educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

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Page 1: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

JJAANNEE PPAAIIVVAA

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Page 2: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

JJAANNEE PPAAIIVVAA

EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE JJOOVVEENNSS EE AADDUULLTTOOSS::

DDIIRREEIITTOO,, CCOONNCCEEPPÇÇÕÕEESS EE SSEENNTTIIDDOOSS

TTeessee aapprreesseennttaaddaa aaoo PPrrooggrraammaa ddee PPóóss--ggrraadduuaaççããoo eemm EEdduuccaaççããoo ddaa UUnniivveerrssiiddaaddee FFeeddeerraall FFlluummiinneennssee,, ccoommoo rreeqquuiissiittoo àà oobbtteennççããoo ddoo ttííttuulloo ddee DDoouuttoorr..

OOrriieennttaaddoorr:: PPrrooff.. DDrr.. OOssmmaarr FFáávveerroo

NNiitteerróóii,, nnoovveemmbbrroo 22000055

Page 3: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

P149 Paiva, Jane. Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos /

Jane Paiva. – 2005. 480 f. Orientador: Osmar Fávero. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação, 2005. Bibliografia: f. 462-477.

1. Educação de jovens e adultos. 2. Alfabetização de adultos. 3. Direito à educação. I. Fávero, Osmar. II. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Educação. III. Título.

CCDDDD 337744

Page 4: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

JJAANNEE PPAAIIVVAA

EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE JJOOVVEENNSS EE AADDUULLTTOOSS::

DDIIRREEIITTOO,, CCOONNCCEEPPÇÇÕÕEESS EE SSEENNTTIIDDOOSS

NNiitteerróóii,, 1111 ddee nnoovveemmbbrroo ddee 22000055..

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Page 5: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

PPaarraa VViiccttoorr HHuuggoo,, nnoossssoo pprroojjeettoo ddee vviiddaa,, aa qquueemm aass ooppoorrttuunniiddaaddeess ccoomm aa ccuullttuurraa eessccrriittaa ddeessccoorrttiinnaarraamm pprreeccoocceemmeennttee aa lleeiittuurraa ddaa ppaallaavvrraa,, aammpplliiaannddoo ooss hhoorriizzoonntteess ddaa lleeiittuurraa ddoo mmuunnddoo,, ee ccoomm qquueemm tteennhhoo aapprreennddiiddoo--eennssiinnaaddoo aa vviivveerr oo pprreesseennttee,, rreeeennccaannttaannddoo--oo..

AA JJoossiimmaarr,, cciiddaaddããoo ssíímmbboolloo ddoo qquuee aass ooppoorrttuunniiddaaddeess eedduuccaacciioonnaaiiss eemm qquuaallqquueerr tteemmppoo ppooddeemm ffaazzeerr ccoomm uumm úúnniiccoo hhoommeemm —— rraazzããoo ssuuffiicciieennttee ppaarraa aaccrreeddiittaarr nnoo ddiirreeiittoo àà eedduuccaaççããoo ddee jjoovveennss ee aadduullttooss ppaarraa ttooddooss ooss hhoommeennss ee mmuullhheerreess..

Page 6: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

AAGGRRAADDEECCIIMMEENNTTOOSS

Muitos são os agradecimentos a fazer, por ocasião do término deste trabalho.

Reconhecer aqueles que me ajudaram a realizá-lo, mesmo sem saber, e generosamente dizer

obrigada!, compartilhando as alegrias — muito maiores que as dores — de chegar até aqui.

Ao meu orientador, Prof. Osmar Fávero, pela confiança em mim e no tema —

presença e firmeza na condução dessa pesquisa.

Pela minha disciplina com a vida intelectual, devo começar por agradecer à UERJ, na

figura de meus pares e direções, que compreenderam meus limites em algumas negativas de

que precisei lançar mão, e nos tempos roubados em que passei dedicada às atividades da

pesquisa, superando a falta de condições para o doutorado, realizado em concomitância com

todas as minhas atividades acadêmicas.

Por esse mesmo critério, sou grata aos meus alunos, em especial a minhas bolsistas,

com quem o diálogo permanente formou-me mais que a elas.

Grata aos espaços conquistados de trabalho e à confiança em mim depositada,

principalmente de Sandra Sales e Fátima Lobato, parceiras de muitas horas na formação

continuada de professores de EJA, com quem dividi a coordenação de projetos, as apostas em

um coletivo interinstitucional de formadores, ao qual também, reverenciadamente, agradeço

os múltiplos aprendizados, os reconhecimentos, as cumplicidades. Grata a Pablo Gentili,

coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da UERJ, que confiou no Núcleo de

Educação de Jovens e Adultos (NEJA) e valorizou nossos empreendimentos.

Na esfera pessoal, muitas gratidões: à minha mãe, que soube me esperar muitas vezes,

sem que fosse possível chegar até ela, mas presente no seu cuidado à distância com a minha

saúde e minhas muitas horas de trabalho diante do computador. Ao Padilha, companheiro leal

que enfrenta, pela segunda vez, a maratona da pós-graduação, esperando/contribuindo a/para

a conclusão, paciente e impacientemente. À Jéssica, nas muitas apostas que me perpetuam. À

Fabrízia, ousadia e desafio permanentes. Ao Beto, mano, isso basta. À minha sobrinha

Vanessa, que me surpreende sempre, com quem com-partilhei pedaços de um tempo comum

de estudos, na sua conquista do título de Mestre.

À Ira, companheira de partilha de muitos e preciosos momentos pessoais e

profissionais, vivenciando criativamente a prática do trabalho coletivo e o exercício da

democracia nesse fazer.

Page 7: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

À banca, mais que examinadores, companheiros de muitas lides e percursos comuns:

pela leitura atenta, pela escuta acurada, pelo brilho e generosidade dos comentários e

questionamentos. Sou-lhes grata.

A todos os que colaboraram com essa pesquisa respondendo a entrevistas,

questionários, disponibilizando materiais, fazendo-me participar de seus projetos de trabalho,

agora e há muito tempo sem saber o quanto me ajudariam, meu obrigada sincero pelos

subsídios, pelos aprendizados, pelo exercício da construção coletiva.

Aos companheiros do Fórum EJA/RJ que, como eu, têm permanecido vigilantes,

nesses quase dez anos de embates pela educação como direito, redescobrindo e multiplicando

as forças dos movimentos da sociedade e reinventando a ação coletiva. Nas pessoas de Eliane

Andrade —a Lili —, de Alex Aguiar e de Aline Dantas, simbolizo minha gratidão.

À Edna, companheira mais que constante, com quem partilhei um momento comum

do doutorado, apostando nos mesmos sonhos, nas mesmas esperas, no encontro e

consolidação de respeito e amizade. Obrigada, companheira, pelo que pudemos ser, juntas.

Por fim, não um agradecimento, mas o reconhecimento do quanto a esfera pública

possibilitou-me a formação, desde a escola primária, até este curso de doutoramento. Porque

reconheço o que isto significa de privilégio na sociedade excludente em que vivemos, sinto-

me responsável por devolver o que recebi, em serviço à educação de jovens e adultos. Para

que eu tivesse esse direito, uma grande parte da população não chegou sequer a ser

alfabetizada. A luta de minha vida continuará sem titubeações por essas escolhas, pelas quais

tenho feito apostas éticas, rigorosas e trabalhado incansavelmente, sem que a vida seja, por

isso, fardo, ou culpa. Mas seguirá, como risco que me desafiará ainda por muito tempo, todo

que eu puder, enquanto houver um único que não saiba ler e escrever como eu.

Aos brasileiros que não me sabendo aqui neste momento, nem sabendo ler e escrever,

possibilitam e são razão suficiente para que eu não os abandone, mas siga em luta pelo direito

à educação para todos.

Page 8: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

[...] os direitos não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer. Nascem quando o aumento do poder do homem sobre o homem — que acompanha inevitavelmente o

progresso técnico, isto é, o progresso da capacidade do homem de dominar a natureza e os outros homens — ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo, ou permite novos remédios para as suas

indigências: [..]. (BOBBIO, 1992, p. 6).

A realidade não passa de uma tradução redutora da enormidade do mundo, e o louco é aquele que não se adapta a essa linguagem. (MONTERO, 2004, p. 138-139).

[...] Sempre recusei os fatalismos. Prefiro a rebeldia que me confirma como gente e que jamais deixou de provar que o ser humano é maior do que os mecanicismos que o minimizam. (PAULO FREIRE,

1996, p. 129-130).

Porque os seres humanos não apenas são menores que seus sonhos [...]. A imaginação sem freio é como um raio no meio da noite: abrasa mas ilumina o mundo. Enquanto dura essa faísca

deslumbrante, tentamos vislumbrar a totalidade [...]. Na pequena noite da vida humana, a louca da casa acende as velas. (MONTERO, 2004, p. 141).

Page 9: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

RREESSUUMMOO

Os programas e projetos na área da educação de jovens e adultos, na contemporaneidade, vêm revelando formas de compreender e apreender sentidos e necessidades dos variados públicos que os buscam, intentando fazer cumprir, mais do que a perspectiva do aprender por toda a vida, o direito à educação sistematicamente negado a tantos na população brasileira. Com essa premissa inicial, a pesquisa escavou os modos como as propostas de atendimento de seis entidades — públicas, não-governamentais, de movimento social e do Sistema S — têm enunciado as formulações na área e realizado práticas, visando a compreendê-las na história política nacional e internacional da educação de jovens e adultos, e as conexões, sentidos, nexos, articulações e imbricamentos que se produzem entre elas, para além dos limites das entidades — no complexo tecido social. Movida pela perspectiva do direito, investiguei em busca de penetrar os diferentes níveis de realidade, assim possibilitando fazer emergir as produções subjacentes aos programas e projetos, com vista a cartografar a complexidade com que se fazem prática, evidenciando e visibilizando elementos constituintes e instituidores de suas concepções.

Palavras-chave: educação de jovens e adultos – direito à educação – concepções – alfabetização

AABBSSTTRRAACCTT

At present, programs and projects in the area of Youth and Adult Education have been unveiling different ways of understanding and apprehending the meanings and needs which emerge in the various groups who are in search of such educational proposals, less so with life-long education in perspective than to assert their right to education, a right that has systematically been denied to so many Brazilians. Based on this initial premise, this study has explored the different ways in which six organizations have formally stated their postulates as well as carried out their practical work in this area. Such organizations are characterized by being public, non-governmental, and pertaining to the Social Movement and the S System. The aim of the study is to comprehend such postulates and practices, in the light of the national and international youth and adult educational policies, as well as the interconnections, meanings, nexus, articulations and overlappings which are produced within and beyond their dominions, more precisely inside the complex social network. Impelled by a view centered on rights, this investigation has attempted to gain access to the different layers of reality, so as to make it possible for the productions underlying those programs and projects to emerge, for the sake of mapping out the complexity of that practice, thus identifying and giving visibility to the elements which are constitutive and institutive of their conceptions.

Key-words: Youth and Adult Education - right to education – conceptions - literacy

Page 10: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

SSUUMMÁÁRRIIOO

1. INTRODUÇÃO: A ARQUEOLOGIA DA PESQUISA.....................................................................11

2. COMO CIGANA: O PERCURSO METODOLÓGICO....................................................................25

2.1 Questões da pesquisa................................................................................................................37

2.2 De critérios, opções, escolhas...................................................................................................40

3. CAROS CONCEITOS: DIREITO À EDUCAÇÃO COMO BASE DA DEMOCRACIA........................46

3.1 Premissas iniciais para pensar o conceito de direito à educação: contribuições de educadores brasileiros.................................................................................................................................46

3.2 Perspectiva histórica do direito e imbricações com a perspectiva democrática.......................53

3.3 Direito à educação na escola brasileira....................................................................................70

4. TRABALHOS DE HÉRCULES: OS SENTIDOS DO DIREITO À EDUCAÇÃO NAS CONFERÊNCIAS E ACORDOS INTERNACIONAIS.................................................................................................76

4.1 Onde tudo começou: Dinamarca, Elsinore, 1949.....................................................................77

4.2 II Conferência Internacional de Educação de Adultos — Montréal, Canadá, 21 a 31 de agosto de 1960.....................................................................................................................................78

4.3 III Conferência Internacional – Tóquio – 25 de julho a 7 de agosto 1972...............................82

4.4 Conferência Geral Unesco 19ª Reunião — Nairóbi, 26 a 30 de novembro de 1976...............86

4.5 IV Conferência Internacional sobre Educação de Adultos – Paris, 19-29 de março de 1985..88

4.6 Aportes internacionais protagonizados pela Unesco, revisitados até a metade da década de 1990..........................................................................................................................................91

4.7 V Conferência Internacional de Educação de Adultos – CONFINTEA – Hamburgo, Alemanha, julho 1997 — Aprendizagem de adultos, uma chave para o século XXI............105

4.8 Seminário Nacional de Educação de Pessoas Jovens e Adultas Pós-CONFINTEA..............128

4.9 O Marco de Ação de Dacar — reafirmando compromissos de 1990, reeditando o mito de Sísifo em 2000........................................................................................................................129

4.10 Projeto Principal de Educação para América Latina e Caribe 2002-2017.............................133

4.11 A presença da sociedade civil organizada – o CEAAL..........................................................137

4.12 A sociedade civil em rede — o Pronunciamento Latino-americano......................................138

4.13 Conferência de seguimento à CONFINTEA V: balanço seis anos pós-Hamburgo — Bangcoc, setembro 2003........................................................................................................................141

4.14 Grupo de alto nível de educação para todos — Declaração de Brasília.................................147

4.15 Algumas conquistas de Hércules............................................................................................147

5. O DIREITO À EDUCAÇÃO PARA TODOS NO BRASIL: CONQUISTAS HISTÓRICAS E PERSPECTIVAS NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS.......................................................149

5.1 Evocando o mito de Sísifo: direito formal e realidade social.................................................149

5.2 Tensões conceituais e sentido do direito à EJA.....................................................................160

5.3 O poder da sociedade na constituição do direito à educação de jovens e adultos..................165

5.4 EJA em tempos autoritários — onde o direito?.....................................................................170

Page 11: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

5.5 A luta pelo direito à educação na Constituição Cidadã..........................................................179

5.6 Direito à educação na década de 1990...................................................................................185

6. PROGRAMA DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS DA SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DO ESTADO DA BAHIA — DAS VIVÊNCIAS ÀS COMPREENSÕES................................................210

6.1 Constituintes e determinantes da concepção de EJA e de alfabetização expressos em discursos e em documentos....................................................................................................213

6.2 Concepção de EJA na rede estadual: artes de fazer...............................................................229

6.3 Emergências do mergulhador: compreensões vêm à tona.....................................................263

7. PROGRAMA DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS – PEJA: EM CENA, O PÚBLICO JOVEM....................................................................................................................................267

7.1 O útero político, social e teórico do Programa de Educação Juvenil – PEJ...........................269

7.2 Do útero à luz do dia: nascimento do PDT desfraldando a educação como bandeira............275

7.3 Constituintes e determinantes da concepção de EJA e de alfabetização expressos em discursos e em documentos do PEJ........................................................................................280

7.4 Revelações recentes do PEJ: artes de fazer a mudança de concepções..................................289

7.5 “Deixem os velhinhos morrerem em paz! Deixem os velhinhos morrerem em paz!” Resistir é preciso....................................................................................................................................310

8. PROGRAMA SESI EDUCAÇÃO DO TRABALHADOR — TRAVESSIAS...................................313

8.1 Programa SESI Educação do Trabalhador — concepções e direito para a classe-que-vive-do-trabalho...................................................................................................................................323

8.2 A rede SESI de educação e o projeto pedagógico..................................................................330

8.3 Constituintes e determinantes da concepção de EJA e de alfabetização expressos no Programa SESI Educação do Trabalhador..............................................................................................332

8.4 Apreensões e significados para o Programa Brasil Alfabetizado: novas formas de parceria?.................................................................................................................................340

8.5 Algumas reflexões sobre o cenário de EJA e a ação do SESI na esfera pública....................344

9. PROGRAMA DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS DO SESC: A PROPOSTA PEDAGÓGICA E O PROGRAMA SESC LER — A EXPERIÊNCIA “QUE NOS PASSA”....................................347

9.1 A proposta pedagógica da educação de jovens e adultos — concepções e direito para a classe-que-vive-do-trabalho..............................................................................................................349

9.2 A proposta pedagógica do Projeto SESC Ler — ação/concepção de alfabetização..............358

9.3 A experiência que me acontece: SESC Ler em parceria com o Programa Brasil Alfabetizado no interior do Piauí.................................................................................................................371

10. “O LATIFÚNDIO DO CONHECIMENTO SE TORNOU ROÇA COLETIVA” – EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E ALFABETIZAÇÃO NO MST................................................................381

10.1 A pesquisa nacional da educação na reforma agrária – PNERA: dados que se somam à compreensão da educação do campo.....................................................................................382

10.2 O movimento social fez 20 anos e atinge a maioridade em 2005..........................................386

10.3 Constituintes e determinantes da concepção de EJA e de alfabetização expressos na proposta pedagógica do MST para o trabalhador do campo.................................................................393

10.4 “Tirando a viseira”.................................................................................................................416

Page 12: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

11. PROGRAMA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA: BENEVOLÊNCIA DO ESTADO EMERGINDO NA ESFERA PÚBLICA?..................................................................................................................419

11.1 Constituintes e determinantes da concepção de EJA e de alfabetização expressos em documentos............................................................................................................................428

11.2 Concepção de EJA e de alfabetização no PAS......................................................................431

11.3 Algumas indicações para repensar a ação do PAS na esfera pública....................................445

12. TRAMANDO CONCEPÇÕES E SENTIDOS PARA REDIZER O DIREITO À EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS.............................................................................................................................444

12.1 Perspectivas internacionais do direito....................................................................................445

12.2 Parcerias e financiamentos.....................................................................................................447

12.3 Os fóruns — tecidos conjuntivos constituem redes de projetos.............................................449

12.4 Direito à educação...................................................................................................................451

12.5 Presença freireana...................................................................................................................453

12.6 Sucesso e continuidade na EJA...............................................................................................456

12.7 Concepções de formação continuada de professores..............................................................457

12.8 Sujeitos alunos — foco e identidades......................................................................................458

12.9 Concepções de alfabetização...................................................................................................460

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................................................462

ANEXO 1...............................................................................................................................................478

ANEXO 2...............................................................................................................................................479

ANEXO 3................................................................................................................................................480

Page 13: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

11

11.. IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO:: AA AARRQQUUEEOOLLOOGGIIAA DDAA PPEESSQQUUIISSAA

Recuperar parte da história da educação de jovens e adultos (EJA), buscando fazê-la

pela compreensão das negações e conquistas do direito, é trazer minha própria história como

protagonista, há 28 anos, da mesma luta.

Os recentes acontecimentos do mundo, antes insuspeitados, e que causam horror e

insegurança, abalam em grande parte nossas convicções na humanidade, e por isso mesmo

não podem estar fora das reflexões e de necessárias revisões aos sentidos que vêm sendo

produzidos, porque sem dúvida os acontecimentos que acirram intolerâncias e ódios colocam

em cheque mais do que os direitos sociais, se não a perspectiva mesma de direito humano,

valor tão caro ao tema que escolhi discutir. Cotidianamente, a própria condição de vida que as

opressões produzidas pelo sistema econômico mundial vêm determinando às populações se vê

atravessada pela possibilidade de novas ameaças, em tempos inimagináveis. O refazer da

história pelo direito à educação, desafia-nos, no que a “louca da casa”1 pode ser motivada,

para de novo imaginar que é possível acreditar na história como possibilidade, que reinvente o

direito à vida, com todas as diferenças, como iguais.

Quem somos, que lugar ocupamos na história, com que direito se pode sonhar e pensar

educação, pensar um mundo novo diante das fragilidades dos supostos poderosos e das

resistências inventivas que criam rupturas nos esquemas seguros desses poderosos, em reação,

talvez recusa, dos que se sabem vítimas e que não aceitam a morte, escolhida como modelo,

passivamente, nem que para isso muitas mortes devam ser perpetradas, incluindo e iniciando

pelas próprias? De que direito se falará daqui para diante: dos já interiorizados como idéia e

valor, dos que se (re)criam e cerceiam liberdades atestando legítima defesa, ou será preciso

confrontar o corpus teórico que se põe a nu diante de nós, testemunhas e co-protagonistas do

tempo presente?

A questão do direito envolve, inelutavelmente, a condição democrática, valor

assumido pelas sociedades contemporâneas em processos históricos de luta e conquista da

igualdade entre os seres humanos. Admitindo que é impossível pensar o direito sem pensar

democracia, alerto que, no entanto, esses conceitos serão tratados pelas imbricações que entre

eles se estabelecem no campo da educação de jovens e adultos, restringindo-se ao movimento

de buscar as raízes históricas do que se consagrou, na contemporaneidade como direito à

1 A louca da casa é a expressão de Santa Teresa de Jesus referindo-se à imaginação, recuperada por Rosa Montero In: A louca da casa. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

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educação, uma categoria de direitos de segunda geração, que comporta valores que me

constituíram e dos quais ainda não sei abrir mão.

Com base nesse fundamento, verifiquei que a educação de jovens e adultos ganhou

oficialmente, ao longo de pouco mais de meio século, novos sentidos e concepções,

produzidos no interior dos países, nas tensões sociais em tentativas de reafirmação de direitos

de maiorias vistas, na sociedade desigual, como minorias.

Historicamente a prática social (re)significava o campo de atuação, exigindo dos

pesquisadores outras formulações para compreender e apreender esses sentidos, no âmbito da

cultura de suas populações. Esses novos sentidos e concepções, acredito, estiveram sempre

formulados em função da oposição ter ou não ter direito, e quando se optou pelo direito, as

concepções formais deram conta de delimitar e restringir sua abrangência e magnitude.

Ora, os nomes são muitos e debaixo deles: educação popular, educação de base, educação de adultos, educação fundamental, educação comunitária, educação permanente, há coisas e intenções iguais, semelhantes e até opostas. Neste emaranhado estão escondidas idéias iguais com rótulos diferentes e idéias diferentes com rótulos iguais. Há projetos e sobretudo há propósitos, muitas vezes opostos, que se cobrem das mesmas falas e, com palavras que pela superfície parecem apontar para um mesmo horizonte, procuram envolver as mesmas pessoas, prometendo a elas mudanças nas suas vidas, ou em seus mundos. (BRANDÃO, 1984, p. 15).

Brandão revela-me, nesse trecho de conhecido artigo em que trata Da educação

fundamental ao fundamental na educação, a confusão dos nomes que não são inocentes, mas

trazem imbricados sentidos e significados de fortes marcas ideológicas, orientadoras dos

caminhos e das escolhas dos projetos educativos/educacionais. Porque com ele compartilho a

mesma preocupação, vivenciando também em minha prática essa confusão, assumo explicitar

uma concepção provisória sobre educação de jovens e adultos para, ao longo do estudo,

questioná-la e com ela dialogar à exaustão, com a finalidade de favorecer a compreensão de

inevitáveis mudanças de concepção na educação de jovens e adultos, historicamente, guiada

pela perspectiva do direito.

Essa confusão tem sido percebida por mim em vários momentos de formação

continuada de professores, quando se discutem as propostas, os projetos, as práticas.

Professores quase sempre formados para lidar com crianças acabam “caindo”, no âmbito dos

sistemas, em classes de jovens e adultos com pouco ou nenhum apoio ao que devem realizar.

Em outros espaços, educadores populares, plenos de verdades sob o prestígio da educação

popular, descrevem concepções pautadas em um tempo, em uma realidade social cujo

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movimento da história há muito alterou, sem que as enunciações o acompanhassem. Além

disso, observo um nível de discurso muitas vezes revelador de novas enunciações, mas em

franco descompasso com as práticas, eivadas de “escolarismo”, praticadas sem muito saber

porque fazê-las, defendendo rituais e procedimentos distantes de alguns princípios caros à

educação que se pensa como direito, como possibilidade de exercitar a igualdade entre

sujeitos diferentes, democraticamente. Pouco consigo reconhecer dos discursos de ambos nas

práticas que realizam. Tanto professores de redes públicas, quanto educadores populares, uns

e outros com diferenciados paradigmas, quase sem exceção denotam discursos e práticas que

mais se afastam, do que se aproximam, deixando-me com um amargo sabor de desesperança

pelo muito que ainda precisa ser feito, diante do tempo-espaço possível para fazê-lo, com

vista a alterar, de fato, as relações entre sujeitos aprendizes, entre eles e a sociedade, entre eles

e seu estar no mundo.

Na contemporaneidade, pois, a educação de jovens e adultos continuou adquirindo

novo sentido. Fruto das práticas que se vão fazendo nos espaços que educam nas sociedades,

este sentido se produz em escolas, em movimentos sociais, no trabalho, nas práticas

cotidianas. Para além da alfabetização, cada vez se afastou mais, nas políticas públicas, das

conquistas e reconhecimento do valor da educação como base ao desenvolvimento humano,

social e solidário. Mais que a alfabetização, o direito constitucional de ensino fundamental

para todos, sintetizou o mínimo a que se chegara, o de aprender a ler e a escrever com

autonomia e domínio suficientes para, em processo de aprendizado continuado, manter-se em

condições de acompanhar a velocidade e a contemporaneidade do desenvolvimento das

ciências, técnicas, tecnologia; das artes, expressões, linguagens, culturas; enfim, do que o

mundo, especialmente globalizado no tocante à difusão de informações, conferia à história.

Ao mesmo tempo, a complexidade do mundo contemporâneo exige um aprender

continuadamente, por toda a vida, ante os avanços do conhecimento e a permanente criação

de códigos, linguagens, símbolos e de sua recriação diária. Exige não só o domínio do código

da leitura e da escrita, mas exige também competência como leitor e escritor de seu próprio

texto, de sua história, de sua passagem pelo mundo. Exige reinventar os modos de sobreviver,

transformando o mundo.

As mudanças no mundo do trabalho produziram multidões de desempregados e a

oportunidade de emprego não existe mais para muitos, com e sem qualificação. Nesta

“desordem do progresso” (BUARQUE, 1992), ricos e pobres assustam e se assustam em todas

as partes do planeta, em países ricos e em países pobres. Crescem as intolerâncias e as

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discriminações que fertilizam o ódio por desconhecer o próximo como outro. Sua presença

obstrui e ameaça.

A experiência da sociedade civil tem ensinado algumas importantes lições,

especialmente aos poderes públicos devotos do valor do pensamento único, que esvazia de

sentido as resistências e os pensamentos divergentes. A forma de pensar hegemônica, somada

ao quadro de pobreza das maiorias e à perda de direitos historicamente conquistados (como é

o caso do trabalho), compõem os marcos com os quais se exige propor a educação de jovens e

adultos neste terceiro milênio.

Muitas municipalidades, sensíveis aos anseios das pessoas, têm dado respostas para a

educação de jovens e adultos e sabem que governam para todos, não devendo excluir

ninguém. Estas são, de fato, as experiências mais significativas, porque vêm construindo

saberes, lideranças e legitimidade política. Os profissionais participam da formulação

pedagógica e sua formação continuada segue sendo um outro processo de educação de jovens

e adultos.

