e os tempos
da aprendizagem, a organização, os princípios, as metodologias, os conteúdos programáticos,
a avaliação e o acompanhamento do curso de EJA para os trabalhadores. Até dezembro de
2002 foram implantados 30 Postos de Extensão, atendendo a 6.000 trabalhadores nos
ambientes de trabalho. Merece destaque a implantação de seis Postos de Extensão em seis
penitenciárias estaduais, atendendo a 300 reclusos, que se encontram realizando o ensino
fundamental, por meio do Projeto Educar para Reintegrar. Também se deve destacar o Posto
de Extensão implantado no próprio ambiente da Secretaria de Educação, desenvolvendo o
Projeto Aprendendo no Trabalho, que atende, até a mesma data, a 100 servidores.
PPrroojjeettoo TTeemmppoo ddee AApprreennddeerr II ee IIII
O Projeto Tempo de Aprender, em nível de ensino fundamental e de ensino médio,
constitui mais uma oferta para a educação de jovens e adultos, na maioria trabalhadores, com
dificuldades para freqüentar diariamente as salas de aula. O curso é semestral e
semipresencial, com avaliação no processo. Usa metodologia do Telecurso 2.000, agregando
228
tecnologias, utilizando e disponibilizando em cada sala de aula TV, equipamento de
videocassete, fitas para o trabalho pedagógico do professor, livros didáticos para os alunos e
kits de materiais didáticos (dicionário, globo terrestre, mapas).
A organização do curso prevê a ida do aluno à escola duas vezes por semana, quando
tem aulas com professores especialistas das diversas áreas do conhecimento e quando também
são construídos roteiros de estudos para que realizem a complementação e terminalidade dos
cursos, desde que não estejam freqüentando a escola em cursos presenciais diários.
CCoommiissssõõeess PPeerrmmaanneenntteess ddee AAvvaalliiaaççããoo
As Comissões Permanentes de Avaliação – CPA constituem uma alternativa de
atendimento educacional que oferece exames supletivos a pessoas que interromperam seus
estudos regulares e que desejam comprovar seus conhecimentos, obtendo a certificação
equivalente aos níveis fundamental e médio. Funcionam em 17 escolas da rede pública
estadual e garantem a realização mensal de exames supletivos do ensino fundamental e médio
para jovens e adultos que precisam atestar sua escolaridade.
PPrrooggrraammaa ddee HHaabbiilliittaaççããoo ddee PPrrooffeessssoorreess LLeeiiggooss
O Programa de Habilitação de Professores Leigos – PROLEIGOS atende a
professores não-titulados que atuam da 1ª a 4ª séries do ensino fundamental na rede
municipal, paralelamente às suas atividades em sala de aula, todos eles jovens e adultos em
processo de aprendizagem, e de profissionalização.
Desenvolvido em escolas de magistério estaduais e municipais, numa ação conveniada
SEC/Prefeituras, compreende sete períodos semestrais, perfazendo um total de 4.140 horas. A
primeira etapa (três semestres) constitui o curso supletivo para atendimento a professores que
não completaram o ensino fundamental. A segunda etapa (quatro semestres) corresponde ao
ensino médio, com habilitação em magistério. O projeto trabalha com metodologia de ensino
direto e semidireto.
229
66..22 CCOONNCCEEPPÇÇÃÃOO DDEE EEJJAA NNAA RREEDDEE EESSTTAADDUUAALL:: AARRTTEESS DDEE FFAAZZEERR7575
Embora sejam muitas as ofertas e propostas organizadas para a EJA no estado da
Bahia, tratarei de uma delas apenas, a do Curso de Ensino Fundamental I e II, nascido do
revisionamento dos fundamentos, princípios e práticas dos Programas Aceleração I e II. No
seguimento, quando me encontrar com as artes de fazer das unidades escolares pesquisadas,
as referências dos sujeitos estarão para além dessa, remetendo-se a todas as expressões que a
EJA assume nas variadas ofertas, como já visto anteriormente.
Inicialmente, devo destacar que a oferta do Programa Aceleração I e II não foi pensada
inteira, ao mesmo tempo, como política. Foi-se fazendo, à medida que as demandas foram
surgindo, a partir dos níveis iniciais, principalmente pelo fato de os alunos apontarem a
diferença de concepção que é desenvolvida no Aceleração I, em relação a outros programas
pelos quais passam. Essa diferença de concepção revela a possibilidade de que a EJA pode
assumir propostas que atendam a realidade da condição de jovens e de adultos, portadores de
saberes, conhecimentos, histórias, vivências, experiências, forjados nos múltiplos espaços da
prática social, e não apenas na prática escolar. Demandar a continuidade de estudos segundo
essa concepção, revela também a percepção dos alunos quanto ao que pode ser a educação,
em contraponto ao que vem sendo desenvolvido, em muitos programas/projetos, e requerer,
por isso mesmo, outra qualidade de proposta.
A gestora Guimarães da SEC/BA assim se expressa sobre a diferença de trabalho na
EJA na rede estadual:
[...] na Bahia nós realmente assumimos um papel de vanguarda no Nordeste porque, inclusive eu com minha experiência na educação de jovens e adultos, eu me comunicava muito com os coordenadores em nível do Nordeste e eu percebia as concepções que passavam [...].
Mas essa percepção nem sempre é compartilhada pelos professores que fazem a EJA
nas escolas, pela forte influência do modelo da escola regular, orientador, em última instância,
dos projetos e de suas organizações na educação de jovens e adultos. A marca da EJA de que
ela é multirreferencial, pondo em relação a vastidão de saberes dos alunos, acaba restrita à
visão de que todo esse conjunto, toda essa riqueza corresponde à multisseriação — forma
75 Usarei esta expressão, tomada de empréstimo do título do livro de Certeau (1994), A invenção do cotidiano: artes de fazer, pelo que o título sugere, e pelo que o autor, ao longo de sua exposição, apresenta como constituidor das relações dos sujeitos com o cotidiano, que o refazem, pela invenção.
230
como se denominam as classes com alunos de diferentes níveis de conhecimento, e de
escolaridade formal, em zona rural, distantes de sedes municipais etc., quando só se oferece,
uma a duas salas de aula, atendimento com um único professor, responsável por dar conta de
todas as necessidades da região. A técnica Nascimento da SEC/BA revela o espanto com que
um professor descobriu essa possibilidade, sobre a qual ela mesma se interroga, entendendo-a
da seguinte maneira:
[...] “a gente pode fazer multiEJA?” Eu disse: “Olha, vocês têm Conselho pra deliberar isso?” “Não, mas a gente pode montar e pode montar multiEJA, que tem alunos de EJA 1, do estágio 1...” e aí foi citando as séries, ou seja, os módulos. E eu achei... me despertou isso e eu achei interessante o multiEJA e aí eu comecei... fui começar a me interrogar. Seria interessante realmente, já que existe multisseriado, os municípios onde tem três do estágio I, quatro do estágio II, fundar um multisseriado de EJA.
Em 1992, um Programa de Educação Básica de Jovens e Adultos, para atendimento a
pessoas sem escolarização, ocorreu na rede com a formulação, proposta pela então Gerência
de Educação Básica de Jovens e Adultos e com o apoio de consultores, de um projeto de
curso denominado Aceleração I, visando à oferta do ensino fundamental, nos termos
preconizados pela LDBEN n.º 9394/96, ou seja, adequado às características do alunado, às
suas condições de vida e trabalho, levando em conta seus saberes e experiências. A
Aceleração I correspondia, aproximadamente, ao primeiro segmento do ensino fundamental
(e se apresentava dividida em dois estágios de um ano cada). Mais tarde, a Aceleração II
(também dividida em dois estágios de um ano cada) foi proposta e oferecida como curso ao
segundo segmento do ensino fundamental.
Destaque-se que o Programa atendia, na Aceleração I, preferencialmente, os iniciados
em processos de leitura e escrita — tanto oriundos de projetos de alfabetização promovidos
pela própria Secretaria, como por exemplo, mais tarde, o AJA Bahia, que saíam conduzidos
para a continuidade no programa institucionalizado —, quanto oriundos de outras ações
promovidas por organizações não-governamentais, sindicatos, fundações que a rede pública
buscava acompanhar e assumir a continuidade, como, ainda, atendia a pessoas com passagens
anteriores pela escola (ou por outros modos de aprender). Trabalhando com a premissa de que
os conhecimentos de mundo e os saberes da prática permitem aos jovens e adultos avançar em
seus processos de aprendizagem, sustentava a idéia da aceleração como princípio da
educação então organizada, oferecendo um curso com duração de quatro anos para todo o
ensino fundamental. Essa, como assinalado anteriormente, foi a estratégia adotada pelo poder
público baiano para vencer as restrições impostas pelo FUNDEF à EJA, concorrendo, assim, a
231
recursos do programa federal Aceleração da Aprendizagem, aplicando-os, astuciosamente,
nessa área.
No período de execução em que o Programa aconteceu, observou-se um crescimento
de matrículas, o que representou, como política pública, expansão do atendimento — dever do
poder público — sem, no entanto, universalizar o acesso a todos os potenciais sujeitos. Mas
também o desejo de continuidade fez com que fosse organizada uma segunda etapa, a
Aceleração II, que revelou, timidamente, resultados com um pequeno crescimento no número
de concluintes, em relação a séries históricas de atendimento na EJA em nível de ensino
fundamental. A gestora Guimarães assim explica o movimento de expansão da oferta:
[...] tínhamos 90 escolas e, por conta de políticas que foram definidas, começou a haver uma expansão muito grande. Então essa expansão nos pareceu prejudicial à questão qualitativa da educação de jovens e adultos.
A demanda gerada pelo Programa Aceleração II levou à organização do Aceleração
III, uma modalidade voltada ao ensino médio de jovens e adultos que não desejavam os
modelos regulares de escola, mas exigiam atendimento curricular adequado às necessidades
de vida e trabalho nos quais estavam inseridos, e de que já experimentavam no Programa
Aceleração.
Mais tarde, os Programas Aceleração I e II concebidos anteriormente a vários
documentos norteadores da EJA, de nível nacional e internacional, foram rediscutidos, para
adequá-los aos marcos legais que passavam a dar suporte à educação de jovens e adultos. A
revisão dos Programas ajustou proposta e práticas aos termos legais e, principalmente, estas à
realidade da educação de jovens e adultos, pensada como desafio para o novo milênio, com o
sentido do aprender por toda a vida.
Pode-se observar um dado relevante desse processo de revisionamento dos Programas:
qualificado como pesquisa-ação, envolveu professores e técnicos como parceiros desse fazer,
contribuindo para a investigação e a reflexão coletiva. Partia da experiência vivida por
sujeitos em diferentes lugares de inserção e em variados pontos de observação, produzindo
compreensão e crítica de suas práticas pedagógicas cotidianas e da de seus colegas,
ressignificando, assim, a proposta anterior de Aceleração I e II. Os níveis administrativos,
centralizados ou regionalizados, também contribuíam para pensar estratégias, pela visão
ampla que tinham de todo o sistema. Da base, professores e a experiência trazida das práticas
pedagógicas e a crítica construída sobre a proposta e sobre questões da prática pareciam
232
indicar o acerto da Secretaria por elegê-los (os professores) como partícipes na proposta
metodológica em discussão.
66..22..11 AArrtteess ddee ffaazzeerr nnºº 11:: ppeessqquuiissaa--aaççããoo rreevviissiioonnaa aa EEJJAA aa ppaarrttiirr ddaa ffoorrmmaaççããoo
ccoonnttiinnuuaaddaa ddee pprrooffeessssoorreess
A condução do processo de pesquisa-ação passou pela necessidade de conhecer os
modos de pensar dos professores sobre o que entendiam ser currículo.
Antes, porém, de se chegar a essa revelação, um primeiro desafio teve de ser,
novamente enfrentado: a desconfiança permanente dos professores quanto aos reais objetivos
e procedimentos explicitados e acordados para o trabalho de pesquisa, tratada por eles como
um risco a que se expunham. Era como se, a qualquer momento, fosse surgir, num passe de
mágica, a proposta curricular já pronta, formulada pela consultoria, que apenas lançava mão
de uma tática de convencimento para que viessem a legitimá-la. Esse “risco” que os
preocupava, de serem levados a participar de um processo de pesquisa, contribuindo para
legitimar as propostas centralizadas dos poderes, pela história recorrente da educação e de
seus modos de operar, fazia sentido, não era ilusório. Sem a garantia de que os propósitos
eram outros, de que a proposta curricular produzida não seria imposta a quem não estivesse
disposto a implantá-la, era impossível seguir.
A gestora Nascimento reforça essa percepção, dizendo:
Inicialmente, com muita desconfiança da própria comunidade escolar, que estava um pouco cansada de iniciativas que se frustravam e não iam adiante e, até mesmo da própria coordenação... nós tínhamos essa desconfiança.
O segundo desafio, também recorrente, era o de fazê-los acreditarem que suas práticas
pedagógicas tinham valor, constituíam saberes, e que precisavam ser reveladas. A atitude
desqualificadora com que se tem tratado os profissionais da educação, desrespeitando seus
saberes, ao mesmo tempo em que se exige deles que respeitem os dos alunos, pelas sucessivas
políticas governamentais autoritárias, havia ensinado competentemente esta lição aos
professores. Portanto, constituía “risco” expor-se e ser criticado, mais uma vez, duramente,
como em tantas outras oportunidades. O silêncio como tática passava a ser o modo de resistir
a mais uma possibilidade de opressão. Acreditar, como Freire (1997), na autonomia dos
professores na constituição de saberes era, certamente, para eles, apenas um conhecimento no
nível cognitivo, que não operava na realidade afetiva dos professores, experientes por
aprendizados anteriores. Como, então, fazer emergir suas produções cotidianas, sua
233
recriações, suas experiências criativas, suas elaborações, sem desconsiderar a legitimidade dos
“riscos” que temiam correr?
O contexto atual é o da maximização e máxima indeterminação do risco. Vivemos numa sociedade de riscos individuais e coletivos inseguráveis. São eles acima de tudo que minam a idéia de progresso e a linearidade e cumulatividade do tempo histórico. São eles os responsáveis pelo retorno da idéia do tempo cíclico, da decadência, da escatologia milenarista. O caráter caótico dos riscos torna-os presas fáceis de desígnios divinos ou, o que é o mesmo, de contingências absolutas. Esta situação traduz-se sociologicamente por uma atitude de espera sem esperança. Uma atitude de espera, porque a concretização do risco é simultaneamente totalmente certa e totalmente incerta. Só resta prepararmo-nos para esperar sem estarmos preparados. É uma atitude sem esperança porque o que vem não é bom e não tem alternativa. (SANTOS, 2000, p. 35-36).
Discorrendo sobre o significado do risco na sociedade atual, Santos faz considerações
bastante apropriadas para auxiliar o entendimento da posição dos professores baianos durante
a pesquisa-ação. Mas, como é sua característica, em seguida apresenta a compreensão de
como vem se dando a superação dessa atitude de espera sem esperança:
Recuperar a esperança significa, neste contexto, alterar o estatuto da espera, tornando-a simultaneamente mais ativa e mais ambígua. A utopia é, assim, o realismo desesperado de uma espera que se permite lutar pelo conteúdo da espera, não em geral mas no exato lugar e tempo em que se encontra. A esperança não reside, pois, num princípio geral que providencia por um futuro geral. Reside antes na possibilidade de criar campos de experimentação social onde seja possível resistir localmente às evidências da inevitabilidade, promovendo com êxito alternativas que parecem utópicas em todos os tempos e lugares exceto naqueles em que ocorreram efetivamente. (SANTOS, 2000, p. 36).
Os espaços consagrados nos seminários à escuta atenta das questões dos professores,
de práticas e experiências, registrando-as e trabalhando (com eles) sobre elas, criando
“campos de experimentação social”, buscando compreender o que revelavam/ocultavam, foi
construindo a “luta pelo conteúdo da espera no tempo e lugar em que se encontra”,
contribuindo, assim, para afastar o segundo “risco”, embora o primeiro ainda voltasse,
sempre, até o último seminário, enquanto intentávamos “promover, com êxito, alternativas”.
Mas foi este procedimento metodológico que permitiu a emergência — e a seguinte
constatação feita por eles próprios — do quanto sabiam e exercitavam currículos, sem ter a
consciência de que o faziam, e nem de que o que faziam tinha valor. Nos espaços de formação
continuada, a presença de saberes, tecidos nas “redes de conhecimento que constituem o
cotidiano das diversas instituições”, faziam “emergir, em diferentes momentos, uma série de
alternativas de ação”. (OLIVEIRA, 2001, p. 5).
234
Outra questão relevante a destacar nesse processo vivenciado de pesquisa-ação foi o
de reconceitualizar, na prática, o sentido de formação continuada, muitas vezes reduzido à
idéia de capacitação, treinamento etc.
Pensar-se pela perspectiva de ser em inacabamento (FREIRE, 1992), em processo de
se fazer a si próprio e de humanização constante, requer admitir que o “estar preparado para”,
tão freqüentemente sedutor quando se cursa a formação inicial, cai por terra, para ser
substituído por uma outra concepção de que ninguém se prepara antes, mas aprende na e pela
experiência — e risco — do fazer. Resgatar o valor da experiência, no sentido de Larrosa
(2002), freqüentemente desperdiçada, passou a ser fundamento do processo de formação
continuada.
Para o revisionamento dos programas, então, no primeiro ano de trabalho, 2001, foram
promovidos três seminários em quatro meses, na capital, agendados com professores de
diferentes escolas, de pólos e de regiões do estado e da coordenação de EJA, com vista a
garantir a participação representativa das diversas realidades baianas na oferta de educação de
jovens e adultos76. As representações tinham o compromisso de apreender e levar, a seus
pares, com quem deveriam dialogar, as discussões dos seminários, voltando para momentos
subseqüentes com novas contribuições, ampliadas pela interlocução em seus locais de vida e
trabalho77.
Durante os seminários, alguns textos básicos produzidos para os eventos serviram de
subsídio às discussões, buscando polemizar questões teórico-práticas e avançar em direção à
proposição de um paradigma emergente mais adequado à modalidade de educação em foco.
Os seminários, no entanto, não paravam aí, mas se desdobravam, por ação dos professores,
76 De modo geral, todas as formulações têm sido realizadas com o concurso direto de professores, representando as escolas alocadas na jurisdição das estruturas descentralizadas que assumem a coordenação político-pedagógica pelo estado — Diretorias Regionais de Educação (DIRECs). Pode-se considerar a necessidade de uma organização como esta, face à extensão territorial do estado, às dificuldades de deslocamento, às grandes distâncias. A cada DIREC cabe um quantitativo de professores, distribuído pelas escolas envolvidas com os programas/cursos/níveis de ensino, escolhidos nas próprias escolas, compondo um conjunto aleatório, com profissionais de diferentes áreas. Estes profissionais convocados recebem passagem intermunicipal e deslocamento na capital, hospedagem, alimentação e materiais para participarem de seminários de duração variável, em função da proposta efetivada. O espaço onde esses seminários ocorrem tanto pode ser o Instituto Anísio Teixeira – IAT, um centro de formação de professores, com alojamento, refeitório e salas ambiente adequadas — salas de vídeo, auditórios, salas de aula, laboratórios de informática, biblioteca etc.; quanto pode ser em hotéis conveniados, quando o IAT não tem espaço disponível, pela forte utilização do local, e o seminário não havia constado do planejamento, nem da programação feita no ano anterior. 77 As propostas formuladas, ainda assim, não passam, automaticamente, a acontecer na rede. Apenas as escolas que desejarem as implantam, convivendo paralelamente com outras, ou não. Não há obrigatoriedade no sistema de executar qualquer uma delas, havendo, ainda, espaço para propostas próprias, nascidas na realidade das escolas.
235
em suas escolas/espaços de trabalho, produzindo novos momentos de discussão, quando
aprofundavam os temas/questões, ampliando as perspectivas e enfrentando os conflitos
teóricos e práticos com seus pares. Suas considerações, reflexões, proposições, conhecimentos
produzidos eram levados em consideração pela consultoria e serviam de base para a
conformação das questões do seminário seguinte.
Com vista à consolidação da nova proposta preliminarmente formulada, um novo
seminário, o quarto, ocorreu em 2002 e, em seguida, duas reuniões de trabalho com a equipe
de EJA da Secretaria acertaram questões relevantes do ponto de vista da formulação histórica
da EJA no Estado e da prática burocrático-administrativa, que exigiria ações e intervenções na
área de planejamento, financeira, administrativa, assim como ações junto ao Conselho
Estadual de Educação78. Percebe-se o cuidado e a atenção com essas práticas políticas, sem o
que as propostas locais, os projetos pedagógicos podem não acontecer.
Ao longo do processo metodológico, algumas escolas, mergulhadas nas compreensões
de seus quefazeres e na possibilidade de autonomia que passavam a assumir, anteciparam-se
às formulações curriculares produzidas e iniciaram novos projetos pedagógicos. Um vivo e
dinâmico processo, catalisado por um esforço de organização e de pesquisa-ação que
constituía — e encarnava — novos sujeitos de pesquisa79.
[...] quando esses professores vêm, participam desses encontros, eles voltam pra escola entusiasmados, com vontade de fazer encontro com seus colegas para discutirem o que eles entenderam, absorveram e a proposta que eles querem colocar em prática, que eles pretendem colocar em prática. Isso pra gente, por exemplo, é interessante, mas na hora também que eles têm a dificuldade de participação... (Técnica SEC/BA).
O professor, quando ele é convocado, participa. Você se lembra daquele trabalho que foi feito aqui. A resposta maravilhosa do professor. Então, a
78 De maneira geral, as propostas de EJA formuladas são, tão logo aprovadas pelos coletivos, encaminhadas ao Conselho Estadual de Educação para apreciação e procedimentos cabíveis. Quando aprovadas, segue-se ato próprio do Secretário, que as regulamenta. Pode-se, com isso, constatar a preocupação de fazer não apenas legítimas, mas também legais as propostas de EJA, validando-as e garantindo a certificação plena aos usuários dessas propostas. 79 Por sujeito encarnado, entendo, com Najmanovich (2001, p. 23), aquele que passa a estar dentro do quadro, rompendo a “perspectiva linear que o mantinha de fora, imóvel e vesgo”. Participa de uma dinâmica criativa de si mesmo e do mundo, com o qual está em permanente intercâmbio, mas não está em todos os lados ao mesmo tempo, o que faz com que conheça em um contexto específico, expresso em uma linguagem determinada, ou seja, “haverá sempre um lugar específico da enunciação”. O conhecimento, dessa forma, “implica interação, relação, transformação mútua, co-dependência e co-evolução”, e haverá sempre um “buraco cognitivo”, uma zona cega que não podemos ver, e para a qual, constantemente, “somos cegos a esta cegueira”. A diversidade de enfoques é limitada por nossa corporalidade, que ajuda a compor um “imaginário” mais complexo, incluindo diversas fontes de informação, mas nunca infinitas fontes. Para a autora, só é possível conhecer o que sejamos “capazes de perceber e processar com nosso corpo. Um sujeito encarnado paga com a incompletude a possibilidade de conhecer”.
236
gente tem um professor de EJA interessado, competente, sério. Eu acredito, nós acreditamos nesse professor (Técnica SEC/BA).
Também emergiu, entre os participantes, a compreensão de que a expressão do
currículo nas escolas se faz pelo projeto político-pedagógico que cada uma formule,
coletivamente, constatando que o movimento que as escolas para jovens e adultos fazem, para
essa tessitura, mostra a “nova face” dessas escolas, suas estratégias instituintes, que poderiam
vir a tornar-se instituídas, consolidando o compromisso com as classes populares, para quem
as escolas públicas majoritariamente se destinam. O nível micro da escola constituía um
espaço de autonomia que, nas contradições do sistema, poderia significar as brechas por onde
o novo ia sendo gestado.
No movimento da prática, algumas escolas traçaram caminhos com base na
participação direta, ousando experimentar o método democrático com todos os riscos e
virtudes que contém, dialeticamente. Aprendiam, nesse processo de construção do projeto, a
viver a autonomia, nos limites do que conseguiam intervir nas proposições formais, o que se
contrapunha, in limine, à uniformização, e se apresentava como o princípio básico da busca
que realizavam. Promovendo rupturas no pedagógico e no didático, as escolas dispunham de
outra possibilidade de autonomia, apesar de vinculadas ao sistema, aos poderes aos quais
estão ligadas, porque interferiam nas direções filosóficas e políticas, principalmente. Quanto
mais conseguiam participar de espaços de formação continuada em que as definições
filosóficas, políticas e epistemológicas eram rediscutidas, mais conseguiam avançar na
construção do espaço da autonomia. Contrária à padronização, a autonomia fazia com que a
diferença aparecesse. A diferença, surgindo como direito de iguais, permitia a parceria — ao
contrário do que autonomia poderia sugerir —, não significando isolamento, mas uma
incessante interação com a sociedade, para criar o novo.
Foi por essa autonomia que as escolas afirmaram sua singularidade, que lhes conferia
o direito de serem vistas, na rede constituinte do sistema público de ensino. Saíam do
imobilismo das teorias para construí-las no movimento vivo que os sujeitos coletivos
propunham na ação-reflexão-ação das práticas. E, sobretudo, ao estabelecerem outras relações
entre os sujeitos, no processo de tessitura do projeto de curso, resgatavam finalidades,
objetivos e conteúdos para a escola de alunos jovens e adultos, potenciais trabalhadores.
Reinventando o poder de se fazerem dirigentes do próprio processo de educação,
experimentavam metodicamente a democracia, para redizer o discurso da igualdade. A
proposta de curso de ensino fundamental para a educação de jovens e adultos enunciava,
237
então, o caminho teórico-metodológico, assim como apontava a concepção epistemológica do
aprender e ensinar a esses sujeitos. Indicava a estrutura que absorvia a rede implantada, mas
deixava a cargo de cada unidade escolar definir aspectos que só ela, diante dos sujeitos alunos
e professores, seria capaz de fazer, porque tomava a realidade como objeto de conhecimento
para organizar sua proposta curricular.
Por meio do projeto político-pedagógico, professores e alunos, em cada escola, em
processo contínuo, poderiam fazer emergir suas práticas, valores, necessidades,
características, estabelecendo as melhores alternativas para permitir aos sujeitos jovens e
adultos usufruírem o direito ao ensino fundamental como experiência de sucesso, apagando
visíveis marcas de fracassos vividos em outras épocas.
Estando de acordo com a idéia de que o currículo incluía todo o processo de produção
sociocultural estabelecido no cotidiano das escolas/classes, em interação multicultural com as
formas dominantes (OLIVEIRA, 2001), e que esta vinha sendo a prática pedagógica de todos
os professores, a compreensão do coletivo avançou quanto à consideração inicial de que o
“produto” da pesquisa-ação deveria ter o caráter de um guia curricular, assumindo uma
concepção geradora de processos múltiplos de propostas curriculares.
Desvelavam-se, assim, para os professores, os fundamentos da concepção corrente do
que é currículo: propostas formais identificadas com listagem de conteúdos e/ou habilidades,
segmentados em disciplinas que se tornaram, pela visão da ciência moderna, uma forma
compartimentalizada de conceber o conhecimento. Alves (1999, p.2-3), assim explicita essa
idéia:
Esta “estrutura” vai, assim, organizar “uma” escola, em todos os seus níveis, cujos currículos são criados em torno de disciplinas, termo que tem um expressivo duplo sentido, e que são, elas também, hierarquizadas, fracionadas e entendidas como “passando” conhecimentos lineares.
O modelo e a realidade organizados a partir daí são “construídos”, com uma antecedência clara das disciplinas teóricas, formadoras de campo científico específico e organizadoras dos conhecimentos considerados necessários e aceitáveis de serem escolarizados, para o que precisam ser traduzidos para uma linguagem pedagógica. [...].
A maneira mesma como esta sociedade se desenvolve começa, especialmente a partir de meados deste século, a colocar em questão toda esta organização [...]. Nos novos campos de conhecimento, se detecta um esforço claro para superar a disciplinarização herdada do período anterior, com a criação de espaços que não se apresentam mais como “novas” ciências, e que são organizados como espaços amplos de múltiplos contatos e trocas.
238
Observa-se que, mesmo quando há um único currículo proposto, entendido nesse
sentido, o que acontece nas escolas não corresponde à expectativa dos poderes que se
concebem com o papel de controlar as práticas docentes. O cotidiano da escola cria e recria o
currículo, intencional ou acidentalmente, com consciência, ou não, de que a alternativa
produzida seja, efetivamente, currículo.
Na educação de jovens e adultos, principalmente, tem sido quase impossível pensar
diferente deste modo de conceber currículo, pois os saberes em jogo não permitem ignorá-los.
Para que todos esses princípios ganhassem vida na proposta curricular, e considerando que os
saberes em rede não segmentam áreas, nem disciplinas, mas se enlaçam pelos fios de
conhecimentos, o coletivo de professores adotou um modo de organização do currículo,
tomando como base quatro unidades conceituais, a partir das quais se organizavam os projetos
de curso.
A gestora Nascimento, da Secretaria de Educação, ao discutir as questões desafiadoras
da EJA, assim se expressou:
[...] o professor, ele traz sempre a relação da seriação. E aí tem também essa relação da seriação vinculada ao conteúdo. Então, não é a necessidade do aluno, é o conteúdo da série X [...] Não gosto nem de falar de capacidades, não, competências. Capacidade que ele precisa desenvolver. Então, a grande dificuldade é fazer ele perceber que conteúdo está a serviço disso e não o conteúdo, como uma proposta em si [...] É desvincular, pra conceber o que é a EJA, da proposta seriada. Mas se vincular a proposta à necessidade do meu aluno... [...] A referência é quem é o meu aluno, o que ele precisa saber. O que a sociedade precisa que ele saiba, o que ele precisa saber. A referência precisa ser essa. (Gestora Nascimento).
Os conceitos escolhidos nesses momentos de formação remetem ao sentido final do
projeto educativo, ou seja, a formação da cidadania, com domínio dos instrumentos básicos
que facilitam o interferir e agir, criticamente, sobre o mundo — a leitura, a escrita, o
pensamento lógico-matemático e as relações sociais. Para dar-lhes sentido, conhecimentos
relativos aos diferentes campos de saber, que com eles dialogam, exigem reorganização — os
chamados conhecimentos científicos de cada campo —, de modo a se conectarem, trançando-
se, com os demais e com os produzidos na prática social, pela experiência.
Para Vygotsky (1987), a formação de conceitos dá-se sempre em processos
complexos, enlaçando os sentidos inicialmente atribuídos a novos fios que lhes vão
permitindo conexões que ampliam os sentidos originais. Quero entender este modo de pensar
a formação de conceitos como um processo em rede, o que significaria dizer que eleger
quatro unidades conceituais não redundaria, em absoluto, em restringir o trabalho pedagógico,
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pois a organização de cada unidade, ano a ano, tenderá a ser diversa, mais ampla, com novas
conexões, novos conteúdos, novos saberes, permitindo o tensionamento cada vez maior do
que era sabido até então, com o desafio de questionar esse saber e ampliá-lo/revê-lo,
modificando-o/reforçando-o, a partir dos novos fios que irão se entrelaçando com eles.
[...] na verdade a gente fala muito que os alunos precisam avançar, que os alunos têm saberes. Nós precisamos reconhecer esses saberes, mas pra gente é um pouco... tem sido ainda um pouco difícil, a gente matricula o aluno, o aluno apresenta determinados conhecimentos e saberes e a gente percebe que esses alunos poderiam estar em outro estágio e não apenas no estágio 1 e estágio 2. (Gestora Castro).
O que a gestora alerta é sobre como, apesar de o discurso dos professores levar em
conta os saberes dos alunos, na hora exata de reconhecê-los, até mesmo para efeito da
matrícula, o formalismo da escola prepondera e as referências evocadas criam obstáculos ao
reconhecimento do que são capazes os sujeitos que chegam, porque não portam os saberes
estritamente escolares — e que a escola sobrevaloriza.
Por isso mesmo, as quatro unidades conceituais estabelecidas para todo o curso
implicam, conseqüentemente, ressignificação permanente, pela ampliação de visões,
conhecimentos, saberes que se produzem a partir de conceitos já formados em momentos
anteriores/experiências vivenciadas. São alunos que chegam, são alunos que saem: a proposta
é viva e os níveis de realidade em que opera são multirreferenciados.
Coerentemente com o preceito do direito de todos ao ensino fundamental e a
concepção de que a aprendizagem não tem volta, mas se desenvolve como um continuum que
possibilita aos sujeitos avançar cada vez mais nas redes conceituais que estabelece, percebe-se
que a avaliação proposta para esse processo está prevista para ocorrer como um instrumento
que permita ao professor conhecer o que os alunos sabem, para continuar a propor desafios
cognitivos e afetivos que lhes permitam saber mais, trançando práticas, saberes, histórias.
Uma técnica da equipe da Secretaria de Educação relembra o que significaram os
variados momentos de formação, pelo que desdobraram de ocorrências transformadoras das
práticas dos professores nas próprias escolas: não mais isoladas mas, necessariamente,
coletivas:
Foi tão interessante, por exemplo, na reformulação do ensino fundamental, da proposta, com os professores... porque nem todos estavam, era um por escola, nós tínhamos uma representação com uma média de 80 professores participantes, e eles retornavam pra suas escolas, reuniam com seus colegas e discutiam. Quer dizer, eles traziam não apenas o produto deles, mas era o
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resultado de um coletivo. Quer dizer, eles pensavam, eles refletiam, mas também eles provocavam os seus colegas. Isso pra gente era muito rico. Isso foi, por exemplo, importante porque eles colocaram que foi, vamos dizer assim, eles colocaram que aquilo foi um desafio, porque eles não tinham ainda imaginado de eles retornarem... a intenção que eles pensavam era retornar pra trabalhar na sua prática. Mas eles sentiram que foram desafiados ao retornar para discutir o que se estava pensando sobre a educação de jovens e adultos. (Técnica SEC/BA).
Foi-se, assim, como se observa, fazendo a mudança tanto da proposta pedagógica,
como do projeto da escola, pelo novo entendimento do que significava a EJA, assim como dos
professores, em relação com seus pares. Co-autores da nova proposta, co-responsáveis pela
cumplicidade com os demais companheiros da escola, não são mais leitores, unicamente, de
um modo de conceber a educação de jovens e adultos mas são, principalmente, autores,
escritores dessa nova história.
66..22..22 AArrtteess ddee ffaazzeerr nn..ºº 22:: nnaa PPrraaççaa CCaassttrroo AAllvveess,, CCeennttrroo ddee EEdduuccaaççããoo ddee AAdduullttooss
MMaaggaallhhããeess NNeettoo
O Centro de Educação de Adultos Magalhães Neto foi criado, segundo seu atual
diretor, para ser uma referência em educação de jovens e adultos, com a particularidade de
abrigar diversas ofertas de atendimento na modalidade.
A história e as concepções que passo a construir são produzidas a partir da pesquisa,
quando visitei a unidade escolar e realizei entrevista coletiva nesse mesmo espaço com o
diretor e sua adjunta, em 11 de março de 2005, acompanhada de três técnicos da equipe de
EJA da Secretaria de Educação. Ambos bem jovens, solícitos, disponíveis para contar a
experiência à frente do Centro, apresentá-lo e compartilhar o entusiasmo com o trabalho na
EJA.
A iniciativa de implantação do Centro de Educação de Adultos não foi proposta nos
tempos atuais, mas na década de 1970, sob a concepção de que o aluno seria autodidata.
Instalou-se bem mais tarde no prédio em que está localizado, na Praça Castro Alves, no centro
de Salvador, local de forte relação com as manifestações populares na cidade, e de grande
circulação da população mais pobre, pelo comércio e oferta de serviços ali encontrados; de
economia informal, com ambulantes de toda a sorte oferecendo serviços e produtos quase
sempre de baixa qualidade, mas de preço acessível; de perambulação de meninos e meninas
em situação de risco social; de encontro e acordos entre desocupados, cheiradores de cola, ou
seja, tudo e todos que ali vivem e trabalham misturados ao afluxo de veículos e pessoas e ao
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vai-e-vem cotidiano. Um prédio vertical, espaço adaptado de antiga secretaria de estado, com
vários andares e acessos por escadas e elevador lento, com movimento intenso de alunos pelos
corredores, uma portaria de recepção no térreo acolhendo os chegantes. Nenhum modelo
arquitetônico ideal, mas um espaço limpo, provido de recursos variados, com pessoas
ativamente participando: vida por todo canto.
Convertida em Centro de Educação de Adultos quando se instalou no endereço atual,
funcionou como experiência inovadora, adotando a idéia de que a construção do
conhecimento é mais favorecida com o contexto, em grupo, o que exigiu de todos os
professores estudos e aprofundamentos teóricos, pautados na realidade do público local que
prontamente acorreu ao Centro, para que fosse possível a mudança de paradigma com a qual
era concebida, até então, a EJA. São 1.680 alunos matriculados no Programa Tempo de
Aprender (que utiliza materiais do Telecurso 2000, para ensino fundamental e ensino médio,
recebendo os alunos em dois dias na semana); 4.700 em programas modulares e mais de 100
alunos no Programa Aceleração, presencial. Além desse atendimento no local, a unidade
funciona em Postos de Extensão, outra tentativa da Secretaria de aproximar a escola dos
alunos, em modelos mais adequados à realidade dos trabalhadores, a partir da celebração de
convênios com empresas. A escola vai à empresa, cabendo à primeira a coordenação do grupo
de professores e a matrícula dos alunos; a organização do horário dos professores, cujas aulas
acontecem no espaço destinado na empresa, com carga horária determinada para cada
disciplina. Os Postos de Extensão vinculados ao Centro estão na Marinha, na Universidade
Católica, na empresa Paraíba capital, no CAP, no Ministério da Fazenda, no Hotel Fiesta, no
Shopping Iguatemi, no Supermercado Extra, quando os trabalhadores são dispensados durante
2h do turno de trabalho para estudar. Com a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) foi
assinado convênio, derivado da visita do príncipe de Espanha e denominado Projeto Escola
do Carnaval. Um outro convênio, com vista a atender adolescentes em situação de risco
social, com metodologia proposta pelo governo espanhol e financiamento do Ministério da
Cultura, visa à qualificação profissional na área de restauração e patrimônio, associada à
escolaridade. Este projeto já recuperou o prédio da Faculdade de Medicina, no Pelourinho, e
pela qualificação dos adolescentes na área de restauração disporá de pessoal com
conhecimentos para atuar em projetos de outros prédios vinculados ao patrimônio histórico da
cidade.
A presença de tantos adolescentes na região, muitos sem escolaridade e sem ocupação
formal foi sinalizada pelo diretor, e observada por mim, logo na chegada. Observe-se, ainda, a
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concepção expressa em sua fala, em que flagrante era sua preocupação com a
descaracterização do público a que se destina a EJA, pelo ingresso de jovens que deixam a
escola regular em busca de maior agilidade nos cursos, horários mais flexíveis e alternativas
mais adequadas à sua realidade de vida e trabalho, provocada, de certa forma, pelo
rebaixamento da idade para exames, no Art. 38 da LDBEN:
[...] E assim a gente percebe que o direito, esse direito que é dado pra esses adultos, porque deixaram de estudar na idade regular, porque lhe foi renegada a condição, ao próprio direito de estudar nesse período, é realmente dado nesta nova etapa da vida dele. Só que eu percebo, hoje, que está havendo uma descaracterização dessa clientela. Porque, na realidade, a educação passa por determinadas situações difíceis. A escola, hoje, está recebendo alunos dos mais variados segmentos, que antes não cursavam a escola pública. [...] em todas as modalidades, está incorporando clientes que não eram, que não são, talvez, o público realmente alvo da concepção. Tanto pela questão do perfil da clientela, pela faixa etária... não são tão adultos, mas às vezes são esses jovens que estão correndo da escola regular. Porque hoje em dia todo mundo acha que o tempo tem que ser eliminado pelo atalho. [...] E a gente tem percebido que é uma situação nova. O sistema de cotas foi implantado na universidade e está trazendo alunos da escola particular pra se certificar pela escola pública, pra ter direito a ingressar no sistema de cotas. Então, existe realmente, uma descaracterização da escola. Quem trabalhou em 91, e até com outra metodologia, percebe que hoje a clientela está totalmente assim, é uma demanda muito grande de alunos mais jovens, e aí muitas vezes o professor fica sem condições de... até pela própria diversidade que é a sala de aula, a diversidade que ele encontra, de fazer um trabalho. Porque a gente não quer homogeneidade, mas a gente quer um público com um perfil delineado pela política que está se propondo a atender nesse segmento. Então, hoje é isso.
Nesta fala, o diretor expôs duas situações que vêm mudando a concepção da educação
de jovens e adultos. A primeira, as pressões criadas pelos sistemas de cotas e de acesso direto,
desde que aluno de escolas públicas, fazendo com que jovens egressos de qualquer tempo e
nível venham para a EJA e, até mesmo, saiam de escolas que freqüentam, privadas, para
auferir os benefícios da legislação. Outra, a presença de muitos jovens que abandonam a
escola e o curso regular de ensino, para se beneficiarem de trajetórias mais encurtadas,
supostamente mais rápidas. Com isso, de muitos modos, percebem os interesses diferenciados
desses grupos etários, o que acaba comprometendo as propostas pedagógicas e curriculares
que estabelecem para o Centro.
O movimento de entrada dos mais jovens, que até mesmo abandonam a escola, em
função de políticas de ação afirmativa, como a das cotas, não é, apenas, uma disposição dos
alunos, mas também sofre o estímulo de seus pais, como se poderá conferir pelo seguinte
depoimento do diretor:
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[...] a gente acaba que aceita essas pessoas... essas mães, esse pais que permitem que os alunos fiquem dentro de uma faculdade 1º ano, 2º ano e depois passam pras faculdades particulares. Na Universidade Federal e na Universidade Estadual é mais difícil. Nas particulares é imenso e chegam aqui pressionando. Querem fazer todas as avaliações no momento único, como se houvesse essa condição. Então, a gente percebe que realmente, por conta de toda essa... esses fatores, aquela situação do professor que se atrofia na metodologia, na concepção de jovens e adultos, muitas vezes ele tem essa vontade. Mas, ao chegar na sala de aula, ele acaba tendo que, de certa forma, redirecionar o trabalho.
A preocupação do Centro repousa, primeiramente, sobre a necessidade de acolher os
alunos: “nesse momento que retorna é o momento de acolhida, de valorizar o que eles fazem.
[...] a gente tem o cuidado de fazer com que os alunos que retornam sejam bem acolhidos,
porque esses alunos carregam um estigma” (Diretor). Tanto o diretor quanto a adjunta
revelam preocupação com esses estigmas, de muitas e diferentes ordens, pelo fato de saberem
o quanto interferem na auto-estima. Muitas compreensões sobre essa condição de
subalternidade e como ela se expressa na vida de cada sujeito, produzindo fracassos os mais
variados e colocando-se como impedimentos para que possam resgatar o direito negado,
vieram à tona:
[...] valorizar a identidade das pessoas. Eu acho que a gente tem conseguido muita coisa. Entendemos que assim os resultados poderiam ser melhores, estamos até fazendo um levantamento agora. Mas porque essa clientela é também uma clientela muito sortida. [...] percebe-se aqui que muitos começam a escola e tem também aquela questão de troca de turno porque vive em função de uma ocupação, da informalidade. Então, quando tem emprego, perde o emprego ou estuda, e isso dificulta. Quantas vezes já tivemos que dar vale transporte pros alunos? [...] vem com essa concepção de que ele não aprendeu nada e sabemos o quanto a escola da vida ensina a pessoa. (Diretor).
E continua, dizendo do movimento que a escola faz no sentido de ajudar os que
chegam, por intermédio da ação pedagógica adequada, a permanecerem incluídos no sistema
e obterem êxito — palavra riscada do vocabulário da população pobre, em geral, no país.
Mas a gente aqui busca. Os professores aqui têm... têm assim esse objetivo de fazer com que ele se aproprie da metodologia, que tenha uma concepção de que a escola tem que ser inclusiva. Que não é apenas o acesso, mas manter esse aluno na escola, e buscar a... o conhecimento e a peculiaridade.
[...] em algumas situações acabamos mostrando que esses alunos são capazes de construir conhecimento. (Diretor).
O diretor explicitou, ainda, a busca por um sentido mais amplo para o que pode ser a
educação de jovens e adultos. Reforçou as formulações dos textos legais, indicando que a
oferta da escola não se restringia aos alunos matriculados em projetos de escolarização, nem
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somente voltada ao mesmo público, oferecendo projetos de natureza diversa, como era o caso
de cursos profissionalizantes. Ressaltou que a escola se abre e presta serviços à comunidade, a
todos que desejarem participar, anunciando o sentido do aprender por toda a vida, proposto
desde a Declaração de Hamburgo.
[...] inclusive o curso de informática também não é só para os alunos. Temos informática básica aqui com eles. Temos um laboratório com 32 máquinas. Então, temos professor nos três turnos e atendemos os alunos da casa e os alunos, ex-alunos e o pessoal da comunidade também que está interessado em participar.
O sentido do direito à educação, e da visibilidade que o atendimento a esse público
precisa ter, assim como da consciência pública de que educação é investimento, e não gasto,
também surgiu na fala. No segundo parágrafo, abaixo, referiu-se, especificamente, às formas
como veio sendo nomeada a área nas políticas públicas baianas, em busca de financiamentos
— Aceleração etc.:
[...] tem o direito, tem que ser garantido, tem que ser realmente. Acabou aquela coisa que é pra suprir, é pra... é um direito que lhe assiste.
Agora me parece que a EJA é EJA. Agora a EJA é EJA. Porque há alguns anos atrás, a EJA não era EJA. A gente tinha que fazer todo um malabarismo, pra fazer EJA. E aí hoje me parece que o recurso que vem realmente será investido na educação de jovens e adultos. Porque sabe que educação não é gasto, é investimento. Então, precisa investir na estrutura da escola.
Por último, quanto ao que pode/não pode a educação, mas sim quanto ao que sem ela
não se é capaz de fazer, e para o que se demandam políticas setoriais mais ampliadas, fugindo
de modelos compensatórios, o diretor assim se expressa:
[...] o quanto a sociedade está precisando investir em determinadas situações pra que a gente possa eliminar um pouco essas desigualdades. A saída não é só educação. É investir no emprego para que as pessoas possam se sentir capazes de trabalhar e lutar pela melhoria da sua qualidade de vida.
Sem ela (educação) não muda nada, não transforma. Mas, assim, é preciso que a gente pare de fazer tanta ação compensatória de bolsa isso, bolsa aquilo e resolva esses problemas todos que nós temos e são tão antigos.
FFeerrrraammeennttaass qquuee oorrggaanniizzaamm aass ssiittuuaaççõõeess ddee aapprreennddiizzaaggeemm:: ccoonncceeppççõõeess ddee ccuurrrrííccuulloo
Quanto ao currículo — o que é e como pode ser pensado em função de seu público e
dos objetivos da escola — emanou da entrevista, tanto na fala do diretor, quanto de sua
adjunta, revelando sinalizações centrais e acuradas de um modo de pensar currículo muito
próximo das concepções que buscam novos paradigmas, para além dos modelos
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convencionais, identificados com as célebres listagens de conteúdos universais (como se
fosse, isso, possível), submetidos aos alunos, para que os “dominem”.
Porque na escola regular, conteúdo por conteúdo já não atende, porque existe a necessidade de contextualizar, de desenvolver as competências, habilidades que, muitas vezes, aquela concepção de educação onde o professor é apenas um instrutor. [...] essa aqui é uma escola que tem uma concepção diferente, uma metodologia diferenciada.
[...] Mas a gente pede que eles [os professores] possam estar agregando a esses recursos, mas que eles [os professores] estejam com a intenção educativa, com a sua criatividade. Atrelado àquilo que eles planejam e aos projetos, que são desenvolvidos pra cada etapa, estarem buscando fazer a diferença porque se não os alunos acabam evadindo, além de fatores externos, acabam evadindo porque a escola muitas vezes está muito distante. [...] Não tem prazer, não tem nenhum tipo de atrativo. A gente tem realmente esse cuidado, agora eu acho que a Secretaria podia investir mais um pouco. (Diretora adjunta).
A construção metodológica de projetos, para expressar o currículo, parece vir sendo
adotada com relativo sucesso, pelo menos entre os alunos, que se encantam com as
possibilidades abertas à curiosidade, ao conhecimento, a novas e possíveis leituras de mundo,
oferecidas em atividades culturais, tanto no interior da escola, quanto em incursões pelo
bairro, próximo ou mais distante; por meio de palestras e ações concretas que desmitificam
práticas preconceituosas, arraigadas nos espaços públicos, encobridoras da identidade étnica
da população e fortemente conformadas nos sujeitos vítimas dos preconceitos. Observa-se que
se incluiu a declaração de cor nas fichas de matrícula, e de que modo podem se perceber
mudanças entre atitudes declaratórias na entrada de sujeitos, ao fazerem a matrícula, antes da
intervenção pedagógica:
Porque nós tivemos aqui algumas experiências de trabalhar com projetos que a gente acabava assim se... se espantando com o nível de comprometimento, o nível de envolvimento desses alunos, ao perceberem que eles podem fazer pesquisa. Tem professores que usam algumas atividades fora da sala de aula. Aqui mesmo eles passam bastante. Então existem aulas vivas no Pelourinho, vão para o Abaeté. Então, aquilo que sempre se pensou que não poderia ser feito com esses alunos, tem comprovação que foi feito. Talvez, a gente não tenha registro, tipo memorial. Mas tem até alguma coisa escrita, fotografias, que esses alunos podem demonstrar, através dessa metodologia, que eles se tornam sujeitos da construção de conhecimento. Quando eu passei aqui de 1997 a 2001, fizemos muito isso e eu tenho certeza que o pessoal ficou, de 2001 até agora, implementou mais projetos, buscando valorizar dimensões que muitas vezes a educação não desperta nos alunos. Na questão das artes, no envolvimento com questões de relações de etnia, de gênero. (Diretor).
[...] descobrir jovens que moravam aqui mesmo no centro da cidade, e não conheciam muitas coisas. Então, nas idas aos museus, isso foi uma coisa interessante que eles despertaram esse gosto. Então, eles vêem aqui e
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questionam: “A gente não vai continuar com aquele projeto?” Porque nós temos uma parceria também com o TCA [Teatro Castro Alves], então esses treinos, não é treino, é... a orquestra sinfônica faz sempre aquelas apresentações nos finais de tarde e os nossos alunos sempre estão presentes. Então, é também uma coisa interessante, que eles não conheciam o que era um teatro. Eles vão ao teatro. Eles, nós. Fizemos, também, ateliê de pintura. Eles começaram a descobrir que têm outros talentos que podem ser descobertos, e a escola está levando esses alunos a conhecerem que eles são capazes dessas coisas. [...] “aquilo eu pintei, aquilo foi uma criação minha naquele momento” [reproduzindo fala de aluno, aponta quadros na sala e depois também vistos nos corredores e no hall de acesso ao elevador]. [...] No mês de novembro é o mês da consciência negra. Nós fazemos, sempre, apresentações aqui, vêm palestrantes, eles têm ateliê de trançado. O pessoal do Pelourinho vem, trabalha aqui com eles. A gente mostra essa valorização da mulher, do homem negro, essa figura do negro que, até então, ainda é estigma. Esse ano mesmo, no período da matrícula, tem o item que foi colocado, que questiona sua cor e raça. Se ele é branco, preto, pardo, amarelo ou indígena e a gente nota que os que estão chegando, ainda não conseguem dizer que são pretos. Eles dizem todos que são pardos. “No meu registro está escrito pardo”. A gente olha e vê que a figura é negra. Eles não têm ainda aquela consciência do que é ser negro hoje na nossa sociedade. (Diretor).
A consciência da desigualdade não está ocultada, esteve presente nas falas e na defesa
das metodologias de trabalho pedagógico, assim como nos acessos aos espaços da escola, no
modo como circulam nesses espaços, como exibem os materiais produzidos, visíveis e
destacados nas paredes dos corredores, assim como a atenção dispensada a cada um deles,
quando saímos do gabinete do diretor para circular pelos andares da escola.
Aqui o negro tem espaço, o adulto tem espaço. Aquela pessoa que deixou de estudar 10, 20, 30 anos pra criar os filhos eles vêm pra aqui. Esse ano mesmo foi muito gratificante, uma aluna nossa saiu e passou na Universidade Católica e depois ela veio aqui agradecer. Ela disse: “Eu cheguei aqui pra baixo, eu achava que eu não era capaz e a escola me mostrou que eu sou capaz de conseguir alguma coisa”. Então, como ela, nós temos vários depoimentos desse tipo [...]. (Diretor).
Quanto às formas como a organização curricular vai-se fazendo, atendendo as
necessidades de horários de jovens, de trabalhadores, segundo recomendação/compreensão do
Parecer CNE nº. 11/2000, de modo a adequar a proposta curricular aos usuários da escola,
observa-se também que há autonomia no Centro de realizar sua própria proposta, sem que
haja interferência do poder central, coerente com a idéia de que se deve ter sob foco o jovem e
o adulto, em suas reais condições de vida. A diretora adjunta assim relatou o processo
decisório que a escola estabeleceu em relação à implantação do Telecurso 2000 (no Tempo de
Aprender), com vista a, reconhecendo as dificuldades e problemas do modelo inicial, ajustar o
Programa às condições do público envolvido.
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[...] a própria Secretaria, de início, quando implantou o projeto Telecurso 2000, tínhamos apenas um semestre daquela disciplina. Depois foi discussão, aqui mesmo da escola, juntou os professores. Então, nós percebemos que havia necessidade de, pelo menos nas duas disciplinas que os alunos chegavam com maior déficit (português e matemática), ser diferente. Era passar de seis meses para um ano. Era ficar em dois módulos. Então, isso partiu daqui. Agora já temos feito também com relação ao ensino fundamental, porque no fundamental o aluno pode concluir em até um ano, as quatro séries. Então, estávamos percebendo que eles estavam chegando no ensino médio com grandes deficiências, principalmente em leitura. Então, português e matemática também, a partir de 2006, já será um ano para os alunos também do ensino fundamental. E outras questões, como o projeto político-pedagógico... porque existe, a Secretaria tem modelo, mas a gente vai adequando à nossa realidade, às nossas necessidades e isso tudo de acordo com as necessidades que são observadas durante todo o período, com alunos, professores e isso tudo bem repensado. (Diretora adjunta).
Explicando o programa modular, em que o aluno tem maior flexibilidade de horário,
podendo organizar sua participação segundo sua disponibilidade, a mesma diretora adjunta
disse:
[...] agora, os alunos, eles não têm aulas regulares. Eles vêm, são atendidos... O mínimo são dois dias na semana. Eles têm que vir à escola. Eles têm cinco aulas de cada disciplina. Então, é como se fosse uma faculdade. Esse aluno já está preparado para a faculdade. Porque aquele horário que a Universidade Federal tem, que a Católica tem, você vai, olha a disciplina, fala com o professor. Aqui você olha essa mesma coisa. Então, o aluno chega e diz: eu só posso vir aqui 3ª e 5ª. Aí a gente vai acertar um horário com aquelas disciplinas, pra esse aluno, naquele dia. Aí ele vem assistir aula nos primeiros horários, ou nos últimos, naqueles dias. Depois ele vai embora. Então, a nossa rotatividade é muito grande. Uma sala só, cada turno são duas turmas, no mínimo. (Diretora adjunta).
Mas, ao mesmo tempo, a diretora adjunta reconhecia que a organização era mais
adequada quando se tratava de alunos trabalhadores, e pouco satisfatória em relação a
adolescentes. Para esses, a perspectiva desejável era a de que se reinserissem nos processos
pedagógicos de cursos, não saltando obstáculos, porque tinham a oportunidade até então
considerada perdida de capturá-la, em pleno vôo, possibilitando a vivência de processos de
aprendizagem mais sistematizados, com tempos menos acelerados, com ritmos adaptados às
múltiplas dimensões da juventude.
[...] aluno trabalhador, eu acho muito válida a proposta. Agora, para o aluno adolescente, que ele está assim: repetência, repetência, repetência, escola, que sai das regulares e vem pra aqui, ele às vezes se frustra um pouco, porque ele estava acostumado com aquela aula do professor puxar muito e tal, muito assunto e muito conteúdo. (Diretora adjunta).
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Diferentes questões foram sendo reveladas, sinalizando a acurada visão da direção em
relação às necessidades dos alunos, e para cada uma delas buscando a melhor alternativa,
inclusive dialogando com a coordenação da Secretaria de Educação, no sentido de negociar as
formas de atender novas demandas não previstas, criando saídas próprias, particulares, mas
jamais deixar de atender, mesmo quando os alunos vêm com questões burocráticas de
documentação não-regularizada.
A gente, a gente estava discutindo aqui com ela que nós estávamos recebendo um número muito grande de alunos com conhecimento, mas sem a certificação de 1ª a 4ª série, e aí tem uma Portaria, que pela LDB qualquer unidade escolar dentro do seu regimento essa... esse tipo de atendimento pode-se fazer. Mas a gente tem uma portaria que limita a apenas algumas escolas mas se percebe que tem crescido. Essa semana estava conversando com a coordenadora que os que vêm são agregados hoje e o que fazer com aqueles que não são agregados? A gente está com uma idéia embrionária de criar um tipo de atendimento pra essas pessoas, onde elas possam fazer oficina de leitura, de escrita, aprofundamento em matemática pra que essas pessoas retornem e se sintam capazes. Então, tem que estudar essas linhas.
[...] As escolas onde estudavam era de roça, de interior. Não eram autorizadas, eram professoras particulares. Então, esse pessoal é uma demanda muito grande, essa procura aqui pra regularização. (Diretor).
Por fim, e introduzindo a discussão da formação continuada, como suporte às
concepções que professores forjam sobre a EJA, trago para o texto a percepção do diretor,
quanto ao que fundamenta, em síntese, qualquer concepção traduzida como currículo: “Não
se faz política de currículo sem investimento em capacitação do professor”.
CCoonncceeppççõõeess ddee ffoorrmmaaççããoo ccoonnttiinnuuaaddaa ssuubbjjaazzeemm ààss ccoonncceeppççõõeess ddee EEJJAA
Devo destacar que o Centro de Educação tinha, todo o tempo, sempre muito a dizer a
respeito de cada aspecto do processo que envolve a educação de jovens e adultos. Como tal,
não deixaram de abordar, com consistência, questões relativas à formação continuada, sob
diferentes aspectos. Um deles referia-se à perspectiva de propor, com autonomia, processos
próprios, pela existência de recursos voltados a esse fim.
A escola hoje já recebe recursos pra capacitação do professor e, obviamente, que a escola sinaliza aos professores, e eles também dão opiniões de como que é... [...] hoje já tem até autonomia, os recursos, quando chegam, podem ser analisados pra esse... pra uma capacitação. (Diretor).
Percebe-se que a continuidade das iniciativas que formam, na prática, os professores,
dá margem à tomada de consciência da função social desse profissional, não mais submisso a
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um próprio do poder, que esvazia de sentido a prática — e a reflexão sobre ela —, de quem
faz educação80.
[...] com o tempo vai criando a consciência que não pode mais ficar recebendo as coisas sem poder falar, fazer crítica da situação. [...] Por mais que a gente tenha tido essa mudança na posição política, praticamente há séculos no Brasil a gente percebe que parece que tudo aquilo que se esperou você sabe que não se resolve num passe de mágica. (Diretor).
Mas ainda assim, e mesmo com recursos e autonomia para decidir, a avaliação do
diretor sobre os processos de formação continuada deixava perceber a insuficiência de tempo
dedicado a essa atividade, assim como expressava a demanda por especialização na área de
jovens e adultos, mesmo reconhecendo que em outros espaços isso não acontecia:
As capacitações que as escolas conseguem fazer são capacitações momentâneas, muito rápidas. Então, é preciso investir na formação do professor, que é fazer cursos de EJA. Nós temos aqui alguns professores que fizeram especialização em jovens e adultos. Então, pra esses professores é bem mais fácil trabalhar, porque ele entende a concepção, ele compreende que a metodologia tem que ser algo diferenciado. (Diretor).
Não só o tempo aparece como capataz nos processos de formação continuada. O
desafio que se coloca para a gestão pública, no tocante à formação continuada diz respeito ao
quanto tem sido difícil aproximar os momentos de formação, de reflexão, às práticas, que não
mudam facilmente, mesmo quando se consegue estabelecer um diálogo profícuo entre todos
os docentes.
[...] é um momento que a gente pára pra discutir, pra ler alguma coisa, pra repensar as nossas práticas. Mas o que eu observo também é que por aí afora isso não acontece com o professorado. (Diretor).
A gestora Castro apontava que a formação continuada, sem a possibilidade de
acompanhamento sistemático, resultava tibiamente em mudança, o que exigia repensar, nos
sistemas, o tamanho das equipes, sua composição, sua função permanente, e não episódica:
Mas a gente sente, não sei se é por falta de formação mesmo do professor, essa dificuldade que eles têm de traduzir isso na sua prática pedagógica [...]
80 Nesse aspecto, e comentando a reflexão do diretor, poder-se-ia admitir que também ele se refere aos modos como a política tem agrilhoado corações e mentes baianos, nos difíceis jogos e embates que estabelece com a realidade da população. Mas o cotidiano dos habitantes da cidade de Salvador, no entanto, têm dado também duras respostas políticas ao “poder carlista”, derrotando-o sistematicamente nas eleições da capital, com vitórias esmagadoras da oposição para a prefeitura da cidade. Do mesmo modo, o “poder carlista” vem-se enfraquecendo no interior, rapidamente nos últimos anos, face às situações complexas em que o político se envolveu/viveu, perdendo prestígio e fôlego, e abrindo flancos para a passagem de outras vozes de resistência, há 500 anos sussurrantes.
250
Na época da implantação da suplência, quando a aceleração era suplência, nós fizemos núcleo e íamos em todas... a cada unidade nós visitávamos esses núcleos, fazíamos acompanhamento. Eu achei que naquela época houve um crescimento no entendimento (Gestora Castro).
Reforçando o aspecto da distância entre o discurso e a prática, uma técnica da equipe
central disse que isso fazia com que os avanços na área fossem tão pouco perceptíveis, mesmo
quando os professores se submetiam a processos de formação:
[...] Quer dizer, isso na fala, mas na hora mesmo de colocar na prática isso está sendo difícil. A gente não percebe, não faz esse encaminhamento, a gente não percebe a prática e a teoria. Porque a fala você vai perceber muito fácil aquilo. Porque muitos estão colocando que eles entendem, mas a prática deles é um pouco diferente. (Técnica SEC/BA).
Novas questões surgiram, estruturais, relativas à rotatividade de professores no sistema
que, embora tivessem passado por momentos de formação, não se fixavam na educação de
jovens e adultos por causa disso, nem tinham vínculo docente com a modalidade81, mais
atendendo a seus interesses pessoais, nas decisões tomadas quanto a turnos e horários, o que
implicava, para a gestão pública, um eterno recomeçar.
[...] aliado à questão que, às vezes, nós temos professores que participam até da capacitação, do período de formação. Em menos de um ano, de dois anos esses professores não estão mais na escola. Então, existe também, infelizmente, essa questão da rotatividade. Porque os professores do noturno eles não são professores efetivos do noturno de EJA. Eles estão trabalhando na EJA, estão trabalhando no noturno, são poucos os que querem, se identificam mesmo com profissionais de EJA, que querem permanecer na EJA. (Técnica SEC/BA).
De maneira geral, a avaliação da direção da escola sobre a forma como a educação de
jovens e adultos vem sendo tratada, como política pública, na rede estadual de ensino da
Bahia era positiva, revelando, no entanto, horizontes sempre mais distantes — da dimensão
do sonho de uma educação melhor, de uma escola melhor, em que todos seguissem...
aprendendo.
De 97 até agora, percebe-se que até as condições de trabalho melhoraram. [...] até a própria política da Secretaria, de investimento na gestão das
81 Essa observação na rede estadual da Bahia coincide com muitas outras pelo Brasil afora. Como poucos ainda são os cursos que formam, tanto em nível médio, quanto na educação superior, profissionais para a EJA, os concursos para professor não distinguem, na oferta de vagas, a distribuição por nível ou modalidade de ensino. Com isso, tanto um professor habilitado para a EJA pode passar a trabalhar na escola regular de crianças, quanto na educação infantil, quanto o contrário pode acontecer. Embora se aponte para a necessidade de discriminar as vagas ofertadas no sistema nos editais de concurso, não conheço registro de experiências acontecidas desse modo. O mesmo acontece, por exemplo, na educação infantil, em que o desconhecimento de cursos que habilitam para a área não impõe uma oferta discriminada de vagas para um sistema público.
251
escolas... os ambientes estão mais favoráveis. Os recursos estão mais à vontade. Os recursos hoje precisamos realmente até valorizar, talvez, valorizar esses recursos, e estar sempre utilizando. Mas é preciso investir mais. Educação nunca é... a gente nunca teve tanto recurso.
Obviamente que a gente está... aos poucos, a gente está construindo a escola que a gente tanto sonha. Uma escola onde as pessoas cheguem, se sintam à vontade, aprendam e continuem sua trajetória de vida. (Diretor).
66..22..33 AArrtteess ddee ffaazzeerr nnºº 33:: CCoollééggiioo ZZiillmmaa PPaarreennttee ddee BBaarrrrooss
A passagem por essa escola foi breve, mas bastante relevante. Conhecida de há muito,
pelo fato de seus professores estarem sempre presentes e atuantes em momentos de formação,
considerou-se indispensável visitá-la. A primeira surpresa, para mim, deu-se pelo fato de a
escola ser pequena, acanhada, acuada no terreno imprensado no morro que lhe dá os fundos.
Espaços de circulação estreitos, mas tudo funcionando, sala de diretora, salas de aula,
biblioteca, alunos entrando e saindo, vida, pois.
A presença da diretora em sua pequena sala não era pequena: fazia-se grande pela
energia que emanava, quando narrava as realizações da escola, de seu corpo docente.
Informou que oferecem diversos programas/projetos em três turnos: no ensino fundamental, o
Modular I, em que o aluno estuda por disciplina, e à medida que vai estudando e concluindo
cada disciplina, avança no curso. Ao final, com as disciplinas do ensino fundamental
terminadas, recebe o certificado de conclusão. No Colégio funciona, também, uma Comissão
Permanente de Avaliação - CPA, em nível de 5ª a 8ª séries, para a avaliação de alunos sem
escolaridade comprovada. Os professores que atuam na CPA têm a metade de sua carga
horária como regentes de classe, para que não percam o vínculo, nem se afastem da realidade
dos alunos, de modo a melhor compreenderem as buscas dos candidatos aos exames. Para os
exames na CPA, o aluno estuda sozinho, por conta própria, ou “em algum cursinho que ele
tome aí pra poder adquirir mais conhecimento”. Observe-se que, nesse caso, diversamente do
que se espera de uma CPA, a diretora assume que não há qualquer orientação pedagógica ao
aluno, até mesmo para encaminhá-lo a uma das muitas possibilidades de cursar a EJA que a
própria escola oferece. A diretora continuava: “Ele vem, se submete e faz as provas naquela
escola. Tirando cinco, que é a média, ele também recebe o certificado de conclusão,
concluindo todas as disciplinas. E aí não tem idade fixa. De 15 até 50, 60, independente”.
O Zilma Parente, como é conhecido, ainda oferece o curso de Aceleração III, hoje
EJA III, em nível de ensino médio, além da EJA I e II. A diretora nomeava, indistintamente, o
Programa Aceleração como EJA, e vice-versa, revelando uma não-fixação da mudança,
252
mesmo não sendo tão recente. O Programa Tempo de Aprender II, de nível médio, também
oferecido por disciplina, oferece alternativa semipresencial aos alunos, concorrendo com a
EJA III, presencial, embora com desenho bastante renovado. Destaca que o Programa Tempo
de Aprender II usa a metodologia do Telecurso, metodologia essa que no formato original não
prevê a presença de um professor, substituído por um orientador de aprendizagem. No
Programa Tempo de Aprender, no entanto, é um professor específico da disciplina que atua.
Todos os recursos — televisão, vídeo, livros — são oferecidos aos alunos e o Programa é
complementado com pesquisas, trabalhos individuais, em grupo.
[...] apesar de ser uma escola pública, nós somos bem equipados. Eu digo que nossa escola é uma escola rica. Nós temos tudo. Nós temos laboratório, não é fixo, aquele móvel. Nós temos laboratório móvel pra 2º grau. Nós temos em cada sala televisor de 29’’. Nós temos três aparelhos de som. Nós temos computadores. Nós temos DVD. Nós temos vídeo. Temos muita coisa aqui na escola. Graças a Deus, é uma escola rica. Temos duas máquinas de xerox, temos uma copiadora na CPA. Com a verba que nós recebemos não falta material na escola, graças a Deus. Em média, mais ou menos, entre o 1º e o 2º grau, 1.200, 1.500, não chega a 1.500, não. 1.200, 1300, mais ou menos (referindo-se ao número de alunos). Agora, com a CPA passa de 3.000. Com a matrícula da CPA durante o ano, dá mais de 3.000 alunos. (Diretora).
Sobre o discurso da diretora, cabe-me ressaltar uma questão que, embora não me
surpreenda, colho-a para simbolizar o quanto é tênue a construção democrática na escola
pública, e como o direito, quando se faz, ainda surpreende os próprios gestores. A diretora
mostra-me a ambigüidade de um sistema, em que, por dentro, mesmo os que o fazem,
entusiasticamente, atuando em gestões bem-sucedidas, com relativo sucesso são céticos em
admitir que é possível ser instituição pública e ser bem equipada, ter espaços pedagógicos de
qualidade e oferecer condições dignas ao fazer pedagógico. A descrença nas possibilidades
dos ideais republicanos é severa, até quando se é em grande parte responsável pelo seu êxito.
Um diretor, evidentemente, não pode, sozinho, ser responsabilizado pelas lacunas que deixam
o tecido da escola perfurado e frágil como um filó, qualquer que seja esta escola, mas sem
dúvida carrega a responsabilidade da gestão ou da denúncia pela inadequação de meios aos
fins que deve fazer cumprir. Ter recursos, na rede pública pode ser quase um privilégio, mas
não garante qualquer resultado por si só, porque os recursos podem constituir os meios,
enquanto os fins dependem de pessoas, de formação, de engajamento, de compromisso ético,
técnico e político.
253
A diretora complementou a informação dizendo que os alunos passam, em média, na
escola, dois anos, dois anos e meio, no máximo, e respondendo a pergunta quanto ao número
de professores, informou-me que a escola tem, mais ou menos, uns 30.
A audiência a peças teatrais também foi apontada nessa escola como procedimento
pedagógico, assim como a ida a variados locais, como o Pelourinho, entre outros muitos
passeios que fazem com os alunos. Disse a diretora, buscando entender a minha surpresa com
o tamanho da escola: “Ela não é grande no espaço, mas em trabalho, em diversificação”.
Observo que sim, que a escola busca fazer uma EJA diferente, aproximando-se da concepção
de que a escolarização como direito, para jovens e adultos, não pára nos muros da escola, mas
se faz em múltiplos espaços educativos por toda a vida.
Referindo-se ao perfil dos alunos que freqüentam a escola, respondeu, apontando que
em nada o perfil diferia de muitos outros espaços de EJA:
Tem muita gente desempregada. Tem muita gente carente aqui também. Hoje mesmo chegou aqui uma menina. “Professora, a senhora” – com o olhinho quase fechado assim – “Minha diretora” – ela me chama de minha diretora – “Vim aqui conversar, eu não quero deixar de estudar”. Eu falei assim: “E por que é que você vai deixar de estudar?” Ela disse: “Olha eu não estou enxergando direito”. Eu disse “Por que é que você não foi fazer o seu óculos?” “Eu não tenho dinheiro pra comprar”. Eu disse “Vá, faça o óculos, traga, que nós vamos fazer uma vaquinha e vai comprar seu óculos aqui na escola”. Toda hora chega um pedindo: “Eu não tenho camisa”, pede a menina. “Pega a camisa M”... e lá vai o dinheiro de transporte. É muito carente.
Sobre os professores que trabalham na escola, a diretora diz que muitos ali estão desde
a inauguração, e que agora vários vão se aposentar. Chama a esses de “sócios fundadores do
Zilma”, dizendo que está cimentado entre eles a amizade, consolidada como se fosse uma
família: “[...] nós fazemos festa de aniversário, confraternização na casa de colegas, tem um
café junino aqui. Ano passado nós chamamos... quem foi que veio aqui? Foi... Irandina. Ano
passado ou ano atrasado, que nós chamamos pra ela participar. Festa de Natal...”
Questionada sobre como trabalhava com os professores, disse que com determinado
tipo de recurso que recebem, ofereceram, no ano anterior, curso de capacitação com os
professores da escola mesmo. Apresentou um material referente à Semana Pedagógica,
anunciando a programação e cada atividade a ser desenvolvida. Apresentou, ainda, módulos
que os professores elaboraram na área de matemática, e orgulhosamente contou que há ex-
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aluno da escola fazendo faculdade, aluno aprovado no vestibular de direito, outro que já fez
pedagogia, que cursou especialização na Uneb82 etc.
A falta de espaço cria dificuldades para abrir a escola para a comunidade. As salas são
pequenas, e quando há reunião, uma festa, uma confraternização, a comunidade é convidada,
mas de modo geral o limite da participação é dado pela falta de espaço.
Porque funciona em três turnos, há muitas mães de família, às vezes desempregados,
pessoas que deixaram de estudar há muito tempo e não têm o que fazer, muitas vezes
desocupados. Além desse público, adolescentes — que “ficam, ficam, ficam... 15, 16 anos,
não saem da 5ª série. Aí a mãe vem, bota aqui pra estudar. ‘Oh! vou botar no supletivo!’ Dá
certo. De repente eles se integram aqui na escola e vão embora” (significando que seguem em
frente).
Embora a descrição da escola se encaminhasse para admitir uma outra concepção de
EJA, em respeito ao direito dos alunos à educação, e a fazer uma escola inclusiva, a nomeação
da diretora ainda é de supletivo, o que talvez revele que ela também, não a única, acredita que
outra escola é possível, não importando o nome que lhe seja dado. Sua prática parece estar
mais fortemente demonstrando o quanto essa concepção é viva, quando aposta no
atendimento às necessidades dos alunos, desde o fato de ser uma escola de EJA funcionando
nos três turnos, visivelmente próxima às demandas do público que recebe, como também
disposta a produzir respostas, quer pelos materiais, quer pelas ofertas sociais e culturais
capazes de fazer a diferença no conjunto do sistema.
66..22..44 AArrtteess ddee ffaazzeerr nnºº 44:: oo CCoollééggiioo AAddrrooaallddoo RRiibbeeiirroo CCoossttaa
No Colégio Adroaldo Ribeiro Costa, localizado no Cabula, bairro de Salvador,
chegamos já era noite. Os professores, em maioria feminina, me esperavam há algum tempo,
quando cheguei à escola, acompanhada do pessoal da SEC. Escola grande, bem localizada,
embora, segundo a equipe, distante da rua principal onde passa o ônibus, mas abrigada no
interior de uma espécie de conjunto habitacional, em uma praça iluminada, simpática e
tranqüila. Havia um clima acolhedor no ar e quase todos permaneceram o tempo todo,
interessados e colaborativos, sem qualquer constrangimento quando teciam críticas ao
sistema, pelo fato de haver representantes da SEC. Com 500 alunos em cada turno, oferece
EJA II só à noite, atuando com 19 professores nesse turno. Em grupo focal com 13
82 Universidade do Estado da Bahia.
255
professores da EJA II, incluindo a supervisora e a coordenadora pedagógica, e mais três da
Coordenação de Jovens e Adultos (CJA, equipe central da SEC), pude travar uma expressiva
discussão facilitada pela técnica de grupo focal.
Começaram falando sobre o que significava para eles trabalhar com a EJA:
O prazer é imenso. Porque você saber que está contribuindo pra alguém sair do ostracismo. Não é que a gente vá iluminar ninguém, mas você está contribuindo pra que ele vá adiante. É uma coisa assim impagável. E eu acho que a gente aqui faz o que a gente pode, o máximo que a gente pode. A gente fica criando [...] (Professora).
[...] conseguimos ter um noturno que todo mundo é apaixonado. Eu nunca vi nenhuma escola que todo mundo adora trabalhar no noturno porque fica até briga pra ocupar uma vaga no noturno porque encontra paz aqui, encontra tranqüilidade, a não-violência em todos os sentidos. E eles (os alunos) são muito respeitados aqui. Eles dizem. Eles dão esse depoimento. A gente cobra disciplina deles. Não é uma coisa assim aqui solta, ah! porque é noturno pode fazer o que quer... Os que têm menos de 18 anos a gente ainda chama pai. Qual a escola noturna que se preocupa com isso, o menor? A gente liga, pede pro pai vir, que acompanhe, por que é que não veio, por que é que não compareceu. Entendeu? Os pais gostam, trazem e às vezes vêm se matricular junto com o filho pra poderem acompanhar esses filhos que estão aqui. (Supervisora)
[...] eu gosto de trabalhar com o pessoal do noturno. Eu trabalho no noturno há 18 anos. Desde que eu entrei nessa escola. É uma vida, gente. É a minha vida que está aqui e meu sangue que está aqui. E eu dou meu sangue mesmo, sinceramente. Eu faço de tudo e aqui a gente faz o possível. Porque quando eu penso assim: “eu não vou, e se acontecer alguma coisa, eu não vou de jeito nenhum...” uma coisa que aconteceu comigo, eu estava me sentindo mal. A dor aumentando cada vez mais. Eu tinha marcado com eles pra ver um filme à noite – foi um período até de greve, porque a freqüência, porque estava de greve, eles faziam: “Será que lá tem aula? Porque nos outros colégios...” ficaram naquela dúvida. Então a gente fazia assim: filme, sessões de filmes assim, atividades, sessões de filmes com pipoca, com guaraná e tudo mais pra esses meninos. E nesse dia, eu tinha marcado e essa dor começou a aumentar. Eu estava na rua e começou a aumentar. Eu disse “Não, meu Deus do céu, eu marquei com eles. Se eu não for, eles não vão mais acreditar e não vêm mais!” “Não vou lá, não”. Eu fui no médico, na emergência, me deu injeção, até passar essa dor pra eu ir pra escola, porque eu marquei com eles. Então... porque aquela coisa... se fosse com outros meninos... — não que os outros não merecessem — eu não faria esse sacrifício. Eu ia pra minha casa. Aí a dor passou e eu vim pra cá. (Professora).