Pós-Hamburgo, duas importantes vertentes consolidam a educação de jovens e

adultos: a primeira, a da escolarização, assegurando o direito à educação básica a todos os

sujeitos, independente da idade, e considerando a educação como direito humano

fundamental; a segunda, a da educação continuada, entendida pela exigência do aprender por

toda a vida, independente da educação formal e do nível de escolaridade, o que inclui ações

educativas de gênero, de etnia, de profissionalização, questões ambientais etc., assim como a

formação continuada de educadores, estes também jovens e adultos em processos de

aprendizagem. Como verdadeiro sentido da EJA, ressignificando os processos de

aprendizagem pelos quais os sujeitos se produzem e se humanizam, ao longo de toda a vida,

não mais se pode mantê-la restrita à questão da escolarização, ou da alfabetização, como foi

vista por largo tempo. Assim desenvolvida, a EJA legitima-se por meio de ordenações

jurídicas, de acordos, firmados e aprovados pelas instâncias de representação que conformam

as normas da ordem social.

Este é, sem dúvida, um dilema para o mundo contemporâneo que, mesmo em regimes

produtores de exclusão, obrigatoriamente carece do fortalecimento de uma concepção de

educação voltada para o regime de colaboração entre as esferas governamentais e não-

governamentais, em que, necessariamente, a sensação de agravamento da exclusão social

demanda do Estado políticas públicas eficazes na área social, principalmente voltadas para os

setores populacionais mais vulneráveis às transformações econômicas.

Page 17: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

15

O que tento compreender, como tese que defendo, é que as mudanças conceituais

estiveram ocorrendo, por um lado, pelas formas como o Estado, a serviço dos interesses

dominantes, regulou os alcances dessas concepções, traduzindo-as como direitos. Por outro

lado, como as compreensões dos sujeitos de direito / não-direito envolvidos com o campo da

prática, do fazer cotidiano, ressignificaram e transformaram esses conceitos, apropriando-se

deles segundo necessidades, usos, interesses, costumes. Nessa tensão, observei que caros

conceitos, valorizados pela questão ideológica que representaram, permaneceram

conservados, passando incólumes na defesa de suas formulações, mas não resistindo a

qualquer teste da prática, da experiência. E seguem assim formulados e apregoados, mas

encerrando sentidos distintos dos originalmente praticados.

Essas percepções me surgem com mais visibilidade quando eu, interessada em

conhecer como se produzem os saberes e o conhecimento pela população, especialmente

tematizado, ao longo dos anos, na educação de jovens e adultos, e a forma como os poderes

“negociam” esse direito para os excluídos dele, participei, por quatro anos, da vivência de um

projeto de pesquisa-ação em educação ambiental, em um bairro do município de Nova Iguaçu

(Rancho Fundo, área da Baixada Fluminense, no Estado do Rio de Janeiro), no intuito de

acompanhar moradores na organização de um espaço de luta capaz de mudar/melhorar as

condições de vida no lugar. Essa organização tomou como questão primeira o lixo mas, com o

tempo, muitas outras se foram pondo à frente das pessoas e — o que é mais relevante —

muitos saberes e compreensões da realidade se produziram, tanto para mim, quanto para os

moradores diretamente envolvidos nesse processo de organização2.

A ação política dos movimentos sociais, tão cara na década de 1970, não era — e nem

podia ser — mais a mesma. Os embates e o enfrentamento visíveis como estratégias de luta

do projeto original eram superados pelas produções táticas (CERTEAU, 1994) dos sujeitos no

cotidiano (LÉFÈBVRE, 1991), criando maneiras de fazer próprias, autônomas, não

padronizadas, criativas, em que as subjetividades se revelavam inteiras, não apenas pela

lógica da razão, mas admitindo outras lógicas que a mim, enquanto pesquisadora, cabia

compreender e desvelar, para acompanhar o movimento que repensava a melhoria da vida

cotidiana, ao mesmo tempo em que transformava os sujeitos, em interação. O emaranhado de

saberes, que se punham à minha frente, enredavam-me em uma trama complexa, em que a

linearidade não podia ser o fio de compreensão, pois o desafio estava, justamente, em seguir 2 Esta pesquisa encontra-se publicada In: CECCON, Claudius, PAIVA, Jane (coord.). Bem pra lá do fim do mundo. Histórias de uma experiência em Rancho Fundo, Baixada Fluminense, Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: CECIP, União Européia, CCFD, 2000.

Page 18: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

16

os pontos e nós que urdiam os saberes, poderes e conflitos que essas novas e diferentes

práticas mostravam.

Vi emergirem, ali, sujeitos políticos capazes de fazer valer seus direitos de cidadania e

de, tomando a palavra, fazê-la sua e permitir a pronúncia de seu mundo, à semelhança do que

me ensina Paulo Freire, tanto pela forma como a linguagem passou a mediar suas relações

com o meio social em que vivem, quanto com a classe política dirigente, pelo modo como se

apropriaram da argumentação, da lógica e como, pelo diálogo, estabeleceram relações

dialéticas com a realidade. Linguagem que se fez ouvir não apenas nas relações imediatas,

mas se tornou permanente com a escritura e a publicação de um jornal, no qual seu poder

ampliou-se tanto quanto a abrangência que este alcançou. Linguagem do vídeo, que registrou

suas intervenções e roteirizou suas histórias, de diversas maneiras, fazendo-os, uma vez mais,

atores sociais cuja imagem e papel se difundiam pelos diferentes pontos de exibição dos

vídeos. Linguagem que encontrou outros interlocutores, postos também nos espaços

acadêmicos, em universidades, como a USP, por exemplo, sempre que puderam participar,

levando sua experiência e discutindo os caminhos metodológicos que construíram ao longo do

tempo em que se envolveram com o trabalho.

Histórias, muitas histórias e muitas questões instigantes para desvendar. A das

mulheres, presença maciça no trabalho, marcando com seus modos próprios a luta com o

poder público, eminentemente masculino, e produzindo saberes na rede de relações novas e

desafiadoras a que se lançavam.

Acompanhei, com respeito e olhar atento de investigadora, cada movimento que o

trabalho foi produzindo. O movimento social instaurado, entendido como ação coletiva

(RIBEIRO, 1992) de quem faz história, porque se sabe sujeito de mudança da realidade, foi

redefinindo a compreensão e o saber disponíveis quanto aos movimentos sociais. Ao mesmo

tempo, suscitava-me, a cada dia, novas questões, que permitiram ir caminhando no sentido da

produção de um conhecimento mais ampliado sobre a realidade de jovens e adultos que,

intervindo no meio ambiente social, se educavam na luta, (re)construindo novos sentidos para

o que é educar.

O movimento gesta uma importante dimensão educativa. Aceitar que o processo de

conhecimento é uma produção social e coletiva, sem desprezar a indispensável participação

do indivíduo, é romper com muito da lógica de que a aprendizagem é resultado de

"transmissão de conhecimentos" e de que o lugar de fazer isto é a escola. Mesmo sabendo, na

prática, que esse saber da escola, quando se deu, não mudou as condições de vida, a

Page 19: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

17

representação que as pessoas trazem da escola é fortemente impregnada dessa fantasia. E

porque entre eles a escolaridade não configurava o fundamento de seu saber, nem sempre os

protagonistas do movimento percebiam a importância que esse outro saber, tecido na luta, tem

como arma e poder para transformar a dura realidade em que vivem. Entender-se como parte

de um coletivo que produz, em conjunto, um conhecimento; que, como parte desse coletivo,

cabe a cada um contribuir sempre para o seguimento desse processo; que o conhecimento não

é produzido apenas nos limites daquele grupo, mas em todos os espaços sociais é tarefa

grandiosa, de permanente vigilância. A dicotomização do grupo com o mundo, e deste com o

grupo, não dá conta de entrever a rede de relações de aprendizagem a que cada um

participante esteve inextricavelmente ligado. E mais, que não era necessário romper ou

renunciar a qualquer dessas relações para que novas produções de conhecimento tivessem

lugar. Pelo contrário, são:

[...] relações que se desenvolvem na participação e a descoberta dos espaços públicos (que) recriam situações que ensinam muito, porque desvelam situações de desigualdade, criam desafios nesse movimento de apropriação do público. [...] A consciência da relação desigual é o primeiro momento que pode explicitar uma nova necessidade. (SPOSITO, 1993, p. 375).

A luta social ensina e o processo de apropriação do conhecimento é (re)significado, na

luta. Novos conteúdos dão-se a conhecer. Ao se aliarem, "os que não sabem" — diante do

saber técnico da autoridade — descobrem-se como iguais no "não saber", e acabam por

desvelar o saber que têm, mas que é negado pela escola e pela sociedade. O saber, produzido

socialmente, de modo geral só significa porque expressa um conjunto de necessidades

históricas, determinadas pelas relações econômicas. O movimento, enquanto luta política que

interferia nas condições de vida da população de Rancho Fundo, criava um outro significado

para o saber: o que revela o caráter não econômico dessas necessidades, porque construído de

modo a permitir a satisfação social, e que acaba por preencher as necessidades de um claro

sentido político.

Muitas outras questões surgiram. Dentre elas, a que aproximou, inevitavelmente, os

movimentos sociais e o saber neles produzido com a área da educação de jovens e adultos, até

então muito restrita à questão da escolarização. Com isto, iniciei um processo de reflexão para

tentar compreender de que forma, tanto no Brasil, quanto na América Latina, foram-se

constituindo os movimentos de educação de jovens e adultos. De que forma uns e outros se

aproximavam, historicamente, e que dados da realidade determinavam essa necessária

aproximação. De tal modo esta questão agigantou-se em minha busca de pesquisadora, que

Page 20: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

18

pensei ser indispensável formulá-la como uma hipótese de trabalho a ser verificada, capaz de,

enquanto possibilidade, anunciar a ampliação das concepções com que até então lidara sobre

o que se entende por educação de jovens e adultos, no Brasil de hoje.

Brandão (1984, p. 8) já levantava esta questão, buscando perceber o movimento que as

práticas educativas com adultos anunciavam, especialmente as de educação popular, em

relação às direções políticas que se encaminhavam.

Houve um tempo em que sobre a educação popular julgávamos possuir coletivamente um repertório sólido de conceitos, métodos e técnicas profeticamente renovadores de tudo o que houve e se fez antes. Hoje sabemos, também coletivamente, que esta, como tantas outras práticas especiais de trabalho político, possui múltiplas faces, de que as mais estáveis e sistematizadas, como a própria alfabetização, são apenas uma modalidade e, nem sempre, a mais importante. Da década dos anos 60 para cá envelhecemos palavras, como conscientização e criamos outras, como participação. Símbolos sonoros de efeito poderoso que, apenas instrumentos de trabalho no momento da gênese, ameaçam sempre tornar-se o mito da prática, ou uma espécie de senha que, aos que sabem pronunciá-la, sugerem poder abrir todas as portas.

Alerta-nos sobre o risco da crença na solidez dos conceitos, e na mitificação das

palavras, que não se cristalizam, e por isso mesmo se redizem, e no meu entender atualizam

esses conceitos.

Desde o pós-guerra a educação de adultos veio sendo marcada por significados e

compreensões diversas, em função dos inúmeros movimentos realizados junto aos setores

populares, tanto originados na Igreja Católica, quanto por governos de diferentes matizes,

quanto por entidades representativas dos interesses de empregadores e de grupos da sociedade

civil, organizando movimentos e campanhas. O caráter desenvolvimentista, marcadamente

posto na condição de homem-trabalhador-força-de-trabalho, teve papel fundamental na

história da educação de adultos e na conceituação que o termo assumiu entre nós.

Desse caráter são representantes o Sistema S na década de 1940 (SESI, SESC, SENAI,

SENAC; bem mais tarde também o SENAR, em 1991), a Campanha Nacional de Erradicação

do Analfabetismo, a Cruzada Nacional de Educação, a Campanha Nacional de Educação de

Adultos (1947) e o Movimento de Educação de Base (1961), a Fundação Movimento

Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) criada em 1967 e com início das atividades em 1970,

todos contribuindo, ainda que com intensas contradições, para a formulação do conceito e a

delimitação do campo de conhecimento.

Page 21: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

19

Nos anos 1970, com o advento da Lei nº. 5692 em 1971, da Educação Nacional, o

ensino supletivo passa, paralelamente ao MOBRAL, a configurar no interior dos sistemas de

ensino, uma modalidade compensatória de educação, firmemente ancorada nos valores da

teoria do capital humano, de caráter desenvolvimentista, que a ditadura militar assumiu para

tirar o país do atraso, mas que passava ao largo da perspectiva do direito, principalmente

porque aqueles não eram tempos de respeito aos direitos sociais, nem políticos, nem humanos:

a face mais evidente desse tempo de negação de direitos se expunha pela tortura e atrocidades

cometidas nos porões da ditadura militar.

Destaque-se que, no caso do MOBRAL, este constituiu a entidade formuladora e

executora das políticas federais na área que por mais tempo esteve estruturada para essa

finalidade (admitida sua sucedânea Fundação Nacional para Educação de Jovens e Adultos –

Fundação EDUCAR, extinta em 1990), e para ela foram destinadas fontes rubricadas para

financiamento e desenvolvimento das ações. Paradoxalmente, foi apenas durante a ditadura

militar que a área viveu definição governamental clara e aporte de recursos significativos,

desvinculados das variações orçamentárias que tanto ameaçam programas e projetos, gozando

a Fundação de expressiva autonomia, inclusive quanto a plano de carreiras e cargos e salários.

Mas até aí a questão do analfabetismo era tratada pelas políticas como problema do

sujeito analfabeto, a ser resolvido nesse âmbito. Fixada uma década para a “erradicação do

mal”, ao seu final os resultados eram desanimadores. Se por um lado alguns pontos

percentuais se reduziam nas estatísticas oficiais, por outro, o contingente absoluto

demonstrava como o sistema público de ensino era insuficiente em número, em propostas, em

qualidade para absorver todos os que deveriam ser escolarizados na “época própria”, aliado ao

fato de que o agravamento das condições estruturais e conjunturais do país favorecia o

aumento quantitativo desses excluídos de direitos. Entretanto, esse aspecto não vinha sendo

considerado para a compreensão da complexidade do fenômeno do analfabetismo, adotando-

se a idéia simplificadora de que o problema se encontra no próprio analfabeto. Esta idéia

ainda hoje é corrente, pregnante em educadores e em muitos dirigentes, ajudando a

compreender a lógica de que qualquer investimento que aí se faça é inócuo.

O campo da educação de adultos já então abrangia não apenas a idéia da alfabetização,

mas incorporava a de educação permanente, pelas exigências da chegada da industrialização

tardia em países pobres, do mesmo modo que incorporava a idéia de qualificação profissional,

para atender às novas demandas do setor produtivo.

Page 22: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

20

Mais recentemente, os caminhos de democratização no país vieram exigindo a

condição de cidadania para todos, e não apenas para alguns e, dessa feita, a educação de

adultos passa a tratar de questões relativas a direitos de cidadania, como tarefa eminentemente

educativa, ao lado da consciência das exclusões — por exemplo, de etnia e gênero, que se

vinham reproduzindo historicamente no país, mitificadas pelo ideário da democracia racial.

Essa perspectiva se adensa na década de 1980, pelas lutas em prol do Estado de

direito, articuladas e estimuladas em formas de organizações sociais que surgiam em resposta

à repressão empreendida pela ditadura militar. Metas primeiras dessas organizações se

coroam com a Constituinte e com a mobilização de inúmeros fóruns da sociedade3,

propositores de temas e princípios para incorporação na nova Carta.

A Constituição de 1988 vem contribuir para a legitimação dessas tensões históricas,

garantindo no texto da lei a educação para todos como direito, novamente, e as Conferências

Internacionais e os acordos firmados na década de 1990, reafirmam o papel da educação

continuadamente nas políticas de todas as áreas, embora esse entendimento e a garantia

constitucional não sejam suficientes para mudar as práticas.

Ao mesmo tempo em que esses outros conteúdos adubavam esse campo, implicava

pensar com que lógicas deveria conhecê-los: se com aquelas que os pensavam como

conhecimento objetivo e, portanto, absoluto e eterno, do “homem desencarnado”, ou se

concebido à semelhança do que propõe Najmanovich (1995, p. 46), como objetivado por uma

cultura em contextos sociais específicos. O que significa dizer: com que pressupostos

(teórico-)metodológicos punha-me a compreender a sua presença e o seu significado?

Formulada nesse plano político, já não se pensa mais a educação restrita aos

instrumentos do saber ler e escrever, imprescindíveis, mas insuficientes para dar conta da

complexidade do mundo contemporâneo. As outras dimensões que adentram a área da

educação de jovens e adultos alargam seu espectro para a idéia de educação continuada, e a

retomada de um novo sentido para o que se chamara de educação permanente. Uma intricada

rede de relações, de conhecimentos, de saberes, de atores sociais, de sujeitos que conhecem e

3 Um dos Fóruns mais significativos dessa época foi o Fórum em Defesa da Escola Pública, constituído em 1987, por entidades científicas, acadêmicas, profissionais, sindicais, estudantis e movimentos populares de âmbito nacional, para atuar na defesa intransigente da universalização da educação pública, gratuita, laica, com qualidade social, em todos os níveis. Inicialmente organizado para atuar na Constituinte, foi responsável pelas principais conquistas que os setores sociais, comprometidos com essa concepção de educação, conseguiram inserir na Constituição Federal de 1988, na LDB e no PNE. Ao longo de 17 anos de existência, o Fórum e as entidades que dele fazem parte assumiram, em inúmeras situações e ocasiões, o papel de espaço crítico e combativo em relação às políticas de regulação e gestão desenvolvidas.

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21

se dão a conhecer, se tece no cotidiano das populações, em âmbito local, alterando e exigindo

o debruçamento dos que pensam os destinos do mundo na esfera global sobre as relações que

uns e outros estabelecem, mesmo quando distanciados pelo tempo e pelo espaço. Não mais a

dicotomia e a dualidade que se pensava capazes de, relacionadas, dar conta da completude do

conhecimento. Pensar o mundo pela perspectiva do conhecimento em sua incompletude, pela

contribuição do pensamento complexo, que não luta contra a incompletude, mas contra a

mutilação (MORIN, 1998, p. 176). Aí, certamente, inclui-se a educação, pelas formas

complexas como necessariamente se expressa, o que exige repensar os paradigmas que até

então nortearam nossos modos de ler a realidade. Para isso, Morin (1998, p. 176-177) afirma

ser necessário desfazer o primeiro mal-entendido, que:

[...] consiste em conceber a complexidade como receita, como resposta, em vez de considerá-la como desafio e como uma motivação para pensar. [...] nesse sentido, é evidente que a ambição da complexidade é prestar contas das articulações despedaçadas pelos cortes entre disciplinas, entre categorias cognitivas e entre tipos de conhecimento. De fato, a aspiração à complexidade tende para o conhecimento multidimensional. Ela não quer dar todas as informações sobre um fenômeno estudado, mas respeitar suas diversas dimensões.

A experiência de Rancho Fundo foi provocadora de um processo de reflexão que

assumiu em mim a disposição para enfrentar os caminhos de desenvolvimento dessa pesquisa.

Emblemática, trouxe-a para o texto para melhor situar esses caminhos e fundamentar a tese,

alimentada pelo compromisso político que tenho mantido com a EJA, nas diversas esferas de

minha atuação. No entanto, a experiência não limita, nela, a riqueza das ações na área, nem

esgota meu rol de questionamentos.

Rancho Fundo mostrou ser um processo educativo de ação sistemática de intervenção

na realidade. Aproxima-se da atuação pedagógica — intervenção intencional — agindo,

também, de modo sistemático. Os saberes que a experiência foi produzindo nas tessituras em

rede que os sujeitos urdiram — para meu uso e da própria população — eram inequívocos em

me afirmar que ali havia um claro — e renovado — processo de educação de adultos e de

jovens, reconceptualizado. E que a mim, cabia pensá-lo complexamente, compreendê-lo e

(re)significá-lo.

Esta compreensão alargada dos processos de educação de jovens e adultos, no entanto,

nem sempre se revela de modo a assumi-la como conteúdo dessa educação — o educar-se na

luta —, nem também aparece como demanda expressiva nos movimentos por escola para

jovens e adultos, nem para trabalhadores. Sposito (1993, p. 135) estudando a luta social pela

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22

escola pública, na periferia de São Paulo, ilustra como a reivindicação por educação se

organizou, pela população, entre 1970 e 1985, apontando que a pesquisa não confirmava a

hipótese de que essas lutas eram pela qualidade do serviço oferecido, mas sim pelo acesso.

Expressas em jornais da época, as reivindicações se referem à expansão da rede em 40%

delas, e destas, a luta pelo acesso ao ensino de primeiro grau4 chega a 52% dos

encaminhamentos. Ampliação da pré-escola e do segundo grau vêm em seguida com 17% e

19% respectivamente do total de demandas de expansão; e 40% das reivindicações pela

expansão da rede referem-se à conquista de novos direitos, tanto pela antecipação do

atendimento, quanto pelo prolongamento da escolaridade, ou pelo direito à escolaridade para

adultos. Sobre esses dados, Sposito assinala que:

[...] em todo o período a luta mais inovadora sob a ótica da intervenção do Estado em outras modalidades de ensino consiste na criação de unidades de ensino supletivo de primeiro e segundo graus. Não obstante inexista até o momento uma clara definição sobre a educação de adultos no país, a conquista do ensino supletivo público em alguns estados, como São Paulo, parece ser irreversível, ao menos, enquanto direito de acesso aos cursos. Resta, no entanto, para os grupos populares o desafio de conquistar, de fato, uma prática pedagógica e um processo de escolarização mais adequados às suas necessidades e condições de vida. (SPOSITO, 1993, p. 138).

Como se observa, a expansão do direito ocupa apenas 40% das demandas, e não

exclusivamente para a educação de jovens e adultos, mas vem acompanhada da pré-escola (a

antecipação do atendimento) e do prolongamento dos cursos (após o ensino de primeiro grau,

ou seja, o atual ensino médio), o que significa dizer que é, ainda, muito tímida, diante do

universo de sujeitos não-alfabetizados e pouco escolarizados, não-concluintes do ensino

fundamental oriundos principalmente das áreas pobres. O fato notável é que a conquista de

novos direitos passa a se incorporar como horizonte possível a setores antes socialmente

segregados, assim como, assinala Sposito, o acesso aos cursos não vem acompanhado de

práticas pedagógicas nem de processos de escolarização adequados aos sujeitos que os

acessam.

As observações empíricas têm mostrado que mesmo pais de pequena ou nenhuma

escolaridade reivindicam, primeiro, para seus filhos a condição de direito à educação, diversa

da deles próprios, e poucas vezes se incluem como credores desse direito. Quando a

perspectiva de direitos passa a constituir demanda, novas relações se estabelecem com o

poder público e o exercício da democracia passa a ser praticado nas intermináveis

4 Mantenho a expressão primeiro grau utilizada pela autora, pois esta era a denominação do ensino fundamental à época da pesquisa.

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negociações em defesa desses novos direitos. Que concepções os poderes assumem ao

responder as tensões criadas pelos movimentos? Que resposta os movimentos e os sujeitos

esperam receber?

A pesquisa, portanto, pretendeu desvelar a face atual da área da educação de jovens e

adultos, nos movimentos que experiências e práticas vêm realizando e na relação com as

proposições políticas que as instâncias oficiais têm assumido. Para esse desvelamento, estou

propondo escavações em torno de concepções, propondo um entendimento não de supressão

de outros entendimentos, mas uma incorporação de perspectivas que possam permitir

compreender mais amplamente o campo do fenômeno, percebidas na complexidade das

relações em que se dão, levando em conta que ou sempre estiveram presentes sem serem

consideradas, ou tenderam a aparecer diante das transformações que afetam as sociedades e as

culturas na economia globalizada.

Para fazê-lo, passei pela necessária organização e sistematização teórico-metodológica

de formulações e práticas de EJA, buscando estabelecer relações entre elas, como fios e nós

da rede de saberes que constituem.

Com vista à constituição de meu objeto, propus-me a lidar com “novos paradigmas

[que] questionam um conjunto de premissas e noções que orientaram até hoje a atividade

científica, dando lugar a reflexões filosóficas sobre a ação social e sobre a subjetividade” no

dizer de Schnitman (1996, p. 16), para quem a base dessas perspectivas se assenta na

“exploração que inclui em seu desenvolvimento a consideração do próprio processo de

conhecer, do sujeito cognitivo, da rede social na qual este conhecimento está distribuído”, ou

de outras produções teóricas que sem comportarem o arcabouço paradigmático, vêm

buscando contribuir para o repensar do que está posto. Dentre elas, as noções de pensamento

complexo, de sujeito, como proposto por Morin (2001) e de rede, como metáfora para o

processo de conhecimento, de que Schnitman (1996), Dabas e Najmanovich (1996) e Alves

(1998) se valem. Para isso, exigiu-se o esforço de uma construção metodológica coerente com

esse novo paradigma, que permitisse a mim e aos meus interlocutores trabalhar em um tempo

de criatividade, de restauração de elementos singulares e da abertura de novas

potencialidades, experimentando a vivência de que:

Sentir-se partícipes/autores de uma narrativa, da construção de relatos históricos, é uma das vias de que dispõem os indivíduos e os grupos humanos para tentar atuar como protagonistas de suas vidas, incluindo a reflexão de como emergimos como sujeitos, de como somos participantes de e participados pelos desenhos sociais. (SCHNITMAN, 1996, p. 17).

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Entendendo que a questão da educação de jovens e adultos inclui a perspectiva de

inclusão em sociedades democráticas, e que esta inclusão passa a se dar pela conquista de

direitos, tomei como matrizes conceituais direito e democracia, admitindo que são eles os

conceitos fundantes da ampliação da compreensão do que é a EJA, na contemporaneidade.

Meu objeto de pesquisa, à procura de novos “achados” entre as concepções de

educação de jovens e adultos, compõe um corpus em que os movimentos da sociedade

revelam-se pelas práticas dos últimos anos, alterando os sentidos que lhes são atribuídos

originalmente, quando formulados e retratados em documentos e em aparatos jurídicos.

Contrapondo formulações do cotidiano a textos legais, experimento compreender a educação

de jovens e adultos a partir de carecimento e necessidade social, essencialmente produzidos

na história, que vêm constituir o que se reconhece como direito em resposta a esses

carecimento e necessidade, fundamentais ao entendimento teórico, por ser o direito

freqüentemente negado e em poucos momentos respeitado, em relação a todos os cidadãos.

Portanto, o que apresento nesse texto, mais do que um trabalho acabado, traduz um

conjunto de reflexões de quem percorre um caminho de estudo teórico que ultrapassa os

conhecimentos já disponíveis para, crítica e criativamente, ampliá-los. A escritura, como obra

aberta, segundo Eco, à medida que se ascende no seu uso, estabelece novas significações,

tanto mudando seus sentidos, quanto seus sujeitos enunciadores.

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22.. CCOOMMOO CCIIGGAANNAA:: OO PPEERRCCUURRSSOO MMEETTOODDOOLLÓÓGGIICCOO

[...] há cerca de quarenta anos, estamos diante de um mundo singularmente novo. E temos de nos situar neste mundo, do qual não passamos, evidentemente, de uma minúscula parte. [...] essa parte se encontra num todo gigantesco, o todo se encontra, ao mesmo tempo, no interior dessas parcelas ínfimas que nós somos, [...] Somos os filhos do cosmos e, ao mesmo tempo, como disse Jacques Monod, nele vivemos como “ciganos”. Somos diferentes e distantes dele devido a nossa cultura, nosso espírito, nosso pensamento, nossa consciência, e é esse distanciamento que nos permite tentar conhecê-lo e interrogá-lo. (MORIN, 2001, p. 27).

Tomar a fala de Morin como epígrafe deste capítulo remete-me ao sentimento errante

de que muitos de nós somos tomados, quando precisamos definir e fazer escolhas teórico-

metodológicas. Vagueando como ciganos, intentamos caminhos, aproximamo-nos e

distanciamo-nos do todo e da parte e do objeto, parecendo sempre perguntar, como Cecília

Meireles (1994, p. 335), no poema Noite:

Tão perto! Tão longe! Por onde é o deserto? [...] Somos um ou dois? Às vezes, nenhum. E em seguida, tantos! A vida transborda por todos os cantos.

Com essas incertezas, que me acompanharam em todo o percurso, fui traçando um

caminho para dar conta de responder as questões que há alguns anos vêm ocupando espaços e

tempos diversos das minhas reflexões e práticas profissionais no campo da EJA. Esse

percurso, que por exigência do curso e da titulação supõe-se ser solitário, produzido por um

sujeito como requisito ao doutoramento, no entanto, mostrou-se, no meu caso — por não ter

me afastado de minhas atividades acadêmicas na universidade, nem de atividades

profissionais conformadas longamente em minha trajetória — como um percurso solidário,

trilhado — sempre como cigana — com muitos outros sujeitos com os quais compartilhei

minhas produções, modos de compreender, e com os quais fui trançando e tecendo fios e

enredando saberes, num espaço-tempo social inimaginável. Difícil, ao redigir esse capítulo,

ocultar a participação direta de meus alunos, nas diversas disciplinas que permitiram múltiplas

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26

interlocuções e intercâmbios5; de minhas bolsistas (no feminino mesmo, porque sempre

mulheres), atentas, aprendizes/tecelãs de novas tramas/saberes; de autores — dos livros

técnicos aos livros de literatura dos quais jamais ousei afastar-me; de pares escolhidos; de

outros não-escolhidos, mas que se fizeram presentes sem que eu demandasse ou esperasse,

tudo isso constituindo, inequivocamente, um saber coletivo, que a mim, porque guiada por um

olho de ver6,7 para além da experiência física, surpreendeu e possibilitou sistematizar, junto a

outros sujeitos discursivos escolhidos, as idéias que compõem esse trabalho. Posso afirmar

que foi vivendo as experiências8 e a práxis que a idéia de rede e de complexidade, aos poucos,

fez-se viva como metodologia de pesquisa, assumindo o lugar central para compor o método

de investigação utilizado.

Minha investigação orientou-se, teoricamente, pelas postulações de autores que me

ajudaram a perceber, multirreferencialmente, o tempo histórico em que as experiências se

dão/se deram, de modo a que eu, ao investigar, pudesse “ejercer una función historizante para

construir una narración posible y coherente que permita producir sentido en nuestro navegar

histórico” (NAJMANOVICH, 1994, p. 37). São todas elas fruto de trabalhos e reflexões dos

últimos anos e de meu envolvimento e encontro com outros interlocutores em reuniões

científicas, conferências nacionais e internacionais no âmbito das políticas que envolvem

práticas educativas com jovens e adultos, tanto as “escolarizadas” como as que ocorrem em

relação a outros direitos ainda não democratizados, negados à maioria da população.

5 Inter-câmbio, apreendendo o sentido de Najmanovich (1994, p. 66), de trocas e mudanças entre sujeitos, efetivamente, que também mudam modos de pensar e de ver a realidade. 6 Soares (2005, p. 173), discutindo a idéia do que é ver, e não ver, conclui que “se o olhar transporta para a imagem daquilo que é olhado um pouco da pessoa que olha, se o olhar transporta para a imagem a relação entre o que vê e o que é visto, deduz-se que ver é relacionar-se”. E continua: “Isso é surpreendente para quem pensa que o ato de olhar serviria como uma metáfora perfeita para designar a suposta objetividade do vínculo entre o sujeito da ciência e seu objeto. Pelo contrário, não há pureza nem objetividade no olhar. Nossa visão das coisas e das pessoas é carregada de expectativas e sentimentos, valores e crenças, compromissos e culpas, desejos e frustrações. Acima de tudo, é necessário reter na memória esse ponto: ver é relacionar-se”. 7 Sacks (1995, p. 129), do mesmo modo, pela neurologia, discutindo o caso de um paciente em “Ver e não ver”, afirma: “Quando abrimos nossos olhos todas as manhãs, damos de cara com um mundo que passamos a vida aprendendo a ver. O mundo não nos é dado: construímos nosso mundo através da experiência, classificação, memória e reconhecimento incessantes”. 8 Retomo como conceito central da produção de conhecimento a recomendação de Larrosa (1999, p. 20-28) sobre experiência e o saber de experiência — “é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” —, pelo alerta que faz de que, por vivermos em uma sociedade de informações, deixamos de viver as experiências, supondo que informações podem substituí-las. Do mesmo modo, alerta que a experiência é cada vez mais rara por falta de tempo, pela velocidade e a obsessão pela novidade que caracteriza o mundo moderno, assim como pelo excesso de trabalho e pelo excesso de opinião, que não é conhecimento, tudo isso impedindo a conexão significativa entre os acontecimentos. Evoca a reintegração dessa forma de conhecer em nossas vidas, pelo fato de a experiência produzir diferença, heterogeneidade e pluralidade; por ser irrepetível, e uma dimensão de incerteza, que não pode ser reduzida.

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Historicamente, a educação de jovens e adultos vem assumindo concepções e práticas

bastante diferenciadas. Da visão ainda muito corrente de que ela se faz para recuperar o tempo

perdido daqueles que não aprenderam a ler e a escrever; passando pelo resgate da dívida

social; até chegar à concepção de direito à educação para todos, da presente década, e do

aprender por toda a vida, as enunciações variaram, deixando, no entanto, no imaginário social,

a sua marca mais forte, ligada à volta à escola, para fazer, no tempo presente, o que não foi

feito no tempo da infância.

Essas diferentes concepções pelas quais passou a área foram produzidas em contextos

históricos e culturais9 que favoreceram seu alargamento ou sua variação, mais ou menos

tensionados pelas forças sociais que se colocavam em jogo. Ao mesmo tempo, revelavam

enunciações que, nem sempre, caminharam pari passu com as práticas e com as necessidades

dos jovens e adultos envolvidos, nem com o sentido de que a oferta de EJA deve-se fazer

como direito, em sociedades democráticas, e muito menos com a idéia projetada a um futuro

próximo do aprender por toda a vida.

O objeto da pesquisa seguiu um percurso inicial bastante ambicioso, mas considerado

exigentemente necessário, porque se propunha a estudar projetos e práticas, confrontando-os

entre si e com as formulações políticas e teóricas na área, visando à compreensão e à

apreensão das concepções da educação de jovens e adultos, na vertente escolarizada, ao

tempo em que se enunciam pela perspectiva, ou não, de direito de todos à educação. Mas o

diálogo com meu orientador e com a banca de qualificação, intenso principalmente neste item,

mostrou-me — e acabou por convencer-me — da necessidade de um recorte, do mesmo modo

representativo das diferentes experiências e contornos que a área vem assumindo, sem

abranger o espectro todo que inicialmente eu formulara.

Voltando outra vez como cigana aos projetos, vivenciei uma nova etapa exploratória,

com a finalidade de, sem perder os critérios definidores daqueles que deveriam constituir meu

objeto, recortar a amostra com a qual eu, finalmente, trabalharia. Para isso, intensifiquei o

olhar sobre esses critérios, buscando ver em relação, no dizer de Soares (2005, p. 173),

garantindo relevância ao recorte tomado como objeto de estudo e compreensão da realidade,

9 Estou tomando a concepção de cultura segundo Freire, por meio da qual influencia Bosi (1992, p. 319), ao expressá-la como conceito antropológico: “conjunto de modos de ser, viver, pensar e falar de uma dada formação social”. O caráter difuso dessa cultura, espraiada em lugares, tempos e modos que não os da vida acadêmica, mescla-a intimamente com a vida psicológica e social do povo (BOSI, 1992, p. 320), e é com esta vida, cujos símbolos e bens nem sempre são objeto de análise ou de interpretação sistemática, mas sim vividos e pensados esporadicamente e não tematizados em abstrato, que Paulo Freire identifica seu modo de pensar a educação e de propor a metodologia que possibilita o aprendizado dos sujeitos jovens e adultos.

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recorte esse que pudesse estabelecer algumas enunciações conceituais sobre o campo, cujo

conhecimento produzido estivesse também orientado para a surpresa e a partilha

(NICOLESCU, 2003, p. 46), diferentemente do saber do conhecimento disciplinar, orientado

para o poder e a posse.

A surpresa, sempre bem-vinda e necessária, deveria levar-me, como conhecedora do

campo, a novos estranhamentos, capazes de objetivar a compreensão do mundo presente, no

movimento, na dinâmica gerada pela ação dos vários níveis de realidade10 ao mesmo tempo,

onde poderia apreender os objetos, realizando também movimentos que possibilitassem

percebê-los nas múltiplas relações em que ocorrem, e não referidos como fragmentos de um

mesmo e único nível de realidade (NICOLESCU, 2003, p. 44).

Para Nicolescu (2003, p. 46), ainda, o conhecimento produzido por meio dessa

abordagem — transdisciplinar —, gera a compreensão, enquanto a abordagem disciplinar

produz o saber; na primeira abordagem há um novo tipo de inteligência, que implica o

equilíbrio entre o mental, os sentimentos e o corpo, incluindo-se os valores, e atuando-se com

a lógica do terceiro incluído; na disciplinar a inteligência é analítica, a lógica é binária e há

exclusão dos valores. Pode-se dizer que, pela abordagem transdisciplinar, há uma evolução do

conhecimento, ou seja, o conhecimento permanece aberto para sempre.

A definição dos critérios de seleção dos projetos foi estabelecida, então, pela

necessidade de que a pesquisa tivesse abrangência nacional, face ao fato de que deveria tomar

referências mais amplas para empreender a aventura do estudo proposto — compreender as

concepções da EJA, por entender que concepções, porque históricas, têm temporalidade e

espacialidade, são multidimensionais, organizando-se segundo diversas ordens de fatores que

não permanecem duradouramente, mas são sensíveis aos movimentos dos sujeitos nas suas

ações de fazer e desfazer, pensar e transformar o mundo. Burke (1992, p. 24-25) discutindo a

perspectiva da história como um problema dos historiadores sociais contemporâneos, observa

10 Nicolescu (2003, p. 46-47) parte da idéia inicial de que Realidade (com R maiúsculo), é tudo aquilo que resiste às nossas experiências, representações, descrições, imagens ou formalizações matemáticas, porque o real, por definição, está oculto para sempre (aquilo que é). Por nível de Realidade, diz o autor, “deve-se entender um conjunto de sistemas invariante à ação de um certo número de leis gerais: por exemplo, as entidades quânticas subordinadas às leis quânticas, que divergem radicalmente das leis do mundo macrofísico. Isso quer dizer que dois níveis de realidade são diferentes se, ao passar de um para o outro, houver ruptura das leis e ruptura dos conceitos fundamentais (por exemplo, da causalidade)”. A visão transdisciplinar parte dos questionamentos de Edmund Husserl e de outros pesquisadores sobre os fundamentos da ciência, descobrindo a existência de diferentes níveis de percepção da Realidade pelo sujeito-observador, o que já fora afirmado por diferentes tradições e civilizações, mas baseada em dogmas religiosos ou em explorações do universo interior. Essa forma de visão propõe “considerar uma Realidade multidimensional, estruturada em múltiplos níveis, que substituiria a Realidade unidimensional, num único nível, do pensamento clássico”. (NICOLESCU, 2003, p. 48).

Page 31: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

29

o quanto difícil é descrever ou compreender a relação entre as estruturas do cotidiano e a

mudança, indicando que um foco de atenção deve estar posto no “processo de interação entre

acontecimentos importantes e as tendências por um lado, e as estruturas da vida cotidiana por

outro”. Este, portanto, consistiu em mais um importante alerta para o exercício empreendido

de captar as concepções de EJA, como me propus.

Os critérios, então, construídos, foram considerados isoladamente ou cruzados um

com outro, reforçando-se e/ou intensificando-se. São eles:

Abrangência nacional — independente da proposta/concepção, a prática está sendo

realizada em vários estados da federação, por um ou mais organismos, envolvendo

um largo número de sujeitos, o que quase sempre contraria as lógicas da EJA, de

pequenas experiências, localizadas.

Antiguidade e permanência da organização na rede pública — independente da

concepção, o fato de estar institucionalizada, ininterruptamente, como modalidade

de atendimento, no sistema de ensino.

Necessidade de oferecer resposta específica, considerando a realidade de uma dada

região/sujeitos — verificar a consistência de propostas que se orientaram pela ação

de EJA com formato próprio, considerando a especificidade de uma região.

A metodologia previu, assim, o estudo prévio das origens e sentidos que direito à

educação assume na história como fundamento para melhor apreender as proposições de

programas/projetos e suas formulações conceituais, assim como a compreensão de práticas

desenvolvidas, quando possível, pela voz do coordenador, do dirigente, do professor/educador

confrontando-as quanto ao pensar (dos especialistas que formulam) e o fazer cotidiano dos

sujeitos que coordenam, dirigem, realizam essas propostas. Porque propostas não definem,

necessariamente, seus fazeres, suas práticas, busquei a perspectiva metodológica da

experiência, em maior aproximação com os quefazeres de algumas delas, no intuito de poder

compreender as apreensões dos sujeitos que as desenvolvem, na expressão de suas

concepções, nos contextos socioculturais em que se dão.

Desde o início orientei a construção metodológica do projeto pela noção de redes e de

complexidade, procurando tecer um modo de apreender não apenas as expressões conceptuais

dos projetos e práticas, mas as teias que se formam entre eles, relacionadas às diversas

dimensões da vida sociopolítica em que se dão/são possíveis. Mas, apesar da minha

determinação, ditada pela experiência que vivencio há tantos anos com projetos de EJA e

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sujeitos, que me levava à quase certeza de que só chegaria a capturar suas concepções se os

pensasse pela perspectiva da complexidade, como redes, o esforço feito não chegou a me

assegurar que tenha sido bem-sucedida na tentativa metodológica, o que exige a leitura de

meus pares e estudiosos da área, para apontar e auxiliar meu próprio juízo crítico, quanto ao

que consegui formular por meio desse percurso intentado. Não se trata de negar ou

desqualificar a abordagem definida mas, exatamente, como por ela proposto, dialogicamente

interrogá-la para perceber o quanto o exercício da pesquisa possibilitou aproximar-me ou não

da intenção original, tratando essa produção como “obra aberta”, pela possibilidade de

garantir a ambigüidade, fundamental e constante em qualquer “obra” em qualquer tempo, no

dizer de Eco (1988, p. 25-26), que “representa um modelo hipotético”, embora elaborado com

a ajuda de numerosas interpretações concretas.

Estava aí o desafio: aproximar as enunciações e compreensões sobre redes, a

complexidade e as formulações da transdisciplinaridade, que percebo muito próximas do que

as redes vêm apontando. Por ser esse um campo novo para transitar, empreendi, mais uma vez

como cigana, a aventura de tentar dialogar com essas concepções, em torno do meu objeto,

compreendendo-o, não pela análise, mas pela busca de um outro modo de conhecer, que

intentei produzir como metodologia de pesquisa.

Alguns autores nacionais vêm encabeçando a discussão sobre redes de conhecimentos,

em contraposição à metáfora da árvore, e para isso vêm se valendo de estudos empreendidos

por um grupo de pesquisadores de diversas áreas, em busca de modelos explicativos mais

adequados ao lugar epistemológico do conhecimento na contemporaneidade. Morin, um

desses pensadores, junto a outros como Prigogine, Maturana representam os mais conhecidos,

embora Basarab Nicolescu, Lima de Freitas, o próprio Morin e muitos outros tenham

participado do Primeiro Congresso Mundial da Transdisciplinaridade, ocorrido no Convento

da Arrábida, em Portugal, em novembro de 1994, quando foi adotada a Carta da

Transdisciplinaridade11.

11 No O manifesto da transdisciplinaridade, Basarab Nicolescu informa que outra iniciativa do grupo de estudiosos da área foi fundar o CIRET – Centre International de Recherches et Études Transdisciplinaires, em Paris. Em outra obra, denominada Transdisciplinarité, posso observar a presença, dentre os estudiosos integrantes do CIRET, a presença de Ubiratan D’Ambrosio, brasileiro com estudos e pesquisas na área da etnomatemática. O Segundo Congresso tem lugar em setembro de 2005, em Vitória, Espírito Santo.

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Alves (2002, p. 113)12 assinala que é em rede — rede de relações entre sujeitos —,

contrapondo-se à grafia em árvore13, que se tecem os saberes e as subjetividades que formam

esses sujeitos. Assim a autora se expressa sobre a forma de representar e organizar o

conhecimento em nossa sociedade, que valoriza a chamada “teoria”, em detrimento da

“prática” dos sujeitos, produzida nas mais diversas instâncias sociais.

a construção do conhecimento se dá de modo linear e hierarquizado, com uma antecedência claramente estabelecida de disciplinas teóricas (formadoras do campo científico específico) sobre as disciplinas práticas, sempre subordinadas, quer quanto ao lugar posterior ocupado, quer pelo tempo menor geralmente dedicado ao seu desenvolvimento.

Conquistas e avanços a esse modo de pensar e conceber o conhecimento, no entanto,

só são possíveis a partir de um movimento histórico que contribuiu com as teorias crítico-

reprodutivistas, construtivistas e sociointeracionistas para seu repensar. Pensar conhecimento

em rede, portanto, é ato histórico, possível a partir das produções dos sujeitos sociais em

interação. Como produção, sofre as contradições e as tentativas de apreensão — e

conseqüentes leituras — por parte dos que o tomam como possibilidade de compreensão. Por

um lado, há tendências que acabam por lidar com as redes com lógicas semelhantes de

aprendizagem aos modelos convencionais de disseminar informações; por outro, elas (as

redes) exigem dos usuários uma condição de “estar aberto ao novo” para enfrentar os desafios

que agregam ao uso e às questões impostas aos modos de buscar informação.

Apesar da polissemia do vocábulo rede, cada vez mais se configura a sua enunciação

como uma noção aglutinadora do fazer coletivo. Como assinala Kohn (1994), a rede atravessa

o espaço, o tempo e a ordem estabelecida, aglutina elementos dispersos, cria um território

intersticial onde menos se espera. Como objeto de dupla constituição, espacial e social,

nenhuma rede pode existir sem base material e técnico-organizacional, mesmo que reduzida,

assim como não pode destituir as relações interpessoais, por serem os sujeitos os tecelões

dessa trama.

A interação assim possibilitada, retratada como subjetividade, refere-se às criações de

sujeitos individuais e coletivos, que em redes, as mais diversas, estabelecem novas formas de

12 Um desses autores nacionais é Nilda Alves, que vem produzindo conhecimento nessa área, por meio da constituição, exercício e consolidação de uma rede de estudos e pesquisas, atualmente sediada no Programa de Pós-graduação em Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. 13 Grafia em árvore diz respeito ao modo como o conhecimento se estrutura na modernidade, de forma disciplinar, exigente de hierarquias que pressupõem aprendizagens “mais fáceis” antecedendo “as mais difíceis”, ocasionando, por isso mesmo, caminhos únicos para o aprender, que não admitem rupturas nem atalhos, exigindo linearidade e nenhuma surpresa, nem “saltos”.

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contato e expressão no mundo e do mundo, não mais como consumidores das produções, mas

autores/produtores, cujas formas de resistência constituem modos de declarar sua negação à

passividade, à disciplina, à condição de espectador da ciência e da técnica, fetichizadas pelo

capital.

As redes podem, ainda, disponibilizar com agilidade as informações circulantes,

tornando-se capazes de promover a atualização dos conhecimentos gerados de forma intensa

pela cultura e pela ciência humana. Esta condição coloca, por exemplo, a formação

continuada como uma prática que acompanhará toda a vida social dos sujeitos.

Dessa concepção de conhecimento, segundo Gallo (1997), emerge como representação

a metáfora do rizoma, construída por Deleuze e Guattari, que subverte a metáfora arbórea.

Essa nova metáfora implica, para sua configuração, entradas múltiplas, próprias dos sistemas

complexos. Assim compreendida, inaugura rupturas que precisam ser objetos de estudos e

pesquisas nos múltiplos campos de conhecimento e, em especial, na área de educação.

Dialogando com Morin (2001, p. 490), em busca de sentido para a idéia de

complexidade, inequívoca e incessantemente presente no cotidiano de pesquisadores do

campo da educação, e alertada de que “todo conhecimento é uma tradução a partir dos

estímulos que recebemos do mundo exterior e, ao mesmo tempo, reconstrução mental,

primeiramente sob forma perceptiva e depois por palavras, idéias, teorias”, passei a assumir

determinados conceitos, estabelecidos como guia para o processo de captar o objeto de meu

estudo como um sistema complexo, ao mesmo tempo em que ousei discuti-lo por meio de

uma formulação que desejou incorporar também modos mais complexos de apreender a

realidade, para o que evoco o mesmo Morin (2001, p. 491), ao explicar as relações entre o

todo e as partes, indispensáveis para a produção/apreensão do conhecimento:

[...] a partir do momento em que temos um certo número de instrumentos conceituais (grifo meu) que permitem reorganizar os conhecimentos — como para as ciências da Terra, que permitem concebê-la como um sistema complexo e que permitem utilizar uma causalidade feita de interações e de retroações incessantes —, temos a possibilidade de começar a descobrir o semblante de um conhecimento global, mas não para chegar a uma homogeneidade no sentido holista, uma homogeneidade que sacrifique a visão das coisas particulares e concretas em nome de uma espécie de névoa generalizada. Sem dúvida, é a relação que é a passarela permanente do conhecimento das partes ao do todo, do todo à das partes, segundo a perspectiva de uma frase de Pascal pela qual sinto um apego especial: “Sendo todas as coisas causadas e causadoras, auxiliadas e auxiliantes, mediatas e imediatas, e sustentando-se todas mutuamente por meio de um elo natural e insensível que liga as mais distantes e diferentes, eu assevero que é impossível conhecer o todo sem conhecer particularmente as partes.”

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Meus instrumentos conceituais, portanto, passaram a ser visibilizados à medida que

fui dando conta dos limites da minha compreensão, para apreender meu objeto, no sentido

antes exposto. Ardoino (2001, p. 548, 550) chama a atenção de que complexo, ao contrário de

simples e claro, que privilegiam um conhecimento baseado na evidência e na transparência,

também não se alinha com a acepção ainda subsistente de complicado, mas assume os usos

triviais advindos do latim, que lhe conferem os sentidos de tecido, trançado, enroscado,

cingido, enlaçado, apreendido pelo pensamento, e que segundo Morin corresponde

essencialmente a uma reforma, uma revolução do procedimento de conhecimento que quer

manter juntas perspectivas tradicionalmente consideradas antagônicas: universalidade e

singularidade. Para Morin (2001, p. 562) a questão posta pode ser assim resumida: “como

conceber a relação específica entre aquilo que é ordem, desordem e organização?”

A máxima de Pascal para quem o conhecimento do todo precisa do conhecimento das

partes, que precisam do conhecimento do todo, para Morin (2001, p. 563) indica a idéia de

organização, ou seja, o autor entende que o conceito de sistema leva à idéia de organização,

que produz emergências, não expressas nas partes, mas que exigem organização — o todo —,

para assumir propriedades constitutivas que só se expressam quando organizadas em um

sistema. Porém, como

a complexidade reconhece a parcela inevitável de desordem e de eventualidade em todas as coisas, ela reconhece a parcela inevitável de incerteza no conhecimento. [...] A complexidade repousa ao mesmo tempo sobre o caráter de “tecido” e sobre a incerteza.

[...] se quisermos um conhecimento pertinente, precisamos reunir, contextualizar, globalizar nossas informações e nossos saberes, buscar, portanto, um conhecimento complexo. (MORIN, 2001, p. 564, 566).

Assumindo a necessidade de, na metodologia da pesquisa, trabalhar com o

pensamento complexo — e suas formas de apreender o objeto —, adotei os instrumentos

conceituais sugeridos por Ardoino (2001, p. 550-555): complexidade e heterogeneidade (esta

constitutiva da complexidade, por sua natureza plural, que inclui o conflito, a alteração, o

reconhecimento da importância do tempo e da história para a compreensão dos fenômenos, o

que significa admitir os processos olhados em seus funcionamentos específicos, com sua

duração e sua memória); ambição de domínio (traduzida não pelo sentido de quem tem

controle sobre o outro, como uma capacidade de superioridade e controle, mas sim traduzida

pela familiaridade com o objeto, ligada à duração e à experiência; é o domínio de

acompanhamento, o que implica mais o tempo, do que o espaço, ou seja, domínio, por

exemplo, de um artista por sua arte; ou o domínio de uma associação de trabalhadores sobre

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seus processos de luta política); e multirreferencialidade (uma pluralidade de olhares, tanto

concorrentes, quanto eventualmente mantidos unidos por um jogo de articulações, que

possibilita, pelos variados sistemas de referência, alterá-los e elaborar significações mestiças,

em favor de uma história).

Embora assumindo a idéia de instrumentos conceituais, devo concordar com Soares

(2005, p. 130), quando discutindo os sentidos para categoria, ao buscar compreender as

associações dos sujeitos com o tráfico, diz que ela “funciona como um guarda-chuva: contém

e destaca o objeto que descreve, mas também, sob a sombra protetora, por vezes esconde e

dissolve aspectos seus, essenciais”. Não estive livre desse risco do esconder à sombra o que

deveria ser visto, quando atuei na formulação do objeto, tanto quanto no momento em que me

dispus a torná-lo visível. “A janela secreta que devassa a experiência humana está na

diferença, está nas qualidades que distinguem e particularizam, assim como estão aí as chaves

para eventuais soluções dos problemas”. (SOARES, 2005, p. 130). Essas realidades, afirma o

autor na mesma página, singulares e estranhas, “[...] amiúde traem as categorias. Essa

estranheza (este excesso que desafina e transborda limites e classificações, exigindo de nós o

refinamento dos instrumentos de percepção) talvez carregue o que realmente importa”, e

conclui dizendo que, “com freqüência, as categorias, mesmo a serviço da ciência, acabam

rotulando e estigmatizando grupos humanos e indivíduos”. Tomei os alertas de Soares à risca.

No dizer de Najmanovich (1995, p. 68), o sujeito complexo produziu um giro

fundamental e irreversível no modo de pensar, porque “sabe que todo conocimiento del

mundo lo incluye necesariamente, como Velázquez, que aparece pintado en su obra Las

Meninas. El sujeto de la perspectiva, que se había sustraído del cuadro del universo, reingresó

en él”.