Os três depoimentos revelam o engajamento, o compromisso ético desses profissionais
com o fazer cotidiano da escola de jovens e adultos. Evocando Alves (1999), relembro como é
difícil pensar a escola como uma instituição única, homogênea dentro do sistema. Estão ali
fazeres diversos, pessoas comuns, profissionais como eu que, fortalecidos por laços de
256
companheirismo trabalham cumplicemente para que a realidade dês muitos jovens e adultos
apartados do direito à educação possam tomar a oportunidade que lhes passa a ser oferecida,
sem futuros arrependimentos. Como dizer, então, a escola de jovens e adultos, se cada uma é
única, singular, na forma de expressar como se concebe, a serviço das classes populares? Ao
mesmo tempo, no entanto, não há simplificações, indiferença quando os alunos não fazem o
que lhes cabe: a disciplina traz até o pai dos jovens que, à custa da idade, tentam ser
inconseqüentes, expressando suas táticas de driblar os controles escolares, aprendidos nas
escolas regulares por onde já, seguramente, passaram. Não há autocomiserações, mas
consciência de que há acordos firmados, há pactos instituídos que não podem mais ser
rompidos, para que seja possível, de novo, a esperança, para acreditar que cada um que lá
está, importa, e que não pode desistir. Não há arrogância de saberes, mas há a certeza de que é
possível ir além, juntos, aprendendo, uns com os outros, e por isso, o prazer coletivizado.
[...] ela chega assim de mansinho como quem tem medo “Eu quero que a senhora tenha paciência comigo porque eu passei 20 anos fora da escola”. Então, isso aí quando você... você toma até um susto. Aí você diz assim: “O que é que eu posso fazer por essa criatura?” Você pega o textinho que ela construiu. Sente que ela está ali com um esforço danado e você se sente na obrigação de fazer o máximo que puder por aquela criatura. Então você vê a satisfação, a satisfação é grande nesse aspecto de você saber que está encaminhando alguém pra frente, não é? (Professora).
Falaram do perfil de seus alunos, novamente apontando a presença de jovens, que não
concluindo a escola regular, são “empurrados” para o noturno, pelas armadilhas sutis que o
poder sabe bem dispor, convivendo, por essas passagens prévias, com outros que estão há
muitos anos distantes dos bancos escolares.
Tem um público jovem e tem o que esteve afastado da escola por mais de cinco anos. Um exemplo assim recente é a turma da 1ª série desse ano, que tem dois alunos que estudaram no passado, abandonaram a escola e estão retornando e os demais estão afastados da escola por uns 10 anos. E o interessante é que são jovens de 18, 19, 25 anos, nessa faixa etária. (Professora).
Porque nós temos alunos até dentro do próprio colégio que já têm... que vêm do diurno e repetiram. Mesmo aqueles que repetiram, eles já têm uma bagagem maior. E aí nós encontramos também pessoas que passaram anos sem freqüentar uma escola. (Professora).
Mas falaram também da evasão, que não conseguem impedir, eles mesmos
reconhecendo a multiplicidade de causas/razões envolvidas nessa decisão que contraria as
apostas iniciais:
[...] a gente consegue alguns resultados, não mais, porque a gente tem uma evasão muito grande. O que dói, deixa a gente mais triste, é quando chega
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julho, agosto e a sala se esvaziando por conta de uma série de problemas que você não sabe. Se você pergunta assim quais são as razões desses alunos abandonarem? Uma razão só. Vêm duas, vêm três, são várias. (Professora).
Digamos a doméstica está trabalhando até de manhã... no Resgate. Então ela vem pra aula enquanto ela estiver trabalhando no Resgate. Aí, ela saiu, apareceu uma oportunidade pra Camaçari, foi pra outro lugar. E, muitas vezes, a gente não sabe se ela continuou, se levou a transferência dela pra lá. Ela saiu daqui, a gente sabe que saiu, mas não sabemos se ela está continuando [...] “Essa novela está muito boa, não vou voltar pra escola”. Então qualquer motivo é motivo pro aluno não voltar pra sala de aula. (Professora).
Mas apesar da evasão de muitos, localizada pelos professores com a compreensão
anteriormente explicitada, muitos são os alunos que ficam na escola, realizando o sonho de
estudar e aprender, pactuado com esses professores, cuja cumplicidade até mesmo impede a
continuidade, quando têm de ir embora, pela afinidade com a escola, não mais encontrada em
outros projetos pedagógicos, que ponham os sujeitos no centro do processo, como pessoas
com quem se compartilha mais que saberes, mais que conhecimentos:
Se afeiçoam, gostam da escola, são bem recebidos, a gente trata tão bem que eles continuam, ficam até o final. E tem também aqueles que querem de qualquer jeito conseguir um lugar pra continuar aqui. E muitos, que também deixam de estudar porque lá fora não encontram escola com o mesmo carinho que tem por eles (Professora).
O cuidado com os alunos. Eu acho que a gente consegue, de uma forma ou de outra, cuidar desses alunos porque a gente procura desenvolver várias habilidades neles, não só cognitivas, mas as atividades artísticas. Eles estão se desenvolvendo. O falar, o se mostrar, o trazer as emoções pra sala de aula. Porque eles não têm essa oportunidade realmente. Eles se sentem... eles procuram se sentir mais à vontade aqui. Pelo menos é o que a gente percebe, com a maioria. Dificuldades a gente tem muitas. A evasão é nosso pior inimigo. A gente não consegue manter mesmo os alunos. No final do ano a gente tem uma queda grande de alunos bons que poderiam ter conseguido, ter conquistado esse sucesso e a gente perde esses meninos pro desemprego. (Supervisora pedagógica).
Uma forte razão emergia nas falas dos professores: a disputa da escola com a
necessidade de trabalho, em que o último leva sempre a melhor. Discutir, pois, na educação
de jovens e adultos a proposição de políticas setoriais, que ultrapassam a área da educação,
para pensar como se constroem possibilidades capazes de reverter a profecia autocumprida do
fracasso, parece ser inadiável:
[...] existem os empregos temporários. E, quer queira, quer não, puxa uma grande maioria deles... e às vezes a pessoa está desempregada e aí encontra uma oportunidade pra trabalhar dois meses, três meses. Infelizmente, ele tem que pegar, eles têm que pegar essa questão desse emprego e que também tira eles daqui. Infelizmente, a gente corre atrás dessa... (Professor).
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Mas, ao mesmo tempo em que era denunciado que o trabalho muitas vezes afastava o
aluno da escola, emergia o orgulho da equipe docente, por saber que um aluno, formado
segundo o projeto dessa escola, demonstrou esse diferencial determinante em um processo de
seleção profissional:
[...] nós tivemos um depoimento lindo de um aluno nosso que foi aprovado em 1º lugar na seleção de uma empresa. Ele entrou numa sala com 40 pessoas pra fazer essa seleção. [...] Achei a coisa mais linda e arrepia. E ele fez a seleção, tinha 40 pessoas e a pessoa que fez a seleção lançou pergunta assim, foi lançando pergunta sobre os temas da atualidade: meio ambiente, a questão de ética, cidadania, pluralidade cultural, respeito às diferenças. E todo o nosso conteúdo é trabalhado em cima disso. Então, todas as vezes, ele levantou a mão, se posicionou. E quando ela, ela precisava... acho que eram oito pessoas... não, inicialmente ia selecionar oito e dessas oito ficariam cinco, e ele foi selecionado. Inicialmente, em função de todas as vezes que ele se levantou e se posicionou. E ela perguntou: “Você veio de onde?” E ele disse: “Eu fui aluno do Colégio Adroaldo Ribeiro Costa”. (Supervisora pedagógica).
Os professores apresentavam saídas para reverter a perspectiva do direito que não se
faz, porque as condições de vida — e as circunstâncias — conspiram contra os sujeitos da
EJA. A legislação, no tocante ao trabalho e ao direito do trabalhador ao estudo, ainda não
definiu a responsabilidade das empresas/instituições quanto a horários facilitados, preservação
de núcleos/períodos para que os sujeitos tenham estímulo à continuidade de estudos. Se por
um lado o trabalho é a segurança para o trabalhador poder continuar estudando, por outro cria
muitos óbices que acabam afastando o trabalhador da escola:
[...] divulgação em massa, pra que o nosso aluno realmente ele tenha oportunidade, pra que seja respeitado o direito dele de estar na escola naquele horário, mesmo com todas as dificuldades que nós já sabemos, que já foram listadas, mas nós tínhamos que incentivar o nosso aluno a vir pra escola pra participar [...]. Então, se você divulga isso com maior intensidade nos meios de comunicação, com certeza nós vamos avançar mais em relação à dificuldade que o nosso aluno enfrenta no dia-a-dia. (Professora).
As histórias dos sujeitos, trajetórias vividas, narradas, partilhadas, emocionam e
trazem ao momento as presenças-ausentes, mas vívidas em cada um ali. As formas e sentidos
pelos quais a opressão revela-se na vida dos alunos se estampa em cada fala, em cada
rememoração:
[...] empregadas domésticas que a gente coloca na sala de vídeo — e depois ela vai fazer outro serviço — e que, no meio do filme, a gente está vendo assim as lágrimas descendo. Por que? “É a primeira vez na vida que eu consigo assistir um filme”. Porque não tem oportunidade. Porque senta com o patrão: “Me dê um copo d’água”. Nunca vai conseguir assistir um filme do
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início ao fim. Aí elas se emocionam, choram e dão depoimentos assim lindíssimos.
Freire (2003, p. 53) relembra-nos ao defender a educação como prática da liberdade,
que:
[...] o que se sente, dia a dia, com mais força aqui, menos ali, em qualquer dos mundos em que o mundo se divide, é o homem simples esmagado, diminuído e acomodado, convertido em espectador, dirigido pelo poder dos mitos que forças sociais poderosas criam para ele. [...] É o homem tragicamente assustado, temendo a convivência autêntica e até duvidando de sua possibilidade.
Não estariam diante de nós, professores, esses homens e mulheres esmagados,
diminuídos pelos mitos que a sociedade de classes criou, tanto pela força da cultura do escrito,
que impede a “convivência autêntica”, como alerta Freire, quanto pelo ceticismo que os faz
julgarem-se incapazes?
As descobertas de quem são, em realidade, os sujeitos alunos, submetem todo o grupo
a práticas pedagógicas variadas, de entrevistas, por exemplo, em que os próprios alunos
atuam, e por meio dessas técnicas as biografias são escritas e possibilitam uma melhor
apreensão desses sujeitos, pelos professores, quando se reúnem nos Conselhos de Classe.
Esse ano mesmo a gente está fazendo uma sondagem. “O que é que te trouxe de volta à escola?” A gente aplica um questionário pra caracterizar isso assim da forma mais objetiva, produzir o histórico desses alunos. Quem são, onde moram, qual a idade que eles têm. A gente está fazendo isso, esse trabalho, essa semana, e eles estão trabalhando como uma entrevista. Ao mesmo tempo, eles vão estar trazendo as informações pra que a gente também utilize elas em Conselho de Classe, também olhar o aluno por essa ótica social. A gente já faz isso, mas agora, assim, instrumentaliza mais essa prática pedagógica que já existe aqui na escola e vê esse aluno também como sujeito (Professora).
Mas o Colégio Adroaldo Ribeiro Costa não desistia facilmente da captura, dessa
espécie de perseguição à prática da liberdade pela educação:
[...] na primeira semana de aula fazer atividades assim muito atraentes pra eles pra que eles comecem a gostar da escola, estabeleçam uma relação boa com o professor. É a coisa do cativar mesmo de todas as formas. E eles ficam fascinados com a forma como são tratados, o respeito com que são recebidos, o carinho com que são tratados. Isso eu acho que é fundamental. E cada um deles aqui contribui muito com isso. (Supervisora pedagógica).
Uma atitude bastante curiosa foi revelada pelos professores como forma de não afastar
os alunos, em qualquer hipótese, nem fazê-los perder a esperança duramente conquistada,
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ainda que, talvez, essa atitude pudesse ser mal compreendida pelos companheiros de outras
escolas e, certamente, pelo sindicato de classe:
A gente chega ao ponto de não fazer greve pra gente segurar esses meninos. É como se nós fôssemos assim os traidores [...] Nós não fazemos greve. Nós fazemos um acordo, não fazemos greve justamente para segurar. Há dois ou três anos que a gente faz isso. Segurar. Pra tentar segurar ao máximo que a gente puder. Que um dos grandes problemas nossos é segurar menino e tentar tornar esse encontro deles aqui conosco o mais agradável possível. (Professora).
Outras estratégias foram sendo relatadas, com a mesma preocupação: não deixar os
alunos se perderem pelo caminho, sem dizer a eles o quanto fazem falta, o quanto são
importantes, e questioná-los se desistiram do sonho.
Essa proximidade é muito forte. E esse vínculo mantém esses alunos que vencem essas ameaças, que foram ditas, como Júlio até reforçou, fazem com que eles permaneçam na escola até o final do ano. Alguns a gente consegue, a gente faz todo o contato de estar ligando pra eles, perguntando. Alguns voltam: “Ah, considerando que a senhora ligou, eu estou voltando” [...] (Coordenadora).
[...] se você tiver qualquer problema, não vai embora da escola antes de conversar com a gente sobre o que é que está acontecendo, pra saber o que é que a gente pode estar fazendo por esses alunos. E já tivemos aqui casos em que adotamos mesmo, assim, alguns... [...] ela não conseguia vir à escola, era uma aluna excelente. E aí nós adotamos, nos cotizamos aqui. Cada semana um professor dava o dinheiro do transporte pra ela ir e voltar porque ela já não conseguia mais andar aquela distância. E ela conseguiu concluir o curso. (Falando de uma aluna portadora de necessidade especial) (Professora).
Foram sendo reveladas, também, estratégias curriculares, todas com a intenção clara
de manter os alunos no processo — possibilidade de fazer com que se dêem tempo para os
aprendizados que desejam, o que deve contribuir para garantir a permanência, fazer chegar o
sucesso, experimentar o gosto doce da vitória.
Fazer coisas diferentes. Esses projetos, as culminâncias, as festas, tipo as festas que a gente faz pra ver se torna mais agradável. É muito assim, é difícil, viu. É difícil. Agora, quando chega assim no final do ano e você vê o progresso daquela que chegou pra você e disse assim “Tenha paciência comigo porque eu tenho 20 anos sem estudar” e você viu que ela progrediu, mesmo que ela não tenha condições de avançar muito, você sente que ela tem que ficar mais um pouco, é muito gratificante. E já tivemos casos assim de alunos que passaram digamos de 15 a 20 anos que... “Não vou conseguir, matemática não entra na minha cabeça” e eles são dos melhores alunos da sala. Isso é bom demais. Isso é muito bom.
A pedagogia de projetos, como integrante da concepção curricular, foi explicitada:
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O projeto aqui a gente constrói. Agora mesmo nós estamos na parte de rever, porque nós trabalhamos com pedagogia de projetos mesmo na educação de adultos, e agora mesmo eles estão assim, cada grupinho trabalhando a sua área: revendo o projeto que foi feito ano passado, o que é que a gente vai conservar, o que é que vai estar modificando. Alguns filmes – porque a gente usa toda a mídia, todo tipo de mídia, cinema, televisão, música, revista, tudo, todos os recursos – e aí eles ficam... “o que é que a gente pode mudar esse ano letivo?”, “o que esse ano vamos usar?” (Supervisora pedagógica).
Mas outras formas de trabalho também emergiram, ligadas à realidade cotidiana dos
alunos, de onde se parte, mas na qual não se fica, ampliando o conhecimento que têm dela:
Pegamos uma idéia central de fazer um estudo, no caso bem participativo dos alunos, no que diz respeito às coisas do dia-a-dia que eles trabalham. A partir de INSS, de 13º, de imposto de renda – uma vez que eles podem até não declarar imposto de renda, mas pelo menos a gente sai da ignorância, tem uma noção.
[...] tudo sobre a vida dele – porque a questão da cidadania a gente não faz por... ele é um cidadão agora – e a gente tem que esclarecer esses direitos. Então, nós trabalhamos aqui texto “Reforma da CLT: as dez grandes dúvidas” e aí trazemos esse tema com eles. Trazemos pessoas de fora, de empresa, quem trabalha com segurança? Segurança no trabalho, coisas bem dentro da realidade. Ano passado nós conseguimos trazer a presidente do Sindicato das Empregadas Domésticas. Foi um sucesso. Eles amaram essa palestra dela. [...] trouxemos uma advogada que falou sobre os diretos trabalhistas. [...] todos os trabalhos foram feitos em cima desse cidadão que existe e que está aí. Já trabalha, já precisa conhecer os direitos dele. E também uma grande preocupação nossa é sempre dar voz e vez a esse cidadão. Então, eles sempre têm um momento de culminância que usam o microfone, que cantam, dançam, fazem jogral, apresentam peças de teatro. (Supervisora pedagógica).
Cabe um destaque, nesse ponto. Ao tentar compreender como as práticas curriculares
criam/concebem a educação de jovens e adultos e não o contrário, ou seja, não é a educação
de jovens e adultos, sempre, quem concebe as práticas, porque estas, em muitos casos, falam
mais das concepções dessa modalidade do que qualquer enunciação que ela faça de si própria,
pode-se perceber um movimento de emancipação frente à força reguladora das normas que
constituem o espaço escolar. Há, portanto, um jogo permanente de manter/conservar e
mudar/transformar que não se dicotomiza, mas dialoga em tensão, importando aqui capturar a
complexidade dessa relação, e verificar se esse jogo é perceptível aos docentes que
contracenam na cotidianidade da escola.
Oliveira (2003, p. 81-82) chama de “caráter multicor” ao modo como as práticas
curriculares reais, complexas e relacionadas a saberes e fazeres, que nem sempre constituem
um todo coerente se revelam nas escolas, assumindo formas mais ou menos regulatórias, ou
emancipatórias, em suas diferentes expressões.
262
É nesse sentido que entendemos as práticas curriculares cotidianas como “multicoloridas”, pois suas tonalidades vão depender sempre das possibilidades daqueles que as realizam e das circunstâncias nas quais estão envolvidos.
Os professores da Adroaldo Ribeiro foram seguindo esse curso durante o grupo focal:
[...] a partir do momento em que você coloca pro aluno que cada disciplina tem um valor, tem uma contextualização que ele pode utilizar na... no dia-a-dia, ele começa a tirar, desmistificar essa coisa de que a matemática é isso, que é aquilo outro (Professor).
[...] eu, jamais eu posso pedir, principalmente numa sala heterogênea como a gente tem – heterogênea de idade, heterogênea de questão de conhecimentos, de anos de estudo – eu não posso cobrar como eu cobro do 3º ano. A realidade é totalmente diferente. Eu estou dando uma matemática lá com trigonometria, com tudo isso e o que que aqui a gente procura fazer? Utilizar a maior contextualização porque a gente sabe das dificuldades que eles têm. As dificuldades são grandes. Então, a gente procura, dentro do programa que a gente tem, pegar assim bastante a contextualização pra que os assuntos sejam fechados e ele sinta vontade e não evada, ele não saia da escola. (Professor).
Muitas práticas curriculares se fazem presentes no cotidiano, e os professores,
mobilizados pelas necessidades dos alunos, encontravam saídas para ultrapassar as
dificuldades que as escolas enfrentam:
Então quando a gente tem condições e consegue professor voluntariado, porque o Estado não paga a aula de informática, como nós temos o laboratório, quando a gente consegue professor voluntário, eles vão pro laboratório e tem aula também. (Professora).
[...] leva muito os alunos pra biblioteca e faz um trabalho lá com eles. [...] nós temos todos os dias, três dias na semana (2ª, 4ª e 6ª) a biblioteca fica funcionando para o aluno e o professor que queira fazer um trabalho. [...] Eles pegam muito livro. Pegam muito livro na biblioteca, fazem muita pesquisa, até porque eles não têm livro. O aluno do EJA não tem livro. Eles levam pra casa deles. Isso é uma das coisas que eu acho assim terrível. Eu sinto muita falta desse livro (Coordenadora).
Reciclando o texto. Ele leva... nós utilizamos o texto. Eu utilizo uma semana, ela utiliza o mesmo texto, aí vai e a gente leva dessa forma. Até... eles têm vantagem em levar o texto pra casa. Aí quando eu recolho é uma briga (risos), recolho porque se faltar um... isso aqui é texto reciclado. (Professora).
Livros são objetos ainda disputados nas escolas, e mesmo a existência de bibliotecas
não garante a qualidade, porque freqüentemente os materiais em acervo são antigos, não se
renovam na medida da necessidade, haja vista a velocidade de produção de conhecimento e de
obsolescência de muitas verdades, dadas como ciência, em outras épocas. A escola traça
263
objetivos segundo os desejos de continuidade de seus alunos, e usa estratégias para que o
percurso não se interrompa, já que o objetivo primeiro está mais adiante:
[...] o nosso objetivo é preparar pra escola técnica e eles têm conseguido. Porque essa escola técnica... CEFET, ano passado nós colocamos um em 2º lugar, um em 7º, esse ano nós já colocamos esse objetivo de grande parte de ir pro CEFET, porque eles consideram a grande oportunidade de ir pro vestibular sem dificuldade, devido a que eles são estimulados a isso o tempo todo. [...] estudarem com esse objetivo, já que não podem pagar uma escola boa, procurar a melhor escola e a gente direciona o tempo todo pro melhor. (Coordenadora).
A perspectiva da escola não se encerra nela mesma, mas com os projetos de futuro,
com o aprender por toda a vida de seus alunos:
Ainda falta muita coisa pra gente atingir aquilo que a gente gostaria de ser, mas a gente vai tentando cada dia se aperfeiçoar mais nos poucos recursos que a gente tem.
[...] pelo menos eu faço um trabalho de conscientização, acredito que todo mundo deva fazer também, pra que ele continue estudando na saída daqui, não é? Porque aqui tudo é um caminho e eu falo sempre a questão de associar o ser humano a um motor. Se um motor não trabalha, ele enferruja. [...] “Ó, professor, estou continuando, não parei de estudar, não”. E sempre a gente está dando a injeção de ânimo e dizendo que nunca aquilo ali está bom. Sempre aquilo está aquém da capacidade que ele pode atingir. (Professor).
66..33 EEMMEERRGGÊÊNNCCIIAASS DDOO MMEERRGGUULLHHAADDOORR:: CCOOMMPPRREEEENNSSÕÕEESS VVÊÊMM ÀÀ TTOONNAA
No mergulho realizado em busca de conhecer novos oceanos na educação de jovens e
adultos na Bahia, pode-se pensar que as águas verde-azuis de Abrolhos afloraram nas praias
da Baía de Todos os Santos. Com elas, cristalinas, trouxeram e se deram a conhecer algumas
concepções preciosas para o propósito dessa pesquisa.
Uma questão a destacar, certamente porque deve ter causado surpresa aos leitores, é o
fato de que, sendo a opção política do estado83 tão duramente criticada, pela herança histórica
que traz, e pelas práticas sob as quais a população vem sendo mantida submissa, se possam
observar comprometimentos e alternativas viáveis, além de metodologias participativas e
coletivizadas de trabalho e de produção de políticas públicas na EJA. A justificativa parece se
83 O estado da Bahia, de longos anos atrelado às “políticas carlistas” (do atual Senador Antônio Carlos Magalhães, muitas vezes governador e representante político do estado, com forte influência em todo o território e na política praticada pelo PFL, partido que acolhe sua ingerência e suas práticas clientelistas e de opressão política), parece surpreender ao favorecer a construção de processos e propostas com caráter próprio das organizações democráticas, em que a participação não se restringe ao poder representativo, mas à garantia de expressão de dizeres e fazeres diretos, resultantes de reflexões e críticas coletivas.
264
construir pelo fato de a área se manter de certa forma invisibilizada para as autoridades
políticas, que do mesmo modo que não dispensam a ela importância nos planos e nos
orçamentos, não dispensam também atenção, ignorando as práticas, os efeitos, as
conseqüências. Visto de outro ângulo, pode-se destacar que políticas não acontecem
independente de pessoas, e que estas, em verdade, são as que fazem as opções políticas. E as
fazem no cotidiano de suas vidas, onde tecem e retecem saberes, onde inventam novas formas
de fazer política, em diálogo com a esfera mais ampla, e influenciada por ela, mas jamais
imobilizados, despossuídos de desejo e fé no poder da mudança, no poder de homens e
mulheres, protagonizando histórias locais, como possibilidade, porque transformam a si, suas
relações, as determinações, muitas vezes.
Afinal, a liberdade é o outro lado da imprevisibilidade, da indeterminação e, portanto, da incerteza. Por isso, nas coisas humanas, onde está presente a liberdade, a ação, a criatividade, não há certeza. Mudanças sempre são possíveis. [...] Mas todas as tradições que valorizam o livre-arbítrio reconhecem o papel da incerteza, na história, e sua contrapartida: o potencial da mudança. (SOARES, 2005, p. 116).
Neste sentido, cabe atestar que a atual superintendente da Secretaria de Educação,
conhecedora com bastante propriedade de estudos e fundamentos da EJA, inicia sua trajetória
nessa área, tendo exercido sua coordenação por largo tempo, e voltando para ela quando a
mudança política assim exigiu. Mas, mesmo mudando sua vinculação no organograma da
SEE, estabeleceu sempre laços fortes com a área, fortalecendo as coordenações e mantendo a
EJA em lugar de igualdade com os demais níveis e segmentos de ensino. E isso não é pouca
coisa, face à história próxima e recente da EJA, que jamais admite igualdade de tratamento da
área no sistema, porque, no mais das vezes, exclui, como política, o direito para esses tantos
jovens e adultos.
Paradoxalmente, a primeira tentativa de explicação parece eliminar qualquer chance de
a segunda ocorrer, mas até onde me tem sido possível conhecer as relações políticas e técnicas
na área de EJA, não consigo atribuir outros sentidos que não esses.
O saber da prática, valorizado, teceu redes de conhecimentos que ampliaram e
nortearam as práticas cotidianas, superando não só o paradigma da árvore do conhecimento,
como também a própria forma como são entendidos os processos individuais e coletivos de
aprendizagem — cumulativos e adquiridos — segundo o paradigma dominante. A tessitura de
conhecimentos trançou redes, com as informações às quais são submetidos os sujeitos sociais,
constituindo-as nos momentos em que se enredaram a outros “fios” já presentes, ganhando
265
sentidos próprios. Desta forma, a troca de informações/experiências/saberes produziu
aprendizagens, sempre que se articulou com os interesses, crenças, valores e saberes dos
sujeitos envolvidos pelas situações de conhecimento propostas.
Pela metodologia de pesquisa-ação, como processo de formação de professores, foi
possível verificar a relevância de como as redes, constituídas por esses professores,
atravessam as fronteiras dos níveis de formação/titularidades; os tempos de magistério; a
experiência anterior com a EJA; as práticas pedagógicas, para se fazerem novas e complexas
formas de compreender e apreender da realidade da educação de jovens e adultos, em
trançados desiguais, diferenciados, heterogêneos, mas ricos da diversidade dos saberes,
produzindo mosaicos que se conectam, unem-se, dão-se nós, transpõem fios e se enredam em
uma trama sempre renovável. Pela formação de professores, como quer que ela se expresse,
os projetos de EJA têm chance de revirar/pesquisar/esgarçar as práticas desenvolvidas;
escavar em torno de conceitos estabelecidos, revolvendo os solos em que se esparramam os
trançados rizomáticos dos saberes. Professores baianos, em redes, nesse processos de
formação, saindo do litoral, passando pelo Recôncavo; pela Chapada; ao norte, por Paulo
Afonso; por Bom Jesus da Lapa e por tantos outros lugares de um estado tão grande,
esparramaram-se, lançaram raízes e fecundaram o solo da educação de jovens e adultos com
seus saberes, suas práticas, suas (re)descobertas.
Por último, uma preocupação da equipe da Secretaria de Educação, mas já com a
indicação da medida política adequada, põe-me a refletir sobre os percursos que mobilizam a
EJA, nesse estado, e que, por eles, sinalizam concepções mais próximas das enunciadas nos
acordos internacionais e tomadas como bandeiras de luta de educadores militantes. Trata-se
da forma como a ação pedagógica deve-se fazer no interior da sociedade política, do mesmo
modo que circula e percorre a sociedade civil. A responsabilidade que a equipe revela com a
formação dos quadros das prefeituras, não apenas no nível técnico, mas com os gestores,
implicados diretamente com as possíveis mudanças de rumos na perspectiva de constituição
do direito à educação, para tantos cidadãos e cidadãs. A desmotivação desses gestores — os
prefeitos — remete a práticas interessadas em auferir recursos apenas, em total desvínculo
com as idéias republicanas que deveriam estar sendo preservadas e cada vez mais
disseminadas no fazer público: “Eu não vou implantar EJA porque ela não entra, a gente não
vai receber por isso”, simboliza um modo de pensar o cargo público de viés personalista,
desarraigado por completo de programas partidários, de projetos coletivos.
266
Vencendo essa tendência, a equipe me informa, em março, a disposição, a existência
de um planejamento com vista à realização próxima de um encontro, atuando pedagógica e
educativamente junto aos gestores, em benefício da educação de jovens e adultos:
[...] nós estamos promovendo um Encontro, não sei se vai ser através de videoconferência ou presencial, não sabemos se é agora em abril ou maio com os prefeitos que estão em parceria com o Brasil Alfabetizado, que estará exatamente discutindo a continuidade dos estudos, a posteridade, a possibilidade de estar estudando, a implantação desta EJA, como buscar o financiamento porque eu acho que esse que é o nosso papel... Eu acho que o Estado não tem que olhar pro aluno da rede pública estadual, ele tem que olhar pro cidadão. Então, é esse o nosso papel. (Gestora 2).
A dificuldade dos municípios é de como implantar legalmente a EJA e de como buscar
financiamento, deixando escapar um aspecto mais complexo que exige assumir o lugar de
coordenador e articulador da política local, com todos os atores da região que desenvolvem a
EJA:
Essa orientação que ano passado nós passamos, nós fizemos um trabalho compartilhando com a Alfabetização Solidária, e já pelo segundo ano estamos tendo a colaboração, porque há prefeitos novos. Porque a grande dificuldade que a gente percebe nessa continuidade é exatamente isso: como está sendo moldada a EJA no município. Não é nem o problema da rede física, é o aspecto legal. (Técnica SEC/BA).
Entender o papel educador, politicamente, em todos os espaços da EJA em que
atuamos, exige ir além do local, do micro, ultrapassando as fronteiras das instituições e suas
esferas — municipal, estadual, federal –, para assumi-lo globalmente, mas referenciado nos
sujeitos da educação, para o que, quem sabe, não devêssemos nós, como Thiago de Mello
(1965) na Canção para os fonemas da alegria, exercê-lo como aqueles que acompanham
enternecidos o homem, a mulher, o jovem, a jovem que
[...] atravessa os campos espalhando a boa-nova, e chama os companheiros a pelejar no limpo, fronte a fronte,
contra o bicho de quatrocentos anos, mas cujo fel espesso não resiste a quarenta horas de total ternura.
Peço licença para terminar soletrando a canção de rebeldia que existe nos fonemas da alegria:
canção de amor geral que eu vi crescer nos olhos do homem que aprendeu a ler.
267
77.. PPRROOGGRRAAMMAA DDEE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE JJOOVVEENNSS EE AADDUULLTTOOSS –– PPEEJJAA:: EEMM CCEENNAA,, OO
PPÚÚBBLLIICCOO JJOOVVEEMM
A aranha realiza operações que lembram o tecelão, e as caixas suspensas que as abelhas constroem envergonham o trabalho de muitos arquitetos. Mas até mesmo o pior dos arquitetos difere, de início, da mais hábil das abelhas, pelo fato de que, antes de fazer uma caixa de madeira, ele já a construiu mentalmente. No final do processo do trabalho, ele obtém um resultado que já existia em sua mente antes de ele começar a construção. O arquiteto não só modifica a forma que lhe foi dada pela natureza, dentro das restrições impostas pela natureza, como também realiza um plano que lhe é próprio, definindo os meios e o caráter da atividade aos quais ele deve subordinar sua vontade. (MARX, O Capital).
O atual Programa de Educação de Jovens e Adultos (PEJA)84, da Secretaria Municipal
de Educação da cidade do Rio de Janeiro, com 20 anos de atuação, de acordo com as
estatísticas oficiais de março de 200585, apresenta os seguintes dados: estruturado em 10
Coordenadorias Regionais de Educação (CRE), 117 unidades escolares (PEJA I e PEJA II,
este desde 1998), todas funcionando no período noturno e dez delas também com classes no
diurno; um Centro de Referência da Educação de Jovens e Adultos (CREJA) funcionando em
tempo integral de 7h às 22h. Nessas escolas trabalham cerca de 1.200 professores, em 1.051
turmas atendendo a 32.482 alunos.
Observa-se a predominância de alunos maiores de 18 anos, principalmente nos dois
blocos do PEJA II, correspondente ao segundo segmento do ensino fundamental. Isto
significa que esse alunado abandonou ou foi expulso da escola nos primeiros anos do ensino,
voltando mais tarde para retomar os estudos. Quanto ao gênero, a maioria dos matriculados é
do sexo feminino: estão matriculados no PEJA I e no PEJA II 14.603 alunos e 17.879 alunas.
Além das turmas das unidades escolares, mantém duas classes anexas para
atendimento a servidores municipais não-escolarizados nas instalações da própria Prefeitura
Municipal e articula-se com outras 156, instaladas pelo Programa de Aceleração da
Aprendizagem (PAE), que oferece cursos de complementação da escolaridade no ensino
fundamental à população beneficiada pelo Programa de Urbanização de Assentamentos
84 O Parecer nº. 06/2005 aprova alterações no funcionamento do PEJ e dá outras providências: “Como solicitação inicial encontra-se a mudança de denominação. Criado para atender a jovens entre 14 e 25 anos, como descrito no Parecer CME 03/99, o PEJ tem sido procurado por adultos de todas as idades que desejam estudar e concluir o Ensino Fundamental. Tendo em vista a consolidação do trabalho e, em concordância com a nova demanda, com as leis em vigor e com as justificativas apresentadas no p.p somos de parecer que o nome PROGRAMA de EDUCAÇÃO DE JOVENS e ADULTOS (PEJA), deva substituir a designação usada até então”. 85 Fonte: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Secretaria de Educação. Assessoria Técnica de Planejamento. Informações Gerenciais. Matrículas do PEJA - março 2005. Essa fonte individualiza as matrículas dos 14 aos 18 anos e em mais de 18 anos.
268
Populares do Rio de Janeiro (PROAP II). O PAE conta com financiamento do Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID) e sua execução está a cargo da Secretaria
Municipal de Assistência Social, em parceria com a Secretaria Municipal de Educação
(através do PEJA), de organizações da sociedade civil (especialmente o Viva Rio) e do Centro
de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC). O CREJA tem
se preocupado com o atendimento a pessoas com necessidades especiais, em articulação com
o Centro Integrado de Atendimento ao Deficiente e assessoria da Fundação Helena Antipoff,
que colocam à disposição do PEJ professores itinerantes. Esse público tem crescido nos
últimos anos, pelo aumento da consciência do direito à educação.
Nem sempre o PEJA foi assim nomeado. Antes, Programa de Educação Juvenil –
PEJ, um dos primeiros programas oficiais de ensino, após o fim do regime militar. Começou a
funcionar, a partir de 1985, nos 23 primeiros Centros Integrados de Educação Pública –
CIEPs, inaugurados pela SME entre os anos de 1985 e 1986, com objetivos outros bem
definidos, currículo e métodos de ensino adequados ao público jovem e mesmo adulto, apesar
do indicativo inicial de atender somente jovens da faixa etária de 14 a 20 anos para esse
público específico. Não se está diante, portanto, de uma mudança de nome, mas, em verdade,
da mudança de uma determinada concepção. Ao longo dos anos o projeto sofre mudanças,
incorporações e ressignificações, permanecendo, ainda, como resposta do poder público
municipal carioca às demandas dessa área. Para chegar a compreender esse movimento, que
expressa, com consistência, as apropriações que vão sendo feitas, com base nos diversos
enfrentamentos do Programa com seus dirigentes e destes com forças sociais, iniciarei
resgatando o contexto de época e os determinantes que levam à concepção original, por meio
de um breve histórico sobre o nascedouro que fecunda esse Programa, com base nos
diferentes materiais coletados.
Os materiais são fruto da pesquisa Juventude, escolarização e poder local: novos
desenhos da educação de jovens e adultos na esfera local, projeto financiado pela Fundação
de Amparo à Pesquisa no Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), integrado a uma rede de
pesquisadores de nove estados, com a finalidade de investigar políticas públicas ligadas à
educação de jovens e adultos e à juventude em municípios da região metropolitana das
capitais desses estados. No estado do Rio de Janeiro, a primeira etapa de levantamento de
dados sobre as políticas de EJA e juventude na região trouxe um conjunto de informações que
levaram à escolha, para a segunda etapa, de um programa/projeto para estudo de caso, o atual
PEJA.
269
Integrada ao grupo da pesquisa86, pude incorporar ao meu próprio trabalho entrevistas
realizadas com professores que estiveram na fundação do projeto; grupos focais feitos com
professores e alunos em escolas; entrevista com dirigentes; documentos. Em seguida, passo a
considerar as concepções subjacentes, de posse de alguns instrumentos conceituais que venho
utilizando nos demais projetos, produzindo um movimento de captura e percepção dos
sentidos de educação de jovens e adultos que encerra.
O atual Programa de Educação de Jovens e Adultos está organizado como ensino não-
seriado, acelerativo e progressivo estruturando-se como PEJA I (atendendo ao 1º segmento do
Ensino Fundamental – 1ª a 4ª séries) e PEJA II (atendendo ao 2º segmento do Ensino
Fundamental – 5ª a 8ª séries), compostos por blocos de aprendizagem e unidades de
progressão (estas presentes apenas no PEJA II). O PEJA I divide-se em dois blocos, cada um
com duração de um ano. O PEJA II, também dividido em dois blocos, comporta em cada
bloco três unidades de progressão, com duração média de três meses. A previsão de tempo
para conclusão do PEJA II é de dois anos.
Novas mudanças curriculares deverão ser anunciadas em breve, porque o projeto da
Multieducação87 sofre revisão em todas as modalidades de ensino da rede municipal. Parte
desta revisão realiza-se com a participação de professores de todas as áreas e modalidades, em
encontros regulares e grupos de estudos.
77..11 OO ÚÚTTEERROO PPOOLLÍÍTTIICCOO,, SSOOCCIIAALL EE TTEEÓÓRRIICCOO DDOO PPRROOGGRRAAMMAA DDEE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO JJUUVVEENNIILL –– PPEEJJ
O que estou chamando de útero do PEJ, a caixa de abelhas de Marx, metafórica nesse
texto — por ser o locus que, de posse de um fértil terreno político, pôde possibilitar o trabalho
humano da fecundação de uma nova idéia —, está conformado por uma arquitetura política,
social e teórica que se insinua ousadamente no momento de abertura do regime militar e de
grave crise econômica que assolava o país, quando o país inicia o processo de retomada das
instituições democráticas, dentre elas a do voto para governador de estados, até então
estratégicos, cujos mandatários eram indicados pelo governo federal. Para compreender essa
fertilização in útero, passo a tecer, como pássaro com fios os mais diversos, as idéias que
86 A pesquisa no Rio de Janeiro é coordenada por Osmar Fávero e Paulo César Carrano (ambos da UFF) e cada etapa teve definida a equipe de pesquisadores. Nacionalmente a coordenação da pesquisa cabe a Marília Sposito, da USP, e Sérgio Haddad, de Ação Educativa. 87 Multieducação é a proposta curricular da rede municipal de educação do Rio de Janeiro, de todos os níveis e modalidades. A atualização do Documento Curricular tem por objetivo propor novos diálogos, rever alguns conceitos, acrescentar e ampliar temáticas anteriormente discutidas na Multieducação/1996, ano em que foi criada.
270
ajudam a compreender a complexidade do momento, aninhando-as no período histórico que
fermenta o PEJ.
Sobre esse tempo, Cunha (1991) destaca a importância das entidades ligadas à área da
educação que nasciam um pouco antes desse período, nesse mesmo contexto de pressão para a
mudança das relações políticas no país: a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa
em Educação - ANPEd, congregando os programas de mestrado e doutorado em educação de
todo o país; o Centro de Estudos Educação e Sociedade - CEDES, na Universidade Estadual
de Campinas (UNICAMP), projetado nacionalmente após a publicação da revista Educação e
Sociedade; a Associação Nacional de Educação (ANDE), formada por professores e
especialistas do ensino superior e da educação básica, em defesa, junto à sociedade, do ensino
público, da democracia e da justiça social. Essas entidades, a partir de 1980, passam a
organizar as Conferências Brasileiras de Educação - CBEs, principal mobilização do mundo
acadêmico em torno dos rumos da educação brasileira, como se verá adiante, nas
manifestações ao tempo da Assembléia Nacional Constituinte, que precedem a promulgação
da Constituição Federal de 1988.
Os grandes empréstimos internacionais que alimentaram o projeto econômico dos
militares, incrementando não apenas o parque industrial, mas grandes obras, atendiam os
interesses do capital internacional, tanto pelos investimentos das empresas transnacionais em
lucrativas indústrias de mão-de-obra barata, como também os credores estrangeiros que
cobravam caro pelos financiamentos. A modernização conservadora deixou de herança a
gigantesca dívida externa que se avoluma até os dias atuais, mantendo e engendrando uma
sociedade com ainda maiores desigualdades e concentração de renda. Crescer para depois
repartir, a máxima da ocasião, na defesa sem trégua que lhe fazia o então Ministro Delfim
Neto produziu, muito ao contrário, não a divisão do “bolo”, mas a extrema concentração e o
cada vez mais acentuado fosso entre as classes dominantes e as classes populares. Moradias
inadequadas e favelas, caos urbano, aglomerados urbanos crescentes sem qualquer
planejamento, degradação ambiental, agravamento da qualidade de vida das populações mais
pobres, insegurança, ausência de saneamento básico são tributos até hoje pagos pelas classes
vitimadas pela ideologia da época, cujos efeitos se espraiam por toda a sociedade, que sofre,
cada um a seu modo, os efeitos deletérios daqueles anos de chumbo “milagrosos”.
A ausência de liberdades políticas, no entanto, fez surgir, em resistência ao regime de
força, cada vez com maior intensidade, a partir de 1970, movimentos sociais, pela via das
associações de moradores ligadas às comunidades eclesiais de base – CEBs, da Igreja
271
católica, formas de agremiação admitidas pelo poder militar intolerante com reuniões de
qualquer ordem. Também os movimentos populares em luta pela escola pública, pelo acesso a
níveis de ensino negados também são representativos dessa época. O sindicalismo brasileiro
nascente no ABC paulista assume o protagonismo de novas configurações sociais que
organizam os trabalhadores, no curso dos anos 1970, funda o PT em 1980 e incita a estratégia
de greve em todo o país. Nasciam novas formas de luta, de construção de sujeitos coletivos,
de matrizes discursivas que, para Sader (1988, p. 20-21), traziam práticas que alargavam o
espaço da política:
Rechaçando a política tradicionalmente instituída e politizando questões do cotidiano dos lugares de trabalho e de moradia, eles “inventaram” novas formas de política. [...] A “política reinventada” dos movimentos teve de se enfrentar com a “velha política” ainda dominante no sistema estatal.
Os estertores da ditadura militar, em uma conjugação de forças que articularam o
rompimento de apoios e pactos estabelecidos até então, encerrando os tempos negros da
tortura, da censura e da falta de liberdade política, impostos pela força aos direitos civis e
políticos da cidadania; a campanha das Diretas-já levam ao primeiro governo civil depois de
mais de vinte anos, pela eleição indireta de Tancredo Neves cuja morte antes da posse faz
ascender ao poder José Sarney, em 1985. Furtado (1999, p. 27), explicando historicamente a
estratégia de estabilização adotada a partir de 1994, que ignora a inflação crônica
caracterizadora da economia brasileira nas fases de crescimento e de recessão, assim se refere
à situação econômica desse período, com altos índices de inflação, traduzindo o agravamento
da crise do capitalismo dependente, com o fim do milagre econômico e o que advém daí:
[...] a instabilidade vinha reduzindo a governabilidade do país desde os anos 70, quando mudou a conjuntura internacional sob impacto da alta do preço do petróleo e, no fim do decênio, com a elevação abrupta das taxas de juros no mercado internacional. Esse aumento nas taxas de juros operou em detrimento dos países do Terceiro Mundo e em benefício dos Estados Unidos, que passaram a absorver grande parte dos recursos disponíveis para investimento na esfera internacional.
Sarney (1985-1990), com a “Nova República”, construída por forças até mesmo
antagônicas, em torno do PMDB88, baixa planos e medidas que não conseguem atenuar os
88 Desde dezembro de 1980 é criado o Partido do Movimento Democrático Brasileiro - PMDB, sucedâneo do Movimento Democrático Brasileiro – MDB, que constituiu, desde 1966, o núcleo de resistência à ARENA, no modelo bipartidário imposto pela ditadura militar. Nessa reorganização, por força de lei que exigia a identidade de partido na sigla das legendas, as forças reagrupadas, de cores ideológicas muito distintas, fazem frente, no espaço conquistado de eleições indiretas à candidatura da situação, elegendo Tancredo Neves pelo voto indireto.
272
problemas, pelo contrário, acabam por impor mais sacrifícios aos miseráveis, assalariados e
pequenos empresários.
É dessa mesma época a IV Conferência Brasileira de Educação - CBE, realizada em
Goiânia em 1986, no fragor da discussão da nova Constituição, com efeitos sociopolíticos
relevantes, em relação aos desejos dos educadores e pesquisadores brasileiros. Cunha (1991,
p. 96-97) se pronuncia dizendo que o manifesto elaborado pela comissão organizadora
praticamente não sofreu alterações ao longo do evento89, transformando-se no texto de
política educacional representativo das demandas das entidades da sociedade civil. Essas
demandas reivindicavam, dentre muitos aspectos, o direito de todos à educação —
independente de sexo, cor, idade, confissão religiosa, filiação política ou classe social —
gratuita e laica nos estabelecimentos públicos em todos os níveis de ensino e o dever do
Estado em prover o ensino fundamental público e gratuito para todos os jovens e adultos
excluídos da escola ou que a ela não tiveram acesso na idade própria.
À época, o direito à educação para todos ainda não estava assegurado, e o tempo da
Nova República trazia a discussão que alimentaria os sonhos dos segmentos organizados da
população em defesa de uma escola pública de qualidade para todos, no âmbito da
Assembléia Nacional Constituinte que se instala, no primeiro governo civil, após longo tempo
de ditadura militar. Eleita em 15 de novembro de 1986, animava as lutas populares — no caso
da educação reunidas pelo Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, com papel
preponderante na organização das entidades da sociedade civil e na negociação das propostas
encaminhadas para o texto da nova Constituição.
O retorno do exílio de intelectuais insuflou novas idéias aos tempos ainda tímidos de
abertura política. Paulo Freire retornara ao país e ouvi-lo falar da “educação da saudade” no
retorno do exílio, naquela primeira aparição pública no auditório da PUC-SP marcou a todos
que puderam ouvi-lo. Os debates teóricos disputavam a hegemonia das idéias, tensionando
autores, fontes e idéias até então proibidas, pelos conteúdos supostamente subversivos, e
representativas da educação libertadora — cuja concepção como educação popular, passava a
ter lugar de discussão no país, com a pessoa de Paulo Freire presente —, pondo-os em
oposição aos adeptos da pedagogia crítico-social dos conteúdos, denominada por Saviani,
mais tarde, de pedagogia histórico-crítica.
89 Este é um ponto controverso entre os participantes. Fávero admite que houve mudanças sim durante o evento, e de que não se tratava de manifesto, mas de uma proposta dos educadores para o capítulo da educação, na disputa de concepções a ser feita com a Assembléia Nacional Constituinte.
273
A pedagogia histórico-crítica em oposição à educação popular, se apresenta com
sutilezas de concepção, envolvendo muitos intelectuais com suas matrizes discursivas. Em
uma primeira visada ambas apresentam caráter emancipatório, mas trazem demarcações que
estabelecem linhas divisórias entre elas. A primeira defende o acesso à escola, provido pelo
Estado à classe trabalhadora, de modo a libertá-la — pelo domínio do conhecimento
elaborado, universal e sistematizado —, da ignorância intelectual, tornando-a consciente de
sua condição social, para que possa lutar contra a opressão a que é submetida. A educação
popular, campo teórico ligado à prática de movimentos sociais que alfabetizaram adultos sob
a concepção herdada de Paulo Freire e de outras idéias experimentadas nos primórdios dos
anos 1960, fundamenta-se no conhecimento como poder de luta dos trabalhadores. Essa forma
de produzir o conhecimento recusa a “educação bancária” (cf. Freire) em que os conteúdos
escolares da educação burguesa são “transmitidos”, para assumir o diálogo como mediação
entre “saberes elaborados”, traduzidos como “saber escolar”, e o saber popular construído nas
relações cotidianas de vida e de trabalho da população. De valor nessa tendência histórico-
crítica, a recusa de um discurso pedagógico técnico, e supostamente neutro, característico do
período militar, assim como a ênfase dada à escola como espaço político para a formação de
sujeitos críticos e conscientes da realidade social.
O Programa de Educação Juvenil foi, então, gestado nesse fértil útero, e chegava
trazendo princípios político-pedagógicos com base na educação popular. O diálogo (no
sentido freireano) mediava a prática pedagógica com a realidade social, forjando-se uma
escola pública cuja tarefa era consolidar a educação escolar vinculada a características
socioculturais, a necessidades e interesses da classe trabalhadora.
Bonamino e Chagas (2002, p. 77-78) confirmam esse vínculo, em pesquisa n’O Livro
dos CIEPs90, escrito pelo próprio Darcy Ribeiro:
De forma explícita, Darcy Ribeiro reconhecia que a proposta curricular e metodológica estava referenciada na experiência desenvolvida no início da década de 1960 por Paulo Freire em Recife. Nessa experiência, o “domínio da leitura e da escrita” não se desvinculava da “aprendizagem de uma leitura de mundo”.
Mas, paradoxalmente, o PEJ nascia sob a marca da exclusão, mantendo à margem
dessa concepção de escola os maiores de 20 anos, punindo-os uma vez mais pelo fato, agora,
de não terem a idade admitida como a que ainda “valia a pena” para o poder público investir,
90 RIBEIRO, Darcy. O Livro dos CIEPs. Rio de Janeiro: Bloch, 1986.
274
acirrando o estigma dos cidadãos nascidos sem direito, forma perversa de exclusão do direito
na chamada “idade própria”.
Tão grave quanto isso, fecundava-se um projeto de escola popular, em uma rede
paralela à existente, constituída no período pela implantação dos CIEPs91, absorvendo 70%
dos recursos da educação, enquanto quase 3000 escolas estaduais da rede preexistente
tentavam honrar seus compromissos com a população, com restritos 30% dos recursos.
A década de 1980 termina com inflação recorde, e acontecem as primeiras eleições
diretas para presidente. Direita e esquerda se enfrentam, representadas, respectivamente, por
Fernando Collor de Mello — um político obscuro de Alagoas, mas projetado pela mídia, que
o apóia incondicionalmente, com o discurso de “caça aos marajás”92 e bem-sucedido, por isso
mesmo, nos resultados eleitorais — e Luís Inácio Lula da Silva — operário cuja formação
política deu-se nas lutas de resistência do trabalho diante do capital, nos movimentos sindicais
dos metalúrgicos do ABC paulista (SADER, 1988).
Com a mudança do cenário político, no início da década de 1990, declina a
participação popular — tendência chamada por analistas da época, como “crise dos
movimentos sociais”, que perdem visibilidade e poder de pressão, conquistados no período
anterior —, o que não significou, entretanto, o fim desses movimentos, nem tão pouco o
enfraquecimento de sua representação no cenário sociopolítico, mas a reorganização interna e
externa quanto a formas de atuação e de exercer seu papel na sociedade, como aponta Ghon
(2005).
Se para muitos analistas essas duas décadas de 1980 e de 1990 são consideradas
décadas perdidas, do ponto de vista das formas tradicionais organizativas da sociedade, de
outro ponto de vista, emblematizam a possibilidade de assumir níveis de realidade antes não
percebidos, que foram capazes de produzir novas configurações sociais, novas estratégias de
luta, novos sujeitos e identidades coletivas, táticas de resistência cotidianas.
A esperança trazida com o fim da repressão e a restauração formal da democracia
representativa mobilizaram a sociedade em torno de reivindicações de direitos usurpados pela
ditadura, como o fim da censura, e fizeram governos mais à esquerda em alguns estados e
municípios; acionaram movimentos estudantis e sindicatos de professores, congressos e
91 A promessa na ocasião era de construção de 500 CIEPs, mas esse número nunca foi atingido. Nos dois governos Brizola, não seqüentes, esse número talvez tenha alcançado 300 unidades. 92 Desta forma eram designados os funcionários públicos que, supostamente, dilapidavam o Estado com seus altos salários, o que justificava o desmonte do Estado e dos serviços púbicos por ele oferecidos.
275
encontros reunindo educadores e pesquisadores da educação. Promulgada a nova
Constituição, novos tempos se anunciavam para a educação, propugnada a democracia como
método, como conteúdo o compromisso com as classes populares e — o mais importante —
afirmando o direito subjetivo à educação.
77..22 DDOO ÚÚTTEERROO ÀÀ LLUUZZ DDOO DDIIAA:: NNAASSCCIIMMEENNTTOO DDOO PPDDTT DDEESSFFRRAALLDDAANNDDOO AA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO CCOOMMOO
BBAANNDDEEIIRRAA
Do exílio em Lisboa, Leonel Brizola, com antigos trabalhistas, fundaram em 1979, o
“novo trabalhismo”. De volta ao país, Brizola e companheiros sofrem o duro golpe de ver a
sigla entregue a um grupo oportunista, pelas mãos dos militares no poder. Criam, então, em
maio de 1980, um novo partido para abrigar a reconstrução que faziam do trabalhismo: o PDT
– Partido Democrático Trabalhista, identificado com o socialismo populista.
O gaúcho Leonel Brizola marcava a vitória da oposição ao regime e às forças
conservadoras, nas primeiras eleições diretas para governador, no Rio de Janeiro, em 1982,
com um discurso de renovação, inversão de prioridades e participação popular, com ninguém
menos que Darcy Ribeiro como vice-governador, ambos abrigados no novo partido. Jamil
Haddad é o primeiro prefeito indicado93 por Brizola, em 1983, para o município do Rio de
Janeiro, permanecendo oito meses no cargo. Marcello Alencar é o sucessor (1983-1985),
afinado com ele partidariamente, como todos os mandatos dos prefeitos de capitais indicados
93 Apenas em novembro de 1985 voltaram a ocorrer eleições para as prefeituras de capitais. Antes disso, os prefeitos eram indicados pelos governadores, o que produzia uma certa “promiscuidade política” entre as ações do estado e as do município, este submisso às vontades e desejos do governo estadual. Quando Brizola assume o governo, Júlio de Morais Coutinho (1980–1983) ainda era prefeito, seguindo-se a este Jamil Haddad (1983–1983), defensor da participação popular, e o primeiro indicado por Brizola, mas de curta duração no cargo; depois Marcello Nunes de Alencar (1983–1985) é o indicado, em um contexto de coalização de forças do governo estadual com o PMDB e PTB. Conhecido como o “prefeito das ruas”, pela forma como itinerava com a prefeitura, isso não significava maior escuta às demandas sociais; as primeiras eleições de 1985 indicavam a possibilidade de maior autonomia para o poder local, em relação ao governo estadual, intensificando as relações prefeitura e sociedade organizada. Roberto Saturnino Braga (1986–1988) se elege e assume o cargo. Com a perda do mandato para governador nas eleições de 1986, pela eleição de Moreira Franco, alinhado com o governo federal de José Sarney, o PDT se esvazia de poder e o grupo socialista, do qual fazia parte Saturnino Braga fica isolado, culminando na saída do partido, o que exigiu a reestruturação do secretariado. A falta de apoio político decorrente acirrou a crise financeira do município, decretando falência administrativa em 1988. Embora os nomes de prefeitos colaboradores de Brizola se repitam, como é o caso de Marcello Alencar e César Maia, só nos primeiros mandatos estiveram afinados no mesmo partido, rompendo depois com o governador (às vezes até mesmo durante a vigência do mandato) e inclinando-se para posições ideológicas distantes das iniciais e assumindo fortes disputas políticas com Brizola, principalmente em seu segundo mandato como governador. O caso mais emblemático é o de César Maia, secretário de planejamento no governo Brizola, e hoje, depois de idas e vindas, aterrissado no PFL. A seqüência de prefeitos, durante todo o tempo do PEJ é a seguinte: Marcello Nunes de Alencar (1989–1992, 2º mandato); César Epitácio Maia (1993–1996); Luiz Paulo Fernandez Conde (1997–2000. Eleito sob a mão de César Maia, com quem também rompe, futuramente); César Epitácio Maia (2001–2004, em 2º mandato); César Epitácio Maia (2005 – 2008, 3º mandato, por reeleição).
276
por governadores. Só em 1985 ocorreriam as primeiras eleições diretas para essas prefeituras.
Com isso, as políticas públicas da capital convergiam em direção às do governo estadual, o
que não foi diferente, no tempo de Marcello Alencar. No âmbito da educação, o Programa
Especial de Educação – PEE implantado, em ação conjunta com a Secretaria de Estado de
Educação – SEE, atendia aos compromissos do programa do governo estadual, de mudanças
estruturais na área.
Darcy Ribeiro, ocupante também do cargo de secretário da cultura, recebeu a
incumbência do governador para presidir a Comissão Coordenadora de Educação e Cultura,
responsável pela formulação da política educacional do estado. A comissão reunia os
secretários estaduais de educação e de ciência e cultura, o secretário municipal de educação e
o reitor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, o que na prática fazia de Darcy
Ribeiro o autêntico secretário de estado de educação, cargo formalmente ocupado por Yara
Vargas. Um importante acontecimento tem lugar nesses tempos, no segundo semestre de
1983: o I Encontro de Professores do Primeiro Grau do Estado do Rio de Janeiro, o Encontro
de Mendes, culminância de um processo representativo de delegações de professores
indicados em diversos níveis: primeiro, na própria escola; depois em pólos de escola
organizados no Rio de Janeiro, cada pólo com cerca de três escolas; depois pólos mais amplos
agregando alguns Distritos de Educação - DECs; até chegar ao evento final, realizado de
forma conjunta pelas redes estadual e municipal, significando a retomada da participação dos
professores na política educacional.
Lia Faria, então presidente do Sindicato de Professores, assumiu a coordenação do
PEE, logo depois do Encontro de Mendes.
Darcy Ribeiro, a figura forte do governo na área da educação, idealiza então o
Programa Especial de Educação, que tem início em 1984. Reinventar a “escola pública,
honesta e eficiente” e “educar a criança brasileira tal qual ela é, a partir da situação concreta
em que se encontra” (RIO DE JANEIRO, 1985, p. 16), eram objetivos do Programa. Como
metas fundamentais destacavam-se: a) extinção do terceiro turno, o que possibilitava um
mínimo de cinco horas diárias a cada aluno, na escola; b) oferta, ao corpo docente, de cursos
de capacitação para atualização pedagógica e, conseqüentemente, melhoria da qualidade de
ensino; c) garantia de, pelo menos, uma refeição completa a cada aluno; d) oferta aos alunos,
na própria escola, de assistência médico-odontológica: cada unidade escolar transformada em
centro de ação preventiva e de defesa da saúde; e) construção de 500 CIEPs, distribuídos em
áreas carentes e de grande concentração demográfica; f) criação, no horário noturno dos
277
CIEPs, do Programa de Educação Juvenil para atender jovens de 14 a 20 anos que não
houvessem freqüentado a escola ou que dela tivessem se afastado sem o domínio da leitura,
da escrita e do cálculo. (ARANTES, 1998, p. 26). Segundo José Pereira Peixoto Filho,
coordenador da proposta inicial do PEJ, este foi implantado também em muitos CIEPs do
estado, principalmente na região serrana.
Assumindo a missão de implantar os 500 CIEPs projetados por Oscar Niemeyer,
Darcy Ribeiro passou a acumular, ainda, o de Secretário Extraordinário de Educação, e dava
resposta, por meio de um projeto, à constatação de que um enorme contingente de jovens
analfabetos entre 14 e 20 anos integrava, nas camadas mais pobres, a população do estado do
Rio de Janeiro. Nascia o Programa de Educação Juvenil – PEJ, implantado em 23 CIEPs. Na
versão municipal do Programa, Maria Yeda Linhares, secretária de educação do município do
Rio de Janeiro94 inaugura, em maio de 1985, o primeiro desses 23 CIEPs, construídos no
âmbito da SME. Retomam-se, também, no município, as classes de alfabetização – CAs para
atender crianças de 6 a 8 anos que nunca freqüentaram escolas, formando um bloco único, de
até dois anos para o período de alfabetização, com passagem automática da CA para a 1ª
série. São também dessa época iniciativas que levaram, posteriormente, à consolidação do
Conselho Escola-Comunidade – CEC, substituindo as antigas Associações de Pais e
Professores – APP; as eleições diretas para diretores de escolas municipais, só realizadas, pela
primeira vez, em 1987, quando Moacyr de Góes é secretário, pela demora da regulamentação.
O Plano Quadrienal de Educação e Cultura do Estado do Rio de Janeiro (1984-1987)
em resposta à política educacional pretendida pelo Governador, enfatizava a necessidade de
assumir a educação como prioridade, apontando o desequilíbrio entre a demanda populacional
e a rede escolar insuficiente; a necessidade de alfabetização de adolescentes; a pobreza dos
conteúdos curriculares, uniformizadores, a partir da classe média urbana (HENRIQUES,
1988, p. 31).
A derrota do PDT nas eleições seguintes para o governo do estado e a chegada de
Moreira Franco (1987-1991), sucedendo Leonel Brizola, trouxe Carlos Alberto Direito para a
94 Os Secretários Municipais de Educação desde a criação do PEJ, até os dias atuais, são os seguintes: Lucy Serrano Ribeiro Vereza (1979-1983); Maria Yedda Leite Linhares (1983-1986), que substitui Yara Vargas na secretaria estadual de educação quando esta se desincompatibiliza para concorrer a uma vaga de deputada, deixando em seu lugar Maria Lucia Couto Kamache (1986-1987); Moacyr de Góes (1987-1988); Mariléa da Cruz (1989-1992); Maria de Lourdes Tavares Henriques (1992-1992); Regina Alcântara de Assis (1993-1996); Carmem Lima Câmara de Moura (1997-2000); Sonia Maria Corrêa Mograbi (2001-). Regina de Assis, durante seu mandato, funda a MultiRio, uma empresa ligada ao município, com a finalidade de produzir tecnologia em apoio às redes, e passa a presidi-la desde então.
278
Secretaria de Educação e Zaia Brandão para o Departamento de Educação. Conseqüências
imediatas: o Programa Especial de Educação foi arquivado e os CIEPs, praticamente
abandonados. O processo de desmonte da educação no estado do Rio de Janeiro começava,
recuperando práticas antigas, sem conseguir incorporar as práticas inovadoras.
Com Saturnino à frente do município do Rio de Janeiro, um grupo bastante
representativo de professores, entretanto, na rede municipal, continuava o trabalho do PEJ.
Moacyr de Góes, em sua breve gestão como secretário de educação, além de realizar as
primeiras eleições diretas para diretores de escola, implanta, em 1988, último ano do governo
Saturnino Braga, o ensino regular noturno95 em 26 unidades escolares da rede convencional,
isto é, fora dos CIEPs, inaugurando na rede o atendimento a jovens com idade entre 12 e 20
anos, que exerciam atividades que os impediam de freqüentar o horário diurno. O ensino
regular noturno passou a oferecer o 1º grau, ficando, assim, coberta a oferta de 1ª a 8ª séries
para jovens e adultos, em regime seriado, sem, no entanto, assegurar as premissas
pedagógicas do PEJ; intensifica, também, a elaboração da Proposta Curricular, buscando a
unificação das redes — a rede convencional de escolas e a decorrente do PEE, esta acusada de
açambarcar a maioria dos recursos públicos da educação. A medida aproxima as equipes
pedagógicas de uma e outra, dando curso à formulação de um único documento.
As discussões das equipes pedagógicas, em disputa durante os três governos
municipais, tiveram que conciliar com a iniciativa de Moacyr de Góes. A proposta da
educação popular, de base freireana, que sustentava o PEE e a das escolas convencionais, com
a equipe de supervisão educacional defensora da pedagogia dos conteúdos, encontravam a
seguinte saída, segundo Passos (1998, p. 236 apud SANTOS, 2005, p. 19):
[...] a utilização do referencial teórico baseado nos preceitos de Vygotsky, já que estes consideravam a relação entre os chamados conceitos cotidianos e os conceitos científicos como essencial para o processo ensino-aprendizagem. Para a autora, no entanto, é evidente que a concepção defendida pela educação popular foi vencida em relação à pedagogia histórico-crítica. Este fato se deveu à incongruência entre as idéias subjacentes a essa tendência e as práticas políticas muito mais voltadas aos interesses privatistas e eleitoreiros e com uma concepção burocratizada e hierarquizante que estruturava a relação SME-escolas.
A volta de Marcello Alencar, em 1989, à Prefeitura, dessa vez pelo voto direto,
garante a continuidade da política do PDT e de Brizola, revalorizando os CIEPs e as ações
95 Implantado pela Resolução nº. 314 “N” de 7 de março de 1988. A proposta encerrava contradições em relação ao PEJ, mas oferecia possibilidade de atendimento a alunos que não conseguiam vagas nas classes do PEJ.
279
previstas no PEE, mas sem aproximar, pela participação popular, o poder público e a
sociedade.
Em 1992, setores da elite carioca, com interesses distantes da classe trabalhadora,
elegem e compõem forças políticas para o governo da cidade do Rio de Janeiro. O economista
César Maia, rompido com o PDT desde seu governo anterior, vence o pleito, em primeiro
turno, suplantando a candidata da situação Cidinha Campos, e, no segundo turno, supera
Benedita da Silva, do PT. Santos (2005, p. 32, citando MAIA, In: JORNAL DO BRASIL,
1995 apud VAINER, 2000, p. 105) assinala que estavam de volta as velhas forças
conservadoras ao poder que, desde então, permaneceram na cidade, impondo o projeto
político “da ordem”: “O eleitorado conservador encampou minha candidatura e entre eles sou
imbatível. Vou mostrar que é possível ser transformador pela direita”.
Ao assumir a Secretaria Municipal de Educação, Regina de Assis introduz mudanças
na estrutura organizacional da Secretaria, atingindo o PEJ, que deixa de ser um programa,
coordenado por uma equipe central, para ser um projeto, no âmbito de um conjunto de
Programas Sociais96. Reduz-se, então, o número de CIEPs com PEJ, passando das 42
unidades escolares de 1992 para apenas 12 em 1995. São os profissionais das escolas que
divulgam e resistem, impedindo que estes também acabem, como informa Gomes em
depoimento. A mesma depoente diz que a tentativa de cessão dos CIEPs para a rede estadual,
que ocupava no turno noturno os prédios das escolas municipais para atender, com o ensino
supletivo, a jovens e adultos, também enfrentou a resistência de muitos professores desses
CIEPs, que procuraram a Secretaria de Estado de Educação e o Conselho Municipal dos
Direitos da Criança e do Adolescente para reverter a iniciativa, impedindo, por fim, sua
realização. Uma das motivações de diretores para aceitar a cessão dizia respeito à redução da
carga horária de trabalho, já que a existência do PEJ à noite implicava funções de direção e
coordenação também presentes nesse turno.
A partir da promulgação da nova Diretrizes e Bases da Educação, Lei nº. 9394 de
1996, a exigência em relação à oferta do ensino fundamental para jovens a adultos por parte
dos municípios forçou a Prefeitura do Rio de Janeiro a investir na modalidade EJA.
Influenciado pelo convênio MEC/FNDE, que destinou verbas à educação de jovens e adultos,
investiram-se recursos significativos no PEJ, assim como se realizou o I Encontro de
Educação de Jovens e Adultos, sinalizador da necessidade de revisão da faixa etária, assim
96 Segundo o depoimento de Benício (2005), mais dois Programas estavam envolvidos, além do PEJ: o Programa de Alunos Residentes (PAR) e o Programa Rio Criança Cidadã (PRCC).
280
como de regulamentação. Ainda nesse ano, novo convênio com o MEC/FNDE estendeu o
Programa até o final do ensino fundamental, com a criação do PEJ II, estabelecidas as
seguintes faixas etárias: 14 a 22 anos para o PEJ I e 14 a 25 anos para o PEJ II. Desde 1999,
observa-se o fim gradativo do ensino regular noturno na rede e a expansão do PEJ, não mais
restrito aos CIEPs, mas também funcionando em escolas convencionais, a partir do momento
em que o Conselho Municipal de Educação o aprovou, nas etapas I e II97, com caráter de
terminalidade e garantia de documentação retroativa a 1998.
O Programa, nascido em útero tão fértil, tanto do ponto de vista da conjuntura
nacional, quanto das forças políticas reorganizadas no estado e município do Rio de Janeiro,
desde 1993 vive abrigado na política do Partido da Frente Liberal – PFL, representando a
escolha dos cidadãos cariocas. Seu percurso traz as marcas da ideologia partidária, arrastando,
para sobreviver, contradições e opções políticas em nada próximas às vividas quando de sua
gênese, assumindo, vagarosamente, as concepções que tanto a LDBEN quanto o Parecer CNE
nº. 11/2000 trouxeram para a modalidade. Sobreviveu, principalmente, à custa da teimosia e
da resistência de professores-educadores que se recusaram, em um tempo histórico, a negar
sua oferta, e interditar mais uma vez a tantos jovens o direito ao ensino fundamental.
A permanência, no tempo, demonstra o acerto da sua existência, porque a realidade
dos não-escolarizados no município do Rio de Janeiro não consegue ficar encoberta. Mas a
resposta e seu crescimento quantitativo, tímido diante da realidade da população, merecem
reflexão e compreensão dos compromissos que o poder público carioca vem tendo, de fato,
com seus munícipes.
77..33 CCOONNSSTTIITTUUIINNTTEESS EE DDEETTEERRMMIINNAANNTTEESS DDAA CCOONNCCEEPPÇÇÃÃOO DDEE EEJJAA EE DDEE AALLFFAABBEETTIIZZAAÇÇÃÃOO
EEXXPPRREESSSSOOSS EEMM DDIISSCCUURRSSOOSS EE EEMM DDOOCCUUMMEENNTTOOSS DDOO PPEEJJ
A exigência da recuperação da história e das concepções do PEJ foi encontrar, além
das fontes documentais e dos artigos e trabalhos acadêmicos sobre o Programa, personagens
que ainda hoje atuam na educação de jovens e adultos, dispostas a narrar a versão das
experiências vividas. Gomes e Benício98, em março de 2005, escavam suas memórias e os
baús de histórias, os papéis e seus guardados e remontam diante de pesquisadores interessados
97 Parecer CME 03/99. 98 Maria Cândida Caetano Gomes e Maria Luiza Benício, depoentes do estudo de caso já referido (2005) são professoras da rede municipal, que participaram desde os primórdios da implantação do PEJ. Seus depoimentos ajudaram a compreender a trama e as tessituras realizadas pelos professores, para além da decisão dos governantes.
281
nas escavações, a arqueologia do que significou não apenas o PEJ, mas um tempo de respirar
educação, que talvez tenha sido o último vivido no estado e no município do Rio de Janeiro.
A narrativa de ambas remete à necessidade de observar algumas questões, indispensáveis para
pensar o PEJ como política pública.
Gomes confirma, com suas lembranças e experiência, que o nascimento do PEJ foi
precedido por uma experiência de educação juvenil que propiciava o acesso da população
pobre ao ensino fundamental, experiência essa realizada por Ana Galheigo, no Lins de
Vasconcelos99, o que coincide com as buscas empreendidas de fontes, no resgate da origem
do Programa.
No documento inicial, segundo Gomes o primeiro documento, pode-se ler Programa
de Educação Alternativa, implantado em três escolas: Joaquim Ribeiro em Inhaúma, Mozart
Lago em Oswaldo Cruz e Érico Veríssimo em Fazenda Botafogo. Gomes confirma a escolha
das escolas enunciadas, levando em conta o fato de estas serem áreas de grande evasão de
alunos e haver a aposta na proposta curricular para atraí-los, pelo núcleo comum e de
interesses, com alcance da classe de alfabetização até a 8ª série, completando todo o 1º
grau100. A escolha de Gomes foi o CIEP Joaquim Ribeiro, em Inhaúma, no qual vivenciou
toda a experiência. Conta, ainda, que o Programa de Educação Alternativa fazia crítica ao
ensino supletivo, e sua proposta ambicionava apresentar-se como um modelo transformador
da escola regular. Implantado em 1984, durou até 1987.
Gomes, que em duas matrículas, por duas vezes assumiu o PEJ, desde as origens,
desafiada pelo novo, em escolas de bairros pobres, uma delas adiante retratada, cujas questões
sociais de antemão davam-se a conhecer, conforma o tipo de professor para quem a mudança
parece exercer um fascínio. E ao escolher a mudança de condições de trabalho, à acomodação,
muda a si mesma, porque não pode, com essas novas condições, ser mais a mesma. Inquieta,
segue em busca da aventura, da experiência, do embate previsível, dos obstáculos a enfrentar.
Soares (2005, p. 100), alerta sobre o significado de mudar:
É difícil mudar. Muito difícil. Doloroso e angustiante. Primeiro, porque a ousadia de mudar-se a si mesmo envolve cortejar a morte. Na mudança, uma parte de nós perece; um modo de sermos nós mesmos entra em colapso. Segundo, porque enfrentamos a resistência organizada das instituições e a oposição ferrenha de todo mundo que nos cerca. Unem-se numa brigada
99 Bairro do subúrbio do Rio de Janeiro entre as estações de trem de Méier e Riachuelo. 100 O 1º grau, sob a Lei nº. 5692/71, era a forma como se denominava o atual ensino fundamental, ambos de oito anos de escolaridade.
282
contra a mudança aqueles que, de uma forma ou de outra, nos conhecem, dão testemunho de nossa biografia e zelam pela imutabilidade.
Aqui me refiro a uma das questões que certamente Gomes também deve ter
enfrentado. Quantos a conheciam, conheciam sua biografia e que lhe devem ter recomendado
não mudar? Apesar de o projeto do Governo estadual à época propor, ele próprio a mudança
de concepção de escola — da arquitetura à concepção pedagógica; de oferta pública, fazendo
a escolha por um projeto popular, em que medida as condições oferecidas ajudavam a
promovê-la? “Equivoca-se o sonhador ingênuo que espera estímulo à mudança por parte das
instituições supostamente destinadas a promovê-la, por paradoxal que pareça”. (SOARES,
2005, p. 100).
Soares (2005, p. 102; 108) construindo a compreensão dos muitos sentidos que atribui
à mudança, ainda alerta para o fato de que:
Há, portanto, um conluio da coletividade, uma espécie de surda conspiração contra a mudança, ainda que esta seja desejada pelas instituições e pela comunidade diretamente envolvida no processo. [...]
Todos os que aceitam o risco da mudança devem pagar por sua ousadia. (p. 102; 108).
Gomes pagou pela ousadia de querer mudar, mas sua narrativa relata os preços, os
ônus, mas também os bônus que a experiência do PEJ pôde lhe oferecer. Não é mais possível
vê-la, pelas narrativas, do modo como era àquele tempo. Transfigurada pela mudança do que
lhe aconteceu — a experiência, no dizer de Larrosa (2002) —, só se pode ver os
acontecimentos os quais diz orgulhosamente ter vivido, por trás das lentes de como ela hoje
vê esses acontecidos, por quem é, conformada pela biografia que lhe configura. Benício, do
mesmo modo, fez-se outra, nesse processo. E o protagonismo dessas personagens trazem para
mim compreensões e mudam as apreensões sobre a história do PEJ.
Vários foram os episódios relatados sobre as mudanças no PEJ. Um deles, em julho de
1986, segundo Gomes, quando os professores da Escola Mozart Lago elaboraram uma Carta
Aberta à População, convocando uma reunião de mobilização para tratar do término do
Projeto. Outro se deu em abril de 1994, durante a primeira exposição de trabalhos do PEJ101,
no hall de entrada da Câmara dos Vereadores. Alunos do CIEP Thomas Jefferson, em
Realengo, sabendo da passagem da secretária de educação Regina de Assis a caminho do
101 Nesta exposição estavam presentes alunos e professores dos CIEPs Thomas Jefferson, em Realengo; Gustavo Capanema, no Complexo da Maré; Samuel Wainer, na Tijuca; Luís Carlos Prestes e João Mangabeira na Ilha do Governador; Patrice Lumumba, em Del Castilho e Zumbi dos Palmares.
283
Plenário, realizaram breve dramatização retratando o clima de incerteza que os rondava. Em
outra ocasião, relembra Gomes, quando era professora-orientadora do CIEP Samuel Wainer,
na Tijuca, os alunos enviaram cartas ao Prefeito e à secretária de educação. Uma delas,
conservada em seu acervo pessoal, foi lida no momento da entrevista:
Ilustríssima senhora Secretária de Educação Regina de Assis. Meu nome é Jorge Luiz. Eu gostaria de falar um pouco do PEJ porque eu gosto muito daqui. A senhora gostaria que alguém acabasse com a escola de seu filho? Então, não acabe com a escola dos outros. A senhora já viu alguma reportagem do Japão? Lá a maioria da população sabe ler e escrever, então porque a senhora não pára para pensar? A senhora já pensou se a metade da população do Brasil soubesse ler e escrever? O PEJ é importante para mim porque eu não tenho condição de estudar de dia, então eu tenho que estudar à noite. E se não for incomodo nós do PEJ gostaríamos de um certificado porque hoje eu fui arrumar um serviço e o moço pediu o certificado da escola e eu não tinha. Assim a senhora não quer que o Brasil não vai pra frente. Muito obrigado, conto com a sua colaboração. Atenciosamente, Jorge Luiz.
Benício lembra, ainda, que foram os professores que resistiram, aferrados aos
princípios iniciais do Programa, porque os abraçaram desde o início e por eles lutavam,
quando a administração Regina de Assis / César Maia o desmantelava. Também a luta pela
certificação, pela não-inclusão do ensino supletivo estadual nos CIEPs e contra todas as
tentativas de extinção são evidências das forças sociais em disputa com os projetos de
governos, de impedir a educação popular na escola pública. Gomes, por fim, afirma que essa é
“uma parte da história que, quando se conta a história do PEJ, não se conta essa história. A
história da resistência não se conta, como se ela não existisse. [...] as pessoas querem apagar,
é como se fosse um grande rascunho”.