Para captar essas redes do conhecimento que tais projetos produzem, incluída, como

Velázquez, empreendi um modo de investigação visando a alcançar a complexidade presente

nas formas como se operam os projetos, mas nem sempre visível sem lentes especiais até para

pesquisadores experimentados. Aí estava, efetivamente o desafio: tecer essa rede para além

dos contatos físicos com os quais ela opera, ou seja, sendo capaz de simbolizar as conexões

imateriais existentes entre sujeitos e saberes, promovendo uma atitude de escuta em que

pudesse situar os acontecimentos — a experiência — com toda a intensidade que eles

geravam. Mas, ao mesmo tempo, mergulhando fundo nas formulações escritas nos múltiplos

documentos coletados. Com eles deveria travar um diálogo sistemático, não das faltas, nem

das lacunas, mas das consistências inventivas e nômades que contêm, e das fragilidades

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transitórias que os atam, revelando os liames que se entrelaçam e rebusqueiam as formas de

fazer a EJA sem que, necessariamente, se alterem as práticas, ou se mudem os quefazeres

pedagógicos, para além dos discursos que enunciam essas práticas como novas. Cabia-me

fazer emergir a singularidade e a potência de cada projeto, não apenas no quanto a prática

cotidiana reproduz o funcionamento do social, mas no tanto que a promoção de

acontecimentos ressaltava e produzia processos novos e consistentes de participação e de

exercício de democracia para sujeitos antes excluídos do direito à educação.

Mas se o movimento da pesquisa desafiou-me a estabelecer um modo de captar a

realidade conectando os projetos de forma a tecer uma rede que ressignificasse a educação de

jovens e adultos, apropriando-me das concepções que os sustentam, a escrita deste trabalho

desafiou-me, também, por me exigir pensar em rede, como “una estrategia que nos habilita a

relacionar las producciones sociales y la subjetividad que en ellas se despliega, y a partir de

esta concepción planteamos la necessidad de desarrollar una política de subjetividad”.

(SAIDÓN, 1995, p. 204).

Havia, então, ainda, o desafio da escrita para enfrentar. Se uma certa clareza conceitual

e uma formulação se anunciavam para que eu tecesse, na pesquisa, a rede de relações e de

conhecimentos, não deixando com que se dissolvessem as experiências, de que modo

organizá-las; organizar o percurso vivido — sua história e nexos; as compreensões, guardando

o devido cuidado para não provocar mutilações, nem perder, pela narrativa, a textura, o

entrelaçar de fios que não se alinhavam em nenhuma simetria, mas se enredavam,

complexamente?

Assim, tentando criar o campo material do corpus teórico que compus, idealizei a

ilustração que busca mostrar a teia figurada que se forma entre os projetos selecionados,

enredando-os, em uma aproximação semelhante à das sinapses na cadeia neuronal —

representadas pelas inúmeras pontas das figuras estelares em conexão com outras figuras —

que estabelecem relação de contigüidade entre os neurônios, fazendo passar o impulso

nervoso que leva as informações. No caso, os neurônios são projetos/programas

institucionais, e não há continuidade entre eles, mas também contigüidade. As trocas se dão

por passagem, ao mesmo tempo, de um ao outro, ao nível das sinapses, sem que, no entanto,

haja desidentificação do que cada um é, da unidade totalizante que forma cada um. A cor

amarela, que compõe o fundo e os espaços entre os projetos, constitui o interstício, uma

espécie de tecido conjuntivo, o ambiente social de aprendizagens que preenche os espaços e

onde, em última instância, as intervenções pedagógicas se dão no tempo, afetando — ao

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mesmo tempo em que afetadas —, (por) esse mesmo ambiente. Esse interstício é ocupado

pelos Fóruns de EJA, integradores nas redes dos múltiplos projetos/programas, que nesse

espaço interagem e dialogam. Por último, representar esta imagem no plano peca por não

demonstrar a tridimensionalidade, e, melhor, ainda, a multidimensionalidade, possibilidade

unicamente espacial de perceber que todo o conjunto se move, não é estático, podendo

estabelecer por vezes outras relações de maior proximidade, ou seja, mais diretas ou, ainda,

relações indiretas, pelo lugar que ocupam em dados momentos da realidade histórica. A

bidimensionalidade representada no plano tem, do mesmo modo que no espaço, os sujeitos de

aprendizagem como essência — produtores e consumidores de conhecimentos, que se alteram

entre si, tanto no interior das instituições, quanto nos interstícios.

Tal como na célula viva, a relação estabelecida com o meio é de interpenetração, por

ser a membrana celular um limite semipermeável, em que moléculas entram e saem da célula,

enquanto outras não são capazes de fazê-lo. Mas cada molécula que entra passa a fazer parte

da organização celular que sustenta a vida da célula e, com a rede de relações que estabelece e

com as propriedades emergentes da interação. Quando as moléculas atravessam a membrana,

transformam a rede de relações, gerando, assim, transformações na identidade — não mais

pensada em si e por si mesma, mas no emaranhado relacional co-evolutivo.

(NAJMANOVICH, 2001, p. 24-25).

Os fios que os unem, criando relações entre eles, são atos de aprendizagem, feitos

pelas inúmeras situações a que os sujeitos se submetem, em encontros materiais e imateriais

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37

— estes do nível do simbólico —, tanto provocadas pela proximidade de afetos e modos de

ser/viver/conviver, quanto pelas ferramentas que organizam as próprias situações de

aprendizagem: currículos, conteúdos, estrutura didática, organização pedagógica etc. Ao

tentar compreender objetos complexos, cujo conhecimento sobre eles — dados e idéias que

elaboramos a propósito dos objetos — revelam “a qualidade do olhar do pesquisador, quando

os empreendimentos de inteligibilidade mais clássicos, canônicos tiverem se mostrado vãos,

que convém, sobretudo, refletir em vez de pensar nas propriedades assim emprestadas ao

material da pesquisa”. (ARDOINO, 2001, p. 551).

Sou, portanto, nesse processo de compreensão, um sujeito encarnado, “nome de uma

categoria heterogênea, facetada e de limites difusos. Uma categoria não clássica, já que os

elementos que a formam não compartilham de uma propriedade comum, mas têm entre si um

‘traço de família’” (NAJMANOVICH, 2001, p. 28), que me permite compô-la em relação à

minha experiência, aos cruzamentos teóricos, estéticos, éticos, afetivos, emotivos que incluam

meu estar no mundo, implicado com o campo e o corpus da pesquisa, desenvolvendo-a na

trama evolutiva de minha vida, inseparavelmente ligada à minha experiência pessoal e social,

às tecnologias cognitivas, sociais, físico-químicas, biológicas e comunicacionais nas quais

estou imersa.

Com Najmanovich (2001, p. 28-29), tendo a concordar ainda quanto ao desafio que se

tem, na contemporaneidade:

[...] se relaciona com a riqueza de perspectivas e, por outro lado, de mundos possíveis onde conviver, mas também exige nos fazer responsáveis pelo lugar em que escolhemos fazê-lo. O sujeito encarnado desfruta do poder e da criatividade e da escolha, mas deve assumir o mundo que co-criou.

22..11 QQUUEESSTTÕÕEESS DDAA PPEESSQQUUIISSAA

A compreensão dos muitos sentidos produzidos pelos projetos de educação de jovens e

adultos fez emergir uma rica trama que vem sendo urdida no tecido social com forte

componente da sociedade civil, por meio de sujeitos coletivos que se engajam em processos

decisórios e participantes de uma história também coletiva, retomando o controle da situação

que se supunha desacreditada.

Por lo tanto, pensar en red para facilitar las ligazones reconstructivas del tejido social no puede estar guiado por una actitud voluntarista, sino que requiere un pensamiento acerca de la complejidad, que tenga en cuenta la producción de subjetividad social en los más diversos acontecimientos. (SAIDÓN, 1995, p. 205).

Page 40: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

38

Mas não são as concepções e, sim, especialmente as práticas, que vêm definindo a área

da educação de jovens e adultos, na vertente da escolarização. Essas práticas, por muito

tempo, e até hoje, estão compreendidas como aquelas que prestam atendimento aos que se

encontram privados, porque não sabem ler e escrever, da rede de conhecimentos que se

produz, se organiza, se dissemina, se socializa por meio da escrita. A educação de jovens e

adultos muito acumulou de experiências de alfabetização, no sentido estrito de aprendizagem

do código, ao longo de décadas, embora não se possa associar esse acúmulo a nenhuma

medida que indique sucesso, na luta que se trava “contra o analfabetismo”, buscando ensinar a

ler e a escrever.

De uma visão inicial coerente com o conhecimento disponível nos estudos da

alfabetização, o dado diferencial da educação de adultos para a educação infantil, quando esta

diferença existia, foi quase sempre a proposição de livros de leitura elaborados com palavras

do universo vocabular do adulto, abandonando as até então utilizadas cartilhas infantis, que

partiam da premissa de que era o método que alfabetizava. Se por um lado as palavras,

“grávidas de mundo” no dizer de Paulo Freire (1984) ganhavam novos sentidos, no entanto

pouco se avançava quanto aos processos mentais que desenvolviam os sujeitos diante desse

objeto de conhecimento simbolizado pelo texto escrito. Às experiências freireanas e seus

ensinamentos (pelas metodologias de que se valeram) — coerentes com o modo de

reconhecer e respeitar saberes, valores pessoais e sujeitos em interação e em processos de

interlocução e diálogo entre pessoas e conhecimentos diferentes, mas não desiguais —, mais

do que ao método e às palavras que usavam (porque eles continuavam a tomar a palavra como

base e a sílaba como unidade de conhecimento e aprendizagem da língua) pode-se creditar

grande parte dos avanços na área. Ainda hoje, esta visão do método como o que alfabetiza

marca muitos programas de alfabetização de adultos, como também o de crianças, a despeito

dos estudos e pesquisas disponíveis, que custam a alterar as práticas pedagógicas.

As concepções de alfabetização, por exemplo, são ainda um grande desafio a

enfrentar, marcadas que estão por processos que formaram — e formam — educadores,

fazendo-os crer que são eles os que ensinam, e que se não o fizerem, os alunos não serão

capazes de aprender. A recíproca, no entanto, não é verdadeira, pois quando os alunos não

aprendem, historicamente a “culpa” do fracasso tem sido exclusivamente deles próprios, não

cabendo responsabilidade aos professores. Os saberes e conhecimentos dos sujeitos formados

fora da escola têm pouca chance de serem aí considerados e, quase sempre, são negados

quando se os põem em condição de aprender a ler e a escrever. Minha pergunta-guia, então,

Page 41: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

39

pode ser assim resumida, no tocante à alfabetização de jovens e adultos: que concepções de

alfabetização e de escolarização fundamentam, então, as propostas curriculares na EJA e

como contribuem para atualizar as concepções próprias do campo da educação de jovens e

adultos?

Outro aspecto importante para pensar os processos que cercam as experiências de

alfabetização é o de acreditar que durante este período devem-se ler livros de “aprender a ler”,

cartilhas ou assemelhados, deixando de fora todos os materiais disponíveis e favorecedores do

encontro de textos, em suportes diversos nos quais se lê, na prática social. A ausência do

livro, especialmente entre as populações mais pobres, faz com que ler só tenha sentido na

escola, por não se criarem demandas sociais pela leitura e pela escrita. A inacessibilidade dos

textos, das informações, a não-percepção do para que serve ler e escrever faz com que mesmo

os que aprendem, rapidamente possam tornar-se analfabetos funcionais, pelo desuso da

aprendizagem e o domínio de um sistema que lhes parece de pouca utilidade prática. A

complexidade social encerra, nesses tempos em que vivemos, muitas outras linguagens e seus

códigos, necessitando conhecimento, apreensão e apropriação, como instrumentos de poder

simbólico que os discursos, em suas mais variadas formas e manifestações produzem. Essas

outras linguagens, embora venham sendo apropriadas por força das contingências da prática,

são quase abandonadas na escola, que tem constituído um campo próprio de linguagens,

descolado das práticas e envolvido por seus muros e demarcado pelas fronteiras do que se

concebeu como “conteúdos formais”. O “não-formal”, freqüentemente desqualificado, está

fora da escola, hierarquicamente colocado como saber inferior, por constituir saber da prática,

não-sistematizado. Apesar de ser por esta via que mais se ampliam os aprendizados, se for

considerada conceitualmente, segue-se negando-a, por se entender que o locus da

aprendizagem é a escola.

As concepções de educação permanente, elaboradas na década de 1970, encerrando

concepções mais ideológicas do que epistemológicas, voltam à cena no final da década de

1990, reconceitualizadas, face à necessidade de se pensar desenvolvimento e educação,

cidadania e empregabilidade, conhecimento e cultura, diversidade e unidade. A educação de

adultos passa da idéia de recuperação de tempo perdido à concepção de direito, tanto

englobando o saber ler e escrever em sociedades letradas como condição de busca de

igualdade, às concepções de promoção de cidadania, pela tomada de consciência de direitos

de gênero, de etnia, à qualidade de vida, ao bem-estar social, à opção por estratégias de

desenvolvimento local sustentável. Embora estes sejam, também, projetos de EJA, por

Page 42: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

40

lidarem com a educação em direitos, o escopo desta pesquisa não tratou deles, embora se

admita que esses projetos apontam novos caminhos para repensar a área e inserir o restrito

campo — até então vinculado à alfabetização ou à educação básica, no domínio da

escolarização — em projeto social mais amplo, de educação permanente, em que a

escolarização é etapa fundamental, sim, mas associada à perspectiva de educação continuada,

pelo direito de aprender pela vida inteira. Coube-me, por fim, investigar com que perspectivas

teórico-metodológicas os saberes da prática social passam a constituir as redes de

conhecimento em projetos de educação que visam ao direito de todos à educação, e que

implicação têm no repensar os sentidos contemporâneos da educação de jovens e adultos.

22..22 DDEE CCRRIITTÉÉRRIIOOSS,, OOPPÇÇÕÕEESS,, EESSCCOOLLHHAASS

Com vistas a organizar o conjunto de projetos selecionados, segundo os critérios

definidos, retomo-os, apresentando aqueles que atendem primordialmente à definição, ainda

que possam/devam corresponder a mais de um deles:

Abrangência nacional — independente da proposta/concepção, a prática está sendo

realizada em vários estados da federação, por um ou mais organismos, envolvendo

um largo número de sujeitos, o que quase sempre contraria as lógicas da EJA, de

pequenas experiências, localizadas.

Os projetos selecionados que atendem ao critério foram: Programa Alfabetização

Solidária; Programa SESI Educação do Trabalhador – SESIeduca; Programa SESC Ler.

Antiguidade e permanência da organização na rede pública — independente da

concepção, o fato de estar institucionalizada, ininterruptamente, como modalidade

de atendimento, no sistema de ensino.

Projetos selecionados: Programa de Educação de Jovens e Adultos - PEJA, da

Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro; Programa de Educação de Jovens e

Adultos, do Estado da Bahia.

Necessidade de oferecer resposta específica, considerando a realidade de uma dada

região/sujeitos — verificar a consistência de propostas que se orientaram pela ação

de EJA com formato próprio, considerando a especificidade de uma região/sujeitos.

Projetos selecionados: Programa de educação de jovens e adultos, desenvolvido pelo

MST — Sempre é tempo de aprender / Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária

(PRONERA); Programa SESC Ler.

Page 43: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

41

A escolha desses projetos não se coloca com nenhuma superioridade sobre qualquer

outra, devendo destacar que outros programas/projetos têm estatura e envergadura para

enfrentarem estudos que se disponham a capturar concepções e sentidos. As circunstâncias e

os acessos a estes, no entanto, acabaram por defini-los como integrantes do corpus da

pesquisa, recomendando-se, entretanto, futuras investigações sobre outras construções no

campo da educação de jovens e adultos.

Para apreender os sentidos e as concepções que os programas/projetos selecionados

portam, tanto nas formulações, quanto nas práticas, busquei:

a) os constituintes e determinantes da concepção de EJA e de alfabetização expressos nos

discursos e nos documentos.

▪ a existência de histórico demarcando o lugar da educação de jovens e adultos no sistema

de ensino, com referência à situação educacional da população (dados do Censo – IBGE,

de analfabetismo etc.) e o atendimento que vem sendo realizado no sistema, ou fora dele;

▪ princípios/fundamentos reveladores das concepções do que é ensinar e aprender na

educação de jovens e adultos: demarcação dos sujeitos e especificidades para o conjunto

especificado; existência de saberes prévios; participação ativa no processo de aprendizado;

metodologias adequadas à condição de jovem e/ou adulto;

▪ a abrangência da compreensão do direito à educação para jovens e adultos: concepção do

que é EJA e, conseqüentemente, da oferta de atendimento;

▪ evidências justificadoras da concepção / identificação com políticas de financiamento

federal a programas na área;

▪ indícios de continuidade da ação, seja pela própria entidade, seja pelo encaminhamento

adotado/enunciado.

b) as concepções submersas, fazendo-as emergirem, a partir dos instrumentos conceituais e

das ferramentas que organizam as próprias situações de aprendizagem — currículo (rede

de conhecimentos/estruturação de disciplinas); concepção de conteúdo das disciplinas

(construção ou “passar conteúdo”); níveis de atendimento na EJA (só alfa, 1º segmento,

ensino fundamental, regular noturno); espaço-tempo de leitura e escrita / oralidade;

escrita (a existência ou não de recursos tecnológicos, vencendo a questão da “mão

endurecida”); avaliação e continuidade.

▪ currículo — entendido como noção central para compreender as formas como se

tecem/produzem os conhecimentos; se se supera, ou não, a concepção formalista de

currículo, admitindo a incorporação, aos seus aspectos formais, de elementos mais

Page 44: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

42

dinâmicos do cotidiano das escolas/classes e as práticas cotidianas, reveladoras de

trabalhos pedagógicos diferenciados; concepções de práticas pedagógicas X autonomia do

professor;

▪ concepção de conteúdos das disciplinas — concepções sobre a seleção e o modo de

organizar os conteúdos na proposta de EJA: tempo e espaço para realizá-lo; campos de

conhecimento; hierarquias: seriação, pré-requisitos, valorização de campos de

conhecimento sobre outros, invisibilidade de alguns etc.;

▪ níveis de atendimento na EJA — se alfabetização; se curso em nível do primeiro segmento

do ensino fundamental; se curso em nível do ensino fundamental completo, se educação

continuada, com o sentido do aprender por toda a vida;

▪ espaço-tempo de leitura e escrita / oralidade; escrita — evidências dos objetivos reais X

formais da proposta de alfa/EJA; concepções do que é ler e escrever; tempos de

aprendizagem: duração do projeto; organização diária das aulas/atividades; seguimento;

recursos materiais e tecnológicos à aprendizagem.

▪ avaliação / continuidade — sentido de satisfação na terminalidade oferecida X perspectiva

de continuidade X direito à continuidade de estudos; usos dos resultados da avaliação;

onde se coloca o objetivo da conclusão do curso: na certificação, na aprendizagem, no

saber ler e escrever? Reconhecimento formal ao curso: direito à continuidade.

Os modos como cada programa/projeto foi abordado estiveram condicionados também

a fatores de ordem conjuntural, que tanto favoreceram a construção da abordagem, quanto a

restringiram.

De todos os programas/projetos, no entanto, os documentos básicos estiveram sob o

foco da pesquisadora, sem exceções, limitados apenas pela quantidade de textos

sistematizados e pela disponibilização que cada instituição fez deles.

As práticas, no entanto, não atenderam aos mesmos modos de abordagem, pelo fato de

implicarem, na maior parte dos casos, deslocamentos aéreos e estadias em locais nem sempre

de fácil acesso, previsíveis para uma pesquisa de abrangência nacional. Ainda assim, o apoio

do Programa de Pós-graduação da UFF foi decisivo para possibilitar algum trabalho de

campo. Uma variedade de métodos de abordagem, com vistas a captar os diversos níveis de

realidade, possibilitaram a escuta e a apreensão dessas práticas, por meio dos discursos de

participantes dos programas/projetos, de variados níveis institucionais. O quadro a seguir

demonstra o material recolhido pela pesquisa, objeto de discussão nesse capítulo e nos demais

seqüentes.

Page 45: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

43

Programas /

projetos Documentos Entrevista Grupo focal Visita

técnica

SEC/BA Portaria SEE-BA nº. 14158 de 26/10/2004; Ensino Fundamental – Aceleração I e II; CPA – levantamento estatístico 2003; Programa de Educação de Jovens e Adultos do estado da Bahia: concepção, princípios e projetos; Documentos e publicações do Programa AJA Bahia; Ensino Fundamental para a EJA 2002/2003; Portaria nº. 12235/2002; Resolução CEE 138/2001; Comissões Permanentes de Avaliação 2002/2003

Entrevistas semi-estruturadas, gravadas com gestora do sistema de ensino; com diretora de unidade escolar; coletiva, com diretor e vice-diretora

Gestores e equipe técnica central; supervisor e professores.

Unidade escolar e a centro de referência em EJA

PEJA/RJ Projeto de Educação Juvenil s/d Dissertação de Mestrado de Marilda de Jesus Henriques sobre a implantação do PEJ Relatório de campo para o estudo de caso da Pesquisa Juventude, Escolarização e Poder Local: Novos desenhos da Educação de Jovens e Adultos na esfera local e Relatório final (versão preliminar) Documento Entre expectativas e incertezas: os dez primeiros anos do projeto de educação juvenil (1985-1995), de Ênio José Serra dos Santos

Entrevistas semi-estruturadas com ex-gestores e com gestor atual Entrevistas gravadas com diretores e coordenadores pedagógicos de dois CIEPs e do CREJA

Professores e alunos de duas escolas públi-cas e de centro de referência EJA

SESI Vol. 1, 2 e 3 da Série SESI Educação do Trabalhador – A empresa e a educação do trabalhador; Para falar em Andragogia e Andragogia facilitando a aprendizagem; A educação de jovens e adultos, instrumento privilegiado de mudança social; Programa SESI Educação do Trabalhador – elevação da escolaridade básica; Metodologia SESIeduca – Educação de Jovens e Adultos; Programa Nacional de Ensino Fundamental de Adultos; Rede SESI de Educação

Entrevista semi-estruturada, gravada, com gestor em nível nacional

— —

SESC Ler SESC Educação – Proposta pedagógica da Educação de Jovens e Adultos; SESC Educação – Proposta pedagógica do SESC Ler Questionário para técnicos em nível

nacional — —

MST Relatório da avaliação do PRONERA Documentos orientadores da formulação do PRONERA Cadernos de Educação n. 8, 11; Boletim de Educação n. 9 Relatório Geral. Avaliação Externa do Programa PRONERA Diretrizes operacionais para a educação básica nas escolas do campo. Resolução CNE/CEB n. 1, de 3 abr. 2002. Referências para uma política nacional de educação do campo: caderno de subsídios. MEC/SEMTEC Pesquisa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PNERA (versão preliminar)

Questionário com gestora de nível nacional; entrevista semi-estruturada gravada com gestora estadual e com educadores no campo.

— —

PAS Programa Alfabetização Solidária – Proposta político-pedagógica – 1ª versão; Boletim Alfabetização Solidária – dez 1998; Relatório de 4 anos de atividades do PAS 1997-2000; Revista da Alfabetização Solidária n. 4 – 2004. A Educação de Jovens e Adultos em discussão; Escrevendo juntos n. 28 e 29 – 2004; Trajetória 2004 - 8 anos Responsabilidade e inclusão social

Questionário para gestor e técnicos de duas universidades

— —

Page 46: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos
Page 47: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

45

A discussão que estabeleço nos capítulos que virão a seguir busca apreender os

sentidos do direito à educação produzidos no campo mais amplo da conquista dos direitos

nas sociedades, e como esse direito se faz para jovens e adultos, como um dos

fundamentos de sociedades democráticas. Percorro, então, os movimentos internacionais

que constituem o campo e asseguram comprometimentos aos países-membros da ONU,

historicamente, assim como o faço no nível nacional, conectando os sistemas complexos

que envolvem o pensar e o fazer da educação de jovens e adultos. Em seguida, remeto-me

aos programas e projetos selecionados, ativos, recentes, sobre os quais meu envolvimento

como profissional da área se antecipa ao de pesquisadora desse tema, ao tomá-los como

referência.

Seguindo os instrumentos conceituais a que me referi neste capítulo, no dizer de

Morin e Ardoino (2001) e buscando as ferramentas teóricas que intentam alcançar as

concepções, com vistas a capturar a complexidade com que estes programas/projetos se

dão, inicio a discussão com aqueles que se produzem no interior dos sistemas públicos

estadual e municipal. Trago à compreensão, a seguir, os que se fazem no espaço do

Sistema S para, por fim, apresentar um projeto do âmbito do movimento social organizado

e de uma organização não-governamental, com vista a — partindo de todo esse amplo

conjunto formulado/praticado — fazer emergir as concepções da educação de jovens e

adultos que se podem manejar no intuito de compreender a configuração do campo e as

implicações desse campo, como espaço de direito, com outros movimentos da sociedade.

Page 48: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

46

33.. CCAARROOSS CCOONNCCEEIITTOOSS:: DDIIRREEIITTOO ÀÀ EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO CCOOMMOO BBAASSEE DDAA

DDEEMMOOCCRRAACCIIAA

A proposta da pesquisa exigiu a definição de um arcabouço teórico que erigi a partir

de dois conceitos, para compreender os sentidos assumidos pela EJA na atualidade. São eles:

direito, entendido pela conquista do direito à educação e esse mesmo direito, como

fundamento da perspectiva democrática.

33..11 PPRREEMMIISSSSAASS IINNIICCIIAAIISS PPAARRAA PPEENNSSAARR OO CCOONNCCEEIITTOO DDEE DDIIRREEIITTOO ÀÀ EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO::

CCOONNTTRRIIBBUUIIÇÇÕÕEESS DDEE EEDDUUCCAADDOORREESS BBRRAASSIILLEEIIRROOSS

A questão do “direito a” emerge em um conjunto de oposições existentes em práticas

sociais a que alguns têm acesso e outros não, tanto configurando a negação de participar

dessas práticas, quanto configurando o privilégio de alguns de poder participar dessas mesmas

práticas: alfabetizado - não-alfabetizado; escolarizado - não-escolarizado; leitor - não-leitor;

incluído - excluído; e, ainda, os conceitos de analfabetos - analfabetos funcionais;

desescolarizados; e não-incluídos, todos eles refletindo a situação de sujeitos segundo as

condições de acesso a alguns direitos — sociais, nesses casos — caros ao exercício da

cidadania.

Essas oposições, visíveis para mim no campo educacional a partir do interesse que me

despertam, porque aproximam ou afastam e até mesmo apartam sujeitos de

fundamentos/instrumentos das sociedades grafocêntricas — o saber ler e escrever —,

desempenham, nessa mesma sociedade, de classe, capitalista, um papel decisório para definir

o lugar social dos sujeitos que por ela são categorizados. Categorias essas que se hierarquizam

no mesmo modelo social, quando se parte do que se pode considerar o “grau” menor — talvez

o não-alfabetizado —, seguindo-se até um topo, que tanto se identifica com o status de leitor,

quanto com o de escolarizado.

Para alguns, a condição de passar de um lado a outro dessas oposições (saindo do que

representa o nulo para o pleno) constituiu um privilégio, enquanto para outros, trata-se de

dom, de direito natural, inconteste.

Como todas elas dizem respeito a uma construção social conhecida como direito à

educação — forma pela qual o conhecimento é alcançado, por meio de um sistema

codificado, tornado bem cultural simbólico das civilizações — ter acesso, ou não, a esse bem

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47

constitui o direito e, por oposição, não ter acesso, o não-direito, freqüentemente traduzido

como exclusão/apartação, por não ser ele direito natural, mas construção social.

Ao longo da história da educação podem-se acompanhar diversos modos como o

direito à educação veio sendo conquistado, destacando-se algumas personagens como centrais

nessa história. No Brasil, uma delas, Anísio Teixeira, para quem “a educação é um direito”

(NUNES, 1996, p. 7), título e tema de seu terceiro livro publicado em 1968, que se segue a

um segundo, de 1957, que discute a tese de que “educação não é privilégio”, ambas como

fundamentos das formas democráticas de vida social. Seu pensamento sobre educação e

formas de mudança para a situação da escola brasileira14, além de sua capacidade de intervir

na realidade, exercendo funções de destaque, aliaram teoria e prática política. A outra, Paulo

Freire, para quem a concepção libertadora da educação é, sem dúvida, a síntese pela qual

reúne o método democrático e a forma do direito para tratar de um conteúdo — a liberdade —

que resume o caráter humanizador da educação.

Anísio Teixeira, analisando o papel do Estado democrático em relação à educação,

destaca a condição de interesse público desta, generalizada apenas no século XX. Admitindo

o lugar fundamental da educação para a perpetuação da vida social, associa a ela, no século

em que vive, o conhecimento como elemento novo capaz de possibilitar a obtenção de

homens diferentes, porque capazes de organizar e produzir modos de pensar racionais

diferentes, em condições também diferentes. Considera esse acesso ao conhecimento e a

novos modos de pensar o aparelhamento necessário a uma sociedade democrática e científica

e, para isso, invoca a exigência de uma escola especial, em que velhos processos de educação

já não eram possíveis. A forte crença de Anísio no vínculo entre sociedade democrática e

educação escolar, admite que a primeira:

[...] só subsistirá se produzir um tipo especial de educação escolar, a educação escolar democrática, capaz de inculcar atitudes muito especiais e particularmente difíceis, por isto que contrárias a velhas atitudes milenárias do homem. Terá de inculcar o espírito de objetividade, o espírito de tolerância, o espírito de investigação, o espírito de ciência, o espírito de confiança e de amor ao homem e o da aceitação e utilização do novo — que a ciência a cada momento lhe traz — com um largo e generoso sentido humano. (TEIXEIRA, 1996, p. 43).

14 Escola brasileira não é uma nomenclatura muito adequada, no meu entender, mas de que me valho criticamente. A inadequação reside no fato de que não se tem uma única escola brasileira, um único modelo de escola, dada a variedade de condições, a diversidade de culturas e de sujeitos, a multiplicidade de respostas que professores e alunos constroem no cotidiano da vida escolar, na prática docente e pedagógica. Porque aposto na criatividade e na resistência dos professores para recriarem o cotidiano sempre tão massacrado pelo descaso das políticas públicas, assumo essa crítica, pela pseudo-incoerência do meu texto, com meu discurso como formadora e praticante.

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48

Ao defender a democracia, não o fazia considerando a carência dos sujeitos pobres,

mas sim a omissão dos governos no refazimento das condições sociais e escolares, atuando

estrategicamente para alargar as chances educativas das crianças das classes populares e dotar

a escola pública de ensino de qualidade. Defensor implacável da educação como direito de

todos, pôs-se sempre contra o analfabetismo e à falta de consciência para os graves problemas

da educação, propondo cursos para adultos que atendiam ao desejo e à necessidade de

aprimoramento de conhecimentos desses estudantes. Trabalhou incansavelmente pela

redistribuição da educação como bem social — fundamento prático da visão filosófica de

democracia com a qual contribuiu em muitas reformas conduzidas, a partir de seu papel

também como intelectual.

Anísio Teixeira exerceu uma espécie de equilíbrio diacrônico entre o nível das

políticas públicas, das idéias pedagógicas e das práticas escolares, oferecendo seu pensamento

sobre a educação à causa política do fazer, tentando minimizar as distâncias entre as

mudanças que ocorrem em cada um desses níveis, cada uma delas com tempos e lógicas

distintos, graduais e de ritmos diversos, gerando o que Nunes (In: TEIXEIRA, 1996, p. 13)

chama de “tensão descontínua”. Opondo forma democrática de vida à forma aristocrática,

Anísio Teixeira (1996, p. 23) explicita a compreensão do princípio da igualdade individual,

que se baseia na igualdade política, e não na igualdade psicológica dos indivíduos. Afirma

que tanto se pode construir uma teoria de desigualdade social, quanto de igualdade, a partir da

constatação da desigualdade dos indivíduos, e que a forma democrática de vida exprime a

convicção de que isto não lhes incapacita à participação na experiência social, nem à

contribuição à sociedade, no tocante à afirmação de valores.

Com visão perspicaz sobre seu tempo e projetando o porvir, explicita como na história

se constrói a justificação da desigualdade, a serviço de interesses em ascensão na nova

sociedade industrial, pelas teorias do indivíduo soberano, assim como do laissez-faire

econômico, com a “mão invisível” das “leis naturais” na economia e o desprezo à

dependência desse tal regime a um novo nível educacional da humanidade, “mantendo-se o

sistema de educação das elites fundamentalmente fechado às classes populares”. (TEIXEIRA,

1996, p. 29).

Nesse quadro, o Estado nacional, segundo seu entendimento, cumpre papel essencial

substituindo a ordem feudal e aristocrática, a partir das bases do Estado moderno, produzindo

a grande riqueza das nações do oeste europeu e da América. Essa mudança na civilização

(TEIXEIRA, 1996, p. 29), dia-a-dia mais acelerada, teria sido capaz de ocorrer pelo

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49

desenvolvimento da ciência e sua aplicação à vida sem que, necessariamente, mudasse

positivamente a estrutura social:

A moderna sociedade industrial, explorando ao máximo as possibilidades financeiras das novas invenções por meio de um sistema científico e impessoal de trabalho e, por outro lado, lutando com todas as forças para se manter conservadora, se não reacionária, deu em resultado a situação presente, em que um máximo de integração mecânica se alia a um mínimo de integração social, produzindo em conseqüência o indivíduo perdido, fragmentado e neurótico, em que se vem transformando o homem moderno, sensível apenas a formas de excitação ou de sensação, isto é, a choques e rupturas que se fazem indispensáveis aos seus nervos gastos e distendidos por uma vida absurda. (TEIXEIRA, 1996, p. 30).

Contesta, ainda, a chamada natureza individual do homem, a que se referia Stuart

Mill, que acredita não existir, porque atribui a condição de social a essa natureza, sem que o

individual se oponha ao social, nem o indivíduo às sociedades, nas quais revela atitudes

diferenciadas, mais ou menos adaptadas e integradas, mas sempre sociais.

Por essa complexidade, entende que a educação necessita ser cada vez mais extensa

em anos de escolaridade, o que não lhe basta sem que seja reconstruída com novos sentidos,

adequados às exigências dos interesses públicos de formação do cidadão, membro de um

corpo social extremamente complexo e plural em que a sociedade se transformou. Nessa

extensão em anos de escolaridade, percebo no pensamento de Anísio a idéia de alargamento

da formação do cidadão, não restrita às séries iniciais nem à educação básica, mas contínua e

sistemática; como também percebo o embrião do sentido que se atribui à educação de jovens e

adultos, contemporaneamente, de educação continuada, pelo direito de aprender por toda a

vida.

Por essa mesma complexidade, defende que as escolas sejam organizações locais,

administradas por conselhos leigos e locais, com o máximo de autonomia possível, o que

implica a constituição de um caráter pluralista e democrático ao Estado, contrário a qualquer

outro monolítico e uniformizante, portanto não-democrático. Educação pública, então, para

Anísio Teixeira, “será a educação que melhor serve aos interesses múltiplos e complexos dos

indivíduos e não algo que se lhes oponha e de que eles se tenham de defender. A escola

pública é por excelência a escola da comunidade [...]”. (TEIXEIRA, 1996, p. 47).

Anísio Teixeira, apontado como pensador liberal, foi coerente em toda a sua vida, na

defesa da democratização da cultura e da educação, encarnando desejos de liberdade e de

construção da autonomia do povo brasileiro. Suas idéias sobre educação, caráter público,

direito e democracia são, incontestavelmente, fundantes para pensar o direito de todos à

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50

educação como direito público subjetivo e direito humano fundamental, o que exige a

inclusão da modalidade de educação de jovens e adultos no âmbito desse direito.

Entretanto, a existência da formulação legal do direito à educação, como defendido

por Anísio Teixeira, não significa sua prática, assim como a luta pelo direito nem sempre

chega a constituí-lo.

Também Paulo Freire, cujos vínculos com a cultura antropológica determinou outro

olhar sobre os processos educativos, fez na prática, mais do que no discurso, a vivência da

democracia. Buscando compreender os fenômenos de nossa formação social, pelo ponto de

vista psicossocial, e como a questão da opressão se introduz e se instala no universo subjetivo

do próprio oprimido, produzindo não apenas atitudes submissas, mas extremamente

autoritárias quando em situação favorecida — oprimidos que oprimem, aderentes ao conteúdo

do opressor — Freire revela intensa preocupação com a desigualdade das relações de poder da

sociedade e as necessárias rupturas para que outras práticas mais igualitárias possibilitem a

conquista de direitos iguais para todos.

Ao mesmo tempo, Freire experimenta e busca práticas educativas que incorporam a

sociedade nas escolhas político-pedagógicas, fazendo-a participar da proposição de novos

projetos que interessem a classes sociais diferenciadas, com o objetivo da eqüidade, e defende

o papel do sistema público como espaço de direito de todos, a ser modificado, alterado, pela

participação de novos sujeitos no cenário escolar.

Para além do sentido do educar que cabe à escola, incorporou, no breve tempo passado

à frente da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, durante o mandato de Luísa

Erundina (1989-1992), amplos setores da sociedade nas múltiplas tarefas que assumiu para

consubstanciar uma educação para todos, porque até então estiveram excluídos do debate, por

não se considerar a função educadora que toda a sociedade — e suas instâncias estruturais e

conjunturais — produz nos sujeitos.

Não hesitaria em afirmar que, tendo-se tornado historicamente o ser mais a vocação ontológica de mulheres e homens, será a democrática a forma de luta ou de busca mais adequada à realização humana do ser mais. Há, assim, um fundamento ontológico e histórico para a luta política em torno não apenas da democracia mas de seu constante aperfeiçoamento. (FREIRE, 1994, p. 185).

Paulo Freire, nesta afirmação, impõe-se a mim para pensar o sentido educador — e até

mesmo pedagógico — que a condição humana, em busca do ser mais, fundamenta na luta

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51

política pela igualdade e pela liberdade, o que passa a ser possível, no plano histórico, por

meio da vivência do método democrático.

Esta questão remete-me a duas considerações: a primeira, a que considera suficiente

defender o acesso à escola para todos como modo de assegurar a base democrática; e a

segunda, a que exige interrogar o modelo de democracia do qual se fala. A primeira

consideração interage imediatamente com o campo de estudos em que transito, o da educação

de jovens e adultos, especificamente quando se a defende como direito. Para o Estado

democrático, é dever estrito proporcionar educação a todas as crianças, jovens e adultos.

Portanto, “o Estado neocapitalista, já que dificilmente chega a ser democrático, não pode ser

menos que liberal”. (BOSI, 1992, p. 341).

Para a segunda, interrogando o modelo de democracia do qual se fala, apóio-me ainda

em Bosi (1992, p. 341):

Se o projeto educacional brasileiro fosse realmente democrático, se ele quisesse penetrar, de fato, na riqueza da sociedade civil, ele promoveria a um plano prioritário tudo quanto significasse, na cultura erudita (universitária ou não), um dobrar-se atento à vida e à expressão do povo; e, igualmente, tudo quanto fosse uma reflexão sobre as possibilidades, ou as imposturas, veiculadas pela indústria e pelo comércio cultural. Friso as duas direções: uma, de acolhimento e entendimento profundo das manifestações e aspirações populares; outra, de controle e de crítica, ou, positivamente, de orientação das mensagens veiculadas pelos meios que atingem a massa da população.

Para Freire, é esse exatamente o sentido de um projeto educador: não apenas ensinar a

letra, mas levar o homem à consciência de si, do outro, da natureza.

Sintetizando essa questão, o educador propõe-se, na Décima Quarta Carta do livro

Cartas a Cristina (FREIRE, 1984, p. 183-184), a tomá-la, como objeto da curiosidade

intelectual, formulando-a do seguinte modo: “que queremos dizer quando dizemos educação e

democracia?”. E, logo em seguida, indaga: “é possível ensinar democracia? Que significa

educar para a democracia?”

Para compreender a questão proposta, remete suas reflexões às relações contraditórias,

dialéticas entre autoridade e liberdade, assinalando que, no entanto, essas reflexões não

podem se fazer afastadas das questões que envolvem o poder, o econômico, a igualdade, a

justiça, a ética. Reconhece, assim, que a democracia não prescinde de fundamentos

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ontológicos e históricos — a vocação humana do ser mais —, o que implica não restringi-la,

apenas, à dimensão política15, com o que se negaria a si mesma.

Uma idéia central em seu pensamento é a de que a luta incessante em favor da

democratização da sociedade implica a democratização da escola, e nesta a democratização

dos conteúdos e do ensino. E alerta aos educadores progressistas que não há como esperar que

a sociedade brasileira se democratize para que comecem a ter práticas democráticas na escola,

lembrando que essas práticas não podem ser autoritárias hoje, para serem democráticas

amanhã. (FREIRE, 1992, p. 113-114). Em muitos textos, Freire discute a relação que o

diálogo, a consideração do saber dos sujeitos e do nível em que os educandos se encontram

têm com a perspectiva democrática. Sua crença na democracia como fundamento da

igualdade na educação, além de forte preocupação em demonstrar como é possível ensinar

democracia, não deixa dúvidas: é preciso, para isso, testemunhá-la, lutar para que seja vivida,

e que não apenas se resuma em discurso sobre ela, muitas vezes contraposto por

comportamentos autoritários.

Engajar-se em experiências democráticas, fora de que não há ensino da democracia, é tarefa permanente de progressistas coerentes que, compreendendo e vivendo a história como possibilidade, não se cansam de lutar por ela, democracia. (FREIRE, 1992, p. 195).

Monteiro (1998, p. 10), discorrendo sobre Paulo Freire e o direito à educação no I

Encontro Internacional no ano do 50º aniversário do reconhecimento e proclamação do

“direito à educação”, na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), assim se refere

ao legado de Freire para a compreensão e a prática do direito, atribuindo-lhe a autoria de uma

pedagogia do direito à educação como fundamento de seu pensamento educacional:

[...] na medida em que problematizou radicalmente a educação como poder e o poder da educação, em que afirmou o primado da universalidade sobre a domesticidade e do reconhecimento sobre o conhecimento — numa palavra, o primado da Ética do sujeito sobre a política do objecto da educação — a Pedagogia de Paulo Freire não podia deixar de ser revolucionária, crítica do pragmatismo neoliberal e de um certo pensamento pósmoderno, relativista e pessimista, porque é uma Pedagogia do direito à educação.

15 Freire assinala que, entendida assim, a democracia se limita ao direito do voto, que se oferece às massas populares, o que demonstra como historicamente esta sempre foi a escolha das elites, acentuando a desigualdade e a negação de direitos em geral, assim como as discriminações de toda a sorte, que negam a tolerância, para ele um sine qua da democracia.

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Percorrendo alguns caminhos pelos quais passa a construção teórica dos sentidos do

direito, historicamente, busco compreender o momento em que vivemos no campo da EJA,

seus avanços e estagnações.

33..22 PPEERRSSPPEECCTTIIVVAA HHIISSTTÓÓRRIICCAA DDOO DDIIRREEIITTOO EE IIMMBBRRIICCAAÇÇÕÕEESS CCOOMM AA PPEERRSSPPEECCTTIIVVAA

DDEEMMOOCCRRÁÁTTIICCAA

A questão do direito na vida das populações e das sociedades, tal como se o entende

nos dias atuais, passa por largos processos de construção de práticas e de sentidos,

historicamente constituidores da noção teórica que diversos autores vêm estudando e

formulando, para o entendimento das relações de poder nas sociedades.

A palavra direito, etimologicamente, entre muitos sentidos, significa “aquilo que é

justo, reto e conforme à lei; faculdade concedida pela lei; poder legítimo; complexo de

normas não formuladas que regem o comportamento humano; lei natural: direito universal”

(BUARQUE DE HOLLANDA, 1975, p. 478). No Dicionário Eletrônico Houaiss (2001),

encontro, com sentido jurídico: “conjunto de normas da vida em sociedade que buscam

expressar e também alcançar um ideal de justiça, traçando as fronteiras do ilegal e do

obrigatório; ciência que estuda as regras de convivência na sociedade humana; jurisprudência;

conjunto de leis e normas jurídicas vigentes num país”. Buscar, então, o campo do direito para

compreender a formação dos sentidos que regem o direito à educação, em princípio, foi o

caminho inaugural, embora tenha tropeçado em dificuldades que, ainda não transpostas,

exigirão de mim novos mergulhos nessa literatura para ampliar o campo de sentidos que

pretendo produzir.

Esse trânsito pelo Direito, enquanto campo de estudos, não se trata de perspectiva

diletante16, mas de exigência mesmo, face à ordem de privações que muitos sujeitos vêm

sofrendo, fazendo-se indispensável melhor compreender a constituição dessa faculdade, do

ponto de vista jurídico, até mesmo para promover ações eficazes que garantam, nos tribunais,

se for o caso, o direito educacional sistematicamente negado a larga parcela da população.

16 Minha primeira incursão pelo tema se fez em biblioteca de Direito, tentando levantar autores e obras cujo interesse se fazia pelo direito à educação. Percorri alguns constitucionalistas mas, infelizmente, minha pouca intimidade com a área acabou por organizar um conjunto restrito, poderia mesmo dizer, ainda empobrecido. Desse modo, esta primeira incursão deverá ser seguida por uma outra melhor orientada, para objetivar minha busca e a necessidade de contrapor meu olhar de investigadora a outros olhares cuja formação possa desvendar-me novas perspectivas de estudo e de compreensão.

Page 56: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

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Alertando quanto à penetração do Direito no campo educacional, Cury, Baia Horta,

Fávero (2001, p. 30) afirmam:

[...] muitas vezes foi absorvida apenas como uma técnica jurídica, sem ser considerada como uma concepção de sociedade. Está ainda presente, muitas vezes, na área educacional, a percepção da razão jurídica como formalismo. Por isso, é relevante não só mostrar a importância da formalização como decorrência de uma prática histórica, como também evidenciar uma concepção de sociedade, no interior de práticas jurídicas, que tem a ver com a própria prática educacional.

Num momento em que as ciências humanas se renovam pela busca da construção de campos interdisciplinares, direito e educação podem travar fecundo diálogo em vista de uma democratização educacional.

A primeira grande compreensão a assinalar está marcada em Bobbio (1992, p. 4)

sustentando que “no plano histórico a afirmação dos direitos do homem deriva de uma radical

inversão de perspectiva, característica da formação do Estado moderno, na representação da

relação política, ou seja na relação Estado/cidadão ou soberano/súditos [...]”. O autor vai mais

longe, apontando

[...] que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. (BOBBIO, 1992, p. 5).

O autor também destaca que as liberdades fundamentais que os indivíduos

conquistaram nas lutas contra a opressão são “fundamentais porque naturais, e naturais porque

cabem ao homem enquanto tal e não dependem do beneplácito do soberano” (BOBBIO, 1992,

p. 4), reafirmando o modelo jusnaturalista, em contraposição ao modelo aristotélico17 que,

segundo ele, sempre renasce.

Assinala, ainda, que entre os juristas europeus continentais, a distinção clássica se dá

entre direitos naturais e direitos positivos, enquanto para juristas americanos e ingleses esta se

põe entre direitos morais e legais. Essa distinção é facilmente rejeitada, por exemplo, entre

franceses, italianos e alemães, para os quais se colocam redundâncias e contradições nessas

expressões, mostrando que o debate na área se faz confuso, até mesmo pela imprecisão do

conceito. Dependendo da origem e do fundamento, o conceito pode assumir sentido distinto,

com linguagem bastante ambígua e imprecisa, freqüentemente usada de modo retórico.

Resguarda, no entanto, a idéia de que direito subjetivo faz sempre alusão “a um sistema 17 Modelo aristotélico é aquele que pensa o indivíduo ligado à Cidade-Estado, a pólis grega, submetendo-o e suas ações ao bem comum, o que pode vir a produzir, com isso, a anulação de sua individualidade.

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normativo, seja ele chamado de moral ou natural, jurídico ou positivo”. (BOBBIO, 1992, p.

8).

Marshall (1967, p. 63-64), associa a questão do direito ao conceito de cidadania,

destacando, até o final do século XIX, três partes nesse conceito como elementos que o

constituem: civil, composto pelos direitos necessários à liberdade individual; político, o que

compreende o direito de participar do exercício do poder político, como membro investido de

poder político ou como eleitor; social, o que vai do direito a um mínimo de bem-estar ao

direito de participar, completamente, da herança social e dos padrões que prevalecem na

sociedade. Sistema educacional e serviços sociais se incluem nesse conjunto. De início,

[...] os direitos sociais do indivíduo igualmente faziam parte do mesmo amálgama e eram originários do status que também determinava que espécie de justiça ele podia esperar e onde podia obtê-la, e a maneira pela qual podia participar da administração dos negócios da comunidade à qual pertencia. [...] Na sociedade feudal, o status era a marca distintiva de classe e a medida de desigualdade. (MARSHALL, 1967, p. 64).

O mesmo autor (1967, p. 66) ressalta, ainda, um divórcio acentuado entre os

elementos constituidores da cidadania, o que permite demarcar os séculos em que cada um

deles se formou: direitos civis no século XVIII; políticos no século XIX e sociais no século

XX.

O direito civil básico reconhecido desde cedo é o direito de trabalhar, constantemente

e até hoje ainda associado à exigência de treinamento/educação. Do trabalho servil ao

trabalho livre, a característica dos direitos civis é a que associa novos direitos, a um status já

existente, significando na Inglaterra do século XVII, a liberdade, por serem todos os homens

livres. Como bem acentuou Bobbio (1967), essa trajetória dos direitos se faz segundo um

momento histórico e sob determinadas condições, sendo impossível transpô-la para a

realidade (histórica) de outros países. De onde se escreve esta história trazida por Bobbio —

da perspectiva européia, de países em torno dos quais girava a riqueza e o poder econômico

—, pode-se pensar o que ocorria, nessa mesma época, entre nós, no Brasil, cuja luta pela

independência ainda tentava desatrelar o país da condição de colônia.

A história dos direitos políticos, que se consolida no século XIX, não se faz pela

perspectiva de ampliação de direitos, enriquecendo o status de liberdade já usufruído por

todos, mas no sentido da doação de velhos direitos a novos setores da população. Nesse caso

situa-se a parcela de eleitores, restrita a um quinto da população masculina adulta, por ser

ainda o direito de voto um monopólio de grupos.

Page 58: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

56

No século XIX a cidadania na forma de direitos civis era universal, direitos esses

acentuadamente individuais, harmonizando-se, por isso mesmo, muito bem com o período

individualista do capitalismo. Nos direitos de cidadania, no entanto, não se incluíam os

direitos políticos. Estes constituíam o privilégio de uma classe econômica restrita, não

consistindo um direito, mas reconhecendo uma capacidade. A sociedade capitalista do século

XIX vai tratar os direitos políticos como produtos secundários dos direitos civis. No século

XX essa posição é abandonada e esses direitos são associados diretamente à cidadania. É

ainda do século XIX a Lei dos Pobres (Poor Law) que tenta equilibrar a renda real às

necessidades sociais e ao status do cidadão e não apenas ao valor de mercado de seu trabalho.

Fracassando logo em seguida, para que as reivindicações dos pobres fossem atendidas foi

preciso renunciar aos direitos de cidadãos.

O divórcio entre direitos sociais e o status de cidadania se mostra tanto nessa lei

quanto, em seguida, nos primeiros Factory Acts, que embora levassem a uma melhora das

condições de trabalho, só protegiam os não-protegidos — as crianças e as mulheres, ambos

não-cidadãos. Se as últimas quisessem gozar da cidadania, deviam desistir da proteção.

Todos esses elementos não se encontram isolados do que se passou na história da

educação. Se é verdade que a legislação industrial protegeu as crianças do excesso de trabalho

e da maquinaria perigosa, não afetando seu status de cidadão — o que elas não são —, educá-

las, tomado como garantia do dever do Estado, significa admitir e ter em mente as exigências

da cidadania, ou seja, a formação de cidadãos.

O direito à educação é um direito social de cidadania genuíno porque o objetivo da educação durante a infância é moldar o adulto em perspectiva. Basicamente, deveria ser considerado não como o direito da criança freqüentar a escola, mas como o direito do cidadão adulto ter sido educado. [...] A educação é um pré-requisito necessário da liberdade civil. (MARSHALL, 1967, p. 73).

Essa afirmação de Marshall coloca-me diante, talvez, de uma defesa inexorável para o

direito de todos à educação, independente da idade. Ao creditar à educação na infância o

objetivo de “moldar o adulto em perspectiva” — e nesse ponto poder-se-ia discutir este

modelo de educação que não vê a criança como criança, mas pelo que ela virá a ser —, admite

que, ao chegar à vida adulta, o exercício de sua cidadania se faz com base na educação que

deveria ter recebido na infância. Pode-se, então, depreender que, se isto não aconteceu nesta

fase, a sociedade deve-lhe educação, para que possa exercer, adequadamente a cidadania.

Page 59: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

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Marshall indica, ainda, que a educação primária européia, desde o final do século XIX,

é não apenas gratuita, mas obrigatória18. Essa conquista tem início em 1763, no século XVIII,

como assinala Baia Horta (1998, p. 7), recuperando historicamente o surgimento na Europa

do direito ao ensino primário de todos os cidadãos e dever do Estado, na Prússia de Frederico

II, primeiro país a estabelecer a instrução primária obrigatória. Assinala Baia Horta, ainda,

que só em 1878-1882, na Terceira República, a França terá a escola primária obrigatória,

gratuita e laica, quase ao mesmo tempo em que o ensino elementar assume caráter obrigatório

na Inglaterra e no País de Gales. Marshall afirma que essa educação do final do século XIX é

um direito individual, vinculado a um dever público de cumpri-lo, o que conferiu a cada

comunidade que exigiu o cumprimento dessa obrigação pelo Estado a consciência de que “sua

cultura é uma unidade orgânica e sua civilização uma herança nacional”. (MARSHALL,

1967, p. 74). Esse direito à educação primária pública vem a ser o grande passo que

restabelecerá, no século XX, os direitos sociais da cidadania, estabelecendo um plano de

igualdade com os outros dois elementos da cidadania. A despeito do crescimento do

capitalismo, sistema econômico e de relações sociais desiguais, em direção oposta,

paradoxalmente, também cresce a cidadania, em guerra com o sistema de classes capitalista.