Voltando no tempo, Gomes recupera que, no Encontro de Mendes um jornalzinho — o
Escola Viva, preparador de todas as discussões, divulgava que um dos itens do encontro era o
Programa de Educação Juvenil, constituindo a 14ª meta do governo, e destinado a jovens de
14 a 20 anos que não freqüentaram a escola, ou que dela se afastaram sem o domínio da
leitura, da escrita e do cálculo. Todos que lá estiveram testemunharam o convite da secretária
municipal para trabalhar no PEJ, narra Gomes, devendo para isso, procurar Ana Galheigo,
então na Secretaria Municipal de Educação, e também presente ao evento. Em 1985, o
Programa de Educação Juvenil foi implantado nos CIEPs, esta uma outra proposta, pensada
por Darcy Ribeiro, e que, ao longo do tempo, também sofre mudanças. No PEJ, ao lado das
atividades de ensino, propriamente ditas, uma programação esportiva e sociocultural também
foi prevista, adequada à idade dos jovens.
284
Elaborado por uma equipe de quinze pessoas, contando com professores da SME, da
SEE e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - FAPERJ102, tinha
como base a experiência em trabalhos de alfabetização de adultos no Movimento de Educação
de Base - MEB e em Associações de Moradores de favelas do Rio de Janeiro e do interior do
país. O PEJ foi, então, lançado como um programa de alfabetização de jovens, na faixa etária
de 14 a 20 anos, tanto com história de exclusão escolar como sem passagem pela escola.
Prevendo, além da alfabetização “que levasse a uma ‘utilização consciente do código
gráfico’ (mas) formar, entre os jovens, uma consciência crítica do mundo e da sociedade”
(RIBEIRO, 1986, p. 77 apud BONAMINO, CHAGAS, 2002, p. 77), o Programa tinha um
currículo voltado para o desenvolvimento de trabalhos na área da Linguagem, Matemática,
Realidade Social e Cidadania, Saúde, Educação Física, Arte e Cultura, sugerindo metodologia
cujo eixo era “o próprio universo de vida dos alunos”.
A orientação pedagógica do PEJ, com duração de dois anos para a etapa da
alfabetização, previa um máximo de 20 turmas por CIEP, com 15 alunos por turma, e carga
horária diária de quatro horas, com a seguinte organização: 18h às 19h — jantar; 19h às 21h
— sala de aula; 21h às 22h — Educação Física ou Artes.
Começando pela alfabetização e pela educação física, o trabalho ligado à cultura
visava a revelar o nível de conhecimento dos alunos. A partir daí, desenvolvia-se o projeto,
organizado em ciclos; aulas e material didático não estavam centrados em disciplinas, mas em
temas, partindo do que os alunos sabiam e procurando atender às suas necessidades. Na
entrevista concedida, Peixoto destaca a forma inovadora de abordagem da educação física,
trabalhando o corpo jovem, e a importância da saúde, com a abordagem da sexualidade, em
especial pelo surgimento da AIDS. Exercícios de leitura e escrita eram realizados sobre esses
e variados temas. A compreensão de cada área, interligadas umas às outras pela concepção
interdisciplinar, tinha a seguinte configuração, conforme estudo de Henriques (1988, p. 45-
52):
Linguagem: opção pela linguagem oral utilizada pelos alunos como fonte geradora do
processo de alfabetização. O nome do aluno é ponto de partida, em processo de resgate da
identidade, para o domínio da leitura e da escrita.
102 José Pereira Peixoto Filho, da FAPERJ, coordenou a equipe inicial que pensou o PEJ, e seu depoimento alimentou a pesquisa Juventude, escolarização e poder local: novos desenhos da educação de jovens e adultos na esfera local, o estudo de caso sobre o PEJ feito no âmbito da investigação sobre políticas públicas para a EJA, nas regiões metropolitanas de nove estados brasileiros. O mesmo depoimento também subsidiou esta pesquisa.
285
Matemática: a cultura e a vivência do aluno são os fundamentos, desenvolvendo o espírito
crítico para a busca do pensamento autônomo e independente, visando à elaboração de
conceitos. O raciocínio lógico desenvolve-se a partir de situações familiares e da
manipulação de material concreto.
Realidade Social e Cidadania: partindo da localização espacial, chegar às formas como a
interação social acontece nesse espaço de vivência. A localização no tempo estabelece
relação entre as histórias de vida dos sujeitos e a História da sociedade, em que vive e
atua, modificando-a.
Saúde: educação para a saúde é perspectiva central, estabelecendo correlações entre as
condições de vida da comunidade e dos sujeitos, quanto à situação de saúde/doença.
Reconhecimento e descoberta do próprio corpo, relação entre saneamento básico, meio
ambiente e relações sociais, incorporando hábitos e conhecimentos para manter ou
adquirir saúde e melhor qualidade de vida, além da garantia da assistência médico-
odontológica.
Educação Física: orientação por práticas desportivas visando ao desenvolvimento
corporal, psíquico e mental, associado à consolidação do sentimento comunitário. Valor
das atividades físicas diversificadas e prazerosas.
Cultura: resgate das manifestações culturais e artísticas da comunidade, em contribuição
ao processo de alfabetização. O trabalho criativo visa ao reencontro com o prazer em
aprender.
A resposta do Programa evidenciava a questão concreta que o país vivia: jovens, que
por sua idade deveriam ser recém-saídos da escola, em verdade se expressavam como não-
alfabetizados, revelando as fraturas do ensino público para as faixas de 7 a 14 anos, nos
termos da Lei nº. 5692/71.
Voltado para a alfabetização, inicialmente, em 1987 se estendeu até o nível das séries
iniciais do atual ensino fundamental (na ocasião, ensino de 1º. Grau), em dois distintos
blocos, não-seriados: o primeiro, englobando o processo de alfabetização; e o segundo
aprofundando a leitura e a escrita, e conceitos pertinentes a essa fase escolar. No tocante à
avaliação, não usava a reprovação como medida de saber, mas como instrumento de
conhecimento dos processos de conhecimento dos alunos que, reorientados, deveriam seguir,
até a terminalidade dos dois blocos, referente ao primeiro segmento deste nível de ensino.
286
Embora alguns mecanismos garantissem avanços ao público beneficiário, como por exemplo,
a entrada/matrícula a qualquer momento; o calendário desvinculado do oficial do ensino
regular; o respeito aos avanços progressivos do educando; a focalização nesse segmento etário
seguiu excluindo outras faixas, até mesmo depois que a Constituição de 1988 foi promulgada,
garantindo o direito à educação para todos, independente da idade, até 1996. Ainda na
expansão do Programa para o segundo segmento do ensino fundamental, em 1998, a
postulação que se fazia para jovens de 14 a 20 anos, apenas estendeu de 20 para 25 anos a
idade limite do público atendido.
Na prática, o Programa assumia os sujeitos que vinham buscá-lo, mesmo que com
idades diversas da fixada, e dois fatores concorriam, segundo minha compreensão, para que
isso acontecesse. O primeiro, a exposição a que o poder público ficava, com a exclusão de
outras faixas, contrapondo-se ao preceito constitucional de direito à educação independente da
idade, fato que, por si só, já punha o sistema sob alerta, principalmente depois da aprovação
da LDBEN em 1996, pela condição de direito público subjetivo auferido no texto legal.
Argüido, por qualquer cidadão cujo direito não estivesse assegurado, o poder público deveria
à sociedade uma explicação sempre embaraçosa, diante da Carta de 1988. Segundo, a pressão
que, desde o início o Fórum de EJA/RJ fez, em suas reuniões, à equipe do PEJ, argumentando
contra a exclusão etária que o Programa produzia, diante do direito. Sem dúvida este foi
sempre um fator de grande incômodo para os integrantes da Secretaria que participavam do
Fórum, e grandes embates foram ali travados de cobrança ao poder público e de defesa do
direito de todos à educação.
O fato que minimizava a questão era dado pela prática social: diretores de escolas,
professores, coordenações admitiam a presença de alunos de qualquer faixa, uma espécie de
acordo tácito, que só se formaliza a partir de 2005 quando o Programa amplia sua
formulação, admitindo a entrada de alunos de qualquer idade, acima de 14 anos,
reconhecendo, de direito, o que vinha ocorrendo, de fato, nas práticas das unidades escolares.
O enredamento deste Programa com a trama que o Fórum EJA/RJ foi possibilitando, a partir
de 1996, sem dúvida contribuiu para avanços, se não conceptuais, formais.
Quando o Programa se amplia para o segmento de 5ª a 8ª séries, em 1998, divide-se
também em blocos I e II. Posteriormente, o reconhecimento pelo Conselho Municipal de
Educação e, concomitantemente, a proposta de ampliação cria as unidades de progressão e,
então, o segundo segmento passou a ser PEJ II, bloco I e II. Uma das entrevistadas diz que,
em sua “concepção, as unidades de progressão com aqueles cadernos, acabam sendo um
287
retrocesso na proposta inicial. Pois é claro que um professor que tem consolidado os
princípios do projeto, ele pode usar aquilo sem se escravizar, mas, como tem a questão do
tempo marcado, acaba que aquilo vira série com outro nome”.
A certificação foi preocupação desde a implantação, e ao final do período inicial, a
proposta curricular estava praticamente pronta, mas não chegou a ser submetida ao Conselho
Estadual de Educação, pela mudança de governo.
Henriques (1988, p. 60), em seu estudo sobre o PEJ, aponta os muitos problemas
administrativos que foram enfrentados, naqueles primeiros anos: da falta de professores,
especialmente nos CIEPs mais distantes dos núcleos urbanos centrais, ao caráter informal do
curso, que passava a ser um transtorno para os modos regulatórios das secretarias, como por
exemplo, em relação a fichas de chamada, à ausência de conceitos para os alunos; também a
falta de funcionários de apoio nos CIEPs, durante o horário de funcionamento, foi uma
questão de difícil solução. Também avalia que os problemas pedagógicos, freqüentes, talvez
indicassem as dificuldades dos professores em lidar com as concepções subjacentes ao
Programa, que implicavam, além de novas compreensões sobre os “conteúdos” do ensino
escolar, o reconhecimento dos sujeitos e de seus saberes como centrais no processo de
desenvolvimento da aprendizagem. Além de tudo, uma outra questão sobressaía: o custo do
Programa, que pela relação aluno/turma, exigia um número maior de docentes, o que
significava mais professores no quadro da secretaria e, portanto, maiores custos, o que, em
tempos de crise financeira do porte da que era vivida interna e internacionalmente, tornava a
opção pelo Programa uma dúvida permanente, somada à dificuldade de muitas direções par
assumirem o PEJ nas unidades que dirigiam. Quanto à faixa etária, a autora relata que, no
terceiro ano do Programa, cerca de 30% dos alunos já eram de diversa da prevista, estando
28% do total acima desta faixa. A situação da matrícula desses alunos, confirmada por
Gomes, embora não garantida oficialmente, era assumida por muitas direções dos CIEPs: os
alunos participavam do projeto como ouvintes, “clandestinos” que não apareciam nas
estatísticas. Ainda até 1992/1993, não era possível aceitar adultos como alunos, acrescenta.
Henriques (1998, p. 83), avaliando os primeiros anos do Programa, verifica também
que a interdisciplinaridade, segundo a visão dos professores-orientadores e diretores
informantes da pesquisa, não chegava a ser praticada por mais da metade dos professores. Os
motivos para isso estavam no não-entendimento da proposta e na resistência dos professores a
uma nova metodologia de ensino. Os professores, ouvidos pela pesquisadora, em larga
maioria corroborava essa percepção, confirmando que a interdisciplinaridade não acontecia e
288
o mesmo motivo — o não-entendimento da proposta — quase dobrava como justificativa
mais forte, enquanto um terço dos motivos era atribuído à dificuldade do “repasse” feito pela
equipe central.
77..33..11 CCoonncceeppççõõeess ssuubbjjaacceenntteess ddee ffoorrmmaaççããoo ccoonnttiinnuuaaddaa nnoo PPEEJJ
A formação dos professores foi, desde o início, uma preocupação do Programa. Para
isso, dois momentos eram previstos: o treinamento intensivo e o treinamento em serviço. O
primeiro, inicial, feito pela equipe central, sempre que um CIEP era inaugurado e exigia a
formação dos professores para o atendimento. O segundo, em serviço, ocorria em pólos e
tanto podia ser entendido pelos encontros mensais para troca de experiências, quanto por
visitas da equipe central aos CIEPs. Coordenados pelos professores-orientadores, os encontros
mensais visavam ao estudo e maior compromisso dos professores com o Programa.
Benício103 lembra que, no início dos anos 1990, quando Marcello Alencar é prefeito
pela segunda vez, o PEJ sofre considerável expansão, atingindo 42 CIEPs, e que um dos
objetivos da formação, naquela ocasião, dizia respeito à compreensão das teorias de Emília
Ferreiro, com vistas a compreendê-las no universo da alfabetização dos jovens, cujo modelo
explicativo se assentava na visão freireana. Mas recorda, também, que muita coisa já deixava
de acontecer, segundo a conformação do projeto original, pela escassez de recursos cada vez
mais intensa.
Gomes narra vários episódios em que se pode compreender os processos de
autoformação existentes naquela época: a prática cotidiana ensina os professores a
encontrarem saídas para as situações que já começavam a surgir no turno da noite, nas escolas
cujo público vinha das áreas cariocas marginalizadas: a chegada da droga; a presença do
bandido; o envolvimento com o tráfico. Cada situação, desafiadora, exigia um tour de force
de toda a escola, e como se refere Gomes, a intuição prevalecia. Ou seja, é no sabor dos
acontecimentos, que muitos professores vão-se formando para serem profissionais do PEJ,
porque o maior fundamento do que faziam era dedicado a conhecer seus alunos, seus modos
de viver, suas necessidades, com tudo isso lidar, transformando cada descoberta em
possibilidade, rica de aprendizagens e exigente de compreensões, ressignificações, redefinição
103Maria Luísa Benício integrou a equipe central do PEJ em dois períodos: 1990-1992, quando do último governo pedetista na Prefeitura do Rio de Janeiro; 1994-1998, depois de breve período de afastamento, na gestão municipal de César Maia.
289
de limites. Mais tarde, os centros de estudo vêm ocupar esse lugar de formação, mas nas
narrativas das depoentes, descobre-se o espaço-tempo autoformador que o PEJ constituiu.
77..44 RREEVVEELLAAÇÇÕÕEESS RREECCEENNTTEESS DDOO PPEEJJ:: AARRTTEESS DDEE FFAAZZEERR AA MMUUDDAANNÇÇAA DDEE CCOONNCCEEPPÇÇÕÕEESS
As três unidades escolares pesquisadas no estudo de caso104 Juventude, escolarização
e poder local: novos desenhos da educação de jovens e adultos na esfera local — CIEP
Graciliano Ramos, CIEP Patrice Lumumba e Centro de Referência em Educação de Jovens e
Adultos (CREJA) — oferecem, na contemporaneidade, um viés de compreensão que ajuda a
compor o conjunto de idéias que se vai tecendo, com todos os pontos, arremates, nós, fios que
se entrelaçam nessa trama urdida de 1985 a 2005.
Entretanto, cada CIEP a seu modo, faz e mantém, faz e renova as concepções originais
do Programa, que vão emergindo das incursões que grupos focais, entrevistas e questionário
de perfil foram capazes de fazer aflorar à superfície, nesse tempo recente de pesquisa, pela
voz dos sujeitos que lá estavam vivendo o PEJ, fosse como aluno, como professor, como
gestor, e até mesmo como sujeito que “esteve” lá no início da história do PEJ. A essas
maneiras de ser PEJ, nomeio artes de fazer, à semelhança de Certeau (1994), a quem desde já
peço licença para me apropriar e reconstruir, no cotidiano carioca.
No caso do CREJA, a situação é marcada por algumas diferenças. Nascido para ser um
Centro de Referência em EJA, ou seja, uma escola especialmente pensada para jovens e
adultos, mudando a concepção de atendimento, tem como objetivo inicial da proposta
oferecer aos jovens e adultos, por meio da vivência e da construção de diferentes práticas,
oportunidades variadas de estudo, objetivando o aumento da escolaridade, o compromisso
com a educação permanente e o desenvolvimento de características essenciais ao perfil do
trabalhador do século XXI. A iniciativa, entretanto, não é única no espectro do país (cf.
capítulo 7, com a experiência de EJA na SEC/BA, sobre a pesquisa no Centro de Educação de
Adultos Magalhães Neto). Aberto nos três turnos, o CREJA atende a qualquer disponibilidade
de tempo de jovens e adultos, sejam trabalhadores ou não, com concepção pautada pelas
referências não apenas da escolarização, mas do aprender por toda a vida, como educação
104 A pesquisa, financiada pela FAPERJ, sob a coordenação geral de Osmar Fávero, na 2ª fase foi constituída por um estudo de caso. O relatório de campo, denominado Estudo de caso — Programa de Educação de Jovens e Adultos - PEJA/RJ, relata o trabalho realizado pela coordenadora de campo Graça Helena Souza e Aline Cristina de Lima Dantas e Greice Bolgar integrando a equipe de pesquisa. Contou com a assessoria de Eliane Ribeiro Andrade e Jane Paiva e o apoio de Ana Karina Brenner. O documento final da pesquisa, ainda em versão preliminar, intitula-se Juventude, escolarização e poder local 2ª fase: relatório do estudo de caso.
290
continuada. Como espaço público, reconstrói alguns parâmetros do atendimento, no que tange
a horários, agrupamentos menores, valendo-se da proposta e da experiência anterior do PEJ
como alternativa pedagógica. Biblioteca, sala de informática, cursos profissionalizantes ainda
dependem de implementação efetiva, embora constantes do projeto. No tocante à seleção dos
professores, foram escolhidos por meio de processo interno especial. Professores da rede, com
experiência e em sintonia com as propostas atuais de educação de jovens e adultos foram
convidados a participar da seleção, realizada por meio de análise curricular e entrevista. O
quadro docente deveria contar com professores de dedicação exclusiva ao CREJA, mas a
dupla regência105 impedia-os de estabelecer somente um vínculo.
Do ponto de vista físico, o CREJA abriga-se em um casarão colonial restaurado, um
belo espaço, no coração do S.A.A.R.A.106, área constituída por comércio varejista de
múltiplos produtos, de preços atraentes e muito público, que envolve uma população, em
maioria, tanto de comerciários, quanto de consumidores de menores níveis de escolaridade.
Em princípio, a proposta do CREJA animaria a luta política na área, mas novamente o
útero em que é criado alimenta-se de perspectivas políticas conservadoras, quanto aos modos
de gestão de um espaço como esse.
Muitas mudanças foram verificadas no PEJ ao longo dessa trajetória. Os 20 anos
passados serviram não apenas para afirmar uma dada concepção de direito, mas também para
atestar o esforço técnico permanente das equipes, em resistência à cultura política da
descontinuidade, da falta de compromisso com a história vivenciada, e com o ímpeto de
mudar, marcando supostamente a administração, com o novo, nem sempre novo, muito menos
necessário. Essa observação pode parecer ajustada para a idéia de que não se deva mudar,
para um modo conservador de assumir a política pública que não ousa experimentar a
mudança. Diferente do sentido que mudar precisa ter para melhor responder às dificuldades
de um projeto/programa; às necessidades do grupo que se deseja atender; às descobertas que o
olhar atento possa fazer sobre a realidade, a mudança no contexto político muitas vezes
carrega concepções pessoais que ignoram os compromissos públicos; põe-se acima das
ideologias e só é regida pelas escolhas individuais. O PEJ vai tecendo um percurso interno de
disputa política, que efetivamente se reflete não apenas no tipo de atenção que é dispensado
ao Programa, mas no tamanho da oferta que consegue assegurar. Destaco, entretanto, que
105 Professores de dupla regência são aqueles que têm mais de uma matrícula na rede pública, seja municipal, seja estadual. 106 SAARA é a sigla que designa a Sociedade de Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega.
291
mesmo nos melhores momentos, a oferta pública aos jovens sempre foi tímida para a
demanda potencial, no próprio recorte de 14 a 20 anos.
Uma das mudanças significativas por que passou o Projeto107, que desde 1994 era
como tal reconhecido, conforme relatou Benício, foi exatamente a perspectiva de assumir,
novamente, a condição de Programa, em 2005, com parecer do Conselho Municipal de
Educação. Esta não é uma mudança sem maiores significados, se se entender o sentido
atribuído a um e a outro. No primeiro caso, a concepção de um projeto é finita, tem tempo de
início e de fim, estabelece objetivos e metas a serem alcançados com determinadas condições
e metodologias. Não fincando raízes no sistema, sem, portanto, o estatuto legal, é alvo fácil de
desmonte, sempre que um dirigente o considere dispensável. Ademais, se a busca para a
garantia do direito se faz na esfera pública, essa fragilidade de ser e não-ser vulnerabiliza-o
como política, e enfraquece as possibilidades orçamentárias que lhe permitem expandir-se,
cumprindo-se, como direito público subjetivo e dever do Estado. Se programa, não se
assujeita a tempos restritos, mas absorve o estatuto de rubrica orçamentária, incorporando-se
ao sistema de ensino, com todas as prerrogativas dos demais existentes: concurso para
professores, planejamento estratégico — o que assegura a expansão e a oferta às demandas
potenciais, segundo estudos de viabilidade regional —, projetos de formação continuada
integrantes da política orgânica da secretaria de educação, quadros de pessoal em disputa com
os demais programas, enfim, responde pela política da área, qualquer que seja a concepção
que venha a assumir.
Outra mudança percebida, fruto das interações dos professores com a metodologia, diz
respeito à exigência de revisão dos princípios norteadores de aceleração e progressão, nem
sempre sustentados pelas práticas. Pensar o que significa acelerar, em espaços quase únicos
de proximidade com objetos escolares de conhecimento, com fontes (mesmo precárias), com
tecnologias e equipamentos de acesso, bibliotecas e livros, pode significar uma contradição,
porque mesmo admitindo-se a voracidade da vida cotidiana, e do mundo do trabalho,
principalmente exigente de titulações, o envolvimento dos alunos com processos de estudo e
de saber antes não usufruídos, quando bem constituídos, não requer velocidade, mas
aprofundamentos, o que exige tempo. A escassez de tempo que nega a experiência, no dizer
de Larrosa (2002), é perceptível pelos que conquistam tardiamente o direito a estudar, e nem
sempre é desejável sua abreviação, mas sim seu alongamento. No caso da progressão, o risco
107 Devo assinalar que o PEJ é originalmente Programa de Educação Juvenil, passando a Projeto quase dez anos depois de implantado, e voltando, em 2005, a se assumir como Programa.
292
a correr é quando esta não se faz porque a contingência dos aprendizados do sujeito exige,
mas porque um avaliador externo, instrumentos mecânicos, assim decidem, invalidando o
fundamento dos ritmos de aprendizagem, dos tempos de conhecer e de sedimentar o
conhecimento. Quando então tanto a aceleração, quanto a progressão são frutos de discursos
exteriores, preocupados com os egressos, do ponto de vista numérico, na não retenção apenas
para responder a novas demandas de vagas porque não se ampliam as ofertas, a concepção
passa a ser catastrófica, porque mascara um percurso de aprendizagem, em nome de
resultados breves.
Uma última mudança a ser assinalada diz respeito à abolição integral do vínculo
exclusivo com a idéia original de público jovem, para se ampliar, nos termos constitucionais,
com o atraso de 17 anos, a toda a população jovem e adulta não-escolarizada, para a qual o
Estado é devedor da oferta do serviço referente ao direito à educação. Quando passa a ser
reconhecido como Programa de Educação de Jovens e Adultos – PEJA, e não mais PEJ,
inaugura-se um novo tempo de reconhecimento de direito, sem subterfúgios, à cidadania. Não
se fazem mais “escolhas de Sofia”108, mas garante-se a homens e mulheres, a adolescentes e
jovens, a adultos, a moços e velhos, a trabalhadores e trabalhadoras, a empregados e
desempregados de qualquer idade acima de 15 anos, o mesmo direito, livre da crueldade das
escolhas, das focalizações que envergonham as políticas públicas. Mesmo sabendo-se que
resultante das tensões provocadas ao sistema pela luta de adultos e idosos e pela resistência de
uma equipe técnica pertinaz, e não de uma ideologia política comprometida com a educação
popular, como a que originou o Programa, é preciso comemorar, porque invoca a disposição
e a esperança dos educadores, de que vale a pena lutar.
77..44..11 AArrtteess ddee ffaazzeerr oo ccuurrrrííccuulloo:: rreevviissããoo ddooss pprriinnccííppiiooss ppeeddaaggóóggiiccooss
A discussão sobre o que significava para os professores currículo gerou idéias bastante
diversas, mas necessárias para a compreensão das práticas que vêm sendo realizadas nos
CIEPs. Uma professora destacou ser este traduzido pela forma como o grupo de professoras
da escola o compreende e trabalha, aproximando-se, assim, da concepção de que o currículo
real, acontecido, emerge das práticas, e nenhuma formulação a priori dá conta de revelar o
que é, efetivamente, fora da prática escolar/social. Este modo de pensar coincide com autores
108 Esta a metáfora proveniente do nome de um filme sobre a II Guerra Mundial, quando a uma mãe, no campo de concentração nazista, é dado o direito de “escolher” qual dos seus dois filhos salvaria, o que significaria entregar um deles à morte.
293
que vêm desenvolvendo estudos e denominando aos currículos praticados no cotidiano de
emergentes, concepção que também orienta meus estudos e minhas práticas de formação
inicial e continuada. Oliveira (2003, p. 147; 2004a, p. 9; 2004b, p. 110), tratando da questão
da criação cotidiana que se faz na prática, afirma que esta criação envolve todos os saberes e
processos interativos do trabalho pedagógico realizado por alunos e professores — os
praticantes, como tática emancipatória, tecida em todos os momentos das escolas/classes e
nos espaços “para fora das práticas escolares, incorporando a idéia de que a vida cotidiana
tem seus próprios currículos, expressos nos processos sociais de aprendizagem que permeiam
todo o nosso estar no mundo e que nos constituem”. Diz a professora:
A gente precisa ressaltar o que seja o currículo, porque quando a gente fala em currículo, currículo às vezes as pessoas entendem como conteúdo programático. Na realidade, currículo é uma série de questões, inclusive aquilo que ele traz como conhecimento. E esse conhecimento é trabalhado no PEJA de diversas maneiras. A gente até alia isso à questão do conteúdo programático. Então toda essa diversidade que ele traz de conhecimento, ele é trabalhado no PEJA com questões da atualidade, questões diversas que eles estão passando, questões de higiene, doenças sexualmente transmissíveis que a gente vem trabalhando com ele.
E outra participante, buscando explicitar sua prática curricular, narra uma atividade
desenvolvida em classe, em que busca compreender os modos como inter-relaciona campos
de conhecimento — os componentes curriculares —, “entrando na área do outro”, como diz,
ao se referir à queda das fronteiras disciplinares para realizar uma ação pedagógica do
interesse de seus alunos, porque debruçada sobre a experiência de cada um deles:
[...] Olha, há pouco tempo mesmo, eu usei o coitado do Papa para falar de tanta coisa, da AIDS, disso, daquilo. E muita coisa não tem nada a ver com a minha área. A gente acaba, um, entrando na área do outro, e dando ao aluno uma vivência. Então, eu acho que quando entra aqui esse diamante, à medida que o tempo vai passando, ele vai entrando em contato com coisas da atualidade, coisas que dizem alguma coisa pra ele, ele vai crescendo. Tem alguns alunos que dizem: “ah, eu entrei aqui, saí e não aprendi nada”. Aí eu perguntei: “mas o que você gostaria de aprender? Quem foi Pedro Álvares Cabral? Eu te dou um livro pra você ler em casa, tá?” Aí eles riem. O que interessa é eles pegarem um jornal e ler o jornal e saberem o que é aquilo. Por exemplo, eu gosto muito de assuntos atuais e eu dou história e geografia109 tudo misturado. Às vezes eles falam: “hoje é aula de quê?” Aí eu digo: “não sei, no final a gente vê”. E aí chega no final da aula eu pergunto: “Vocês acham que hoje a aula foi de quê?” “Ah! De Geografia”. Então coloca aí. Então eu uso muito texto, muito jornal, muita revista, muita atualidade. E escuto, a maior barbaridade que ele tem pra dizer, eu escuto. Eu nunca digo que ele está errado. O interessante é que quando a gente dá
109 No PEJA, História e Geografia são trabalhadas juntas, integradas como componentes curriculares.
294
determinadas aulas sobre trabalho escravo, trabalho infantil, eles são testemunhas da coisa, eles contam. Então eles trazem a experiência deles e isso é interessantíssimo.
A realidade dos alunos que participam do atual PEJA exige repensar continuamente as
perspectivas de aceleração e progressão, para atender a condições de tempo de estudo para
jovens e adultos trabalhadores, sem, contudo, permitir que estas passem a significar o
comprometimento com a produção de novas negações e desigualdades. Muitas críticas foram
feitas ao regime de aceleração no CIEP Graciliano Ramos, evidenciando contradições entre a
concepção e a forma como vem sendo apreendido. Professores relataram o mal-estar pelo fato
de serem pressionados a não reterem alunos de um bloco para outro, embora admitissem que
dependendo do aluno, se com experiências anteriores de passagem pela escola, ou não, estas
podem ser decisivas para seu seguimento no Programa, assim como no desenvolvimento do
trabalho pedagógico. Os professores adotam, no entanto, atitudes francamente educativas,
quando aconselham a permanência dos alunos por mais um tempo em uma unidade/bloco, o
que não reconhecem como semelhante à lógica da retenção na série, ou da exclusão, pela
reprovação. Nem sempre essa atitude é suficiente, e a tensão pode obrigar a fazê-lo seguir, o
que é lamentado por muitos, pela oportunidade perdida de possibilitar a sedimentação dos
conhecimentos. Um tema, sem dúvida nenhuma, bastante adequado para a formação
continuada.
Neste CIEP, o currículo é assumido de variadas formas, considerando os saberes dos
alunos, experiências e identidades culturais. Desse modo, palestras, feijoadas do trabalhador,
ceia de Natal são integrantes dessa concepção, que tem, na fala de uma participante feminina
ao grupo focal, a seguinte explicação: “[...] a gente está sempre apostando no sucesso do
aluno, porque a gente está sempre trocando e buscando alternativas. A coordenação junto com
a gente [...]. E a gente tenta sempre fazer o melhor e acho que temos conseguido”.
No CIEP Patrice Lumumba os professores assumem, diante dos princípios de
progressão do Programa, que a maior parte dos alunos do PEJA I blocos I e II tem,
efetivamente, maior necessidade de tempo do que os dois anos formalmente previstos, já
imputando esse fato à presença de pessoas de mais idade, muitos migrantes nordestinos, que
nunca passaram pela escola. Ao contrário do que se poderia supor, essa “maior” dificuldade
não faz com que se evadam.
Uma professora, discutindo a organização do PEJA em blocos/unidades de
progressão, atestava os problemas referentes à distância entre concepções e práticas, na
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instituição de um modelo superador da lógica da seriação, o que talvez pusesse o modelo no
centro da questão, ofuscando o sujeito e seus saberes, suas totalidades, possíveis interações.
Sua crítica parece estar presa ao fato de verificar, na prática, a convivência de situações que
em nada respeitavam as segmentações feitas por níveis de ensino, blocos/unidades de
progressão, porque seguiam a dinâmica da realidade.
Quando eu estava no nível central se falava que o PEJ era asseriado, que ele não tinha série, você juntava... não tinha terminalidade, não tinha um certificado. Aí quando eu vim trabalhar no PEJ, já tinha mudado isso, hoje você tem o PEJA I bloco I, bloco II, mas quando você pega a turma... eu sou PEJ I, bloco II, você tem um leque de situações ali, então a gente tem que ter... eu acho que a gente tem que trabalhar com o diagnóstico daquela turma, daquele grupo e focar diante daquele grupo o que você faz.
Ainda em relação ao currículo do PEJA, muitas outras questões surgem nos grupos
focais realizados nos CIEPs. Como exemplo, posso citar as diferenças de interesse dos adultos
e dos mais jovens, no aprendizado de língua estrangeira, associando aos mais jovens os gostos
culturais da música e do ritmo do hip hop, enquanto aos adultos era atribuída maior
curiosidade, que estimulava a atuação docente, em busca de outras dimensões de trabalho para
a língua estrangeira:
E dentro desse trabalho eu vou colocando as questões culturais, questionar a presença da língua inglesa, das vestimentas, das marcas. Então tem todo um questionamento, não é só a questão da informação da língua em si, mas questionar a cultura, a influência.
Outro exemplo leva ao significado da educação física no currículo do PEJA, pela não-
obrigatoriedade na escola noturna de jovens e adultos, demonstrando a mudança de
concepção, e conseqüentemente, de oferta em relação à área, em comparação à gênese do
Programa, como lembrou Peixoto. Diz uma professora:
Eu sei que de repente não faz parte da política, mas eu sinto essa necessidade. Até porque a gente tem adolescente em plena energia, a gente tem idoso que também não morreu, está vivo e quer fazer alguma atividade. E talvez a gente não tenha habilidade de trabalhar com essas pessoas, até porque não temos formação acadêmica pra isso. Eu acho que seria muito gratificante pra eles, trabalhar a questão do corpo. É necessário que tenha uma pessoa com essa habilidade pra estar fazendo uma coisa correta. Porque a gente até trabalhou essa questão do corpo, as nossas senhoras dançaram, fizeram... eu acho que deveria ter esse espaço da educação física.
Um aspecto destacado na mudança da organização das áreas de conhecimento do
PEJA diz respeito à organização dos dias/aula, abolindo em definitivo as hora/aula de 45min,
forma tradicional como se distribui a carga horária curricular. Os professores a consideram
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uma das mais bem-sucedidas inovações introduzidas no Programa, que diferencia o PEJA de
outras escolas de jovens e adultos, conferindo-lhe um referencial de qualidade no
atendimento:
Em princípio a gente achava que ficava meio cansativo, mas agora a gente acha que esse modelo é o modelo.
[...] o PEJ é uma estrutura que eu acho que a rede deveria pensar em possibilidades de absorver isso, porque eu tenho essa experiência em outra escola, esse esquema de tempos. A dificuldade dos professores se encontrarem, de pensarem enquanto parceiros da mesma área de conhecimento, aqui a noite já é uma experiência superada. Superada no sentido de que, aqui, todos os dias os professores se encontram, trocam informações a respeito de suas turmas, dos seus alunos. E sem dúvida que o aproveitamento é bem melhor, pois os alunos passam a noite toda com aquele professor e discutindo aqueles temas. E dá para os alunos tirarem dúvidas e se posicionarem mais.
De modo geral, muitos são os professores dos CIEPs que concordam com a idéia de
que um dia (4h) com cada turma faz a diferença no Programa, por permitir um tempo para o
desenvolvimento do pensamento que, se amputado, deixa pelo meio a construção lógica que o
sujeito faz, no movimento do pensar.
Quando vai chegando lá pelo meio da noite é que realmente a coisa começa a engrenar, até eles se integrarem com aquele assunto que está sendo discutido, com aquele assunto que ele está estudando, ele precisa desse tempo mais longo. E se fosse menos, esse tempo, ele ia cortar ali e já não ia finalizar o raciocínio. Ele tem necessidade desse tempo.
A observação perspicaz de uma diretora, sobre a organização dos horários com quatro
horas presenciais, indica que outros benefícios são auferidos com esse modelo, como, por
exemplo, o fato de que os mais jovens passam a ter uma convivência maior com os demais
sujeitos da mesma turma e com seus professores, o que contribuía para o desenvolvimento de
um trabalho mais significativo em relação às atitudes dos alunos, não apenas quanto às
diferentes áreas de conhecimento, mas pela possibilidade de aproximar os mais jovens a seus
pares geracionais, como a outros sujeitos de diversas gerações, com quem passam a conviver,
conhecer e respeitar, cultivando valores muitas vezes abandonados.
Contraditoriamente, no CREJA, a organização curricular estabelecida em um
funcionamento de 7h às 22h, atende os alunos em seis turnos, de duas horas cada um. O
modelo reduzido, no entanto, diferentemente da avaliação dos professores nos CIEPs, é
considerado satisfatório pela coordenadora pedagógica. A experiência de trabalho até aqui
desenvolvida por mim faz suspeitar que esta carga horária reduzida para o atendimento não
deva estar favorecendo os processos de aprendizagem, segundo a concepção que motivou a
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mudança, ou, nem tampouco, possibilitando a permanência — e a freqüência — dos alunos a
espaços ainda não operantes, como o da sala de leitura, para consultas e empréstimos; para
atividades não-presenciais, incentivando o acesso a bens culturais da cidade. Cada sala possui,
inicialmente, dez alunos, para atendimento às necessidades dos alunos trabalhadores. No PEJ
II, as salas para a realização das aulas são fixas por componente curricular. Existe salas-
ambiente de Língua Portuguesa, de Matemática, de Ciências, de História/Geografia e de
Língua Estrangeira. Para o PEJ I é reservada uma sala especial. Apesar de todos esses
espaços, a alegação é de que os alunos não devem se deter muito tempo no CREJA, sob o
risco de outros não poderem, então, ser atendidos. Com isso, acesso e disponibilidade ficam
comprometidos, se entendidos no sentido como Kalman (2004, p. 73), o faz, distinguindo “a
distribuição dos materiais próprios da língua escrita dos processos sociais subjacentes à sua
apropriação, disseminação e uso”. Diz a autora:
Disponibilidade denota a presença física dos materiais impressos, a infra-estrutura para a sua distribuição (biblioteca, pontos de venda de livros, revistas, jornais, serviços de correios etc.), enquanto que o acesso refere-se às oportunidades de participar de eventos da língua escrita (situações em que o sujeito se posiciona frente a outros leitores e escritores) e às oportunidades para aprender a ler e a escrever.
Se exatamente a questão mais importante a ser enfrentada pelos jovens e adultos não-
escolarizados se põe no domínio (no sentido de Ardoino, cf. capítulo sobre metodologia da
pesquisa) do conhecimento da cultura escrita, manter a parcialização da participação dos
alunos nesse espaço diferenciado de referência para a educação de jovens e adultos pode
comprometer severamente os resultados, e as finalidades as quais deve cumprir.
Kalman (2004, p. 74) ainda assume que:
[...] a presença física de materiais impressos não é suficiente para divulgar a cultura escrita. Da mesma forma, se uma parte da escola é um local privilegiado para acessar a leitura e a escrita, ela não é a única. Por isso recomenda-se o reconhecimento de outros contextos, nos quais se emprega a leitura e a escrita em situações comunicativas como espaços para aprender a ler e a escrever: acessa-se a língua escrita em situações da educação formal, mas também em situações de uso cotidiano.
Considerando-se o fato de que o CREJA é um centro de referência, e não uma escola
regular, e que seus objetivos visam a oferecer uma alternativa educacional adequada a seu
público, a presença da mediação de professores nesses espaços, cujo acesso não se faz apenas
pela sua existência física/disponibilidade é notadamente decisiva para que os objetivos sejam
cumpridos.
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Na apreensão do currículo que emerge desses CIEPs, uma característica experiência
no Graciliano Ramos merece destaque: o lugar assumido pelas atividades culturais que
acontecem em vários momentos durante o ano letivo, oferecendo às camadas populares,
vitimizadas por tantas interdições, oportunidades e vivências culturais.
Quando a gente monta a nossa proposta para o ano letivo, nós tentamos oportunizar aos alunos experiências que a gente considera importantes, e pela realidade de vida e de moradia, eles normalmente não têm acesso.
No CIEP Patrice Lumumba a situação é semelhante: como atividade curricular,
passeios e acesso a bens culturais histórica e socialmente negados são propiciados aos alunos.
A riqueza desses momentos, não apenas pelos roteiros escolhidos, mas pelas vivências que
produzem individual e coletivamente, tanto quando professores e alunos se preparam para a
atividade, quanto ao se movimentarem pela cidade é reconhecida por todos, pelos muitos
aprendizados e pelo fortalecimento da auto-estima e da capacidade de exercer a autonomia.
A questão do horário de entrada noturno continua sendo um ponto de conflito na maior
parte das redes de ensino, e não é diferente no PEJA. Nos CIEPs pesquisados não se observou
problemas nesse aspecto. No entanto, as posturas legais adotadas tanto ignoram a inadequação
do horário de 18h, incompatível com as habituais saídas de trabalhos para os que estão
empregados, mantendo-o, independente do dado da realidade; quanto impedem o acesso à
escola, trancando portões e negando aos alunos a possibilidade de participação, em um franco
movimento de exclusão. Ambas as atitudes desrespeitam o esforço dos que, a despeito de suas
condições precarizadas para estar na escola, gastam dinheiro de passagem, deslocam-se,
chegam, para serem tratados como irresponsáveis e como não-cidadãos, pelas autoridades que
deveriam garantir seu direito a aprender, nessa nova volta à escola. A iniciativa do CIEP
Graciliano Ramos, de construir uma saída honrosa para adequar o horário da rede, imutável,
inflexível, à realidade dos alunos deve ser louvada, porque caminha na contramão das práticas
correntes, e legitima, na rede do poder, alternativa considerada, por tantos, como impensável,
ou improvável.
A rigidez de horários no CREJA — e horários curtos — contrapõe-se, ainda, à
preocupação original do Programa, quando se previa o jantar de 18h às 19h, na chegada aos
CIEPs, antes da ida à sala de aula. Em realidade, no Centro só tem sido oferecida a chamada
merenda “seca”. A alternativa do jantar antes da aula é adotada pelo CIEP Graciliano Ramos
— até mesmo como forma de, compreendendo a realidade de jovens trabalhadores, afiançar-
lhes não apenas o direito à alimentação, depois de jornadas desgastantes de trabalho, como
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também a certeza de que processos de aprendizagem implicam consideração e respeito às
necessidades fisiológicas, antes de iniciar atividades de satisfação cognitiva e de atendimento
simbólico a necessidades humanizadoras, promovidas pela educação.
77..44..22 AArrtteess ddee ffaazzeerr aa pprreesseennççaa ddooss aalluunnooss nnaa eessccoollaa:: eevvaaddeemm--ssee oouu ssããoo eexxppuullssooss??
A quantidade crescente de alunos nas turmas tem sido identificada como uma questão
a enfrentar, face ao fato que, em sua gênese, o número máximo era estimado em 15. Muitas
turmas contam hoje com 35 alunos, sempre chegantes, pela forte migração do diurno, muitas
vezes patrocinada pela própria escola, quando os alunos são adolescentes, apresentam
comportamentos considerados “rebeldes”, ou em franca “defasagem idade-série”. Assim se
posiciona uma professora: “o PEJA não é para mandar o aluno do diurno para a noite, o aluno
que dá problema no diurno para a noite. Mas ficou assim, o aluno deu problema manda para o
PEJA, porque eles vão ficar...”
Em todos os níveis e modalidades do sistema a situação dos quantitativos nas turmas
aparece, não sendo exclusividade da educação de jovens e adultos. No caso dessa modalidade,
ao contrário, o que freqüentemente se tem é uma matrícula excessiva de alunos por turma,
pela aposta que se faz na evasão, o que, em síntese, “corrigiria” o tamanho da turma. Uma
espécie de correção “natural”, que na verdade “naturaliza” a sistemática expulsão dos alunos
da escola (como ensinou Paulo Freire), que muitas vezes não ficam pela qualidade da oferta a
eles destinada, encoberta pela ausência de avaliação e crítica de que sofre, de modo geral, a
escola brasileira. No caso do PEJA, a existência — e permanência — de 35 alunos em cada
turma deveria ser louvável, porque certamente deve indicar, do ponto de vista da qualidade da
escola, que alguma coisa diferente ocorre com o projeto pedagógico, nas relações entre os
sujeitos, na forma como se organiza a oferta pública de atendimento. O que não significa
aceitar números elevados, mas observar que, se com maior número é possível ter rendimento
satisfatório, com menor número de alunos por turma seguramente deverá garantir resultados
ainda mais satisfatórios, pelo conjunto de práticas que a escola reúne. Inútil pensar que apenas
o número de alunos menor possa mudar a qualidade da escola, sem que outras intervenções
pedagógicas, intencionais e conscientes venham a ocorrer.
No CIEP Patrice Lumumba, o diretor atribui a crescente procura ao Programa, com
freqüência elevada — muito menor em momentos passados quando não havia o
reconhecimento legal — à autorização conquistada no Conselho Municipal de Educação para
expedir certificados. A comprovação da terminalidade de um nível de ensino não é fator
300
menor para os alunos: é a prova legal e legítima, diante da sociedade, de que a escolaridade
existe, para qualquer circunstância em que devam demonstrá-la.
Segundo o diretor do mesmo CIEP, a freqüência no geral é oscilante, em decorrência
de muitos fatores sociais e locais, o que faz com que os alunos tanto saiam quanto entrem,
incansavelmente.
Muitos casos são relatados sobre a presença de muito jovens, alunos sabidamente da
escola regular, que procuram o PEJA. Alguns, de 14 e 15 anos, vieram acompanhados de um
responsável, que afirmava estar o adolescente com proposta de trabalho, precisando, por isso
mesmo, estudar à noite. Mais tarde, a verdadeira história aflorava: analisado o desempenho e
o comportamento do aluno no histórico escolar, descobria-se não ser o alegado trabalho o
motivo da busca da escola noturna, mas sua atitude, apresentando “características
problemáticas”, com ameaça de expulsão da escola regular.
A presença forte da juventude no PEJA é também reforçada pela demanda que chega
por meio da Coordenadoria Regional de Educação - CRE, que aceita o pedido das escolas sob
sua jurisdição para matrículas de alunos ainda em idade de ensino fundamental obrigatório.
Ainda vivemos essa situação. A gente sinaliza sempre isso para a CRE, a gente pede uma ajuda nesse sentido, que oriente as escolas, pois o PEJA não tem essa finalidade de depósito do aluno do diurno. “Vamos lá botar no PEJ que o PEJ vai dar conta”. Não é essa a proposta.
Alguns jovens, com idade acima dos 17 anos, em maioria, e os adultos, em grupos
focais, reclamaram das dificuldades relacionadas ao trabalho: relações tensas com os patrões
para manter horários de rotina no final do expediente, o que no caso de empregadas
domésticas é ainda mais grave, por conta do serviço do jantar; distâncias entre o trabalho e a
escola; questões relacionadas à família e à comunidade onde moram.
Dificuldades de aprendizagem nas diferentes áreas e no âmbito da leitura e da escrita
também influenciam na freqüência e até mesmo na desistência de alguns alunos, afirmaram
professores.
Outras causas constatadas, no entanto, subjazem à desistência: conflitos familiares
vividos por mulheres junto aos companheiros, que negam a elas o direito de freqüentar a
escola; oferta de trabalhos temporários, em épocas de maior movimento no comércio, como
Natal, quando os alunos trabalhadores fazem horas extras, buscando extrair o máximo do
período. Muitos alunos vêm à escola avisar seus professores, que buscam maneiras de ajudar,
para que não percam o curso por causa de períodos curtos, específicos e pontuais.
301
À relação com os professores, no entanto, é atribuído um forte grau para a freqüência
ou para a desistência dos alunos, o que significa dizer que subjetividades em jogo atuam para
reforçar o envolvimento com a escola e com a aprendizagem, ou para distanciar, uma vez
mais os alunos dessa renovada oportunidade. Também possuem grau de importância os
interesses despertados por determinadas áreas do conhecimento.
77..44..33 AArrtteess ddee ffaazzeerr aa ccoonnttiinnuuiiddaaddee ddee eessttuuddooss
No CIEP Graciliano Ramos, os professores referem-se aos 19 anos passados, como
tempos de impasses e lutas, em nome do Programa. A ausência de certificação aos alunos
exigia “malabarismos” da direção. Quando concluíam, uma declaração os acompanhava a
escolas estaduais, muitas vezes em conjunto com os próprios professores e coordenadores,
que os acompanhavam. A continuidade de estudos, principalmente tratando-se de jovens, era
desejável pela maioria, diferentemente do que se observa nos programas de alfabetização com
idosos, que querem aprender a ler e a escrever, mas a continuidade na escola regular ou
supletiva passa a ser um peso, que temem, freqüentemente. Como as escolas estaduais da
vizinhança já conheciam os trabalhos do PEJ no Graciliano Ramos, costumavam aceitar os
alunos, o que não ocorria quando estes se mudavam para outros locais, desconhecedores da
atuação do CIEP. Depois de ser implantado o PEJ II, em 1998, nos próprios CIEPs e demais
escolas da rede municipal, não apenas a escolaridade de ensino fundamental passou a ser
garantida, como direito, mas o próprio trabalho verificou melhores resultados, pela
continuidade pedagógica possível, especialmente no que tange à leitura e a escrita, objetivos
imprescindíveis para o trabalho do PEJ. Uma professora participante do grupo focal assim
expressou o que cabe, ainda, ao CIEP fazer pelos alunos:
Então a gente tem ainda muito pra dar. Então a gente não pode colocar a cabeça pra baixo, porque a escola pode fazer muito. E a escola faz isso. Nosso papel hoje, aqui, principalmente na educação de jovens e adultos é... a gente procura ainda fazer o melhor pra eles.
O desafio atual é conseguir garantir a continuidade no ensino médio para jovens e
adultos principalmente, que buscam, mais do que seguir, a possibilidade de fazê-lo em uma
escola na modalidade EJA.
77..44..44 AArrtteess ddee ffaazzeerr aa ffoorrmmaaççããoo ccoonnttiinnuuaaddaa
A formação continuada dos professores do PEJA é realizada nos centros de estudos.
Estes são espaços semanais reservados para que se estreite um maior diálogo entre as áreas,
302
desafiando-os a trabalhar coletivamente, em nome de um projeto pedagógico comum. No
início, somente professores do PEJ II, ou seja, do segundo segmento do ensino fundamental,
tinha garantido o horário para os centros de estudos. Na atualidade, ambos conquistaram esse
direito, e, quinzenalmente, PEJA I e II se encontram.
Além desses espaços semanais de formação continuada, há outras ofertas com projetos
de maior duração, articulados com recursos do FNDE110 pela coordenação central. Entretanto,
os cursos organizados muitas vezes impõem aos professores o comparecimento fora dos
horários de trabalho, ou até mesmo fora de dias úteis. Há defesa nas escolas de que os
professores possam se afastar temporariamente do trabalho para se especializar, com garantia
de substitutos durante o período de formação continuada. Mas são acordes em afirmar que
houve tempos mais difíceis nessa questão. Embora um pilar de sustentação do PEJ, no
nascedouro, tenha sido posto na formação continuada docente, observei como desde os três
primeiros anos a pesquisa de Henriques (1988) revelava grandes problemas quanto à
exeqüibilidade da estrutura do Programa. Uma professora, jocosamente brinca:
Uns dez anos atrás eu brincava, porque eu dizia que ia pedir uma indenização ao Município por emburrecimento, porque eu vou lhe contar, você ficar... porque eu estou há 27 anos na escola pública sem esse investimento na formação continuada do professor, eu acho isso um absurdo.
No Graciliano, o reconhecimento da formação continuada para o sucesso das
experiências no PEJA é inegável e nenhum professor assumiu poder prescindir de espaços de
formação. Do mesmo modo, no CIEP Patrice Lumumba os centros de estudos são,
fundamentalmente, espaço e tempo de trocas entre os professores, fortalecendo a todos para a
superação de difíceis situações vividas na escola. Gomes mostrava, trazendo a história dos
primórdios do PEJ, a importância da busca de apoio mútuo, marcante nos tempos em que
atuou, fazendo com que descobrissem, intuitivamente, saídas — novamente as táticas de
Certeau (1994) — para fazer frente às questões da vida cotidiana em áreas pobres, noturnas,
freqüentadas por novos sujeitos na escola pública. Observo que essa função do encontro
pedagógico entre professores não mudou, embora se tenham mudado as formas como esses
encontros se fazem: de informais, a formalizados, com horários predeterminados, sob a
coordenação de um professor.
110 Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação, órgão do MEC que financia ações específicas em apoio a estados e municípios, com verbas suplementares e complementares às vinculadas.
303
A perspectiva de continuidade entre os PEJAs I e II também está fincada na
articulação feita pela formação continuada, entre os segmentos. A recente conquista desse
direito à formação dos professores do PEJA I, participando quinzenalmente dos centros de
estudos, indica a crescente compreensão do valor atribuído à formação, como propiciadora de
diálogo entre professores. Reconhecidos como espaços e tempos de discussão, de troca de
experiências, portanto essenciais à vida docente, sustenta as difíceis problemáticas que
atravessam a escola, como é o caso da violência, ligada ao tráfico de drogas. O movimento
entre os jovens e o tráfico, de mão dupla, tanto incorporou jovens do tráfico à matrícula
escolar, quanto aquele absorveu jovens da escola. A presença de novas lógicas de pensar o
mundo e as práticas como se traduz, mudou as relações na escola, entre alunos, entre
professores, e entre alunos e professores. O movimento de resposta institucional, repensando
o projeto pedagógico, veio imediatamente sob a forma de centros de estudos, espaço
legitimado de PEJA I e II para produzir conhecimentos sobre as questões do cotidiano e
reinventar a vida na escola:
Então a gente começou a pensar, a refletir sobre isso, mas por que a gente teve essa oportunidade? Porque pudemos nos reunir, se não nunca a gente ia poder pensar junto. Os nossos centros de estudos é (sic) às quartas, a direção passou pra sexta pra gente poder sentar com os professores do PEJA II. E aí já começamos a pensar como é que é esta escola agora, o que está acontecendo e o que a gente pode fazer nesse sentido. Então eu acho que isso é uma coisa legal, quando a gente pode sentar juntos, os dois, as nossas fortalezas, todo o nosso conhecimento em determinadas áreas e poder trabalhar com aquele grupo de alunos.
77..44..55 AArrtteess ddee ffaazzeerr aa ppaarrttiicciippaaççããoo ddee oouuttrraass ffaaiixxaass eettáárriiaass
Segundo Gomes, desde o início do Programa havia adultos e pessoas de mais idade no
Programa, todos “clandestinos”, como ela se refere. A juvenilização no PEJ, no entanto, não
apenas era um dado previsível, pelo corte etário que a proposta trazia, mas também um
aspecto preocupante, considerando-se que a tão pouca idade correspondia uma recém-
passagem pela escola regular, sem que se tivessem cumprido seus objetivos: escolarizar em
nível de ensino fundamental.
A produção do fracasso escolar em escala crescente nas escolas da rede pública
municipal, rede composta por 1054 escolas, constituindo a maior de toda a América Latina,
adicionada ao trabalho precoce dos jovens, competindo este com a escola — e trabalho, em
sua maioria, na informalidade; à gravidez na adolescência; e a situações decorrentes da
violência passaram a compor um quadro desafiador para a escola de EJA, pelo fato de a
304
escola regular de ensino fundamental obnubilar a própria visão que não quer ver a realidade
dentro de si mesma, apontando-a como se estivesse de fora, e não a afetasse. Para não ver a
realidade que produz e com que convive, nega-a, “empurrando” os “desviantes” para o
noturno, como reduto da “marginalidade”. As imagens são fortes, mas provêm de pesquisas
da UNESCO feitas com gestores em muitas escolas no Rio de Janeiro, que se referem dessa
forma à educação de jovens e adultos e a seu público.
Professores no CIEP Patrice Lumumba apontam dificuldades para lidar com os muito
jovens que chegam, não só pela pouca idade, mas pela necessidade de integrá-los com outras
faixas etárias. Percebem que os adultos vêm determinados a estudar, alegando não terem mais
tempo a perder, e que a presença de jovens sem o mesmo compromisso, com comportamentos
que consideram inadequados, tem até ocasionado a desistência de alguns desses de mais
idade, por não suportarem um cotidiano escolar marcado por conflitos, distante do ambiente
que sonhavam encontrar na escola. Também para os jovens a tensão é perceptível, e muitas
vezes não resistem a ela, não somente pela pressão que recebem de parte dos adultos, dos
idosos em relação aos comportamentos adotados, como também porque, tendo introjetado um
modelo de escola de onde vieram faz pouco, resistem e reagem a outros modos de trabalhar.
Apesar de todas essas questões, há uma orientação da coordenação central no sentido
de que as relações geracionais devem ser preservadas, sem construir guetos etários que
apartem os alunos segundo as idades. Muitos professores e gestores concordam com a
orientação, adotando-a não como determinação, mas por concordância, haja vista a
sinalização que fazem quanto à riqueza dessa experiência intergeracional — condição
fortemente educativa no estabelecimento de relações diversas no que tange a valores, ao
exercício da tolerância, a formas de ver o mundo, como passado ou futuro. Entrementes,
equilibram o número de jovens em cada sala de aula, com as demais idades.
Se as relações são tensas entre as diferentes faixas etárias, entretanto, para os
professores há positividades e apostas.
[...] Às vezes é complicada. Mas ao mesmo tempo é enriquecedora, muito enriquecedora, porque às vezes quando os mais velhos ficam impacientes — porque às vezes eles são muito chatos, com essa impaciência e tudo... Mas na medida em que você começa a dar valor à paciência, o exemplo deles para os outros, aí eles começam a se empoderar e então fazem um papel bem interessante.
Mas a presença das problemáticas atuais da juventude não se oculta quando se escava
mais fundo: os riscos pelos quais os jovens vêm passando, principalmente nas comunidades
305
pobres, em relação ao tráfico e toda a sedução que o ganho fácil, o desejo satisfeito vêm
trazendo para os que não resistem aos seus apelos, que aderem às formas como se impregna
em corações e mentes. A convivência tão próxima com esses jovens não está mais separada
pelos muros da escola, mas se faz diretamente, porque muitos deles são alunos desses
professores, romperam os muros e vieram estudar. Uma naturalização da atividade como
alternativa laboral, ou uma tentativa de manter-se no presente, para poder, com o estudo,
pensar o futuro?
Agora, uma das angústias... pelo menos minha, nossas com as coisas que a gente tem discutido é porque cada dia que morre um ali no tráfico foi um aluno nosso. Isso tem acontecido e isso tem trazido muita angústia, porque que perspectiva tem essa juventude? Por exemplo, o Rodrigo entrou pra minha turma com... ele estava cumprindo uma medida socioeducativa e... e ele é desse jeito. Ele levanta, sai, toda hora ele toma lá uma coisa doce e tal. E tinha que fazer um relatório pro juiz dele. E a minha angústia era assim: o que eu vou escrever nesse relatório que não derrube... mas também eu não podia dizer que ele era um anjo. Então foi muito difícil escrever o relatório. Então eu coloquei uma frase assim: o aluno está se esforçando. Era o que ele estava fazendo realmente.
Mas assim, os alunos que são envolvidos no tráfico, esses alunos que são mais desvalorizados, o fato de estarem... a necessidade de falar sobre isso, de dizer, por exemplo, ele não precisava me dizer que ele estava cumprindo medida. A primeira coisa que ele falou foi isso. E isso traz um status sim, eu sou tão desconhecido e tão não-reconhecido que eu posso ser reconhecido porque eu estou no tráfico, porque eu já fui preso. Hoje é status você ter sido preso. Então isso é uma angústia da gente. Eu não vejo política pra essa juventude e não vejo política de primeiro emprego. Vejo uma escola como a nossa que a gente faz um sacrifício pra levar em alguns lugares, mas é um sacrifício conseguir transporte, é um sacrifício pra eles. Você tem poucos recursos pra poder empoderar mais, pra que ele não precise estar no tráfico dizendo: olhe só, eu existo, eu uso essa arma, eu uso isso, porque eu matei. Eu acho que a escola não pode fazer tudo. Eu acho que o que a gente pode fazer é muito pouco, porque quando você fala em trabalho... Estudo? Tem garantia de trabalho, tem garantia de que quem termina um segundo grau e até um curso superior? Então outras coisas precisam subsidiar o nosso trabalho, outras políticas de outras Secretarias precisavam estar mais presentes pra gente que receber essa juventude...
Soares (2005, p. 229; 262-263) ao discutir os motivos pelos quais o tráfico vem
atraindo tanto os jovens, parece ter ouvido essa professora, mesmo não tratando da instituição
escola. Mas a tentativa de compreensão desses sujeitos alunos, exige pensá-los diante dessa
face que passaram a assumir, cada dia com mais adeptos, envolvidos com a criminalidade,
cumprindo, ou ainda não cumprindo, medidas socioeducativas, o que acontecerá mais cedo ou
mais tarde. Seduzir os jovens para a participação escolar... será essa uma possível saída?
Quanto pode a educação, diante da falta de perspectivas sociais, que passam pelo trabalho,
306
pelo emprego, pela remuneração digna, pela garantia dos direitos sociais, pela não-
discriminação que marca e maltrata os negros, os pobres, os não-alfabetizados/não-
escolarizados, os jovens, discriminação acentuada, sempre, quando esses atributos coincidem
em uma só pessoa. Mas ainda assim, percebe-se a preocupação coletiva com a questão e a
tentativa de não produzir novas exclusões, ilustrada pela saída da professora ao elaborar o
relatório para o juiz, que encontra no termo “está se esforçando” a possibilidade de, não
negando os problemas, não encobri-los também. Essa preocupação, no entanto, não se
generaliza, seguramente, em todas as escolas/redes. Pelo contrário, a experiência empírica
vem demonstrando como as redes/escolas têm buscado caminhos que abrem mão do papel
pedagógico e educativo, para assumir atitudes policialescas, de alcagüetes, para qualquer
“indisciplina”, tanto promovendo a “expulsão”, de forma sutil, dissimulada, quanto a
transferência de responsabilidade para, por exemplo, os Conselhos Tutelares, em muitos casos
até sob a orientação da própria Secretaria de Educação111.
77..44..66 AArrtteess ddee ffaazzeerr aass pprrááttiiccaass ddee aavvaalliiaaççããoo
As práticas de avaliação do PEJA I e II esbarram na flutuação da freqüência já
apontada. Os depoentes dizem que os alunos, desde o ingresso, são orientados para
compreender o funcionamento do PEJA, a necessidade da freqüência, já que o curso não é a
distância, mas presencial. A freqüência interfere na avaliação dos professores, do mesmo
modo que a auto-avaliação no decorrer do processo, nos diferentes blocos/unidades de
progressão. Mas ainda assim, alguns alunos têm dificuldade de aceitar concepções como esta,
participativas, diante do poder simbólico da prova e do poder de julgamento que o professor
exerça, quando a corrige. Nenhuma evidência é tão forte para que queiram substituí-la. Uma
professora relatou:
Eu tenho observado porque tenho feito trabalhos com produção de texto e eu procuro corrigir junto com eles. Quando eu chego, eles pedem para eu olhar e eu vou lá no lugar deles e a gente corrige juntos. Se eles saírem para fazer alguma coisa, eu digo: “eu só vou corrigir quando estiverem todos aqui”. Aí eu tenho falado para eles: “como você melhorou, você percebeu como você estava no início e agora?” E eles dizem: “Só você, professora, porque eu não
111 Um caso como este foi narrado por uma professora da rede regular, contando a orientação recebida da CRE, em sua escola, para o caso, por exemplo, de crianças cujos pais se atrasam, eventualmente ou sistematicamente para buscar a criança no horário de saída: a ordem é esperar meia hora, depois disso, ligar imediatamente para o Conselho Tutelar, denunciando o responsável, sem dar qualquer chance a ele, mesmo que seja a primeira vez. Telefonema, encaminhamento de mensageiro à casa da criança, quando próxima etc. são atos descartados da responsabilidade do poder público municipal de educação.
307
estou vendo nada de melhora”. E eu digo: “mas está, menino!” Eles não percebem que estão cada vez melhores, mesmo que a gente diga.
Apesar da convivência com uma dada concepção de avaliação, há alunos que julgam
diferenciadamente as práticas escolares no PEJA, demonstrando o sentimento de valorização
que incentivos lhes davam.
A avaliação aqui é ótima. A gente tem que expor o que aprendeu, aí a questão não é nota, eu falo: “professora fui bem ou não?” Se é razoável, a gente tenta melhorar. E é mais por aí, não é questão de nota, é questão de expor aquele aprendizado. Isso ai é muito bom, porque faz a gente enxergar mais adiante, ou seja, melhorar por si mesmo e por questão também de grupo, um ajuda o outro, na questão que tá mais com dificuldade, e assim a gente vai levando e tá dando resultado.
Os alunos do CIEP Graciliano Ramos tinham intimidade com as práticas avaliativas,
sabiam discutir as diferentes modalidades de avaliação e não parecia haver ocultamentos
sobre seus significados. A avaliação não poderia ser uma nova ameaça de fracasso, e incluía
os alunos como partícipes para pensar e interferir. Identificavam os instrumentos que
possibilitavam a avaliação nas diferentes disciplinas, como leituras, debates, audiência a
filmes, produções de textos, mas também, o quanto a participação, a freqüência, os modos de
relacionamento com os colegas contribuíam para esses processos, como balizamentos de
superação em cada bloco, em cada unidade de progressão, e não como instrumentos de
promoção da exclusão.
Na avaliação, o professor dá até uma injeção de ânimo na gente, porque a gente passa pela avaliação, né, a gente tem aquele medo, aquele fantasma que prova é aquilo, não vai ser aquela coisinha simples, vai amaciando, amaciando a gente, até chegar o dia. Têm uma técnica que funciona muito bem, eles aí. E quando chega o dia, a gente passa por aquilo e nem sente, é muito bom o trabalho. (participante masculino)
No CIEP Patrice Lumumba a situação se revelava um pouco diversa, em relação às
práticas avaliativas e às formas de negociá-las no PEJA I e II:
Quanto à avaliação, ela é feita continuamente [...] nossos alunos vêm com vícios, entre aspas, de uma escola formal. [...] eles vira e mexe pedem uma prova, eles querem ver a maldita da prova. Às vezes a gente até engana eles, dá um papel e diz que é prova: “olha, amanhã tem prova”. [...] eles chegam todos felizes, achando que vão fazer uma prova. Querem sentar separados, como uma escola formal. [...] não querem que um olhe pra prova do outro. [...] principalmente nos idosos. Eles transpiram nas mãos, o lápis cai da mão, porque eles estão nervosos, mas depois que eles acostumam, aí o santo de casa não faz mais milagre. [...] eles não vão suar mais. Porque eles acham que essa escola tem que ter a bendita da prova.
308
Mas os professores sofrem, além da pressão dos alunos em relação às práticas de
avaliação, também as pressões externas, sobre os tempos que duram os processos de
aprendizagem dos alunos, em cada estrutura formal do Programa, vindas da direção, da CRE,
de outras instâncias do sistema escolar, colocando-os em cheque constante, para o que devem
estar seguros das opções e das concepções com que lidam no PEJ, para assumi-las
integralmente:
[...] a direção fala que a Secretaria reclama porque o menino já está na escola há muito tempo. Mas não tenho o mínimo receio em relação a isso. [...] a gente não tem que ter culpa cristã. Se o aluno não vai e a gente tem consciência de que está trabalhando com o aluno, não tenho o mínimo medo de responder à Secretaria: “meu aluno não tem condições nesse momento”. Se vai me dar uma advertência, se vai fazer alguma coisa, [...] eu tenho como recorrer por essa questão, porque sou eu que estou ali no dia-a-dia e estou vendo das necessidades de meu aluno. A gente tem que ter as responsabilidades, não pode ser hipócrita. [...] às vezes até a diretora fala: [...] “já está há um ano e não aprendeu!” [...] Eu estou pouco me importando com isso, eu quero ver o meu aluno aprendendo. [...] se ele diz pra mim: “eu não estou ‘seguro’ pra ainda chegar na turma da Dona Dilma, eu não passo”. Dona Maria está comigo há quatro anos e agora que ela aprendeu a ler. [...] imagina se eu tivesse passado ela [...], talvez ela tivesse desistido [...].
Modelos formalizados versus currículos praticados são, em síntese, o que fundamenta
as argumentações dos alunos, quando reagem aos posicionamentos adotados pelos
professores. Compreender que um tempo maior para consolidar aprendizagens não os
desqualifica, quando se trata do PEJA, pelo fato de o Programa não estar trabalhando com a
lógica da retenção, nem da reprovação, mas de um continuum organizativo que prevê tempos,
nem sempre adequados para todos, e que o significativo nesse modos de avaliar reside
justamente na oportunidade de fortalecimento garantida, pela vivência de continuados
processos de aprendizagem. O que exige, sem dúvida, negociações que ponderem outros
aspectos além dos conhecimentos evidenciados, o que muitas vezes implica demonstrar como
a regularidade da freqüência, a participação descontínua, podem interferir para que os
processos não sejam rapidamente exitosos.
77..44..77 AArrtteess ddee ffaazzeerr aa rreellaaççããoo eennttrree ssuujjeeiittooss qquuee aapprreennddeemm
A relação dos alunos com seus professores demonstrou ser uma constante necessária
nos processos de aprendizagem. Marcada, quase sempre, pelo sentimento de admiração, tem
os professores como uma espécie de modelos a serem seguidos:
[...] os meus professores assim, só nota dez, pra lá de dez, são todos maravilhosos. E eu acho que essa coisa faz enriquecer não só nós como
309
alunos, mas até eles próprios por saber da nossa dificuldade ou às vezes chegar e conversar: “poxa por que estão assim?” [...] isso também me traz mais vontade de não querer parar, e dar continuidade, e chegar a ser alguém. [...] tem um professor... [...] que eu gosto muito, de história, sempre conversamos e falamos. [...] futuramente, com certeza, eu serei um professor de história e ele me dá a maior força. É isso que eu acho o máximo.
A relação entre os sujeitos alunos, diante das questões geracionais, não apresenta
problemas, pelo clima cultivado na escola, apesar de tensões geradas pelo comportamento dos
mais jovens. Convivendo respeitosamente jovens e idosos, estes muitas vezes assumem a
liderança da turma, por exemplo, como representante de turma, o que faz sentirem-se
extremamente valorizados pela experiência, diante dos jovens. A sabedoria aprendida com a
própria experiência é compartilhada, da seguinte forma:
Eu sempre tô orientando os mais novos, eu digo: “estuda, porque... porque o estudo é importante, vai fazer falta amanhã ou depois pra vocês”. E eles até me agradece, entendeu? Porque isso é uma coisa que a gente, como mais idoso, tem que sempre incentivar aqueles mais novos, sempre dar um incentivo.
Entre os professores, as relações com o Programa vão desde o movimento para
encaixar o horário noturno nas muitas atividades do magistério112, como mais uma fonte de
renda, até busca de um campo diferente para atuação, como possibilidade de renovação,
provocada pelo desapego à escola regular, com os problemas que passaram a enfrentar ao
longo dos anos. Outros vêm em busca de um sonho, e outros encontram no Programa, depois
que passam a vivenciá-lo, esse sonho, que não sabiam ser possível realizar, na relação travada
com os diferentes, alunos jovens e idosos, professores com motivações várias, e com modos
renovados de ser professor:
Estava sentada lá (escola em que trabalhava) dizendo assim... Não estou gostando mais não, acho que já está na hora de me aposentar. Eu já estava com 28 anos de magistério e já estava até pra me aposentar. Aí eu estava sentada lá como sempre brincando com papel, aí tinha um jornalzinho sobre a mesa, aí eu já estava puxando o papel pra fazer barquinho... aí quando eu puxei estava escrito lá: professor, um desafio para você... aí falava sobre o PEJ.
112 Com freqüência os professores acumulam mais do que uma matrícula nas redes públicas, e sempre insuficiente, diante da perda aquisitiva historicamente acumulada, exigindo compensações com novos horários de trabalho, no setor privado. Para conseguirem conciliar todas as atividades, procuram o espaço da escola noturna em uma dessas matrículas, “acomodando”, assim, o horário e abrindo espaço no diurno para mais uma ou duas escolas em que vão dar aulas, na escola privada. O somatório de atividades faz com que o professor seja um profissional eternamente assoberbado, sem tempo para viver, muitas vezes, projetos fora da escola, e às vezes, até mesmo na escola. No caso do PEJA, a existência dos centros de estudos para a formação compensa, parcialmente, o aprisionamento do tempo em que vivem os professores.
310
77..55 ““DDEEIIXXEEMM OOSS VVEELLHHIINNHHOOSS MMOORRRREERREEMM EEMM PPAAZZ!! DDEEIIXXEEMM OOSS VVEELLHHIINNHHOOSS MMOORRRREERREEMM EEMM
PPAAZZ!!”” RREESSIISSTTIIRR ÉÉ PPRREECCIISSOO
Algumas questões que compõem esse final de capítulo, não são novas, tendo surgido
em pesquisas anteriores como a de Henriques (1988, p. 94), já naquele longínquo começar.
Uma delas, a “necessária ampliação da faixa etária atendida no CIEP para a alfabetização no
horário noturno”, que justifica “considerando os enormes gastos na Educação Juvenil, o
desperdício das salas vazias [...], a ociosidade do corpo docente [...] e a própria realidade do
estado do Rio de Janeiro em relação ao número total de analfabetos (fora desta faixa etária)”.
Para isso, fazia propostas de agrupamentos, considerando os supostos interesses geracionais, o
que não aconteceu, entretanto, ao longo dos anos, fosse pela clandestinidade obrigatória na
qual viviam os “fora de faixa”, pelo fato de o modelo ter-se mantido durante tantos anos,
fosse porque foi sendo assumido, nas táticas cotidianas, como descoberta de professores, em
busca de artes de fazer o atendimento, compreendendo as questões geracionais, porém
retirando delas as positividades que cada idade, e cada encontro, poderiam conferir à prática
pedagógica.
Mais do que uma decisão focalizada por limitação orçamentária, como poderia
parecer, no primeiro momento, em alguns anos foi-se descortinando a motivação que levou
seu propositor, Darcy Ribeiro, a assumi-la como política de Estado. Remeto-me ao título
desse item, quando a célebre frase de Darcy, no Congresso Brasileiro de Alfabetização, em
1989, em São Paulo, ecoou no auditório, quando provocado a explicar por que não todos, mas
somente alguns atendidos. Darcy Ribeiro passou, então, a explicitar sua verdade sobre a
concepção de EJA, não muito diferente de outras tantas que foram sendo produzidas ao longo
da história e que ainda hoje são a tentação de muitos gestores, e de programas públicos113.
Não valia a pena, para ele, investir nos mais velhos — deixem os velhinhos morrerem em paz
—, dizia. O antropólogo brilhante não conseguia pensar política educacional ampla, talvez até
mesmo por vício de formação. Eram os jovens a quem “compensava” pelas perdas recentes,
para que não reproduzissem os modelos anteriores, assim como as crianças das camadas
populares, em atendimento integral — grupo também focalizado e priorizado com uma
proposta pedagógica inovadora, mas pela arquitetura que as abrigava nos 500 CIEPs
113 De outra maneira o ministro da educação José Goldemberg referiu-se aos analfabetos, justificando, na primeira metade dos anos 1990, a não existência de atendimento de EJA como política pública. “O analfabeto já conseguiu o seu lugar... não é um bom lugar, mas é o que lhe cabe...”, sintetizava suas palavras, acusando o determinismo social com que operava no pensar a educação.
311
previstos, e não só pela idade —, o que jamais significou ter a mesma concepção para todas as
crianças das camadas populares, mas de novo reeditar “a escolha de Sofia” e fazer política
com ela.
A exclusão dos “mais que jovens” — adultos e idosos — foi por muitos anos mantida,
mesmo desafiando a Constituição Federal de 1988, que preceituava a educação para todos,
independente da idade. Mas o poder regulatório jamais conseguiu impedir que esses
estivessem lá, e que com eles a história do PEJ pudesse ser contada de outra maneira, na
versão não-oficial, que o poder público ou não conhece, ou faz questão de desconhecer, ao
contar a sua versão. A presença desses muitos, seguramente, ensinou lições importantes a
todos — professores e alunos —, sobre o que é estudar em tempos diferentes da infância, e
sobre como ser professor, para além dos cânones dos cursos de formação inicial, porque
formados na prática, com a experiência cotidiana, reinventando a própria formação. Ensinou
também concepções de EJA, embora estas muitas vezes fiquem aprisionadas nas escolas,
guardadas como segredos que não se compartilham, até porque sobre elas, produzidas no
recôndito escolar que pouco dialoga com a sociedade mais ampla, com outros espaços
formadores e acadêmicos, não se tem segurança, quanto à fidedignidade.
Outra compreensão que deve ser problematizada, e intimamente ligada à anterior, diz
respeito ao quantitativo de alunos atendidos anualmente e o quanto somam, nesses 20 anos.
A rede de escolas públicas, no município do Rio de Janeiro, pelo tamanho —1054
escolas, não se discutindo aqui a origem que a constituiu, o porquê de já ter nascido grande,
seguramente não por decisões políticas de prioridade à educação no município — só dispensa
117 unidades para o PEJ, em 2005, com 32.482 alunos. O crescimento populacional do
município, em 2000114 atingiu 5.857.904 pessoas, sendo 4.534.322 de 15 anos e mais, com
uma taxa de analfabetismo entre esses de 4.4%; 581.821 pessoas se encontravam em situação
de analfabetismo funcional, o que corresponde a uma taxa de 12,8%. De 15 a 17 anos, 85,33%
dos jovens freqüentavam a escola, e de 18 a 22 anos, 44,94%. Os estabelecimentos de EJA
eram 325 e a matrícula de jovens e adultos na alfabetização atendia a 2.345 alunos; da 1ª a 4ª
séries, 20.905; de 5ª a 8ª séries, 61.655; e no ensino médio 27.503. Diante do crescimento
populacional do município, da produção do fracasso escolar e do empobrecimento da
população, obrigando a todos os membros da família à informalidade, desde muito cedo,
pode-se imaginar o que acresceu a esse quadro, para o qual o poder público tem respondido
114 Indicadores do Censo Demográfico de 2000 e do Censo Escolar de 2000. BRASIL: IBGE, INEP; UNDP, 2000.
312
residualmente, com atendimento não mais para jovens, somente, mas para todos, já há algum
tempo, sem que a essa abertura a faixas etárias de acesso correspondesse um planejamento
educacional compatível na rede municipal, que se orgulha de ser a única no país inteiramente
municipalizada para o nível do ensino fundamental, e a maior da América Latina.
Considerados os dados de analfabetismo funcional entre a população, da ordem de cerca de
500.000 pessoas, admite-se que o atendimento total do PEJ I e II (e que responde pelo
atendimento maior no II, que não se inclui como segmento considerado para efeito do
analfabetismo funcional), é irrelevante, face à gravidade do quadro no município. Adrede, a
revelação mais sombria desse dado se dá pelo fato de se saber que a imensa rede municipal de
escolas básicas responsável pelo atendimento das crianças está falhando no que diz respeito
ao sucesso, ainda que ofereça a disponibilidade de vagas e o acesso à instituição pública. O
diálogo entre os dois atendimentos, na mesma rede, inexiste, atestado publicamente em
apresentação da coordenação de EJA no Fórum do Rio de Janeiro, quando esta questão foi
problematizada. Se há o atendimento, mas os adolescentes de 15 anos saem em busca do
ensino fundamental para jovens e adultos, assevera-se que a escola pública regular falhou nos
objetivos de cumprir o direito à educação e fazer ler e escrever aos sujeitos da chamada
“idade própria” exigindo, por isso, um olhar para dentro, inquisidor e reflexivo sobre a
responsabilidade de um sistema nesse quadro final.
Somado a isso, lições aprendidas nas muitas tentativas de “acabar” com o Programa,
gerando lutas de resistência, de cuja memória Gomes e Benício, dentre outros não-
nominados, são guardiãs. Considerada, por elas, como uma das marcas mais fortes do PEJ, a
capacidade — de atores e protagonistas, professores e alunos — de resistir, de encontrar
meios e modos para surpreender o poder, revelaram táticas que, aproveitando as ocasiões,
criaram impasses, reverteram o instituído, causaram surpresas (CERTEAU, 1994), mantendo
o Programa já por 20 anos. As surpresas são bem-vindas, porque agregam novas
possibilidades de construção do direito à educação para jovens e adultos, mas exigem também
aprofundamento da ação pública e cobranças sistemáticas aos gestores, por meio da crítica
organizada, quanto aos resultados das iniciativas.
313
88.. PPRROOGGRRAAMMAA SSEESSII EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDOO TTRRAABBAALLHHAADDOORR —— TTRRAAVVEESSSSIIAASS
A história [...] força a diferenciar e qualificar, ao longo dos séculos, as diferentes formas e concepções de trabalho humano. (NOSELLA, 1989, p. 30).
O Serviço Social da Indústria (SESI) tem suas origens na década de 1940, quando os
problemas decorrentes da II Guerra Mundial se avolumaram e obrigaram a reordenamentos na
economia. Por iniciativa de vários setores do comércio, indústria e agricultura, o empresariado
reuniu-se na primeira semana de maio de 1945 na I Conferência Nacional das Classes
Produtoras e elaborou um documento, conhecido como Carta Econômica de Teresópolis, com
o pensamento dos empresários sobre os problemas da época, que propunha o combate ao
pauperismo, o aumento da renda nacional, o desenvolvimento das forças econômicas, a
democracia econômica e a justiça social e a necessidade de um plano de ação social para o
país, dando forma à filosofia e ao conceito de serviço social custeado pelo empresariado.
A primeira conseqüência da Carta de Teresópolis foi a criação da Fundação de
Assistência ao Trabalhador - FAT115, pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
(www.sesisp.org.br/home/institucional/institucional.asp. Acesso em 5 agosto 2005).
Na seqüência de eventos, e inspirados nos princípios sociais da Carta de Teresópolis,
a Federação das Indústrias de São Paulo junto a sindicatos patronais e de empregados, em
Minas Gerais, lançou em 1946 a Carta da Paz Social, expressando o desejo de estabelecer
solidariedade e harmonia entre capital e trabalho, e reforçando princípios da solidariedade
social.
A proposta dessa Carta foi submetida ao Governo Federal de Eurico Gaspar Dutra, em
1946, e norteou a criação do SESI, em 25 de junho, pelo Decreto-Lei n. 9 403, assinado pelo
presidente Dutra. Surgiam daí, em diferentes momentos, as entidades hoje conhecidas como
integrantes do Sistema S:
A Constituição Federal prevê, no Art. 149, três tipos de contribuições que podem ser instituídas exclusivamente pela União: (i) contribuições sociais; (ii) contribuição de intervenção no domínio econômico; e (iii) contribuição de interesse das categorias profissionais ou econômicas. Essa última hipótese de incidência é que fornece o fulcro legal para a exigência de um conjunto de onze contribuições que, por motivos óbvios, convencionou-se chamar de Sistema S. As receitas arrecadadas são repassadas a entidades, na maior parte de direito privado, que devem aplicá-las conforme previsto na
115 A FAT prestava serviços assistenciais aos operários da indústria, e foi o embrião do SESI. Durou pouco, mantida pela contribuição espontânea dos empresários.
314
respectiva lei de instituição. (http://www.receita.fazenda.gov.br/Historico/Arrecadacao/Carga_Fiscal/1999/SistemaS.htm).
Sobre o Sistema S — cuja forma de financiamento criou situação ímpar no Estado
brasileiro — cabe informar que as receitas resultam de contribuições que incidem, em geral,
sobre a folha de salários das empresas pertencentes à categoria correspondente. Estas
contribuições são cobradas e arrecadadas por órgão do serviço público federal (no caso, o
INSS), mas a arrecadação obtida é integralmente repassada a entidades cuja administração
não é diretamente vinculada ao governo, destinando-se a financiar atividades que visem ao
aperfeiçoamento profissional e à melhoria do bem-estar social dos trabalhadores. Embora as
contribuições decorram de legislação federal e sejam coletadas pela União, os recursos
arrecadados não atendem à programação financeira do Estado.
As entidades beneficiadas são: INCRA, SENAI, SESI, SENAC, SESC, DPC,
SEBRAE, Fundo Aeroviário, SENAR, SEST, SENAT. A criação desses organismos e
respectivas fontes de receita remontam à década de 1940, e apenas quatro delas (SEBRAE,
SENAR, SEST e SENAT) foram instituídas após a Constituição de 1988. No ano de 1998
(último dado disponível), a distribuição relativa das receitas do Sistema S entre as diversas
entidades participantes, estava assim constituída:
Gráfico 1
Participação Relativa das Contribuições do Sistema S – 1998
O regulamento do Serviço Social da Indústria (SESI)
(http://www.sesi.org.br/conselhonacional/secretaria/regul_serv.pdf. Acesso em 5 agosto
2005), especificamente no art. 7º, estabelece como princípio que: “a obra educativa e serviços
do SESI se orientarão no sentido de que a vida em sociedade se realize de forma
comunitária”; e prevê como objetivos, no art. 5º: “a) alfabetização do trabalhador e seus
315
dependentes; b) educação de base; c) educação para economia; d) educação para a saúde
(física, mental e emocional); e) educação familiar; f) educação moral e cívica; g) educação
comunitária”.
Ana Maria de Araújo Freire (1992, p. 211), em nota explicativa ao texto de Paulo
Freire em Pedagogia da Esperança, assinala algumas relevantes questões quanto às
justificativas para a medida de criação do SESI, por decreto-lei. Alerta que a “letra da lei”
muitas vezes não diz, mas estaria implícito no decreto-lei a arrogância de um presidente em
usar, com força de lei, uma medida de função própria do legislativo, ao qual não é submetido
o ato, pelo caráter autoritário do instrumento de que lança mão. Esta prática, persistente na
República, perpetuou-se sofisticadamente com a instituição de medidas provisórias pela
Constituição de 1988, cuja tentação de uso arrebatou todos os dirigentes eleitos a posteriori.
Outra questão relevante, em relação à tutela que as justificativas conferem ao SESI em relação
ao trabalhador, destaca o estímulo ao “espírito de justiça social entre as classes”, tentando
“apagar”, segundo a autora, a consciência da luta de classes, e promover “a aceitação calma e
passiva das discrepantes diferenças das condições materiais entre patrões e empregados”, um
mecanismo a que denomina de “assistir para não enfrentar”.
A política de importações assumida pelo então presidente Dutra acabou por constituir
o impulso definitivo ao empresariado, patrocinando, de 1946 a 1950, um surto de
industrialização na vida brasileira. De equipamentos novos para fábricas, renovação de frota
de veículos, siderurgia, indústria de transformação, refinarias, eletrodomésticos até a nascente
indústria cultural, com o cinema, mudava-se uma característica da industrialização brasileira:
produzir para deixar de ser apenas consumidor, mas para alimentar suas próprias fábricas. Em
setembro de 1947, o Conselho Nacional do SESI editou a Resolução nº. 8 que recomendava
aos Departamentos Regionais (DRs) a implantação de cursos populares para os operários e
suas famílias, de caráter instrutivo, para formar e aperfeiçoar os trabalhadores nos espaços das
fábricas, dando atendimento preferencial a alunos de 12 anos de idade, em conformidade com
a legislação vigente.
Em 1949, iniciou-se a estruturação de Departamentos Regionais do SESI em todos os
estados onde há Federação das Indústrias e, a partir daí, foram muitos os movimentos vividos
até a compreensão da educação do trabalhador nos termos em que tem sido assumida, na
contemporaneidade. Em novembro de 1955, por meio de um seminário técnico nacional, um
documento é formulado, estabelecendo diretrizes e redirecionando as ações para a área da
educação.
316
Da política compensatória e assistencialista à busca da educação como direito do
trabalhador — e certamente condição propícia à produção e à qualidade da atuação na
indústria —, o SESI fez relevantes mudanças, em compasso com os rumos que a educação de
jovens e adultos foi assumindo no mundo. Efetivamente essas mudanças foram provocadas
não apenas pelo contexto interno da entidade, com porte financeiro capaz de patrocinar e
promover qualidade técnica para tal, mas principalmente ditadas pelos movimentos de
organização dos trabalhadores no país, ainda na década de 1970, nas lutas do ABC paulista
que refundaram os movimentos sociais e sindicais pela senda aberta pelos metalúrgicos. Sader
(1988, p. 26) é o melhor intérprete do momento histórico ali representado, e sua contribuição
a esse capítulo sinaliza o horizonte de compreensão que desejo enfocar, ao puxar os fios que
foram sendo tecidos, para compreender a educação de jovens e adultos e as concepções que a
fundamentaram em diferentes momentos, na história da entidade.
É muito provável que na história política do país o período entre 1978 e 1985 (portanto entre as greves do ABC e a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral) fique marcado como momento decisivo na transição para uma nova forma de sistema político. Mas, por sua vez, este novo sistema político está condicionado por significativas alterações no conjunto da sociedade civil. Entre as rupturas, que marcam todas as transições, uma das mais impressionantes nesta que estamos tratando é certamente a que cruza a história do movimento operário, ou das “classes populares”, ou dos “setores dominados” (e esta própria hesitação na nomenclatura, presente nas interpretações sobre esses fatos, já indica uma novidade na forma como eles apareceram que se acomodava mal às denominações já feitas). Atores sociais e intérpretes, no próprio calor da hora, se aperceberam de que havia algo de novo emergindo na história social do país, cujo significado, no entanto, era difícil de ser imediatamente captado.
Em 1989, foi criado o Programa Nacional de Ensino Fundamental de Adultos, com o
objetivo de “desenvolver projetos de ensino fundamental de adultos, no tocante à elevação
dos níveis de bem-estar do trabalhador e seus dependentes, do aumento da produtividade
industrial, seguindo um enfoque pedagógico que possibilitasse ao aluno intervir criticamente
na realidade social”. (SESI, 2003a, p. 12). Esse Programa adotava variadas metodologias de
atendimento, a saber: a) uma proposta curricular de 1ª e 2ª etapas; b) uma proposta curricular
de 3ª e 4ª etapas; c) Telecurso 2000; d) Alfabetizar é Construir; e) Ensino Supletivo de 1ª a 4ª
séries; f) Ensino Supletivo de 5ª a 8ª séries; g) Pró-cidadão; h) outras modalidades especiais.
Suas ações encerraram-se em 1997, quando o SESI alcançava 155.777 matrículas em todo o
país, e em 1998 foi criado o Programa SESIeducação do Trabalhador, em vigor até o
momento.
317
Para compreender as concepções assumidas pelo SESI, resgatei basicamente
documentos institucionais, cujas leituras possibilitaram-me apreender os sentidos e as opções
políticas da EJA. Contei ainda com a contribuição de uma técnica do Departamento Nacional
- DN, que me concedeu entrevista em março de 2004, e o depoimento de uma gestora do SESI
do Programa Por um Brasil Alfabetizado, em parceria com o MEC, na Comissão Nacional de
Alfabetização, em março de 2005.
O envolvimento que mantive com a entidade, no entanto, aconteceu pela primeira vez
em 1991, quando fui convidada para prestar consultoria ao DN, com vista a consolidar uma
proposta referencial curricular para a educação de jovens e adultos, tomando como base as
muitas ações desenvolvidas no país. Não sem receio, em função da natureza da instituição que
me convidava, e dos vínculos públicos pelos quais sempre pautei minha atuação, fui desafiada
pela proposta e assumi a tarefa, com a disposição crítica, mas também investigativa sobre a
realidade de atuação do SESI no campo da EJA. Essa proposta de trabalho contava com uma
equipe técnica, do SESI Nacional, com quem mantive diálogo permanente, somado a alguns
momentos em que se contava com a participação de coordenadoras pedagógicas de alguns
Departamentos Regionais, cuja prática na EJA ou expressão política, foram consideradas
relevantes para a incorporação à equipe. Na ocasião, realizou-se um extenso levantamento de
todas as ações, em todos os DRs, assim como de pareceres sobre avaliação no processo
exarados por Conselhos Estaduais de Educação, formulando-se, a partir daí, uma proposta que
sistematizasse, com sinalizações novas, o que se entendia por proposta curricular do SESI.
Essa proposta, sob forma de consulta, foi submetida ao então Conselho Federal de Educação,
que a aprovou em 12 de março de 1992, ganhando dessa forma, a entidade, aval para buscar
apoios legais em todos os estados, junto aos Conselhos de Educação. Um mergulho nas ações
estratégicas do SESI me fez compreender razoavelmente a entidade, suas escolhas políticas e
o espaço para questionar/propor sobre o que era oferecido.
Algumas importantes aprendizagens resultaram desse primeiro relacionamento
profissional: a) a constatação de que havia espaço dialógico de trabalho, para divergências e
proposições adiante do que estava, até então, posto; b) o profissionalismo como era assumida
a questão da EJA, buscando qualidade técnica e acadêmica em subsídio às formulações
teóricas; c) a abrangência nacional de atuação, mas com atendimento restrito, diante das
necessidades dos trabalhadores da indústria (e dependentes), com propostas autonomizadas,
de perfis e direções teórico-metodológicas muito díspares; d) a concepção dos Conselhos
Estaduais de Educação sobre avaliação na EJA, os rigores dessa avaliação e as sutis formas de
318
reiterar as exclusões anteriormente praticadas pelo sistema, legalmente agora, pelos sistemas
de avaliação autorizados; e) a certeza de que é possível pensar currículo para além das
concepções escolares.
Duas dessas aprendizagens — sobre a questão curricular e sobre avaliação —
parecem-me indispensáveis resgatar no desenvolvimento desse capítulo, alertando que não
estarei recuperando o documento produzido à ocasião, já que há documentos necessariamente
de formulação mais recente, exigidos pela aprovação da LDBEN em 1996. O marco legal,
portanto, daquele momento, embora pautado pelo dispositivo constitucional do Art. 208,
careceria de atualização. Essas aprendizagens, no entanto, serão retrabalhadas durante a
discussão das concepções apreendidas, o que enriquecerá minha reflexão, imbricando-a com
os fundamentos atuais.
Quero com isso demarcar que, também no caso do SESI, minha relativa interação em
certos momentos coloca-me como sujeito implicado, seja por esse primeiro espaço de
construção coletiva seja pelos diversos outros em que tive possibilidade de interagir. Depois
desse momento, algumas ações de formação de equipes foram a mim propostas, não apenas
para pôr em diálogo a proposta curricular, mas para avançar no desdobramento de como ela
alterava as práticas instituídas. Essa possibilidade ocorreu no Paraná, em Pernambuco, no
Maranhão e em Rondônia, além de um momento nacional no Rio de Janeiro, com
representações de todos os DRs. Depois desses, novas interações ocorreram quando da
proposição do curso de especialização a distância em EJA, em seminários de discussão e de
avaliação de módulos, além da organização de um dos módulos componentes do curso.
Consultorias quanto à formulação de documentos e participação no III Telecongresso também
foram momentos de compartilhar idéias com o SESI/DN, além de um outro com o
SESI/DR/RJ, quando da sistematização, em documento único, do Programa SESIeduca, para
o qual minha contribuição foi solicitada, consolidando as duas formulações já elaboradas, mas
em documentos seqüentes, como resposta à demanda de concluintes do primeiro segmento.
Do mesmo modo, contribuí na discussão de avaliação com a equipe técnica do DR/RJ.
Outro destaque a fazer tem relação com o movimento dos fóruns, em todo o país, pelo
fato de ser o SESI um parceiro desde o início, tanto nas iniciativas estaduais que vêm
ocorrendo desde 1996, a partir do Rio de Janeiro, em todo o país, como quando, em 1999 se
organizou o I ENEJA, em que a entidade foi colaboradora significativa. Desse momento em
diante, o SESI concorreu com recursos e participação não apenas no evento, mas em todas as
etapas preparatórias. Também nos estados, com variações em um e outros derivadas do
319
volume de trabalho de cada DR, a instituição tem participado ativamente para a manutenção
do movimento, partilhando as concepções e críticas a todos os programas e projetos em
execução, realizados por qualquer entidade, em diálogo, com os demais atores, no espírito
público e democrático que os fóruns buscam consolidar.
O lugar, portanto, de onde busco compreender as formulações do SESI, não incluem
as práticas, diretamente, mas alguns processos que, em sendo recuperados, trazem uma visão
mais complexa do que tem representado o SESI no panorama nacional, no tocante à educação
de jovens e adultos trabalhadores, nessa rede complexa de significações com as quais dialoga,
em diferentes espaços de ação pública.
Por fim, nunca é demais lembrar a passagem de Paulo Freire (1992, p. 19-20) pelo
SESI, em Pernambuco, por sete anos, dos 22 aos 29 anos, episódio retratado por ele em
Pedagogia da esperança, quando indica ter sido o “tempo fundante do SESI, cheio de
‘soldaduras’ e ‘ligaduras’ de velhas e puras ‘adivinhações’ a que meu novo saber emergindo
de forma crítica deu sentido [...]” e “me levaram ao exílio, uma espécie de ‘ancoradouro’ que
tornou possível religar lembranças, reconhecer fatos, feitos, gestos, unir conhecimentos,
soldar momentos, re-conhecer para conhecer melhor”.
88..11 PPRROOGGRRAAMMAA SSEESSII EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDOO TTRRAABBAALLHHAADDOORR —— CCOONNCCEEPPÇÇÕÕEESS EE DDIIRREEIITTOO PPAARRAA AA
CCLLAASSSSEE--QQUUEE--VVIIVVEE--DDOO--TTRRAABBAALLHHOO116
A preocupação com quem são os trabalhadores da indústria surge com muita
visibilidade nas propostas do SESI, como centro mesmo das formulações.
O documento Perfil do trabalhador formal brasileiro (SESI, 2003b, p. 21-22) retrata a
realidade a partir da classificação econômica do IBGE, revelando que, em 2001, o setor mais
intensivo em mão-de-obra foi o setor de serviços, com quase nove milhões de trabalhadores,
contra 6,5 milhões da indústria117, todos com carteira assinada. Somando-se a esses os do
setor comércio, da ordem de 4,5 milhões e de outros118, chega-se a um total de 27 milhões de
trabalhadores formais. Deste total, 53% localiza-se na Região Sudeste, ou seja, mais da
metade, o que assegura cerca de 14,5 milhões de trabalhadores, seguido da Região Sul com
18% e da Região Nordeste com 17% dos trabalhadores formais. A Região Centro-Oeste
116 Esta é a expressão usada por Antunes (2000, p. 101) para conferir validade contemporânea ao conceito marxiano de classe trabalhadora. 117 O setor indústria agrupa trabalhadores da indústria extrativa mineral, da indústria de transformação, de serviços industriais de utilidade pública, da construção civil. 118 Outros agrupa os setores de agropecuária, extrativa vegetal, caça, pesca, e administração pública.
320
registra 8% e a Região Norte 4%. (MTE, RAIS/2001 –). Por grau de instrução, observa-se que
o total Brasil de trabalhadores formais incorpora quase 500 mil pessoas analfabetas, e 8
milhões com ensino fundamental incompleto, o que dá a dimensão da demanda para as
entidades do Sistema S, voltadas para a oferta da educação de jovens e adultos, trabalhadores
por excelência. A Região Nordeste concentra a maior parte dos analfabetos — 194.734, ou
seja, 4,3% do total de trabalhadores da Região, seguida da Sudeste, com 163.727, com taxa de
1,1% do total (MTE, RAIS/2001). Embora os números absolutos sejam muito próximos, as
taxas sofrem grande variação, o que exige pensar como se organizam estrategicamente as
ações, haja vista que a intervenção pedagógica precisa ser pensada em relação a sujeitos, e
não a taxas de analfabetismo, simplesmente.
Do ponto de vista da escolaridade incompleta no ensino fundamental, a taxa Brasil
alcança 29,7%, com a seguinte distribuição pelas regiões: N – 26,1%; NE – 29,1%; SE –
30,2%; S – 30,9%; CO – 28,1% (SESI, 2003b, p. 34-35), denotando uma problemática de
não-conclusão do ensino fundamental equilibrada em todo o país, independente da região, o
que pode estar afetado não apenas por uma concepção de escola regular, mais ou menos
homogênea na sua expressão de produzir o ensino fundamental — incluídos currículo e
avaliação — e de expulsar os alunos dos processos de aprendizagem, não garantindo a eles a
permanência, só o acesso, mas também as trágicas condições sociais e econômicas da maioria
dos que abandonam a escola para ingressar no mundo do trabalho sem havê-la concluído.
Destacando-se desse conjunto a escolaridade dos trabalhadores nos setores
econômicos contribuintes do SESI, apresenta-se a seguinte configuração (SESI, 2003b, p. 79):
Tabela 1 Número de trabalhadores formais por grau de instrução, segundo os
setores econômicos contribuintes do SESI, Brasil – 2001 (%)Número de trabalhadores formais por grau de instrução
Grau de InstruçãoFundamental Ensino Médio Superior
Setores econômicos contribuintesdo SESI Analfabet
oIncomplet Completo Incomplet Completo Incomplet Completo Total
Ind. Extr. Min. 2.833 48.295 18.246 7.076 29.564 2.263 9.382 117.659 Ind. Transf. 45.633 1.572.075 932.140 479.461 922.031 126.864 216.119 4.294.323 Serv. Ind. UP 6.527 102.990 35.321 18.495 77.832 11.197 44.428 296.790 Constr. Civil 27.323 636.471 198.048 65.148 137.593 15.684 40.709 1.120.976 Corr. e Telecom. 283 10.737 20.163 10.312 114.286 19.714 42.134 217.629 Outros 1 2.596 61.320 48.485 28.661 65.482 15.627 33.392 255.563 Total 85.195 2.431.888 1.252.403 609.153 1.346.788 191.349 386.164 6.302.940 Fonte: RAIS/2001 – M.T.E. 1 Estão agrupadas as atividades econômicas: Recuperação de Veículos Automotores; Reparação de Objetos Pessoais e Domésticos, Transporte Terrestre e Serviços Prestados Principalmente às Empresas.
Observando-se a tabela 1 com os percentuais a que tais números correspondem,
visualiza-se o seguinte quadro na tabela 2 (SESI, 2003b, p. 80):
321
Tabela 2 Proporção de trabalhadores formais, por grau de instrução, segundo os
setores econômicos contribuintes do SESI, Brasil – 2001 (%) Proporção de trabalhadores formais dos setores econômicos
contribuintes do SESI por grau de instrução (%) Grau de Instrução
Fundamental Médio Superior
Setores econômicos contribuintes
do SESI Analfabeto Incompleto Completo Incompleto Completo Incompleto Completo
Ind. Extr. Min. 3,3 2,0 1,5 1,2 2,2 1,2 2,4 Ind. Transf. 53,6 64,6 74,4 78,7 68,5 66,3 56,9 Serv. Ind. UP 7,7 4,2 2,8 3,0 5,8 5,9 1,5 Constr. Civil 32,1 26,2 15,8 10,7 10,2 8,2 10,5 Corr. e Telecom. 0,3 0,4 1,6 1,7 8,5 10,3 10,9 Outros 1 3,0 2,6 3,9 4,7 4,8 8,1 8,7 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 1 Estão agrupadas as atividades econômicas: Recuperação de Veículos Automotores; Reparação de Objetos Pessoais e Domésticos, Transporte Terrestre e Serviços Prestados Principalmente às Empresas.
Pelos dados constantes nessas tabelas, que incluem os trabalhadores dos setores
econômicos que recolhem a contribuição compulsória, a RAIS em 2001 apresenta um total de
85.195 trabalhadores formais não-alfabetizados e 2.431.888 que não completaram o nível de
ensino fundamental. Isso implica dizer que a necessidade de atendimento da demanda
potencial parece estar sendo satisfeita, face aos números envolvidos.
Observem-se as estatísticas apresentadas no documento Minha empresa faz escola
(SESI, 2003c, s.p.). Depois de implantado o Programa SESI Educação do Trabalhador em
1998 até o final de 2002, em cinco anos, portanto, o atendimento passou de 347.880 alunos
para 922.331. No primeiro ano a meta de 300 mil foi superada pelo atendimento, enquanto
que, no quinto ano o atendimento esteve um pouco aquém da meta de um milhão. O total de
trabalhadores atendidos em cinco anos foi de 3,894 milhões, em 14.000 salas de aula, com
16.521 turmas, nos 27 estados, atuação em 1.500 municípios e 665.804 alunos concluintes do
ensino fundamental e médio, desde a alfabetização. Um aspecto a destacar, nesse conjunto de
dados, diz respeito aos alunos que conseguem a terminalidade nas etapas, o que se verá
adiante, quanto às formas como tem sido objeto de avaliação e estudo pela entidade.
Diferentemente de programas que tratam apenas do atendimento, ou seja, dos dados de
entrada, há uma franca preocupação da entidade em relação à avaliação e às condições de
saída.
O Programa SESI Educação do Trabalhador, com o subtítulo de Elevação da
escolaridade básica tem, por objetivo, “contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos
trabalhadores e conseqüentemente para o desenvolvimento da indústria nacional, mediante a
elevação da escolaridade básica de jovens e adultos nos níveis fundamental e médio” (SESI,
s.d., s.p.; SESI, 2003b, p. 13), com o foco prioritário no “trabalhador da indústria analfabeto e
322
subescolarizado”, entendendo que a baixa escolaridade constatada pelas empresas “representa
sério obstáculo à aprendizagem e ao seu aperfeiçoamento profissional, reduzindo sua
possibilidade de empregabilidade”, e reafirmando “o seu relevante sentido social, pois a baixa
escolaridade do trabalhador impede a sua ascensão social, restringindo o pleno exercício da
cidadania”. (SESI, s.d., s.p.).
Nascido no bojo das velas enfunadas pela V CONFINTEA, no ano anterior,
equilibrava-se no tênue fio que demarcava a política para a área na época: um MEC avesso à
educação de jovens e adultos, à qual dedicava um programa de solidariedade – o PAS, e
nenhuma perspectiva de direito; e acordos internacionais a que assistira, relevando a
importância dos países em responder às novas concepções que o mundo pactuava.
Com o MEC havia de entabular diálogos divergentes, mas dificilmente de rebeldia,
pelos muitos e necessários acordos que passavam, inclusive, pelas dependências financeiras
que as formas regulamentares da origem e outros textos legais119 imprimiam às relações. Com
a UNESCO, fiadora da CONFINTEA, os pactos iam além dos recursos, que envolviam
intermediações de organismos multilaterais para a composição dos recursos frente às metas,
mas também os prêmios que conferiam legitimidade aos programas e à ação do SESI, em todo
o Sistema S. Assim, havia que ampliar e realizar a EJA, sem confrontar com o MEC, mas
seguramente sem ter nele o parceiro e aliado para a assunção de expansão de tal monta.
No leque das justificativas do Programa SESI Educação do Trabalhador, deve-se
destacar a que imputa o agravamento do quadro à incapacidade dos sistemas de ensino, que
continuam a “produzir, em razão da repetência e evasão, novos contingentes de analfabetos
funcionais e subescolarizados”, assim como o insucesso de campanhas de alfabetização e de
educação de jovens e adultos, no mais das vezes desvinculados do trabalho, razão imperativa
para o fracasso, atribuído ainda à concepção pedagógica, cujo sentido é tomado pelo conceito
estrito de paidós (criança), em detrimento do que seria o nível específico da andragogia,
entendida como prática educacional para o adulto, que não imporia a ele uma constrangedora
infantilização (SESI, s.d.b, s.p.).
Entendendo-se a atuação do SESI, como ele próprio enuncia, no campo da educação
continuada de jovens e adultos, afirma ainda trabalhar com diferentes metodologias,
sustentadas pelos princípios de: “construção da cidadania; relação educação-trabalho;
desenvolvimento do espírito crítico e de argumentação; ensino contextualizado; além de ações 119 Um desses textos refere-se ao repasse do salário-educação, que imputou ao Sistema S uma perda financeira bastante significativa.
323
complementares de saúde, alimentação e lazer”, assinalando ser a “característica básica da
proposta conceitual do Programa SESI Educação do Trabalhador – Elevação da Escolaridade
Básica [...] a possibilidade da utilização das diferentes propostas metodológicas já testadas no
Sistema, adequadas às diversidades regionais e da clientela”. (SESI, s.d., s.p.). Indica serem
seis, na ocasião da formulação do Programa, as principais propostas operacionalizadas pela
entidade.
Algumas discussões cabem sobre essas enunciações, buscando compreender as
conexões que o Programa realiza, e os modos como tece a rede no Sistema, mais tarde
sistematizada em documento, visando a visibilizá-la, segundo essas novas concepções de
parceira da EJA, em um esforço coletivo.
A primeira questão diz respeito à assunção da concepção de andragogia, em
substituição aos sentidos que pedagogia tem assumido de há muito no campo. Como discutido
no capítulo sobre as conferências internacionais, e em nota explicativa, pelo fato de o termo
surgir no âmbito da IV Conferência, em 1985, em Paris, há uma falsa questão que não pode
ser esquecida: o prefixo andros refere-se a masculino, e não a homem, no sentido de ser
humano (aí, anthropos), o que anula a preocupação de precisar um termo. Ademais, note-se
que a mudança de terminologia não garante, por si só, a transformação das concepções, muito
menos das práticas infantilizadas, o que estava fortemente em jogo quando a alteração é
proposta. Em verdade, essa busca para cunhar um termo que caracterizasse o fazer do SESI na
área sempre foi a constante de um ex-dirigente que jamais se convenceu da inoportuna
proposta, pelo que carreia de imprecisão. O termo foi de tal forma rejeitado, que ele não só
aparece como desaparece no mesmo momento, não subsistindo ao intervalo de tempo até a
Conferência seguinte, em 1997.
Uma segunda questão, ainda terminológica, refere-se à forma de denominar os sujeitos
da EJA: clientela. Embora esse termo continue em uso e esteja presente em muitos
documentos, não só do SESI mas até mesmo de estudiosos, a linguagem que o constitui,
atribuindo-lhe sentido, como em todos os demais termos, não é inocente. Merleau-Ponty, na
coleção Os pensadores (apud SADER, 1988, p. 57), em seus estudos sobre a fenomenologia
da linguagem, e discorrendo sobre uma possível significação desta, assim se refere a uma de
suas funções: “Executa a mediação entre minha intenção ainda muda e as palavras, de tal
sorte que minhas palavras surpreendem a mim mesmo e me ensinam meu pensamento”. Por
isso, surpresa com minhas palavras, aprendo que a denominação de clientela, tomada para
designar alunos, trabalhadores estudantes, alunos trabalhadores encobre, arrisco a dizer,
324
uma dimensão implícita não de sujeitos, mas de consumidores de serviços, portanto clientes.
Reforçam-se, desse modo, as concepções da prática mercantil da educação, que trata a relação
entre o conhecimento e os que com ele interagem, com a mesma lógica capitalista, em que o
conhecimento é mercadoria, oferecida aos consumidores desse bem. De alguém que ensina,
para alguém que, então, por conta desse ato, aprende, na dimensão de “oferta de serviço”,
implica passividade, quietude, mansidão, porque os que buscam o serviço não têm qualquer
injunção com ele. Ao gosto da “educação bancária” de que trata Paulo Freire, e tão
aprisionadora dos sujeitos professores e mesmo dos sujeitos alunos, que, conhecendo os ritos
dos processos escolares, submetem-se a eles, sem questionamentos. A diferença que este
modo de observação impõe a programas educativos, portanto, é de, desafiados pela
consciência da ideologia capitalista que move as enunciações, apagá-las desses textos, porém
conscientes também que, mais do que isso, é preciso revirar as práticas, alterando esse lugar
de poder central do professor, para redizer a igualdade nos processos de aprendizagem, e
entabular coletivos de aprendizagem em que todos são sujeitos... que aprendem.
A entrevistada do SESI, Pereira120, destaca o que considera tenha sido relevante na
mudança de orientação adotada pelo Programa: “formulação de políticas, diretrizes, muito
voltadas para essa clientela jovem e adulta, para suas características, para suas possibilidades,
inclusive de oferta da educação básica, do nível da alfabetização até o ensino médio [...]”. E
segue ainda, detalhando:
[...] a educação do trabalhador seria fundamental, seria efetiva se mudasse a sua prática, no sentido de levar o atendimento a esse jovem e adulto. Significava mudar toda a dinâmica de atuação. Deixar de atuar nos centros de atividades, com salas de aula lá longe dessa clientela, salas de aula tradicionais, salas de aula a exemplo do que se faz no ensino regular [...] para um modelo diferenciado. Então, criou-se e a principal estratégia do Programa foi levar a sala de aula, o ambiente escolar até o aluno. Foi quando a gente priorizou o atendimento no local de trabalho como principal estratégia, e como principal inovação (grifo meu) até nas possibilidades de esse aluno não se deslocar, de ele lá poder acessar essa sala, ter o professor ali, de ele interagir com o... com o posto produtivo.
O valor dessa inflexão política nas prioridades do SESI está, em primeiro lugar, pelo
fato de o Programa consolidar o que a história vinha demonstrando, mas passando a conferir
visibilidade ao atendimento, assumindo ser este o carro-chefe da entidade, pela natureza do
público a quem devia servir. A inovação de levar a instituição aos locais de trabalho, não
apenas ajuda a fugir dos modelos formais de escola, como estanca muitos problemas que
120 Nome fictício.
325
advêm da distância dos pólos de trabalho e dos locais de atendimento — Centros de
Atividades (CATs) —, que embora equipados e com condições adequadas, tanto engessavam
as propostas organizativas e curriculares, pela semelhança buscada com a escola, quanto se
tornavam locais de desenvolvimento do Programa, mas não necessariamente voltados a
trabalhadores do SESI, porque sua localização nem sempre se prestava a favorecer a presença
desse público.
A metodologia utilizada — pautada no contexto produtivo — integrava os
trabalhadores estudantes da empresa, da alfabetização ao final do ensino fundamental, de
quaisquer faixas etárias. O largo alcance e a aproximação com o chão de fábrica, possibilitou,
ainda, a proximidade com pessoas da comunidade, beneficiadas por essa estratégia, que em
2003 chegava a representar 60% dos alunos atendidos. Essa outra estratégia amplia-se no
sentido de redesenhar parcerias com os governos municipais, estaduais e depois federal, no
esforço de contribuir com o atendimento, na consolidação de políticas integradas entre
executores, não apenas pela meta elevada, como pela necessidade de integrar-se aos sistemas,
compondo com eles a continuidade, face à diversidade de organizações em cada local e aos
recursos disponíveis, fossem físicos, humanos ou financeiros.
As propostas metodológicas admitidas no interior do Programa SESI Educação do
Trabalhador pautam-se na compreensão de que a diversidade dos alunos jovens e adultos
exige programas educativos “flexíveis e adaptáveis às diferentes formas de atendimento”,
incluindo ensino presencial, semi-presencial e a distância, com a utilização de multimeios, de
modo a melhor responder às necessidades do aluno trabalhador.
No mesmo documento, relacionam-se as metodologias testadas no Sistema, assim
enunciadas: a) proposta curricular do SESI para o ensino fundamental de adultos; b)
Telecurso 2000; c) Alfabetizar é construir; d) curso de suplência de jovens e adultos; e)
alfabetização a distância; f) curso de suplência para jovens e adultos Projeto Jamil. Cada um
deles tem origem diversa no SESI, em épocas diferenciadas, ditadas tanto pela autonomia dos
DRs, para seguirem seus caminhos — o caso do Alfabetizar é construir, por exemplo, nascido
em 1990 no Rio de Janeiro, por negociação política do Sindicato da Indústria de Construção
Civil no Estado do Rio de Janeiro (SINDUSCON-RIO) com a Federação das Indústrias do
Estado do Rio de Janeiro (FIRJAN) — quanto pelas concepções norteadoras das
coordenações pedagógicas do momento, no que consideram ser a resposta adequada aos
públicos com os quais se envolvem. No curso do Programa, outras propostas vieram a
ocorrer, integrando, na atualidade, as ofertas do SESI.
326
A maior procura, no Programa, já não é pelas séries iniciais, provavelmente fruto das
ações sistemáticas de atendimento que o SESI tem desenvolvido, mas pelo segundo segmento
do ensino fundamental, e impondo-se, também, uma crescente demanda de ensino médio. A
evasão, no caso brasileiro, da ordem de 12%, converge para os indicadores que demonstram a
permanência dos alunos, seu sucesso e conclusão.
Mas apesar dessa nova concepção, o documento do Programa mantém, no objetivo
geral e em um dos objetivos específicos a nomenclatura supletivo para caracterizar cursos e o
nível educacional atingido — termo designativo para a modalidade já abolido desde 1996,
com a LDBEN, que passou a intitulá-la educação de jovens e adultos121.
A meta estabelecida, de um milhão de jovens e adultos em três anos, mediante a
expansão da oferta de 570% do atendimento até 1998, passava a refletir o contingente de
trabalhadores da indústria, porque se pautava pela Relação Anual de Informações Sociais -
RAIS/95, o que, segundo os dados de atendimento até 2002, vinha sendo cumprida.
88..22 AA RREEDDEE SSEESSII DDEE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO EE OO PPRROOJJEETTOO PPEEDDAAGGÓÓGGIICCOO
A compreensão do que o SESI significa no cenário nacional para a EJA, no contexto
dessa pesquisa, vai ganhando corpo à medida que consigo entrelaçar os muitos materiais que
me foram ofertados, nos quais vou percebendo os movimentos que o SESI faz em busca de
sempre maior competência profissional. Pouco se improvisa, pelo que se observa, no âmbito
técnico da área de jovens e adultos e até mesmo uma relativa autonomia parece coexistir com
as práticas burocratizadas e hierárquicas da entidade. Mas o documento de que me ocupo
nesse item, inaugura algumas concepções antes não verificadas no conjunto de enunciações.
Trata-se do Rede SESI de Educação, formulado pelo Departamento Nacional, com
consultoria de Genuíno Bordignon, da UnB, com o objetivo de explicitar a identidade
educacional e o perfil das ações pedagógicas da entidade. Por meio dele observa-se o esforço
de consolidar o sentido de rede para religar a complexa estrutura sesiana, não somente para
dentro, entre suas partes constitutivas, mas também aos sistemas estaduais de ensino,
justificada pela ampliação e diversificação das atividades educacionais. Por um lado, a
necessidade nasce da visão de totalidade e integração no âmbito nacional que cabe ao SESI
manter, entre o DN e os DRs, ao mesmo tempo em que garante a autonomia e especificidades
regionais destes últimos. Por outro, na dimensão externa, se amplia a função colaborativa,
121 Quanto às formas de organizar a oferta, a ambigüidade existente na atribuição de sentido, pela adjetivação a cursos e exames, no Art. 38, foi mais tarde dirimida pelo Parecer CEB/CNE nº. 11/2000.
327
além das questões relativas ao credenciamento e certificação de alunos, nos diversos
programas de escolarização.
Destacando desse texto o que sobressai como pertinente ao recorte da pesquisa,
inicialmente ressalto a discussão feita sobre sistemas e redes de ensino, buscando conceituar o
que cada termo constituiu com o uso, no campo educacional. Para sistema, o uso amplo,
alheio às divergências com as ciências sociais, se reflete na administração da educação, e o
documento discorre sobre sentidos e permanências, inclusive, ao longo da história da
educação, nas legislações e no pensamento de Lourenço Filho. Abstraindo os usos
consagrados nas enunciações do texto legal — LDBEN, na qual o princípio da estrutura em
rede não é encontrado, nem de sistema educacional (este um dos pontos fortes do substitutivo
Jorge Hage), propõe a imperiosa assunção do termo rede da moderna administração, pelo fato
de esta concepção superar a estrutura clássica, piramidal, da verticalidade das relações de
poder, em busca da identidade dos corpos coletivos, como faz Castells (1999). Relacionando-
a a um novo paradigma de gestão, afirma que organizações em rede são organizações que
aprendem, porque constitutivas de comunidades de aprendizagem.
Para localizar o SESI como organização em rede, aponta duas características da ação
educacional que assim o permitem: a primeira, sua tipificação como instituição jurídica de
direito privado, enquadrada na categoria instituições educacionais privadas “comunitárias”,
de acordo com a LDBEN, por incluir na entidade mantenedora representantes da comunidade;
a segunda, a manutenção de “atividades educacionais, por meio de escolas, centros de
atividades e programas de educação de jovens e adultos trabalhadores, que ultrapassam o
estrito limite legal de ação escolar, tornando pertinente a referência à rede de educação, ao
invés de rede de ensino”. (SESI, 2003a, p. 19-20). Por fim, para que essa rede assim
constituída e identificada, como o documento alerta, não se resuma a uma “mera fotografia,
mero registro estático de escolas e programas que compõem o conjunto SESI” (SESI, 2003a,
p. 22-23), discorre sobre aspectos fundamentais que lhe podem conferir a estatura de rede,
quanto à estrutura e gestão.
Em seguida, o documento apresenta a concepção adotada para o projeto pedagógico
(pelo qual opta, fazendo distinção entre este e proposta pedagógica, por entender ser esta uma
sugestão, ao passo que o projeto resume uma concepção de ação, de compromisso instituído).
Nesse item, destaca os pressupostos pelos quais orienta a formulação do projeto, assim
como sua especificidade e identidade. Mais do que um documento, afirma, o projeto
pedagógico constitui a “matriz teórica que define os pressupostos epistemológicos, filosófico-
328
sociológicos e didático-metodológicos das escolas e da rede” (SESI, 2003a, p. 27). E releva,
adiante, os princípios que guiam a elaboração do projeto pedagógico: participação dos atores
envolvidos, em construção coletiva, em busca do compromisso; flexibilidade, porque a
realidade não obedece a trajetórias predeterminadas, admitindo, portanto, incertezas, o que
confere ao projeto a perspectiva de inacabamento, em permanente reconstrução; sintonia com
o ambiente, captando aspirações, demandas e expectativas do ambiente a que serve; mediação
entre o conhecimento e ação, definindo um sistema de condução estratégica das ações em
sintonia com os fundamentos filosóficos, sociológicos e didático-pedagógicos da ação
educacional.
Chama a atenção a forma como esse documento passa a assumir o projeto pedagógico
para a instituição que, como construção coletiva e sem trajetórias predeterminadas, sofre o
influxo das incertezas e é sempre inacabado, face à sintonia com o ambiente e com os sujeitos
a que serve, o que parece trazer uma forma enunciativa reveladora de novas disposições
institucionais, cuja prática, no bojo do setor indústria, locus do pensamento capitalista, tem
sido marcada por rigor no controle e nas formas de garantir certezas aos investimentos
realizados.
88..33 CCOONNSSTTIITTUUIINNTTEESS EE DDEETTEERRMMIINNAANNTTEESS DDAA CCOONNCCEEPPÇÇÃÃOO DDEE EEJJAA EE DDEE AALLFFAABBEETTIIZZAAÇÇÃÃOO
EEXXPPRREESSSSOOSS NNOO PPRROOGGRRAAMMAA SSEESSII EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDOO TTRRAABBAALLHHAADDOORR
Para compreender as concepções de EJA e as formas de gestão que essas concepções
vão produzindo no âmbito formulador do SESI — o Departamento Nacional —, a entrevista
com Pereira, gestora da EJA no Sistema, traz significativos esclarecimentos. De posse de suas
falas, vou tecendo o modo pelo qual interpreta o Programa em diversos aspectos, e com elas
tranço certas compreensões que meu olhar vai produzindo, em diálogo com o texto enunciado.
A atribuição da importância creditada ao Programa não se restringe aos níveis
técnicos, mas às formas como repercutiu, nacionalmente, entre os presidentes de federações
de indústrias, nos estados, e demais executivos, no sentido de que, assumindo como prioritário
o Programa, investissem na educação do trabalhador e, por meio de parcerias, também
atendessem à comunidade e ao maior número de alunos. Priorizado o atendimento para a
indústria, destacava-se a formação de profissionais, com atenção diferenciada.
Assumida a opção de 1998 até 2003, essa implicou, também a melhoria da gestão da
educação de jovens e adultos, compreendendo este a rede nacional formada, já discutida no
item anterior, e a qualidade que poderia daí advir, inclusive do ensino/aprendizagem nas salas
329
de aula. Os modos de gestão deveriam favorecer a melhoria dos processos nas salas de aula, e
a inclusão dos professores nesses processos também foi prevista, mudando-se concepções de
formação, condições de trabalho, de acesso a materiais etc.
Os resultados da aprendizagem poderiam ser, então, explorados tanto pelas empresas,
nas quais estavam empregados os trabalhadores atendidos, porque esses resultados interferiam
na empregabilidade, como pelas instituições patrocinadoras do Programa.
A idéia de empregabilidade, recorrente nos discursos do SESI e da indústria em geral,
de modo geral, tende a encobrir o desemprego estrutural, resultado das transformações por
que passou o mundo do trabalho, sem precedentes na era moderna, e que atinge o mundo em
escala global. Antunes (1995, p. 47), discutindo essas transformações, além das
conseqüências diretamente vinculadas à classe trabalhadora, do ponto de vista da sua
composição e subjetividade forjada, aponta outra conseqüência, de dupla direção:
“paralelamente à redução quantitativa do operariado industrial tradicional dá-se uma alteração
qualitativa na forma de ser do trabalho, que de um lado impulsiona para uma maior
qualificação do trabalho e, de outro, para uma maior desqualificação”. Ao elucidar esses dois
termos apresenta, junto à redução quantitativa originária, por exemplo pela automatização e
introdução da robótica, não mais a eliminação do trabalho, mas um processo de
intelectualização de uma parcela da classe trabalhadora, em processos atípicos, em que o
trabalhador não mais transforma objetos materiais diretamente, mas programa, supervisiona e
repara robôs em caso de necessidade. Outra tese defende a conversão do trabalhador em
ramos mais qualificados, em que as antigas clivagens na divisão do trabalho estariam sendo
questionadas pela necessária cooperação entre os trabalhadores. Segundo o autor,
“Desqualificou-se em vários ramos, diminuiu em outros [...] praticamente desapareceu em
setores que foram completamente informatizados, [...] e requalificou-se em outros”.
(ANTUNES, 1995, p. 52).
Quanto à desqualificação Antunes refere-se a inúmeros setores operários, atingidos
pela gama de transformações que levaram à desespecialização dos operários oriundos do
fordismo e à massa de trabalhadores que oscila entre os temporários, parciais, subcontratados,
terceirizados, de economia informal.
No caso brasileiro, as questões relativas à especialização e à desespecialização,
qualificação e desqualificação têm, de fundo, uma condição mais adversa: a desescolarização
e a baixa escolarização da classe-que-vive-do-trabalho, o que acaba por fazer incorporar, no
próprio trabalhador, a responsabilidade por sua não empregabilidade, que atinge os mais
330
velhos, diante das ultra-especializações, mas principalmente os mais jovens, aos quais se
soma a falta de experiência profissional, demarcando o círculo vicioso e contraditório do
modo de produção capitalista.
Pereira detém-se na definição do perfil das pessoas que participam do Programa,
dizendo que as idades são muito diferentes: há analfabetos e outros que já haviam freqüentado
a escola; os que precisavam começar pela alfabetização ou pelas primeiras séries do ensino
fundamental ou mesmo pessoas que concluíram o ensino fundamental e queriam fazer o
ensino médio, e como não tinham oportunidade de freqüentar escola própria para o nível
pretendido, permaneciam ali, aguardando que outra oportunidade chegasse.
Ressalta que a metodologia de trabalho tem adotado as referências de SESIeduca, cuja
gênese foi no DR Rio de Janeiro, ao lado do Telecurso 2000, utilizado em Minas Gerais,
como alternativas bem-sucedidas. Mas reitera ser possível trabalhar com esses projetos desde
que princípios e características, cujo centro é o trabalhador, estejam preservados. Ver as fitas
de vídeo do Telecurso, usar o computador, o televisor, o módulo, todas são atividades
pedagógicas admitidas, desde que trabalhando as histórias de vida dos alunos; a promoção e
não a exclusão, como nas práticas anteriores; o acolhimento dos alunos em todas as
necessidades; uma educação mais integral e integrada com as demais áreas, inclusive com os
conteúdos necessários à formação do aluno como trabalhador e cidadão, o que fugiria,
portanto, de uma escolarização restrita ao aprender a ler e escrever e contar, somar. Confirma,
então, que o Programa tem como fundamento a educação do trabalhador, e tanto carga
horária e o tempo no processo são reconhecidos e conferem aos alunos o direito à avaliação
no processo, e certificação final.
88..33..11.. FFeerrrraammeennttaass qquuee oorrggaanniizzaamm aass ssiittuuaaççõõeess ddee aapprreennddiizzaaggeemm:: ccoonncceeppççõõeess ddee
ccuurrrrííccuulloo
A metodologia SESIeduca surge, segundo o documento que a apresenta, no esforço do
SESI advindo da aprovação do Plano Nacional de Educação, em janeiro de 2001, a que a
entidade responde no âmbito do Plano Estratégico 2000-2001, que fixa na educação uma de
suas prioridades. Da experiência no Rio de Janeiro, expandiu-se para todo o país, mediante a
publicação desse único documento de estrutura e funcionamento, que absorveu as propostas
construídas isoladamente, do primeiro e do segundo segmento do ensino fundamental.
Fundamenta a proposta em princípios educacionais embasados nas ciências da
educação, enunciando autores com os quais trabalha: Piaget, Vygotsky, Wallon, Freinet,
331
Paulo Freire, Emília Ferreiro e Cherryholmes, dos quais afirma ter tomado “achados
importantes que elucidam como a pessoa se torna inteligente, como aprende, como faz de um
novo conhecimento um instrumento de transformação da vida prática”, a que denominam de
“construtivismo sociointeracionista, para sintetizar a compreensão do processo de
aprendizagem proposto pela Metodologia SESIeduca”. (SESI/RJ, 2001, p. 6-7).
Indicam, em seguida, as idéias-chave do conceito: a) o aluno como construtor do
conhecimento; b) conhecimento como construção social; c) a aprendizagem é mediada; d) o
professor é o mediador da aprendizagem; e) o professor aprende, quando ensina; f) trabalho
cooperativo e comunicação entre os alunos; g) formação adequada do professor; h) formação
integral da pessoa pela educação; i) concepção epistemológica de currículo, como ambiente
de aprendizagem. (SESI/RJ, 2001, p. 7-9).
A metodologia abrange o atendimento da alfabetização até o ensino médio, formulado
posteriormente, e a incorpora como um único bloco de educação básica, admitindo o ingresso
do aluno a qualquer momento, em qualquer segmento do conjunto, podendo seguir adiante,
sempre que indicativos da avaliação o recomendem, além dos de idade, nos termos da lei. O
ensino fundamental sustenta três etapas de trabalho: a) alfabetização, para a qual não há
fixação nem de tempo, nem de carga horária como referência; b) primeiro segmento, com
quatro fases totalizando 600h, de 300h as duas primeiras, e outras 300h as duas últimas, com
atendimento de cada disciplina em um dia da semana, em “aulas não expositivas” e com três
campos de conhecimento originando os módulos de ensino — sociedade, meio ambiente e
contexto cultural; c) segundo segmento também com quatro fases, enumeradas em seqüência
às anteriores, com um total de 1200h, com subtotais de 300h por fase. Algumas observações
informam que o conteúdo do primeiro segmento é trabalhado de forma interdisciplinar, por
meio de temas propostos em módulos instrucionais, elaborados pela equipe de professores do
DR-RJ, sob a orientação de professores de universidades estaduais e federais, como
consultores, havendo um módulo inicial em cada segmento que familiariza o aluno com a
metodologia. Outra observação informa que a prática da educação física é realizada em
horário especial, para os casos previstos por lei, e que Orientação para o Trabalho, Educação
Ambiental e Artes estão incluídas no conjunto de disciplinas, desenvolvidas por meio de
projetos. Tanto os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental (elaborados
para a escola regular de crianças), quanto os temas transversais são apropriados na
metodologia e incorporados à proposta.
332
Pereira destaca ainda que, no Programa SESI Educação do Trabalhador, a
alfabetização é o menor segmento, em número de atendimentos, informando, no entanto, que
há, por ora, uma “faixa diferenciada”, compreendida pela parceria com o Programa Brasil
Alfabetizado, logo seguido das propostas para 1ª a 4ª séries, e que a maior procura está de 5ª a
8ª séries — o segundo segmento do ensino fundamental, crescendo bastante, ainda, a
demanda pelo ensino médio na EJA.
Quanto ao Programa Alfabetizar é Construir, que acompanhou a implantação do
Programa de Ensino Fundamental de Adultos, no início da década de 1990, no SESI, Pereira
informa que:
[...] não é mais uma proposta de vanguarda para o setor da construção civil, até porque a gente entendeu e decidiu... a gente começou a entender que pra construção civil não bastava levar material com aquela cara ali e tudo. O que se precisava fazer, além do material pedagógico e tudo era a dinâmica de atuação dentro da construção civil.
Um dos aspectos destacados por Pereira para a atuação em EJA na construção civil
encontra-se na formação do professor. Diz:
[...] o professor, se fosse da alfabetização, ele teria uma forma de trabalho, que variava de estado pra estado, porque alguns precisavam de material didático, outros construíam esse material com o aluno, mas deixou de se dizer assim: “Não, para o setor da construção é esse”. Ele (o material) ficou também obsoleto.
Desse modo, Pereira assinala que o caminho encontrado para o atendimento com mais
qualidade na construção civil foi obtido pela formação dos profissionais para atender a
segmentos diversos, temas diferentes em espaços diferentes, públicos de faixa etária variada.
Destaca, por fim, que o material tem muito a ver com essas condições todas. Prossegue
demonstrando com que concepção se dá a formação do professor, não mais assumido como a
daquele “que ensina e o aluno que aprende, mas ele na posição de mediador da aprendizagem,
com uma dinâmica diferenciada”, o que fez do Programa “o nosso carro-chefe aqui da
educação de jovens e adultos no sistema”. Destaca a condição profissional do professor,
dizendo que não há trabalho voluntário na instituição, só remunerado, e porque se se paga mal
ao professor, apenas com 2h de carga horária diária, não há tempo para o planejamento, o que
compromete as atividades.
333
88..33..22 FFeerrrraammeennttaass qquuee oorrggaanniizzaamm aass ssiittuuaaççõõeess ddee aapprreennddiizzaaggeemm:: ccoonncceeppççõõeess ddee
ppaarrcceerriiaa nnoo PPrrooggrraammaa SSEESSII EEdduuccaaççããoo ddoo TTrraabbaallhhaaddoorr
O Programa foi desenvolvido, em princípio, nas salas de aula, ambientes e empresas,
estas parceiras regulamentares da instituição. Mas também se dispôs a contribuir com outros
parceiros, como governos estaduais e municipais, em apoio às comunidades que não tinham
acesso à educação de jovens e adultos, o que possibilitou atingir à meta elevada, chegando a
quase quatro milhões de matrículas.
Pereira afirmou que esta forma de incentivo aos governos deu-se de variadas maneiras:
em muitos apoiando com a remuneração aos professores, porque têm as salas de aula; em
outros, ao contrário, não têm as salas, ou ainda não têm a estrutura metodológica, ou material
para o desenvolvimento das atividades etc. Em alguns casos, o SESI já tem professores do
próprio quadro, ou contratados. Mas em muitos casos de parcerias, há contratos temporários,
uma prática não muito utilizada pelo SESI, pelas questões legais e trabalhistas. Se
contratados, os professores passam a ser funcionários, o que implica despesas à entidade. Os
do SESI, quando participantes do Programa, são todos funcionários, com contratos de
trabalho. De modo geral, não é feito contrato temporário porque a educação de jovens e
adultos não se desenvolve por tempos anuais, descontínuos. Quando há uma terceira entidade
na proposta de atendimento, como por exemplo, a Fundação Roberto Marinho, com o
Telecurso 2000122, e a entidade conveniada não pode pagar o professor, o SESI também paga,
embora seja um contrato eventual. Nesse caso, o SESI faz a contratação do professor pelo
tempo de vigência do Programa na empresa. E a experiência que se tem é que as empresas
iniciam, por exemplo, com o ensino fundamental e seguem até a conclusão do ensino médio.
Do mesmo modo, quando é o estado que não pode contratar, a duração do contrato está
definida pela duração do Programa, mas na maioria dos casos, quando o parceiro é o estado,
os professores são contratados pelo estado.
122 O Telecurso 2000, desde que foi assumido pela CNI, como alternativa do Sistema S, teve algumas características especiais. Uma delas, a de só trabalhar com a mediação de um professor formado, jamais um orientador de aprendizagem como previsto pelo Programa original, que admitia qualquer pessoa, pois a responsabilidade desse orientador estava em seguir determinados passos da metodologia, que se sustentava no uso dos vídeos e dos materiais impressos. Tanto vídeos, quanto materiais impressos são adquiridos à Fundação Roberto Marinho, que durante muito tempo também os comercializou em bancas de jornal.
334
A necessidade de compreensão nesses modos de realizar as parcerias com o público,
talvez se faça pela condição jurídica do SESI, cujos recursos são provenientes de contribuição
recolhida nas folhas de pagamento, pelo Estado, e repassada, novamente, para o setor privado.
Quando o Programa assume estabelecer a parceria, entende-se que contribui para formar a
rede de atendimento de que a esfera pública muitas vezes fica privada. No modelo
constitutivo da federação, entidades privadas existem e funcionam com benesses e isenções de
impostos, sem que dirijam sua atuação para o que é definido como prioridade pelo Estado,
agindo com total autonomia. Mas ainda assim, essa “devolução” em serviços, não satisfaz, à
medida que segue uma lógica própria de uma entidade representativa dos interesses do
capital, com propostas e objetivos que atendem à concepção de trabalhador dependente, mão-
de-obra para a indústria. Essa compreensão exige a assunção das ações do SESI, no espectro
em que a EJA se faz, mas também é imperioso que essa aceitação não perca o benefício da
dúvida e da crítica, às intenções e aos modos de fazer.
Outra concepção de parceria se destaca, na entrevista: a participação nos fóruns de
educação de jovens e adultos estaduais e nacional. Pereira aponta o quanto o SESI tem se
colocado aberto a este diálogo, inclusive tendo estimulado, em muitos estados em que não
havia fórum, a sua fundação. Reconhecidamente, tem sido o SESI um parceiro freqüente e
constante do movimento em defesa das políticas públicas e de fortalecimento de ações para a
educação de jovens e adultos, embora ocupe e tenha ocupado, muitas vezes, alguns lugares
privilegiados de interlocução — adiante das representações formais dos fóruns — junto ao
Ministério da Educação.
88..33..33 EEvvaassããoo ee ccoonncclluussããoo ddee eessttuuddooss nnoo PPrrooggrraammaa SSEESSII EEdduuccaaççããoo ddoo TTrraabbaallhhaaddoorr
Pereira alerta para o fato de que há, em curso, uma avaliação de competências,
demonstrando que a evasão no Programa, em todo o país, se situa em torno de 12%, o que é
considerado um índice baixo, em se tratando de EJA. Ressalta a necessidade de que o tema —
e o problema, acrescento — deva ser estudado de formas diferenciadas das que até hoje têm
se lançado mão, exigindo releituras e novas significações. Tratar a evasão na EJA como
“desistência”, pura e simples do jovem e adulto, não dá conta da complexidade que se encobre
nos muitos motivos/carecimentos, ilusões/desilusões que impregnam a vida difícil dos
trabalhadores que estudam enquanto trabalham.
Sobre os índices de conclusão de cada segmento, de promoção e de
conclusão/terminalidade, Pereira também afirma ter crescido bastante, atribuindo aos
335
resultados o adjetivo “satisfatório”, assim como à formação dos professores de jovens e
adultos, que segundo ela, apresenta, de 1998 em diante, um quadro bem diferente.
O primeiro momento da validação de um programa institucional, no SESI, foi em 12
de março de 1992, quando o Conselho Federal de Educação aprovou a proposta curricular
encaminhada. Essa proposta, seguindo um percurso de fusão das muitas do SESI, já buscava,
tendo o trabalho como princípio educativo, organizar um currículo diferenciado das
abordagens convencionais, adequado à dinâmica do significado de ser trabalhador estudante.
Entendia que o lugar da educação, no SESI, fazia-se em relação às demais áreas de
assistência, às quais atribuía valor pedagógico e curricular, responsabilizando a instituição,
em todas as suas ofertas, pelo trabalho educativo que a cada uma delas importava.
No que tange à avaliação, a observação curiosa daquele momento foi obtida com o
levantamento realizado pelo DN, a pedido da consultora, em todos os Conselhos Estaduais de
Educação, sobre as concepções que assumiam para a educação de jovens e adultos. O rigor
dos obstáculos impostos à certificação do aprendizado ia desde o controle de notas e
freqüência, até os valores mínimos para aprovação, esses nunca menores do que sete (em
escala de zero a dez). Houve caso, inclusive, em que a nota mínima era oito, o que
demonstrava o forte poder discriminatório de que os Conselhos se valem, para perpetuar, sob
o discurso da qualidade, a exclusão de jovens e adultos dos sistemas de ensino. A certificação,
naquele momento, foi conferida à entidade, que passou a recomendar aos DRs a consulta local
aos CEEs, para revalidação no âmbito dos estados, já com o primeiro aval do CFE, o que em
muito contribuiria para a autorização estadual.
88..33..44 CCoonncceeppççõõeess ddee ffoorrmmaaççããoo ccoonnttiinnuuaaddaa ssuubbjjaazzeemm ààss ccoonncceeppççõõeess ddee EEJJAA nnoo
PPrrooggrraammaa SSEESSII EEdduuccaaççããoo ddoo TTrraabbaallhhaaddoorr
Pereira traz informações relevantes sobre as formas como o SESI tem assumido a
questão da formação:
[...] não basta formar especialistas que vão ficar nos cargos de coordenação, supervisão, tem que chegar essa pessoa ao aluno até na sala de aula. Seja na construção civil, seja na indústria têxtil, seja numa indústria de grande porte que tenha uma sala com ar condicionado, a relação do conhecimento entre aluno e professor tem que ser a mesma. [...] a gente precisa que o professor tenha condições de ser esse mediador e que esses ambientes ofereçam também atrativos adequados.
336
Afirma que, na atualidade, os professores de educação de jovens e adultos não são
mais aqueles que, na grande maioria dos que atuavam no Programa, migraram da educação
infantil. Confirma a formação na área feita por meio de cursos de extensão ou em cursos de
graduação ou especialização para a educação de jovens e adultos, o que significa,
efetivamente, um avanço. Destaca que o SESI constituiu uma estrutura básica para a
formação de formadores — um curso semipresencial que vem sendo desenvolvido com a
UnB, em parceria com a UNESCO, visando primeiramente à qualificação de seus quadros
internos e com oferta para vagas de público pagante externo, a cada módulo. Os materiais
disponíveis constituem módulos de aprendizagem, temáticos, escritos por diferenciados
autores, segundo as áreas de atuação e de pesquisa.
Reafirma que a intenção do SESI em todo o trabalho de formação é a de oferecer
subsídios aos profissionais para que, conhecendo o público com quem trabalham, possam
identificar conteúdos e os sentidos da própria formação e de como esta pode ser realizada
processualmente, pelo fato de serem participantes, colaboradores intensivos, o que poderia
gerar condições para melhorar as práticas pedagógicas.
O curso de especialização, em módulos, tem-se perpetuado ao longo dos anos, sem
interrupções, e qualificado aos técnicos e funcionários do SESI, precipuamente. A constância
da oferta indica o acerto da iniciativa e a concepção que subjaz à formação: continuidade,
como garantia de que os processos de aprender não têm época própria, nem momento certo,
mas são permanentes.
88..44 AAPPRREEEENNSSÕÕEESS EE SSIIGGNNIIFFIICCAADDOOSS PPAARRAA OO PPRROOGGRRAAMMAA BBRRAASSIILL AALLFFAABBEETTIIZZAADDOO:: NNOOVVAASS
FFOORRMMAASS DDEE PPAARRCCEERRIIAA??
Pereira inicia o depoimento sobre a participação do SESI no Programa Brasil
Alfabetizado, em parceria com o governo federal, pela questão do cadastramento, incidindo
sobre as reclamações que colegas fazem sobre o tempo gasto na gestão do Programa, com
esse controle. Alega que há preocupação muito grande do SESI sobre estas críticas porque,
internamente, os que atuam com educação de jovens e adultos estão também habituados a
formas de controle de alunos nas classes e nos programas. Diz que, em verdade, a diferença
para o cadastro que usavam, é que há regras que atrelam os dados inclusive ao pagamento do
professor, e que estes vínculos produzem questões graves quando há atraso no repasse.
Contrariamente à centralização do cadastro e de recursos, as salas e todo o movimento do
Brasil Alfabetizado é muito descentralizado, fugindo da rede SESI e dificultando o
337
acompanhamento e a supervisão. Informa que há relatório feito com os parceiros do
Programa, em que apresentam os dados levantados aos demais parceiros — empresa, estados,
consultores, instituições. Acrescenta que há outros relatórios internos de prestação de contas
dos recursos, além de um outro sobre a avaliação de competências, com dados tanto do
desempenho da instituição, quanto dos alunos.
Interrogada sobre a concepção de alfabetização adotada ao assumir o Programa Brasil
Alfabetizado, pela redução feita dos dez meses de atendimento até então adotados para seis
meses — o tempo do financiamento do programa pelo governo federal123 —, Pereira responde
que as diretrizes e princípios da educação de jovens e adultos se mantiveram, porém
desenvolvidos em seis meses. Argumenta que a análise dos níveis de aprovação, de
promoção, de conclusão na educação de jovens e adultos, por faixa etária, como referido
anteriormente, não diferenciava do que ocorria agora no Brasil Alfabetizado, porque os jovens
e adultos participam, neste Programa, diariamente, o que difere de muitos modelos em que a
organização do trabalho exige mais tempo, por não ser diário o atendimento em sala de aula.
Afirma, inclusive, que essa correlação mostra até que os alunos concluem em um tempo
menor.
Deve-se ressalvar que no primeiro ano, 2003, as metas do SESI para o Brasil
Alfabetizado previam um número muito elevado, que somado ao de outras instituições não-
governamentais, compunham a maior parcela de atendimento, carreando praticamente 70%
dos recursos públicos para a esfera privada. No ano de 2004, foi proposta uma inversão dessa
lógica, sustentada pela Comissão Nacional de Alfabetização, instância consultiva de que o
Programa dispõe, no MEC. Mas o SESI, insatisfeito com a medida, tratou politicamente a
questão, conseguindo garantir mais recursos, mantendo as metas inicialmente previstas, e
comprovando, uma vez mais, a pouca firmeza do Estado para assumir decisões de ordem
técnico-político, diante da classe empresarial. O argumento da Comissão, posto no fato de os
recursos migrarem do público para o privado, defendia as instituições públicas que vivem,
permanentemente, esvaziamentos orçamentários. Além desse argumento, muitos estudos têm
comprovado — e ultimamente a Avaliação Diagnóstica dos Programas Brasil Alfabetizado e
Fazendo Escola reforçou a compreensão — que os recursos investidos nas redes públicas
nelas permanecem, beneficiando a continuidade do Programa e os alunos de etapas seguintes
também. Os recursos que são repassados à esfera privada, entretanto, esgotam-se na
123 Depois do primeiro ano do Programa, o tempo passou a se estender a até oito meses, mas o conveniamento feito pelo SESI manteve o período de tempo, sem aditar mudanças ao contrato.
338
finalização dos programas, a cada etapa, exigindo investimento completo, para poderem
recomeçar nova turma. No caso do SESI, cabe destacar que a entidade acessou, mediante
convênio, recursos adicionais para fazer a alfabetização, no esforço do Programa Brasil
Alfabetizado, sem vinculá-lo com a alfabetização — e suas modalidades — internamente
desenvolvida, mas assumiu o processo de acompanhamento e supervisão dispensado aos
demais programas, com recursos orçamentários próprios. O que a Avaliação Diagnóstica,
entretanto, revelou, é que as parcerias — formas terceirizadas de abrir e manter classes — têm
estado fora do controle da entidade, e tanto a supervisão acaba deixando a desejar, porque
também integra uma rede muito ampla e complexa de parceiros, locais e entidades, como
também a seleção desses parceiros indica fragilidades, que beneficiam, talvez, a entidades,
mais do que a alunos e a professores.
As metas acordadas entre o SESI e o MEC foram distribuídas do seguinte modo:
300.000 alfabetizandos em 2003; 300.000 em 2004; 300.000 em 2005 e 1.100.000 em 2006, a
isso correspondendo, no primeiro ano, 12.000 alfabetizadores e 600 supervisores; 15.000
alfabetizadores e 750 supervisores no segundo e terceiro anos e 55.000 alfabetizadores e
2.750 supervisores no ano de 2006, totalizando 2 milhões de alunos, 97.000 alfabetizadores e
4.850 supervisores. Com essas metas, a necessidade de parcerias se põe imperiosamente.
Ainda sobre a parceria mantida com o governo federal, e as formas como vem
desmembrando essas parcerias na esfera local, cabe ressaltar que uma gestora do SESI,
quando convidada a participar como interlocutora, de reunião na Comissão Nacional de
Alfabetização124, em março 2005, representando o maior parceiro do Programa Brasil
Alfabetizado, possibilitou maior compreensão sobre o cotidiano das classes no âmbito
institucional do SESI. Trouxe uma visão não coincidente com a apresentada por Pereira, em
2004, atribuindo às ações de alfabetização o caráter de “campanha”, forma designativa usada
todo o tempo e defendida com convicção, quando inquirida a respeito, alegando não
reconhecer continuidade na ação. Esse ponto foi objetado pelos integrantes da Comissão, por
ser o de maior ênfase na contribuição consultiva até então prestada, a que o governo vem
respondendo com disposição e empenho. Ademais das críticas encetadas às exigências de
cadastramento e controle, a alegação mais forte para o procedimento residia no fato de que o
tempo era curto, e não possibilitava o desenvolvimento da concepção então adotada. Ainda
segundo a interlocutora, o caráter atribuído de “campanha” ao Programa devia-se ao fato de
124 A informação consta de relatório-síntese feito por mim, depois da reunião da Comissão Nacional, onde represento os Fóruns de EJA de todo o país, no dia 8 de março de 2005.
339
este não interagir com o próprio Sistema S, mas ter existência à parte. Isto se reforçava por
não estar acontecendo, ao término dos seis meses de atividades de alfabetização, qualquer
encaminhamento dos alunos na própria rede SESI de um milhão de alunos, como também
para os sistemas públicos estaduais e municipais porventura com atendimento de EJA. Apesar
de haver estrutura e recursos humanos em uma Coordenação Nacional de Alfabetização no
SESI/DN, com vista a dirimir e enfrentar todas as questões relacionadas ao Programa, em
nível nacional, a gestora dizia não haver política interna que encaminhasse diferentemente a
questão, o que impunha a ela submissão hierárquica para não tomar qualquer providência no
sentido de garantir a continuidade de estudos, tal como desejado. A idade dos alunos no
convênio com o SESI varia de 45 a 103 anos (uma pessoa no Ceará), tal como confirmado na
Avaliação Diagnóstica, e muitos destes com várias inserções em projetos anteriores, e que
têm respondido ao chamado publicitário para a alfabetização, no qual investem também,
configurando um sucesso de atendimento — surpresa, inclusive, para a própria equipe.
Os dados disponibilizados na ocasião sobre resultados do Programa em 2003
apontavam para: 300.000 matrículas, 63.940 evadidos (21%); 236.760 concluintes (79%).
Desses, não se alfabetizaram 37.289 pessoas (16%), e se alfabetizaram 199.471 (84%). A
avaliação foi feita pelo SESI, em parceria com a UNESCO, verificando competências. No ano
de 2003 a pré-testagem ocorreu em Goiás, Pará, Pernambuco, Rondônia e Distrito Federal
para a definição de metodologia de aplicação por técnicos da UNESCO. No ano de 2004, uma
videoconferência orientou os DRs sobre a aplicação de testes por colaboradores do SESI. A
aplicação da avaliação final ocorreu nos DRs do Rio Grande do Sul, Distrito Federal, Paraíba,
Ceará, Rio de Janeiro e Amazonas, com 770 alfabetizandos por estado, totalizando 4.620
jovens e adultos. Os testes foram corrigidos por uma banca formalmente constituída. No ano
de 2005 realizaram o tratamento dos dados e à época do depoimento da gestora na Comissão
Nacional de Alfabetização encontravam-se em fase de consolidação do relatório, assim como
de definição de estratégias para avaliação inicial, processual e final em 13 DRs, abrangendo
2.840 alfabetizandos das cinco regiões geográficas. A avaliação final nesses 13 DRs previa o
envolvimento de 17.160 jovens e adultos. Quanto à evasão, detectaram que as principais
causas referem-se a questões sazonais, mudança de domicílio, problemas de visão e falta de
óculos, à falta de merenda, de apoio familiar e de transporte, de perspectivas para a
continuidade, a cansaço e a doenças, a limitações pedagógicas em função da formação do
alfabetizador, à incompatibilidade de horários de trabalho com o da escola, ao desemprego-
migração, ao alcoolismo, à insegurança, à identificação de alunos já alfabetizados, à
340
duplicidade de alunos em mais de uma instituição, a alfabetizadores com experiência em
alfabetização de crianças e com resistência a mudanças em suas concepções sobre o que é
alfabetizar jovens e adultos; a longos períodos de afastamento da escola; a fatores climáticos;
à demora para o início das aulas. Todas essas questões coincidem com as sistematizações do
relatório final da Avaliação Diagnóstica.
As informações sobre a diversidade metodológica com a qual vêm atuando, referem-se
às diferentes parcerias, mas todas as metodologias, segundo a depoente à Comissão, estão
pautadas por metodologias de ensino e por propostas curriculares fundamentadas em
diretrizes nacionais do SESI. Destacou que a proposta respeita o conhecimento dos
alfabetizandos e o contexto social, pressupondo formação básica em habilidades em nível de
alfabetização e desenvolvimento pessoal do aluno, preparando-o para ampliar suas fronteiras
como cidadãos conscientes e capazes de se integrarem a novas situações. Informou, ainda,
que, para isso, desenvolveram com a UnB uma matriz de competências para o alfabetizador.
Inegavelmente, a parceria do SESI com o Brasil Alfabetizado apresenta, do ponto de
vista da ação gestora nacional do Programa, relevâncias quanto à tarefa assumida,
principalmente no que tange aos investimentos em estudos, assessoramentos e subsídios que
possam contribuir para a qualidade das ações. Entrementes, o que se põe em jogo está distante
da esfera central, e diz respeito ao nível micro em que se operam as questões da realidade.
Para essa compreensão, os dados do relatório final da Avaliação Diagnóstica são
contundentes, verificando pouquíssima, ou praticamente nenhuma, diferença nas práticas
alfabetizadoras das entidades, reafirmando novos-velhos dilemas que a história da educação
de jovens e adultos no Brasil conhece muito bem.
88..55 AALLGGUUMMAASS RREEFFLLEEXXÕÕEESS SSOOBBRREE OO CCEENNÁÁRRIIOO DDEE EEJJAA EE AA AAÇÇÃÃOO DDOO SSEESSII NNAA EESSFFEERRAA
PPÚÚBBLLIICCAA
Pereira diz perceber um movimento maior das universidades tanto na formação para a
educação de jovens e adultos, como para o incentivo à pesquisa, diferente de quando o
trabalho de implantação do Programa SESI Educação do Trabalhador começou. Observa,
entretanto, a existência de um cenário de muitas mudanças, nesse momento não tanto no
cenário interno, mas no cenário externo — partindo do próprio governo — sinalizando
positivamente em relação às intenções comprometidas. Nesse espectro de mudanças, Pereira
entende que as instituições SESI, SENAI, SESC, SENAC terão de se movimentar e se aliar ao
governo, em resposta às áreas sociais e naquelas em que as demandas são maiores, como
341
educação, saúde etc., o que também é indicativo feito no relatório final da Avaliação
Diagnóstica dos Programas Brasil Alfabetizado e Fazendo Escola.
A despeito da iniciativa e produção de uma “nova” concepção para o ensino
fundamental de jovens e adultos, como tem sido apontada a Metodologia SESIeduca, não se
observam nem na estrutura proposta, nem no funcionamento, traços inovadores em relação
aos demais projetos abordados nesse estudo, com exceção da proposta baiana. A reflexão que
se deve fazer é de constatação de como tem sido difícil organizar propostas curriculares na
EJA, que pensem currículo para além dos modelos formalistas das escolas regulares, mesmo
quando se refundam novos sentidos para a educação de jovens e adultos, cujos sujeitos, nesse
caso, são trabalhadores. Tampouco a dimensão do trabalho, causa eficiente da existência de
um Programa como este, voltado a trabalhadores, emerge em qualquer campo disciplinar, o
que uma breve visada confirma não diferir dos conteúdos universais e das formas
estruturantes como têm sido apreendidos pela escola.
342
99.. PPRROOGGRRAAMMAA DDEE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE JJOOVVEENNSS EE AADDUULLTTOOSS DDOO SSEESSCC:: AA
PPRROOPPOOSSTTAA PPEEDDAAGGÓÓGGIICCAA EE OO PPRROOGGRRAAMMAA SSEESSCC LLEERR —— AA EEXXPPEERRIIÊÊNNCCIIAA
““QQUUEE NNOOSS PPAASSSSAA””
[...] fazer uma experiência com algo significa que algo nos acontece, nos alcança; que se apodera de nós, que nos tomba e nos transforma. Quando falamos em “fazer” uma experiência, isso não significa precisamente que nós a façamos acontecer, “fazer” significa aqui: sofrer, padecer, tomar o que nos alcança receptivamente, aceitar, à medida que nos submetemos a algo. Fazer uma experiência quer dizer, portanto, deixar-nos abordar em nós próprios pelo que nos interpela, entrando e submetendo-nos a isso. Podemos ser assim transformados por tais experiências, de um dia para o outro ou no transcurso do tempo. (HEIDEGGER, 1987, p. 143 apud LARROSA, 2002, p. 25).