Baia Horta (1998, p. 7) também aponta que “depois da Segunda Guerra Mundial

assiste-se a uma considerável democratização do ensino e a um aumento da duração da

escolaridade obrigatória” e relembra que a Declaração Universal dos Direitos Humanos,

proclamada em Paris em 10 de dezembro de 1948, pela Assembléia Geral das Nações Unidas

assim determinava:

Art. 26 – Toda pessoa tem direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos no que se refere à instrução elementar e fundamental. A instrução elementar será obrigatória.

O mundo no pós-guerra iniciava um forte conjunto de transformações, tanto derivadas

dos avanços tecnológicos e da ciência, promovidos para o enfrentamento do conflito quanto

nascidas das necessidades para fazer face aos desarranjos sociais que se estabeleceram. Dentre

essas, a educação, e dentro dela a de adultos surge como necessidade premente, forma e

conteúdo do mundo que se reorganiza na Europa, carente de sujeitos que possam gestar a vida

que ressurge do conflito e de suas conseqüências. Mais significativo, ainda, é admitir que o

18 Sobre este aspecto vale destacar a distância que a educação pública no Brasil assume dessa realidade histórica, quando em meados do século XX, a instrução pública, que fazia o status de filhos de famílias médias, era vista como um distintivo de lugar social subalterno, e não pela garantia do direito à educação para todos, como dever do Estado. Representava um privilégio, este sim, para as elites, que seus filhos pertencessem às escolas privadas, tidas como de qualidade, capazes de conferir a formação adequada ao padrão exigido pela classe social.

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que até então se traduzia como direito social, passa, desde 1948, a ser proclamado como

direito humano, estendido a toda pessoa, nos termos da Declaração.

Nem sempre, no entanto, o conceito de cidadania esteve vinculado a direitos sociais,

mas, em determinado momento, a direitos civis, dando ao homem o poder de participar na

concorrência econômica, negando-lhe, por isso, a proteção, por entender que estava

capacitado a proteger-se a si mesmo.

Se por um lado a educação primária conferia status de cidadania, aumentando o valor

do trabalhador, por outro não ameaçava o capitalismo, porque apenas o educava no nível de

sua condição de subsistência.

Reiterando a idéia de que no século XIX os direitos sociais compreendiam um mínimo

e não faziam parte, de início, do conceito de cidadania, observa-se que sua finalidade era

reduzir o ônus da pobreza, sem alterar o padrão de desigualdade, que gera(va) a própria

pobreza. No entanto, os modos de produção em massa e o crescente interesse da indústria

pelas necessidades e gostos das massas fizeram com que os menos favorecidos

desenvolvessem uma condição de qualidade material que pouco diferia dos mais favorecidos.

Diminuída a desigualdade, cresce a luta por sua abolição, especialmente em relação à essência

do bem-estar social.

Os direitos sociais, então, abandonam a idéia de alívio da pobreza para adquirir um

sentido de ação capaz de mudar a origem das desigualdades, buscando transformar a

superestrutura, mantenedora dessas desigualdades. Aqui cabe observar o quanto dessa idéia

tem sido resgatado, na contemporaneidade, no âmbito do projeto neoliberal, para quem os

direitos sociais têm sido objeto de identificação com o alívio da pobreza, negando toda a

conquista histórica dos trabalhadores e dos movimentos organizados, feita direito, ao longo de

vasto processo de lutas sociais.

Marcadamente agora como benefícios oferecidos em forma de serviços, os direitos

sociais são imensuráveis e incontroláveis. Pode ser fácil fazer com que todas as crianças

passem um determinado número de horas na escola, mas como dimensionar a qualidade dos

professores que lá estão com elas e os serviços que lhes são oferecidos?

Para a exigência das políticas públicas, o ritmo das reivindicações é desigual em

relação aos recursos orçamentários, não podendo o Estado prever quais serão os custos dos

serviços oferecidos, já que eles vão aumentando o padrão de exigência, principalmente

quando as obrigações para a cidadania ficam mais pesadas. Há um contínuo movimento para a

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59

frente, sempre inalcançável, no que diz respeito às exigências que prenunciam novos direitos.

Desse modo, coloca-se ao Estado a questão de que sua obrigação é com a sociedade como um

todo, embora esse todo admita questões individuais, passíveis de buscar recursos junto a

tribunais, se não atendidas ou parcialmente atendidas. O equilíbrio entre esse coletivo e esse

individual se põe como um dos desafios do Estado democrático, tentando contrabalançar,

ainda, os interesses das classes dominantes.

No tocante à educação, pode-se observar, no caso brasileiro, o tensionamento que

ocorre nas escolhas feitas pelos poderes constituídos, no que deveria representar o equilíbrio

entre direitos individuais e coletivos. Debaixo de uma falsa prioridade do direito igual, por

exemplo, para todos os jovens ingressarem no ensino médio, preceituado, como horizonte,

pela Constituição de 1988, reduziu-se, pela lei do ensino médio, a qualidade do que se

entende mínima para a formação desses jovens e, ainda se estabeleceu prioridade para os

direitos individuais, criando mecanismos de seguimento e de acesso a vagas que comportam a

visão de capacidades (ou competências como vêm sendo chamadas) para alguns, enquanto

para outros os caminhos já estão pré-traçados, tendo em vista sua “reconhecida incapacidade”.

Resolve-se, dessa forma, a questão das vagas e do atendimento, pela menor qualidade e tempo

de permanência dedicados aos cursos diferenciados. Essa forma de fazer política pública não

apenas reduz o espectro do que foi, um dia, direito, mas também resgata a idéia de que a

“naturalmente” desiguais, oferecem-se projetos segundo “suas capacidades”, legitimando as

escolhas políticas e reforçando lugares sociais imutáveis.

Por outro lado, a relação entre educação e trabalho continua reforçando o sistema de

certificação, sem o que não se qualifica para empregos. Certificados, declarações são,

freqüentemente, a finalidade última do direito à educação, não importando se o direito exige o

processo de ensino-aprendizagem para todos, o que efetivamente, em muitos casos, não chega

a acontecer. Esse sistema de reconhecimento do mérito (a terminalidade de uma etapa da

educação), quando existe, constitui um “abre-te sésamo” que dura a vida inteira, não

importando se o modo como essa legitimação se deu tenha sido, ou não, de terceira ou

primeira classe, e não admitindo, também, o trânsito desse lugar conquistado para outro

melhor, mesmo quando a prática possa ter conferido qualificação adicional à certificação

obtida. É esta que permanece valendo, pela vida afora. O status adquirido pela educação

acompanha inexoravelmente o sujeito, legitimado pela aprovação social à instituição escola.

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60

O discurso da igualdade de oportunidades está presente, necessariamente, encobrindo

o que uma sociedade de classes, de lugares desiguais, admite como ponto de partida: que o

acesso a essas oportunidades já está definido, antecipadamente aos processos seletivos.

Marshall (1967), por fim, defende a tese de que a preservação das desigualdades

econômicas ficou mais difícil, à medida que avançou e se enriqueceu o status de cidadania.

Com isso, cresce a justiça social, como direito que visa a equilibrar as relações entre as

necessidades econômicas e a cidadania.

No sistema de direitos sociais que a civilização veio construindo, ao longo da história,

a educação, de direito, passa a ser legitimamente entendida como direito obrigatório, passível

de punição aos pais/responsáveis que deixem de propiciar esse direito aos filhos. A

complexidade das fronteiras que se estabelecem entre direitos e deveres aponta, no século

XXI, para a investigação sistemática do que se tomou como fundamento da vida social, nos

sistemas de contratos e de regras democráticas.

Bobbio (1992, p. 5-6) reconhece, a partir dos chamados direitos naturais, ou

fundamentais, de primeira geração, um conjunto de novos direitos nascidos de necessidades e

carecimentos em tensão com usos e costumes dos quais os indivíduos sociais faziam parte (os

direitos consuetudinários), conjunto esse de direitos agora chamados de segunda geração —

os direitos sociais. A partir daí reconhece também que desses emergem, na atualidade, os

direitos chamados de terceira geração (categoria ainda heterogênea e vaga, mas indispensável

para compreender, por exemplo, as reivindicações dos movimentos ecológicos quanto a viver

em ambientes não poluídos) e, por último, os direitos de quarta geração, que envolvem as

manipulações de patrimônio genético, por exemplo.

Entretanto, assinala que a linguagem dos direitos tem uma grande função prática,

porque empresta força particular aos movimentos que reivindicam a satisfação de novos

carecimentos e necessidades, tanto materiais quanto morais, embora sua formulação, por si só,

não garanta a proteção que o direito deveria conferir. A massa dos sem-direitos, apesar da

proclamação de muitos deles, não invalida a busca permanente por novos direitos, no

horizonte de novos carecimentos sociais.

Os direitos individuais tradicionais, que constituem as liberdades não são, ainda hoje,

gozados por todos os homens. Os direitos sociais, que consistem em poderes, são

continuamente objeto de luta e de reafirmação, face às hegemonias e os pensares dominantes

que incessantemente aviltam as obrigações positivas de que eles carecem. Concordando com

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61

Bobbio (1992, p. 21) quanto mais aumentam os poderes dos indivíduos, tanto mais diminuem

as liberdades dos mesmos indivíduos.

Não é a busca do fundamento absoluto (nem de sua superação), diz Bobbio, que está

em jogo, na perspectiva dos direitos, mas a de buscar os vários fundamentos possíveis em

cada caso concreto, que sustente a proteção aos direitos, mais que a sua justificação. É o fato

de serem históricos que permite a possibilidade de busca dos vários fundamentos, não

negáveis por questões do próprio fundamento, mas porque pertencem a uma determinada

razão histórica. O problema dos direitos não reside no campo da filosofia, apenas, deixando

sozinhos os filósofos, mas exige a compreensão dos problemas sociais, econômicos,

históricos, psicológicos, inerentes à sua realização. É, sobretudo, um problema político.

A relação entre direito e cidadania é recente na cultura humana. Três séculos de

tensões, proposições, novas tensões, direito e desigualdade. Lutas sociais e avanços, mas

também perpetração desigual de privilégios e de negação da igualdade entre sujeitos

marcaram essa história.

Para Souza Filho (1999, p. 332), os novos direitos coletivos, sociais, difusos,

“florescem com o avanço do Estado do Bem-Estar Social, mas frutificam apenas quando se

vive a democracia”. Acredita que a democracia é um pressuposto, porque é também

“pressuposto destes direitos a possibilidade de serem exercidos ainda contra a vontade do

Estado, não para substituí-lo, mas para compeli-lo a agir nas omissões e corrigir suas ações

nefastas”. Sem democracia enfatiza, esses direitos se confundem com as razões do Estado,

persistindo em forma de simulacro ou de rebeldia, desprovido do conteúdo da cidadania, dos

direitos humanos, dos direitos coletivos.

Souza Filho (1999, p. 311, 309) ainda, assinalando que o direito do Estado moderno se

assenta na concepção de direitos individuais, que para existirem estiveram apoiados, na

sociedade capitalista, na propriedade19 (de um bem, de uma coisa, de um objeto que

componha o patrimônio individual), destaca que esse direito era, em verdade, a possibilidade

de cada homem livre adquirir direitos. Para isso, conclui, fora criada a organização estatal:

garantir, individualmente, o exercício de direitos.

Necessária se faz essa compreensão, pois, a partir dela, se entende porque o direito

coletivo só poderia ser pensado como conjunto ou soma de direitos individuais e, como tal, 19 Segundo Souza Filho (1999, p. 309) “o direito se construiu sobre a idéia da propriedade privada capaz de ser patrimoniada, isto é, de ser um bem, uma coisa que pudesse ser usada, fruída, gozada. Portanto, esta propriedade é material, concreta. Isto significa que o direito individual é, ele também, físico, concreto”.

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tratados. Os problemas coletivos, de todos, tiveram de ser tratados como do Estado, opondo-

se público a privado. A pessoa jurídica, una, é, sempre, formada de pessoas individuais

múltiplas. A reafirmação da pessoa jurídica garante a idéia do patrimônio individual. A

direitos correspondem deveres e, por isso, os titulares de direito no Estado moderno precisam

ser unos e identificáveis.

Não é outra a razão porque os direitos coletivos têm sido tão invisibilizados. Desde a

Revolução Francesa, nenhum poder deveria existir entre o Estado e o cidadão, o que exige,

portanto, um sujeito de direitos e, conseqüentemente, um bem, uma propriedade. Como os

direitos coletivos nem sempre são materializáveis, escapa o objeto do qual o poder judiciário

pode reconhecer a propriedade, fazendo com que tudo que seja coletivo seja também estatal,

ou seja omitido, invisível. Sindicatos e partidos políticos em certa medida rompem essa

lógica, tratando de interesses coletivos, embora os sujeitos de direitos tenham, em relações

trabalhistas, contratos individuais.

A cultura contratual e constitucional da aquisição de direitos e da propriedade como

suprema liberdade permanecem vinculadas ao campo do Direito, mesmo com a evolução de

novos conceitos, institutos e razões, enquanto o Estado do Bem-Estar Social, revendo suas

funções, redefine o Direito Público, fazendo avançar o espaço público sobre o privado e

modificando o conceito de função social da propriedade. “São direitos da sociedade, que

interferem, alteram e modificam a relação jurídica do sujeito com o objeto de seu direito. São

interferências com poder de limitar a propriedade por questões ambientais, sociais, sanitárias,

estéticas, históricas, culturais etc.”. (SOUZA FILHO, 1999, p. 316).

A existência de instâncias cada vez mais intermediárias entre a sociedade e o Estado

vai se fazendo, tanto por exigência da democracia, como da luta interna da sociedade e de sua

estrutura coletivizada, enquanto processo produtivo. Organizações não-governamentais

praticam, sem ser Estado, mas coletivamente, políticas públicas, e defendem direitos que não

são individuais. (SOUZA FILHO, 1999, p. 317).

É por essa via que o movimento social produz, em seu interior, projetos de educação

de jovens e adultos, nos quais um dos objetivos — a escolarização —, se faz com base no

resgate da cultura e dos elementos cotidianos dos sujeitos que vivem, sem saber ler e escrever,

a cultura do escrito que organiza a sociedade.

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63

Ao mesmo tempo em que projetos oficiais desenvolvem modos, métodos e práticas

com recursos públicos, outros se fazem com a experiência de entidades religiosas,

filantrópicas, associativas etc., de modo geral também com recursos públicos.

Tanto assim que, na atualidade, discute-se o que foi chamado por Bobbio de direitos

de 4ª geração, ou direitos emergentes. O próprio entendimento de direitos humanos, que

segundo Grzybowski (2004, p. 50)

[...] condensam em si mesmos uma importante parte da história da humanidade: forjaram-se nas lutas de movimentos de inspiração emancipatória, portadores de valores de liberdade, igualdade, diversidade e solidariedade para todos os seres humanos. Do ponto de vista sociológico e político, antes de serem reconhecidos por leis e exigidos nos tribunais, os direitos humanos estão no centro das lutas sociais — nas quais consciência, desejos, vontade e circunstâncias reais de vida de cada agrupamento humano também influenciam.

A discussão do sentido de direito, e de seus beneficiários, expõe outro lado da questão,

ou seja, os não-incluídos nas diversas categorias do direito. Os processos de inclusão nos

direitos sociais vão se fazendo como conquista; não são, em muitos casos, dados, o que

significa dizer que não basta constituí-los como direitos para auferir de sua proteção. Nos

processos de luta e conquista, pode-se falar de não-incluídos, admitindo-se que o serão

gradativamente, no cumprimento do que passa a ser um dever para o Estado. No entanto, na

prática, essa condição não permanece absoluta, sendo necessário admitir que a ela se juntarão

os excluídos, ou seja, os que, já tendo sido incluídos algum dia, perderam a condição de sê-lo,

por razão posta fora do sentido do direito, acirrando, de fato, as desigualdades.

A idéia de exclusão se opõe, necessariamente, à de não-inclusão, por oposição,

significando os que não são nem serão beneficiários de direitos, por princípio, iguais para

todos. Um ou outro sentido, no entanto, força o encontro de não-incluídos com os excluídos,

dentre as múltiplas situações que revelam as desigualdades sociais e que, especificamente, o

não-pertencimento ao benefício do direito à educação pode gerar, como

alfabetizado/analfabeto/não-alfabetizado etc.

Buarque (2001, p.155), na obra singular de dicionarizar, pessoalmente, conceitos que

reconstrói para compreender os sentidos que assumem no mundo globalizado, assim escreve

no verbete sobre exclusão:

As gerações anteriores não podiam imaginar a dimensão que seria alcançada pelas maravilhas criadas pelo avanço técnico, ao longo do século XX. Nem mesmo os escritores de ficção científica mais visionários conseguiram

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64

vislumbrar todos os benefícios que foram conquistados. Ainda menos poderiam conceber que imensa parte da humanidade estaria excluída de tais benefícios. Mesmo reconhecendo as dificuldades de uma delimitação clara da linha que separa excluídos e incluídos, sobretudo em face da dinâmica com que mudam gostos, desejos e possibilidades sociais, é possível assumir o conceito de exclusão no acesso aos bens e serviços essenciais.

Complementar a este, quando se refere ao conceito de incluídos, remete-se ao conceito

de exclusão e, por oposição, conceitua o primeiro. Passo a citar parte de seu verbete,

ampliando a conceituação:

Mas a história social não cumpriu a parte que lhe cabia no acordo, e uma parte considerável da humanidade ficou excluída dos benefícios. Ainda mais grave, o avanço técnico ocorreu a uma velocidade tão grande que passou a aumentar a desigualdade e ameaçar a estabilidade ecológica do planeta. A exclusão deixou de ser uma etapa a ser superada: é um estado no qual bilhões de seres humanos — os excluídos da modernidade — estão condenados. (BUARQUE, 2001, p. 188).

O que surpreende, nessa formulação, é o confronto com a idéia de que, por essa lógica,

não há chance de superar a condição de não-incluído/excluído, porque para muitos direitos o

caminho é sem volta, só restando o que o autor chama de condenação.

Esta condenação de que fala Buarque, parece ser ainda bastante visível no Brasil,

apesar do processo de industrialização e urbanização pelo qual passou, desde a segunda

metade dos anos 1990. Se por um lado a industrialização garantiu uma mudança radical nos

modos de produção e definiu uma nova organização social e do mundo do trabalho,

possibilitando ao país o ingresso em um concerto de nações de outro nível econômico, por

outro fez-se à custa de processos de produção em que os homens — trabalhadores e

integrantes desses processos de desenvolvimento não viveram, nem como sujeitos, nem como

trabalhadores, o próprio desenvolvimento20, integrando os processos à margem deles, se isto é

possível de ser pensado, sem acompanhar nem usufruir das aceleradas transformações a eles

submetidas, para continuar a produzir lucro e competitividade. As mudanças não foram

somente provocadas pela industrialização, mas também pela “reforma agrária” às avessas, que

ocorreu quase no mesmo período. As exigências dessa “reforma agrária” incluíram projetos

de educação tipicamente alternativos aos “modelos” urbanos, em disputa não apenas ao

direito à educação, enunciado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, como

20 Cândido Grzybowski reconhece o direito ao desenvolvimento como direito humano, e apresentou, inclusive, propostas para uma declaração de direitos humanos emergentes como contribuição ao diálogo Direitos humanos, necessidades emergentes e novos compromissos no Fórum Universal das Culturas, em Barcelona, 2004.

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65

também a um tipo de educação chamada “do campo”, defensora e propagadora de valores da

terra, de um ambiente sustentável e de um outro projeto de sociedade.

Fundamento e princípio da constituição do direito à educação, a questão democrática,

outro tema central desse estudo, será tratado com o concurso de pensadores da educação,

tendo o horizonte da sua prática efetiva nos sistemas educacionais. Esse percurso é

indispensável para compreender a negação do direito para muitos, excluídos da cidadania e do

que a educação pode oferecer para exercê-la e dela participar. Isto define meu recorte, restrito

à educação de adultos, inicialmente assim considerada, até a forma como expressa a

ampliação da negação de direitos, pelo uso do termo educação de jovens e adultos, que

incorpora um segmento etário destituído, mesmo em tempos de ênfase na universalização do

ensino fundamental, do direito a passar pelos processos de escolarização com sucesso, ou

seja, aprendendo.

No entanto, não tem sido automática a assunção do direito à educação com o dever de

oferta pelo Estado, e em inúmeros momentos a sociedade civil assume um protagonismo

essencial na conquista de direitos. Semeraro, parafraseando Coutinho (1993) na análise das

relações dos movimentos organizados com o Estado, em defesa de direitos, afirma:

É no decorrer das últimas décadas, de fato, que setores crescentes de trabalhadores perceberam as diversas formas da sociedade civil como um terreno importante de luta de classe, uma esfera privilegiada onde travar a intensa disputa pela hegemonia, um espaço político criativo e decisivo para avançar suas reivindicações, desenvolver as suas potencialidades subjetivas e sociais, para construir um consenso ativo entre forças convergentes e instituir formas de uma democracia popular capaz de recriar uma nova concepção de Estado e novas relações sócio-político-econômicas (SEMERARO, 1999, p. 7).

Mas também afirma que, contraditoriamente, na contemporaneidade, ficou mais difícil

visualizar e articular este “projeto aglutinador das classes trabalhadoras e das forças populares

em torno de uma concepção de sociedade e de Estado alternativos ao liberalismo”

(SEMERARO, 1999, p. 7), principalmente pela hegemonia de um discurso que, segundo

Rancière (1996), apontado por Semeraro (1999, p. 7), “tenta anular as contradições sociais e

visa (a) neutralizar as relações dialéticas que, em uma verdadeira democracia, perpassam a

sociedade política e a sociedade civil”.

Paradoxalmente, jovens e adultos excluídos do direito à educação são os mesmos que

integram a PEA, produzindo, com sua força de trabalho, a riqueza do país. Tanto que, na

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66

análise de Furtado (Jornal do Brasil, 3 out 1993, p. 13), sobre a lógica da acumulação de

riqueza, a condição da maioria dos brasileiros assim é exposta:

Durante 50 anos o Brasil cresceu mais do que qualquer país do mundo, alcançou uma das taxas de crescimento mais altas, 7% ao ano — a cada 10 anos o PIB dobrava. Mas o país fez isso acumulando miséria. O crescimento é necessário, mas não suficiente.

O movimento de globalização do capitalismo, ao final do século XX, carregando

consigo a globalização do mundo do trabalho, o que compreende tanto a questão social,

quanto o movimento dos próprios trabalhadores, altera suas demandas educacionais. Tanto o

mundo do trabalho quanto o dos trabalhadores apresentam características mundiais, ou seja,

não se restringem apenas aos locais onde as relações se dão:

[...] são desiguais, estão dispersos pelo mundo, atravessando nações e nacionalidades, implicando diversidades e desigualdades sociais, econômicas, políticas, culturais, religiosas, lingüísticas, raciais e outras. Inclusive apresentam as particularidades de cada lugar, país ou região, por suas características históricas, geográficas e outras. Entretanto, há relações, processos e estruturas de alcance global que constituem o mundo do trabalho e estabelecem as condições do movimento operário. (IANNI, 1996, p. 17)

As modificações da organização da produção — o padrão flexível — também

modificam as condições sociais e as técnicas de organização do trabalho, o que exige do

trabalhador polivalência, abrindo perspectivas em sentidos diversos, ao mesmo tempo em que

potencializa a força produtiva do trabalho, tornando-a mais técnica. A flexibilização do

trabalho e do trabalhador está sob o comando de uma nova racionalidade do processo

(re)produtivo do capital, vigorando de forma globalizada.

Essa acumulação flexível parece, ao mesmo tempo, implicar níveis relativamente altos

de desemprego estrutural, ganhos modestos (quando existem) de salários reais, retrocesso do

poder sindical e rápida destruição e reconstrução de habilidades. Criam-se novas

especializações, alteram-se as relações entre as forças produtivas e articula-se diferentemente

o trabalho intelectual e manual. Profissionais de nível superior, de nível técnico e operários

são postos diante de novas relações recíprocas, contínuas, diversificadas e inovadoras, no

interior do processo produtivo. O trabalhador, agora, não é apenas individual, mas coletivo. O

que afeta um, afeta toda a categoria em escala global. Mas, ao mesmo tempo em que a

produção se desterritorializa, migrando vorazmente pela velocidade que as comunicações

imprimiram para a virtualidade do capital, também os trabalhadores migram,

desterritorializam-se, em busca de espaços e horizontes que incorporem suas condições de

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67

raça, sexo, língua, tradição, idade, religião, expectativa, sonho, ilusão. Um novo mapa do

mundo se redefine, pelo movimento mundial do capital, mas especialmente pelo movimento

migratório dos trabalhadores.

Grzybowski (2004, p. 52) defendendo o direito humano ao desenvolvimento,

entendendo que esse é, ainda, um campo de disputas, afirma que “o drama de migrantes é

exemplar na revelação das contradições da globalização dominante e do empecilho que ela

representa para se pensar em desenvolvimento, e muito mais em justiça social e democracia

promotora de liberdade e dignidade humanas.” Discutindo a flexibilização advinda com o

princípio base da globalização, o do livre mercado, afirma que:

[...] o direito dos detentores do dinheiro e capital se sobrepõe aos direitos humanos. Como conseqüência prática, flexibilizam-se direitos humanos, em particular tudo o que se refere ao trabalho, desregula-se e se reduz o papel do Estado na economia, privatizam-se e abrem-se os mercados nacionais (GRZYBOWSKI, 2004, p. 52).

Nesse contexto, a questão social surge como um novo desafio, porque precisa ser

pensada não apenas na ordem local, dentro das conjunturas e das construções históricas em

que foi produzida, especialmente considerando-se, no caso do Brasil, os fortes traços

colonialistas que ainda marcam o modo produtivo nacional. Agora a questão social manifesta-

se em escala mundial, recriando diferentes aspectos, bem como engendrando novos. E estes

vêm afetando tanto os países subdesenvolvidos, como criando subdesenvolvimento na

periferia das cidades do chamado Primeiro Mundo. Alguns desses aspectos podem ser

traduzidos pelo desemprego cíclico e estrutural; pelo acirramento das intolerâncias,

preconceitos e discriminações ligadas à condição sexual, racial, política, de idade, de credo

religioso, fazendo ressurgir movimentos racistas, xenófobos, separatistas, fundamentalistas,

entre outros; pela migração que dissocia e desagrega famílias, ampliando a pauperização e

provocando o crescente abandono da escola pela indiscutível necessidade do trabalho infantil

e da exploração de menores; pelo crescimento de subclasses e de padrões indignos e

subumanos de habitação, de fome, de saúde e de vida.

A perda do emprego é um processo seletivo, que tem e não tem relação direta com o

nível de escolarização — a chamada “educação” — dos trabalhadores. Ao mesmo tempo em

que se adensam os trabalhos informais, pela prestação de serviços, admitindo a pouca

escolaridade como “natural”, no âmbito dos trabalhos qualificados, a seleção se estabelece

pelo predomínio das tecnologias e dos sistemas eletrônicos — trabalhadores desencarnados

Page 70: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

68

que substituem, com vantagem, na linguagem do capital, os profissionais habilitados para

funções precisas.