A discussão do trabalho que o Serviço Social do Comércio (SESC) vem realizando na
área da educação de jovens e adultos toma três conjuntos de fontes: o primeiro, representado
pelos documentos Proposta Pedagógica — Educação de Jovens e Adultos do SESC (SESC,
2000a), formulada pelo Departamento Nacional com assessoria externa, e Proposta
Pedagógica do SESC Ler (SESC, 2000b), também formulada pelo Departamento Nacional do
SESC com a assessoria de Ação Educativa – Assessoria, Pesquisa, Informação, de São Paulo.
O segundo, pelo depoimento escrito em resposta a um questionário submetido a duas técnicas
do Programa, sob os nomes fictícios de Maria e Regina (informando que a primeira com
quatro anos de atividades no SESC Ler, e a segunda, dois anos e meio), questionário este
especificamente organizado para esse fim (ver Anexo 1). No caso do SESC Ler não foi
possível o contato direto com os locais em que se desenvolvem as ações, cabendo ao meu
exercício de compreensão a atribuição de sentido às formulações e às concepções expressas,
nas respostas emitidas pelas técnicas. Ambas, experientes na metodologia do Programa e com
considerável trajetória no acompanhamento e monitoramento de todas as ações que envolvem
desde a gestão, passando pelas negociações políticas locais, formação continuada de
professores, avaliação dos resultados, seguramente enunciam concepções forjadas na prática
— e na experiência — vivenciada em muitos locais em que o Programa já foi implantado. O
terceiro, representado pela minha própria experiência em um projeto de formação de
alfabetizadores, supervisores e equipe técnica da Secretaria Estadual de Educação do Piauí,
em apoio ao Programa Brasil Alfabetizado, no marco de referência do Projeto SESC Ler, do
qual participei como coordenadora pedagógica do projeto de formação, o que me permitiu,
por uma única vez, a imersão no campo, em dois municípios do sul do estado, em classes de
alfabetizadores formados nessa parceria. Essa experiência possibilitou observações referentes
não somente à ação política da equipe técnica, representando o SESC, quando da negociação
343
com o Governo do Estado do Piauí, para a formação desses educadores, como também sobre a
atuação pedagógica da técnica pedagógica uma experiência vivenciada coletivamente, e
enredada nessa discussão, com vistas a melhor interpretar125 o papel dos projetos do SESC no
cenário da EJA.
A importância desta entidade do Sistema S, como são chamadas as entidades com
função social e de formação que compõem o setor produtivo da indústria, comércio,
transportes, agricultura, faz-se exatamente porque, sendo ela uma instituição cujos sujeitos
envolvidos são jovens ou adultos trabalhadores, toma a si a função de formação desses
sujeitos para o trabalho de cada setor, esbarrando muitas vezes em necessidades da formação
geral, não garantida pelos processos interrompidos, descontínuos, inconclusos, fracassados de
escolarização, na chamada “idade própria”.
Iniciando pela oferta de serviços, então, na área de alfabetização para os trabalhadores
do setor, essas instituições têm, no tempo, modificado e ampliado sua atuação, tendo em vista
as imensas demandas populacionais que envolvem não apenas os sujeitos do trabalho, mas
suas famílias, seu entorno, suas comunidades.
Desde 1945, quando forças políticas e sociais emergentes procuravam ocupar o espaço
que a democratização do Estado brasileiro oferecia, enfrentando um cenário revelador de um
país empobrecido e com grandes questões sociais a resolver, um movimento do empresariado
do setor comércio, indústria e agricultura na I Conferência Nacional das Classes Produtoras –
I Conclap, lança a Carta Econômica de Teresópolis. Nos desdobramentos históricos, além do
SESI, criado em junho de 1946, nasce o SESC126 em 13 de setembro de 1946, por decreto-lei
do presidente Eurico Gaspar Dutra, autorizando a Confederação Nacional do Comércio a criar
o Serviço Social do Comércio – SESC.
Presente em todas as capitais do país e em cidades de pequeno e médio porte, o SESC
representa uma alternativa importante para a população, em serviços de educação, saúde,
cultura, lazer e assistência.
125 Aproximo minha interpretação ao sentido desafiador com que Geertz (1989, p. 28) alerta pesquisadores. Mesmo não se tratando de um trabalho etnográfico deparo-me, diante das multirreferências qualitativas da pesquisa, com a necessidade de me nortear segundo as recomendações, também, do autor. “Uma boa interpretação de qualquer coisa – um poema, uma pessoa, uma estória, um ritual, uma instituição, uma sociedade – leva-nos ao cerne do que nos propomos interpretar. Quando isso não ocorre e nos conduz, ao contrário, a outra coisa – a uma admiração da sua própria elegância, da inteligência do seu autor ou das belezas da ordem euclidiana —, isso pode ter encantos, mas é algo muito diferente do que a tarefa que temos – exige descobrir o que significa toda a trama com os carneiros” (A trama com os carneiros refere-se a uma história contada pelo autor, recolhida de seu diário de campo, como exemplificação do que é fazer etnografia). 126 In: www.sesc.com.br. Acesso 21 julho 2005.
344
Um ano depois de sua criação, em 1947, o SESC já participava da Campanha de
Educação de Adolescentes e Adultos, que visava à alfabetização, mas também a capacitação
profissional e o desenvolvimento comunitário; em 1967 implementa o Programa de
Alfabetização e de Educação de Base, voltado para a faixa etária de 14 a 30 anos; em alguns
Departamentos do SESC nos estados surgem nesse mesmo ano e 1968 cursos supletivos, em
preparação aos exames de madureza; em 1973 institucionaliza o Programa de Ensino
Supletivo, suprindo a escolarização regular (função suplência) e promovendo a oferta
crescente de educação continuada (função suprimento).
Desde essa época o SESC afirma envidar esforços na perspectiva de contribuir para a
efetivação do direito à educação e para a melhoria da qualidade de vida, centrando sua ação
socioeducativa junto aos jovens e adultos trabalhadores, maiores de 15 anos, da alfabetização
até o ensino médio.
Apenas nos anos 1980 os programas de ação supletiva perdem para a saúde e a cultura
o lugar de prioridade no conjunto de atividades do SESC, retornando nos anos 1990, sob a
pressão das exigências de formação e qualificação profissional, decorrentes da lógica da
globalização que assolava as economias, o que torna a colocar em relevo as ações no campo
da educação de jovens e adultos.
99..11 AA PPRROOPPOOSSTTAA PPEEDDAAGGÓÓGGIICCAA DDAA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE JJOOVVEENNSS EE AADDUULLTTOOSS —— CCOONNCCEEPPÇÇÕÕEESS EE
DDIIRREEIITTOO PPAARRAA AA CCLLAASSSSEE--QQUUEE--VVIIVVEE--DDOO--TTRRAABBAALLHHOO127127
A proposta pedagógica do SESC foi organizada pela equipe técnica do Departamento
Nacional (SESC/DN), com assessoria externa. Portanto, estabelece referências para todos os
órgãos da estrutura SESC nos estados. Está datado, na página de créditos autorais, de
dezembro de 1999, embora a publicação tenha na folha de rosto a data de setembro de 2000.
Esse dado é importante para que se perceba, na rede de significações que se irá construir,
nesse capítulo, em busca de compreensão das concepções de EJA que se pautam pelo
princípio do direito à educação e que sustentam a prática política do SESC, as implicações, ou
não, de eventos que marcaram a EJA nesse ano de 2000, diante do material que era
formulado/preparado para publicação.
Devo destacar o limite da discussão aqui realizada — o que afasta as proposições de
suas práticas — reiterando que não me foi possível observar como as formulações expressas
127 Cf. Antunes (2000, p. 101) nota no capítulo 8.
345
nesse documento se realizam nos projetos, em distintos pontos do país, para além da
alfabetização.
Por acreditar que prática e proposta necessariamente não se confirmam, exigindo uma
visada complementar de uma à outra para melhor compreendê-las, ressalto o limite do
trabalho efetuado com essa entidade, apesar de ter, sobre o material, um olhar marcado por
numersas outras experiências vivenciadas em larga diversidade de propostas e de projetos,
todas submetidas com freqüência à rigorosidade dos estudos e da tentativa de compreensão,
para futura apreensão crítica dos sentidos que encerram.
Considerando que esse documento orientador assinala a presença de ações de EJA em
17 estados — da alfabetização ao ensino médio para jovens e adultos trabalhadores — nas
cinco regiões do país, atendendo a 5.849 alunos, percebo que sua abrangência, do ponto de
vista do território é ampla, mas a expressão numérica do atendimento é restrita, face às
demandas potenciais verificáveis nos dados do Censo IBGE 2000.
O SESC/DN tem sido interlocutor desde a primeira hora no movimento instituinte do
Fórum de EJA/RJ, cujo conhecimento dos integrantes da equipe de EJA sempre se pôs em
diálogo com os demais parceiros do Fórum, participando da rede de formação coletiva e
política que esse Fórum tem assegurado. Isto significa dizer que, de há muito, o SESC, como
outras entidades, por meio de sua equipe técnica, tem se exposto à discussão com outros
pares, assim como tem contribuído em múltiplos espaços de construção coletiva na área,
mobilizados pelo Fórum EJA/RJ.
99..11..11 DDaa ppoollííttiiccaa ddee EEJJAA nnoo ââmmbbiittoo ddoo SSEESSCC
A Proposta Pedagógica (SESC, 2000a) afirma que a ação política do SESC, na
atualidade, mantém-se em sintonia com o momento brasileiro exigente de amplas ações na
área. No ano em que foi publicado, compromissos internacionais de que o Brasil se fez
signatário disseminavam-se pelo país, com o concurso mais das entidades da sociedade do
que do próprio MEC, que se mantinha fiel às suas prioridades com a “universalização do
ensino fundamental”. Se por um lado a afirmação do SESC pode ser constatada pelas
formulações, e certamente pela enunciação em planejamentos estratégicos, se se quiser buscar
informações dessa monta, por outro lado, falta consistência de dados que confirmem essa
enunciação. Sendo o SESC uma entidade do setor serviços, a perspectiva de demanda de
jovens e adultos é, de pronto, esperada por quem se debruce sobre a oferta de trabalho e
emprego na área.
346
Sobre este ponto cabe discutir, brevemente, com Antunes (2000), a forma de ser classe
trabalhadora na nova configuração do mundo, transformado pelas fortes mudanças que afetam
não apenas a organização do mundo do trabalho, mas principalmente a classe trabalhadora, ou
melhor dizendo com o autor, a classe-que-vive-do-trabalho.
O setor do âmbito do SESC, considerado por Marx como de trabalho improdutivo, ou
seja, cujas formas de trabalho são utilizadas como serviço, seja para uso público ou
capitalista, não constitui elemento diretamente produtivo, porque o trabalho é consumido
como valor de uso e não como trabalho que cria valor de troca. Esse trabalho improdutivo
abrange um enorme contingente de trabalhadores assalariados, desde os incluídos no setor de
serviços, bancos, comércio, turismo, serviços públicos etc., até aqueles que realizam
atividades nas fábricas, mas não criam diretamente valor. São um segmento assalariado em
expansão no capitalismo contemporâneo — os trabalhadores em serviços —, e embora sejam
considerados agentes não-produtivos, são “absolutamente vitais para a sobrevivência do
sistema”, segundo Mészáros (1995, p. 533 apud ANTUNES, 2000, p. 102). Para Antunes
(2000, p. 102), também, a classe trabalhadora, na atualidade, deve incorporar a totalidade
dos trabalhadores assalariados, que vendem sua força de trabalho, pela forma como se
imbricam trabalho produtivo e improdutivo no capitalismo contemporâneo e como a classe
trabalhadora incorpora essas duas dimensões básicas do trabalho no capitalismo, vendendo
sua força de trabalho em troca de salário. A classe-que-vive-do-trabalho, portanto, incorpora,
além do proletariado industrial e dos assalariados do setor de serviços, também o proletariado
rural, todos vendedores de sua força de trabalho para o capital.
De posse dessa compreensão, por ser o SESC uma entidade de assistência social a uma
enorme parcela da classe-que-vive-do-trabalho, no comércio, estima-se que essa condição de
classe trabalhadora devesse ser central na proposta em questão. No entanto, tratada como
clientela, a classe trabalhadora não apresenta qualquer identidade que constitua diferencial ao
propor uma ação pedagógica para a educação de jovens e adultos. Pensados apenas pela
condição etária, e pela ótica da escola a que não tiveram acesso, demarca-se a
desterritorialização do sujeito do seu campo de trabalho, no qual constitui seu modo de ser
sujeito pelas experiências vividas, ao mesmo tempo em que trabalhador.
Também a tradição, nesse setor, pela conformação da vida social e pela organização da
oferta de empregos formais, esteve, no mais das vezes, voltada para trabalhadores de baixa
qualificação e, complementarmente, de pequena escolaridade. Tomada como atividade laboral
que exige pouca especialização (a idéia de que qualquer um sabe vender) tem sido a saída
347
mais fácil para a ocupação, pelo trabalho, para a população economicamente ativa – PEA,
sem muita exigência de escolarização. Diante da crise de empregos, e do desemprego
estrutural, a exigência de escolarização serve mais para justificar a falta de postos de trabalho
do que, efetivamente, de subsídio real para o desempenho de atividades no comércio. Não se
trata de pensar, apenas, as atividades comerciais mais organizadas segundo lógicas de grandes
empresas, grandes departamentos, cujo perfil do trabalhador seguramente se sustenta na
escolaridade, pela falsa concepção de que neste posto um trabalhador escolarizado dispensa
investimentos na formação em serviço, ou nas especificidades da função que exerce. Mas se
trata de pensar nas inúmeras atividades que se oferecem por “detrás do balcão”, como
pequenos postos de trabalho, com atividade laboral exigente de pouquíssima ou nenhuma
qualificação, dependente, apenas, da prática e da experiência. Desse ponto de vista, como
desprezar o número de trabalhadores do setor demandantes potenciais de escolarização? No
setor serviços, a exigência da prática e da experiência, por áreas específicas, é ainda maior,
considerando-se a pouca oferta de cursos de aprendizagem no setor e da possibilidade de fazê-
los, de grande parte da população. A vida ensina, a experiência conforma saberes e, nesse
fazer-refazer-fazer formam-se os trabalhadores de serviços, para os quais, provavelmente,
algum conhecimento de cálculo (mesmo que seja de cabeça) “resolve” sua necessidade de
aprendizado “escolar”.
No entanto, nessa multiplicidade de perfis profissionais que surgem no setor, nenhuma
quantificação se apresenta, possibilitando aquilatar o tamanho da classe-que-vive-do-trabalho
desescolarizada/não-alfabetizada ou subescolarizada, nem oferecendo dados de diagnóstico
que permitam visualizar potenciais demandas, tanto de comerciários, quanto de prestadores de
serviços, quanto de dependentes, ou ainda alguma projeção dos usuários externos que, pela
atuação histórica, acabam envolvidos com programas da entidade. As intenções declaradas de
compromisso com os comerciários de mais baixa renda deveriam coincidir com as maiores
demandas de escolarização, mas não se apóiam em quaisquer dados que justifiquem uma
proposta de assistência social na área, nem tampouco que permitam verificar o equilíbrio
entre a oferta e a demanda potencial.
Ainda quanto à política de EJA do SESC, a compreensão explicitada na Proposta
Pedagógica restringe-se à idéia de escolarização, parte do campo que conforma a área. Os
órgãos públicos de educação também fazem este recorte, regra geral por assumirem, ao pé da
letra, o texto constitucional de direito ao ensino fundamental para todos, independente da
idade — o que na modalidade de EJA acaba por definir apenas a vertente da escolarização
348
como constituinte do dever de oferta do Estado — deixando de lado a vertente da educação
continuada, indispensável à contemporaneidade. Como entidade de prestação de assistência
social, no entanto, o SESC não alarga em amplitude a formulação do campo, principalmente
se apoiada em diagnósticos que talvez revelassem não apenas as exigências de escolarização
dos trabalhadores do comércio, mas também as de educação continuada, pela diversidade e
rotatividade dos/nos postos de trabalho; pela variedade e complexidade das atividades ligadas
ao comércio, exigindo permanente atualização e ampliação de conhecimentos, para
acompanhar os largos passos que a chamada sociedade do conhecimento, da informação e de
consumo dá, no tocante às estratégias, técnicas, tecnologias, que sustentam os serviços desse
setor.
Apontando para uma concepção atualizada, mantém, entretanto, nas atividades
desenvolvidas pelos Departamentos Regionais, a terminologia de Cursos Supletivos de
Alfabetização, conceito abolido do texto legal em referência a cursos, como também
amplamente discutido pelo Parecer CNE nº. 11/2000. Manter a designação supletivo é assumir
a concepção compensatória que cabia no âmbito da Lei nº. 5692/71, de que à ação com jovens
e adultos cabe a função de repor o tempo perdido, resgatar a escolaridade não obtida na época
própria. Também ao admitir que o entendimento da possível aceleração de estudos para
alunos com atraso escolar (cf. Art. 24, LDBEN nº. 9394/96) constitui um princípio, que leva à
adoção de organizações modulares e não-seriadas, pensa-se de modo restrito a intenção do
legislador, explicitada no Parecer CNE nº. 11/2000.
Este Parecer recoloca novas funções, adequadas ao sentido do direito de todos à
educação e aos tempos hodiernos em que se oferta a EJA, abandonando as anteriores vigentes
pela Lei nº. 5692/1971 e enunciadas pelo Parecer CFE nº. 699/72. O Conselheiro Jamil Cury,
autor do Parecer CNE nº. 11/2000 não deixa dúvidas quando rejeita o sentido de supletivo,
por compreendê-lo inadequado para possibilitar o resgate do direito a que fazem jus todos os
cidadãos não-escolarizados quando crianças.
Uma segunda questão a considerar, no âmbito das políticas da entidade, diz respeito à
pertinência de manter ofertas isoladas de cursos de alfabetização, etapa primeira da
escolarização, é fato, mas insuficiente para dar conta do direito ao ensino fundamental.
99..11..22 CCoonncceeppççõõeess ddee EEJJAA eemmeerrggeenntteess nnaa pprrooppoossttaa ppeeddaaggóóggiiccaa
Mesmo sem a centralidade da proposta colocada na condição de sujeito trabalhador,
busco compreender, neste tópico, as concepções de educação, de EJA, de ensino fundamental,
349
de currículo, de formação continuada enunciadas, com base principalmente nos princípios que
fundamentam a Proposta Pedagógica, apreendendo os modos como a EJA vai-se constituindo
na instituição, em relação aos demais programas/projetos da mesma área.
Cinco princípios são enunciados como sustentáculos da Proposta de atuação no campo
da EJA: o diálogo como base para a construção do conhecimento; a participação e a
construção da cidadania; a diversidade cultural e a compreensão da unidade na pluralidade; a
abordagem interdisciplinar; os saberes e a construção de seus processos.
Alicerçando alguns desses princípios nas elaborações teóricas de Paulo Freire, o
documento traz, no entanto, alguns “conceitos” que me despertam curiosidade, por
constituírem, para mim, novas enunciações. Como não há referência a autores, pressuponho
serem eles de formulação da equipe envolvida com a produção do documento. Por exemplo, o
que significa uma diversificação de compreensões sobre participação (resignada, ativa,
provocada, plena) (SESC, 2000a, p. 17-18), se estes “conceitos” não são suficientemente
explorados, nem trazem as bases por meio das quais as constatações que lhes conformam
passam a assumir “caráter de verdade”?
Quando se explicita o princípio de construção de saberes (SESC, 2000a, p. 21),
invoca-se a idéia de que “há duas maneiras de reprodução dos processos de trabalho” onde os
saberes se produzem, baseadas em “duas formas distintas de saber-fazer: os incorporados” e
algoritmos. Para incorporados, diz-se que são o resultado da aprendizagem pessoal, realizada
pela experiência, indissociáveis de indivíduos e de grupos, que sabem realizar as tarefas
inerentes ao trabalho, mas não sabem como chegaram a sabê-las. Segundo o texto, é pela
aprendizagem que se dá o saber-fazer incorporado. “A grande maioria dos saberes-fazer dos
alunos jovens e adultos é construída por esses processos, que se referem à incorporação de
habilidade técnica adquirida pela experiência, onde método e conteúdo são inteiramente
indissociáveis” (SESC, 2000a, p. 21), em oposição ao modelo escolar — o algoritmo —
forma de conduzir o processo de ensino-aprendizagem com que se confrontam na escola. Não
me basta a idéia de oposição para discutir o que consigo ler para além dessa enunciação. Em
jogo, percebo a fragilidade de assumir o saber de experiência como um saber possível, a partir
do qual se consolidam processos de ampliação de novas aprendizagens. Não se estaria,
portanto, restringindo a experiência a um lugar menor, já que se afirma que esta apenas
oferece possibilidade de produzir saber por meio da habilidade técnica? Busco em Larrosa
(2002, p. 21) o auxílio para essa compreensão, quando retoma a noção de experiência de
forma magistral. Bebo da fonte, na mão em concha, na qual recolho, como água, idéias
350
indispensáveis para pensar o “saber de experiência feito”, no dizer de Paulo Freire, que
precisa ter lugar central na educação de jovens e adultos. No caso do SESC, cujo público de
EJA é o trabalhador essencialmente formado no trabalho, lugar onde aprende a ser
trabalhador, onde professa seus sentidos de mundo e produz os conhecimentos que lhe
permitem viver essa condição, que sentido tem a palavra trabalhar, como experiência, essa
acontecência que não recolhe de outrem, mas que lhe passa, mudando a si mesmo e o próprio
trabalho, e, por ela arrogando-se a interferir no projeto pedagógico? Compreender o sentido
da experiência parece fundamento indispensável à busca que empreendo:
A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça. [...] Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara. (LARROSA, 2002, p. 21).
E o autor segue, explicando como pensa a educação a partir do par experiência/sentido
e, para isso, busca certo significado para estas duas palavras em distintos contextos,
mostrando como a experiência é cada vez mais rara, apesar de nos passarem tantas coisas.
Afirma Larrosa (2002, p. 22) que um dos óbices à experiência é o excesso de informação, o
que considera quase uma antiexperiência: “[...] está melhor informado, porém com essa
obsessão pela informação e pelo saber (mas saber não no sentido de ‘sabedoria’, mas no
sentido de ‘estar informado’) o que consegue é que nada lhe aconteça”, alertando ainda para o
risco de tomar sociedade da informação como sinônimo de sociedade do conhecimento. Um
segundo óbice à experiência, para o autor, é o excesso de opinião: “[...] a opinião, como a
informação, se converteu em um imperativo. Em nossa arrogância, passamos a vida opinando
sobre qualquer coisa sobre que nos sentimos informados”, e essa obsessão também anularia as
possibilidades de experiência. A terceira grande adversária da experiência é a falta de tempo
(LARROSA, 2002, p. 23):
Tudo o que se passa, passa demasiadamente depressa, cada vez mais depressa. [...] se reduz o estímulo fugaz e instantâneo, imediatamente substituído por outro estímulo ou por outra excitação igualmente fugaz e efêmera. [...] a velocidade e o que ela provoca [...] são também inimigas mortais da experiência.
Chegando à relação de suas reflexões sobre a experiência com a questão educacional,
nesse contexto de tudo “que não nos acontece”, Larrosa (2002, p. 23) afirma estar convencido
de que “os aparatos educacionais também funcionam cada vez mais no sentido de tornar
impossível que alguma coisa nos aconteça”, tanto pelo tempo maior que estamos na escola,
351
mas cada vez com menos tempo; quanto porque os pacotes curriculares são numerosos e cada
vez demandam mais tempo, fazendo com que nada nos aconteça, pela aceleração e quantidade
de conteúdos a que somos submetidos.
Por fim, relaciona a perda da experiência ao excesso de trabalho, alertando que se
confunde experiência com trabalho, opondo falsamente o saber dos livros, como teoria, ao
saber da prática, do fazer, esse sim, experiência, obtida pelo trabalho. (LARROSA, 2002, p.
23-24). Paradoxalmente, o autor ao concluir que o trabalho é também inimigo mortal da
experiência, traz de volta a necessidade de repensar a possibilidade de que algo nos aconteça.
Quando se propõe a valorização dos saberes produzidos pelos alunos de EJA (a célebre
questão “partir da realidade do aluno”), não se acaba admitindo que há duas (ou pelo menos
duas) “qualidades” de saber em jogo: uma que é fruto da experiência — como “coisa” menor
que não é possível negar, mas esvaziada de sentido; outra, acadêmica, constituída pelo saber
dos que sabem, porque aprenderam escolarmente o que pensam ser a “verdade” do saber.
Alerto para o risco de, ao tentar negar a oposição entre esses dois “tipos” de saber,
acabar-se negando a negação, oferecendo reforço, em vez de questionar, à visão da ciência
moderna que trabalha ainda hoje com essas falsas oposições. A possibilidade de fazer dialogar
esses saberes, sem o que a experiência não acontece, talvez exija a busca de novos
paradigmas, como o de noção de conhecimento em rede (ALVES, 2000; OLIVEIRA, 2001;
PAIVA, 2002), que ajuda a pensar os conteúdos e os modos de ensinaraprender que desafiam
a intervenção pedagógica dos educadores, para além do saber de um sujeito, porque mediado
e produzido, coletivamente, na relação de poder que esse saber/saberes estabelece(m) nos
diferentes grupos sociais. Cuidar, portanto, para que o conhecimento não seja mediado por um
discurso pedagógico (CHAUÍ, 1990) encobridor da real experiência pedagógica, ou seja,
deixando de fora, a verdadeira experiência, que não é só, como afirma Larrosa (2002, p. 21),
uma questão terminológica, mas práxis reflexiva ou experiência dotada de sentido, mais do
que simplesmente palavra. O saber da experiência se dá na relação entre o conhecimento e a
vida humana, a experiência é uma espécie de mediação entre ambos, e esse saber (de
experiência feito, diria Paulo Freire), não pode se divorciar, nem existir isolado do sujeito que
o encarna.
Regina, integrante da equipe do SESC/DN, respondendo ao questionário assim se
refere à concepção de EJA da entidade, assentando-a justamente no respeito e valorização da
experiência: “educação voltada para a formação de sujeitos, respeitando e valorizando suas
experiências (grifo meu) de vida, através do diálogo constante, com a preocupação de
352
trabalhar os conteúdos de forma significativa, em que possam fazer uso desses conhecimentos
em suas vidas cotidianas”. A valorização da experiência está posta, embora pareça que, apesar
de valorizá-la, a Proposta Pedagógica está fora da experiência dos sujeitos, dada pelos
conteúdos a serem trabalhados.
Tomar alguns princípios como fundamentos de uma proposta pedagógica requer não
apenas coerência entre eles, o que expressam, como se expressam, em si mesmos, mas
também de que modo servem para manter inalterados os modelos de percurso — travessia e
perigo, portanto, pela exigência da experiência — que de há muito são oferecidos aos jovens e
adultos, e que não rompem, efetivamente, com as exclusões, as evasões/expulsões (como
preferia Paulo Freire), nem com padrões curriculares produzidos a priori, em que os sujeitos
da experiência — alunos e professores — não estão com eles envolvidos. As concepções
impregnadas, subjacentemente, dos modelos formais de escola, com pequenas alterações
(ciclos, etapas, fases), mantêm a fragmentação, a compartimentalização disciplinar que, se
pondo como algo inquestionável, não possibilita transformar o modo de “ver/compreender” o
fenômeno, mas tenta agora, pela chamada interdisciplinaridade, juntar o que se mantém
separado pelo modelo disciplinar.
O uso da expressão ensino supletivo (mais uma vez as palavras...) e o sentido a ela
atribuído, remetem-me à reflexão de que seu uso, durante muito tempo, ainda justifica e
deflagra alguns equívocos impensados, que surgem quase espontaneamente na escrita/fala,
sem me possibilitar perceber em que medida o equívoco aparece na escrita apenas pelo
assumir de uma concepção não-internalizada, ou se aparece também confirmando modos de
pensar e de definir política e pedagogicamente as ações na área.
Por sua vez, o modo de conceber a formação de professores traz positivas surpresas,
pelo resgate do valor da formação continuada, apoiado em discussões e entendimentos de
como esse professor tem sido formado e no para que se forma o educador que atua na EJA. O
professor visto como jovem e adulto em processo de aprendizagem, no que Hamburgo
considerou uma segunda vertente da EJA, a educação continuada, não se desoculta,
entretanto, mantendo encoberta a possível participação desses profissionais como sujeitos da
experiência, portanto, necessariamente co-autores dos processos de produção das propostas
que os formam. Pelo fato de serem eles profissionais de carga horária de trabalho
integralmente dedicada ao SESC, parcialmente apreendida por processos de formação, essa
concepção, soterrada, precisaria aflorar, consolidando um compromisso com os trabalhadores
professores na vertente da educação continuada, como processo de formação profissional.
353
Do mesmo modo que a ausência da demanda potencial de trabalhadores do comércio é
sentida, também não se dispõem de informações sobre o tamanho da rede SESC e de quantos
profissionais atuam na EJA, em que áreas, com que formação inicial etc. O papel de destaque
para eles reservado, de professor pesquisador, implica ser pensado não apenas para um mais
aprofundado conhecimento sobre suas práticas, mas também como formulador, por meio de
processos investigativos, de novas propostas, novos projetos, novas indicações políticas.
Um ponto que tem sido bastante questionado na EJA, e de muita divergência,
principalmente nas secretarias municipais de educação, pelos múltiplos entendimentos que
gera, diz respeito à carga horária destinada aos projetos. Aqui há sempre uma complexa rede
de sentidos, que associam carga horária diária contratada para o professor e número de dias
letivos anuais à exigência de carga horária cumprida pelos alunos nos projetos de EJA,
abortando as definições legais; as possibilidades reais de tempo dos alunos trabalhadores; a
condição de retorno aos estudos e exigência de disciplina intelectual para seguir estudando; a
flexibilidade do currículo da EJA; à entrada e saída a qualquer tempo, ditada pelo ritmo das
aprendizagens. Ou seja, o tempo previsto para o projeto passa a ser o tempo do aluno,
ignorando-se ser este uma referência, um indicativo, que só funciona como tal, consideradas
todas essas questões, de suma importância quando se trata de alunos trabalhadores na EJA. O
argumento do tempo legal, de dias letivos, de carga horária anual diz, pois, respeito à
organização dos cursos, mas nunca à experiência do educando, esta sim, a referência para o
que lhe acontece, o que lhe passa, durante o tempo de sua volta à escola. No caso do SESC
não parece ser muito diferente, estabelecidos que estão os prazos de cada etapa/ciclo, embora
se admita a entrada e saída a qualquer tempo, mas com metas e marcos de chegada definidos
para garantir a continuidade, necessariamente em outro nível de atendimento.
99..22 AA PPRROOPPOOSSTTAA PPEEDDAAGGÓÓGGIICCAA DDOO PPRROOJJEETTOO SSEESSCC LLEERR —— AAÇÇÃÃOO//CCOONNCCEEPPÇÇÃÃOO DDEE
AALLFFAABBEETTIIZZAAÇÇÃÃOO
A Proposta Pedagógica do Projeto SESC LER (SESC, 2000b), formulada pelo
Departamento Nacional com a assessoria de Ação Educativa – Assessoria, Pesquisa,
Informação, do mesmo modo que o documento anterior datado de 1999, só é publicada em
setembro de 2000. Em maio desse mesmo ano era aprovado o Parecer CNE nº. 11/2000, que
estabelece as Diretrizes Curriculares para a EJA. Essas Diretrizes, como referência para
projetos de escolarização — que a Proposta Pedagógica configura —, não foram, no entanto,
incorporadas como tal nessa Proposta, mesmo com um intervalo de tempo que teria
354
possibilitado uma revisão última, para ajustá-la e atualizá-la no tempo presente de sua
formulação. O mérito do referido parecer está, justamente, em não criar parâmetros, que na
prática constituem “o currículo” da escola de ensino fundamental e de ensino médio; mas em
apontar discussões de fundo da área da EJA que não podem ser minimizadas, por constituírem
a essência que contribuirá para estabelecer, em definitivo, a ação político-pedagógica do
direito, indo buscar conceitualmente compreensões que alteram campos semânticos na área,
como por exemplo a idéia de supletivo. Anexo a este documento, o folheto SESC LER:
educação por inteiro (SESC, 2000c) apresenta outras informações não constantes, em muitos
casos, da Proposta Pedagógica. Assim, tomarei como subsídio o documento principal em
diálogo com este folheto, pelo fato de me oferecer, por vezes, reforço e/ou informações a
questões não esclarecidas pelo primeiro.
A primeira consideração a fazer neste item diz respeito ao nome de Projeto
Pedagógico SESC Ler, que induz à compreensão de que se trata de um programa de leitura, o
que consiste em equívoco e frustra expectativas que não se confirmam durante a leitura do
documento. Como segunda consideração, destaco o risco de o projeto SESC Ler constituir
uma oferta descolada da Proposta Pedagógica que pensa o ensino fundamental em cinco
ciclos. Em sendo o direito constitucional preceituado para este nível de ensino, e tendo o
SESC assumido sua disposição de não apenas contribuir, mas fazer o chamamento de outras
instituições para o esforço de atuar na área (SESC, 2000a, p. 7), espera-se coerência quanto
aos projetos que vão sendo implantados.
Atuar apenas em nível de alfabetização e fazê-lo em nível de todo o ensino
fundamental são desafios imensos, tanto pela abrangência de cada um deles, diante da
demanda potencial, quanto pela complexidade que cada etapa/nível implica, no horizonte da
alfabetização e de uma proposta adequada a jovens e adultos, com equivalência ao ensino
fundamental. Diante da arrojada idéia de pensar centros educacionais voltados ao atendimento
integral dos educandos, ousaria pensar que o tamanho do desafio precisa ser ampliado.
Explico: também no projeto de alfabetização, não há dados referentes ao público do SESC na
região, nem tampouco dados de escolarização, relativos ao Censo Educacional do INEP. Há
apenas dados Brasil de escolarização (IBGE 1996), sem referências diretas aos trabalhadores
que integram o conjunto dos setores vinculados ao comércio e serviços, que possibilitem
aquilatar o tamanho do problema na região, estado por estado, exigência essa para assumir e
dar visibilidade ao compromisso social da instituição de contribuir para a redução do
analfabetismo entre os trabalhadores.
355
Devo destacar aqui também, do ponto de vista metodológico, o limite já apontado
quando da discussão do documento Proposta Pedagógica da EJA — se se afastam as
proposições de suas práticas, por não ter sido possível observar como as formulações
expressas nesse documento se realizam nos centros educacionais, em distintos pontos do país.
Mas, nesse caso, especialmente, minha experiência aconteceu, segundo Larrosa, de uma
forma diferente da habitual nos espaços próprios do SESC, porém em boa conta para auxiliar
na compreensão que estive buscando.
Buscando as origens desse projeto, Maria, a segunda respondente ao questionário, me
informa que o SESC tinha o objetivo original de “oferecer um projeto de alfabetização de
jovens e adultos no interior da Região Norte que depois se expandiu para outras regiões, como
uma opção da direção do SESC [...] por trás das nossas ações está a idéia de educação para
todos como um direito. [...] Direito à educação de qualidade com garantia das aprendizagens
básicas, necessárias à atuação social”. Diante dos “mais baixos índices de alfabetização do
país, a Região Amazônica foi escolhida para o lançamento do SESC LER, um projeto criado
em 1999 para transformar a escola em pólo irradiador de educação e cultura para a sua
comunidade e região”. Esta escolha pode estar situada nas dificuldades locais de acesso, e
talvez no desejo de experimentar um modelo de atendimento em centros próprios, como se
verá adiante, mas que não pode ser creditada, sem dúvida, à concentração de comerciários,
nem de empresários do setor que tenham interesse específico em negócios na região. Ao
escolher o Norte do país como área prioritária (e aí não se tem claro o porquê da escolha),
com imediata ampliação para o Nordeste, confirma-se a atenção multicultural destacada no
texto aos grupos negros, brancos, indígenas, mulheres e dos efeitos que ações educativas com
mulheres determinam na vida dos filhos, por exemplo. A informação sobre a escolha não foi
possível obter, e ela ora se confirma, como uma disposição política com alcance para além
dos interesses estratégicos da entidade, ora se afasta, pelos desdobramentos que apresentarei
sobre a parceria com o Brasil Alfabetizado.
A informação de Maria é complementada por Regina, sem que nenhuma das duas
esclareça este ponto. Regina diz estar o projeto:
[...] voltado especificamente para o oferecimento da alfabetização de jovens e adultos em municípios dos interiores do Brasil com os maiores índices de analfabetismo, mas foi analisado que não era suficiente oferecer somente a alfabetização, pois a necessidade da continuidade é bastante relevante para a elevação dos níveis de conhecimento dos alunos. Segundo dados estatísticos, foi verificado que quando não há essa continuidade os alunos acabam abandonando seus estudos e voltando a condição de analfabetos.
356
Essa respondente informa, ainda, que o “direito à EJA passa pela possibilidade de
acesso e permanência dos alunos, através do oferecimento por escolas com essa modalidade
de ensino da educação básica, respeitando suas características e especificidades”.
De toda forma, discutir, para melhor compreender, o SESC Ler, exige levar em conta a
Proposta Pedagógica de EJA, no entendimento de que, sendo o SESC Ler a expressão do
primeiro ciclo do ensino fundamental para jovens e adultos, deva estar referenciado no marco
daquela Proposta. Como parte integrante desta, observo que:
A proposta para o Ensino Fundamental estrutura-se em cinco ciclos contínuos:
o primeiro, necessariamente correspondente à alfabetização, voltada para alunos que não dominam a leitura e a escrita ou, ainda, que tenham insegurança e dificuldade na leitura e compreensão de textos, símbolos e operações matemáticas básicas. Neste ciclo caberá implantar a Proposta Pedagógica do Projeto SESC Ler. A duração prevista é de até um ano, sendo que a permanência ou aceleração dependerá do ritmo de cada aluno.
No folheto, encontro a informação de que há “Centros Educacionais SESC Ler, um
novo conceito de educação e cidadania”, como informação sobre a expansão do projeto para
além da Região Norte, e outras informações genéricas sobre as ofertas contidas na proposta:
Ampliando sua ação para o Nordeste [...] através de arquitetura e projeto pedagógico inovadores [...].
[...] Sua motivação inicial, a alfabetização de jovens e adultos, é apenas o primeiro passo para uma educação integral com a construção da cidadania, utilizando salas de aula, sala de leitura e telessala para atender às necessidades de educação e cultura de cada comunidade.
[...] Desde 1998, o SESC LER contribui para a formação de educadores das redes pública e privada das comunidades onde atua. Utilizando o suporte do acervo da sala de leitura e de vídeos, realiza seminários e cursos para professores e supervisores.
[...] À medida que estende sua atuação, o SESC Ler beneficia mais crianças com o Projeto “Habilidades de Estudo” em que alunos de 7 a 14 anos das escolas da região freqüentam o Centro Educacional no horário inverso ao seu curso.
A ação alfabetizadora pode-se dizer, desencadeia um processo maior do que ela,
chamado de projeto SESC Ler, mas que inclui a instalação de centros educacionais, com
dispositivos e equipamentos para o desenvolvimento de ações que o SESC já oferece nas
áreas de cultura, lazer e saúde. Entre elas, de leitura, de formação de professores, de educação
artística, esportes, atendendo, além de jovens e adultos, também a crianças e adolescentes, em
atividades que se associam à ação formal da escola. Para oferecer essas atividades, os centros
educacionais têm três salas de aula; uma sala de leitura equipada com cerca de 300 títulos
357
técnicos e literários, televisão, aparelhos de som e videocassete; oferece lanche; um campo de
futebol; em alguns há uma sala polivalente. Para jovens e adultos, o projeto SESC Ler não tem
a pretensão de solucionar “isoladamente o problema do analfabetismo e do déficit educacional
da sociedade brasileira; entretanto, contribuirá diretamente para minimizá-la, podendo ainda
servir como referência nacional, um exemplo que anime outras instituições a atuar no mesmo
sentido” SESC, 2000b, p. 7). Funcionando em horário integral, os centros educacionais dão
acesso a um público variado de diversas faixas etárias, a salas de aula, como também a salas
de leitura, com acervo diverso, além de outros espaços próprios para atividades esportivas,
culturais e de atendimento à saúde.
Figura 1: Centro Educacional In: Proposta Pedagógica do SESC Ler, 2000, p. 9.
358
Pólos irradiadores de cultura e ponto de encontro das comunidades, os Centros Educacionais do SESC LER
estão em 69 municípios de 17 estados. Criado em 1999, o projeto parte da alfabetização de jovens e adultos para
assumir um novo conceito em educação e cidadania. Educação Integral
Os Centros Educacionais funcionam em construções adaptadas às características de cada região. Cada Centro tem três salas de aula, campo de esporte e sala de leitura
contendo um acervo diversificado com obras literárias e livros técnicos necessários à formação continuada dos
professores, e equipada com televisão, antena parabólica e videocassete.
O projeto escolariza maiores de 15 anos e abriga a atividade HABILIDADES DE ESTUDO, que atende
crianças matriculadas no Ensino Fundamental. Por meio de seminários e cursos de atualização contribui também
para a formação continuada dos professores da rede pública e privada.
Na área da Saúde, o SESC LER conta com o apoio do projeto OdontoSESC que promove tratamento
odontológico e ações educativas para prevenção. As deficiências visuais que afetam freqüentemente o
desempenho escolar são acompanhadas pelo projeto VER PARA APRENDER. Todos passam por exames de
vista e, quando necessário, recebem óculos para correção da deficiência visual. Os Centros Educacionais
difundem a cultura e integração da comunidade, realizando torneios e gincanas, festivais de música,
mostras de filmes e artes plásticas, em parceria com o projeto ArteSESC.
O SESC LER representa por isto, um novo conceito de educação por inteiro!
Figura 2: Arquitetura do SESC Ler e texto página www.sesc.com.br . Acesso em 31 maio 2005.
Nas figuras anteriores, pode-se observar o projeto arquitetônico do SESC Ler, e o
texto que expressa a finalidade de sua concepção. Posso inferir o extremo cuidado dessa
oferta para as regiões mais desfavorecidas do país, o que leva a executar uma obra com um
local adequado — os centros educacionais — para que o atendimento educativo e
sociocultural seja feito com respeito, em espaço dignamente acolhedor do usuário.
Há, entretanto, ambigüidade na nomeação (novamente as palavras...) entre o projeto
arquitetônico — físico — e o projeto, ambos com o mesmo nome, o que implica uma visão
restrita do espaço educativo — e dos ambientes de aprendizagem —, possibilitados pelas
condições físicas para as quais a arquitetura e suas funções foram projetadas.
Maria informa que o projeto “sempre inicia nos municípios com uma turma (de
jovens e adultos) utilizando um espaço cedido pela prefeitura ou outra instituição
(associação profissional, de moradores, igrejas), enquanto o centro educacional é
construído. Regina alerta: presente na atualidade “em 18 Estados e no Distrito Federal,
totalizando 71 municípios dos interiores do Brasil (informação de jun. 2005), seu (SESC)
principal objetivo é de transformar os centros educacionais em pólos irradiadores e
catalisadores de educação e cultura para a comunidade onde está inserido e região”. Diz,
ainda, que em alguns municípios é possível realizar essa integração, mas que tudo depende
da política educacional promovida pela prefeitura, havendo, inclusive, em determinados
municípios, parceria com as secretarias municipais de educação. Nesses municípios, há
encaminhamento de alunos das escolas da rede, quando não há vagas suficientes, para o
359
centro educacional, além de este encaminhar alunos concluintes do 2º ciclo do ensino
fundamental para outros níveis mais avançados nas escolas da rede. Também quando
promovem encontros de formação continuada, costumam convidar os profissionais da rede
para participarem e vice-versa. A importância dessa estratégia demonstra como no campo
as redes de ação e de ofertas de atendimento vão-se fazendo, mesmo quando não há
enunciações claras quanto a esse propósito, nem de uma nem de outra parte. No caso do
SESC, a informação que obtenho é a de que a negociação com o poder público implica,
inclusive, a cessão do terreno onde o centro educacional será construído. A exigência é de
que este seja em localidades afastadas da sede dos municípios — muitas vezes, áreas de
ribeirinhos —, nas quais haja carência de escolas e de atividades de cultura e lazer, o que o
centro objetiva responder. No entanto, a questão em jogo é de que forma o poder público
municipal inclui o centro e seus projetos no conjunto das ações educacionais, coordenando,
assim, de forma integrada e com o concurso das entidades, a política mais ampla.
Informam-me as duas respondentes que nesses centros há apoio de supervisão
pedagógica, realizada por uma orientadora pedagógica com carga horária semanal de 40h;
que a supervisão é feita também pela coordenadora estadual, em visitas mensais e pelas
coordenadoras nacionais que realizam visitas anuais. Também os registros diários escritos
pelas professoras — parte integrante da metodologia de trabalho do projeto — são
acompanhados, servindo de base para a formação continuada.
Apesar de um elemento inovador no projeto estar posto na existência de salas de
leitura, em apoio às atividades pedagógicas, do mesmo modo que esporte, lazer, atividades
culturais, a Proposta pedagógica do projeto não faz alusão a como se integram ao
currículo da modalidade EJA. Por exemplo, as salas de leitura, em nenhum momento
ocupam o centro da cena em que se pretende alfabetizar e fazer ler, o que parecia ser a
origem do próprio nome do projeto.
Entendo que às vezes essas ocorrências acontecem pelo fato de as práticas
precederem as propostas, o que, se por um lado confere a elas um senso de realidade
maior, porque ancorado nas vivências, por outro pode acabar falhando no aspecto da
clareza conceitual quanto ao que cada um significa. Assim, tanto se nomeia por SESC Ler
um projeto de ação, quanto a estrutura física em que é abrigado (Centro Educacional do
SESC Ler); tanto se trata no âmbito da EJA um projeto que se define por ter estrutura física
para um público determinado, mas já acolhendo nesse mesmo espaço públicos
360
adolescentes e infantis, agregados por outros projetos que ocorrem, por direito, na mesma
ambiência, produzida para aprendizagens as mais variadas, intergeracionais.
Indagadas sobre como o projeto é negociado com os Departamentos Regionais do
SESC, Regina informa que a “proposta pedagógica norteia todo o trabalho pedagógico das
equipes. Essa proposta serve de referência para que as equipes locais possam elaborar suas
próprias propostas, com base nas suas realidades locais e necessidades”.
Diante de uma proposta pedagógica de alfabetização que integra um ciclo da
Proposta Pedagógica de EJA para o ensino fundamental, de modo a fazer cumprir o direito
constitucional, assegurando o percurso desde a alfabetização até sua terminalidade no nível
de ensino fundamental, nem sempre esse aspecto fica suficientemente visível, tal é sua
força como ação alfabetizadora, cuja existência determina a implantação de um centro
educacional próprio para abrigá-la. Isto acaba por lhe conferir vida própria, como um ciclo
quase desvinculado do todo (o ensino fundamental), e concebido isoladamente (e isso
também se confirma quando o item “certificação” anuncia uma certa terminalidade,
impossível de ser oferecida só para a alfabetização, por esta não constituir nível de ensino a
que a legislação confira reconhecimento para fins de certificação).
Quanto aos princípios que norteiam a proposta e às relações entre eles e princípios
da educação popular, a mesma respondente diz: “Os princípios postos como base são o
diálogo e a participação, entendidos como base para a construção do conhecimento,
respeito aos saberes dos educandos e à diversidade cultural”. E segue, afirmando existir
evidências de
[...] algumas concepções da Educação Popular, quando a entendemos enquanto uma educação derivada da pedagogia proposta por Paulo Freire, na qual um de seus preceitos está na valorização dos conhecimentos que os alunos trazem de suas vivências e experiências. A concepção pedagógica que o Projeto adota tem como pressuposto a relação entre esses saberes dos alunos, considerados informais, com o conhecimento científico.
Maria afirma que esse vínculo, para ela, entre aspectos da educação popular e os
princípios do projeto se estabelecem pela assunção e “valorização dos saberes dos alunos;
o trabalho pedagógico voltado para as questões que afetam a vida dos alunos trabalhadores
e a vida no seu espaço de vivência; o desenvolvimento de metodologias mais adequadas a
esse público; a participação na vida da comunidade e vice versa”. Seguindo a busca
empreendida, surge, nesse escrito, o aluno trabalhador como referência para o projeto,
361
atentando para a necessidade de metodologias que contemplem a condição de classe-que-
vive-do-trabalho.
99..22..11 FFeerrrraammeennttaass qquuee oorrggaanniizzaamm aass ssiittuuaaççõõeess ddee aapprreennddiizzaaggeemm:: ccoonncceeppççõõeess ddee
aallffaabbeettiizzaaççããoo
Quanto às concepções de alfabetização que fundamentam a Proposta, condizentes
com os estudos e pesquisas atuais sobre os processos de aprendizagem da língua escrita e
da leitura, tenho divergências conceituais com o sentido atribuído ao letramento na
perspectiva adotada por Soares (1998), o que me faz optar pelo sentido que Tfouni (1992)
lhe tem conferido. Assim, entendo que o letramento é produção social, enquanto a
alfabetização é individual, mas produzida a partir da condição de sujeito letrado, porque
vivente em sociedades grafocêntricas, em que tudo se organiza pelo escrito. Esse escrito
organizador atravessa a vida dos sujeitos, tanto leitores quanto não-leitores e não lhes deixa
alternativas à condição de não-leitores para viver em sociedade. Esta, no entanto, é uma
perspectiva teórica que, assumida, não me permite invalidar o outro aporte adotado na
formulação da Proposta. De posse do suporte teórico atribuído ao projeto, busco
compreender como se dá a apropriação dessa concepção teórica, possibilitando enunciar o
que é alfabetização; o significado conferido à participação dos alunos e de seus saberes;
seus perfis, e o lugar da condição de classe-que-vive-do-trabalho no desenvolvimento do
projeto, tanto no documento, quanto nas respostas das duas técnicas ao questionário
proposto.
Regina informa que os alunos que estudam no Projeto SESC Ler são, em sua
maioria, pobres, com renda variando de meio a um salário mínimo; outros sobrevivem com
os projetos assistencialistas do governo federal; predominam mulheres e a faixa etária de
30 a 65 anos prevalece. “São trabalhadores, na maioria homens, à noite, e nas turmas da
tarde temos uma maioria de mulheres e idosos”, escreve Maria.
Para Regina, a metodologia está baseada na “concepção de formação de usuários da
linguagem escrita capazes de utilizá-la para diversos fins”, e pensa que, para que isso
ocorra, é “essencial que os alunos possam entrar em contato com textos reais e com
práticas que demandem a leitura e a escrita significativa desde o início do processo de
aprendizagem”. Destaca a necessidade de “valorização dos conhecimentos dos educandos,
propiciando, desde o início do processo, oportunidades para que mostrem o que já sabem e
362
aquilo de que precisam ou que desejam saber”. Maria diz: “trabalhamos com textos,
utilizando-os como unidade comunicativa da língua e a partir deles trabalhamos a
decodificação e os usos sociais da escrita”, acrescentando que o projeto, por isso, “tem a
duração de três anos, numa tentativa de consolidar a alfabetização. Utilizamos a coleção
Viver Aprender como subsídio para o planejamento das professoras e todo o acervo da sala
de leitura para oferecer aos alunos, ex-alunos e à comunidade em geral acesso permanente
à leitura”. Do mesmo modo, Regina informa que:
A alfabetização é entendida como um processo amplo e complexo, pois vai além do saber ler e escrever, visto que é entendida como o fazer uso da leitura e da escrita em contextos sociais. [...] a alfabetização não se limita à simples decodificação das letras, mas no ato de ensinar para que serve a linguagem escrita e como podemos usá-la. [...] (para) formar leitores e usuários da escrita e da leitura é necessário que os alfabetizandos tenham a oportunidade de entrar em contato com textos reais e com práticas que demandem a leitura e a escrita significativa desde o início do processo de aprendizagem, por isso nas práticas de sala de aula (acontece) o trabalho com a diversidade textual.
As enunciações dão conta de um processo de alfabetização baseado em textos, para
além da lógica dos chamados “métodos”, embora não se tenha nenhuma evidência de como
operam os professores nos centros educacionais, e com a perspectiva — mais do que
ensinar a ler e a escrever —, de que se formem leitores e usuários da escrita. Mas observa-
se que, mesmo sendo o projeto SESC Ler um primeiro ciclo, parece não estar desvinculado
da continuidade, aposta presente na fala das duas respondentes, cuja origem Maria
esclarece:
[...] inicialmente pensado para durar um ano com a alfabetização inicial. Logo no final deste primeiro ano percebemos que a continuidade era necessária, não havia para onde encaminhar os alunos alfabetizados e a administração do SESC acatou a sugestão de ampliar o projeto para três anos.
Eis, portanto, como a construção do projeto vai-se fazendo na prática, enredando os
saberes ali produzidos para alterar o curso da ação alfabetizadora, dando a ela
conseqüência, o que visa a garantir o processo de formação de leitores. Regina ainda
enfatiza:
[...] combinação de atividades de alfabetização e escolarização (1ª a 4ª série) de jovens e adultos com ações que o SESC já desenvolve nas áreas de cultura, lazer e saúde. A aquisição da leitura e da escrita, na perspectiva do letramento, é um dos principais objetivos do Projeto, por isso a preocupação em possibilitar o acesso a um acervo variado, através
363
das salas de leitura, integrando-se às atividades promovidas em sala de aula, na perspectiva de promover a relação entre ensino e aprendizagem.
99..22..22 FFeerrrraammeennttaass qquuee oorrggaanniizzaamm aass ssiittuuaaççõõeess ddee aapprreennddiizzaaggeemm:: ccoonncceeppççõõeess ddee
ccuurrrrííccuulloo nnaa aallffaabbeettiizzaaççããoo
Inicio com a fala de Maria: “Currículo é compreendido por nós como o conjunto de
todas as atividades educativas que acontecem nos centros educacionais. Para além da sala
de aula, com os conteúdos, atividades e valores, também as realizações de cultura, saúde
lazer”. Segue informando que “a concepção de currículo está sendo trabalhada junto com a
elaboração e organização dos projetos político-pedagógicos dos centros educacionais que
deverão ser a sistematização do trabalho que já vem sendo realizado, acrescido das
contribuições da comunidade escolar”. Para Regina, o currículo “é compreendido como um
conjunto de valores, conhecimentos, vivências, experiências, ações desenvolvidas pela e na
escola, por isso vai além da listagem de conteúdos programáticos fragmentados”. E afirma,
como a primeira, que é organizado pelo centro educacional com suas respectivas equipes,
mas destaca que tem a referência da Proposta Pedagógica do projeto, além da Proposta
Curricular para o 1º Segmento do Ministério da Educação – MEC. Complementa, dizendo
que “o currículo é organizado a partir das necessidades e interesses dos alunos, através de
temas que serão desenvolvidos e abordados em suas várias dimensões, numa perspectiva
interdisciplinar, buscando-se integrar as áreas de conhecimento”.
A Proposta Pedagógica (SESC, 2000b), no entanto — e diferentemente do que
expressam as técnicas —, não se afastando dos modelos disciplinares de organização da
ciência e dos “conteúdos escolares”, traz ao texto, inclusive, os Parâmetros Curriculares
Nacionais formulados para crianças do mesmo nível de ensino, valendo-se das três
categorias de conteúdos que aquele documento apresenta: conceituais, procedimentais e
atitudinais, todos eles pensados para sujeitos crianças.
As formas organizativas definidas a partir de uma concepção teórica do que deve
ser oferecido ao jovem e adulto, tendo em vista sua experiência, suas necessidades, assim
como os objetivos do curso, são alternativas metodológicas intimamente imbricadas com a
teoria que sustenta a concepção de atendimento para jovens e adultos, de conhecimento, de
homem, de mundo com as quais se trabalha. Não são, simplesmente, estratégias
organizativas, que tomam em conta elementos práticos da realidade, mas devem se
apresentar validando e confirmando as escolhas teóricas. O que a prática do projeto,
364
entretanto, parece revelar, pela experiência das respondentes, é que esta, em verdade,
assume o comando da concepção curricular, para além da enunciação do documento
orientador, valorizando os conhecimentos, as experiências e a cultura dos alunos e da
comunidade como um todo, e adaptando, também, os horários às necessidades dos alunos
trabalhadores.
Discutindo a questão metodológica, Maria diz:
Não vejo que tenhamos uma metodologia, porque isto me soa como algo mais fechado e obrigatório. Para a organização do trabalho didático defendemos o trabalho com projetos didáticos ou projetos de trabalho, de acordo com alguns autores, ou unidades didáticas. De qualquer forma o que pretendemos é trabalhar as áreas de conhecimento a partir da realidade e da cultura do aluno e de maneira integrada.
Um bom exemplo dessa afirmação, talvez seja a definição dos tempos de cada
ciclo, e que estabeleceu para o de alfabetização um ano (na Proposta Pedagógica
encontramos a expressão “até um ano”, o que certamente admite o movimento de saída de
alunos antes do tempo se esgotar). Este ano está traduzido por 450h, com aulas diárias em
cinco dias por semana de 2h30min, durante 180 dias letivos (p. 19). Indico um
estranhamento: por que 180 dias, se a LDBEN define 200 dias letivos?
Esta idéia é complementada por Maria, que informa ser o calendário letivo variável,
de acordo com a realidade de cada município, levando em conta o clima, colheitas, festas
populares etc. “É certo que temos por ano onze meses de aula e quinze dias de recesso
entre o Natal e o Ano Novo, portanto as férias podem acontecer em qualquer mês do ano
de acordo com a realidade local”. Durante o período letivo os alunos são matriculados a
qualquer momento, sendo avaliado para verificar seu ponto de inserção, segundo os
conhecimentos prévios que domina. Não há, portanto, um período definido para a entrada e
saída dos alunos no processo, o que atende às recomendações legais em relação à
modalidade. Alerta-me, ainda, que “se o aluno precisa ir para a zona rural para trabalhar e
depois volta, a sua vaga está garantida”.
Ainda que haja uma referência formal posta nas habituais concepções de currículo
da escola regular, percebem-se significativos indícios de como a prática vem rompendo
com essas concepções e pondo, no lugar, outros modos de operar as situações de
aprendizagem, fazendo emergir, este sim, o currículo — o currículo praticado
365
(OLIVEIRA, 2003), repleto de subjetividades, porque feito-refeito pelos que dele
participam.
A avaliação, no interior desse currículo, é realizada por meio de três instrumentos
básicos: ficha com os objetivos do ciclo, portfólio128, e registros escritos pelas professoras.
Destaco o cuidado de valorizar, no tocante ao trabalho do educador, o papel do registro
escrito, como fundamental para a atuação no projeto e para seguir o percurso dos alunos,
em cada ciclo de aprendizagens. Segundo Regina, “Os alunos se convertem em
protagonistas: decidem e comprometem-se com suas escolhas; assumem responsabilidades
e exercem o direito de eleger, organizar, corrigir e avaliar cada uma de suas ações”, o que
sem dúvida implica uma concepção de avaliação para além da enunciada no texto do
projeto.
O que se assegura aos alunos — “certificado” atestando freqüência e
aproveitamento — nesta etapa, é um instrumento poderoso para a auto-estima, porque
apesar de não ter valor legal conclusivo (nesta etapa de ensino não há terminalidade), tem
valor afetivo e subjetivo, não assegurando, porque não tem poder para isso, mas certamente
produzindo um forte estímulo à continuidade de estudos.
99..22..33 CCoonncceeppççõõeess ddee ffoorrmmaaççããoo ccoonnttiinnuuaaddaa ssuubbjjaazzeemm ààss ccoonncceeppççõõeess ddee EEJJAA ee ddee
aallffaabbeettiizzaaççããoo
O projeto concebe a formação continuada de professores como um princípio
fundamental para a qualidade do trabalho pedagógico, entendendo-a como um processo
que deve ser constante e permanente. Para isso, Regina informa que “há, portanto, a
necessidade de municiar o educador de jovens e adultos de instrumentos teóricos e
metodológicos que permitam uma maior compreensão das especificidades do público”, e
possibilitem mais “condições de enfrentar os desafios que se apresentam cotidianamente,
na sua prática pedagógica”. Conclui essa afirmação dizendo: “Percebemos que esse
investimento na formação tem trazido resultados bastante positivos no contexto de sala de
aula, principalmente em relação à concepção do ensinar e do aprender”. Maria destaca que
a “educação popular não tem sido muito trabalhada por nós, no aspecto teórico nas ações
128 Portfólio tem sido usado como designativo de uma pasta-arquivo com trabalhos de cada aluno, que oferecem uma visão, ao longo do tempo do curso, do desempenho e das aprendizagens realizadas. Seu uso tem fundamentado a avaliação dos alfabetizandos em muitos projetos, mesmo quando esses acervos não são dessa forma denominados.
366
de formação. Não há discussão sobre esse conceito e apenas nas discussões na formação
inicial com as professoras quando estudamos um pouco a história da EJA”.
Informam também que a exigência mínima de formação inicial para a contratação
de professores é o ensino médio (antigo normal), havendo, na maioria dos municípios,
professores com formação superior. O processo seletivo das candidatas — pois
predominantemente o conjunto é formado por mulheres — com vista à contratação é feito
por meio de um primeiro momento de formação envolvendo a apresentação da Proposta
Pedagógica, a concepção pedagógica do trabalho de alfabetização, os referenciais teórico-
metodológicos da EJA que norteiam o desenvolvimento do trabalho de sala de aula, as
áreas de conhecimento, com carga horária de, no mínimo, 24 horas, distribuídas em três
dias.
Os professores possuem uma carga horária de trabalho de 20 horas semanais, sendo
15 horas em sala de aula com os alunos e cinco horas para os momentos de planejamento
coletivo e individual, coordenados pela orientadora pedagógica; a participação em grupos
de estudo que possibilitam a troca/socialização de experiências e a elaboração dos registros
diários. Há ainda ações de formação sob a orientação das coordenadoras estaduais e
nacional. Um dos indicadores do acerto desse processo de formação, segundo Maria, é
observado por meio da “prática e dos relatos das professoras que são mais antigas no
projeto e do sucesso que todas fazem fora do SESC passando em concursos, sendo
convidadas para ministrarem cursos”. Complementarmente, Regina diz que o processo de
formação tem um fundamento essencial: “Ter em mente que sujeitos queremos formar, em
que tipo de educação acreditamos e quais os objetivos que pretendemos alcançar quando
trabalhamos com os conteúdos. O processo de formação deve incentivar a criatividade, o
raciocínio, o desejo de aprender e a responsabilidade com o auto-desenvolvimento e com o
desenvolvimento social”.
99..33 AA EEXXPPEERRIIÊÊNNCCIIAA QQUUEE MMEE AACCOONNTTEECCEE:: SSEESSCC LLEERR EEMM PPAARRCCEERRIIAA CCOOMM OO PPRROOGGRRAAMMAA
BBRRAASSIILL AALLFFAABBEETTIIZZAADDOO NNOO IINNTTEERRIIOORR DDOO PPIIAAUUÍÍ
Minha última discussão nesse capítulo, visando a compreender as formas como a
educação de jovens e adultos — e nela a alfabetização — se concebem como modalidade
de ação político-pedagógica para homens e mulheres interditados ao conhecimento que a
instituição escola tem como atribuição legal, segue, nesse momento, pelo percurso da
367
minha própria experiência vivenciada com o Projeto de formação de alfabetizadores,
técnicos e supervisores no âmbito do Programa Brasil Alfabetizado, como resposta do
SESC Ler ao chamamento do governo federal às entidades da sociedade civil.
Mobilizados pela invocação, a equipe do SESC decidiu atuar no campo do que
entendiam saber fazer melhor: a formação continuada de alfabetizadores. De posse da
vivência nas regiões pobres e afastadas do Norte e do Nordeste do país, e cientes das
questões que afligiam aquelas regiões, conceberam um modo de apoiar o programa
governamental, executando uma parceria diversa da dos demais parceiros. Em vez de se
aventurarem como executores de grandes metas, com recursos governamentais, definiram
fazer, com recursos próprios, formação de alfabetizadores vinculados a parceiros do
programa federal, para o que buscaram parceria do Laboratório de Políticas Públicas da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – LPP/UERJ129, que vem desenvolvendo ações e
estudos nesse campo, desde 2002. O parceiro do Programa Brasil Alfabetizado
contemplado com a formação de alfabetizadores oferecida pelo SESC foi a Secretaria de
Educação do Estado do Piauí, que já se vinculara ao MEC/SECAD — coordenador do
Programa em âmbito nacional.
Três etapas conformaram o Projeto:
a) uma primeira de formação dos formadores, todos sedentos de pôr em relação
suas próprias concepções de alfabetização, demandando um pôr-se de acordo
sobre os modos de enfocar a alfabetização e sua continuidade, com base em
teorias de conhecimento mais afinadas com os processos cognitivos dos jovens
e dos adultos, dialogando com um especialista externo; demandando conhecer a
realidade produtora da desigualdade e do analfabetismo no nordeste do país,
assim como as oportunidades produzidas no seio de uma forte cultura regional
que os projetos de intervenção na região do semi-árido, da seca etc., vêm
desencadeando, para além dos clichês; estabelecer relações entre os dados de 129 O Laboratório de Políticas Públicas – LPP acolhe um coletivo interinstitucional formado por profissionais de longa experiência na EJA, em sua maioria, dispersos anteriormente em variadas instituições, como ONGs, universidades, secretarias municipais. A idéia de juntar essas pessoas e passar a compor, com elas, um coletivo de formação, com vistas a responder às demandas na área, oriundas, principalmente, das prefeituras, definiu um modo de atuar, que exige o exercício cotidiano do diálogo, da tolerância para as divergências teóricas, da democracia, pelo fato de se incorporarem, como elementos vivos, as compreensões que cada formador traz dos processos formadores, revendo-os e fazendo-os interagirem a cada projeto, a partir das múltiplas experiências e conhecimentos produzidos pelas práticas. Nesse coletivo, a experiência, no dizer de Larrosa (2002, p. 28), tem mostrado que a prática é sempre singular, o que obriga, portanto, a novas experiências, que produzem diferença, heterogeneidade e pluralidade.
368
realidade e as condições de trabalho na região no que diz respeito às
possibilidades e limites de um processo alfabetizador; compreender os limites
de atuação de entidades/formadores externos e as dificuldades e esforços das
entidades e poderes locais; imiscuir-se na problemática da exclusão, para além
dos fenômenos educacionais, mas produtora das desigualdades gigantescas que
avançam a cada dia, mais vorazes de pessoas, sob os nossos olhos de não-ver;
b) uma segunda etapa, a da formação propriamente dita de 420 alfabetizadores,
nas regiões — São Raimundo Nonato, São João do Piauí, Uruçuí, Fronteiras —
em que o estado não conseguira ainda atuar, nem com o concurso de outros
parceiros, para atender os sujeitos alfabetizandos cadastrados pelo Programa;
c) a terceira etapa, um trabalho sistemático de formação de um grupo de 60
pessoas, composto pelos técnicos da equipe central da Secretaria de Educação,
pelos supervisores das Gerências Regionais de Educação - GRE (além de
alguns supervisores de campo convidados), e com representantes das entidades
parceiras do governo do estado, na capital Teresina, com carga horária de
120h, sendo 88 presenciais e 32 não-presenciais, justificado por não serem os
profissionais formados — tanto em nível médio, quanto em nível superior —
para a área, desconhecendo e carecendo de princípios, marcos teóricos e
referenciais exigidos para a alfabetização e educação de jovens e adultos. Nessa
etapa, incluíam-se três momentos de seminários, com intervalos entre cada um
deles, em que os supervisores e técnicos desenvolviam seus trabalhos no
campo, com recortes específicos (atividades não-presenciais), postos em
discussão no momento presencial seguinte. Do segundo momento em diante
contou-se com a supervisão a classes, em duas regiões: São Raimundo Nonato e
São João do Piauí, quando se pode ter contato direto com a realidade dos
alfabetizadores e dos alunos na sede das cidades e em distritos fora da sede.
Os relatos dos supervisores, ao longo desse trabalho, demonstraram que, por
exemplo, no que tange às estratégias utilizadas para alfabetizar, alguns alfabetizadores
conseguiram incorporar as orientações dadas no processo de formação e outros não, talvez
pela própria formação que eles tinham, isso não foi possível: continuaram com o “antigo”
método, usando cartilhas, letras recortadas de jornais e revistas, ditados de frase etc.
Alguns resistiam em trabalhar com textos, mas nos últimos meses já estavam mostrando
369
uma aceitação maior. Apesar dos fundamentos da formação, não se desconstrói a
experiência escolar de cada sujeito em 40h de formação, porque essa experiência está
garantida pelas histórias de passagens pela escola, por muito ou pouco tempo e porque o
imaginário social evoca em cada um o modelo fortemente regulador dessa instituição,
impossibilitando substituí-la por outra, por um estalar de dedos.
Outro aspecto, que trouxe diferencial à ação alfabetizadora, deveu-se ao fato de o
SESC, sob pressão do Secretário de Educação, ter fornecido recursos básicos para que as
classes pudessem funcionar. Como a parceria com o MEC/SECAD não previa recursos
para lampiões, botijões de gás como energia e camisas para os lampiões, material didático
para professores e para alunos, além de livros de literatura adequados a neoleitores, foram
feitas doações pelo SESC, embora problemas de atraso na entrega e de impossibilidade de
transporte para os alfabetizadores impediram, em muitos casos, que chegassem às
localidades de destino. Este item tem sido demarcado como positivo na parceria
estabelecida, em relação ao que foi oferecido pelos demais parceiros da Secretaria Estadual
para desenvolver o Programa Brasil Alfabetizado. Seguramente, este “modelo” definiu
resultados mais favoráveis, tanto processuais, quanto finais. Exigiria ainda uma
compreensão mais ampla, tomando em consideração os resultados das demais regiões
cujos recursos foram diversos destes, para estabelecer comparações.
Muitas instituições locais e nacionais já estavam no Piauí, atuando e desenvolvendo
ações importantes, o que exigia a tomada de decisão, por parte do governo estadual, sobre
como assumir a coordenação política dessa iniciativa tecida com a participação de tantos
parceiros e atores sociais, para dar conseqüência a políticas públicas na área, sem que
perdesse o norte estabelecido — nesse caso, abolir o analfabetismo no estado, em
orquestração gerida pelo poder público.
Diretamente ligado ao papel do parceiro local universidades, outro aspecto a ser
enfrentado dizia respeito ao nível de leitura e escrita dos alfabetizadores, não apenas
necessariamente ligado ao baixo nível de escolaridade. Soluções locais exigem ser
encontradas para definir outra ordem de leitores entre aqueles que alfabetizam. Como
ensinar a ler e a escrever se não se exercitam essas práticas como leitores e como
escritores, usuários competentes da língua? É possível constituir estratégias de trabalho
conjunto com as universidades públicas piauienses?
370
O relato das supervisoras também atestou que, mesmo tendo sido estruturado um
plano de acompanhamento às salas de aula, muitos fatores interferiram para que o
propósito fosse alcançado: grandes deficiências estruturais, localidades muito distantes,
falta de recursos financeiros para o transporte. Apesar de assumidos pela Secretaria os
limites ao trabalho de acompanhamento pedagógico, não exigindo, em momento nenhum,
respostas dos supervisores além das que fossem capazes de oferecer com as condições
existentes, sabe-se que para qualquer programa de alfabetização o acompanhamento
pedagógico demonstra ser substantivo para a qualidade do processo desenvolvido. Mas,
ainda assim, entram em cena as táticas adotadas para que minimamente se tivessem
informações sobre as classes não visitadas: colhidas nos encontros pedagógicos de
formação continuada, no dia da feira na sede do município, quando as alfabetizadoras
vinham praticar o escambo e vender/comprar o que fosse possível. Mas ainda assim, as que
chegaram às salas de aula, sentiram-se contempladas por poder vivenciar caminhos novos
na prática de supervisão, porque conseguiam perceber a metodologia subjacente às ações
dos alfabetizadores; seu desempenho e dificuldades em sala de aula tentando, junto com
eles, encontrar soluções, planejando atividades que se relacionassem com o nível e a
realidade dos alfabetizandos.
O empenho dos formadores e da equipe local parece ter determinado um diferencial
importante no trabalho, pelo envolvimento e compromisso político assumido por todas as
equipes, em forte cumplicidade na execução do Programa.
Mas, para os que trabalharam — o caso dos supervisores e da equipe da Secretaria
— com diversos parceiros, a proximidade e a identificação com uma proposta mais
conseqüente, fundamentada e adequada, estabeleceu um conflito de ação, pelo fato de cada
entidade parceira trabalhar com uma lógica e atrelar o desenvolvimento das ações a
procedimentos justificadores dessa lógica, quando os profissionais não mais conseguem
compreender, nem atuar na realidade, segundo a ótica com a qual são “cobrados” pelos
parceiros. Nem todos, pelo que se observou, estão convencidos de que outros caminhos são
mais eficientes, mesmo quando os fundamentos teóricos e o avanço do conhecimento
ajudam a essa compreensão. Assim, os que assumem outras explicações sobre os modos de
intervir na realidade, nem sempre conseguem/sentem-se seguros para argumentar e
construir caminhos autônomos e diferenciados, o que exige, para isso, maior investimento
371
na formação continuada, em subsídio à produção de autorias e de atores sociais
transformadores.
99..33..11 CCoomm oollhhooss ddee aapprreennddiizz eennccoonnttrroo DDiivviinnaa ee ffaaççoo nnoovvaass lleeiittuurraass
Pode-se destacar que o trabalho realizado sob o patrocínio do SESC, por um lado,
apontou numerosas questões referentes aos necessários encaminhamentos do Programa
Brasil Alfabetizado, assim como indicou possibilidades estratégicas de parceria do
Governo Federal com entidades da sociedade civil, para potencializar não apenas a ação
alfabetizadora que estimula e toma como prioridade de governo, como também para
ressignificar a noção de parceria, ainda exigente de novas práticas. Por outro lado, teve um
sabor de aventura, de mergulho na realidade brasileira pelas condições vivenciadas, de
inexperiência de alguns diante de determinadas situações, de inusitadas (re)descobertas
feitas ao longo da viagem. Assim, o espírito de aventura impregnou-se necessariamente ao
trabalho, associando a ele ainda mais fortemente alguns elementos que se têm buscado
junto aos profissionais da educação: a capacidade de demonstrar autonomia e de resolver
situações-problema; de (re)criar planos e planejamentos, sempre que a realidade exigir; de
assumir a condição de cidadão em processo de intervenção na realidade, com escuta atenta,
olhos de aprendiz, e capacidade de sistematização e de produção de novos conhecimentos.
E, também, a indignação provocada à cidadania, pelas fortes e históricas condições
desiguais que tornam muitos de nós com mais direitos do que tantos outros, arrastando
com esta constatação a necessidade de repensar concepções e práticas de democracia,
incansáveis e incontestes defesas ao saber ler e escrever.
Nessa aventura, encontrei Divina, sua maravilhosa figura emblemática de
professora do interior desse país, no Distrito de Saquarema, em Nova Santa Rita.
372
Mansamente aproximava-se de nós, no trote lento do jegue indiferente à aridez da
paisagem poeira-areia de um tom igual que em nada diferencia o animal da cor-de-tudo.
De longe, o pano listado à cabeça feito de tear e arte, a imagem parecia miragem no
deserto. Meio dama do alto da pose em que vinha, só revelava quem era pelas sandálias de
borracha nos pés empoeirados como os nossos, afundados desde então na terra fofa, pó-de-
arroz inusitado. Sorriso largo, de dentes sem trato, tez e cara bonitas, negra de cor e de sol,
cabelos invernando pelo tempo em mechas brancas. Fizemos festa, cumprimentos, sem que
ela descesse do animal, ali parado, emudecido diante de nossos tantos sorrisos, conversas...
pacientemente. Disse: “Divina”! Não podia ser outra. Era ela mesma assim chegada,
negando o pano da cabeça, vaidosa, para a foto. Professora de todas as crianças do mundão
distante em que Saquarema se afundava, longe, longe, do outro mundo em que vivemos.
Pasta na mão, cadernos das crianças... “Posso ver”? Tudo igual: sílabas, palavras, cópias,
caderno de anotações cuidadoso, cumprindo os ritos das escolas. Materializava-se a
Divina. Magra, ida no tempo duro da vida da gente do semi-árido, cumpria sua sina com
gosto, tal a alegria com que as crianças e adolescentes a pronunciavam. A escola adiante,
despedia-se de mais um dia em que ela vinha, atenta, cuidar dos meninos, ensinar a ler,
fazer escrever. A escola acolá, as casas... onde estão as demais? Poucas ao alcance da vista.
Perdidas na amplidão do espaço beige, da cor do adobe que monta a casa, a escola, o chão,
373
o jegue. Só Divina sabe que existem, só Divina sabe que querem ler e aprender. Por isso
ensina. Menino, menina, pequeno, grande. E segue, divinamente, em passo e compasso do
trote sem jeito, no lombo duro do jegue que sabe como ninguém o caminho da escola.
Talvez, buscando, como professora de uma classe multisseriada, responder aos desejos
daqueles que nós, que a encontrávamos, intentávamos compreender a sentida ausência: nas
classes de alfabetização destinadas a jovens e a adultos, os primeiros não eram
encontrados, porque optavam por permanecer junto aos pequenos, na classe diurna, uma
vez, mais outra, outra mais... pela absoluta falta de qualquer outra oferta a muitos e muitos
quilômetros dali, ou porque ela, a Divina, acolhedoramente os aproximava?
Os alunos da classe de Marlene, que ocupava o mesmo espaço de Divina, só
apareceram para cumprimentar as visitas: era dia de feira na sede do município e a
professora fora até lá, e aproveitara para uma reunião de formação da qual também
participáramos. Os lugares de viver, as histórias que narraram se reeditavam como um
filme já visto por mim, inúmeras vezes, na longa trajetória — risco e perigo — a que
sempre me aventurara pela educação de jovens e adultos.
Marlene, como tantas outras alfabetizadoras, continuava a luta heróica de cada dia,
no trabalho de alfabetização que fazia em Saquarema, como em tantos outros lugares, a
alegria de todos os alunos que haviam conseguido votar naquele recente 3 de outubro, sem
sujar as mãos. Ler pra quê? Poderia ser a nossa pergunta, diante da ausência, olhando-se
no entorno, de um mundo de escrita, apenas simbolizado pelo desejo dos não-alfabetizados
em colocar o nome, e não mais marcar com o polegar a condição de oprimidos. No
contexto histórico vivenciado, “Colocar o nome na ficha de eleitor, com muita honra, sim
senhor!”
Uma parada para banheiro na estrada, de São João do Piauí a Teresina, surpreende-
me novamente com uma inscrição, marcada no adobe primitivo das casas da região,
exatamente na porta do banheiro masculino — impossível não considerar —
anunciando/confirmando/resumindo o nível de escrita dos que podiam ler e escrever, na
região.