O direito ao trabalho e à educação do trabalhador, como direito social, se

complexificam, tanto pela forma como se passa a conceber um projeto pedagógico para a

educação desses sujeitos produtivos, quanto pelo modo como se desarticula e desorganiza o

valor do trabalho, assim como seus cânones, suas premissas, suas consolidações jurídicas.

Tensionam-se as relações entre velhos e novos trabalhadores, uns apegados às conquistas

históricas das quais usufruíram direitos, outros em disputa pelo direito ao trabalho, agora visto

pela ótica de ter alguma ocupação, em uma sociedade sem emprego. Os trabalhadores que se

constituíram como tais pelo trabalho, e por esta via constituíram-se cidadãos, questionam-se

sobre um futuro incerto, duvidoso, e freqüentemente admitem que a insegurança é culpa

individual, pela baixa escolaridade, pela pouca “educação”. No entanto, como trabalhadores

constituíram suas vidas, família, prole, educaram seus filhos, exerceram a cidadania,

ensinando o mesmo valor que os constituiu, embora na prática, nem para si próprios, os

valores estejam sendo mantidos. Desempregados, alimentam a ilusão de novo emprego,

buscando a chance renovada na escola ou nos cursos de formação profissional, para conseguir

novos empregos, para mantê-los ou para ascender a níveis de maior prestígio.

O que caracteriza o mundo do trabalho nesse início de século é que este se tornou,

realmente, global. Não se globaliza apenas o capitalismo, mas também o mundo do trabalho,

impondo-lhe novas formas e novos significados. As mudanças afetam não apenas as forças

produtivas em seus processos e dinâmicas, mas também a composição e a dinâmica da classe

operária e a própria estrutura social, em âmbito local, nacional, regional e mundial. As

questões sociais daí decorrentes não são retóricas, mas rompem com paradigmas e modos de

pensar até então constituídos, para exigir novas compreensões e (re)significações de sentidos

e manifestações.

Se, por um lado, a realidade do crescimento tem como aliados fortes representantes do

poder econômico para garantir a investida do capital pela via do modelo neoliberal, ao mesmo

tempo esse mesmo poder, representado por agências multilaterais, como o Fundo Monetário

Internacional (FMI), já não pode mais deixar de defender, nem prescindir, da educação dos

trabalhadores para constituir o avanço do projeto capitalista.

Tanto assim que a recomendação das agências é a formação dos trabalhadores, e não

apenas de treinamento profissional, que a prática mostrou ser insuficiente para dar conta da

complexidade das exigências que as novas relações da produção fazem aos trabalhadores e

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69

aos sistemas produtivos. Se por um lado esta é uma realidade, por outro, a especialização

constitui um fator a mais de exclusão do mercado de trabalho, que se vem reduzindo

sensivelmente. As exigências não apenas impulsionam a formação dos trabalhadores como, ao

mesmo tempo, tornam desnecessários postos de trabalho, pelas substituições que as

tecnologias tendem a criar. Desse modo, para os trabalhadores não basta saber ler e escrever,

mas há que ser leitor experiente, capaz de interpretar e (re)significar códigos e registros,

situando seu processo de trabalho em um espectro mais amplo, que ultrapassa o âmbito do

chão da fábrica. Já não é mais um trabalhador situado apenas em um tempo-espaço definido

pelos limites da fábrica, mas um trabalhador do mundo globalizado, para o qual concorre,

com seu trabalho, para a internacionalização da economia.

Contrariamente ao que se apregoava, “o mito da ‘fábrica sem homens’”, o capital não

se basta com a ciência e a tecnologia, sem a necessária intervenção da experiência humana do

trabalho,

Muito ao contrário, ela nunca foi tão importante. Reduzido o apêndice da máquina-ferramenta durante a revolução industrial, o homem, a partir de agora e inversamente aos lugares-comuns, deve exercer na automação funções muito mais abstratas, muito mais intelectuais. Não lhe compete, como anteriormente, alimentar a máquina, vigiá-la passivamente: compete-lhe controlá-la, prevenir defeitos e, sobretudo, otimizar o seu funcionamento. A distância entre o engenheiro e o operário que manipula os sistemas automatizados tende a desaparecer ou pelo menos deverá diminuir, se se quiser utilizar eficazmente tais sistemas. Assim, novas convergências surgem entre a concepção, a manutenção e uma produção material que cada vez menos implica trabalho manual e exige cada vez mais, em troca, a manipulação simbólica. (LOJKINE apud IANNI, 1997, p. 19).

Pode-se assinalar como os trabalhadores, por exemplo, através dos conselhos em que

se fazem representar, conquistam espaço para reivindicar o ensino fundamental e auferir os

recursos capazes de fomentar e financiar ações de educação continuada para jovens e adultos.

No espaço de participação que conseguem conquistar, inscrevem outros modos de negociar

suas necessidades, promovendo instâncias mais democratizadas de decisão. Diferentes

instituições passaram, então, a se ocupar com mais empenho da educação de adultos,

representando uma prioridade significativa nas ações da área do trabalho.

Em muitos casos, os sistemas federal, estaduais e municipais de ensino têm sido

insuficientes para o desafio da garantia do direito à educação para os trabalhadores.

Impossível confiar unicamente ao Estado a responsabilidade da questão educacional, sem

envolver outros setores da sociedade civil, conjugados em uma ação visando a garantir o

direito da cidadania. Sindicatos, associações de classe, federações, conselhos, centrais

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sindicais ocuparam este lugar, rompendo com a tradição de desacertos históricos que isolaram

das propostas pedagógicas dirigidas aos trabalhadores a dimensão educativa da área do

trabalho, com os diferentes e múltiplos conhecimentos que vêm sendo produzidos pelos

próprios trabalhadores. Assim como romperam com a tradição autoritária de que só as elites

são capazes de definir o que é melhor para os trabalhadores, não apenas buscando

implementar os projetos que lhes são caros como classe, mas também instaurar procedimentos

democráticos, que incluem a negociação, o conflito de interesses, os jogos de poder.

Essa afirmação remonta às condições pelas quais ainda hoje se convive com um Brasil

dito moderno e um país antigo, marcado fortemente pelos traços escravocratas que

constituíram a história nacional e que reforçam um modo de pensar e promover política

educacional cúmplice desse modelo hierarquizado e excludente. Semeraro (1999, p. 6) resume

a situação do país:

Assim, sem ter chegado a se constituir como um país realmente moderno, o Brasil se viu, nestes últimos anos, tomado pelas mais diversas expressões sociais e culturais, muitas das quais de conotação tipicamente pós-modernas decorrentes, basicamente, das metamorfoses de uma nova face do capitalismo implantado rápida e acriticamente. É neste contexto que está se estruturando o quadro complexo e controvertido da atual sociedade civil brasileira.

Em busca de espaços de participação democrática, ressalta, no pensamento do senso

comum, o valor que se atribui à democracia, que pode ser expresso do modo como Weffort

(1992, p. 119) o enuncia: “A democracia é um valor universal pela razão de que suas

conquistas, depois de terem chegado aos trabalhadores, passam a dizer respeito a todos os

homens”. Além disso, posso concordar com Bobbio (apud WEFFORT, 1992, p. 119) quando

afirma:

A democracia é subversiva. E é subversiva no sentido mais radical da palavra, porque, ali onde ela chega, subverte a concepção tradicional do poder, tão tradicional que é considerada natural, segundo a qual o poder — seja o poder político ou o econômico, seja o poder paterno ou o sacerdotal — vem de cima para baixo.

33..33 DDIIRREEIITTOO ÀÀ EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO NNAA EESSCCOOLLAA BBRRAASSIILLEEIIRRAA

A tradição democrática, no entanto, no país, é ainda precária. Os muitos contornos

autoritários na frágil República, os golpes constantes a essa ordem, as ditaduras civis e

militares não podem ser desconsideradas quando se trata da questão da democracia na escola

brasileira, cujo modelo se conforma a partir do modo societário de poder e de produção

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capitalista. Movimentos de resistência da sociedade às formas como a ditadura articulava seu

projeto de nação (incluído o de educação), ou seja, de assunção, por parte da sociedade, de

tarefas até então de responsabilidade do Estado, no âmbito da educação, tensionam os

poderes.

Desde os anos 1950 e 1960, os movimentos de educação popular, principalmente no

Nordeste, vinculados à cultura e a projetos de base nacional, haviam indicado e produzido

caminhos de aproximação com as classes desfavorecidas, não pelas carências expostas pelos

projetos dirigentes como causadoras da pobreza e do analfabetismo, mas pela valorização,

reconhecimento e aprofundamento da cultura popular, como gérmen de qualquer projeto

educativo.

Observando como a democracia vai sendo constituída no pós-ditadura, Coutinho

(2002, p. 23) afirma que “O Brasil emerge da ditadura como uma sociedade de tipo

‘ocidental’, onde havia uma sociedade civil bem mais forte e articulada do que aquela que

havia antes da ditadura”. Cresce o associativismo no Brasil, a sindicalização urbana, e,

sobretudo, a rural e nasce um novo partido político – o PT.

Educação como base da democracia tem sido uma premissa fundamental para a

compreensão dos movimentos e das políticas que se vão constituindo no país. Não se costuma

pôr em dúvida que o exercício da democracia implica uma sociedade educada, e que esta

educação à qual se refere o senso comum não é outra se não a escolar. Parece-me que, neste

modo de pensar a questão, está implícita a idéia de direito, para uma ação pública

indispensável aos modos como se organizou a vida social. Ser educado, no sentido assim

atribuído tem espectro restrito, delimitado pelos conteúdos de que a escola se vale para tornar

democrático o acesso ao saber, saber este posto como exigência da participação social. Este

saber — traduzido no meio pedagógico como “conteúdos da escola” —, no entanto, tem-se

mostrado, na prática social, anacrônico e defasado ao tempo histórico e aos progressivos

avanços da ciência, da técnica, das artes, da tecnologia. Mas permanece referencial para

apartar os que sabem, dos que não sabem, pelo fato de terem, ou não, passado por, e

concluído, determinados níveis de ensino. Ao fazê-lo, estabelece a desigualdade, sustentando-

a exatamente por um não-saber. Entretanto, o saber cujo domínio é, em verdade,

indispensável para a maioria dos trabalhadores, resume-se a uma trilogia aparentemente

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simples: ler, escrever e contar (calcular), precipuamente, apesar de, contraditoriamente, vir-se

apontando o fracasso da instituição escola em cumprir, justamente, esta função21.

A maioria das práticas sociais exige dos sujeitos, em algum momento, intervenções

que partem da cultura escrita, o que termina por colocá-los em situações precarizadas, por não

exercerem nem o domínio da leitura, nem a autonomia para dizer sua palavra. Quanto mais

uma sociedade se democratiza, mais se vincula à exigência de práticas de escrita,

representadas pelos modos como, organizados, os sujeitos reivindicam, denunciam, requerem,

posicionam-se, criticam, emitem opiniões pela oralidade, mas com um sentido preciso do

poder do escrito, de sua permanência e da possibilidade de resgatar seus pleitos, comprovar

suas petições, exigir resultados e respostas. Essa não é outra que a prática política, assentada

em exercícios cotidianos de participação, luta e embates, galgando posições e demarcando

novas ordens de poder.

A prática da democracia, sem dúvida, implica direitos e também deveres políticos,

como alerta Freire (1994, p.185): “A democracia que seja estritamente política se nega a si

mesma. Nela, o direito que se oferece às massas populares é o do voto”. Esse foi o direito

formal que, antes mesmo da promulgação da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988, se

assegurara, inclusive, às massas populares não-alfabetizadas22.

Almeida (2000, p. 37) na História da instrução pública no Brasil (1500-1889), escrita

em 1889, cita comentário de Robert Southey de que no Brasil colônia “havia um grande

número de negociantes ricos que não sabiam ler”. Prova disso é que no Império admitia-se o

voto do analfabeto desde que este possuísse bens e títulos, o que confirma Souza Filho (1999)

com a idéia de direito e propriedade.

Desde 1971, com a aprovação da Lei nº. 5692/71, o ensino de 1º Grau23, obrigatório

dos sete aos 14 anos, passou a produzir, legalmente, a exclusão da escola, para os que não

conseguissem aprovação em qualquer uma das séries cursadas, que acabavam ultrapassando

os 14 anos, limite da obrigatoriedade. Como também o ingresso na escola nem sempre se faz

aos sete anos, e como os fortes índices de retenção no sistema estão postos, principalmente,

21 Resultados de exames de leitura realizados tanto pelos sistemas de avaliação criados no governo federal anterior, pelo MEC, quanto os elaborados no âmbito do PISA revelam baixa compreensão do que lêem os estudantes brasileiros, carecendo de intervenção até hoje em discussão, face à metodologia e às premissas consideradas como fundamentos iguais para conjuntos populacionais muito diversos. 22 A Emenda Constitucional de 1969 garantiu o voto do analfabeto, em clara demonstração do uso político-eleitoral do que deveria constituir direito, diante dos riscos de uma eleição que começava a mudar o jogo de forças. 23 O ensino de 1º Grau correspondia a oito anos de escolaridade, hoje equivalente ao ensino fundamental.

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nas 1ª e 5ª séries, grande parte dos alunos, ao repetir, já se candidatava a não-concluintes, pois

ao atingirem a idade de 15 anos, quando então deveriam, no mínimo, estar alcançando a 8ª

série, tinham suas matrículas negadas pelas direções de escolas, sob a égide da lei. Ou seja,

apenas os alunos que conseguissem seguir o fluxo direto, sem descontinuidades ou retenções,

tendo iniciado a vida escolar aos sete anos, conseguiam concluir o 1º Grau, o que também não

significava aprender a ler e a escrever com autonomia e expressão próprias. Este modelo de

escola “um ano - uma série”, a “escola dos bem-sucedidos”, até 1988, sem dúvida, em muito

contribuiu para a expulsão dos alunos, ampliando significativamente o número dos

“escolarizados” — os que “passaram” pela escola, sem conclusão de nível fundamental.

Destaque-se, uma vez mais, que desde a Constituição Federal de 1988, e da formulação e

aprovação da lei ordinária LDB nº. 9394/96, dentre muitas mudanças, reconquista-se o direito

de todos ao ensino fundamental, independente da idade, extinguindo-se qualquer referência a

faixa etária obrigatória. Posto como dever do Estado e direito público subjetivo, o ensino

fundamental ganhou status legal, mas ainda hoje, passados tantos anos, esse direito não se fez

prática para um imenso contingente populacional.

A regra democrática do direito à escola pública, praticada, começa a alcançar a

maioria das crianças, no que diz respeito apenas ao acesso. Nos últimos anos, como se pode

observar, sua simples enunciação, traduzindo a “linguagem” do direito, é insuficiente para

mudar a realidade. Instituir efetivamente esse direito novamente proclamado, implica

introduzir mudanças fortes na cultura cotidiana que unge poderes a determinadas autoridades

que, mesmo ferindo direitos, permanecem exercitando práticas excludentes e autoritárias,

traduzidas por políticas públicas, ou expressas por ações personalistas, no nível do cotidiano

das escolas.

Praticar a democracia, além disso, não se restringe à mudança de relações nas escolas

ou nos sistemas de ensino, mas precisa envolver, também, direitos sociais, econômicos,

culturais e humanos, e para exercê-la em sociedades grafocêntricas, indiscutivelmente a

condição de leitor e escritor autônomo é fundamental.

O desafio de pensar direito e democracia na educação para segmentos tão

desfavorecidos — que se superpõem a outros muitos direitos negados, em um mundo de

exclusão crescente — é, no atual contexto histórico brasileiro, assumido pelo Governo de

Luiz Inácio Lula da Silva como prioridade.

No entanto, como ensina Santos (1999, p. 109), “os riscos que corremos em face da

erosão do contrato social são demasiado sérios para que ante eles cruzemos os braços”. Para

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superar esses riscos, o autor propõe reinventar a deliberação democrática a partir de uma

“outra epistemologia24 para a qual o ponto de ignorância é o colonialismo e o ponto de saber é

a solidariedade (conhecimento como emancipação)” (SANTOS, 1999, p. 110), e em que o

trânsito da epistemologia moderna para esta se faça não simplesmente pela própria concepção

de epistemologia, mas entre conhecimento e ação — ação rebelde, a que denomina ação-com-

clinamen25. O autor assinala ainda que essa é uma ação turbulenta de um pensamento em

turbulência. Por fim, entende que esta reinvenção da deliberação democrática implica a

reconstrução de novos espaços-tempos que façam frente à compressão e à segmentação do

espaço-tempo, e que possam incluir o local, o regional e o global, além de atender as

exigências cosmopolitas, cujo sentido último é a construção de um novo contrato social.

Atribuindo aos sujeitos, no cotidiano, a possibilidade de reinventar a emancipação

social, Santos (2002, passim) propõe a todos nós democratizar a democracia, sem o que a

injustiça e a desigualdade não dão trégua às populações.

Para Semeraro (2002, p. 222):

A democracia, assim, não é um sistema político entre tantos, mas é a prática específica pela qual o povo se institui como sujeito. Nela, os indivíduos se tornam sujeitos públicos enquanto seres políticos ativos, se transformam em seres socializados porque desenvolvem relações sociais e responsabilidades coletivas.

A educação de jovens e adultos tem estado ousadamente lutando por essa

transformação, assumindo lugares diversos da participação, capazes de instituir, dessa forma,

outros sujeitos públicos. No entanto, uma sensação remanescente de repetição, de

redundância, permanece, pelo tanto que tem sido dito, pelo pouco que tem sido feito. Anísio

Teixeira (1996, p. 107) traduz, no olhar de outros tempos, com tal atualidade os tempos que

vimos vivendo, que ainda uma vez mais preciso dele, dialetizando este texto, entre o

desespero e a esperança:

Confesso que não venho, até aqui, falar-vos sobre o problema da Educação sem certo constrangimento: quem percorrer a legislação do país a respeito da Educação, tudo aí encontrará. Sobre assunto algum se falou tanto no Brasil e, em nenhum outro, tão pouco se realizou. Não há, assim, como fugir à

24 Boaventura de Souza Santos (1995, p. 25, apud 1999, p. 110) define que a epistemologia moderna faz sua trajetória de um ponto de ignorância, designado por ele de caos, para um ponto de saber, que designa de ordem, tomando o conhecimento como regulação. 25 “Clinamen é a capacidade de desvio atribuída por Epicuro aos átomos de Demócrito, um quantum inexplicável que perturba as relações de causa e efeito. O clinamen investe os átomos de criatividade e de movimento espontâneo. O conhecimento-como-emancipação é um conhecimento que se traduz em ações-com-clinamen”. (SANTOS, 1999, p. 110).

Page 77: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

75

impressão penosa de nos estarmos a repetir. Há cem anos os educadores se repetem entre nós. Esvaem-se em palavras, esvaímo-nos em palavras e nada fazemos. Atacou-nos, por isso mesmo, um estranho pudor pela palavra. Pouco falamos, os educadores de hoje. Estamos possuídos de um desespero mudo pela ação.

Nós, educadores de jovens e adultos de hoje, andamos movidos mais pelas palavras do

que pelas ações. Dir-se-ia que delas não temos tido nenhum pudor, mas envergonhamo-nos

dos atos que têm gerado. Apesar de existirem — e muitas — nos últimos anos, não

conseguiram, como historicamente, ultrapassar o lugar de “experiências”. O desespero pela

ação não é mudo, mas ainda é lenta agonia.

A EJA como direito, nesse país de tantas necessidades, e inserida no amplo desafio de

resgatar os princípios da igualdade e da liberdade que desde a Revolução Francesa

permanecem caros à democracia, ocupa, sem dúvida nenhuma, depois de tantos anos, uma

nova cena política, onde se vislumbram cenários em mudança. A formulação que lhe

reconhece como direito vem sendo assumida nos discursos. Um discurso fortemente de

esperança que, lembrando Coutinho (2002, p. 39), é apenas um estímulo para a ação. O que

revelarão as práticas?

Page 78: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

76

44.. TTRRAABBAALLHHOOSS DDEE HHÉÉRRCCUULLEESS:: OOSS SSEENNTTIIDDOOSS DDOO DDIIRREEIITTOO ÀÀ EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO

NNAASS CCOONNFFEERRÊÊNNCCIIAASS EE AACCOORRDDOOSS IINNTTEERRNNAACCIIOONNAAIISS

Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira.

Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio

nem a armadura de palavras. (Thiago de Mello, Os Estatutos do Homem, Art. V)

O percurso em busca dos sentidos do direito à educação para jovens e adultos no plano

internacional, se inicia a partir da I Conferência Internacional, em 1949, até os últimos e

atuais movimentos, situando ainda a relação intrínseca da área com os demais temas, objetos

de conferências mundiais durante a década de 1990.

Certamente não serão apenas doze como os de Hércules, os desafios enfrentados pela

educação de jovens e adultos (primeiramente educação de adultos) ao longo dos anos, desde a

primeira Conferência de Elsinore, na Dinamarca, em 1949, que demarca o corte temporal e

histórico estabelecido para resgatar as lutas pelo direito à educação de jovens e adultos. O

marco relevante, no entanto, simbolizado na epígrafe desse capítulo pelo Artigo V d’Os

Estatutos do Homem, de Thiago de Mello, deve fazer justiça ao desafio anterior, quando

adotada e proclamada a Declaração Universal dos Direitos do Homem, pela Assembléia

Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948:

[...] como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações, a fim de que todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade, tendo-a constantemente no espírito, se esforcem, pelo ensino e pela educação, por desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e por promover, por medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o seu reconhecimento e a sua aplicação universais e efetivos, tanto entre as populações dos próprios Estados membros como entre as dos territórios colocados sob a sua jurisdição.

Quarenta e oito Estados-membro votaram a favor da Declaração, nenhum votou contra

e houve oito abstenções. A Declaração, com um preâmbulo e 30 artigos, enumera os direitos

humanos e as liberdades fundamentais de que são titulares todos os homens e mulheres, de

todo o mundo, sem qualquer discriminação. No Artigo 1.º, expressando a filosofia subjacente

à Declaração, encontra-se: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e

direitos”, com o claro sentido de que o direito à liberdade e à igualdade é direito inato e não

pode ser alienado; e por ser o homem um ser racional e moral, é titular exclusivo de direitos e

liberdades. O direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal; os direitos econômicos, sociais

e culturais — indispensáveis à dignidade humana — incluem o direito à segurança social, o

Page 79: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

77

direito ao trabalho, ao salário igual por trabalho igual, o direito ao repouso e aos lazeres, o

direito a um nível de vida suficiente para assegurar a saúde e o bem-estar, o direito à

educação e o direito de tomar parte na vida cultural da comunidade.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem tornou-se, ao longo dos anos, um

padrão de referência por meio do qual se avalia o grau de respeito e cumprimento das normas

internacionais de direitos humanos. E é nesse marco que busco compreender as forças

internacionais protagonizadas pela Unesco que, mesmo atuando contraditoriamente em

muitos casos, porque eivadas dos interesses do capital, atuam como a alegoria de Hércules,

nos imensos desafios de tornar direito de todos a educação, o que implica considerar, também,

iguais no direito, jovens e adultos que demandam alfabetização, cuja chave — a leitura e a

escrita — lhes autoriza, diferenciadamente, o acesso e as oportunidades aos bens da cultura

escrita.

44..11 OONNDDEE TTUUDDOO CCOOMMEEÇÇOOUU:: DDIINNAAMMAARRCCAA,, EELLSSIINNOORREE,, 11994499

O mundo tentava reorganizar-se no pós-guerra. A Europa, partida, fragmentada, e o

mundo em imenso impacto pelos aprendizados que a II Guerra impunha aos cidadãos, de

todos os continentes. O potencial bélico demonstrava os avanços tecnológicos e científicos, e

a bomba atômica não era uma ilusão. Surgia a necessidade de pensar um outro mundo.

Neste contexto de reconstrução, não apenas material, mas político, ideológico,

educacional, social, cultural, muitas iniciativas se fazem em busca de encontrar alternativas

viáveis para superar os horrores da guerra, a destruição em massa, os símbolos desfeitos, os

ícones mutilados.

De 19 a 25 de junho de 1949, a I Conferência Internacional de Educação de adultos,

convocada pela Unesco, acontece em Elsinore, na Dinamarca, e o Relatório sumarizado das

Recomendações da Comissão 426 apresenta um conjunto de recomendações à própria

organização internacional, entendendo-a portadora da responsabilidade de retirar o povo

alemão do isolamento em que se encontrava, privado do contato democrático-cultural com

outras nações. Isto proposto no marco da educação de adultos.

No Relatório apontava-se que os problemas especiais gerados no mundo exigiam

cooperação internacional, e atribuía-se à Unesco o papel de “facilitadora” dessa cooperação:

26 Disponibilizada na página eletrônica da Unesco Institute for Education – UIE, de Hamburgo, Alemanha (http://www.Unesco.org/education/uie/publications/confintea. Acesso em 9 fev. 2005).

Page 80: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

78

apoiando missões de educadores de países menos desenvolvidos a países com mais longa

tradição e experiência em educação de adultos; organizando escolas internacionais de verão;

promovendo seminários em assuntos de interesse especial na área; organizando instalações

satisfatórias para a realização de pesquisas de base internacional no campo da educação de

adultos; estimulando operários e estudantes a participarem; divulgando e disseminando

pesquisas, conhecimentos produzidos, traduzindo e publicando materiais de reconhecida

utilidade em vários idiomas. Ainda uma última recomendação era feita à Unesco: que

assegurasse formas e procedimentos para garantir a continuidade da cooperação internacional.

Não se observa, nesse Relatório, nenhuma alusão ao que se entende por educação de

adultos, embora, certamente, a concepção corrente deva ter sustentado as discussões da I

Conferência, permitindo chegar a tais recomendações. O que se destaca é o fato de a educação

de adultos exigir uma espécie de “tutor”, mediando as relações entre países, em um mundo

recém-saído da hostilidade e do jugo da ideologia nazista. As tarefas cabem à Unesco não aos

países, que embora presentes não parecem assumir diretamente nem responsabilidades, nem

metas com a educação de adultos. Observa-se, por exemplo, o fundamento que justifica a

responsabilização da Unesco, considerada como entidade que poderia favorecer a

aproximação com o povo alemão, privado do “contato democrático-cultural”. E a educação de

adultos, nessa busca de relações democráticas, situa-se como possibilidade, para a qual a

própria Unesco tem tarefa relevante a cumprir. Verifique-se, ainda, a atenção dedicada aos

sujeitos operários e aos estudantes, estes como voluntários para os esforços que o

tema/problema merece.

A perspectiva do direito não está presente no texto. Ressalta-se a necessidade de

sustentar a educação dos adultos, todos novamente aprendizes de um mundo que se modifica,

dramaticamente.

44..22 IIII CCOONNFFEERRÊÊNNCCIIAA IINNTTEERRNNAACCIIOONNAALL DDEE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE AADDUULLTTOOSS —— MMOONNTTRRÉÉAALL,,

CCAANNAADDÁÁ,, 2211 AA 3311 DDEE AAGGOOSSTTOO DDEE 11996600

A Conferência de Montréal, no Canadá, em 1960, começava a marcar os intervalos em

que essas conferências se dariam: 11 anos depois de Elsinore, os países, convocados

novamente pela Unesco, reuniam-se por dez dias para discutir, dentre vários temas conexos, o

papel e o conteúdo da educação de adultos.