374
Eis os indícios buscados nas produções textuais dos alfabetizandos, denotando suas
apreensões do código, dos caminhos e processos em curso, e do quanto precisa ainda ser
feito para que dominem, com autonomia, a norma culta. O sentido, claramente enunciado,
fazia a mensagem evidente e compreensível, mas indicava a necessidade de continuidade
para que o processo de aprendizado da leitura e da escrita se consolidasse. Impossível não
fotografar e tomar como exemplo do uso social da escrita, das práticas cotidianas.
Na incursão que o SESC faz por meio dessa parceria, alargando os procedimentos
do fazer do SESC Ler, Regina refere-se ao encaminhamento dos alunos que participaram
das turmas do Programa Brasil Alfabetizado, para os centros educacionais recentemente
construídos nos municípios de São João do Piauí, São Raimundo Nonato, Guaribas e
Acauã, com vistas à continuidade de estudos, pós-alfabetização.
Os resultados desse projeto desde que foi implantado, me diz Maria, “não estão
sistematicamente registrados, mas contamos cerca de 24 mil pessoas escolarizadas pelo
projeto até hoje”, e Regina fala dos “vários depoimentos das pessoas envolvidas com o
projeto que evidenciam resultados bastante promissores”. Quando a primeira, Maria,
afirma que vê “mudanças nas concepções, pelo que a prática vem nos ensinando”, porque
“a prática tem entrado em diálogo com teorias inicialmente usadas como subsídios e num
movimento dinâmico de ampliação e aprofundamento das concepções como, por exemplo,
375
o aperfeiçoamento do trabalho com projetos e a necessidade de elaboração dos projetos-
político-pedagógicos”, capta-se o jogo, a arte, a conquista, o enredamento necessário entre
sujeitos, saberes, culturas, para que a alfabetização possa acontecer.
A Proposta Pedagógica do SESC Ler, pelo que a entidade significa no cenário em
que se desenham os múltiplos atendimentos à EJA, e participando do conjunto de atores
que têm contribuído para a institucionalização da educação de jovens e adultos no país, é
merecedora de atenção. Considera-se que, seguramente, sua equipe técnica central vem
atuando segundo incorporações que a prática já revelou — impossíveis de serem
conhecidas pela leitura de uma Proposta; ao mesmo tempo em que refletindo sobre pontos
aqui discutidos, e assumindo críticas que a própria equipe técnica e os professores também
produzem cotidianamente, na interação que estabelecem, pelos diálogos possíveis durante
as atividades de acompanhamento e desenvolvimento dos projetos, e das práticas com os
sujeitos jovens e adultos — professores e alunos de todo o país.
Embora as políticas atuais de EJA busquem o concurso da sociedade e de parceiros
da iniciativa privada, o SESC, atuando nesse campo, assume um papel consistente no
cenário do país, pela objetivação de ofertas inovadoras no conjunto das parcerias, com
vistas a colaborar, formando alfabetizadores — a versão dos trabalhadores precarizados da
educação — de formação de alfabetizadores, para o esforço de uma política integrada.
Essa integração, no caso da experiência no Piauí, confirma a construção dessa
política, pela ação de formação continuada para professores ligados a iniciativas das redes
públicas, o que sugere estar o SESC disposto a estabelecer parcerias com administrações
públicas municipais, para além do atendimento aos usuários jovens e adultos, atuando
também como instituição de formação para professores, esses também jovens e adultos em
processos de aprender continuadamente. Este parece ser o diferencial do investimento feito
pelo SESC na formação de alfabetizadores.
A educação de jovens e adultos, nesse corte dos processos alfabetizadores, não tem
a pretensão de dar, sozinha, respostas, ou as ter melhor do que quaisquer gestores de
políticas públicas. Mas não se vê descomprometida com a melhoria da vida, da ética e da
qualidade educacional da população brasileira, cabendo-lhe denunciar a desigualdade e a
injustiça, e anunciar, como Paulo Freire, a possibilidade de transformar, pelo domínio da
palavra e da leitura de mundo por parte de todos os sujeitos de direito, a vida cotidiana de
tanta gente oprimida.
376
1100.. ““OO LLAATTIIFFÚÚNNDDIIOO DDOO CCOONNHHEECCIIMMEENNTTOO SSEE TTOORRNNOOUU RROOÇÇAA CCOOLLEETTIIVVAA130130””
–– EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE JJOOVVEENNSS EE AADDUULLTTOOSS EE AALLFFAABBEETTIIZZAAÇÇÃÃOO NNOO MMSSTT
Diga-se agora que estas palavras não são novas, já foram ditas na página de trás, ditas em todo o livro do latifúndio, como se haveria de esperar que a resposta fosse diferente, [...] Que os trabalhos de homem são muitos. Já ficaram ditos alguns e outros agora se acrescentam para ilustração geral, que as pessoas da cidade cuidam, em sua ignorância, que tudo é semear e colher, pois muito enganadas vivem se não aprenderem a dizer as palavras todas e a entender o que elas são, ceifar, carregar molhos, gadanhar, debulhar à máquina ou a sangue, malhar o centeio, tapar palheiro, enfardar a palha ou o feno, [...] terrear, empoar e ensacar, o que aqui vai, santo Deus, de palavras, tão bonitas, tão de enriquecer os léxicos, bem-aventurados os que trabalham, [...] (SARAMAGO, 2003, p. 83, 90).
É verdade que depois de derrubadas as cercas do latifúndio, outras se levantarão: as cercas do judiciário, as cercas da polícia (ou das milícias privadas), as cercas dos meios de comunicação de massa... Mas é verdade também que cada vez mais caem cercas e a sociedade é obrigada a olhar e discutir o tamanho das desigualdades, o tamanho da opulência e da miséria, o tamanho da fartura e da fome. (TIERRA, 1995).
O ano de 2004 marcou 20 anos de luta e aprendizado no Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra, acompanhado do setor de educação durante todos esses
anos. Muitas conquistas foram se fazendo, não apenas no atendimento específico aos filhos
dos trabalhadores rurais, como a eles próprios, trabalhadores, mas também em relação à
formação de educadores para as escolas dos acampamentos e assentamentos. O curso superior
Pedagogia da Terra inaugurou uma nova concepção para a formação de pedagogos-
professores e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) foi
arrancado do governo federal de Fernando Henrique Cardoso ao tempo em que os conflitos de
terra e a ausência de agendas para a desapropriação de latifúndios improdutivos causaram
inúmeros embates entre militantes do Movimento, milícias de latifundiários e militares
armados, representando o poder do Estado. Tempos em que a mídia manchou a imagem de
pessoas pobres considerando-as “baderneiras” do campo; tratou enxadas e foices como armas,
destituindo de importância as verdadeiras armas de fogo dos capatazes e dos policiais
armados; criou o medo coletivo e o pânico da “invasão” de cidades, de prédios públicos e de
ameaça à ordem, com a “invasão” (novamente) da propriedade privada, às tentativas do
Movimento de “acuar” as autoridades para auferir o benefício das desapropriações das terras
improdutivas. Enfrentamentos e mortes de uns, de alguns, de massacres coletivos, de
resistência heróica sob a lona preta calorenta, esticada pelos elásticos que distenderam, até
mais não poder, a paciência e a disposição de diálogo dos que passaram a se saber excluídos
de direitos sociais, da justiça, do direito à terra...
130 MST. Caderno de Educação n. 11, 2003, p. 12.
377
A terra pra mim é uma paixão. Eu não nasci propriamente no campo. Mas aos quatro anos eu cheguei ao campo e me adaptei tão rápido que hoje eu não consigo me adaptar na cidade. Para quem é da cidade, parece que no campo a gente tá isolado. Mas a gente num tá isolado. Qualquer informação chega lá. A terra pra mim é uma paixão... (Welson).
Tempos de educação incansável, em qualquer espaço, na “escola” de lona ou debaixo
de árvores, porque referenciada intencionalmente a um projeto educativo de transformação,
mas nada assemelhado aos prédios com os quais associamos a imagem de escola. Tempos de
educação de jovens e adultos, de alfabetização, em que “a principal lição é que tão importante
quanto conquistar e distribuir terra é democratizar o direito à educação”. (MST, 2004, p. 5).
Desde Ciço, entrevistado por Brandão (1980, p. 7) a idéia de que há um projeto de
educação que o povo bem sabe que lhe pertence, que precisa ser seu, está visível, embora
tantos anos depois os sistemas continuem em busca da uniformidade das propostas, como se
por elas conseguissem chegar à unidade filosófico-epistemológica que deve orientar o
trabalho na educação. Simbolizando a concepção dos desfavorecidos do campo, Ciço assim se
refere à educação que não lhe convém, que não atende aos anseios de seu mundo:
Educação... quando o senhor chega e diz “educação”, vem do seu mundo, o mesmo, um outro. Quando eu sou quem fala vem dum outro lugar, de um outro mundo. Vem dum fundo de oco que é o lugar da vida dum pobre, como tem gente que diz. Comparação, no seu essa palavra vem junto com quê? Com escola, não vem? Com aquele professor fino, de roupa boa, estudado; livro novo, bom, caderno, caneta, tudo muito separado, cada coisa do seu jeito, como deve ser. Um estudo que cresce e que vai muito longe de um saberzinho só de alfabeto, uma conta aqui e outra ali. Do seu mundo vem um estudo de escola que muda gente em doutor. É fato? Penso que é, mas eu penso de longe, porque eu nunca vi isso por aqui.
1100..11 AA PPEESSQQUUIISSAA NNAACCIIOONNAALL DDAA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO NNAA RREEFFOORRMMAA AAGGRRÁÁRRIIAA –– PPNNEERRAA:: DDAADDOOSS QQUUEE
SSEE SSOOMMAAMM ÀÀ CCOOMMPPRREEEENNSSÃÃOO DDAA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDOO CCAAMMPPOO
Os dados do campo, finalmente, foram recolhidos entre final de outubro e dezembro
2004, em uma iniciativa do MEC/INEP e Ministério do Desenvolvimento Agrário -
MDA/INCRA/PRONERA, com vistas a subsidiar políticas públicas e ações articuladas para o
desenvolvimento do campo e da melhoria das condições educacionais, em especial nos
assentamentos. Em versão preliminar de abril 2005, intitulada Pesquisa Nacional da
Educação na Reforma Agrária (PNERA), há alguns elementos esclarecedores para a
compreensão da dinâmica do campo no aspecto educacional, foco de meu interesse.
A pesquisa recenseou 5.595 assentamentos de 1.651 municípios, totalizando os
assentamentos da reforma agrária promovidos pelo Instituto Nacional de Colonização e
378
Reforma Agrária (INCRA) desde 1985. Coletando dados junto a três públicos — professores
ou dirigentes de escolas localizadas nos assentamentos, presidentes de associação de
produtores rurais e famílias assentadas — teve caráter censitário, adotando a escola como
unidade de coleta, e cobrindo todas as unidades de ensino que atendiam alunos residentes nos
assentamentos, localizadas neste espaço ou no seu entorno, num total de 8.679 escolas. Na
coleta de dados junto aos presidentes de associações de produtores, todos os 5.595
assentamentos foram pesquisados. Quanto às famílias assentadas, a pesquisa foi amostral,
garantindo a representatividade de todas as unidades da federação – UFs, coletando
informações de todos os moradores de cada domicílio sorteado, num total de 524.868 famílias
assentadas, perfazendo uma população de 2,5 milhões de pessoas. (PNERA, 2005, p. 6-7).
Para melhor visualização da composição etária dos sujeitos do campo, observe-se sua
distribuição, por faixas, na Tabela 1 (PNERA, 2005, p. 77):
Tabela 1
DISTRIBUIÇÃO DE ASSENTADOS POR FAIXA ETÁRIA (%) - BRASIL E GRANDES REGIÕES - 2004
REGIÃO FAIXA ETÁRIA GERAL
(Ne=2.542.428) (PESSOAS)
NORTE (Ne=839.241)
NORDESTE (Ne=1.064.521)
CENTRO-OESTE
(Ne=361.585)
SUL (Ne=135.951)
SUDESTE (Ne=141.131)
- Até 15 anos 38,4 38,9 40,5 33,1 37,6 33,6
- Até 16 a 30 anos 26,0 26,3 26,7 24,4 24,6 24,7
- Até 31 a 40 anos 12,0 11,9 10,6 14,7 15,1 12,8
- Até 41 a 50 anos 10,7 10,8 9,6 12,5 12,0 12,4
- Mais de 50 anos 13,0 12,1 12,7 15,3 10,8 16,4 FONTE: MEC/INEP e MDA/INCRA/PRONERA - PNERA
Há, como demonstrado pelos números, e coincidentemente com os demais dados de
população, a mesma inflexão da juventude, de 16 a 30 anos, representando, junto com a
população de até 15 anos (que inclui adolescentes), cerca de 64% da população assentada. A
faixa denominada adulta inclui mais do que 22%, pelo fato de não se ter desagregado o
percentual de maiores de 60 anos, faixa considerada de terceira idade.
Quando se observa a Tabela 2, de estudantes segundo níveis e modalidades de ensino,
verificam-se grandes defasagens entre a população anteriormente apontada e os estudantes,
indicando a dimensão do problema com o qual o Movimento lida. Menos de 5% dos
assentados é estudante da EJA, seja na alfabetização (2%), seja na sua continuidade até a 4ª
série (2,7%). (PNERA, 2005, p. 78).
379
Tabela 2
DISTRIBUIÇÃO DE ASSENTADOS ESTUDANTES SEGUNDO O NÍVEL E MODALIDADE DE ENSINO (%) - BRASIL E GRANDES REGIÕES - 2004
REGIÃO FREQÜENTA ESCOLA GERAL
(Ne=2.546.069) NORTE (Ne=840.472)
NORDESTE (Ne=1.066.159)
CENTRO-OESTE
(Ne=362.293)
SUL (Ne=135.934)
SUDESTE (Ne=141.211)
Assentado que freqüenta escola 38,8 (Ne=987.890)
37,3 (Ne=313.124)
42,9 (Ne=457.810)
34,1 (Ne=123.712)
33,3 (Ne=45.271)
34,0 (Ne=47.973)
- Creche familiar / informal 0,1 - 0,1 - 0,4 0,5
- Creche organizada como escola 0,8 0,4 1,3 0,1 0,5 0,7
- Pré-escola 5,1 3,9 6,1 3,6 5,7 7,3
- Classe de alfabetização 2,3 2,8 2,6 0,9 0,3 1,1
- Ensino Fundamental - 1ª a 4ª série 48,4 54,8 48,0 41,1 40,0 36,7
- Ensino Fundamental - 5ª a 8ª série 28,3 24,5 28,0 35,9 34,6 29,9
- Ensino Médio 7,5 6,7 6,5 10,1 10,5 11,7
- Educação Profissional de nível básico 0,1 0,1 0,1 0,1 0,4 0,2
- Educação Profissional de nível técnico 0,3 0,1 0,1 0,6 1,4 1,0
- EJA: alfabetização 2,0 1,5 2,4 2,3 0,7 2,3
- EJA: 1ª a 4ª série 2,7 2,9 3,0 1,7 1,6 1,8 FONTE: MEC/INEP e MDA/INCRA/PRONERA - PNERA
Na Tabela 3 (PNERA, 2005, p. 79), confirma-se a preocupação com a alfabetização,
demonstrada pelo percentual de analfabetos absolutos da ordem de 32,1% — somatório de
percentuais dos que freqüentaram e dos que não freqüentaram escola —, embora se possa
discutir o de que são capazes os que declaram nunca ter freqüentado escola mas saber ler e
escrever (4,9%), além dos quase 40% que só completaram o ensino fundamental até a 4ª série.
Tabela 3
DISTRIBUIÇÃO DE ASSENTADOS NÃO ESTUDANTES SEGUNDO SUA ESCOLARIDADE (%) - BRASIL E GRANDES REGIÕES - 2004
REGIÃO FREQÜENTA ESCOLA GERAL
(Ne=2.546.069) (PESSOAS)
NORTE (Ne=840.472)
NORDESTE (Ne=1.066.159)
CENTRO-OESTE
(Ne=362.293)
SUL (Ne=135.934)
SUDESTE (Ne=141.211)
Assentado que não freqüenta escola 61.2 (Ne=1.558.179)
62,7 (Ne=527.347)
57,1 (Ne=008.350)
65,9 (Ne=238.582)
66,7 (Ne=90.002)
66,0 (Ne=93.238)
Nunca freqüentou escola e não lê e não escreve
27,1 26,6 31,4 20,1 23,4 23,5
Nunca freqüentou escola, mas lê e escreve
4,9 4,7 5,3 6,2 1,7 3,7
Freqüentou escola, mas não lê e não escreve
5,0 2,5 9,2 1,9 2,1 3,1
Creche familiar / informal 0,1 0,2 0,1 - - 0,2 Creche organizada como escola - - 0,1 - 0,1 - Pré-escola 0,1 0,1 0,2 0,1 - - Classe de alfabetização 1,8 1,6 2,4 1,3 1,6 0,6 Freqüentou até EF - 1ª a 4ª série 38,5 43,3 32,6 42,2 41,7 37,8 Freqüentou até EF - 5ª a 8ª série 14,7 14,0 11,8 19,0 21,8 19,6 Ensino Médio 5,6 5,5 4,4 7,1 6,4 8,9 Educação Profissional de nível básico 0,1 - 0,1 0,1 0,1 0,2 FONTE: MEC/INEP e MDA/INCRA/PRONERA - PNERA
380
Quanto às ofertas de educação chamada de “informal” nos assentamentos, o quadro é
perverso também: somente cerca de 50% deles declaram haver cursos de alfabetização de
jovens e adultos, considerada, portanto, como educação informal. (PNERA, 2005, p. 87).
Tabela 4
EDUCAÇÃO INFORMAL NO ASSENTAMENTO FORA DO AMBIENTE DA ESCOLA (%) - BRASIL
E GRANDES REGIÕES - 2004
REGIÃO
DISCRIMINAÇÃO
GERAL (Ne=514.621) NORTE
(Ne=164.838)NORDESTE (Ne=205.130)
CENTRO-OESTE
(Ne=84.940)
SUL (Ne=29.782)
SUDESTE (Ne=29.931)
Não existe iniciativa de educação informal 76,8 81,2 79,7 69,3 68,1 63,1 Não sabe se existe 7,8 10,9 6,4 5,1 7,2 8,8 Existe iniciativa de educação informal: 15,4 7,9 13,9 25,6 24,7 28,1 Alfabetização de jovens e adultos 50,9 71,7 49,6 35,4 52,1 62,2 Ensino religioso 29,8 12,7 20,9 50,1 37,2 27,5 Cursos de capacitação técnica em agricultura, pecuária etc.
21,6 17,4 22,3 17,5 38,7 21,3
14,9 16,5 7,3 13,2 34,6 24,9 Cursos livres (oficinas de artesanato, marcenaria, música etc. Ciranda infantil 4,7 0,6 8,1 0,2 17,5 0,1 Formação política 4,0 0,4 5,9 0,8 13,4 3,1 Outros 7,0 1,6 6,2 13,8 3,3 4,0 FONTE: MEC/INEP e MDA/INCRA/PRONERA - PNERA
Recortando a Tabela 5 que demonstra as atitudes relacionadas à educação e ao
desenvolvimento rural, para destacar as relacionadas à educação, pode-se verificar que há
mais concordância em valores práticos atribuídos ao estudo — negociar com bancos (88,5%),
consciência dos direitos (82,6%), o que mais precisa saber: ler, escrever, contar (69,1%) — do
que em relação ao que se aprende efetivamente na escola (75,8%). A existência da escola,
para 73% de concordantes, foi conquista dos assentados, expondo o poder público, ao qual
não é atribuída nenhuma atitude. Esse talvez possa ser um ponto de crítica ao questionário,
como instrumento da pesquisa, pelo fato de não oferecer a possibilidade aos informantes de
concordância, ou não, com a atitude. Há ainda atitudes denunciadoras das dificuldades que
cercam as populações pobres para manter os filhos na escola (material caro, por exemplo), e
uma expectativa para cerca de 56% dos informantes de que o estudo possa ser, para a
juventude, a possibilidade de conseguir emprego na cidade, em troca da vida dura do campo.
Também se revela a correlação entre consciência ambiental e estudo em 63% dos assentados,
atribuindo a esse a possibilidade de preservação. (PNERA, 2005, p. 123).
381
Tabela 5
ATITUDES RELACIONADAS À EDUCAÇÃO E AO DESENVOLVIMENTO RURAL (% CONCORDA MUITO) - BRASIL E GRANDES REGIÕES - 2004
REGIÃO
ATITUDES GERAL
(Ne=524.868) NORTE (Ne=167.932)
NORDESTE (Ne=208.071)
CENTRO-OESTE
(Ne=88.440)
SUL (Ne=30.238)
SUDESTE (Ne=30.187)
O trabalhador do campo que estudou está melhor preparado para negociar com os bancos
88,5 87,6 88,9 90,6 85,6 87,9
As pessoas que têm estudo têm mais consciência dos seus direitos que aquelas que não têm estudo
82,6 82,9 82,3 84,4 79,3 81,3
Vale a pena os alunos irem à escola porque eles têm aprendido muita coisa importante lá
75,8 73,5 78,2 76,1 70,1 76,8
A escola foi uma conquista da comunidade, se não fosse a gente ela não existiria
73,0 75,8 72,4 70,6 74,2 68,4
O campo só vai se desenvolver se as pessoas que aqui vivem tiverem acesso a todos os níveis de ensino
72,4 72,4 75,7 65,9 68,5 72,6
O que a população do campo mais precisa saber é ler, escrever e contar
69,1 67,4 74,3 59,4 65,1 74,8
O material escolar é caro demais para as famílias assentadas
64,1 59,7 69,2 62,1 54,7 68,7
Quanto menos estudo tiverem as pessoas do campo, maior a destruição do meio ambiente
63,8 63,4 64,9 68,6 49,4 59,8
A juventude precisa estudo para ter oportunidade de trabalho na cidade para se livrar da lida pesada do campo
56,9 58,6 60,8 55,7 37,8 43,2
FONTE: MEC/INEP e MDA/INCRA/PRONERA - PNERA
O relatório da pesquisa, ainda em versão preliminar, certamente poderá, feitos os
necessários cruzamentos de dados, revelar ainda muitos aspectos indispensáveis para os
objetivos a que se propôs. De todo modo, as respostas recolhidas já trazem poderosas
informações que falam por si, se o poder público se dispuser a ouvi-las.
1100..22 OO MMOOVVIIMMEENNTTOO SSOOCCIIAALL FFEEZZ 2200 AANNOOSS EE AATTIINNGGEE AA MMAAIIOORRIIDDAADDEE EEMM 22000055
Nesses 20 anos, o Movimento, e especialmente o setor de educação, passou por várias
fases, sistematizadas no documento Educação no MST Balanço 20 anos (MST, 2004), e tem
sua origem no que é chamado de “força material”, a “necessidade real e objetiva das famílias
sem-terra: escola para as crianças, professores capazes de trabalhar desde nossa realidade
específica, comunidades envolvidas com a escola também depois de sua conquista como
espaço físico” (MST, 2004, p. 19). Apesar disso, a crítica produzida no interior do próprio
Movimento, ao que considera uma “fragilidade”, diz que:
[...] o trabalho de educação, diferente de outras dimensões do Movimento, embora tenha virado setor, não começou como intencionalidade das instâncias da organização e o debate sobre o papel da educação no projeto de reforma agrária do MST ainda hoje não envolveu com mais profundidade o conjunto de nossa militância e de nossa base.
382
Esta questão é percebida e reforçada pelo educador Murilo e a educadora Dalva,
entrevistados em Encontro Regional no Espírito Santo, apontando que, pelo fato de a proposta
não estar apreendida pelo conjunto da base, da militância, as ações ficam mais difíceis:
Uma coisa que nós percebemos que não deu certo é que, enquanto todos os líderes, principalmente os dirigentes estaduais e nacionais do MST, não tiverem claro qual a proposta de educação do Movimento em si, vai ficar mais difícil pra nós. Qual é a missão do coordenador, por que o coordenador não estuda? A gente sabe que onde tem coordenador que estuda, facilita.
Mesmo assim, o documento Balanço 20 anos afirma que se passa “da visão da
educação como serviço à visão da educação como parte do projeto do MST”, apontando que
talvez a maior contribuição do setor ao conjunto tenha sido “a construção do valor da
escolaridade, como um dos fundamentos do valor do estudo, este já muito forte na
compreensão das lideranças do MST, desde o seu começo”, entendendo que o que é feito
pode ser resumido por “mexer” no “imaginário camponês”, e indagando: “o que pode
significar historicamente esta nova visão do direito à educação e do dever de estudar?” (MST,
2004, p. 19).
Buscando ainda explicitar o sentido da educação na agenda política do MST, o mesmo
documento invoca a necessidade de retomar a tarefa de origem, sem considerá-la, no entanto,
nem maior, nem menor, mas como “uma das dimensões da construção do projeto de reforma
agrária”, entendido hoje por lutar “por escolas para os sem-terra de todas as faixas etárias”, o
que incluiria “a disputa de uma concepção de escola” — com o desafio de ser mais ousado e
mais aberto ao diálogo com outras lutas e movimentos —; a garantia de um processo de
aprendizagem-ensino coerente com os objetivos de transformação social, o que implica “a
visão de totalidade e de historicidade”. (MST, 2004, p. 20).
Em disputa pelo direito à educação, dentre os muitos direitos negados, o Movimento
lutou por escolas públicas nas áreas de reforma agrária; passou a contar com cerca de 1.500
escolas públicas, sendo em torno de 200 as com educação fundamental completa, e pouco
mais de 20 com ensino médio em acampamentos e assentamentos; teve 160.000 crianças e
adolescentes matriculados nessas escolas, não aceitando a lógica do transporte escolar, para
não desenraizar, de seu próprio lugar, crianças e adolescentes do assentamento, que ainda
tivessem que estar mais de uma hora nesse transporte; formou mais de 4.000 educadores;
envolveu em 2003 cerca de 28.000 educandos e 2.000 educadores na alfabetização de jovens
e adultos; desenvolveu práticas de educação infantil em cursos, encontros, acampamentos e
assentamentos, formando pelo menos 500 educadores para essa frente; conquistou algumas
383
escolas de ensino médio nos assentamentos e cursos superiores em universidades; interferiu
nas políticas públicas e alterou as agendas políticas de secretarias municipais e de estado, de
conselhos de educação municipais e estaduais.
No entanto, no balanço de 20 anos do Movimento, a “panha”131 de sucessos não é
assim tão evidente. Um problema a enfrentar, ainda, é o que aproxima as questões da
educação nos assentamentos às questões do sistema escolar, não conseguindo “estourar o
gargalo”132 da escolaridade, que se conforma em manter o funil, desprezando crianças e
jovens pelo caminho, à medida que alcançam maior escolaridade, como se fosse suficiente
chegar até a 4ª série. Outro o de que o diagnóstico da situação do campo, tão valorizado como
princípio metodológico da educação, não responde significativamente às necessidades do
Movimento, que não conseguiu, ainda, dados quantitativos sobre a realidade educacional no
campo, e nos assentamentos da reforma agrária. Mais recentemente, um censo promovido
pelo INEP deve chegar a esse diagnóstico, imprescindível para pensar políticas sérias, de
qualidade para todos. Por fim, o MST concluiu que despendeu mais energia para impedir que
fossem fechadas escolas, do que para abrir novas ou ampliar as existentes, evidenciando que a
educação tem ainda fortes cercas a guardá-la, protegidas pelo poder do Estado e dos interesses
que representa na sociedade capitalista. O que motiva, no entanto, a continuidade da luta, é
que “os camponeses têm direito à escola e este direito não pode ter limites, nem de lugar nem
de nível de ensino” (MST, 2004, p. 13).
A riqueza da construção que um movimento social consegue realizar em 20 anos tem
sido objeto de estudo e de atentos olhares sobre as formas como se faz política em movimento
nessas duas décadas e sobre os significados que esses fazeres têm assumido na construção
democrática e na mudança das agendas públicas, cujas cartas marcadas pelo jogo
internacional da globalização econômica não previu “cartas na manga”. Lidar com essas
novas agendas, com as táticas de resistência, com as formas de luta, tem sido um campo de
incertezas inimaginável pelos controladores das políticas no mundo, especialmente quando
este mundo diz respeito aos países pobres, em via de desenvolvimento, atrelados a sistemas
mundiais de crescimento e de lucro.
Mas é verdade que o Movimento encerra fortes contradições, no interior mesmo da
luta e da organização, em defesa da terra. A entrevistada Joelma, em depoimento sobre sua
131 Panha é o termo usado pelos integrantes do Movimento quando se referem à colheita. 132 Esta a expressão usada no Caderno de Educação n. 11, MST, dez. 2004, p. 13.
384
atuação como coordenadora pedagógica de EJA do MST no Espírito Santo, traz a medida de
algumas dessas contradições:
[...] tem pessoas que tão ali porque só quer a terra pra depois vender. Porque você sabe que mexer com ser humano, ou ele é uma coisa ou ele é outra. Quando tá lá no acampamento133 as pessoas são uma coisa, depois que está assentado134 muita gente muda. É porque tá no acampamento, porque precisa do MST pra poder conseguir a terra, depois que vai pro assentamento aí muda isso tudo. Então, você vai encontrar tudo quanto é tipo de gente. Tem diferença? Tem. Mas tem muitas pessoas que aprendeu com a luta. Eu digo que mesmo esses que são contra aprendeu, porque quando eles forem pra rua eles vão ver o valor que tem a questão da moradia deles mesmo. Porque aí eles vão passar fome, se eles não tirar o alimento dele e da família.
Gohn (2002, p. 311-312) estudando as novas práticas civis associadas aos movimentos
sociais nos anos 1990, destaca que:
[...] as políticas são formuladas para segmentos sociais, numa perspectiva que privilegia áreas-temáticas-problema e não mais os atores sociais organizados em movimentos. [...] o MST, por exemplo, passa a ser considerado um interlocutor para a formulação de uma reforma agrária para o país e não um simples movimento organizado por forças de oposição ao governo, com propostas radicais e socializantes, como era a visão que permeava o tratamento que o poder público dispensava anteriormente àquele movimento. [...] foram eles que forçaram a redefinição de tal tratamento. A conjuntura política também foi favorável a esta redefinição, pois no plano internacional cresceu a pressão para a busca de soluções para o homem do campo na realidade brasileira. [...]
O MST e seu projeto, além de outros movimentos sociais da década de 1990, passaram
a lidar com a escassez de recursos financeiros, advindos da solidariedade internacional, e
aprenderam que fora das políticas públicas não havia recursos para desenvolver projetos com
a comunidade organizada. Apesar de todos os movimentos apregoarem e reivindicarem
independência e autonomia diante do Estado, esta é mais uma das complexas questões na
relação dos movimentos com o Estado. É Gohn (2002, p. 313), ainda, quem explicita:
O Estado tem definido linhas de atuação para os movimentos à medida que cria programas sociais, com subvenções e financiamentos. A questão está na postura que o movimento adota diante de tal realidade. [...] Nos anos 90,
133 O acampamento é a fase do Movimento da ocupação da terra improdutiva, quando os acampados vivem sob a lona, às vezes por muitos meses, até que o conflito se resolva. É ocasião de muitos enfrentamentos, também, em que a história registra muitas mortes, tanto promovidas por capatazes quanto pelas forças policiais do Estado, em defesa de interesses privados. Enquanto a disputa se trava no poder judiciário, outras fortíssimas disputas são vividas no cotidiano, ainda marcado por todo tipo de privação e indignidade do ponto de vista de condições humanas de vida. Delas não escapam crianças, adolescentes, jovens, mulheres, todos indispensáveis para a constituir a resistência. 134 Assentados são os que já obtiveram êxito na ocupação da terra e conquistaram o direito a um lote em assentamentos.
385
aquele cenário se alterou: da parte do estado — ele não “precisa” mais dos movimentos para se legitimar como não-repressor ou aparentar ser democrático. Da parte dos movimentos progressistas — os que sobreviveram às crises internas querem participar das políticas públicas criando uma nova forma democrática, a pública não-estatal. [...] Essa ala passou a ter lugar privilegiado enquanto interlocutora nas políticas sociais em que os governos constituídos não advêm de partidos ou composições democrático-populares.
Desta forma, a autora auxilia a compreensão, por exemplo, da participação do MST,
junto à Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), na proposição
do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA, constituído durante a
política neoliberal de Fernando Henrique Cardoso, ao mesmo tempo em que o Movimento era
duramente atingido em violentos assassinatos que ocorreram no campo, em sua maioria “sem
culpados”, a serviço da impunidade. No âmbito desse Programa, para o qual as formulações e
concepções do MST em muito contribuíram, por já serem prática no Movimento e resultantes
de acúmulos produzidos havia mais de dez anos, a educação de jovens e adultos passou a
abrigar projetos de atendimento, como forma de “arrancar” recursos públicos para a
constituição do direito à educação, nos termos defendidos pela proposta de educação
integrante do projeto de sociedade pelo qual vinha lutando.
Maria Cristina Vargas, dirigente nacional do MST, respondendo ao questionário a ela
proposto (Anexo 2), reafirma a influência do Movimento no Programa, dizendo que “o
PRONERA dá um referencial, mas as universidades e movimentos têm plena autonomia para
determinar princípios e plano de trabalho de acordo com a realidade de cada local”. Diz ainda
que o “MST é parceiro do PRONERA desde seu surgimento, o PRONERA é resultado de
uma luta do movimento, sabemos que é um programa, mas entendemos a importância que tem
para a construção de um olhar para o campo também no processo educacional dos
camponeses”. Complementa, informando que o Programa não significa uma possibilidade de
atuação somente na alfabetização, mas é também a possibilidade de “capacitação de nossos
educadores, ou seja, os convênios que desenvolvemos para a graduação, exemplo: pedagogia,
história, ciências agrárias, agronomia, e outros em nível médio como técnicos em
agroecologia, administração de cooperativas, saúde comunitária, magistério”. Sobre as
concepções que o Programa assume, defende que “a nossa luta é manter a possibilidade de
construção de uma pedagogia a qual respeite um povo que está envolvido em um movimento
social, que este movimento social está no campo, e que estas especificidades possam ser
levadas em conta em nossa relação com as universidades que estão em parceria no
Programa”.
386
De posse dessas primeiras anotações, inicio informando como me lancei à
compreensão das concepções de EJA subjacentes ao projeto de educação de jovens e adultos
do MST. Tomei, em princípio, variadas fontes: a) documentos do próprio Movimento, e desde
já vale a pena acrescentar que é pródigo na sistematização de suas idéias e publicação de
materiais orientadores da formação de educadores, de militantes, de sujeitos participantes,
com qualidade, simplicidade e preocupação inequívoca em se fazer entender na leitura de
qualquer pessoa, principalmente os que participam do Movimento; b) questionário escrito
com perguntas encaminhadas a uma dirigente nacional do setor de educação e integrante da
Comissão Nacional de Alfabetização (CNA/SECAD/MEC); c) entrevista gravada com a
coordenadora responsável pelo setor de educação do estado do Espírito Santo; d) entrevistas
gravadas com educadores do MST/ES; e) documentos do PRONERA: subsídios, projeto,
avaliação do programa, realizada sob a coordenação de Ação Educativa; f) documento do
MEC de referências para uma política nacional de educação do campo; e, ainda, g) diretrizes
do Conselho Nacional de Educação (CNE). Meu diálogo com essas fontes fez-se, também, a
partir da pequena experiência que vivi com pessoas da FETAG e do MST, nos anos 1999,
quando discutimos e elaboramos um projeto para o PRONERA em assentamentos no estado
do Rio de Janeiro, nos primórdios do Programa, sofrendo as muitas mudanças de regras no
decorrer do jogo, principalmente quando o INCRA passou a intermediar as negociações.
A riqueza dos documentos, certamente, não estará toda capturada no curso dessa
pesquisa, porque tanto quanto me foi possível, fiz a leitura desses materiais não apenas em
busca dos indícios atinentes a meu objeto, mas com olhos de aprendiz, pelos múltiplos e
multirreferenciados aprendizados que saltaram à minha frente. Desde já, deixo esse débito
com o Movimento, pelo tanto que não considerei/não fui capaz de fazê-lo para produzir a
compreensão de EJA no âmbito desse trabalho.
Outra anotação a fazer gira em torno da idéia no campo/do campo. A tendência usual
incorporada nas discussões teóricas tem sido a de nomear a defesa da educação dos chamados
sujeitos do campo como educação do campo, porque não se quer que seja feita nem no
campo, nem para os sujeitos, por entender-se que a primeira não se distingue da educação da
cidade, apenas se desloca no tempo/espaço, sem guardar as marcas culturais de quem vive no
campo; a segunda, por não se admitir a possibilidade de que seja feita sem a participação dos
sujeitos que vivem a realidade do campo, não beneficiários, portanto, da educação, mas
partícipes de todas as etapas do processo, por entender o ato educativo de forma mais ampla,
para além da sala de aula e da escola regular. Assim, a educação do campo tem sido a
387
nomeação considerada, cujos sentidos implícitos voltam-se para retratar um projeto educativo
não segmentado em níveis ou modalidades, mas inteiro, totalizante, produzido na cultura do
campo, e que tenha com ela íntimas relações e a expresse como diversidade, e não
desigualmente, na lógica etnocêntrica e hegemônica que orienta os sistemas de ensino.
Em busca de uma educação do campo, o MST, entretanto, não está sozinho. Muitos
são os grupos populacionais envolvidos e atravessados pela mesma problemática, tratada na
legislação brasileira como educação rural, até então:
[...] tem um significado que incorpora os espaços da floresta, da pecuária, das minas e da agricultura, mas os ultrapassa ao acolher em si os espaços pesqueiros, caiçaras, ribeirinhos e extrativistas. O campo, nesse sentido, mais do que um perímetro não-urbano, é um campo de possibilidades que dinamizam a ligação dos seres humanos com a própria produção das condições da existência social e com as realizações da sociedade humana. (BRASIL, 2002, p. 4).
Para alguns autores, no entanto, esse sentido de ruralidade, ou de “nova ruralidade” se
ressignifica, sendo definida como a incorporação de atividades de setores distintos da
economia na reprodução social das unidades familiares agrícolas (CARNEIRO, 1998 apud
OLIVEIRA et. al., 2004, p. 139), pelo fato de se entender o campo não mais como “um
espaço relativamente autárquico, com seu próprio mercado de trabalho e equilíbrio interno”
[...] mas com um setor de serviços que desponta no conjunto do meio rural, com profissões
tipicamente urbanas, na dinâmica de funcionamento da economia do campo. “Isso somado à
insuficiência da renda na reprodução das unidades familiares agrícolas, faz com que o rural
recorra a atividades não-agrícolas como estratégia de manutenção do patrimônio familiar”, em
que núcleos rurais interagem com a urbanidade, “numa espécie de mercado de bens tanto
material como simbólico, o que faz com que o urbano e o rural se ressemantizem
mutuamente”. (OLIVEIRA et al., 2004, p. 139). Nessa complexidade, “se o campo não é mais
um espaço relativamente autárquico, a escola do campo tem que se repensada e situada nesse
contexto de ressignificação do rural”. (OLIVEIRA et al., 2004, p. 140-141).
A ruralidade, ressignificada, é percebida, e se expressa na explicação do educador
Welson, quando entrevistado:
Nossa vida de camponês é uma vida muito simples, ou era muito simples. Mas, com o passar do tempo essa vida... Como eu sempre falo da urbanização – foi chegando e talvez tirando essa simplicidade que a gente tinha né! Essa simplicidade que a gente tinha de ser livre de qualquer vício que a sociedade urbana tivesse, entendeu? Mas, aí houve essa aproximação campo-cidade. [...] quando você vê a tecnologia entrando no campo num
388
primeiro olhar parece bom, tem alguns pontos bons. Mas, num segundo olhar, você percebe que a gente acaba perdendo a nossa cultura, acaba perdendo. [...] acaba perdendo aquela coisa da simplicidade da subsistência. [...] entra na sua cabeça a ideologia do lucro, do lucro, do lucro. Você vai se distanciando da própria terra. É igual como no casamento. Há um esfriamento, num certo tempo: o camponês com a terra, depois disso aí houve um esfriamento. [...] eu sofri essa de que o campo não era um bom lugar. [...] eu tive a oportunidade ou o privilégio de olhar o campo lá de cima. [...] quando adolescente, pensava que o campo não era o lugar ideal. Meu pai na sua consciência ingênua dizia que não queria que eu fosse igual a ele. Queria que eu fosse alguém na vida. Antes o camponês não achava, não se sentia ninguém, hoje ele se sente.
Esse “se sentir alguém”, na fala do educador, certamente está vinculado à concepção
de educação do MST. Na proposta para a educação (MST, 2002, p. 6), o Movimento enuncia
seus princípios filosóficos: a) educação para a transformação social; b) educação para o
trabalho e a cooperação; c) educação voltada para as várias dimensões da pessoa humana; d)
educação com/para valores humanistas e socialistas; e) educação como um processo
permanente de formação/transformação humana. Tem, ainda, como princípios pedagógicos
(MST, 2002, p. 11): a) relação entre prática e teoria; b) combinação metodológica entre
processos de ensino e de capacitação; c) a realidade como base da produção do conhecimento;
d) conteúdos formativos socialmente úteis; e) educação para o trabalho e pelo trabalho;
f)vínculo orgânico entre processos educativos e processos políticos; g) vínculo orgânico entre
processos educativos e processos econômicos; h) vínculo orgânico entre educação e cultura; i)
gestão democrática; j) auto-organização dos/das estudantes; l) criação de coletivos
pedagógicos e formação permanente dos educadores/das educadoras; m) atitude e habilidades
de pesquisa; n) combinação entre processos pedagógicos coletivos e individuais.
São esses princípios — filosóficos e pedagógicos — que estarão como guia das
concepções de EJA que me ponho a escavar nessa terra fértil que o Movimento tanto tem
cultivado.
1100..33 CCOONNSSTTIITTUUIINNTTEESS EE DDEETTEERRMMIINNAANNTTEESS DDAA CCOONNCCEEPPÇÇÃÃOO DDEE EEJJAA EE DDEE AALLFFAABBEETTIIZZAAÇÇÃÃOO
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A proposta pedagógica da EJA, como expressa nos documentos do Movimento
apresenta relações bastante intensas não apenas com os clássicos pensadores da área, como
têm tido a contribuição de muitos pesquisadores e acadêmicos, de diversas universidades
brasileiras. Desde o início do Movimento a EJA se faz presente, passando por variadas fases,
acompanhando a luta mais geral. Caldart (1997, p. 36-37), referindo-se aos períodos da
389
história da educação no Movimento reporta-se ao momento em que, segundo ela, se inicia o
quarto período, sob a marca do III Congresso Nacional do MST, realizado em julho de 1995,
quando o lema Reforma agrária uma luta de todos leva com ele os desafios de seu conteúdo e
de novas formas de luta, criando a tendência de um movimento para fora; a busca de aliados;
o conhecimento e o reconhecimento, pelo conjunto da sociedade, aos diversos trabalhos que o
Movimento realiza, dentre eles a educação. Referindo-se à EJA, indica que o trabalho tomou
maior impulso a partir de 1996, quando convênios e parcerias nacionais e estaduais
permitiram maior abrangência, atingindo 19 estados, inclusive adotando a nomeação de EJA,
por entender que a alfabetização era indispensável nos assentamentos, mas que a concepção
pela qual lutavam, de direito à educação para todos, da creche à universidade, precisava
incluir as legiões de jovens e adultos, para além da alfabetização. Então, de modo a se pôr em
conformidade com as nomeações nacionais e internacionais, passa a adotar educação de
jovens e adultos.
A indicação de Caldart se corrobora no Caderno de Educação n. 11 (MST, 2003, p.
16), quando o texto, também buscando mostrar as dificuldades do quarto período, de 1995 a
2002, condiciona o avanço da EJA à dependência de quatro pilares, a saber: “a formação da
equipe interna (monitores e coordenadores); o envolvimento do conjunto do MST; apoios
externos (ter convênios e parcerias); e exigência dos direitos (frente ao Estado)”. Se por um
lado essa consciência demonstra uma disposição de luta para fazer o Estado assumir o dever
constitucional com a educação para todos, por outro condiciona a oferta, ou a resposta do
Movimento a jovens e adultos não-escolarizados, à existência de parceiros, de recursos, de
convênios, atitude semelhante e reiterada das práticas políticas e públicas em relação à
educação de jovens e adultos. Ao longo desse trabalho, por meio do relato da coordenadora
Joelma, poder-se-á verificar como as artes de fazer do Movimento respondem a essa questão,
embora seja o relato insuficiente para ser tomado como verdade para todo o país, de Norte a
Sul, nos tantos assentamentos, cuja situação educacional foi constatada pelo PNERA.
A interlocução dos sujeitos pesquisadores, com os que fazem a EJA no Movimento
comprometidos com o pensar sobre suas próprias práticas, nos diferentes espaços de formação
vivenciados, com longevidade, permanência e constância na oferta, revela questões
consolidadas na proposição do MST e uma certa coerência na busca de qualidade dos fazeres.
A coordenadora Joelma assim se refere ao que ocorre no Movimento: [...] “e essa troca que eu
acho que tem nos assentamentos é que enriquece a questão da educação, a educação do MST,
essa educação que a gente tanto diz que foi com Paulo Freire e outros pensadores”.
390
O educador Murilo e a educadora Dalva, já citados, revelam a diferença de
mobilização quando há educação de jovens e adultos funcionando no acampamento ou
assentamento e a necessidade da discussão campo-cidade, do ponto de vista metodológico. A
fala escolhida ajuda-me a trançar os fios entre as profusas enunciações e as práticas:
As pessoas que estão nos jovens e adultos descobre que o MST hoje tem que se preparar para repensar a nossa metodologia de como trabalhar o campo-cidade, escola de um modo geral, na unificação da educação de base nos assentamento e acampamento. [...] A gente nota a diferença onde existe educação de jovens e adultos funcionando e onde não existe. A diferença que há é que as pessoas se mobilizam mais.[...]
Outro educador, Juliano, demonstra a partir da própria experiência, por chegar como
jovem-adulto ao Movimento, o acolhimento recebido, especialmente por conta da atuação na
EJA. Com cinco anos de assentamento, chegado por intermédio de seu irmão, este sim
assentado, e do qual é dependente, cresceu e estudou na zona urbana, sem nunca ter estudado
na zona rural, embora com família toda com raízes na zona rural. Ao voltar, diz que criou “um
vínculo de amizade com todo mundo, que as pessoas passam a te respeitar, a te valorizar,
principalmente nesse âmbito aí da questão da EJA... quando eu comecei foi muito gratificante,
porque foi o meu primeiro serviço, foi minha primeira experiência”.
Voltando ao PNERA (2005, p. 78), observa-se que, de modo geral, a origem do campo
(81,7%) é fator decisivo para manter os sujeitos no próprio campo, e que o caso do educador
Juliano situa-se entre 18,3% dos sujeitos.
Tabela 6
O fascículo Sempre é tempo de aprender, na parte 2, sobre Nossa concepção de EJA
(MST, 2003, p. 30-39) sintetiza-a, afirmando que esta “faz parte da Educação Popular”,
“alimentada por uma ‘mina d’água’ especial: a Pedagogia do Oprimido”, de Paulo Freire. E
que mais do que alfabetização — que inclui —, é “formação humana de pessoas concretas e
situadas”. É também “formação política, ideológica, cultural, organização na base e avanço da
escolarização dos Sem Terra”. Afirma, ainda, que o “desafio é ir produzindo e maturando a
391
pedagogia do MST na EJA”, embora saiba que “o que produzimos como educadores e
educandos não é só nosso e nem é para nós: faz parte do movimento da Pedagogia do
Movimento”.
Esta uma compreensão bastante relevante no entendimento da concepção de EJA, por
reafirmar que os espaços de produção de conhecimento não se limitam às atividades
escolarizadas, mas tomam como amplitude as dimensões da luta pela terra, porque a luta
educa, e todos os sem-terra são, desse modo, nela e por ela educados. Referir-se, portanto, a
uma pedagogia do movimento implica dizer que a luta contém uma importante dimensão
educativa, e que é, para isso, pedagógica. Ou seja, adotar a educação de jovens e adultos no
MST não significa restringir-se a objetivos do interior da modalidade, encerrados no ato
educativo escolar, mas fazê-lo porque o ato educativo escolar contribui e acentua o
aprendizado da luta, qualificando-a para o objetivo de transformação social, que visa ao
direito à terra e à reforma agrária.
Essa complexa concepção possui, como expresso no mesmo documento, algumas
“convicções fundamentais”, que assoalham filosoficamente o piso no qual se desenvolve a
proposta de EJA, e que sintetizo:
a) todas as pessoas têm direito a aprender: o analfabeto é um cidadão;
b) todas as pessoas têm direito à escolarização — continuidade do processo educativo (a necessidade da certificação);
c) Sem-terra tem o dever de se alfabetizar — cultura da alfabetização: indignação porque há no assentamento algum analfabeto;
d) sempre é tempo de aprender: todas as pessoas, de todas as idades, têm condições de aprender;
e) todas as pessoas têm saberes e saberes diferentes — todo o conhecimento é gestado, produzido, não é dado;
f) a alfabetização faz parte da educação popular do campo e está vinculada a um projeto de transformação da sociedade e de construção de um projeto popular para o campo: f.1 dimensão do cuidado da terra: alfabetizar-se nas linguagens da terra, das águas, das
plantas, dos animais, da cultura camponesa, das histórias do campo, das relações com o conjunto da natureza, das lutas dos seres de todo o planeta;
f.2 dimensão do trabalho: educação ligada ao processo produtivo e de organização do trabalho (postura de cuidado em relação à natureza);
f.3 dimensão da saúde: qualidade da vida e educação alimentar, iniciativas pessoais e coletivas o que estraga a vida;
f.4 dimensão dos códigos: movimento de codificação e de decodificação de textos e contextos (inclui o código das tecnologias);
f.5 dimensão dos documentos: compreender a necessidade e a finalidade da documentação;
392
f.6 dimensão da identidade: sua identidade; identidade sem-terra (para mantê-la ou transformá-la, segundo sua decisão);
f.7 dimensão dos vínculos com o MST e com a classe trabalhadora;
g) a educação está vinculada à formação: alfabetizar é mais que alfabetizar; é educar: é fazer formação humana. O MST tem consciência de ser um “movimento formador” onde também é possível aprender a liberdade na cartilha do ABC;
h) EJA é maior que alfabetização e não precisa acontecer só na escola (matriz pedagógica da cultura);
i) cada sociedade tem as suas linguagens de sociabilidade (dominar os códigos nela hegemônicos e assumir que o conceito de analfabeto é histórico). O MST quer com a alfabetização que jovens e adultos: i.1 aprendam a ler, escrever e calcular no papel a realidade; i.2 aprendam fazendo, isto é, pela prática ou a partir da necessidades reais dos
alfabetizandos e do Movimento; i.3 construam o novo que começa nas novas relações e termina em uma sociedade sem
explorados e exploradores; i.4 compreendam a realidade, numa concepção histórica, e tendo como referência a
realidade local e geral; i.5 ajudem a gerar sujeitos da história a partir de sujeitos do processo de
educação/formação/capacitação; i.6 preocupem-se com a pessoa integral e com o coletivo (coletividade);
j) somos educadoras e educadores do povo.
De posse dessas convicções, que assumo como fundamentos filosóficos da concepção,
os principais objetivos (MST, 2003, p. 40) do trabalho de EJA são assim expressos:
a) superar a exclusão de ser analfabeto, tornando os assentamentos e acampamentos territórios livres do analfabetismo;
b) lutar por políticas públicas de EJA;
c) superar o analfabetismo como uma forma de criar condições para enfrentar os desafios políticos e organizativos do MST;
d) implementar em EJA a Pedagogia do MST, como uma referência para o campo;
e) fortalecer a organicidade do MST através da EJA, e em especial através da alfabetização.
Os princípios metodológicos (MST, 2003, p. 41-47), guia para o fazer na EJA,
enunciam-se da seguinte forma:
a) respeitar o jeito de aprender de cada tempo da vida;
b) partir da necessidade: a pessoa se interessa em aprender quando necessita;
c) educar as pessoas para se apropriar da história e se tornar sujeitos;
d) relacionar os processos de EJA com os processos de formação no MST;
e) conhecer os sujeitos em sua realidade e a realidade social onde os sujeitos estão inseridos;
f) trabalhar com vivências geradoras;
g) consolidar condutas e posturas e diversificar as didáticas;
h) organizar o ambiente alfabetizador;
393
i) produzir um ambiente educativo (intencionalidade).
Ainda enunciam-se os elementos gerais de pedagogia (MST, 2003, p. 47-51),
revelando a busca concreta de uma pedagogia própria do fazer do Movimento, não apenas
pela autonomia e independência dos sujeitos educandos, mas pela compreensão da dimensão
humana, transcendente, afetiva desses sujeitos no mundo, no qual agem, com o qual
interagem, amam, sofrem, são. Ei-los:
a) educação do movimento popular e não para o movimento popular;
b) a mística como elemento da formação humana: é a “energia que perpassa o cotidiano”, “ajuda a vivenciar os valores” e “desafia a ir concretizando [...] o projeto popular”; [...] “um dos mais densos momentos de formação humana: ela cola o conhecimento à emoção, através da cultura”; [...] “irriga, pela paixão, a razão, nos ajudando a ser mais humanos, dispostos a desafiar pessoal e coletivamente os nossos limites; nos impulsiona a ir além do esperado, alimenta os valores humanistas e socialistas e nos faz sentir membros de uma grande família: somos Sem Terra”;
c) sem emoção não há aprendizado;
d) não se aprende fora da cultura;
e) conhecimento novo não se constrói sem um engate num conhecimento anterior.
Por último, destaco os chamados “elementos operacionais” (MST, 2003, p. 52-55),
que favorecem o desenvolvimento pedagógico do trabalho, tomando por base elementos
organizadores do projeto, e com ele afinados:
a) organizar as turmas levando em conta a socialização e a heterogeneidade entre os educandos;
b) organizar internamente as turmas;
c) fazer diagnóstico permanente;
d) garantir o planejamento das atividades;
e) registrar o processo educativo;
f) garantir a formação permanente das educadoras, dos educadores;
g) ter método de acompanhamento do processo educativo.
Como se observa, há um cuidado intenso na organização e funcionamento dos
projetos, ressaltando o sentido dos registros, do planejamento, reveladores da intencionalidade
em que se assenta a concepção de EJA, processualmente, seja pela previsão metódica do
acompanhamento, seja pela formação continuada dos educadores.
A coordenadora Joelma complementa a concepção de EJA, dizendo ser necessário
“vincular essa questão do educador permanecer educando”, o que nem sempre pode ser
pensado, segundo ela, para que o educador permaneça na sala de aula, e sim contemplando
outros processo formativos, indispensáveis “devido às condições de infra-estrutura, condições
394
humanas de trabalho, ainda mais quem estuda à noite”. Diz, também, que independente de
haver ou não projeto de EJA com convênio firmado (referia-se ao caso do PRONERA) para
fazer acontecer as turmas, há continuidade nas ações, elas não se interrompem. Enquanto o
Movimento aguarda a liberação de um projeto, não fica parado, as aulas começam, não há
espera, o trabalho tem início. Considera esse aspecto um diferencial no projeto, que não
começa com ele e se finda quando o tempo de projeto acaba, o que define o tempo do projeto
é a necessidade de aprender dos sujeitos.
Informa, ainda, que os professores que atuam na educação de jovens e adultos não são
pessoas novas no Movimento, participam dos encontros, têm de cinco a sete anos de MST. A
dificuldade está em lidar com as pessoas novas que entram, porque até compreender a
metodologia, o método, o jeito, é um processo muito longo. De modo geral, as pessoas que
trabalham na EJA são pessoas assentadas, normalmente não há acampadas.
Joelma continua oferecendo ricos e variados sentidos para que seja possível
compreender o que tem sido a educação de jovens e adultos para o Movimento:
[...] não é só ensinar a ler e escrever. Ou codificar e decodificar a letra. Mas também está relacionada à produção do assentamento. [...] nosso objetivo é bem maior do que saber ler e escrever. Mas eu vejo assim que essa questão da EJA é uma das maneiras de vida que o Movimento Sem-Terra tem... vem tentando assim lutar pra que tenha nos assentamentos e luta também pra que a perspectiva seja não só saber ler e escrever. Acho que tem assim uns momentos que é bem importante essa questão do EJA, é os nossos encontros. Tem alguns assentados, que você vê no relato das pessoas que tem vontade de estudar e ali ele tem a condição de estudar. Acho assim que não tem dinheiro que pague essa questão do valor que a pessoa tem em relação a você quando vê que você tá ali, não por interesse econômico, mas por interesse de organização. Com interesse de eu querer te ajudar e você me ajudar. É o interesse de formar o que a gente tanto sonha, que é a questão da coletividade.
E vai além, demonstrando a forma como imbrica a educação de jovens e adultos com
uma perspectiva mais ampla, não restrita à sala de aula, mas de responsabilidade de toda a
sociedade, de todos que se relacionam, pela condição humana, na vida, de conteúdos diversos,
que liga o aprendizado da leitura e da escrita às necessidades políticas da formação humana:
[...] educação pra gente é um momento de relacionamento entre educador e educando, que vão trocar as experiências: o que você sabe você pode trocar comigo e assim a gente vai aprendendo a ler, aprendendo a escrever... e a gente também trabalha com essa questão da formação política na educação de jovens e adultos. [...] a educação no Movimento Sem Terra ela vai além das quatro paredes. Por que? Porque a gente vê que o processo de educação e o processo de formação são coisas que andam juntas e pra nós educação... o ato de educar não é só dentro da sala de aula. Pra nós essa questão —
395
ultimamente a gente tem debatido muito essa questão — o ato de educar, ele também é na reunião. Ele também é na comunidade, ele também é na conversa que eu tenho com o meu vizinho. Quer nos nossos encontros ou não.
1100..33..11 FFeerrrraammeennttaass qquuee oorrggaanniizzaamm aass ssiittuuaaççõõeess ddee aapprreennddiizzaaggeemm:: ccoonncceeppççõõeess ddee
aallffaabbeettiizzaaççããoo ppaarraa oo MMoovviimmeennttoo
O Movimento faz um destaque bastante evidente para a alfabetização, como de fato
esperado. Os sujeitos rurais, por um imenso déficit histórico, têm apresentado os mais baixos
índices de escolarização, observáveis tanto nos censos demográficos, como nos censos
educacionais. A questão da alfabetização, detectada no PNERA, reafirma o descaso das
autoridades públicas na oferta de escolas para as populações rurais, que chegam à idade adulta
analfabetas, com vestígios de apreensão da cultura escrita. As distâncias entre os locais de
moradia nos assentamentos e as escolas, a ausência (ou quase) de transporte, exigindo da
maioria a marcha a pé, a falta de infra-estrutura básica, entre muitos outros fatores, tem
determinado essa situação, agravada pelo desejo de uma educação voltada para a realidade do
campo, da qual as escolas também não se ocupam. A mesma pesquisa revela o quanto de
desconhecimento por parte dos professores em relação à situação dos assentados existe,
quando há escolas, e o quanto a cultura camponesa é desprezada nas concepções curriculares.
Joelma diz que a concepção de alfabetização para o Movimento inclui fazer o sujeito
tomar consciência de que o fato de ser analfabeto, não o diminui na condição de cidadão, com
direitos iguais, que também pode intervir na realidade. “Mas por que você não aprende ler e
escrever?”, indaga. A compreensão da coordenadora, de estímulo ao não-alfabetizado, no
entanto, deixa encoberta a idéia de que o direito desse sujeito não é igual ao dos que sabem ler
e escrever, do ponto de vista dos direitos políticos, porque segundo a Constituição brasileira,
ele vota, mas não pode ser votado. Um limite de direito que, talvez, na prática, não afete
grande parte dos assentados, que não se candidatariam mesmo a cargos eletivos, mas limite
sério quanto ao princípio do direito e ao exercício da democracia. A coordenadora segue,
aprofundando a concepção do aprender a ler e a escrever:
A gente procura colocar essa visão do porquê você tem que aprender ler e escrever. Porque a gente acha assim: muita gente vê que a educação de jovens e adultos é ensinar a ler e a escrever, tá pronto. E pro MST não. Aprender a ler e escrever vai além de você aprender, conhecer o alfabeto e saber escrever em forma de palavras. Então, pra nós, alfabetizar é mais do que isso, ou seja, é tentar vincular o que o indivíduo já sabe, o sujeito já sabe, colocar aqui no papel e explicar o porquê. Seria assim: ao ensinar a ler e a escrever, o porquê que eu tenho de aprender a ler e a escrever. Qual é a
396
função realmente da escrita, a função da leitura, o que isso pode influenciar no processo de construção de uma nova sociedade ou de um melhoramento no assentamento, que seja da minha família e da comunidade.
No Caderno de Educação n. 3 (MST, 1994, p. 2 apud MST, 2003, p. 11) encontra-se a
referência do que é ser sem-terra alfabetizado, muito além, como se observa, das concepções
restritas com que muitos programas se satisfazem:
Sem Terra alfabetizado é alguém que escreve bilhete, que lê o jornal e os documentos do MST, que decifra e preenche questionário, que conhece a história da terra e da luta pela terra, que tem gosto de ler livros e busca o conhecimento técnico, sabe falar em público e, além disso, que sente o coração bater forte por causa da mística e continua a sonhar e a construir uma sociedade sem explorados e exploradores.
A concepção é eivada de claro sentido político, que não deixa dúvidas sobre o porquê
se alfabetiza — e se luta por esse direito — no interior do Movimento.
Sobre como realizam os processos de alfabetização, Joelma inicia dizendo que há
formas mais ou menos convencionais — por exemplo, o uso do alfabeto móvel, “aquele que
vem uma letra e cada um numa folhinha” e sobre o qual explica que [...] “fala alfabeto móvel
porque você pode mexer com ele pra qualquer lugar e você pode formar o que você quiser”, e
que a produção desse material é feita em aula de educação artística, junto com os educandos.
Mas diz ainda que em muitos casos parte-se da necessidade de escrita do nome, “e
você vê que o olho brilha quando consegue. Por que não ensinar então a escrever o nome?”,
justifica, para que não dificulte a questão do ensino/aprendizagem. Em outros casos, diz que
quando fala escrever, ensinar a ler e escrever, não significa ensinar palavras soltas ou “ensinar
em carreirinha”. Refere-se a ensinar “dentro de um contexto, de uma leitura, de uma
realidade”. Com isso, entende que “já vai pegando esse que a pessoa sabe”. Pergunta-se:
[...] por que não formar um texto e ler o que a pessoa escreveu? Às vezes, a pessoa escreve uma coisa — a gente fala que a criança escreve garatuja, mas ele consegue falar o que é aquilo, nem que ele conte história. O adulto também faz, que não sabe escrever corretamente, mas ele conhece uma letra. Ele sabe, conta aquilo que escreveu. Então, por que não pegar aquilo que contou, que ele escreveu e leu pra você e você botar no quadro? Você não vai falar pra ele que tá errado, que tá certo, mas ele vai ver diferença e ele vai perguntar. “Mas por que tá diferente a forma como eu escrevi e li pra você e a forma como você registrou aí no quadro?”
Quanto às dificuldades que os alunos sentem, relata que eles dizem que “é melhor
pegar na enxada do que pegar na caneta. A caneta é mais pesada do que a enxada”. E chama a
atenção, mostrando o Caderno de Educação Sempre é tempo de aprender, que “isso aqui
397
tudinho não acontece na prática, mas eu acredito que alguma coisa que você ler, você vai ver
lá. Então, o todo não consegue, mas parte, e nunca deixar de ter essa nossa perspectiva, isso
acontece”.
Sobre o tempo despendido para a alfabetização, principalmente por que os projetos de
convênios prevêem um término, diz que:
[...] com coisa de um ano, assim, a gente tem conseguido a ler e escrever. [...] creio que dentro de um ano as pessoas já conseguem geralmente conhecer a letra, ler e escrever. Mas na nossa perspectiva de educação... nossa educação não acaba de 1ª a 8ª série, ela é um processo contínuo de formação. Por que? Porque essa questão da formação é uma questão muito lenta, esse processo de formação. É lento, lento como se fosse uma tartaruga...
Joelma intensifica a concepção de alfabetização: “eu digo que aprender a ler e escrever
é mais fácil, é mais rápido, é com ânimo. Mas pra pessoa aprender a interpretar, a entender,
ter aquele... aquela questão da formação que o Movimento Sem Terra... é tanto que essas
pessoas que estão na sala de aula, elas vão pros nossos cursos de formação”. Observa-se que a
compreensão de leitura e escrita de Joelma não se resume ao código suficientemente
dominado, mas a um domínio que implica assenhorear-se da cultura escrita com os ritos de
poder que se constroem com ela, implicando as muitas formas de participação na sociedade
que agem interferem, alteram a realidade.
Por fim, sobre o que significa ser analfabeto, Joelma diz que “é aquele que não sabe
ler e escrever porque o nosso povo não sabe ler e escrever, mas eles sabem discutir esses
assuntos”, sem o que, digo eu, não se justifica o aprendizado, cabendo retomar a questão
principal do por quê ensinar a ler e a escrever.
1100..33..22 FFeerrrraammeennttaass qquuee oorrggaanniizzaamm aass ssiittuuaaççõõeess ddee aapprreennddiizzaaggeemm:: ccllaasssseess,, mmeettooddoollooggiiaass,,
ccoonnssttrruuççããoo ccoolleettiivvaa,, ccoonncceeppççõõeess ddee ccuurrrrííccuulloo
Uma das primeiras questões que cabe apontar para a compreensão do como se
organizam as classes no Movimento, diz respeito à complexidade da vida dos pobres, que
além do trabalho duro diurno, passa a ter de se estender por uma jornada noturna, de corpo
cansado das lides no campo, ao sol inclemente ou à chuva, que não podem impedir o cuidado
com a terra, exigente sem trégua da atenção humana.
A jovem coordenadora Joelma reforça a idéia de que a realidade não permite, se for
tomada pela racionalidade das condições materiais. Mas diz que a ida aos assentamentos
398
mostra como é possível vencer as dificuldades para organizar as classes, de tal sorte que
“você vai falar assim, esse povo aqui é mágico pra poder trabalhar, ao ponto de faltar até giz.
[...] Você olhar pra aquela turma, todo mundo cansado porque pegou um sol de 40 graus. É
difícil demais, muito difícil”.
Nas noites, em muitos assentamentos sem luz, o deslocamento às classes não pode ser
feito só pelo homem, ou mulher, em busca da escola, porque há os filhos pequenos, que não
ficam sozinhos. Então, coloca-se um impasse, a classe só pode ser à noite, porque o dia é do
trabalho, e não pode ser à noite, porque assentados não têm onde deixar as crianças. A
solução, então, é acolhê-las para que seus pais possam estar lá: “se vem a mulher ou vem o
marido tem que trazer os filhos, até porque à noite não vai ter coragem de deixar sozinho,
porque menino, piscou o olho, já aprontou”. (Coordenadora Joelma). Essa situação se repete
em muitas classes de EJA fora de assentamentos, verificáveis tanto pela Avaliação
Diagnóstica dos Programas Brasil Alfabetizado e Fazendo Escola, quanto por observações de
classes por mim vivenciadas no interior do Piauí, nos municípios de Nova Santa Rita e São
João do Piauí, nos quais as crianças não apenas acompanham pais e avós com quem muitas
vezes são criados, como até mesmo se valem das aulas como reforço escolar ou atuam como
professores-mirins, que ajudam seus ascendentes a vencer as dificuldades do aprendizado da
leitura e da escrita, de forma afetiva, próxima, acolhedora.
Joelma refere-se às relações entre sujeitos adultos e crianças, dizendo que não há
impasse de a criança tentar ensinar o outro, por ser mais nova. Ela diz: “Muito pelo contrário,
ficavam divertindo, as meninas que tavam estudando acabavam rindo e acabava aprendendo,
porque falava: ‘Meu filho sabe mais do que eu, agora eu vou aprender’. Aí falava: ‘Assim vou
aprender mais que você, e amanhã eu vou te ensinar’”. Corrobora, ainda, essa observação,
dizendo que “a gente tenta trabalhar assim, aquele que sabe pode ajudar aquele que não sabe”,
e que “no MST tem um negócio que não precisa falar, já faz parte da organização, que é essa
questão de ajudar o outro que tá em dificuldade. [...] você não precisa falar: ‘Ah! Ajuda
fulano ali que não sabe’. O outro, rapidinho, levanta ali vai lá e ‘Deixa eu te ajudar aqui o que
eu aprendi’”.
O educador Enilson fala da dificuldade de organizar os encontros, da periodicidade, de
outros estímulos com os quais devem conviver — e superar —, para que os alunos
mantenham-se interessados nas aulas, e venham à classe:
Porque quando você faz uma discussão hoje, daqui um domingo ou outro você vai fazer [de novo], até que eles entende, agora, fazer eles entenderem
399
que era preciso tá abrindo ali aquela sala de aula pra eles trabalhar ali, é... estudar ali todos os dias, ou duas, ou três vezes por semana, ficou bem difícil. [...] a competição com a televisão, porque o horário de aula era o mesmo horário de novela. Então, foi um impasse tão grande que eu tive que tá começando um pouco mais tarde e terminando um pouquinho mais tarde, porque uns queria uma coisa, outros queria outra, então a gente teve que negociar.
A negociação continua sendo a chave do trabalho de Enilson, que não se resume a esse
início de narrativa. Criativamente vai atraindo os alunos para a sala de aula, denotando um
grande esforço para fazê-lo, mas também o enorme compromisso com o lugar de educador
encontrado no Movimento, à custa do PRONERA, em que o exercício da democracia é
prática cotidiana. Propõe, negocia, vai junto, faz, reinventa, recria:
[...] o que seria esse (pausa) PRONERA? [...] logo nos primeiros dias até eu mesmo desanimei, porque aparecia pouco aluno em sala de aula, aparecia dois, três, dois, três, na primeira semana. [...] eu tentei fazer com que eles chamassem os outros também pra sala de aula, convidar pra ir na sala de aula, pelo menos uma vez, “Vamos lá!” [...] na hora de dá o nome muita gente dá, mas na hora de ir para sala... “Ah! hoje eu não posso que eu estou doente...” “Ah! hoje eu não posso...” Eu saía casa por casa: “Vumbora, vumbora”, porque lá é agrovila, aí eu chamava casa por casa: “Vumbora, vumbora, pra sala de aula”. [...] sentamos e falamos: “Como é que nós vamos poder trazer os outros que não estão aqui, que também estão precisando desse conhecimento?” [...] “Vamos convidar eles pra vim pelo menos uma vez. Se eles vim uma vez aqui e se eles interessar pela aula bem, se não interessar tudo bem”. [...] a gente saiu casa por casa, [...] a gente fez uma coisa bem criativa. Eu tentei, falei: “Vamos fazer também, vamos ajudar, vamos ajudar, porque eu não tenho experiência. [...] nós leva chá, nós leva alguma coisa”. “Então, vamos fazer uma confraternização logo no primeiro dia, na hora que eles vim pra sala de aula. [...] vamos fazer uma confraternização, vamos fazer tipo uma conversa em grupo”. [...] a gente conversamos bastante, eles puseram suas idéias: “Essa condição dava, essa não dava...” Eu disse: “Tudo bem!” “Vamos adaptar um horário que seja útil pra vocês e que não atrapalhe seu cotidiano. [...] a hora que terminar [a nova safra] aí a gente volta pra sala de aula”. [...] consegui trazer 16 alunos pra sala de aula. [...] “Vamos tratar de fazer o chá, o café”. Tinha um menino que passa vendendo pão, eu comprava cinco reais de pão, era pra manter esse pessoal na escola. Eu fazia as torradas e levava pra sala de aula.
Às condições materiais de organização da classe, no entanto, aparentemente
desprovidas de tudo, colocam-se achados que a arqueologia de algumas pesquisas, e a
disposição de pesquisadores escava e faz surgir, brotando como fruto da terra, inicialmente
inóspita. Furtado (2001, p. 10) é uma dessas estudiosas do Movimento, cuja contribuição tem
ressignificado as produções educativas do campo. Na pesquisa intervenção realizada com
assentados no Ceará, identifica, por exemplo, alguns elementos indispensáveis à organização
do ambiente alfabetizador, distintos suportes textuais, quase sempre concebidos como
400
inexistentes em áreas em que as pessoas são, em grande parte analfabetas e onde, portanto,
circulariam poucos materiais escritos. Agrupa-os em ambiente de produção agrícola,
encontrando: folhetins explicativos, folders, manuais de operação de máquinas e de usos de
defensivos; ambiente da organização político-administrativa: atas das reuniões, ofícios-
circulares, abaixo-assinados, cartazes, fichas cadastrais, projetos, financiamentos/créditos,
relatórios de custeios, panfletos de eventos políticos, materiais de apoio e divulgação do MST
tais como cartilhas, cadernos, calendários, livro de canções e da Comissão Pastoral da Terra
(CPT), jornais locais e nacionais, revistas e outras publicações do MST; no ambiente
doméstico: rótulos de produtos alimentícios e de higiene pessoal e coletiva: dados sobre
quantidade, validade e tipo do produto, tipos de componentes, valor alimentício, modos de
uso, cuidados a serem tomados, endereços de contato com a empresa produtora, entre outros,
manuais de eletrodomésticos, invólucros e bulas de remédios; anúncios, telejornais,
telenovelas, filmes, documentários, programas de entrevistas na televisão e rádios, conta de
luz, bilhetes, cartas; e no ambiente escolar: dicionários, livros didáticos, cadernos, tarefas
escolares, produção dos alunos tais como poesias, músicas, narrativas orais, contos, cartazes,
desenhos, colagens, canções.
Assinala, também, que os processos desse fazer exigem construção coletiva, porque
metodologicamente:
Nenhuma intervenção torna-se possível, nos assentamentos do MST, se tomada de fora para dentro ou de cima para baixo. A relação deve ser horizontal, com as cartas postas na mesa: o diálogo é a trilha sobre a qual deve caminhar a experiência e os sujeitos envolvidos nela. (FURTADO, 2001, p. 5).
Nesse sentido, Joelma relata algumas situações que revelam as formas como os
educadores vão reinventando, no cotidiano a didática, e esta se vai legitimando pelas maneiras
como a formação continuada possibilita, pelo estímulo aos registros, às sistematizações, fazer
emergir e expressar o que é produzido pelos educadores, que então, o ressignificam:
[...] então, ela ensina através do crochê. Aí, como é que é isso? Os colegas têm que contar os pontos. Então, ela começou a ensinar matemática e português através daquele material. Até os homens que... encarou essa questão do preconceito que tem do homem em relação à casa . Então, assim, no início, teve algumas resistências porque os que eram homens não queriam fazer o crochê, porque era de mulher. Aí, no final as mulheres tavam aprendendo mais do que eles, então eles falaram: “Quero aprender esse negócio aí também” e a Cida começou a ensinar também pros homens. Ele aprendeu a passar o que ele sabia já de cabeça pro papel, mas ele aprendeu uma tarefa que, acho, foi o mais importante ainda, foi essa questão do valor que ele começou a dar à mulher dele em relação ao serviço de casa. Quando
401
ele fez aquele crochê, parece que ele mudou o ser dele, assim, mas lá dentro mesmo. Assim, essa concepção que coisa de casa não é só de mulher.
Embora Joelma não explicite, a questão do gênero e dos papéis sociais assumidos
culturalmente estão implícitos na prática pedagógica, que continua a narrar:
[...] essa questão do EJA, de contar a história de vida. Cada um conta a sua história. Primeiro, conta falado, depois conta escrito, o que a pessoa acha que é melhor de representar sua vida. Então, essa parte pra mim é a mais interessante, é de escutar cada um ali contar sua história, principalmente assim da gente conhecer, você me conhecer e saber um pouco mais da vida de cada um.
Na mesma direção, narra uma experiência vivida por ela mesma quando educadora,
com turma:
Nós pegamos a cartilhinha do Paulo Freire135 e botamos nos envelopes e mandamos por correio pra cada um. E isso foi tão interessante essa experiência... que tem lugar que é muito difícil receber uma carta pelo correio. Então, quando eu recebi aquilo, eu chorei, quando ele veio me contar. Tipo assim, que ele... “Nunca pensei em receber alguma coisa”. Então, quando ele abriu, viu que era um livro. “E agora, sem ler? Como é que vou fazer?” Então, só pra ver a importância, só pra começar mesmo a experiência com essa cartilha, História do menino que lia o mundo, e tinha ainda assim, e tinha umas figuras, que era Paulo Freire aprendendo ler, debaixo da árvore, tinha algumas figuras, e a gente foi e contou aquela realidade de Paulo Freire pra ele aprender a ler. E aí a gente falou: “Tá vendo como é que ele também não aprendeu a ler no...” a gente ficava relacionando com essa questão do professor dizer a ele: escreveu? Ele é rico. A gente tem essa visão. Então a gente diz: “Tá vendo, ele não aprendeu como a gente tá pensando que foi...”
Ao trazer Paulo Freire como exemplo, Joelma ainda me diz de que forma o educador e
seu pensamento estão presentes como fundamentos vivos das formulações e das práticas do
Movimento, constituindo material de estudo e leitura nos cursos. Ao afirmar essa presença,
interroga-se, me respondendo, sobre por que motivo Paulo Freire é tão estudado pelo MST:
[...] porque a gente acha assim que o que Paulo Freire escreve é como se fosse pra nós, sinceramente. Porque o que ele diz ali com relação à educação é o que a gente tem que buscar, e o que ele diz em relação aos excluídos é o que a gente é. [...] Ele escreveu pro pessoal do MST... porque é o que a gente vê. Então, é igual à nossa concepção de educação.
Os procedimentos didáticos que Joelma diz recomendar para o trabalho docente
incluem a “leitura em voz alta”, quando “quem quer ler, lê”, tipificando uma prática de roda
135 A cartilhinha a que se refere Joelma é um livro infantil denominado História do menino que lia o mundo, texto de Carlos Rodrigues Brandão retratando a biografia de Paulo Freire, ilustrado e editado pelo MST em 2001.
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de leitura, pela qual é possível incluir a todos: os que sabem, e os que, ainda, não sabem ler.
Observe-se: “Depois todo mundo faz uma rodada de discussão do que entendeu daquele texto.
Então isso possibilita com que a pessoa, mesmo que não leia ou escreva, ela entende,
compreende e muita coisa sabe discutir”.
O educador Enilson é pródigo ao narrar suas práticas pedagógicas, das quais podemos
extrair inúmeros aspectos, tanto no que tange às concepções de ensinar-aprender, quanto no
como estabelece relações entre sujeitos aprendizes, no qual se inclui, como constrói seu
sentido de ser educador, segundo as necessidades dos alunos no assentamento, exercitando,
inovando, recriando modos de fazer:
[...] alguém tinha falado na história de vida e eu falei: “Então... vamos começar contando as histórias de vida de cada um pra depois passar pro papel”. [...] A outra estratégia foi usar também os conhecimentos que eles viam na televisão. Eu mandava anotar “algumas coisas que vocês não entendem lá. Vamos trazer pra sala de aula”. [...] surgiu a questão dos transgênicos, surgiu a questão de bolsa de valores. [...] Se eu não tinha conhecimento, eu procurava me aprofundar em livros. Às vezes — minha irmã tem Internet — eu fazia ela ficar doida. “Procura isso aí pra mim porque eu preciso desse material pra trabalhar à noite”. Outra questão foi a das plantas medicinais. [...] “Vamos criar uma horta medicinal. [...] Vamos criar”. Trabalhava uma hora no lote de cada um. Incentivava eles a fazer os canteiros. Se eu estava mais desapertado eu ia lá, na casa de fulano, incentivava eles a fazerem os canteiros, cultivar a horta, colocar as plaquetas, pra que serve. [...] Porque às vezes [se] fala assim: “São tantas horas em sala de aula...” Não, eu procurava... se eu tinha espaço pra ensinar no meio-dia, ali, terminava meu almoço, eu falava: “Vou na casa de fulano ali, pra ver como tá a horta dele”.
Quanto à questão do currículo, Joelma diz que há uma constante preocupação com o
relato do que vai sendo experienciado pelos educadores. “O que se faz hoje, amanhã se relata.
Tem que ter um caderno pra gente relatar o que a gente planeja pra fazer, aquilo que a gente
fez e o que nós fez que precisa de mudar. Então, a gente tem esse hábito de relatar as coisas.
Não só na questão das escolas, mas nos encontros também”. Dessa forma, a emergência do
currículo, no dizer de Oliveira (2004b), vai-se fazendo, porque, segundo Joelma, “tem
dificuldade muito grande de se vincular teoria e prática”:
Eu falo que o currículo não necessariamente tem que ser fechado e nem que tem que ser largado o objetivo de lado. Mas ele pode ser flexível. Ele pode ser tirado, pode acrescentar ou ensino, de acordo assim como as coisas vão acontecendo. Não é a gente também não planejar, não tem um... tem sim, porque as coisas têm que ser planejadas, tem que ter uma linha.
403
E segue ainda, dizendo que, nesse processo de compreensão da prática pedagógica,
não basta ao educador a tomada de consciência, se os alunos também não conseguem
apreender, segundo as mesmas formas pelas quais o educador o fez:
Porque uma coisa é o professor entender, outra coisa é toda a turma entender o porquê daquilo. É justificar e você tentar assimilar aquilo como seu. Então, essa que é uma das dificuldades pra você entender, não significa que você assimilou, você interiorizou como seu. Você é parte daquilo e vai construir e vai mudar.
Quanto às concepções metodológicas na EJA, Joelma demonstra de que forma vem
sendo concebido o ambiente educativo — as intencionalidades pedagógicas que educam ou
deseducam, dentro ou fora das classes, segundo o documento do MST Sempre é tempo de
aprender (2003, p. 47) — nas práticas do Movimento:
[...] educação não é só nessa questão das quatro paredes, educação vai mais além disso. A gente fala assim que a gente tem uma prática, um ensinamento, que é de visitar as roças dos assentados. Leva as crianças ou os adultos pra visitas às roças do outro e quem tá na roça vai explicar aquele processo da roça ali pra quem for visitar. E nesse momento, a gente fala que é um momento tão grande de aprendizado porque aquela pessoa que não sabe ler e escrever se sente tão valorizado que ele fala: virei professor. [...] é totalmente diferente porque ele se sente naquela hora professor e tá ensinando aquilo que ele mais sabe fazer, que é mexer com a roça.
O educador Welson corrobora essa observação de Joelma, mostrando como novos
saberes podem ir sendo produzidos por meio da intervenção pedagógica, embora saiba, como
ela diz, que “é muito complicado você viver num sistema e tá construindo uma outra coisa
dentro do sistema”:
Porque juntando o seu saber com o saber deles, a gente vai formar vários saberes. Então é muito por aí. Educação de jovens e adultos é muito por aí. É você se integrar mesmo na sala de aula, fazer da sala de aula um ambiente ali que todos possam aprender, aprender e transmitir o que você chama de saber. Eu acho que é muito por aí.
Indagada sobre a existência de bibliotecas, de práticas de leitura mais sistemáticas nos
assentamentos, Joelma responde que praticamente elas inexistem, dizendo que até pode haver
bibliotecas, mas que “ninguém tem condições de comprar livro pras bibliotecas”. Acrescenta
com a informação de que as bibliotecas do município são pobres e o que faz para superar essa
dificuldade:
A gente faz um conjunto com os livros repetidos e a gente vai doando pras escolas, porque é uma situação muito precária essa questão da leitura em relação a livros. Você vai chegar em todas as escolas, na maioria você não
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vai ver biblioteca. Agora, se você for na casa do professor você vai encontrar. Na casa do professor e dos alunos, aí você vai encontrar livro. Na escola, não.
Joelma conclui dizendo o que pensa estar ainda faltando, para a transformação do que
fazem, na prática pedagógica, os educadores nos assentamentos, que confirme e reafirme as
formulações organizadas pelo MST: “vincular teoria e prática, tão importante uma como a
outra, nenhuma importante mais que a outra. Então, assim, tem dificuldade e muita [...] essa
questão da teoria e da prática, do que a gente discute e do que a gente faz no assentamento”.
1100..33..33 FFeerrrraammeennttaass qquuee oorrggaanniizzaamm aa ffoorrmmaaççããoo ccoonnttiinnuuaaddaa:: iimmbbrriiccaaççõõeess ddee ffoorrmmaaççããoo àà
eedduuccaaççããoo ddee jjoovveennss ee aadduullttooss
Da convicção de que “somos educadoras e educadores do povo”, aos princípios
metodológicos que implicam consistente formação, até os elementos operacionais que
confirmam a garantia “de formação permanente das educadoras, dos educadores”, a
concepção de educação de jovens e adultos se apresenta fortemente imbricada com os
processos formadores de docentes, tratados pelo Movimento como educadores. Essa
perspectiva de formação136 se estende para sentidos amplos, não restritos aos conteúdos
técnicos, mas vinculados aos modos de ser sem-terra e de fazer a luta, verificáveis nos
tempos de formação da proposta do PRONERA. Por exemplo, quando se atribui parte do
tempo físico da formação à participação dos educadores na vida dos assentamentos — o
tempo comunidade —, quanto na forma como se procede à continuidade da formação escolar
dos educadores, fundamento da formação para si, e consolidação do conceito de que aprender
por toda a vida inclui os próprios sujeitos educadores como jovens e adultos em processo
educativo. As evidências da assunção da formação não param aí, considerando-se, ainda, o
esforço definitivo do MST ao conseguir romper as cercas da universidade — esse latifúndio
do conhecimento — e produzir uma alternativa aos cursos de pedagogia, alternativa
interessada nas lutas, concepções, visões de mundo e de transformação social dos sem-terra,
cujo projeto pedagógico se volte aos interesses das classes trabalhadoras do campo, e aos
desejos de estudo e de educação de homens e mulheres que vivem da terra.
136 Sobre o problema da formação no MST, Oliveira (2005) faz preciosa discussão explorando-o como um conceito que envolve múltiplos elementos: a experiência, a experiência de formação e os saberes de experiência. As indicações e reflexões feitas ao longo de sua ética e rigorosa pesquisa foram em parte por mim compartilhadas no sabor do acontecido, podendo eu ter ainda bebido da rica fonte de seus depoentes, aos quais também sou grata, por matarem minha sede e alimentarem o fazer de minha própria pesquisa.
405
Nas falas dos educadores entrevistados em encontro de formação, vão-se esboçando os
sentidos do ser educador no Movimento, desde a idéia inicial de que “todo mundo é
educador”, talvez revelando uma visão de que a profissão é inata, meio aparente na fala de
Welson, educador que chega ao Movimento para assumir exatamente este lugar:
[...] logo depois dessa experiência [de trabalho na cidade] é que eu cheguei no assentamento com esse propósito, até porque não tinha nem como escapar. Porque eu era o único lá que poderia entrar nessa linha aí. Tinha que ter pelo menos o 2º grau e eu tinha. [...] Nem formação política eu não tinha de fato.[...]. “Como é que eu vou tá no meio deles sem saber o que eles pensa e o que eles quer...” [...] É uma coisa muito difícil, mas a gente pode se adaptar a ela. Acho que na verdade, todo mundo é educador.
Uma outra apreensão que faço diz respeito ao papel militante do educador. Desde a
militância identificada com a não interrupção do trabalho de educação porque não há recursos
para o projeto (ainda, ou não mais), até concepção mais complexa, que envolve um olhar
amplo sobre o que é ser educador, sintonizado com a militância dos demais assentados,
conformando uma rede horizontal de relações e de poder, simétrica e, insistentemente, igual.
[...] não dá pra separar o educador do militante e do agricultor. Quem mora na roça é agricultor e eu me considero um militante do movimento. De uma forma ou de outra, nos assentamentos temos os setores e quem assume são os militantes e agricultores. Quem está no trabalho de massa é um educador, porque não educa só na sala de aula. Nas formações eu tenho um aluno que trabalha na frente de massa direto com o povo na liderança. (Educador Juliano).
Sobre os espaços de formação desse educador militante, formado em diferentes
instâncias do Movimento, há diversos depoimentos esclarecedores, desde o do educador
Enilson — que diz que “ensinava a ler e a escrever. Quando participei do Regional eu vi que
tinha que ir mais além. Tinha que ter mais formação política” —, até a educadora Maria
Margarida que traz a perspectiva da experiência da lona — o tempo de acampados —, como
indispensável na conformação de vínculos e de enraizamento com o compromisso educador
no Movimento.
[...] acho assim fundamental a pessoa ter o acesso da lona... Eu acho que se eu tivesse passado pelo processo de acampamento a minha formação teria sido bem... (pausa). Isso é muito importante pra formação da gente. É o momento mais em que a gente se forma, é quando a gente tá embaixo da lona. A formação ali é contínua, é todos os dias. Quando a gente vai pro assentamento, a gente perde um pouco esse vínculo. A gente se forma mais pra fora. [...] Porque antes de eu vim pro Movimento, meu mundo era pequenininho e hoje é bem amplo, bem grande, porque você tem vários conhecimentos, você aprende muito, trabalhar a teoria e a prática me ajudou muito.
406
Joelma chama atenção para as realidades muito diferentes, onde “as coisas acontecem
diferentes, mas na mesma perspectiva”. Desse modo, justifica que as formas de fazer são
diferentes, devido à realidade, mas depois as experiências são relatadas, com os todos os
grupos juntos.
A educadora Nelci, do assentamento Bela Vista, diz que “a concepção política de fazer
entender as pessoas ter uma visão maior do mundo é muito difícil. Mudar a cabeça deles não é
fácil”, já apontando para o compromisso do educador de não vivenciar, apenas ele, os
processos de transformação propiciados pelas inúmeras atividades de encontros de formação,
mas de organizar, do mesmo modo, ambientes educativos com a mesma finalidade.
Joelma relata como acontecem os momentos de formação no Movimento, precedendo
a informação sobre o curso Pedagogia da Terra:
[...] o Movimento dos Sem Terra, além da questão do curso de pedagogia, ele faz formação dos professores. Tem planejamento, avaliação, estuda métodos de educação no MST, então isso melhora muito essa questão da formação do professor. Porque a formação do professor só não tá naqueles cursos que a prefeitura ou o estado oferece, mas a gente também oferece que é esses nossos encontros que a gente tem com os educadores, aí vai e junta Sul e Norte lá no Centro, que é um centro de formação, que a gente fica preocupado porque São Mateus não oferece.
Ainda sobre essas atividades, informa que há cursos chamados de “prolongado”;
cursos da “escola nacional”, que se compõem de um período de 90 dias num ambiente
próprio, estudando de manhã, à tarde e à noite. Afirma que esses momentos ajudam na
formação, porque a sala de aula sozinha nem sempre dá conta. Complementa, dizendo que a
sala de aula consegue fazer com que “o indivíduo leia e escreva, e consiga entender o porquê
disso e o porquê daquilo, mas ela não consegue atingir a questão da formação do indivíduo”.
E continua: “Por isso, que a nossa idéia é os formais e os informais, que é pra poder contribuir
com essa questão da formação. Porque nossos cursos que são fora da sala de aula são pra
contribuir no processo de formação”.
O depoimento de Joelma demonstra a percepção da complexidade da formação do
educador, e da necessidade de oferta de múltiplos e variados espaços/dimensões para que a
formação não seja só para o trabalho educativo, mas também contemple a dimensão para si,
como componente da formação humana.
Explica que, durante esses momentos, todos os assuntos são permitidos, da EJA à
política; da questão de gênero e suas relações no assentamento. Diz que o coordenador dos
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eventos tem autonomia para chamar outras pessoas para fazer palestras, para propor que,
depois de terminar a aula, todos permaneçam 30 minutos para ler o jornal, e um dos
educadores explicar o que foi lido. Conclui: “Então, não é só o professor que faz esse
processo de formação. Ele convida, desde que faça um planejamento e um agendamento”.
Todas as reuniões são rigorosamente organizadas: em cada grupo há um relator, um
coordenador, todos participam, nenhum fica de fora. Essas práticas vivenciadas, não só
exercitam a leitura e a escrita dos educadores, mas fazem com que apreendam os modos de
organizar o trabalho na sala de aula, envolvendo todos os alunos, por mais diversos que sejam
os saberes e os interesses e experiências. A experiência da coletividade e da luta está sempre
presente, e todos que acompanham os processos formadores, estando na posição de
coordenadores estaduais ou nacionais, têm o compromisso posterior de ir às salas de aula,
acompanhar as práticas pedagógicas dos educadores.
Juliano relata o significado das formações no Movimento, na certeza, como Paulo
Freire, de que nenhum educador nasce feito, de que ninguém se prepara antes para ser depois.
Identifica na EJA a importância do que passou a ser, no MST, quando desafiado a assumir
uma sala de aula. Por esse veio chegou, finalmente, ao curso de Pedagogia da Terra.
[...] Por isso que é que eu nunca sonhava, eu não tinha essa vontade de um dia aí assumir uma sala de aula. [...] Eu não tinha vontade de ser professor, mas a partir do momento em que comecei a turma com a EJA, pra mim eu já me senti um professor, me sentia um educador. [...] eu não tinha algo de que já tava preparado, até hoje eu não me sinto preparado, porque ninguém tá preparado. Se eu não tivesse começado pela EJA, eu não estaria hoje no Pedagogia da Terra. [...] No meu ponto de vista, aprender a escrever o nome é essencial, mas a gente quer muito mais. É uma coisa indeterminada, você quer dá tempo ao tempo para ver onde cada pessoa que tá ali vai chegar.
Reportando-se aos momentos de formação de educadores, Welson narra sua própria
experiência, dizendo que “nos primeiros dias eu estava perdido. Não sabia me comportar nem
conduzir a sala”. Os encontros, então, vieram em seu socorro, pois pôde usar as experiências
que trocou com seus pares. “Sem aquelas experiências novas que eu trazia acho que não tinha
conseguido”. Em seguimento, aborda o quanto a leitura foi elemento determinante no seu
processo formativo, o que reconhece na atualidade, embora tenha passado por inúmeras
dificuldades. Atribui à leitura uma condição ligada a hábito, reproduzindo a forma como a
própria escola tem pensado uma atividade complexa, de trabalho intenso, associada muito
mais a práticas culturais de uso cotidiano, do que à questão do hábito, quase sempre associado
a outra falsa noção, a de que ler é, por princípio, prazer:
408
Agora, falar que eu fui criativo, falar que eu pesquisei... Acho que nessa parte fico a desejar um pouco, até porque eu não tinha o hábito da leitura. Pra você ser um pesquisador você tem que ler bastante e é uma coisa que eu estou começando ainda, e pra mim fica muito difícil. Até porque o agricultor ele não tem essa coisa de muita leitura, ele é muito dedicado ao campo. E aí a gente esquece da leitura, até porque o camponês pensa que não precisa da leitura, e é o que aconteceu comigo. Eu não tinha esse hábito. [...] Porque eu, como todo camponês, tinha aquela ideologia de que eu não precisava ter esse hábito de leitura. E aí quando me dei de frente com esse princípio aí que é a leitura, eu tive... eu tive não, tenho ainda um pouco de dificuldade, que eu não sei, eu não sei ainda dedicar um tempo pra leitura. [...] Não a leitura como aquele processo contínuo que você tá lendo, tá lendo, sente gosto pela leitura. Talvez aí seja a minha maior fraqueza.
Finalizando o conjunto de concepções embutidas na idéia-força formação continuada,
cabe destacar um excerto de uma poesia feita por três educadoras — Nelci, Dalva e Jadma —
no encontro regional de formação, sintetizando o trabalho do educador, o movimento mesmo
que faz e as exigências imbricadas nesse fazer.
Nosso caminhar
[...] O educador tem se empenhado Com ousadia, criatividade, persistência, inovações. Busca a cada instante trabalhar Fatos da vida dos educandos, se envolver nas mobilizações, palestras, cursos e assim prossegue o seu caminhar. Trocando experiências com bravos guerreiros que vence o cansaço, o preconceito, e persiste na busca insaciável de novos conhecimentos.
1100..33..44 FFeerrrraammeennttaass qquuee oorrggaanniizzaamm aass rreellaaççõõeess ddoo MMSSTT ccoomm aass rreeddeess ee ccoomm aass ppoollííttiiccaass
ppúúbblliiccaass
A coordenadora Joelma relata as interações que vão sendo produzidas entre a ação
educativa militante nos assentamentos, em que as escolas, mesmo sendo do estado,
possibilitam a intervenção dos sem-terra, e as escolas do Sul, que são do município, em
maioria, o que, segundo ela, implica muitas diferenças, pelas dificuldades de trabalhar com os
professores “da rua”137, indicados pelo prefeito, geralmente, o que exige do Movimento
acompanhamento constante, para “ver como é que tá andando”. Nas escolas do estado quem
dá aula são assentados, portanto, integram o Movimento Sem Terra. Para Joelma, há
diferença, e destaca que no Sul apenas em uma escola estadual há uma assentada com curso
concluído de magistério, que leciona de 1ª a 4ª séries. Explica que as pessoas “da rua”,
professores não-assentados, vão às escolas dos assentamentos todos os dias, e voltam. No
137 “Da rua” é como a coordenadora denomina os professores que não são assentados, que atuam em escolas nos assentamentos, mas não vivem a cultura dos assentados.
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norte do estado as escolas são todas estaduais, e a perspectiva, portanto, é outra. “Quem dá
aula são os próprios filhos de assentados, são assentados que fez Pedagogia da Terra, que tá
fazendo, que tem curso para formar os professores”, referindo-se aos cursos de formação que
o próprio Movimento tem desenvolvido, em convênio com universidades138.
Mas apesar dessa forma de acolher o educador, quando este não tem origem no
assentamento, o MST tem travado uma forte interlocução com poderes públicos instituídos,
em busca de escuta e de recursos financeiros para a consecução do projeto de educação nos
moldes e concepções produzidos para homens e mulheres, crianças e adolescentes, jovens do
campo. Para isso, tem ocupado muitos espaços em conselhos, comissões, como um dos
representantes das muitas vozes do campo, no que tem obtido relativo sucesso, dada a
formulação e amadurecimento que demonstra das questões, tanto do ponto de vista estrutural,
quanto conjuntural. No tocante à educação de jovens e adultos, a primeira investida deu-se
pelo PRONERA, cuja formulação guarda estreito comprometimento com as concepções que
tem adotado, possibilitando, mesmo indiretamente, alcançar recursos que, especialmente nos
anos Fernando Henrique Cardoso, estiveram quase impedidos a qualquer ação que
beneficiasse os trabalhadores do campo organizado sob o Movimento Sem Terra. Com um
caminho menos direto, cercado de atalhos e riscos, conseguiram fazer acontecer um programa
cuja concepção, de caráter inovador, teve abrigo no Ministério do Desenvolvimento Agrário,
e nenhum apoio no MEC, a não ser pela via das universidades públicas, que, em muitos casos,
se aproximaram da temática, da luta, e ajudaram a construir sua compreensão. Uma outra
relação tem sido construída a partir da Comissão Nacional de Alfabetização, em que várias
representações da sociedade civil organizada têm lugar. Naquele espaço, uma dirigente do
MST baliza e pontua as questões do campo, concorrendo para a expressão de uma política de
alfabetização e de EJA que atendam às necessidades de jovens e adultos, cuja história deixou
de ser invisibilizada na sociedade brasileira. Do mesmo modo, a presença do Movimento
nessa Comissão coordenada pela Secretaria de Educação Continuada Alfabetização e
Diversidade (SECAD) pontua para as políticas da diversidade as temáticas e problemas
inerentes a esses sujeitos, tornando-as especificidades para a expressão de ações, currículos,
políticas de atendimento e de formação.
138 A Universidade Federal do Espírito Santo desenvolve o curso de Pedagogia da Terra no âmbito do PRONERA, realizando, em 2005, o curso para a segunda turma.
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1100..33..55 NNããoo nnooss ppooddeerreemmooss ddoobbrraarr ppeelloo sseeuu ppeessoo......139139
O Movimento, nas iniciativas da educação de jovens e adultos, da fase de negociação
do projeto, planejamento, conveniamento, formação de educadores, acompanhamento passa
por muitas dificuldades. A coordenadora Joelma relata várias dessas dificuldades, com as
quais tem lidado cotidianamente, algumas das quais experienciada por Oliveira140, que
acompanhou e pesquisou as ações de formação de educadores no Movimento no estado do
Espírito Santo. Das longas caminhadas, à garupa da moto, a pesquisadora vivenciou o que eu
mesma, quando envolvida com a formulação do projeto PRONERA no estado do Rio de
Janeiro, não precisei fazer, porque a trilha que levava ao assentamento estava aplainada, e as
condições de acesso, em um assentamento mais consolidado, eram menos agressivas.
Joelma me informa que no Sul do estado os assentamentos “são morrados”, ou seja,
não estão em terras planas, mas em montanhas, e “quando chove ninguém entra nem ninguém
sai”. Não há ônibus, o único assentamento em que se consegue chegar de ônibus é o Safra, na
beira da pista. Nos demais é preciso ir de moto, e Joelma diz que, “como eu não ando de moto
em barro, então alguém tem que me levar”. Essa dificuldade transforma-se em facilidade, na
perspectiva da narrativa de Joelma, com um revezamento entre os que acompanham as ações:
“Fazia um rodízio entre os 12 pra poder prosseguir as atividades porque não tem como andar
de ônibus e de carro [...] na regional a gente não tem carro. Só de moto, a gente vai só de
moto. Então tem essa facilidade assim”. Outra facilidade, segundo Joelma, é porque há
assentamentos em que acontece, voluntariamente, aulas para jovens e adultos, “porque mesmo
sem o projeto já tem a relação acontecendo”:
[...] num Movimento Sem Terra, independentemente do dinheiro, as coisas têm que continuar. Se o projeto acabou, as pessoas vão mover, as pessoas continuam, a vida continua e nós temos um sonho, então queremos alcançar. Então, essa que eu acho que é a diferença. Quando você vai no encontro vê aquele monte de gente que quer fazer as coisas e não tem condições, você acaba animando por aquilo.
139 O título refere-se à citação de Marx “Se escolhermos uma profissão em que possamos trabalhar ao máximo pela humanidade, não nos poderemos dobrar sob o seu peso...” (Karl Marx Biografia, 1983, p. 14, apud CALDART, 1997, p. 49). 140 Edna Castro de Oliveira, professora da UFES, parceira e companheira do curso de Doutoramento na UFF, pesquisadora dos processos de formação de educadores no MST.
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Joelma, demonstrando assumir na íntegra a idéia marxiana de não se dobrar ao peso da
dificuldade, mais uma vez narra a seguinte história, que ilustra o sentimento de pertencimento
ao Movimento e à EJA:
Tem um senhor que fala assim: “É melhor se tornar aluno, que a gente tem história pra contar depois. Quando chove tem que tirar água da lona, tem que segurar pro vento não carregar e naquela escola lá de concreto não acontece é nada de engraçado”. Então, é uma coisa que tem dificuldade, mas vê assim o prazer que as pessoas têm é gratificante só de você tá vendo. Quando está ventando tem que segurar o barraco pro vento não levar.
Por fim, a própria Joelma conta como não se dobra ao peso da dificuldade, usando a
linda imagem da marcha, do caminhar sempre para a frente, do não se deixar vencer pelo
cansaço, do papel inquebrantável das crianças — símbolos e sentidos da luta —, pela crença
no possível mundo novo, com o qual os assentados sonham, e pelo qual não desistem de lutar:
[...] eu tiro pelas nossas marchas. Por que alguns adultos não desistem de andar? Porque as crianças tão andando e as crianças gritam nos carros de som: “bora?”. Então quem é grande fica até com vergonha de cansar. Acho que é assim na hora que você quer tomar a educação. Então, assim, essa é a diferença. Você não é professor, você é um militante. Independente do recurso, você tem que continuar na sala de aula fazendo o seu trabalho. Então acho que é essa a diferença.
1100..44 ““TTIIRRAANNDDOO AA VVIISSEEIIRRAA””
A educação de jovens e adultos do campo não pode ser pensada em separado das
demais lutas que trava o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Como as demais, é
um campo de conquistas, no qual quanto mais se caminha, mais os sonhos são postos adiante,
convivendo todos com o rol infindável de outras lutas — todas em busca de direitos até então
negados. A classe social representada por esses sujeitos não difere, no aspecto das múltiplas
exclusões, de muitas outras desse país, interditadas também, mas ainda, em sua maioria, sem a
organização que conferiu, efetivamente, o diferencial ao MST.
Caldart (2004, p. 107) alerta para o fato de que:
Não há escolas do campo num campo sem perspectivas, com o povo sem horizontes e buscando sair dele. Por outro lado, também não há como implementar um projeto popular de desenvolvimento do campo sem um projeto de educação e sem expandir radicalmente a escolarização para todos os povos do campo.
Para a coordenadora Joelma, essa mesma idéia ganha um sentido metafórico, mas
rigorosamente coincidente com a questão de Caldart e com tantas outras que surgiram no
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desenvolvimento desse texto, do ponto de vista de pensar a educação de jovens e adultos pelo
sentido do aprender por toda a vida, próprio de sujeitos inacabados. Como o Movimento é
feito de homens e mulheres inacabados, nessa mesma perspectiva Joelma compreende o
momento do MST, e a necessidade de continuar a fazer a luta:
[...] eu digo que é tirar a viseira, porque você só anda assim [faz o gesto], só pra você. O MST tenta abrir isso aqui [de novo, faz o gesto] até o momento em que não tenha mais, você consiga enxergar o mundo ao seu redor e ver além do seu umbigo. Eu acho que isso o MST possibilita.
[...] Então, assim, o MST o que ele tem é uma construção pra definir ainda. Ainda não ficou adulto.
Voltando ao Ciço, no Posfácio (In: BRANDÃO, 1988, p. 198), emblematicamente,
cabe acrescentar:
Eu entendo pouco de tudo isso, não aprendi, mas ponho fé e vou lhe dizer mais, professor – como é que eu devo chamar o senhor? – eu penso que muita gente vinha ajudar, desde que a gente tivesse como acreditar que era uma coisa que tivesse valia mesmo. Uma que a gente junto pudesse fazer e tirar todo o proveito. Pra toda gente saber de novo o que já sabe, mas pensa que não. Parece que nisso tem segredo que a escola não conhece.
Como o senhor mesmo disse o nome: “educação popular”, quer dizer, dum jeito que pudesse juntar o saberzinho da gente, que é pouco, mas não é, eu lhe garanto, e ensinar o nome das coisas que é preciso pronunciar pra mudar os poderes. Então era bom. Então era. O povo vinha. Vinha mesmo e havia de aprender. E esse, quem sabe? É o saber que tá faltando pro povo saber?
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1111.. PPRROOGGRRAAMMAA AALLFFAABBEETTIIZZAAÇÇÃÃOO SSOOLLIIDDÁÁRRIIAA:: BBEENNEEVVOOLLÊÊNNCCIIAA DDOO EESSTTAADDOO
EEMMEERRGGIINNDDOO NNAA EESSFFEERRAA PPÚÚBBLLIICCAA??
Mas esse mundo comum só pode sobreviver ao advento e à partida das gerações na medida em que tem uma presença pública. É o caráter público da esfera pública que é capaz de absorver e dar brilho através dos séculos a tudo o que os homens venham a preservar da ruína natural do tempo. (ARENDT, 2001, p. 65).
A primeira discussão que merece ser travada neste texto não se refere ao contexto em
que surge o Programa Alfabetização Solidária – PAS, porque sobre isto já foi abordado em
outros momentos dessa pesquisa, tanto quando abordei o cenário histórico-nacional que
precedeu a V Conferência de Educação de Adultos, quanto o que compôs o Programa como
política pública face à perspectiva do direito de todos à educação. O objetivo desse capítulo é
buscar compreender as concepções de EJA, de alfabetização, de formação de alfabetizadores
que subjazem ao direito à educação nesse Programa, supondo ser este direito um dos pilares
de uma sociedade democrática.
A ALFASOL é uma organização não-governamental, sem fins lucrativos e de
utilidade pública, que “adota um modelo de alfabetização simples, inovador e de baixo custo,
baseado em parcerias141”. Discutir os significados e sentidos que sua própria nomeação
assume, nessa rede de compreensões e nas circunstâncias em que é produzido, segundo a
ideologia prevalente no país, em acórdão ao mundo globalizado é, pois, a minha intenção
primeira.
Dois conceitos estão imbricados na denominação do Programa: o primeiro, de
alfabetização; o segundo de solidariedade. Se quiser ser precisa, um terceiro, o de programa,
que ajuda a compor o entendimento que desenvolvo.
A ordem pela qual os abordo não tem outro critério se não o da escolha da
pesquisadora para expor a idéia implicada, no fio pelo qual conduzo a discussão. González
(2002, p. 27) discutindo a relação entre solidariedade e sociedade civil, recorda:
[...] dos ideas fundamentales, que acaso habíamos dejado caer en el olvido: en primer lugar, que el Estado no tiene el monopolio de la benevolencia, y en segundo lugar, que la iniciativa privada no puede identificarse a priori con el interés egoísta.
141 In: www.alfabetizacaosolidaria.org.br. Acesso em 17 julho 2005.
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A autora destaca, com isto, a necessidade de não se antepor Estado e sociedade,
mesmo quando se trata do tema da solidariedade, porque a forma de desenvolvimento desta,
nos processos históricos, indica uma interação constante com as forças do Estado, e jamais
como forças opostas. O espaço público moderno requer o compromisso ético da cidadania e a
discussão em pauta do tamanho do Estado, segundo as diversas concepções em jogo, não
prescinde dele nem para custear, em muitos casos, as atitudes solidárias da sociedade civil.
Estas, não respondendo a nenhum contrato social prévio e transcendendo fronteiras, ativa
outras energias humanas que nem o discurso dos direitos humanos dá conta, em ordem de
grandeza suficiente, ao lidar com a realidade e com o dever da solidariedade. A solidariedade,
por sua vez, não responde a princípios abstratos e formais, mas a percepções concretas e
substantivas das necessidades humanas e, sendo uma atitude fundamentalmente ética, se
encontra antes de qualquer discurso jurídico. Na medida em que é universal, significa que
existe uma ética universal anterior à convenção dos direitos humanos.
Muitos movimentos de solidariedade, nos últimos tempos, expressam a insuficiência
dos sistemas vigentes — presas do neoliberalismo —, fazendo frente às novas formas de
pobreza e marginalização social, dentro e fora de sociedades desenvolvidas e
subdesenvolvidas, pela certeza de que essas novas formas de marginalização não se resolvem
unicamente com decisões políticas ou medidas legais. Exatamente porque expressam a
insuficiência do Estado, no atendimento às necessidades sociais, os movimentos não podem
ser estatizados, mas também não podem furtar-se de interferir nas políticas de
desenvolvimento de governos locais, nacionais e regionais. Porque não conhecem fronteiras,
arvoram-se no tempo presente a um trânsito mais amplo e abrangente nas unidades políticas e
legislativas que o do Estado moderno.
González (2002, p. 46) ainda afirma:
[...] me parece, en primer lugar, que no se debe aspirar a institucionalizar toda iniciativa de solidaridad. Cuando hablo de “institucionalizar” no me refiero únicamente a legalizar, sino también a mercantilizar las aspiraciones solidarias, como cuando se asocia la compra de un producto a un acto de beneficencia: [...].
Assim, de posse dessa compreensão, a leitura da palavra solidária, no nome desse
Programa, soa diferente, quando este foi posto justamente como um programa de governo, de
traço fortemente neoliberal, cuja ideologia em relação ao trato dos direitos sociais e do
trabalho marcaram — e ainda hoje marcam — as políticas públicas do país.
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A contradição explícita entre ser estatizado e se dizer solidário, evoca o equívoco de
assumir um conceito próprio da sociedade civil, a partir do Estado, recriando, no conjunto dos
acordos neoliberais, os pressupostos que lhe dão sustentação. O lugar da insuficiência do
Estado não deixa dúvidas, quando o Programa é oferecido como alternativa, mas se vale de
um lugar, de todo modo de beneplácitos, porque favorecido dos recursos do Estado e do
empresariado, cuja “solidariedade” é quase arrancada à força, no papel que o mercado, “livre
e auto-regulador”, faz de si próprio, desde que escorado, nos riscos que corre, na confiança
que o Estado representa, para que se lancem nos muitos “vôos” que fazem, entre eles o “vôo
solidário”. Mas esse lugar da insuficiência, no entanto, é um lugar de escolha, de opção
política, que a história da educação de adultos no país sabe demonstrar bastante bem, como
vem sendo definido, ao longo dos tempos e das ideologias mais ou menos autoritárias e
segundo interesses do capital. Já se escolheu ser a educação de adultos um veio para a teoria
do capital humano; já se escolheu ser a ferramenta que fortaleceria a cultura e as
manifestações e expressões populares.
A mercantilização das aspirações solidárias, no dizer de González, parece acompanhar
o Programa, que se vale de duas premissas fundamentais para o seu acontecer. Em primeiro
lugar, a de que o ato solidário de oferecer aos não-alfabetizados a alfabetização é feita pela
“adoção” de analfabetos e de municípios pela ação do empresariado porque este setor, como
forma de participação solidária, é convocado a contribuir com a metade do custo-aluno de
cada Programa e com conseqüente espaço na mídia e nos materiais impressos de divulgação
do PAS. Ainda do mesmo lado, o ato solidário, em detrimento de políticas públicas, é
complementado com recursos da União, mais exatamente do FNDE, gravados no orçamento,
o que lhe dá caráter público, portanto, passível de fiscalização e controle pelas instâncias
instituídas para tal fim. A segunda premissa é a de que, posteriormente, a “adoção” também
pode ser feita por pessoas físicas, quando essa solidariedade se estende à sociedade,
sensibilizada para a ação doadora, por artistas em diversas campanhas midiáticas. Oferece-se
o produto — alfabetização — diretamente associado aos bens de mercado que ajudam a
vendê-lo: os empresários (segmento considerado de sucesso e de valor intrínseco) e a classe
artística, todos embalados em bem produzidas campanhas publicitárias que consomem, ao
mesmo tempo em que recolhem, muitos recursos para a manutenção da ação “solidária”. A
ação de beneficência, na mídia impressa, também atingiu contas de luz e de outras tarifas,
“facilitando” a solidariedade no ato de quitação do débito, pelo consumidor. A associação
dessa ação — e das concepções que embute — com a ideologia neoliberal demonstram como
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foi sendo urdido um processo cativante de substituição da assunção e do cumprimento de
direitos devidos à sociedade pelo poder público. Em seu lugar, foi sendo armada uma bem
montada estratégia, fortemente sustentada pelo marketing, de transferência de
responsabilidade para a sociedade “solidária”, com a mediação de um Programa que, de
início nascido no âmbito das ações governamentais coordenadas pela primeira-dama Ruth
Cardoso e, portanto, de caráter governamental (por isso a rubrica de recursos gravada em
orçamento), passa a constituir a ação-fim de uma organização não-governamental, criada para
mantê-lo, o que corrobora, ainda mais, a referida transferência de responsabilidade do direito
à educação, como dever do Estado, para a sociedade, sem lhe tirar, no entanto, o caráter
público, mantendo a ação no âmbito da esfera pública, porque nesse caso, também a referida
organização, como apontado por González, tem suas ações custeadas pelo Estado, ainda que
não in totum. Reforçando esse custeio das ações, cabe dizer que essa organização mantinha,
desde o início — e ainda mantém —, o concurso de universidades públicas e privadas, que
convocadas a participar do esforço solidário que o governo fazia, recebiam a indicação do(s)
município(s) em que atuariam; coordenavam a ação alfabetizadora, inclusive selecionando os
alfabetizadores; faziam a formação desses alfabetizadores; acompanhavam a execução
pedagógica e técnica do Programa; prestavam contas das ações de formação etc.,
subvencionadas, praticamente, com os próprios e escassos recursos, pois no mais das vezes o
único apoio recebido dizia respeito a uma bolsa-auxílio de R$300,00 para o coordenador e a
garantia da vinda dos alfabetizadores até a cidade onde estava o campus da universidade,
devendo esta ainda buscar hospedagem, transporte local e providenciar alimentação (muitas
vezes complementados esses itens pela própria universidade); prover formas, meios e recursos
para a formação; e participar dos chamados da entidade nas reuniões, tanto regionais, com os
parceiros estaduais, quanto nacionais. Pode-se, assim, garantir que a forte inflexão do
Programa se faz pela ação pública, porque além dos recursos do Fundo Nacional do
Desenvolvimento da Educação (FNDE), muitos outros, oriundos das instituições de ensino
superior públicas, também concorrem para sua implementação.
Revendo a natureza desse caráter público, de que se vale o PAS, cabe ainda ressaltar
que outras tantas organizações não-governamentais, também com ação precipuamente
alfabetizadora, não gozavam desse privilégio, tanto de destinação fechada de recursos — para
os quais deveriam concorrer com projetos, anualmente, em épocas apropriadas, podendo, ou
não, tê-los aprovados — quanto de poderem contar com o trabalho gratuito — ou quase —,
das universidades, não apenas para a pesquisa, mas para a execução propriamente dita das
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ações envolvidas nos processos de alfabetização. Pergunto-me, ainda hoje, onde a ação era
mais solidária, se em relação ao público jovem e adulto, como definiam as finalidades do
Programa, ou na ação das universidades parceiras, que solidariamente davam suporte a essa
ação.
Um aspecto ainda a destacar, no tocante à forma como se constitui a esfera pública e
quanto ao caráter público das ações, diz respeito ao conceito de parceria, um conceito caro
para o modelo neoliberal, apreendido pelos modos como o Estado se desresponsabiliza de
seus deveres e de como se apropria fragilmente da res publica, que distribui e partilha com
parceiros, assim chamados todos os que buscam não apenas o custeio do Estado para as ações
que se transferem para a sociedade, mas que ainda o repartem, beneficiando indiretamente
outros “parceiros”, ao mesmo tempo que, contraditoriamente, também exigem o concurso de
recursos oriundos desses mesmos parceiros. A sutileza da construção põe-se no fato de que,
apesar de parceiros, esses devem seguir um conjunto de orientações definidas, segundo um
modelo prévio, sem margem para “negociar”142 qualquer mudança no que está posto.
Observar esta questão no PAS, em que o conceito é pedra fundante e sustentáculo de toda a
ação, demonstra o uso particular que é feito, na enunciação que se acessa na página
www.alfabetizacaosolidaria.org.br (Acesso em 17 julho 2005).
Um dos aspectos inovadores da Alfabetização Solidária é a articulação de um conjunto inédito de parcerias no Brasil. Ao inaugurar esse amplo processo de mobilização pela diminuição do analfabetismo, a Alfasol indicou um novo caminho para a organização de ações sociais, que se opõe a antigas fórmulas adotadas no país, caracterizadas pelo mero assistencialismo e pela ineficiência e obsolescência de políticas centralizadoras. Nesse esforço, a Alfabetização Solidária consolidou resultados significativos: mantém parcerias com inúmeras empresas, universidades, cidadãos, prefeituras e governos. O trabalho conjunto com empresas, que tem sido essencial para a evolução da Alfasol, já foi desenvolvido em diversos municípios com os mais altos índices de analfabetismo do Brasil.
Criticando políticas centralizadoras, mas delas se valendo como suporte à própria
existência, por pelo menos seis anos, pode-se ainda perceber como o Programa se auto-
referencia, na imagem que faz do seu papel social junto a demais iniciativas de alfabetização,
no que está enunciado na página web citada:
142 Negociar é princípio básico de relações democráticas e, como tal, em modelos pseudodemocráticos, marcados pelo centralismo e pelo autoritarismo, mesmo quando de concepções e modos de ver a realidade, não se admite a possibilidade de negociação, o que seria, no caso, contraditório, pois. Repare-se que, ao definir seu sistema de parcerias, que considera “inovador”, a ALFASOL faz a crítica a modelos assistencialistas e ineficientes de alfabetização, de políticas centralizadoras, negando seu próprio caráter rígido e centralizador que comanda, por tantos anos, um único modelo de atendimento. Outras questões serão ainda apontadas ao longo do capítulo.
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O Ministério da Educação (MEC) é parceiro da Alfabetização Solidária. Até o fim de 2002, o MEC fornecia o material didático e de apoio para a formação de bibliotecas e bolsa de apoio ao trabalho dos professores das Instituições de Ensino Superior parceiras. O MEC ainda atua adotando integralmente municípios em vários Estados do país.
Alguns aspectos a destacar: o primeiro, que a garantia, pelo MEC, de recursos
orçamentários para o Programa existiu até 2003, porque, mesmo com a mudança de governo
e das formas de encaminhar as políticas de EJA, havia recursos rubricados a ele destinados,
com ações a serem executadas. O relatório do TCU confirma que, em 2001, o PAS auferiu
R$79,33 milhões de dotação orçamentária, tendo executado 99,8% desse valor, e que em 2002
essa dotação chega a R$102,60 milhões.
No PPA [Plano Plurianual] e na LOA [Lei Orçamentária Anual], Alfabetização Solidária de Jovens e Adultos se constitui em Ação do Programa Educação de Jovens e Adultos – EJA. No entanto, no âmbito de sua execução pela AAPAS143 é denominada Programa de Alfabetização Solidária. (TCU, 2003, p. 9).
Em 2003, o MEC lança o Programa Brasil Alfabetizado, cujas regras de
financiamento possibilitavam o acesso, aos recursos, de sistemas públicos e de organizações
não-governamentais, em igualdade de condições e exigências144. O PAS inicia sua experiência
de se adequar aos novos ritos, mas não consegue cumpri-los todos para auferir os recursos
orçamentariamente gravados. Esses ritos se colocam, basicamente, no que diz respeito à
inscrição de alunos nas turmas atendidas. O Tribunal de Contas da União apontava, desde
fevereiro de 2003, como ponto frágil do Programa, o não controle dos sujeitos matriculados,
o que não apenas fazia com que se desconhecesse sua origem, sua continuidade ou não de
143 Associação de Apoio ao Programa Alfabetização Solidária, instituição formalmente credenciada para o recebimento dos recursos das ações de doação para pessoas físicas e jurídicas, por meio da Campanha Adote um Aluno. 144 Essa igualdade de condições, inclusive, dificultou o acesso aos recursos por parte de inúmeros municípios brasileiros, pela exigência de adimplência com impostos com os quais, historicamente, as entidades públicas têm sido contumazes devedoras, pelos processos de tributação, centralismo dos recursos e empobrecimento que a Nação tem sofrido, causada pelo endividamento externo e interno. A partir de 2004, criaram-se dois conjuntos de resoluções diferentes, uma para órgãos públicos e outra para organizações não-governamentais, o que possibilitou, nesse caso, melhor distribuição na aplicação dos recursos, favorecendo os sistemas públicos. Em 2003, a captação dos recursos por instituições da sociedade civil chegou a cerca de 70%, enquanto em 2004, o equilíbrio entre um setor e outro ficou em torno de 50%. Dados da pesquisa Avaliação diagnóstica dos Programas Brasil Alfabetizado e Fazendo Escola apontam para o acerto dessa medida, pelo fato de que, quando os recursos destinam-se aos entes públicos, tendem a permanecer e melhorar os sistemas para além de um único projeto, favorecendo o atendimento dos sucessivos grupos demandantes. Ou seja, comportam-se como bens públicos. No caso das entidades privadas, os recursos se esgotam nos projetos, o que significa que sem novos aportes, nada mais acontece, o que do ponto de vista do erário pode ser questionado, pelo que significa de investimento público com baixo retorno. A respeito dessa questão, consultar o Sumário Executivo do TCU sobre a auditoria realizada no Programa Alfabetização Solidária, cujo relatório data de fevereiro de 2003. Acessível em www.tcu.gov.br/avaliacaodeprogramasdegoverno.
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estudos quando egressos e sua rematrícula quando não conseguiam êxito nos primeiros cinco
meses de experiência com a alfabetização. Esse aspecto, com a adesão do PAS ao Programa
Brasil Alfabetizado, passa a ser solucionado, pela introdução de um rigoroso cadastro de
alunos145, não sem um grande esforço da instituição, como aliás de todas as que concorreram
aos recursos, pela primeira vez habituadas que estavam pelas práticas históricas de quantificar
analfabetos, sem lhes conhecer nome, identidade, local de residência, sua existência civil
inclusive. Recomendava a auditoria maior controle, por parte do Programa, face à dificuldade
de avaliar o desempenho dos recursos públicos que recebia, numa leitura acurada do que
ocorria na realidade dos municípios, módulo a módulo.
Não há uma identificação precisa dos alunos (alfabetizandos) que participam do Programa. Isso ocorre porque o Programa não exige, para inscrição no módulo, que o aluno apresente, obrigatoriamente, algum documento de identificação, o que impossibilita a identificação de modo inequívoco dos alfabetizandos.
Uma das conseqüências negativas da falta de registro sobre alunos rematriculados é o desperdício de recursos com a distribuição de material didático e de apoio do programa para os alunos que refazem o módulo e que, portanto, já haviam recebido o mesmo material em módulo anterior.
Além do desperdício de recursos financeiros, essa situação acarreta uma distorção nas estatísticas sobre o número de alunos atendidos, pois um mesmo aluno pode ser contado mais de uma vez (em módulos distintos) nas coletas de dados sobre alunos matriculados e alunos que concluíram o módulo. (TCU, 2003, p. 21).
Também Machado (2002, p. 11-12), analisando o histórico da implantação do
Programa em Goiás, em duas fazendas da região, por uma universidade privada, por meio de
relatórios e dos embates travados com a coordenação do próprio Programa para que a
Universidade Federal de Goiás assumisse o trabalho em seu território, e não no Amazonas146,
pelas dificuldades implícitas à distância, no que diz respeito ao acompanhamento e à
formação continuada dos alfabetizadores, assim se expressa:
Não se leva muito a sério a questão de que cinco meses não é tempo suficiente para todos? Como tratar a realidade concreta dos alunos de EJA
145 O cadastro existe, também, para alfabetizadores, e a coleta de informações forma, hoje, um rico banco de dados capaz de possibilitar construir densos perfis desses sujeitos que aprendem, em interação, nos processos de educação de jovens e adultos. 146 A lógica do Programa, desde seus primórdios foi a de que as universidades deveriam assumir municípios escolhidos pela coordenação do PAS, dentre os que apresentavam maiores índices de analfabetismo, mas em regiões diversas dos estados em que se situavam. Isso tanto significava que estas passariam a mergulhar num universo supostamente desconhecido por elas, quanto significava que, trazendo os alfabetizadores para uma outra capital, imaginava-se imergi-los na cultura, impossível de ser pensado nos limites da própria realidade em que viviam.
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que não podem freqüentar todas as aulas [...], que passam por períodos de desânimo e quase desistem? Estes, com certeza enfrentam dificuldades em relação ao desempenho da aprendizagem. [...] E como são eles registrados no PAS, na condição de alunos novos? Essa informação parece não ter importância, pois não se encontra uma sistematização dos dados. Observa-se, porém, que o programa cuida de estampar a cifra de 1.500.000 alunos atendidos. [Referindo-se a relatórios de 1997 e 1998].
A partir de 2004, com a redefinição dos procedimentos do Programa Brasil
Alfabetizado no que diz respeito às parcerias, este beneplácito deixou de ocorrer, fazendo com
que a organização não-governamental que a sustentava, como todas as demais envolvidas com
a alfabetização (além de estados e municípios), se submetessem às mesmas regras e
procedimentos para auferi-los147, mediante projeto, cadastramento prévio de alfabetizadores e
de alfabetizandos, proposta de formação.
Se por um lado o MEC não impunha, para efetivar a parceria, um modo único de
conceber a alfabetização, apenas definindo princípios e concepções de alfabetização e de
continuidade, por outro, de certa forma, estabelecia limites a essas diversas concepções, ao
restringir o financiamento a seis meses. Embora isto, na prática, não necessariamente devesse
produzir alterações nas propostas e nos tempos que já vinham sendo desenvolvidos pelas
entidades, os parceiros acabavam mudando seus tempos — e conseqüentemente as
concepções —, para cumprir uma definição que se confundia com determinação. Em
realidade, o MEC não financiava mais do que seis meses, estabelecendo para todos um limite
igual. Mas quem fazia alfabetização em mais tempo poderia continuar a fazê-la, adicionando
recursos próprios com os quais trabalhava até então, aos oriundos do MEC, o que
possibilitava ampliar a ação alfabetizadora e/ou qualificá-la. No entanto, o que se viu foi uma
quase completa redução de todos os desenhos a seis meses, e uma substituição/migração mera
e simples dos recursos originais, para os novos recursos, sem ampliação significativa de
muitas ações, nem de qualificação das mesmas. Este foi, por exemplo, o caso do SESI, que
fazia a alfabetização em dez meses com recursos próprios e passou a realizá-la em apenas seis
meses, com recursos do Programa Brasil Alfabetizado, abandonando inteiramente suas
convicções quanto aos tempos de aprendizagem de jovens e adultos em processos de
alfabetização. Quando a ALFASOL afirma que o MEC é seu parceiro, e que atua adotando
147 Durante o governo Fernando Henrique Cardoso o PAS não concorria a recursos do FNDE como todas as demais entidades que atuavam com alfabetização e outros projetos. A transferência era prevista no orçamento da União, havendo, portanto, privilégios dessa organização sobre todas as demais. No momento em que as regras passam a valer para todos, as “vantagens” que as entidades auferem com o Programa Brasil Alfabetizado passam a ser iguais, desde que cumpridas as exigências, comuns a qualquer organização, sem distinção.
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integralmente municípios pelo país vê o mundo a partir de suas próprias compreensões,
invertendo o papel indutor de políticas do Ministério. O MEC, assumindo seus próprios
limites orçamentários, seu papel não-executor mas fomentador, e reconhecendo a sociedade
como legítima parceira pela forma como historicamente veio sustentando um direito negado a
tantos, concerta, aportando recursos nacionais — ainda insuficientes —, o coletivo de
instituições que em rede, participam, em parceria, do esforço alfabetizador que o governo
federal reconhece como compromisso ético e prioritário, no conjunto de políticas públicas, a
partir de 2003.
Alvarenga (2002, p. 2) discutindo a natureza do Programa, admite que este faz a sua
construção ainda com base no conceito de consenso no sentido gramsciano, e assim se
expressa:
[...] entendemos ser esclarecedor o argumento de Gramsci para explicar como é que, através do consenso, ou do consentimento ativo, um determinado grupo social pode obter a hegemonia sobre os demais grupos. [...] É na perspectiva da expressão cultural que aduzimos à questão da construção do consenso pelo PAS para a “aceitação” de sua política de alfabetização.
E segue, afirmando que discursivamente o Programa busca nas contribuições de
Freire a principal fonte para a construção do consenso, pretendendo, com isso, dar
legitimidade às práticas desse programa governamental, e sendo essa construção estruturada
“pela e na linguagem, seja ela veiculada pela mídia ou pela exortação à participação das
universidades públicas e privadas”. Diz a autora que, no caso das universidades públicas,
estas podem ser consideradas parceiras “naturais” do Programa, dada sua subordinação ao
poder federal e, “as segundas [as privadas] por obterem ganhos derivados (isenções fiscais ou
outros benefícios) reclamados como conseqüência de sua inserção na ‘parceria’ que mantêm
junto à coordenação executiva do PAS”. (ALVARENGA, 2002, p. 2).
Alvarenga (2002, p. 3), na explicação teórica que constrói para compreender a
hegemonia do Programa, assumido em todo o país com tanta ênfase pelas universidades,
principalmente, das quais se esperava um posicionamento mais crítico na tomada de decisão,
ainda afirma:
[...] a linguagem da cidadania e da democracia que permeia o discurso neoliberal, ao nosso ver, funciona como astuta estratégia de convencimento em busca de um consenso, sendo este discurso exaltado e entendido como única possibilidade de alfabetização de jovens e adultos. Para isto, e para atingir este grande feito, todos são convocados a compartilhar esforços para cumprir a tarefa de “combate ao analfabetismo”.
422
Introduzindo a palavra alfabetização, busco apreender a concepção que encerra,
resultante não de uma perspectiva do direito, nem da apreensão, para o sujeito não-
alfabetizado, da ferramenta que possibilita o acesso à cultura escrita em sociedades
grafocêntricas, mas exatamente do alívio da pobreza, que cercou — e ainda cerca — muitas
iniciativas nessa área. Porque ocupando o espaço da insuficiência do Estado, e supostamente
pela mão da sociedade, há que ser pouca a oferta, de caráter basista, mínimo, para que a
grandeza do gesto se faça inteira: tirar os analfabetos da ignorância, solidariamente,
oferecendo-lhes o que é possível, para ser coerente com o fundamento ético que sustenta a
solidariedade, mas que não elimina, no tocante ao tema do analfabetismo, o problema do
preconceito e dos estigmas contra os não-alfabetizados. Não por acaso, alguns poucos anos
depois do lançamento do PAS, a Secretária de Educação Fundamental do MEC dizia que o
objetivo era sensibilizar as pessoas para a alfabetização, e esta viria depois, e não por esse
Programa de curto prazo, confirmando com isso o caráter “solidário” que se insistiu em
manter. Algum tempo, mais tarde, a construção pôs-se inteira, à mostra, transformando o
programa governamental em uma organização não-governamental, perfeitamente coerente,
agora, com o papel desempenhado.
Quanto à palavra programa, cabe-me comentar que expressa — como tantos outros
assim também nomeados — o não-direito, porque como tal, não se enraíza como política
pública nos sistemas, lugar único em que pode ter sustentação e permanência, associando-se
mais a idéias já bastante conhecidas de campanhas e de movimentos, todas elas de caráter
pontual e episódico, que não deixam marcas profundas quando se vão, porque feitas à
margem dos sistemas, onde poderiam se consubstanciar e constituir direito de todos.
Com essas considerações iniciais, que me apontam aspectos relevantes quanto às
concepções que norteiam o Programa Alfabetização Solidária, passo a desenvolver outras
questões que ajudam a compreender como essas concepções são sustentadas e justificadas.
1111..11 CCOONNSSTTIITTUUIINNTTEESS EE DDEETTEERRMMIINNAANNTTEESS DDAA CCOONNCCEEPPÇÇÃÃOO DDEE EEJJAA EE DDEE AALLFFAABBEETTIIZZAAÇÇÃÃOO
EEXXPPRREESSSSOOSS EEMM DDOOCCUUMMEENNTTOOSS
A leitura de alguns materiais do Programa subsidiou meu esforço de compreensão
sobre as concepções subjacentes, para além das que o próprio nome revela, quanto ao que
significa educação de jovens e adultos e alfabetização para o PAS. Para isso, utilizei os
seguintes documentos: Programa Alfabetização Solidária, Proposta político-pedagógica,
1999; Boletim Alfabetização Solidária – dez 1998; Relatório de 4 anos de atividades do PAS
423
1997-2000; Revista da Alfabetização Solidária n. 4 – 2004; Trajetória 2004 - 8 anos
Responsabilidade e inclusão social; Sumário Executivo Avaliação do TCU sobre a
Alfabetização solidária de jovens e adultos, elaborada pelo Ministro-relator Guilherme
Palmeira do Tribunal de Contas da União, fevereiro de 2003. Utilizei-me também de
anotações sobre o Programa, por ter convivido, sem participar diretamente, com o seu
desenvolvimento, a partir do Programa de Alfabetização e Leitura (PROALE) da
Universidade Federal Fluminense, além de consultas à base de dados do programa na página
da Internet www.alfabetizacaosolidaria.org.br acessada em 16 e 17 de julho de 2005, pela
última vez.
Um aspecto curioso de todo o material recolhido, com exceção da Proposta Político-
pedagógica (1998), integrante de meu acervo pessoal, é que não se encontra na rica página
web, disponível para consulta eletrônica, nenhum documento com as formulações do
Programa no que tange às diretrizes, concepções, orientações teórico-metodológicas.
Além da leitura dos documentos e dos textos eletrônicos disponíveis, a pesquisa
contou com um questionário (Anexo 3) enviado a quatro profissionais que estiveram/estão
envolvidos com o PAS desde a origem do Programa. Destes, apenas três o responderam, e as
reflexões encaminhadas, decorrentes das questões, foram por mim apropriadas para a melhor
compreensão das concepções de EJA e de alfabetização do Programa, dando a ele maior
visibilidade e auxiliando na tessitura da rede que ouso tramar em busca de sentidos para a
EJA, na contemporaneidade, a partir, nesse capítulo, da Alfabetização Solidária.
Explicito a constituição do Programa, com base no item Princípios orientadores para
elaboração da proposta político-pedagógica pelas universidades (PAS, 1999), para que se
possam compreender algumas de suas concepções.
Constituído por módulos de alfabetização com duração de seis meses, sendo um deles
para “capacitação” e cinco (240h/aula) para o curso, o PAS atribui a alfabetizadores, em sua
maioria leigos, o papel de professor. O processo de formação e acompanhamento sistemático
do trabalho no campo, como apresentado, anteriormente, cabe à universidade parceira. O
documento afirma que, “apesar da previsão de atendimento prioritário à faixa de 15 a 19 anos,
os alfabetizandos que procuram o programa têm-se concentrado na faixa etária de 20 a 39
anos”. (PAS, 1999, p. 10). O documento ainda explicita que, “considerando os princípios
políticos definidos para o Programa tem-se a preocupação de inserção do cidadão no meio em
que vive como condição de ampliar a sua inserção social, diante dos avanços nas novas
modalidades de informação e comunicação”. (PAS, 1999, p. 10).
424
Na data de 16 de julho de 2005, o PAS apresentava os seguintes dados: 4,9 milhões de
atendidos; 20 mil alfabetizadores; 166 empresas parceiras; 2066 municípios envolvidos; 209
instituições de ensino superior parceiras, o que, seguramente não é pouco. Mas o que chama a
atenção é que os dados, em todos os relatórios anuais, comemorativos dos aniversários do
Programa, assim como outros documentos, como revistas, são sempre de atendimento, jamais
revelando resultados da ação alfabetizadora, nem de evasão, nem de alfabetizados. Eis, acima,
por exemplo, um dado saudado na página como “quase 5 milhões de alunos atendidos”, sem
se saber quantos, por quantas vezes, refizeram os módulos, ou quantos, por uma, ou por
quantas vezes, ainda assim não se alfabetizaram.
Farah Neto, respondente ao questionário que atuou por dois anos no Programa, de
1999 a 2000, escreve: “Acho que existem dois PAS: aquele ‘ofertado’ como arremedo de
política pública decente para a EJA, compensatório, provisório e, antes de mais nada, pobre, e
aquele desenvolvido pela instituição encarregada de executá-lo em campo”. O
reconhecimento perspicaz do respondente corrobora minha percepção e, no caso do PAS, meu
limite de compreensão: sem conhecer as práticas, para tecê-las com as formulações, o âmbito
da investigação me põe como alguém que olha da janela, vê todo o cenário, mas não me
possibilita compreender a ação que a vista não alcança, o gesto que se esconde, o grito, o
sussurro que foge aos meus ouvidos. Estar no terreno, produzindo uma trajetória não linear,
espacial, e não apenas temporal, como alerta Certeau (1994), sem dúvida pode assegurar uma
compreensão mais complexa, mais rigorosa, do que significa o PAS para a educação de
jovens e adultos no país.
Cabe ainda informar que o modo de fazer a ação solidária não se restringe ao solo
brasileiro. Desde 2000 a ALFASOL coopera em projetos internacionais, “exportando seu
modelo de atuação que, por ser simples, inovador, de baixo custo e de alto impacto, é
considerado exemplar por especialistas”. Timor-Leste, seguido de Moçambique, São Tomé e
Príncipe, Cabo Verde em 2002, Guatemala em 2003 (em língua espanhola), são exemplos de
países em que a Alfabetização Solidária atua como “incentivadora das políticas de
alfabetização, repassando sua experiência social aos educadores locais, sempre levando em
conta as peculiaridades culturais de cada nação. Para isso, conta com a parceria da ABC -
Agência Brasileira de Cooperação, órgão do Ministério das Relações Exteriores”. (PAS, 2004,
p. 28).
425
Por fim, em 2003, o Centro de Referência em Educação de Jovens e Adultos –
CEREJA, banco de dados eletrônico, foi criado para reunir e preservar a produção científica
na área (www.cereja.org.br ).
1111..22 CCOONNCCEEPPÇÇÃÃOO DDEE EEJJAA EE DDEE AALLFFAABBEETTIIZZAAÇÇÃÃOO NNOO PPAASS
O Programa limita-se à alfabetização, o que por si só já exige refletir sobre a visão
estreita de educação de jovens e adultos que essa idéia encerra.
No documento já referido, “alfabetização ou domínio do código da língua escrita
constitui-se um componente do letramento”148. Essa idéia é desenvolvida pela “necessidade
de domínio da escrita em situações do mundo cotidiano”; da dependência, para a participação
numa sociedade letrada, “fundamentalmente, do acesso aos instrumentos que expressam,
identificam ou registram os conhecimentos acumulados”; do requerimento da “condição
básica, o domínio das formas pelas quais as pessoas comunicam suas aquisições e
conquistas”. Ainda se assinala que “o processo de ensino-aprendizagem da alfabetização de
jovens e adultos fundamenta-se no alfabetizando e no alfabetizador como sujeitos que
constroem conhecimentos na interação com o outro e na comunidade em que vivem”. (PAS,
1999, p. 10).
A proposta ainda defende que “o domínio da escrita como fenômeno social deverá
permitir-lhes a formulação de conceitos e opiniões necessárias à sua atuação crítica como
cidadãos”, o que pode levar a pensar que, sem esse domínio, os conceitos não se formam e,
com isso, sua ação crítica sobre o mundo fica comprometida. Em continuidade, o documento
diz que a proposta pedagógica, “para um período de cinco meses, reúne informações das
diferentes áreas de conhecimento, através das quais serão desenvolvidas as habilidades de
leitura e escrita, e construção do saber lógico-matemático pelos alfabetizandos”, o que requer
um alfabetizador “preparado para planejar essa ação por intermédio de textos contextuais que
envolvam informações advindas da história, da geografia, da política, da ética, da economia,
do convívio social, das ciências, da arte, entre tantas”. (PAS, 1999, p. 11).
Eis, enfim, enunciado o sentido conferido ao Programa, no limite da alfabetização que
incorpora, além do domínio da língua, o saber matemático, debruçado sobre conteúdos do
conjunto dos saberes produzidos pela humanidade.
148 Para letramento, o documento assinala também em nota o seguinte sentido: “relação que indivíduos e comunidades estabelecem com a escrita em suas práticas sociais”. (1999, p. 10).
426
O relatório do TCU (2003, p. 17) faz as seguintes considerações:
Quanto à questão da alfabetização, é necessário ressaltar que o conceito sobre analfabetismo tem sofrido significativas revisões ao longo das últimas décadas, devido às mudanças sociais ocorridas, evoluindo para um conceito mais amplo, traduzido pela expressão analfabetismo funcional. Essa expressão, segundo a UNESCO, caracteriza a pessoa capaz de utilizar a leitura e a escrita para fazer frente às necessidades que surgem em seu contexto social e usar essas habilidades para inserir-se adequadamente em seu meio.
Observa-se, assim, que essa definição já não visa limitar a competência ao seu nível mais simples (ler e escrever enunciados simples referidos à vida diária), mas abrigar graus e tipos diversos de habilidades, de acordo com as necessidades impostas pelos contextos econômicos, políticos ou socioculturais.
Interessante é constatar a emersão, em um relatório de auditoria de um organismo da
natureza do TCU, da compreensão de que os sentidos da alfabetização se ampliam, o que
também é observado, com diversas variações, entre aqueles que fazem o PAS, como
parceiros, na universidade. Medeiros, outra respondente, me afirma que “a EJA se colocou
como um espaço de ação transformadora ao permitir a participação de pessoas outrora
marginalizadas, na medida em que percebeu a alfabetização não apenas como um processo
isolado, mas embasado em um contexto social próprio do alfabetizando, responsável pela sua
não participação ativa na sociedade”.
Retomando a reflexão, novamente Farah Neto reforça a perspectiva da existência de
dois PAS, e explicita o objetivo pelo qual sua universidade trabalhou:
[...] fazer um trabalho de resgate da cidadania junto aos alfabetizadores e aos alunos, bem como de institucionalização da EJA no âmbito da Secretaria de Educação do Município (Carira, Sergipe). A tentativa de desencadear, no município, um processo de valorização e incorporação da EJA à proposta político-pedagógica mais ampla era, seguramente, uma intenção da equipe da PUC-Rio, sem respaldo da gestão do Programa em nível nacional e sem prioridade na agenda do município, cuja política para a educação, bem como para a saúde e outras áreas de peso social se mostrava sofrível. [...] pelo lado oficial, a EJA teria caráter compensatório e posição secundária em relação à política educacional; pelo lado da PUC, teria o caráter de direito de cidadania, no sentido do resgate da mesma, de ação inclusiva, ao mesmo tempo que mobilizadora de transformações na visão da educação como um todo.
Farah Neto segue ainda, acrescentando elementos que demonstram disposição de fazer
bastante diversa das esperadas pelas formulações, e que podem fazer a diferença,
efetivamente, nas práticas do Programa, nos modos de atuação dos alfabetizadores, nas
427
compreensões de mundo que vão sendo produzidas, mesmo quando se tem consciência dos
aspectos restritivos implícitos e concretos:
[...] o trabalho tentava ir além dos cânones da educação popular tradicional, na medida em que não via a EJA descolada de uma política pública para a educação mais ampla e abrangente. Entretanto, esse trabalho trazia, da educação popular, duas marcas: a primeira, intencional, era a abertura para a ótica freireana e, conseqüentemente, para abordagens teórico-metodológicas não-convencionais; a segunda, resultante do tratamento de “segunda classe” dispensado pelo setor público à EJA, era a sujeição a condições materiais e de investimento extremamente limitadas.
Os estudos sobre o Programa realizados por pesquisadores no âmbito das
universidades brasileiras, muitas delas parceiras do PAS e apresentados nas reuniões anuais
da ANPEd desde 1999, indicam uma produção ainda pequena, com aspectos recorrentes, nas
diversas metodologias e amostras utilizadas. Na página CEREJA, no entanto, outros trabalhos
estão referenciados. O que chama atenção, é que, entre estes, não se identifica nenhum dos
que foram levados ao espaço do debate científico na ANPEd, e desde 1999, nenhum dos
trabalhos constantes do acervo do Centro de Referência foram aprovados/apresentados em
qualquer das reuniões anuais dessa Associação.
1111..22..11 FFeerrrraammeennttaass qquuee oorrggaanniizzaamm aass ssiittuuaaççõõeess ddee aapprreennddiizzaaggeemm:: ccoonncceeppççõõeess ddee
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Um dos estudos que se debruça justamente sobre os “conteúdos” e “competências
básicas” (forma como enunciados no documento orientador) que fundamentam o fazer da
alfabetização e o seu grau de domínio, é o de Moura, Queiroz, Cavalcante et al. (2004) no
texto “Conteúdos” e “competências básicas” adquiridos e utilizados por jovens e adultos do
Programa Alfabetização Solidária, apresentado na 27ª Reunião Anual da ANPEd. As
pesquisadoras buscam verificar, pela prática da pesquisa, se alunos do PAS conseguem atingir
os objetivos definidos para o Programa. Sustentando os objetivos da alfabetização e as
perspectivas de letramento, na concepção teórica de Soares (2000), assumida pelo PAS e
“traduzida” pelo quadro abaixo, integrante do documento Princípios Orientadores para a
elaboração da proposta político-pedagógica, formulado pelo Conselho Consultivo das
Universidades (PAS, 1999), as pesquisadoras chegam a conclusões que confirmam muitas das
observações empíricas do Ministro-Relator do TCU.
428
Conteúdo Competências Básicas Língua oral Desenvolvimento da escuta em situações de diálogo Escuta Exposição de idéias de forma clara e coerente Fala Adequação da fala em diversas situações de
interlocução, ampliando o intercâmbio social. Relato Narração de fatos e histórias da realidade local em
seqüência temporal e/ou causal Debate Discussão de textos ouvidos Leitura Apreensão da função do texto Identificação da função de diferentes tipos de textos Reconhecimento dos diversos tipos de textos
Reconhecimento dos diferentes portadores de textos
Compreensão e interpretação do texto Compreensão e interpretação de diferentes textos: informativo, narrativo, poético, jornalístico
Escrita Reconhecimento da função dos textos Reconhecimento da função social da escrita Produção de textos coerentes e coesos Produção de textos de diferentes tipos, de acordo com a
situação de interação Domínio do código escrito Apreensão de convenções da escrita: pontuação,
acentuação e ortografia
Números e operações fundamentais Sistema de numeração decimal Leitura e registro de números conforme sistema de
numeração Operações fundamentais: adição, subtração, multiplicação e divisão
Utilização das operações fundamentais da adição, subtração, multiplicação e divisão, com algoritmos convencionais em diferentes situações-problema
Geometria Figuras planas Sólidos geométricos
Reconhecimento, identificação e representação das figuras planas e sólidos geométricos
Medidas Peso Comprimento Área Tempo Volume Massa Sistema monetário
Reconhecimento e utilização dos diversos sistemas de medidas
429
De posse dessas referências, as pesquisadoras concluem:
[...] analisando os alunos que passaram pelo Programa Alfabetização Solidária, os “conteúdos” e as “competências básicas” que eles adquiriram e utilizam, fica claro que pouco do que o programa propõe é alcançado de forma que os alunos se sustentam muito mais naquilo que aprenderam fora da escola, nas práticas de letramento sociais, do que o que vivenciaram na prática escolar propiciada pelo programa. [...]
A proposta do programa é muito ambiciosa em querer letrar os alunos. Na verdade todos nós somos letrados, o que nos diferencia são os graus de letramento que apresentamos. Logo, mesmo não acreditando na efetividade de ações desenvolvidas por programas, projetos e campanhas, e defendendo políticas governamentais efetivas de escolarização para jovens e adultos, entendemos que seria mais coerente que o programa definisse como objetivo principal elevar o grau de letramento escolar dos seus alunos através do processo de alfabetização, procurando estabelecer uma articulação permanente com as experiências de letramento que os trabalhadores alunos já trazem das práticas que vivenciam. (MOURA, QUEIROZ, CAVALCANTE et al., 2004, p.15).
Ao se recortar o tema letramento, no marco da educação de jovens e adultos, de que
questões se está disposto a tratar, tantas podem ser as possíveis compreensões exigidas?
O marco conceitual que vem me ajudando a compreender os modos de aprender a ler e
a escrever na educação de jovens e adultos tem duas representantes: Leda Tfouni, no Brasil, e
Judith Kalman, no México. Diferentemente do aporte adotado pelo Programa, não é com
Magda Soares que coincido, nos modos como venho formulando minhas compreensões.
Sei que muitos pesquisadores vêm se dedicando ao tema, mas tem sido com estas duas
que meus estudos — e minhas evidências empíricas — mais têm se identificado. Por isso,
elejo-as como referências às pesquisas que venho desenvolvendo até então.
Tfouni (1995, p. 9) inicia sua argumentação refazendo a ligação inevitável entre
escrita, alfabetização e letramento, o que nem sempre tem sido considerado um conjunto pelos
estudiosos, ressaltando que a relação entre eles é de produto e processo. Sistemas de escrita
são um produto cultural, e alfabetização e letramento são processos de aquisição de um
sistema escrito. Por isso, entende que a alfabetização refere-se à “aquisição da escrita
enquanto aprendizagem de habilidades para leitura, escrita e as chamadas práticas de
linguagem”, levada a efeito, de modo geral, por meio do processo de escolarização, ou seja,
da instrução formal, pertencendo ao âmbito do individual. Diferentemente, o letramento
focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição da escrita e, por isso, estuda e descreve “o
que ocorre nas sociedades quando adotam um sistema de escritura de maneira restrita ou
generalizada”, além de buscar:
430
[...] saber quais práticas psicossociais substituem as práticas “letradas” em sociedades ágrafas. Desse modo, o letramento tem por objetivo investigar não somente quem é alfabetizado, mas também quem não é alfabetizado, e, nesse sentido, desliga-se de verificar o individual e centraliza-se no social (TFOUNI, 1995, p. 10).
O que a autora nos diz é que em sociedades grafocêntricas, como a nossa, não se pode
falar em iletrados, porque o processo sócio-histórico que a cultura escrita impôs aos grupos
sociais, como forma de poder, afeta tantos os que sabem ler, como os que não sabem, da
mesma maneira, exigindo dos que não sabem respostas iguais às dos que sabem. O que muda,
em sociedades letradas, segundo Vygotsky (1987) é o fato de que se transformam e se
diferenciam no uso de instrumentos mediadores. Aqui a escrita tem este papel fundamental,
que passa a organizar a vida social e mudar as relações entre os sujeitos e os objetos de
conhecimento. Os valores de uma sociedade letrada são, portanto, novos valores que
perpassam os sujeitos — alfabetizados e não-alfabetizados — e as relações entre eles não são
neutras, mas impregnadas do poder que o domínio dessa cultura carrega. Tfouni (1995, p. 27),
então, afirma que:
A explicação, então, não está em ser, ou não, alfabetizado enquanto indivíduo. Está, sim, em ser, ou não, letrada a sociedade na qual esses indivíduos vivem. Mais que isso: está na sofisticação das comunicações, dos modos de produção, das demandas cognitivas pelas quais passa uma sociedade como um todo quando se torna letrada, e que irão inevitavelmente influenciar aqueles que nela vivem, alfabetizados ou não.
E conclui, afirmando:
[...] nas sociedades industriais modernas, lado a lado com o desenvolvimento científico e tecnológico, decorrente do letramento, existe um desenvolvimento correspondente, ao nível individual, ou de pequenos grupos sociais, desenvolvimento este que independe da alfabetização e escolarização. Existe, no entanto, o lado negativo, o lado da perda: esse desenvolvimento não ocorre à custa de nada. Ele, na verdade, aliena os indivíduos de seu próprio desejo, de sua individualidade, e, muitas vezes, de sua cultura e historicidade. A alienação, portanto, também é um produto do letramento. (TFOUNI, 1995, p. 27).
A autora inverte o conceito usual de que letramento é causa (que tem como suporte a
escolarização), cujas conseqüências são o desenvolvimento econômico, e habilidades
cognitivas, tomando-o como um processo interligado à alfabetização; mas também um
continuum que se separa do processo de escolarização, porque diz respeito a processos
históricos que envolvem as práticas sociais, para além dos textos escritos, e que toma em
conta, inclusive, todos os processos discursivos. Para Tfouni, a noção-eixo do conceito de
letramento enquanto processo sócio-histórico é, portanto, a de autor do próprio discurso,
431
entendido tanto como discurso oral quanto como discurso escrito, em que autor tem a ver com
a noção de sujeito do discurso.
A aproximação que faço de Kalman (2004, p. 75-77) com Tfouni, diz respeito à forma
como a primeira assume a perspectiva sociocultural para “compreender a relação entre a
atividade humana no mundo social e os processos de apropriação das práticas sociais”.
Novamente, a perspectiva da cultura e das relações sociais como processos formadores volta à
cena, e os conceitos de contexto (de uso) e de participação (idéias e significados que a
norteiam), são ferramentas teóricas sugestivas para compreender o acesso à língua escrita, e
alguns aspectos de sua apropriação. Embora Kalman (2004, p. 80) não se refira à idéia de
letramento, ela entende a alfabetização como um processo inicial em que sua apropriação,
intersubjetiva, se faz pelo “conhecimento e o uso das práticas da cultura escrita” que se
constroem “mediante a interação com outros leitores e escritores, na qual a língua oral é chave
para conseguir a aproximação à leitura e à escrita e sua eventual apreensão”. Seguindo esta
idéia, afirma que “os atos de ler e escrever se realizam em eventos socialmente organizados,
nos quais a língua escrita é uma ferramenta necessária para alcançar propósitos
comunicativos”. Observa-se nessas afirmações que o conceito de uso e participação, assim
como de acesso e disponibilidade, estão claramente informando-nos quanto à presença ativa
de sujeitos no mundo da cultura escrita, seja ele oral ou não. O que importa, para a autora, é o
modo como sujeitos podem constituir-se, na intersubjetividade e nas práticas sociais
comunicativas de uso, autores de discursos orais e escritos.
O que essas autoras trazem para minha prática de pesquisadora que intervém em
processos formativos não-escolares, mas formalizados com jovens e adultos, é que, a despeito
da assunção conceitual, para mim a alfabetização e sua continuidade traduzem um claro
processo de formação de leitores e escritores, que se deve desenvolver em busca da autoria,
cada vez mais intensa, da autonomia, da criticidade e da criatividade, sem o que toda
intervenção é insuficiente para se pensar um sujeito cidadão, que interfira nos contextos em
que vive e no mundo em geral.
Com esse marco de compreensão, interajo com as enunciações do PAS e percebo
inequívocas divergências entre o que se propõe como resposta a jovens e adultos não-
alfabetizados — tanto do ponto de vista do horizonte dos objetivos, dos “conteúdos” e das
“competências básicas”, quanto do que está subjacente como concepção de currículo, assim
como quanto ao tempo, estrutura, procedimentos que suportam o fazer do PAS — e o que se
espera como direito para um programa de escolarização cuja oferta não pode negar, nem na
432
formulação, nem nos modos como estrutura sua execução, os saberes dos sujeitos e suas
práticas orais e escritas com as quais interferem, agem, mantêm/transformam a vida cotidiana.
Apreendendo as respostas dos três questionários devolvidos, devo assinalar que duas
pessoas trabalharam na mesma universidade, no entanto com concepções muito divergentes
sobre o Programa e com práticas também diversas. No que era possível ser autônoma, a
respondente Abrantes, buscava imprimir, nos momentos de sua participação, concepções e
objetivos diferentes dos estabelecidos, o que infelizmente nem sempre tinha continuidade,
pelos desafios que o acompanhamento fez, o tempo todo, às equipes. Pergunto-me se esta, no
entanto, a despeito de ser a tática149 da profissional para aproximar-se dos objetivos que
buscava desenvolver no Programa, não acabava por criar inseguranças nos alfabetizadores,
que lidavam com disputas teóricas distanciadas das questões práticas que os acometiam na
prática pedagógica e para as quais, muitas vezes, não deviam encontrar respostas, nem com
uma, nem com outra.
Abrantes, reafirmando a crítica ao voluntarismo e ao tempo, considerado insuficiente
para o alfabetizando dominar o sistema convencional de escrita, explicita a compreensão de
letramento com a qual trabalhava: os usos sociais da leitura e da escrita. Para isso, fazia o
“levantamento dos textos escritos que circulavam nos referidos espaços cotidianos da vida dos
alunos, o que normalmente marcava, de forma singular, as respectivas experiências”. No meio
deles, “cartazes de divulgação de programas governamentais, por exemplo, eram uma
referência importante para os modos de aprender a ler e a escrever”, nas cidades no interior do
Piauí. Nas “experiências no Rio de Janeiro (Projeto Grandes Centros Urbanos), eram os
materiais de uma organização não-governamental da localidade, textos que abordavam
questões de gênero, que imprimiam marcas singulares nessa ação alfabetizadora”.
Explicita, ainda, a mesma respondente:
[...] metodologia de alfabetização que contemplava o uso do texto escrito, desde a sua leitura e discussão coletiva, passando pela análise das regras do sistema escrito (separação entre palavras, pontuação, semelhanças e diferenças entre palavras, letras, sílabas), decodificação de palavras para estudo de letras/sílabas, até a formação de novas palavras. Uma outra referência era a história de vida, individual e coletiva, dos alunos como fio
149 Tática, como Certeau (1994, p. 100-101) explicita é a “ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. [...] a tática é movimento ‘dentro do campo de visão do inimigo’ como dizia von Büllow, e no espaço por ele controlado. [...] Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as ‘ocasiões’ e delas depende, [...] O que ela ganha não se conserva. [...] Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia. Em suma, a tática é a arte do fraco.
433
condutor das práticas alfabetizadoras. Tendo a concepção de como o conhecimento é produzido: em rede, os processos de formação estimulavam a reflexão sobre a prática alfabetizadora – os caminhos que os alfabetizadores criavam na sua prática, as dificuldades de aprendizagem dos alunos, a lógica de pensamento de cada um — possibilitando que fossem puxados os fios de saberes dos alfabetizadores, no intuito de entrecruzá-los com outros saberes criados por outros alfabetizadores, pesquisadores, professores, alunos, poetas, chargistas, escritores, expressos por diferentes linguagens (fotográfica, televisiva, jornalística, de vídeo, literária).
Como se observa, apesar de a compreensão mais ampla indicar um compromisso com
o entendimento da alfabetização para além da descodificação, no tocante à organização do
sistema escrito, o que se observa é um recair nas práticas escolares convencionais que durante
todos esses muitos anos ensinaram, e ainda ensinam a todos nós, que é preciso chegar à sílaba,
reconstruir novas palavras, em um processo que só faz sentido para quem sabe ler e escrever,
pois que a leitura escandida não existe, com significado, para quem não sabe ler, pela
ausência de sentido do que são esses fragmentos chamados sílabas. Mas faz sentido o texto, o
todo, o bloco de sentido.
Assinalando ainda a ausência de materiais escritos diversos, além da falta de outros
recursos tecnológicos: vídeo, computador, quadro-negro, cadeiras e mesas em bom estado,
demarca que há, no entanto, outras vantagens como, por exemplo, a ausência das “grades
curriculares” dos espaços escolares que tanto têm dificultado a criação de currículos mais
próximos ao legado da educação popular. Observa-se, nessas considerações, a autonomia da
profissional em relação ao projeto, desprezando mesmo, por assim dizer, a formulação que,
como vista anteriormente, trabalha com um conjunto de conteúdos e competências básicas
distintamente organizado. Estes fazeres diversificados, somados a tantos outros não
apreendidos no espaço dessa investigação é que, sem dúvida, fazem “o outro PAS” a que se
refere o respondente Farah Neto. E estes fazeres, como táticas, entram nas brechas por onde
são capazes de surpreender o próprio do poder, que estrategicamente se organiza para o
controle, a garantia da uniformidade que, supostamente, impede a diversidade.
A visão de processo de alfabetização que acontece em cinco meses de ação pedagógica
tem sido rejeitada, com intensidade, pelo conjunto dos educadores, não apenas pela
exigüidade do tempo para uma tarefa tão complexa, como pelo fato de que essa é a etapa
inicial de um processo muito mais amplo, de formação de leitores.
Tanto assim que, nos últimos tempos, quando a perspectiva de EJA volta à cena como
prioridade de um governo, depois de oito anos relegada à condição de ação solidária, de
responsabilidade da sociedade, educadores e educadoras populares associados à Rede de
434
Apoio à Ação Alfabetizadora do Brasil (RAAAB), participantes dos Fóruns Estaduais de
Educação de Jovens e Adultos e membros da coordenação nacional dos Movimentos de
Alfabetização (MOVAs), reunidos em São Paulo nos dias 12 e 13 de novembro de 2002,
manifestaram ao governo eleito seu integral apoio e, conscientes de seu papel, teceram várias
considerações, das quais destaco algumas, atinentes à posição assumida em relação ao direito
de todos à educação, ao entendimento de alfabetização e ao que caberia ao governo fazer,
frente aos desafios de consolidar esse direito, em um documento intitulado Manifesto ao
Presidente Eleito Luís Inácio Lula da Silva.
[...] É fundamental garantir o cumprimento do preceito constitucional do direito de todos à educação até hoje não efetivado; para tanto, enfatizamos a necessidade de inclusão da Educação de Jovens e Adultos nos mecanismos de financiamento da educação básica.
É fundamental que o Governo Federal reafirme os compromissos relativos à alfabetização e à educação de pessoas adultas firmados nas Conferências Internacionais de Jomtien (1990), Hamburgo (1997) e Dakar (2000), orientando-se pelas diretrizes do Parecer 11/2000 e pelas lutas populares em defesa da educação pública para todos.
É importante reafirmar a concepção consagrada na V Conferência Internacional de Hamburgo (1997), que compreende a formação de jovens e adultos como processo de educação ao longo da vida, na busca da autonomia e do senso de responsabilidade das pessoas e das comunidades, fortalecendo a capacidade de lidar com as transformações que ocorrem na economia, no trabalho, na cultura e nas relações sociais, considerando as diferenças geracionais, de gênero, etnia, entre campo e cidade, de portadores de necessidades especiais e de outros grupos.
Nessa perspectiva, a alfabetização é concebida como apreensão de conhecimentos básicos de leitura e de escrita da palavra e do mundo, parte de um direito mais amplo que não se restringe à alfabetização, mas deve atingir a terminalidade do ensino fundamental —, como requisito básico para a educação continuada durante a vida e para a formação de cidadãos leitores e escritores críticos e éticos, capazes de expressar suas culturas e experiências, e de intervir na realidade social (Declaração de Hamburgo, 1997).
O Governo Federal, por meio do Ministério da Educação, deve ser o articulador de uma política pública que incorpore a Educação de Jovens e Adultos definitivamente ao Sistema Nacional de Educação, para o que deve contar com uma estrutura administrativa capaz de responder a esse enorme desafio. [...]
Uma das críticas mais contundentes que tem sido exercitada em relação ao modus
operandi do PAS diz respeito ao fato de este ter tido nas mãos, sem custos diretos,
praticamente, tantas universidades atuando, sem que isso definisse uma supremacia de
propostas, pela convergência de tantos professores pesquisadores envolvidos. A lógica
fechada do Programa dialogou fugidiamente com as produções advindas das práticas
435
efetivadas, deixando de capitalizar, das avaliações sobre as ações executadas, os possíveis
avanços e as alternativas construídas nesses fazeres, incorporando as mudanças ao
desenho/formato do modelo originalmente proposto. Porque também não investiu na
pesquisa, perdeu a oportunidade de ser insuperável na produção de conhecimentos advinda
dessas práticas, tanto em quantidade como em qualidade, sobre a área da alfabetização.
Apesar das reiteradas críticas sempre renovadas, módulo a módulo, mesmo quando o
Programa organizou a versão para atendimento às populações em grandes centros urbanos, ao
lado das ações nos municípios mais empobrecidos e com índices alarmantes de analfabetismo,
não se curvou à evidência da realidade, para formular uma proposta mais adequada no tempo,
nos modos de atendimento, na escolha dos alfabetizadores, tomando em conta as críticas que
já se acumulavam no Programa.
Muito embora o Programa esteja restrito à concepção e execução restrita da
alfabetização, preocupa-se em apontar uma defesa forte da necessidade de garantir a
continuidade, o que faz com veemência, como modo de fazer com que a concepção de
alfabetização enunciada — vinculada à idéia de inserir o sujeito em novas práticas leitoras,
circulantes em uma sociedade de cultura escrita — se consolide, garantindo condições reais
para que os alfabetizados ajam no mundo. Entrementes, não indica qualquer ação efetiva que
possibilite essa continuidade, tanto porque se trata da oferta de um programa, e não de uma
ação sistêmica, como porque afirma, no mesmo documento Princípios Orientadores para a
elaboração da proposta político-pedagógica (PAS, 1999), a ausência de qualquer ação
política nesse sentido, embora reconheça — e recomende — a necessidade de garanti-la.
A responsabilidade pela abertura de salas de aula de EJA é dos municípios atendidos, mas a Alfabetização Solidária dá total apoio para esse tipo de iniciativa, promovendo as seguintes ações:
▪ mantém os municípios informados sobre as ações do MEC; ▪ mobiliza toda a comunidade para a abertura dessas salas de aula; ▪ promove encontros com representantes dos municípios, para estimulá-
los a criar salas de aula; ▪ acompanha os resultados do Censo Escolar para monitorar a ampliação
de vagas de todos os municípios parceiros. (www.alfabetizacaosolidaria.org.br. Acesso em 17 julho 2005).
A pesquisa já aludida, Avaliação Diagnóstica da EJA Programas Brasil Alfabetizado
e Fazendo Escola, concluída em março de 2005, revela dados interessantes sobre a atuação do
PAS, por exemplo, quanto à formação de alfabetizadores, de que tratarei adiante, mas não
evidencia a importância desse apoio às iniciativas de continuidade. Pelo contrário, o que se
observou foi a circulação de alunos matriculados em outros projetos em parceria com o Brasil
436
Alfabetizado, que passaram por vários programas, incluindo o PAS, antes de chegarem ao
projeto onde atualmente estudavam.
Observa-se certa tendência em municípios do interior: grande parte dos alunos integra a mesma família e, embora muitos sejam analfabetos, já passaram pela escola (há vários relatos de remanescentes do MOBRAL e da Alfabetização Solidária). (MEC/UNESCO, 2005, p. 123).
A maioria dos alunos já passou por algum outro programa de alfabetização, os mais citados foram o MOBRAL e a ALFASOL. Fica evidente que cada vez se reduz mais quem nunca passou pela escola. (MEC/UNESCO, 2005, p. 124).
A reiteração das mesmas pessoas nas classes de alfabetização possibilita, ainda, o levantamento de três hipóteses: a) os programas não estão sendo efetivos em sua tarefa alfabetizadora; b) não há oferta de continuidade para os jovens e adultos recém-alfabetizados, que, para não perderem o contato com a leitura e a escrita, mantêm-se nessas classes; c) os alunos atribuem às classes de alfabetização um sentido muito mais socializador do que educativo, na medida em que essa é a única oferta pública de atividades comunitárias/coletivas. (MEC/UNESCO, 2005, p. 125).
1111..22..22 CCoonncceeppççõõeess ddee ffoorrmmaaççããoo ccoonnttiinnuuaaddaa ssuubbjjaazzeemm ààss ccoonncceeppççõõeess ddee EEJJAA
Do ponto de vista dos alfabetizadores, a experiência histórica mostra a necessidade de
se ter, contrariamente ao que mais uma vez se propõe, não voluntários para a alfabetização,
apenas engajados no compromisso com a tarefa, mas profissionais experientes, cujo processo
de formação não comece — e quase termine — em uma “capacitação” de um mês de duração.
A concepção que se tem da formação implica processo, que parte das histórias de vida das
professoras e das suas práticas, para, fazendo-as emergirem, (re)conhecê-las e compreendê-las
de modo a (re)pensar essas práticas continuadamente. O modelo do sujeito “mobilizado”,
somado à ação solidária, e a traços de voluntariado, por se saber barateado o custo do
alfabetizador, também sem vínculo empregatício, nem direitos trabalhistas vem apontando
graves problemas e distorções no entendimento da função social relevante que um
profissional deveria assumir. No documento original do Programa, Princípios Orientadores
para a elaboração da proposta político-pedagógica (PAS, 1999), usou-se, inclusive, o
argumento de mobilização da juventude para defender a presença dos que conseguiram
estudar um pouco mais e que, agora, deveriam “doar-se” à causa da alfabetização, encobrindo
as autênticas motivações para esta opção de quem deve ocupar o lugar do professor: o
descompromisso com os educadores formados e com a educação de jovens e adultos, para
quem as ações quase nunca são garantidas como direito e com qualidade.
437
Nesse caso, a recomendação original de que os alfabetizadores fossem renovados a
cada “módulo”, porque o Programa trazia a lógica do “emprego temporário”, denotava uma
perda não só de recursos, mas de capital cultural, pois se dispensava o alfabetizador,
provavelmente quando ele começava a ter indagações sobre a prática, passíveis de serem
problematizadas, e de fazê-lo avançar. Não se estabelece, assim, processo de formação
continuada, mas um eterno recomeçar, o que fragiliza o alfabetizador, que não consegue
consolidar um saber, e os processos pedagógicos nos módulos seguintes, que não podem
contar com a sua participação, agora mais experiente. Comprometem-se os resultados, ainda,
responsabilizando os alfabetizadores voluntários, uma vez mais, pelo sucesso ou insucesso da
ação.
Sobre esse aspecto, recorro novamente à pesquisa Avaliação Diagnóstica da EJA
Programas Brasil Alfabetizado e Fazendo Escola, em observações no mínimo curiosas,
denotando a inteligência prática dos alfabetizadores, submetidos a essas condições de
temporalidade no PAS. Nos diversos estados e municípios visitados, pode-se perceber a
presença do PAS, ao lado de muitas outras instituições, tanto de âmbito local, quanto
nacional. E dos muitos alfabetizadores entrevistados em todas elas, um aspecto foi destacado:
a passagem desses alfabetizadores “formados” pelo PAS em muitos outros
programas/instituições, que aproveitavam o conhecimento e a formação, além da vivência
prática, desses alfabetizadores descartáveis, segundo as orientações do Programa.
Inventavam eles, assim, táticas de sobrevivência no cotidiano duro de suas vidas, pela
escassez de trabalho.
Também o relatório do TCU (2003, p. 17-18) tratou da questão, para a qual dispensou
um tratamento cuidadoso de escuta junto aos coordenadores das instituições de ensino
superior e municipais (locais):
Para cada novo módulo é realizada a capacitação dos alfabetizadores, segundo as diretrizes do Programa, tendo em vista que esses alfabetizadores não podem ser aproveitados no módulo seguinte. O maior aproveitamento da capacidade dos alfabetizadores, por sua vez, favoreceria a qualidade do ensino, atenderia ao princípio da economicidade e da eficiência, aumentaria a efetividade do processo de aprendizagem dos alunos e diminuiria o número de capacitações.
Assim, há uma alta rotatividade dos alfabetizadores, cujas evidências apontam para a perda de qualidade do ensino oferecido. Nesse sentido, de acordo com as respostas obtidas nos questionários, tem-se o seguinte: 41,15% dos coordenadores das Instituições de Ensino Superior – IES afirmaram que o não aproveitamento dos alfabetizadores no módulo seguinte prejudica o desempenho do Programa, 16,06% acham que não influencia e
438
8,76% acham que contribui para o desempenho do programa. Já em relação aos coordenadores locais (municipais), 48,97% acham que a rotatividade prejudica o desempenho do PAS, 17,01% pensam que não influencia e 5,15% consideram que o não aproveitamento no módulo seguinte contribui para o desempenho do programa.
Muitos outros problemas são evidenciados em relação à participação dos
alfabetizadores, um dos mais sérios referente aos atrasos de pagamento nas bolsas a que
fazem jus. A mesma pesquisa citada, MEC/UNESCO (2005, p. 137-138), também evidenciou
esses problemas, mostrando como é intrincada a rede que os recursos percorrem até chegarem
às mãos dos alfabetizadores. Esta questão é apontada por Abrantes, como causa de sua
participação no Programa: “Desde 2002, não trabalho mais no PAS (municípios no Piauí),
pelo mesmo motivo que deixei de atuar no Projeto Grandes Centros: constantes atrasos no
pagamento das bolsas das alfabetizadoras”.
Sobre as metodologias de formação, Farah Neto afirma ter existido, durante o tempo
de sua experiência no Programa, a “construção de uma prática baseada no exercício da
reflexão, da crítica, da relação entre o conhecimento local e o universal. Paulo Freire, sem
dúvida, foi o autor mais significativo para essa experiência”, reforçando a idéia de que cada
PAS é um, dependendo, mais do que da instituição que o desenvolve, dos profissionais que o
fazem, com as próprias concepções, visões de mundo, de formação. E o respondente ainda
continua: “uma proposta própria de formação e de utilização do material disponível, [...]
desenvolver no alfabetizador um processo de apropriação (“vôo próprio”), de autonomia em
relação ao curso. O investimento em formação inicial e em serviço foi bastante acentuado,
além da supervisão e do planejamento”.
No mesmo sentido da metodologia de formação, Abrantes reconhece que a questão da
escrita — central no processo de formação — constitui:
[...] o desafio nos nossos momentos formadores, até porque a escrita não é a linguagem mais utilizada pelos alunos, incluindo os alfabetizadores. Situação que sempre nos instigou a pensar alternativas metodológicas de formação, não tendo o texto escrito como única referência de leitura, mas que pudesse incluir outros que ajudassem a compreender os atos da leitura e da escrita.
Medeiros afirma ter trabalhado “a formação do educador como um campo de múltiplas
escolhas, compreendendo as complexidades do ato educativo a fim de propor a emancipação
dos grupos populares envolvidos. [...] tal proposta pressupõe o conhecimento da realidade
histórico-social onde vivem o alfabetizador e alfabetizados”. Para isso, estabeleceu:
439
[...] temas a serem trabalhados e objetivos como alternativas que privilegiassem as necessidades dos educadores, levando em consideração suas experiências, expectativas e anseios tanto no que diz respeito ao seu trabalho quanto no que diz respeito aos seus alunos.
Sobre os riscos permanentes de ingerência política na seleção de alfabetizadores —
atribuição que cabia às instituições de ensino superior, Farah Neto confirma que havia
tentativas de indicação de alguns alfabetizadores, exclusão de outros etc. Mas que sua
instituição, durante todo o tempo em que esteve ligado ao Programa, se contrapôs a essas
tentativas, algumas vezes de forma bastante enérgica e decisiva. E acrescenta a informação de
que nenhuma mudança de concepção e gestão no PAS ocorreu durante o período em que
atuou, a não ser o fato de passar a exigir que os alfabetizadores selecionados fossem
professores vinculados à rede municipal de ensino. Diz, também, que as condições materiais e
de recursos educativos do Programa eram péssimas, o que não difere dos dados levantados,
no geral dos projetos em parceria com o Brasil Alfabetizado, pela pesquisa MEC/UNESCO
(2005).
1111..33 AALLGGUUMMAASS IINNDDIICCAAÇÇÕÕEESS PPAARRAA RREEPPEENNSSAARR AA AAÇÇÃÃOO DDOO PPAASS NNAA EESSFFEERRAA PPÚÚBBLLIICCAA
Pensar o PAS na perspectiva pela qual se constituiu, ou seja, como alternativa para
consolidar a oferta da esfera pública exige refletir sobre algumas questões centrais que sempre
envolveram o Programa.
Uma delas, cuja importância é fundamental nesse contexto, traduz a pouquíssima
visibilidade para os resultados da ação alfabetizadora, razão pela qual o Programa existe. O
país viveu, como a história da EJA demonstra inequivocamente, renovados processos de
aposta em soluções episódicas, de programas emergenciais ou de campanhas, sem nunca ter
conseguido consolidar o direito de ler e escrever para todos os brasileiros, mas reiteradamente
oferecendo a esperança de deixar de ser analfabeto para tantos que continuam, por isso
mesmo, acreditando que, agora sim, terão sucesso. De ilusão em ilusão, trapaceia-se com um
contingente imenso da população, que se recusa a não acreditar no poder público, ou nas
formas pelas quais ele se expressa, recomendados/em nome de, e mais uma, duas, muitas
vezes, a população volta, com a verde esperança colorindo de entusiasmo o reinício de nova
etapa. Quantos, então, pode-se dizer que passaram pelos programas, quantas vezes, por quanto
tempo, e quantos aprenderam? Os dados que não mudam, estacionados em 16 milhões a partir
do Censo IBGE 2000, não conseguem captar os movimentos que os programas e os projetos,
muitos e múltiplos vêm fazendo pelo território brasileiro, distribuindo esperança, nem
440
conseguem assumir o limite do que são/foram capazes de realizar, com isenção, autocrítica,
transparência.
A constituição da esfera pública, estabelecendo os princípios da democracia como
base, trata com pouco rigor essas ausências, assumindo como naturais as lacunas que
esburacam os programas e os dados, como um queijo suíço.
O PAS, ao trabalhar exclusivamente com dados de atendimento, e não com aluno
alfabetizado, deixando para seu uso interno esses resultados, põe-se à margem da possível
contribuição que poderia fazer para consolidar essa esfera pública, exigente de transparência,
de visibilidade, de rigor. Recorrendo ao relatório do TCU (2003, p. 15), verifico que essa,
dentre outras ausências sentidas, contribui para fragilizar o Programa, e comprometer a
qualidade do ensino, e que um relatório interno, ao que o TCU teve acesso, reflete a realidade
expressa no gráfico abaixo, muito aquém dos resultados desejáveis:
Gráfico 1
Fonte: Sumário Executivo, TCU, 2003.
O relatório ainda aponta que a desarticulação do Programa nos municípios, um dado
verificado e corroborado pela Avaliação Diagnóstica (2005, p. 134), extrapola essa
instituição, para reaparecer como problema nas muitas outras que, diversamente do esperado,
nem colaboram para a construção de uma política pública, nem para a mudança do quadro de
atendimento, porque competem entre si, disputam alunos, não dialogam com o poder público,
planejando a orquestração das próprias ações, ou as formas de dar a elas conseqüência,
seguimento, continuidade.
441
Observa-se que a relação entre os parceiros no nível local não existe, atuando cada qual como se fosse único, no território. A tarefa política que cabe às secretarias de educação, de coordenar as ações de atendimento que cumprem o dever do Estado com a educação, é absolutamente esgarçada, não pertence a ninguém, e cada um trata de justificar seu esforço de atendimento, sem qualquer responsabilização com a continuidade e/ou encaminhamento futuro dos alfabetizandos.
Não se trata, pois, de escolarizar à força, mas, talvez, assumir a Declaração de
Hamburgo (1997) com veemência e instaurar novos e inusitados processos de aprender por
toda a vida.
O gráfico a seguir, produzido pelo TCU (2003), demonstra, pelo relato de
cooordenadores, como são tênues os laços que envolvem os alfabetizandos a processos de
continuidade, e frágeis os resultados dos que se alfabetizam:
Gráfico 2
Fonte: Sumário Executivo, TCU, 2003.
Outra constatação da auditoria diz respeito ao tempo de duração do módulo de
alfabetização, essa uma quase certeza para os educadores, pelo fato de não se mostrar
suficiente, nos muitos exemplos que a história tem oferecido, para atender às necessidades de
aprendizagem dos alunos. A evidência surge pela quantidade de alunos que repetem o
módulo, ocultados até recentemente pela falta de cadastro e coleta de dados, do mesmo modo
como são encontrados em muitos outros programas, por anos a fio, como a pesquisa
MEC/UNESCO (2005) também demonstra. Mas também há excedente de oferta em muitos
lugares, sem que se faça, rigorosamente, um exame do significado desses excedentes:
442
Há municípios pequenos com grande oferta de turmas de alfabetização, o que exige avaliar se a demanda por alfabetização continua, de fato, existindo, ou se os alunos estão se rematriculando em outros projetos, formando um círculo de dependência – já que os professores dependem dos alunos para a geração de renda e os alunos dependem dos professores, pois não tendo sucesso nos curtos processos de alfabetização, ou não conseguindo continuar os estudos no ensino fundamental, têm em novas turmas de alfabetização a única chance de continuidade. Isto indica, de modo geral, a necessidade de avaliar, como política pública, a demanda potencial x ofertas de atendimento já disponibilizadas nas áreas municipais, para verificar se a continuidade de oferta de projetos não se torna dispensável em algumas, e continua a ser insuficiente em outras. Esta idéia se reforça pela indicação feita em uma localidade em que se entrevistou pessoal do Programa por falta de demanda. Algumas localidades estão repletas de ofertas em alfabetização. (MEC/UNESCO, 2005, p. 131-132).
Um dos problemas mais graves, detectados em campo, diz respeito ao excesso de instituições conveniadas com o Brasil Alfabetizado no mesmo município. Existe uma disputa sutil pelos alunos, com oferta de benefícios como merenda, material didático, cesta básica. As instituições funcionam desarticuladamente, transitando pelo município ou até mesmo pelos municípios vizinhos, sem nenhum tipo de controle. (MEC/UNESCO, 2005, p. 135).
Essa situação, que faz com que até alunos do antigo MOBRAL estejam nessas classes,
persistindo em busca do aprender a ler e a escrever, se associa, para sua compreensão, a novas
questões que andam de braços dados com a educação, mas que não costumam ter tratamento
intersetorial para consolidar políticas públicas efetivas, de direito. Abrantes alerta para o fato,
da seguinte forma:
[...] a experiência de alfabetização de jovens e adultos, como toda a educação básica, preocupada com os usos da leitura e da escrita, pouco pode fazer se o contexto social não favorece essas práticas [...] a pobreza, a miséria, o desemprego, a melhor distribuição de renda no país precisa fazer parte da EJA, para que não seja criada a ilusão de que basta aos nossos alunos o domínio de certos conteúdos, incluindo a escrita, para que sejam cidadãos de direitos. [...] formação mais politizada dos grupos marginalizados, na perspectiva de que tenham maior participação nas definições de políticas que afetam o dia-a-dia de suas vidas, exige uma reflexão maior sobre os princípios político-pedagógicos da EJA.
Por último, cabe compreender, para poder interferir, nos modos ainda convencionais
como vêm sendo feitas as formações de educadores: para eles, e não com eles, os que
verdadeiramente fazem a EJA, os que transitam, com todas as dificuldades que cercam a
educação, em modos por fora do sistema, chamados não-formais. Condenar os alfabetizadores
apenas, pelo insucesso das iniciativas, não se apresenta como um caminho adequado, para
tratar quem aceitou, desde sempre, o desafio que o poder público não tem conseguido realizar.
Com eles, cabe refletir sobre “como a formação inicial e continuada precisa ser um direito dos
443
educadores da EJA, exigindo a discussão de alternativas metodológicas, para além dos
cânones acadêmicos” (Abrantes), porque essa formação precisa ser realizada em conjunto,
com o alfabetizador e com todos os que fazem a EJA, pondo-se à mesa, como quem recebe
visitas, o que de melhor eles podem oferecer: suas vivências, suas experiências, suas práticas:
pedagógicas, e de vida mesmo.
444
1122.. TTRRAAMMAANNDDOO CCOONNCCEEPPÇÇÕÕEESS EE SSEENNTTIIDDOOSS PPAARRAA RREEDDIIZZEERR OO DDIIRREEIITTOO ÀÀ
EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE JJOOVVEENNSS EE AADDUULLTTOOSS
[...] Escrever, numa hora daquelas? O que ele explicado mandou, eu fui e principiei; que obedecer é mais fácil do que entender. Era? [...] “Ah, o que eu não entendo, isso é que é capaz de me matar...” (GUIMARÃES ROSA, 1986, p. 287).
Riobaldo1 me anima no esforço de compreender as concepções da educação de jovens
e adultos que se explicitam nos projetos selecionados para representarem o atual momento em
que a EJA se realiza na sociedade brasileira, quando pude transitar por seis propostas,
buscando seus sentidos, nexos, possibilidades, relações, visando a expressar a complexidade
dessas concepções.
O conhecimento produzido por meio da abordagem que busquei desenvolver —
transdisciplinar — ao gerar compreensão (NICOLESCU, 2003, p. 44, 46), o fez pela
apreensão dos diversos níveis de realidade nos quais operam os projetos e seus atores,
tentando, também, capturar a surpresa — esta talvez representada pelos depoimentos
reveladores do estar no mundo de tantos educadores com quem pude conviver, causando-me
novos e surpreendentes encantamentos com o movimento, com a dinâmica da ação dos
sujeitos nos níveis de realidade, entrelaçando e apreendendo os objetos e as múltiplas relações
que estabelecem em uma larga rede de sentidos, que possibilitam ao conhecimento
permanecer aberto para sempre.
Os projetos selecionados expuseram a abrangência nacional, considerada critério
inicial, possibilitando-me aventurar-me em busca da compreensão das concepções de EJA,
historicamente situadas, temporal e espacialmente, multidimensionais, organizadas segundo
fatores não-duradouros, mas sensíveis aos movimentos dos sujeitos nas suas ações de fazer e
desfazer, pensar e transformar o mundo. Seguindo essa perspectiva, discuti os muitos sentidos
que se deram a ver, na trama com que operam em nível macro — com as instâncias de poder e
as políticas —, em tensão com as estruturas do cotidiano e a mudança, sem o que é impossível
apreendê-las.
Embora o atual momento ofereça um rico campo de compreensão, com marcas muito
peculiares reveladoras das produções de uma sociedade em movimento de democratização,
ganhando experiência e experimentando práticas diversas das reconhecidamente autoritárias
1 Personagem de Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas.
445
que forjaram outros momentos da história do país e da educação, muitas pistas ainda poderão
ser melhor compreendidas, na interlocução que, necessariamente, este trabalho produzirá.
Duas grandes questões orientaram a pesquisa, e as retomo, nesse momento, com vistas
a que sejam os guiões dessas reflexões finais:
a) que concepções de alfabetização e de escolarização fundamentam, então, as
propostas curriculares na EJA e como contribuem para atualizar as concepções
próprias do campo da educação de jovens e adultos?
b) com que perspectivas teórico-metodológicas os saberes da prática social passam a
constituir as redes de conhecimento em projetos de educação que visam ao direito
de todos à educação, e que implicação têm no repensar os sentidos
contemporâneos da educação de jovens e adultos.
1122..11 PPEERRSSPPEECCTTIIVVAASS IINNTTEERRNNAACCIIOONNAAIISS DDOO DDIIRREEIITTOO
A perspectiva do direito — marco conceitual do porquê educar jovens e adultos —
tem fortes enunciações ao longo de toda a história pela qual transitei, embora nem sempre
tenha sido assumido da mesma maneira, nem para todos. Da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, de 1948, passa-se à II Conferência de Educação de Adultos no Canadá, em
1960, em que a perspectiva do direito se explicita pelo reconhecimento do papel dos jovens
no esforço da alfabetização. Em 1972, na III Conferência em Tóquio, alguns temas são
recorrentes, e já se faz a associação, pela primeira vez, da educação às necessidades humanas,
mais tarde traduzidas por necessidades básicas de aprendizagem, recortando a abrangência
que neste momento aparecia. A diferenciação dos segmentos excluídos de direitos se faz
apontando a precária realidade dos jovens seja em relação à escola, seja em relação ao
trabalho; a situação de populações rurais desassistidas de escolas; a condição de trabalhadores
migrantes, de idosos e desempregados em geral. Em todas elas a condição das mulheres se
destaca como objeto de atenção, pela desigualdade que as acomete mais fortemente no
interior de cada categoria.
Na alfabetização é creditada a responsabilidade para o desenvolvimento, e
fundamento da educação de adultos. Meio, e não fim em si mesmo. A educação deve ser
funcional, atravessando a sociedade, o trabalho, o lazer, as atividades cívicas e, para isso, os
governos deveriam tratar a educação de adultos em pé de igualdade à educação escolar, com
sensível aumento de investimentos.
446
Nairóbi em 1976 aprofunda a idéia do direito de toda pessoa à educação e a uma livre
participação na vida cultural, artística e científica, considerando inseparáveis educação e
democracia, e educação e abolição de privilégios, esta última idéia sob a responsabilidade da
educação permanente, por assumir ser a educação de adultos parte integrante da educação
permanente. Como tal, a educação permanente é constitutiva do direito à educação, e meio
facilitador do exercício do direito à participação na vida política, cultural, artística e científica.
Mais uma vez a preocupação com os jovens aparece, recomendando-se sua inclusão na
educação permanente até que, integrando o mundo adulto, possam ser beneficiados pela
educação de adultos.
O conceito de educação permanente se expressa como forma de um projeto global
com vista a reestruturar o sistema educativo existente, assim como para desenvolver todas as
possibilidades de formação fora do sistema educativo, abarcando todas as dimensões da vida e
áreas do saber, de modo orgânico, com todos os processos educativos que crianças, jovens e
adultos seguem ao longo da vida.
Por educação de adultos entende a totalidade dos processos organizados de educação,
seja qual for o conteúdo, o nível ou o método, formais ou não-formais, que prolonguem ou
recoloquem a educação inicial oferecida nas escolas e universidades, e sob a forma de
aprendizagem profissional, vinculada precipuamente à idéia de desenvolvimento, cara para a
década de 1970. A capacidade de aprender a aprender se enuncia nos termos da
Recomendação de Nairóbi.
Paris, em 1985, sedia a IV Conferência, e movimenta-se para definir um termo novo,
traduzindo uma ciência equivalente à pedagogia — a andragogia —, com conhecimento
adequado sobre as formas de ensinar e educar adultos. Mantém estreita vinculação da
educação permanente ao desenvolvimento econômico, social, científico e tecnológico do
mundo contemporâneo, associando população educada e desenvolvimento econômico.
Declara o direito de aprender como desafio capital da humanidade, reconhecendo-o como
direito humano fundamental, e destacando que, por esse caráter, não se destina a apenas uma
parte da humanidade, com o que critica as formas como os países vêm tratando os
desfavorecidos em todas as partes do mundo.
A chegada à V CONFINTEA, em 1997, exige compreender o processo de mudanças
instalado na América Latina, conhecido como globalização, referida por Chesnais (1996, p.
14) como mundialização do capital, perda de soberania dos países, em troca da pujança do
poder do capital internacional, transnacional e virtual. A contribuição da América Latina
447
marcou lugar, principalmente, pelo anúncio da presença juvenil na EJA, cada vez mais intensa
e denunciadora do fracasso dos sistemas públicos e dos acordos em relação à educação básica,
ditados pelas agências internacionais de financiamento.
Apesar dessa constatação, no Brasil desse tempo, embora o direito à educação de
jovens e adultos não seja assumido como política pública, de fato é o Estado ainda o potente
articulador de políticas. Essas políticas nem sempre estão expressas pelo sentido do direito à
educação que venho buscando, do ponto de vista da concepção com a qual opera, mas
seguramente pelo financiamento que possibilita.
1122..22 PPAARRCCEERRIIAASS EE FFIINNAANNCCIIAAMMEENNTTOOSS
O financiamento na educação de jovens e adultos — restrito em períodos recentes, e
insuficiente para a demanda atual — é inequívoco pelo modo como enunciou e
reconceitualizou o termo parceria, relação indiscutível no fazer da EJA nos espaços da
sociedade. Os financiamentos, constituindo políticas educacionais, têm fontes diversas, e o
Ministério do Trabalho passou a ser um grande indutor de projetos de EJA, com o MEC
inexpressivamente apoiando algumas quantas ações de formação continuada e de reprodução
de material didático. Especialmente durante os oito anos do governo Fernando Henrique
Cardoso essa situação se reforça, pelo esvaziamento do papel do MEC como indutor de
atendimento na EJA — dever constitucional do Estado —, relegando à parceria com a
organização não-governamental ALFASOL a responsabilidade do atendimento, de forte
concepção compensatória e clientelista, assim como os recursos “carimbados” no orçamento.
A concepção de parceria passa a resolver as questões da EJA, e esta concepção toma
caráter e visibilidade muito variada, tanto na forma como o poder público a encarna, quanto
pela forma desenvolta como as instituições conformam seu papel social nesse campo, como
parceiras.
Várias são as concepções de parceria com as quais a EJA se depara nos projetos em
discussão. Uma delas, a que executa uma ação predefinida pelos atores do Estado, submetidos
a regras e procedimentos não-discutíveis — o caso do PAS, que depois leva a mesma prática
centralizada para sua ação como organização não-governamental, embora ela própria, a partir
de então, passe a depender de financiamento público para cumprir o modelo antes assegurado,
por ser braço executor da política de EJA do Estado.
448
Uma segunda, em que a concepção inclui o parceiro como contribuinte na formulação
de propostas, segundo os interesses dos grupos sociais que representa, mas não lhe conferindo
qualquer poder de controle sobre os recursos, sobre regras e procedimentos, nem sobre a
execução orçamentária, o que cabe a um terceiro parceiro — o caso do PRONERA, com o
MST, que depende da universidade para a execução da ação e em parte para a administração
de recursos, centralizados no INCRA.
Uma terceira, em que o Estado, em última instância é o grande financiador das ações
de EJA pela isenção fiscal, e que os parceiros atuam com absoluta autonomia na destinação
dos recursos, seja quanto às concepções, políticas, prioridades, indo ainda, muitas vezes,
concorrer com outras entidades quando outros recursos públicos ou internacionais se
oferecem, com larga vantagem sobre outras instituições, devido ao porte, à inserção do
segmento que representam, às gestões de nível macro da qual participam — o caso do SESI e
do SESC, embora este último venha demonstrando maior independência de novos recursos,
como parceiro do Programa Brasil Alfabetizado, por exemplo, em movimento inverso:
aportando recursos de seu próprio orçamento, provenientes da contribuição obrigatória
calculada sobre a folha de pagamentos (recolhida pelo INSS e devolvida aos integrantes do
chamado Sistema S) para a execução da formação continuada de alfabetizadores, equipe
técnica e supervisores, sem recorrer a novo financiamento do governo federal.
Uma quarta, em que a EJA é realizada com aportes de recursos não apenas das
próprias administrações que as desenvolvem, mas também com recursos da parceria do
governo federal, em projetos voltados ao apoio a ações de formação continuada de
professores e outras menores, complementares, ou alquimizadas em subterfúgios de outros
programas com financiamento, utilizados desde a exclusão da EJA no FUNDEF — o caso da
Secretaria de Educação da Bahia, nessa última situação, e do município do Rio de Janeiro,
que tem atendimento restrito na rede, mas vem sendo usuário sistemático de recursos do
FNDE para formação continuada de professores.
Embora não tenha sido objeto da discussão nessa pesquisa, uma quinta forma vem se
delineando desde 2003, quando o Ministério da Educação lançou o Programa Brasil
Alfabetizado, por meio do qual as diversas concepções circulantes de alfabetização podem ser
apoiadas com financiamento para um período de tempo entre seis e oito meses, na proposta
validada desde 2004. Esse período de tempo nem restringe nem exclui, no entanto, qualquer
desenho de ação do parceiro, seja do ponto de vista das concepções de alfabetização, seja dos
tempos de execução. O parceiro executor da ação tem liberdade para integrar novos recursos
449
ao projeto pedagógico, ampliando quantitativamente o atendimento e mantendo seu “modelo”
de ação pedagógica, segundo concepções de alfabetização, de tempos de aprendizagem, de
organização dos cursos, de duração, sem ferir as regras do financiamento federal.
Esses modos de fazer a parceria podem acontecer integrados, e cada instituição,
dependendo do momento, pode também realizar concomitantemente mais de uma forma de
parceria, desde que as regras admitam a concorrência a recursos para a natureza da entidade
que o pleiteia. Duas constatações, entretanto, devem ser feitas. Uma reconhece que as
parcerias, a busca dos recursos públicos têm sido arquiteturas bem-montadas de financiar o
setor privado, escoando recursos do erário legalmente para esse fim, e impedindo, por outros
mecanismos, que não cabe discutir nesse âmbito, o acesso de diversas instâncias do sistema
público, seja federal, estadual, municipal, autárquico, fundacional etc. a esses novos recursos.
O PAS principalmente, emblematiza, de meados da década de 1990 para cá, algumas formas
de como se faz a conexão nas relações público-privado, revelando a promiscuidade do Estado
com a esfera privada, no âmbito do neoliberalismo. A outra, sem negar a parceria como
estratégia política de alcançar o direito, reafirma o dever constitucional do Estado com esse
direito, não o eximindo da responsabilidade que lhe cabe.
1122..33 OOSS FFÓÓRRUUNNSS —— TTEECCIIDDOOSS CCOONNJJUUNNTTIIVVOOSS CCOONNSSTTIITTUUEEMM RREEDDEESS DDEE PPRROOJJEETTOOSS
Algumas compreensões bastante relevantes destacaram-se dos projetos, e em busca
dos sentidos que vão sendo atribuídos à EJA, nesse cenário da contemporaneidade, passo a
discuti-las.
Uma primeira compreensão diz respeito à forma como os projetos, representados pela
ilustração da rede que se interconecta, mostram-se permeáveis à interferência e à produção da
rede sob a qual busquei compreendê-los.
Essa afirmação se visibiliza, no âmbito da pesquisa, por meio de algumas evidências e
institucionalidades que se vão constituindo e que não mais os mantêm isolados, mas
integrados no mesmo tecido com o qual estabelecem trocas, interpenetrações, parcerias,
vínculos. Como evidências, penso que devo apontar duas importantes: a) a disseminação dos
sentidos da EJA como direito; b) a apropriação do papel do Estado como parceiro potente e
fomentador de ações e de novas concepções no campo.
Desde quando a ação na EJA era intensa mas desconectada no espaço-tempo, sem um
tecido conjuntivo agregador, os fóruns resgataram o reconhecimento entre os tantos atores,
450
agora em relação, em rede, cujas conectividades estão exigindo maior compreensão e
investigação. Não sendo os fóruns meu foco principal, tomo a materialidade da existência
com a qual vêm refazendo a EJA, pela conquista da legitimidade do papel que representam.
Atuando como insterstício das múltiplas trocas, injunções e disjunções que as
instituições/programas/projetos realizam, os fóruns, de modo permeável e contiguamente, por
meio de pessoas — variados atores imbricados desde os níveis centrais à base da ação na qual
a prática pedagógica acontece em movimento de ir-e-vir —, novamente permeabilizam as
redes de contato e experiências entre atores e instituições.
A identidade desses fóruns se produz, em maior ou menor escala, pela busca constante
da garantia do direito à educação de jovens e adultos, em espaços de interlocução entre
entidades públicas e privadas, governamentais e não-governamentais, formais e não-formais,
representadas por administrações públicas estaduais e municipais, tanto da educação quanto
de áreas afins, nas suas diversas instâncias de realização; universidades e institutos superiores
de educação; SESC, SESI, SENAR, pelo Sistema S; organizações não-governamentais;
sindicatos e federações; entidades filantrópicas e comunitárias; movimentos sociais;
estudantes universitários e de EJA; professores, alfabetizadores, educadores populares. As
identidades vão sendo estabelecidas nas negociações de sentidos para os temas/problemas
atinentes à área, que passam a configurar o perfil de cada fórum, assim como interferem nas
concepções e práticas de atores, projetos e instituições ali representadas. A isso chamo
permeabilidade, em interação dinâmica que constrói e reconstrói sentidos, ressemantizando o
campo da educação de jovens e adultos.
Para a constituição do direito, a proposta dos fóruns se estende da interlocução com
agentes e dirigentes estatais, formuladores e executores de políticas, programas e projetos à
intervenção direta nas políticas públicas, sejam de âmbito local, regional ou nacional. O
exercício da democracia segue como desafio para a convivência e o diálogo entre atores tão
diversos, com missões e objetivos às vezes até mesmo conflitantes, que demandam a escuta, a
possibilidade de divergir, de tensionar idéias, negociar e construir saídas e alternativas
pactuadas por todos.
Entendi, desde que enunciei o “modelo” de relações estabelecidas, que o tecido em
que se dão as trocas na contemporaneidade, representado pelos fóruns de EJA, tem
constituído novas institucionalidades que se forjam no tempo-espaço nacional, ao longo de
quase dez anos.
451
A legitimidade desses espaços de produção — os fóruns — a que se têm atribuído a
categoria de movimento social tem sido reconhecida, no atual momento histórico, pelo
governo federal que, identificando a potência das articulações políticas e ideológicas ali
realizadas, tem mantido com eles canais de interlocução direta e formal visando à formulação,
consolidação, avanço e enraizamento das políticas públicas de direito à educação de jovens e
adultos.
1122..44 DDIIRREEIITTOO ÀÀ EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO
Uma segunda compreensão — a educação como direito humano, continuadamente
reafirmada, que ganha força nas últimas décadas, mais para o sentido das enunciações do que
para as formas como as políticas públicas resguardam esse direito — é um princípio
indiscutível na EJA. Se o poder econômico tem sido o grande fazedor de políticas
educacionais, nos tempos de globalização, afetando diuturnamente as organizações e
prioridades dos sistemas públicos e regulando todos os elementos integradores, a partir do
custo-aluno/ano, no trato da EJA a questão tem sido ainda mais complexa, no marco do
direito. Dados quantitativos de população e de escolaridade não deixam dúvidas sobre o não-
cumprimento do direito, e nenhuma garantia jurídico-legal tem sido suficiente para alterar a
sistemática ruptura com o dever da oferta, por parte dos poderes públicos, organicamente, nos
sistemas de ensino. Mas a proclamação dos direitos se faz, em textos legais, programas,
projetos, pareceres, documentos. Não é, portanto, por falta da letra, nem da lei nem de outros
usos da cultura escrita, que o direito não se faz prática, mas principalmente porque o contexto
em que se promove e se defende esse direito é fortemente desigual, produtor de exclusões,
porque o mundo em que é reivindicado rege-se pela ideologia do capital, para o qual a
desigualdade é fundamento, e não a eqüidade.
Por outro lado, não há como negar o potente papel indutor do Estado no fazer das
políticas, mesmo quando tímidas, nem há como dispensar o Estado da responsabilidade com a
educação de jovens e adultos. O jogo de forças entre níveis e modalidades — todos com
recursos escassos —; entre público e privado; entre a modalidade presencial e a distância na
EJA põe-se desfavoravelmente contra esta. O imaginário social que invisibiliza os não-
alfabetizados/não-escolarizados, com o concurso dos meios de comunicação ou que elege as
crianças e adolescentes como prioridade, absolve o Estado pelo não-cumprimento de um
dever, por considerar cada sujeito interditado do direito como culpado pela própria condição.
452
A conta dos largos contingentes, em um país como o Brasil, só pode ser saldada por
meio da presença forte do Estado, envolvendo diferentes atores em rede, com projetos de
longo prazo e sustentados como de interesse nacional, com todos os efetivos e potenciais
atores sociais que se põem em movimento pela educação de jovens e adultos. No caso do
PEJA, por exemplo, a desresponsabilização do setor público como promotor de políticas não
impede que o programa permaneça no tempo (desde 1985), apesar das várias ameaças de
rompimento, mas não assumindo a EJA como dever municipal, porque as ofertas nunca foram
intensificadas quantitativamente, e nunca levaram em conta a população demandante, mesmo
com a existência de uma rede de escolas públicas com 1.054 unidades.
Todavia, a constituição do direito, com todas as imbricações que consegui capturar,
exige-me formular mais uma pergunta: em que medida o direito, compreendido nos limites
dos projetos estudados, revelam de fato a conquista social do sentido que direito pode assumir
nas sociedades contemporâneas, ou: seria este direito feito sob a tutela do Estado, e portanto,
frágil conquista que pode ruir quando este poder sair de cena?
Uma terceira compreensão diz respeito à forma como a educação de jovens e adultos
se espraiou pela sociedade brasileira, tanto se alargando em projetos que têm dimensão
nacional, ocupando muitos estados e localidades, como também atingindo contingentes
expressivos de público.
A história da EJA no Brasil, não se pode esquecer, foi constituída como uma história
de experiências, porque, de modo geral, não conseguiu produzir enraizamentos nos sistemas
públicos. Algumas fogem dessa categoria, como o MEB, por exemplo, efetivamente nacional
em poucos meses de ação, e o MOBRAL, que como programa de governo constituiu política
pública em rede de atendimento, mas paralela ao sistema. O caso mais recente do PAS, de
larga penetração, não ultrapassa o lugar de experiência, no meu entender, porque embora
oferta oficial, mobilizando formalmente a rede de instituições de ensino superior, mantém um
modelo de atendimento “volátil”, com duração curta e alta rotatividade dos alfabetizadores,
cujo vínculo interessa mais à geração de emprego e renda do que à tarefa alfabetizadora, o que
não enraíza sequer o esforço da formação. São, no entanto, as experiências expressas em
pequenos projetos de educação popular, de poucos participantes e localizadas as que
demarcam com intensidade a história da EJA, no tempo e no espaço nacional.
Os programas em discussão nessa pesquisa não podem mais ser considerados
experiências, no sentido clássico da educação popular em busca da produção de alternativa às
concepções hegemônicas.
453
O SESI, na atualidade, atende cerca de 1 milhão de alunos na própria rede, e tem meta,
pelo terceiro ano consecutivo, de 300 mil alunos em alfabetização, e previsão de 1,1 milhão
de alunos para 2006; somado ao atendimento do PAS, em alfabetização, com 629.843 alunos
em 2004; à Secretaria de Educação do Estado da Bahia, com rede regional de atendimento
com 250 mil alunos, dos quais 86 mil de ensino médio, em 417 municípios; à Secretaria
Municipal de Educação do Rio de Janeiro, com 32 mil alunos em 118 escolas; ao MST com
30 mil alfabetizandos; e ao SESC Ler, com atendimento da ordem de quase 6 mil alunos, em
cerca de 70 unidades, compõe-se um quadro bastante expressivo, ainda que
predominantemente realizado na esfera na alfabetização, demandando expansão e constituição
do direito para a continuidade da escolarização. Para todos esses os recursos públicos — a
potência do Estado como indutor de políticas — são expressivos, respondendo pela grande
parte das metas atingidas, pelo menos, no campo da alfabetização e da formação continuada
de professores das administrações públicas, assim como significam a perspectiva de
continuidade, na maioria dos casos em que o atendimento se restringe à alfabetização, ou ao
primeiro segmento do ensino fundamental. A articulação entre esses programas/projetos ainda
não pode ser considerada uma realidade como política, mas se faz pela busca de cada aluno
que deseja dar continuidade aos estudos. Essa demanda “não-intencionalmente organizada”,
pressiona os sistemas para a oferta do atendimento, e gradativamente, impõe a eles a
compreensão de que o fazem como dever público a sujeitos de direito, o que altera os
planejamentos, as prioridades, as políticas locais. O relato nos programas tem, por exemplo,
no MST, uma outra lógica, porque seu compromisso com a educação se integra ao novo
projeto de sociedade, pelo qual os trabalhadores sem-terra organizados vêm lutando. Não é a
demanda, portanto, que pressiona o atendimento, mas a certeza de que qualquer projeto de
transformação social exige foco na educação, sem limites na sua compreensão: da
alfabetização à universidade; do cumprimento do direito ao ensino fundamental, da conquista
à escola média à formação continuada; da educação técnica à profissional; do aprender por
toda a vida.
1122..55 PPRREESSEENNÇÇAA FFRREEIIRREEAANNAA
A presença de Paulo Freire é forte referência na EJA, o que implica dizer que há
influências do seu pensamento no modo de propor a educação para o público jovem e adulto,
embora muitas vezes as formulações e as práticas ainda não revelem os efeitos dessa
referência.
454
Uma quarta compreensão, portanto, se expressa na existência de uma concordância ou
convergência nos projetos/propostas, quanto ao significado de Paulo Freire para a EJA,
muitos inclusive apontando seus aportes teóricos como fundamentos, embora, na prática, se
perceba pouca relação entre as concepções que sustentam o pensamento do educador e as que
revelam os projetos, ou que os organizam. A cultura, como esteio da educação, por exemplo,
se visibiliza, praticamente, na concepção do MST, o que não significa necessariamente
ausência, face a características que se observam em muitas práticas, presentes no fazer
cotidiano dos projetos, mas não enunciadas nos currículos. Nas formulações dos projetos na
Bahia, as marcas das concepções freireanas são evidentes, especialmente na definição de
currículos pensados em função das características dos sujeitos, expressos em diversos
programas em resposta às necessidades dos demandantes, tanto nas ofertas culturais que a
prática vem sugerindo, assim como nas formas de atendimento, organizadas não apenas em
unidades escolares, mas especificamente em centros de educação de jovens e adultos e, para o
caso de exames, em comissões de avaliação (vinculadas às unidades escolares), com ofertas
mensais permanentes.
Nessa compreensão, observam-se aspectos relacionados à duração dos
programas/projetos, aos tempos escolares, às formas de organizá-los, às propostas
curriculares, à avaliação etc., com poucas enunciações diferenciadas da escola regular. A
organização do projeto, por exemplo, em blocos, etapas e unidades de progressão surge no
PEJA, embora sua identificação esteja sempre associada, nas falas docentes, à estrutura
seriada para destacar a que correspondem. Embora com componentes curriculares bem
demarcados, nas práticas relatadas principalmente pelos docentes do segundo segmento do
ensino fundamental, ainda se observa ser este um ponto de muita dificuldade: professores de
disciplinas específicas custam a conceber novas práticas curriculares em função de um outro
projeto pedagógico, nem sempre exercitando as possibilidades que a concepção do PEJA
admite.
No caso da EJA na Bahia, a forma de organização do Programa de ensino
fundamental para jovens e adultos apresenta ruptura com modelos tradicionais, para
apresentar unidades conceituais, organizadoras do processo de aprendizagem, cujo conjunto
de conhecimentos pode atender a diversas interpretações e, conseqüentemente, a campos
conceituais diferenciados, em função do avanço da ciência, da técnica, da tecnologia, não
ficando presos a conteúdos muitas vezes ultrapassados. Não segue nem série, nem fase, nem
ciclo, mas tem a unidade conceitual como organizadora do momento de aprendizagem.
455
A presença freireana leva a outras apreensões dela decorrentes. Portanto, uma quinta
compreensão se apresenta: a exigência de processos continuados de formação e de apreensão
dos possíveis sentidos da EJA, como forma de ampliar as concepções correntes entre
professores, especialmente nas práticas pedagógicas.
De modo significativo, a escolarização de jovens e adultos, apesar dos avanços na
conformação da área, ainda reproduz e se define como uma escola de parâmetros fortemente
restritos ao modelo convencional, regular, ela mesma anacrônica para crianças, e,
conseqüentemente, alheia ao tempo-espaço histórico e social da vida de jovens e adultos.
Sofre ruptura também quando se verifica, nas enunciações de vários projetos, a dimensão do
aprender por toda a vida: Sempre é tempo de aprender - MST; SESC Ler; SESI Educação do
Trabalhador.
Mesmo estas propostas não têm construções concretas que possibilitem a realização
dessa dimensão, a não ser no caso do MST, em que se imbricam formação de educadores e
escolarização e, ainda, a formação inclui o tempo escola e o tempo comunidade,
demonstrando que as aprendizagens fazem-se para além dos muros da escola — ou das
“quatro paredes da sala de aula”, situação mais provável, como se refere a coordenadora
Joelma —, embora essa formação gire, também, em torno da escolarização. A formação
política dos educadores militantes, como se referiram vários educadores, ultrapassa a
dimensão escolar, mas mesmo essa não fica exatamente visível na enunciação do que o
Movimento compreende como educação de jovens e adultos. Nesse caso, a dimensão do
aprender por toda a vida acontece para militantes, lideranças, educadores, mas habita o
terreno da informalidade, não estando incluído na intencionalidade da EJA. A pedagogia da
EJA no MST, segundo a concepção registrada, está sendo produzida e maturada, embora faça
parte, desde então, da Pedagogia do Movimento, que, esta sim, tem clara dimensão educativa
em todas as ações da luta. A chegada a esse outro patamar de compreensão inegavelmente
acontecerá, pelos modos e processos pelos quais o Movimento vem, dinamicamente,
dialogando com a realidade e com os estudos.
Cabe apostar, entretanto, na continuidade do entranhamento das idéias de Freire nas
reflexões dos educadores, possibilitando maior aproximação e compreensão das práticas
pedagógicas. Alguns outros autores — por exemplo Emília Ferreiro e Magda Soares —
também são recorrentes, principalmente no que tange à alfabetização, embora nem sempre
visíveis suas teorizações nos modos de alfabetizar jovens e adultos.
456
1122..66 SSUUCCEESSSSOO EE CCOONNTTIINNUUIIDDAADDEE NNAA EEJJAA
Uma sexta compreensão imbrica-se diretamente com a avaliação, em sentido amplo,
nos modos como ela organiza a oferta pedagógica e por ela possibilita o percurso de sujeitos
em programas/projetos, concorrendo para a construção do sentido do direito.
Observa-se, por exemplo, convergência de enunciações quanto à entrada e saída de
alunos a qualquer tempo, segundo seu desempenho e desenvolvimento, o que a prática, no
entanto, nem sempre tende a confirmar. Nas redes escolares, principalmente, as lógicas da
organização racional dos servidores docentes, distribuição de cargas horárias pelas unidades
escolares, fatores como licenças, afastamentos, aposentadorias interferem sobremaneira para
que os projetos possam atender a essa premissa da educação de jovens e adultos. Além do que
as organizações formais são pouco propensas a mudanças que ameacem os controles
instituídos e os modelos em curso, exigindo modificações nos procedimentos de
acompanhamento e controle, o que do ponto de vista organizacional costuma ser mal
recebido.
Os tempos de aprendizagem e os tempos de duração dos projetos conflituam
permanentemente. Horários inadequados de entrada e saída obedecem a interesses das
instituições, negociando pouco os interesses dos alunos. Chocam-se com horários de trabalho,
tempos de deslocamentos até à escola, quando não punem os atrasos com novas interdições. A
duração do projeto muitas vezes coloca-se como tempo de permanência do aluno, e não como
referência de organização pedagógica. A premissa de que a matrícula pode-se dar a qualquer
tempo, e de que a saída pode ser decorrente do sucesso alcançado, segundo ritmos de
aprendizagem variados tão logo tenha o domínio (no sentido de Ardoino) do conhecimento
não tem sido exercitada, de fato, nos projetos instituídos. A cultura de uma nova relação entre
os sujeitos e o processo de aprendizagem, indispensável à EJA, demanda abrir mão da cultura
do controle, que funde burocracia e autoritarismo. A saída, derivada de outros fatores que não
o sucesso, não deve ser interpretada sempre como evasão, se o aluno não volta à escola. A
EJA aponta para interrupções freqüentes, face a fortes motivos da vida adulta (impostos
também aos jovens): um emprego; mudança de local de trabalho, mudança de local de
moradia, doenças (pessoais e com familiares), estrutura familiar que se altera, exigindo maior
participação de quem estudava etc.
457
1122..77 CCOONNCCEEPPÇÇÕÕEESS DDEE FFOORRMMAAÇÇÃÃOO CCOONNTTIINNUUAADDAA DDEE PPRROOFFEESSSSOORREESS
Uma sétima compreensão diz respeito à pregnância de concepções de formação
continuada às práticas pedagógicas e às “artes de fazer” (CERTEAU, 1994) o currículo.
Tendo como princípio o entendimento de que os saberes, produzidos ao longo da vida pelos
sujeitos praticantes, são a base sobre a qual assentam seu estar no mundo, sua compreensão e
as explicações sobre ele, a EJA faz-se viva para sujeitos professores, eles também jovens e
adultos em processos de metacognição sobre o aprender de seus alunos, produzindo
conhecimentos, nem sempre suficientes para possibilitar a continuidade dos processos de
aprendizagem e adequados para criar ambientes satisfatórios ao aprendizado do que deve
compor o currículo na educação de jovens e adultos.
Os modos de fazer a formação, junto a professores que já vivenciaram, em outros
projetos, também outras concepções; de valorizar as ações e fazer emergir as práticas
cotidianas de sala de aula e confrontá-las; assim como confrontar as concepções docentes,
constituem fundamentos da metodologia de trabalho expressa em alguns programas/projetos,
que tem no princípio de aprender por toda a vida o entendimento de que professores são
também jovens e adultos formando-se e constituindo-se como pessoas e profissionais nesses
processos de interação e diálogo estabelecidos com seus pares, mediados pelos formadores em
relação aos conhecimentos. A circulação de alfabetizadores e professores por diversos
projetos contribui para a constituição da rede, conectando suas percepções, saberes, práticas
pedagógicas e subjetividades, e impregnando as práticas — mais que as concepções — de
outros projetos.
O desafio de construir processos de formação continuada para professores tem
significado a possibilidade de concretizar idéias forjadas durante anos de trajetória na EJA e
de estimular a luta por espaços legais, institucionais, em que os projetos políticos de
atendimento pela escola e da EJA se façam como direito, fortalecendo os professores para
intervir na realidade social, educacional e pedagógica, de forma qualificada, consciente e
significativa.
Essa concepção de formação, evidentemente, tem relação direta com o perfil dos
professores — sob todas as possíveis denominações —, nem sempre um profissional
qualificado para a atividade que exerce. Em um extremo, cito o caso do PAS, em que o
voluntariado é predominante, além da rotatividade do alfabetizador a cada projeto, como
458
alternativa inaugural de oferta de trabalho precarizado, diante da concepção compensatória do
programa. No outro extremo, o SESI, em que a profissionalização da EJA é visível, não
apenas pelo contrato formal nos projetos institucionais, com remunerações normalmente
acima da média, como pela existência de outras funções pedagógicas na rede de atendimento,
que promovem o acompanhamento, a formação continuada. A assunção da formação de
qualidade levou a entidade à formulação, em parceria com a UnB, de um curso de
especialização a distância em EJA, privilegiando o público interno, mas também com vagas
para candidatos externos, cuja duração demonstra o compromisso com a profissionalização
das equipes que atuam na área. No caso do MST, em que muitas vezes o educador não tem
nem escolaridade, nem formação para a função docente, o caráter da militância aparece como
forte atributo que o desafia a realizar a formação, superando as barreiras existentes, pela
premissa de que todos são educadores do povo e de que todos são capazes de aprender. A
profusão de documentos de formação, de eventos formativos e de registros das práticas
evidencia um modus operandi tão relevante quanto o do SESI, embora partindo de um sujeito
inicialmente com formação diversa. A existência dos cursos de Pedagogia da Terra, em
muitos estados, em parceria com universidades, é emblemática quanto ao poder desafiador
que o Movimento produz pela educação. No estado da Bahia, a formação continuada não
consegue atingir toda a rede, o que vem sendo tentado, nos últimos tempos, pelas
teleconferências, na tentativa de fazer-se chegar a um público docente maior. Sobretudo, as
formações não são espaços apenas de aperfeiçoamento profissional — o caso do PEJA, com
sucessivos projetos de extensão universitária para a formação continuada de professores —,
mas de deliberação e formulação de programas, projetos, políticas, em situações coletivas —
o caso da Bahia, do MST —, demonstrando, também, o crescente envolvimento das
universidades com a EJA, principalmente pela assunção de um preciso papel junto à formação
inicial e continuada.
O que se destaca, nas concepções de formação, é a compreensão de que, para a EJA,
não cabe restringi-la à técnica, mas principalmente resgatar o compromisso político exaltado
por Freire, pela exigência da militância docente na construção política do direito à educação,
para além da prática pedagógica.
1122..88 SSUUJJEEIITTOOSS AALLUUNNOOSS —— FFOOCCOO EE IIDDEENNTTIIDDAADDEESS
Outra compreensão, a oitava, diz respeito a como os programas/projetos são
formulados, muitas vezes não centrando o foco nos sujeitos concretos para os quais se pensa a
459
proposta educativa. Surgem alunos cujo perfil revela a presença de jovens que, não
concluindo a escola regular, são “empurrados” para o noturno, pelas armadilhas sutis que o
poder sabe bem dispor. Alunos que “fracassam” de muitas formas — considerado o fracasso
desde a indisciplina aos resultados processuais e finais causados pela desmotivação com as
propostas pedagógicas — são “convidados” à matrícula no noturno, pelos gestores das escolas
regulares, chegando crescentemente em número a esta modalidade de atendimento — EJA.
Mas os programas/projetos nem sempre são precisos no pensar o sujeito da educação,
suas peculiaridades e singularidades, antes de formular as propostas. Observe-se, por
exemplo: no caso do SESC, não há distinção da condição de sujeito trabalhador, mas a
entidade olha o entorno, a comunidade como público de atendimento; no SESI, a produção é
sempre orientada pelo sujeito trabalhador da indústria, o trabalhador assume o lugar do foco
enunciativo, mesmo quando se atende toda a comunidade; no PEJA, há prevalência histórica
da concepção do direito para alguns – jovens (embora de há algum tempo o direito de acesso
dos adultos esteja assegurado). No MST, especificamente, há vínculo estreito com o
trabalhador do campo, uma preocupação com a identidade sem-terra, tanto marcada pela
redignificação, quanto pelas singularidades que expressa, seu lugar no mundo, sua condição
de cidadão.
Observação significativa diz respeito a como esses sujeitos contribuem também na
construção dessa rede de projetos — tal como os alfabetizadores e professores —, porque em
muitos casos, não obtendo sucesso em programas de duração curta, circulam por vários
outros, em busca do aprendizado, conhecendo e diferenciando as “vantagens” que cada um
deles oferece.
Uma das identidades mais presentes em projetos de alfabetização tem estado posta
pelo lugar de analfabeto, criando um modo próprio de pensar a ação educativa a partir dessa
condição de marginalizado das práticas de leitura e de escrita. Embora essa condição ajude a
configurar o campo semântico dos sujeitos, não revela a imensa diversidade que permanece
encoberta, e que pelo fato de se manter razoavelmente homogênea, do ponto de vista das
categorias socialmente desfavorecidas, não se mostra suficiente para subsidiar propostas de
atendimento que exigem reconhecer a cultura como locus da prática pedagógica. No momento
atual, o poder público avança na construção da identidade desses sujeitos, quando desde 2003
criou o cadastro de alfabetizandos (e de alfabetizadores), passando a visibilizá-los a partir de
sua identidade civil, cor, sexo, local de moradia, história de escolarização. Deixaram, assim,
460
de ser números contabilizados, para serem reconhecidos como pessoas — talvez um grande
passo para atribuir a eles, de fato, o direito subjetivo.
1122..99 CCOONNCCEEPPÇÇÕÕEESS DDEE AALLFFAABBEETTIIZZAAÇÇÃÃOO
A nona compreensão, quanto às concepções de alfabetização e sua continuidade, que
refletem a dimensão escolarizada da EJA, são as formas mais evidentes de atribuir sentido à
educação de jovens e adultos, ainda que os marcos internacionais apontem para a dimensão do
aprender por toda a vida como o verdadeiro sentido da área, reafirmado pelo Parecer CNE nº.
11/2000. As diversas concepções pelas quais a alfabetização vai passando, assim como a EJA,
são, de modo geral, sincrônicas, e não seqüentes, o que exige pensá-las num espaço-tempo
não-linear, mas multidimensional.
Parece haver clareza conceitual de que só a mera alfabetização não basta para conferir
status de leitor e escritor da realidade aos sujeitos jovens e adultos, mas que esta é
indispensável como integrante da EJA, da qual não deve estar desconectada, como etapa
isolada, não integrada, pela certeza das inconsistências na trajetória de tantos sujeitos, que
passaram por campanhas, programas e projetos de curto prazo. Pensar um projeto para jovens
e adultos nesta dimensão exige planejar um caminho mais amplo que chegue, pelo menos, ao
ensino fundamental completo — o nível reconhecido como de direito universal pela
Constituição de 1988. Esta observação, constatada na Avaliação Diagnóstica dos Programas
Brasil Alfabetizado e Fazendo Escola, traz a indispensável determinação de que o ato de
alfabetizar não pode ser reduzido a um tênue curso de alguns meses, pelas múltiplas
apreensões que exige dos sujeitos, que se fazem no tempo, e não apenas no espaço entre um
ou outro mandato político.
Apesar de haver concordância com essa concepção, em praticamente todos os
projetos, a realidade dos financiamentos apequena-os, e resumem-se ao tempo dos recursos,
tirando do centro os sujeitos e suas necessidades básicas de aprendizagem, mesmo quando as
concepções originais prevêem tempos mais largos. A inexistência de projetos de leitura, de
bibliotecas, de vivências culturais ajudam a reforçar essa dimensão escolar estreita, que ainda
perdura na maior parte das propostas. O PAS, por um tempo, fez um movimento de doação de
acervos de literatura infantil, mas na atualidade não há registro de continuidade dessa ação. O
SESC Ler, de ocorrência nos espaços arquitetônicos onde muitas vezes se situa, dispõe de sala
de leitura e biblioteca, mas não se apreendeu qualquer informação sobre de que modo operam,
imbricadas com a alfabetização.
461
O momento atual avança no sentido de melhor reconhecer o que configura o campo
das iniciativas de alfabetização no país, quando o MEC propõe e desenvolve um mapeamento
das iniciativas de alfabetização.
Finalizando, posso dizer que a pesquisa leva-me mais a desenhar as tendências que a
educação de jovens e adultos assume, como um campo político em disputa pelo direito,
tensionando a esfera pública estatal a garantir e manter modos de oferta, do que pela disputa
de incorporações nos instrumentos legais que podem consolidar a EJA nos orçamentos,
assegurando organicamente políticas de atendimento: planos estaduais e municipais de
educação, em sua maioria, estão por construir, configurando um espaço novo de
possibilidades para a inclusão da EJA no campo dos direitos. A efemeridade dos programas,
mesmo quando concertados pelo governo federal, como no momento atual, com intenções e
concepções evidenciando o compromisso com o direito, esbarram nas disputas internas e não
contam com o povo na rua, nem com a pressão de jovens e adultos, exigindo esse direito.
Mas há um novo desenho se fazendo na paisagem do país, produzido quase
silenciosamente pelo trabalho dos fóruns, com efetiva interferência nas concepções e práticas
de EJA, porque realizado como formação continuada, exercitando o método democrático e
pautado na cidadania. Esse desenho, tramado nos espaços cotidianos, com táticas de ocasião,
tem alterado as agendas e enredado nos fios, novos interlocutores para a mesma causa. O
cenário — a teia — é favorável e as disposições, recíprocas, possibilitam manter desenhos
tramados na espera, nas escolhas, nas lutas, e na certeza de que as lições de hoje devem ser
relembradas sempre, porque a educação de adultos, como um direito não-dado, mas arrancado
do chão, não pode mais escapar das mãos dos que por ele têm despendido a vida.
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478
ANEXO 1
ROTEIRO DE QUESTÕES PARA ENTREVISTADOS SOBRE O PROGRAMA SESC Ler
1. Que concepção tem a EJA, no seu entender, no âmbito do Programa SESC Ler — o que é EJA, que sentidos tem assumido, por que oferecer EJA? A quem oferecer?
2. Há alguma relação estabelecida entre EJA, no Programa e educação popular? Qual?
3. O que o Programa considera como direito à EJA?
4. Existe proposta pedagógica no Programa? Que diretrizes, princípios, fundamentos a sustentam?
5. Com que metodologia trabalha o Programa? Quais são suas bases teóricas: autores, processos, avaliação, desenvolvimento de propostas educativas.
6. Que vínculo esse Programa tem com a alfabetização? Explicite, por favor. O que é alfabetização no âmbito do Programa? Que metodologias, materiais, ação alfabetizadora prevê?
7. Qual o currículo do Programa? O que é currículo, que propostas curriculares apresenta, quem organiza, quem participa?
8. Organização pedagógica da proposta: como se dá a entrada e saída de alunos no processo; duração de cada projeto; calendário letivo.
9. Considera que ocorreram mudanças ao longo dos anos nas concepções e gestão do Programa? Quais?
10. Como tem se desenvolvido o Programa? Em que municípios o SESC Ler atua? Há vinculação entre as classes do Programa nos municípios e a rede pública? Qual? Há encaminhamento dos alunos concluintes visando à continuidade? Para onde? Que resultados considera que o Programa obtém?
11. Alfabetizador/professor: qual a formação inicial exigida, quantas horas de formação, como tem sido feita; tem sido possível assegurar a formação continuada (encontros pedagógicos, freqüência)? Quem a realiza? Como é financiada? Percebe diferenças entre os alfabetizadores/professores ao longo dos anos?
12. Como definiria o perfil dos alunos na atualidade? Há diferenças entre o público que participava há alguns anos e o atual? O que considera que mudou?
13. Local de classes, condições de oferta: bibliotecas, merenda, supervisão, equipamentos audiovisuais, informática etc. Como era... como é... o que mudou?
14. Quem é o gestor do Programa? Equipes locais de coordenação e gestão: formação específica, qualificação etc.
15. Relação de parceria do Programa com outras instituições, com o governo federal etc. para realizar sua ação na EJA: como se dá? Mudou? Em quê?
16. Que papel desempenha/ou no Programa? Há quanto tempo?
476
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479
ANEXO 2
ROTEIRO DE QUESTÕES PARA ENTREVISTADOS SOBRE A AÇÃO DE EDUCAÇÃO DE JOVENS
E ADULTOS / PRONERA/MST
1. Que concepção tem a EJA, no seu entender, no âmbito do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária — o que é EJA, que sentidos tem assumido, por que oferecer EJA? A quem oferecer?
2. Há alguma relação estabelecida entre EJA, no Programa, e educação popular? Qual? 3. O que o Programa considera como direito à EJA? 4. Existe proposta pedagógica no Programa? Que diretrizes, princípios, fundamentos a sustentam? 5. Com que metodologia trabalha o Programa? Quais são suas bases teóricas: autores, processos,
avaliação, desenvolvimento de propostas educativas. 6. O que é alfabetização no âmbito do Programa? Que metodologias, materiais, ação alfabetizadora
prevê? 7. Qual o currículo do Programa? O que é currículo, que propostas curriculares apresenta, quem
organiza, quem participa? 8. Organização pedagógica da proposta: como se dá a entrada e saída de alunos no processo;
duração de cada projeto; calendário letivo. 9. Considera que ocorreram mudanças ao longo dos anos nas concepções e gestão do Programa?
Quais? 10. Como tem se desenvolvido o Programa com o Movimento? Desde que ano o Movimento é
parceiro do PRONERA? Há vinculação entre as classes nos assentamentos e as redes públicas municipais? Qual? Há encaminhamento dos alunos concluintes visando à continuidade? Que resultados — alunos alfabetizados — considera que o Programa obtém? Há algum recurso do município para o Programa?
11. Como a política local atua em relação ao PRONERA? Faz intervenções (ou tenta fazer)? 12. Educadores: qual a formação inicial exigida, quantas horas de formação, como tem sido feita;
tem sido possível assegurar a formação continuada (encontros pedagógicos, freqüência)? Quem a realiza? Como é financiada? Há diferenças entre os educadores do início da parceria e os atuais?
13. Como definiria o perfil dos alunos na atualidade? Há diferenças entre o público inicial do PRONERA que participava e o atual? O que considera que mudou?
14. Local de classes, condições de oferta: bibliotecas, merenda, equipamentos audiovisuais, informática etc. Como era... o que mudou?
15. Equipes locais de coordenação e gestão: formação específica, qualificação etc. 16. Relação de parceria do Movimento com o PRONERA. Como se dá? Mudou? Em quê? Com as
universidades? Como se dão as relações entre as diversas partes? 17. Dificuldades do Movimento e facilidades para o desenvolvimento do Programa. Grau de
autonomia do MST para gerir o Programa. 18. Dificuldades e facilidades em relação ao parceiro federal/público e às universidades. 19. Que papel desempenha/ou no Programa?
480
ANEXO 3
ROTEIRO DE QUESTÕES PARA ENTREVISTADOS SOBRE O PROGRAMA
ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA
1. Que concepção tem a EJA, no seu entender, no âmbito do Programa Alfabetização Solidária — o que é EJA, que sentidos tem assumido, por que oferecer EJA? A quem oferecer?
2. Há alguma relação estabelecida entre EJA, no Programa e educação popular? Qual?
3. O que o Programa considera como direito à EJA?
4. Existe proposta pedagógica no Programa? Que diretrizes, princípios, fundamentos a sustentam?
5. Com que metodologia trabalha o Programa? Quais são suas bases teóricas: autores, processos, avaliação, desenvolvimento de propostas educativas.
6. O que é alfabetização no âmbito do Programa? Que metodologias, materiais, ação alfabetizadora prevê?
7. Qual o currículo do Programa? O que é currículo, que propostas curriculares apresenta, quem organiza, quem participa?
8. Organização pedagógica da proposta: como se dá a entrada e saída de alunos no processo; duração de cada projeto; calendário letivo.
9. Considera que ocorreram mudanças ao longo dos anos nas concepções e gestão do Programa? Quais?
10. Como tem se desenvolvido o Programa com a UFF? Em que municípios a UFF ainda atua? Desde que ano a UFF é parceira do PAS? Há vinculação entre as classes de PAS no município e a rede pública? Qual? Há encaminhamento dos alunos concluintes visando à continuidade? Que resultados — alunos alfabetizados — considera que o Programa obtém? Há algum recurso do município para o Programa?
11. Como a política local atua em relação ao PAS? Indica alfabetizadores? Faz intervenções (ou tenta fazer)?
12. Alfabetizador: qual a formação inicial exigida, quantas horas de formação, como tem sido feita; tem sido possível assegurar a formação continuada (encontros pedagógicos, freqüência)? Quem a realiza? Como é financiada? Há diferenças entre os alfabetizadores do início da parceria, em 1998 e os atuais?
13. Como definiria o perfil dos alunos na atualidade? Há diferenças entre o público de 1998 que participa e o atual? O que considera que mudou?
14. Local de classes, condições de oferta: bibliotecas, merenda, equipamentos audiovisuais, informática etc. Como era... o que mudou?
15. Equipes locais de coordenação e gestão: formação específica, qualificação etc.
16. Relação de parceria da universidade com o PAS. Como se dá? Mudou? Em quê?
17. Que papel desempenha/ou no Programa?