Um primeiro aspecto a destacar revela a preocupação que o mundo político de 1960

apresentava para a educação de adultos: a relação entre humanismo e técnica, que a essa

Page 81: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

79

altura já avançava dentre os valores estabelecidos para o ato educativo — o aperfeiçoamento

profissional de cada um, pareado a valores que dignificassem a condição humana e o

progresso social. Para isso, o papel da ciência e da técnica ganhava relevância, sem

desconsiderar as diferenças de origem social e profissional que deveriam embasar as

concepções sobre o significado de ciência e técnica para o desenvolvimento da sociedade e

para o progresso da humanidade.

No momento dessa Conferência, atribuía-se à idéia de progresso um conteúdo realista

e científico ligado à vida, para formar o que era então denominado de homem moderno,

possibilitando o conhecimento e a estima recíproca dos povos e de seus valores culturais, em

reforço à paz. Destacava-se o papel desempenhado pela linguagem da arte, e intelectuais e

artistas eram convocados para participarem da educação de adultos. Observa-se que a

preocupação com a paz, onze anos depois de Elsinore, ainda está presente, talvez pela

insegurança sucedânea à memória recente da guerra.

O humanismo e os valores culturais são retratados pela rejeição a qualquer

discriminação de raça (e o ódio decorrente, explicitamente apontado); de sexo (compreendido

aqui como gênero); nacionalidade; religião, e com a atribuição de contribuírem para a

igualdade em direitos de mulheres e de homens em todos os setores da vida social, reduzindo

o desequilíbrio entre educação rural e urbana. O modo de conceber a formação educacional

dos sujeitos incluía o desenvolvimento da capacidade intelectual, de julgamento e de reflexão

e o senso estético dos cidadãos que se elevariam, assim, como indivíduos e em respeito a seus

pares e a seu trabalho. Nesse sentido, valorizavam-se as formas tradicionais de manifestação

da arte popular, como patrimônio a ser preservado, para que não se perdesse.

A Conferência encarrega a Unesco de um imediato levantamento, principalmente em

países da Ásia e da África, de experiências que pudessem atender às necessidades educativas

de adultos e de seu desenvolvimento cultural. Para isso, reconhecia a importância de métodos

que respeitassem as aspirações dos diversos públicos da cidade e do campo, em países

desenvolvidos e subdesenvolvidos. Do mesmo modo, atribuía à pesquisa científica a

investigação necessária e rigorosa para encontrar caminhos que elevassem o nível cultural das

sociedades — estes não menos importantes do que aqueles que ampliassem os níveis de vida

material. Previa, ainda, a divulgação eficaz de resultados no campo das ciências econômicas,

sociológicas, psicológicas e pedagógicas, recomendando a cada país investigações específicas

indispensáveis ao progresso da própria ação, assim como uma política pedagógica em que os

investigadores não se comprometessem apenas com o resultado de suas pesquisas, mas com o

Page 82: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

80

avanço completo das ações e indicações por elas geradas, fomentando a formação de

institutos de pesquisa voltados às questões culturais.

Também a Conferência recomendava que a Unesco realizasse reuniões internacionais

de especialistas, para a troca de conhecimentos produzidos, visando a ampliar os meios de

comunicação de massa que se prestavam à formação dos adultos, como o cinema, o rádio e a

televisão — esta última nascente nos anos 1950. Atribuía-se a esses meios o sentido de “tocar

o coração dos homens”, atendendo às exigências do espírito e de preservar e enriquecer

patrimônios artísticos e intelectuais, considerando os efeitos educativos, ou até mesmo

nefastos, dos que ascendiam a novas condições econômicas e sociais, subestimando a cultura.

Para esse fim, a Conferência convida as organizações responsáveis por meios de

diversão e lazer populares a examinar como o cinema, o rádio e a televisão podem colaborar,

com traços construtivos, para uma vida melhor, aproximando educadores e quadros culturais

para que apresentem sugestões à preparação de programas recreativos que, conservando os

atrativos desses meios, enriqueçam o pensamento e os modos de vida das pessoas.

Um dado importante a destacar é que a Conferência demarca, ainda, que a educação de

adultos deve integrar o sistema educacional, não devendo existir como um apêndice. Pelo

reconhecimento da exigência crescente de educação, mesmo para os que foram à escola desde

pequenos, a vinculação orgânica a um sistema implica beneficiá-lo com recursos adequados

para tarefas necessárias, segundo características de cada país. Destaca, também, o papel que

os institutos das Nações Unidas devem ter em fomento e apoio à realidade de países

subdesenvolvidos, pela imperiosa necessidade de integrar a educação de adultos a todos os

esforços de desenvolvimento de modo geral.

Quanto ao planejamento e à orçamentação de recursos indispensáveis para a educação

de adultos, notadamente no campo do ensino, a Conferência entende que um organismo

representante da sociedade deve orientar, coordenar e dirigir a execução de programas, e que

esse papel cabe, indubitavelmente ao Estado, sem ressalvas ao que já vem sendo

compreendido e realizado pelos Estados democráticos. Por reconhecer que o concurso de

governos à educação de adultos lidava com tradições educativas, costumes e práticas, alertava

os dirigentes quanto à necessidade de criar condições financeiras e administrativas para que a

educação de adultos pudesse ter conseqüência.

Um aspecto já surge, desde essa data, no documento: a relação entre nível de vida e

educação de adultos, alertando ser impossível aproveitar dos benefícios da educação se não

Page 83: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

81

forem asseguradas condições mínimas de vida às populações. O concurso e o suporte das

organizações não-governamentais para a educação de adultos já estava presente em 1960,

assim como a orientação aos governos no sentido de estimularem a participação desses

organismos, que necessitariam de liberdade de ação, de recursos criativos e de espírito

pragmático para atender à educação de adultos. O trabalho de adultos junto às organizações

privadas representava a oportunidade de partilhar experiências educativas que contribuiriam

para desenvolver, na sociedade e nos indivíduos, o senso de responsabilidade e de iniciativa.

A perspectiva do direito surgia, então, no marco dessas referências, reconhecendo que

todo adulto, homem ou mulher, tinha possibilidades suficientes para a educação geral e

profissional, e demandava a todos os Estados medidas que assegurassem essas possibilidades,

chegando a recomendar ajudas de custo e de viagens para que adultos de qualquer grupo

profissional pudessem se liberar de parte de seu tempo, ou temporariamente, de modo a

aproveitar ofertas públicas e privadas de serviços de educação profissional, cívica, social e

cultural.

A idéia de voluntariado sob os auspícios das Nações Unidas também se fazia presente,

sendo sugerida a criação de um corpo de voluntários, contribuindo por um ano com seu

trabalho, associado ao de outros corpos voluntários, para a luta mundial contra a miséria, a

doença e o analfabetismo, fortalecendo a compreensão e a cooperação internacionais.

Também o papel dos jovens surgia com destaque, prevendo que organizações de jovens e de

estudantes apoiassem a educação de adultos, considerando o interesse e o compromisso que

essas organizações deviam ter com o conhecimento na área e com o desenvolvimento de seus

compatriotas.

Ainda como recomendações, a Conferência aponta a necessidade de tradução em

quatro línguas — inglês, espanhol, francês e russo — nos próximos eventos, considerando a

diversidade de Estados-membros da Unesco e os obstáculos decorrentes dessa questão à livre

circulação e à troca de idéias entre as delegações.

Sobre o estado da arte na educação de adultos e na alfabetização, a Conferência

considera indispensável que a Unesco organizasse, no curso dos dois anos seguintes, na

América Latina, na Ásia e na África, estágios de estudos regionais considerando os problemas

comuns sobre as duas questões, com vista a permitir o estudo e a adoção de soluções práticas

que revelassem o nível cultural das regiões estudadas.

Page 84: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

82

A Conferência sublinha, ainda, a necessidade de um Comitê permanente de educação

de adultos, considerando as exigências de um mundo em rápida transformação, e a obrigação

que caberia aos governantes de acompanhar as conseqüências práticas desta situação. Para

isso recomenda que a Unesco assegurasse recursos e pessoal necessários para fazer face de

modo eficaz às atividades de EDA nas organizações engajadas. Sugeria um comitê

permanente de composição determinada que acompanharia as ações desenvolvidas desde

1949 pelo Comitê consultivo então criado, e no limite do Ato Constitutivo da Unesco

recomenda que o Diretor Geral buscasse assegurar o concurso de pessoas com experiência em

atividades governamentais nos Estados-membros em matéria de EDA; em atividade nas

principais instituições de educação de adultos (centros de educação operários, escolas

noturnas públicas ou privadas, cursos de extensão universitária, colégios populares com

internato, centros encarregados da produção de material para a EDA etc.); em atividades em

organizações não-governamentais a partir das quais a Unesco pudesse entrar em contato com

as populações do mundo; em atividade em organizações nacionais ou regionais cujo objeto

seria coordenar os diferentes esforços das instituições de educação de adultos.

Por último, a Conferência recomendava a inversão de fundos especiais na luta contra o

analfabetismo, com um fundo adicional destinado expressamente à eliminação do

analfabetismo nos países em vias de desenvolvimento e que recentemente tivessem

conquistado a independência.

44..33 IIIIII CCOONNFFEERRÊÊNNCCIIAA IINNTTEERRNNAACCIIOONNAALL –– TTÓÓQQUUIIOO –– 2255 DDEE JJUULLHHOO AA 77 DDEE AAGGOOSSTTOO 11997722

A III Conferência Internacional de Educação de adultos teve lugar dez anos após a de

Montréal, no Canadá, de 1962, tendo as principais conclusões agrupadas nos seguintes itens:

educação e necessidades humanas; participação; utilização dos meios de informação;

administração, organização e financiamento; cooperação internacional. Como se observa,

alguns temas são recorrentes, e já se faz a associação, pela primeira vez, da educação às

necessidades humanas, mais tarde traduzidas por necessidades básicas de aprendizagem,

recortando a abrangência que nesse momento aparecia.

Na discussão do tema educação e necessidades humanas, o texto parte do princípio de

que a educação é produto da sociedade que, como tal, se constitui por ação dessa mesma

educação. Transformações na sociedade e objetivos de desenvolvimento da comunidade

implicam mudanças no sistema de educação, e inversamente, os objetivos da educação

Page 85: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

83

demandam mudanças econômicas, sociais, culturais, políticas, entendendo ser dever do

educador definir e propor tais reformas.

Os obstáculos que impedem os adultos a aprender deveriam ser objeto de atenção,

prevendo-se várias medidas que favorecessem principalmente os trabalhadores de

participarem de situações de aprendizagem, destacando a Conferência as seguintes categorias

tradicionalmente desfavorecidas, em numerosas sociedades: jovens sem emprego, jovens que

deixaram prematuramente a escola em países em via de desenvolvimento, populações rurais

em numerosos países, trabalhadores migrantes, pessoas idosas e desempregadas. No interior

dessas categorias, mulheres e moças são particularmente desfavorecidas.

Para ampliar o acesso à educação, entende-se que a informação e sua disseminação

devem oferecer modos de as pessoas saberem de que forma e com que métodos podem

continuar a aprender. A supressão do analfabetismo é fundamental para o desenvolvimento, e

a alfabetização é a pedra de toque da educação de adultos, mas vista como meio, e não como

fim em si mesmo.

O desenvolvimento rural, na maior parte dos países exigiria um esforço da educação

de adultos focado nas necessidades do agricultor praticante da economia de subsistência e do

trabalhador agrícola desprovido de terra, o que andaria pari passu com reformas sociais e

econômicas. Também o desenvolvimento industrial exigiria programas de educação de

adultos, a fim de que todos pudessem participar das transformações científicas e técnicas. Um

dos principais objetivos da educação de adultos deveria ser: estudar e fazer compreender as

questões relacionadas ao meio ambiente, como a erosão, a conservação da água, a poluição e

os problemas demográficos.

As principais conclusões a que se chega nesse tópico destacam que a educação, mais

do que institucional, deveria ser funcional, devendo penetrar a sociedade, o trabalho, o lazer,

as atividades cívicas. Como proclamado no Seminário Latino-americano de Educação de

Adultos, ocorrido em Havana em março de 1972, o papel funcional poderia se definir como:

educação funcional de adultos fundada sobre os laços existentes entre o homem e o trabalho

(em sentido amplo) e desenvolvimento geral da comunidade, integrado aos interesses do

indivíduo e da sociedade. A educação funcional entendida como aquela pela qual o homem se

realiza no quadro de uma sociedade em que a estrutura e os elementos de superestrutura

facilitam o pleno desenvolvimento da personalidade humana, contribuiria para a formação de

um homem criador de bens materiais e espirituais, ao mesmo tempo em que lhe permitiria

usufruir, sem restrições, de sua obra criativa. Quanto à participação, considerava-se

Page 86: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

84

indispensável que os adultos tivessem um ativo papel no planejamento, na gestão e na

condução de seus próprios estudos, cabendo aos educadores trabalhar no meio natural em que

os alunos vivem, a fim de que estes se sentissem seguros e experimentassem motivações

autênticas. Para essa valiosa participação na vida cultural da comunidade, a dimensão cultural

da educação de adultos deveria manter-se interdependente ao desenvolvimento cultural.

Nesse momento, já se destacava a participação e os aprendizados mútuos da relação

tradicional professor-aluno, tendo como eixo a aplicação prática dos conhecimentos para a

solução de problemas, assim como a utilização de meios de informação beneficiando o

desenvolvimento econômico, social e cultural. O interesse público deveria suplantar os

interesses comerciais ou privados, reforçando a participação dos alunos adultos a diferentes

níveis de programação de emissões educativas.

A recomendação aos governos era para que colocassem a educação de adultos no

plano primeiro de suas preocupações, em pé de igualdade à educação escolar, reconhecendo o

papel essencial que os organismos privados e os movimentos populares desempenham para a

educação de adultos, freqüentemente capazes de alcançar os desfavorecidos em matéria de

educação onde os serviços oficiais não conseguem chegar. Para isso, os investimentos

deveriam ser sensivelmente aumentados. Instituições e organizações internacionais como a

Unesco e agências bilaterais de cooperação para o desenvolvimento, destinando à educação de

adultos uma parte importante dos recursos, tornariam financeiramente possível, em alguns

casos, expandir consideravelmente as possibilidades da educação de adultos.

Porque a força da educação de adultos está posta em sua diversidade, a difusão de suas

funções na sociedade mobilizaria instituições e organizações como sindicatos, serviços

governamentais, empresas, comunidades e cooperativas agrícolas.

Mas a educação de adultos tinha objetivos mais amplos: favorecendo um sistema

funcional de educação permanente, os estabelecimentos escolares tomariam toda a

comunidade como objeto de preocupação, passando a atuar como agentes de instrução, entre

muitos outros, por ter o papel precípuo de ensinar os alunos a aprender. Valorizam-se, ainda,

os estreitos laços existentes entre os objetivos da educação de adultos e a causa da paz

mundial.

Educadores de adultos, representados nos organismos que produzem políticas de

educação, necessitariam, para fazê-lo, de formação que privilegiasse métodos e técnicas de

educação de adultos. Também das universidades, nesse sentido, esperava-se a assunção de

Page 87: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

85

papel mais amplo na educação de adultos, não apenas reconhecendo os saberes dos

educadores de adultos, o que os dispensaria de títulos prévios para o acesso ao nível superior,

mas também definindo e executando programas de ensino, pesquisa e de formação em função

das necessidades da sociedade toda, e não somente de setores privilegiados. Sobre este

aspecto, cabe considerar a valorização dos professores leigos, institucionalizando, de alguma

forma, programas de aproveitamento e sistematização de conhecimentos que convalida e

amplia as aprendizagens da prática.

Em conclusão, a Conferência sublinha os seguintes pontos: que a educação é um

processo permanente, e que tanto a de adultos, como a de crianças e adolescentes não se

separam. Como agente eficaz de transformação, a educação tem necessidade da participação e

do engajamento ativo dos adultos que, para isso, devem obter melhores condições e qualidade

de vida. Causas da pouca qualidade de vida, atribuídas à apatia, à miséria, à doença, à fome

são consideradas chagas da humanidade, que necessitariam da consciência de por quê

acontecem, e dos métodos de como combatê-las. À educação de adultos atribuía-se papel

complementar à melhoria da sociedade e, embora a interdependência entre os países cada vez

se demonstrasse com mais intensidade, a Conferência reconhecia que se agravava a distância

entre eles e entre suas populações e as condições de vida — problema moral, cuja supressão

não significaria apenas uma questão de justiça social, mas um imperativo econômico e

condição indispensável à paz no mundo.

Assim, a tarefa essencial da educação de adultos durante a Segunda Década das

Nações Unidades para o desenvolvimento, consistiria em determinar quais populações são

entregues à própria sorte e atender as suas necessidades, sem mais delongas.

A Conferência, pródiga em idéias, encerrou seus trabalhos com um conjunto de 33

recomendações, das quais, pelo objeto deste trabalho, destacaria: políticas nacionais de

educação de adultos; metas da educação de adultos; educação extra-escolar para jovens;

medidas em favor da educação dos trabalhadores; reconhecimento da educação de adultos

como setor essencial do sistema de educação e reforço da ação da Unesco nesse domínio;

ação internacional de luta contra o analfabetismo; educação de adultos nas pautas das

conferências gerais da Unesco; campanhas de mobilização para a eliminação do

analfabetismo; e a idéia que retorna, sempre, às ações da Unesco, a da educação de pais.

Page 88: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

86

44..44 CCOONNFFEERRÊÊNNCCIIAA GGEERRAALL UUNNEESSCCOO 1199ªª RREEUUNNIIÃÃOO —— NNAAIIRRÓÓBBII,, 2266 AA 3300 DDEE NNOOVVEEMMBBRROO DDEE

11997766

A Conferência Geral, ocorrida em Nairóbi de 26 a 30 de novembro de 1976, ocorre

quatro anos após a III Conferência de Educação de Adultos, em Tóquio, 1972. Em 26 de

novembro é aprovado, pelos Estados-Membros, um conjunto de Recomendações relativo ao

desenvolvimento da educação de adultos, tal como recomendado na III Conferência, quanto à

prioridade de pauta para a educação de adultos.

Buscando compreender o momento histórico em que ela se dá e os marcos que

estabelece como referência ao que recomendará, alguns comentários podem ser

sistematizados. Inicio pela referência que a 19ª Reunião estabelece, de pronto, com a

Declaração Universal dos Direitos Humanos, Art. 26 e 27, quando especifica o direito de

toda pessoa à educação e a uma livre participação na vida cultural, artística e científica,

assim como a inseparabilidade de educação e democracia, e de educação e abolição de

privilégios, o que é previsto para ser feito pela educação permanente, por estar assumido que

a educação de adultos é parte integrante da educação permanente. Mais: a educação

permanente é aspecto fundamental constitutivo do direito à educação, e um meio para facilitar

o exercício do direito à participação na vida política, cultural, artística e científica (UNESCO,

1976, p. 2). Nesse sentido, os consideranda que a Recomendação assume partem, sempre, da

educação de adultos como integrante de um projeto global de educação permanente (cf.

próximo parágrafo), vinculando-a a todos os aspectos da vida social, cultural, econômica; a

questões de gênero, grupos sociais, gerações e relações entre elas; a meios, modos e métodos

educativos; à formação geral e profissional; às possibilidades de mudança e reestruturação dos

sistemas de ensino; à possibilidade da paz e da justiça social. Do mesmo modo, destaca a

relação estreita com o trabalho, que a garantia do direito à educação estabelece (UNESCO,

1976, passim). Um último aspecto a destacar diz respeito à preocupação já observada com os

jovens. Inicialmente, a indicação é a de que os jovens sejam orientados para a educação

permanente, progressivamente, beneficiando-se, para isso, da educação de adultos —

condição seguinte ao deixarem de ser jovens e integrarem o chamado mundo adulto. Mas, em

seguida, a questão da existência de programas para jovens adultos é atestada em todas as

partes do mundo, o que faz a Conferência recomendar prioridade absoluta para esses

programas, por constituir esse segmento massa expressiva da população, destacando que sua

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87

educação é de suma importância para o desenvolvimento político, econômico, social e

cultural da sociedade em que vivem (UNESCO, 1976, p. 7, 11).

Este conceito, de educação permanente, tem abordagem enfática no documento,

entendida como a que se expressa por um projeto global voltado para reestruturar o sistema

educativo existente, assim como para desenvolver todas as possibilidades de formação fora do

sistema educativo. Assinala, ainda, que longe de limitar-se ao período de escolaridade — da

educação formal, deve abarcar todas as dimensões da vida, todas as áreas do saber e todos os

conhecimentos práticos que possam ser adquiridos por todos os meios e contribuir para todas

as formas de desenvolvimento da personalidade. Completa afirmando que os processos

educativos que crianças, jovens e adultos seguem ao longo da vida, de qualquer forma, devem

ser considerados como um todo (UNESCO, 1976, p. 2).

No projeto global da educação permanente se insere a educação de adultos, como um

subconjunto integrado. Por educação de adultos, o documento designa a totalidade dos

processos organizados de educação, seja qual for o conteúdo, o nível ou o método, formais ou

não-formais, que prolonguem ou recoloquem a educação inicial oferecida nas escolas e

universidades, e sob a forma de aprendizagem profissional, graças às quais as pessoas

consideradas adultas pela sociedade a que pertencem, desenvolvem suas atitudes, enriquecem

seus conhecimentos, melhoram suas competências técnicas ou profissionais, ou as reorientam,

fazendo evoluir suas atitudes ou seu comportamento na dupla perspectiva de enriquecimento

integral do homem e de participação no desenvolvimento socioeconômico e cultural,

equilibrado e independente (UNESCO, 1976, p. 2).

Nas muitas funções atribuídas à educação de adultos, observa-se que esta se vincula,

precipuamente, à idéia de desenvolvimento, cara para a década de 1970. Nos anos 1970

alguns paradigmas alimentaram a educação, pelo ressurgimento da teoria do capital humano

(BLAUG, 1975)27, assim como pela compreensão do papel da escola como reprodutora das

27 Blaug (1975, p. 1), discutindo a questão do capital humano como metáfora ou analogia, inicia afirmando que “em todas as economias de que temos notícia, as pessoas que receberam mais educação percebem, em média, rendimentos mais elevados do que aquelas que receberam menos, pelo menos quando se comparam pessoas da mesma idade”. Segue, levantando questões sobre educação adicional e diz que “[...] a educação continua a ser um tipo de investimento, não para o indivíduo mas para a sociedade como um todo”. Assinala, ainda, que Marshall, quase um século depois de Adam Smith, em 1776, rejeitava “a idéia de ‘capital humano’ como irrealista, e [...] que sua autoridade magisterial tenha sido responsável pelo desaparecimento da mesma”, embora concordasse com Smith de que o homem educado pudesse ser comparado a uma máquina dispendiosa (o que ocasionaria diferencial em seu resultado e nos seus salários, indenizando-o dos gastos com a própria educação) (BLAUG, 1975, p. 2-3), mas divergindo da idéia de incluir as habilidades adquiridas de uma população na medida da “riqueza” ou “capital” de uma economia. Blaug (1975, p. 6-7) segue, mostrando como o conceito de capital humano foi abandonado até Marshall e depois dele (o que considera um mistério), mas mostrando como

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88

ideologias sociais (BOURDIEU, PASSERON28, 1975) e aparelho ideológico do Estado

(ALTHUSSER29, 1985).

Apesar de o desenvolvimento subsumido não estar restrito ao econômico, pelo

contrário, às diversas expressões que assume na humanização dos sujeitos, esta idéia-força

impregna o conjunto das recomendações como objeto da educação de adultos. Já nesse

momento, também a capacidade de aprender a aprender, que mais tarde será fundamento de

concepções educacionais que se alastram pelo mundo, se enuncia nos termos da

Recomendação.

A participação de entidades da sociedade civil em concurso às ações da educação de

adultos são destacadas, no esforço de os Estados-Membros responderem às recomendações da

19ª Reunião, que reitera os compromissos da III Conferência de Educação de Adultos de

1972.

44..55 IIVV CCOONNFFEERRÊÊNNCCIIAA IINNTTEERRNNAACCIIOONNAALL SSOOBBRREE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE AADDUULLTTOOSS –– PPAARRIISS,, 1199--2299

DDEE MMAARRÇÇOO DDEE 11998855

A Conferência de Paris traz marca diferenciada das anteriores, fruto do estado do

conhecimento levado a termo desde Tóquio, na década anterior. Nesta Conferência as idéias

até então defendidas para a educação de adultos, como integrante de um sistema de educação

“a doutrina smithiana de que a educação e o treinamento podem ser encarados como um tipo de investimento em ‘capital humano’ constitui antes um programa para pesquisa do que a manifestação de um inquestionável insight, em 1970 não menos do que em 1890”. 28 Bourdieu e Passeron (1975, p. 204), na obra A Reprodução, assim questiona: “não é suficiente perceber as falhas comuns às duas tentativas de análise para chegar à verdade da relação entre a autonomia relativa do sistema de ensino e sua dependência relativa à estrutura das relações de classe: como levar em conta a autonomia relativa que a Escola deve à sua função própria sem deixar escapar as funções de classe que ela preenche necessariamente numa sociedade dividida em classes?” 29 Althusser (1985, p.67-71), assinalando o avanço à teoria marxista empreendido por Gramsci, diz que este foi o “único” que avançou no caminho que ele próprio retoma, de que o Estado não se restringia ao aparelho (repressivo) de Estado, compreendendo também certo número de instituições da “sociedade civil”, como Igreja, escolas, sindicatos etc., mas que Gramsci não teria sistematizado suas intuições, ficando estas apenas como anotações argutas, mas parciais. Designa, então, como aparelho ideológico do Estado – AIE -- “um certo número de realidades que apresentam-se (sic) ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas”, incluindo nessa lista as instituições religiosas, escolares, familiares, jurídicas, políticas, sindicais, de informação, culturais, implicando a diferença entre essas e o aparelho (repressivo) de Estado o fato de que este é um, para a pluralidade de aparelhos ideológicos do estado, não imediatamente visíveis; que enquanto o primeiro pertence ao domínio público, a maior parte dos AIE remete ao domínio privado, indicando que pouco importa a condição de pública ou privada, mas o funcionamento dessas instituições, em nome dos interesses do Estado (da classe dominante). Por fim, assinala que a diferença fundamental é que o aparelho repressivo do Estado funciona predominantemente através da repressão, inclusive a física, ao passo que os aparelhos ideológicos do Estado funcionam principalmente através da ideologia, e secundariamente através da repressão (atenuada, dissimulada ou simbólica). Explicita, também, que “nenhuma classe pode, de forma duradoura, deter o poder do Estado sem exercer ao mesmo tempo sua hegemonia sobre e nos Aparelhos Ideológicos do Estado”.

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89

permanente estão marcadas pela necessidade não apenas de vínculo entre a educação e o

desenvolvimento econômico, assim como de todas as demais áreas, como também pela idéia,

que toma força nesta década, de andragogia, uma ciência equivalente à pedagogia, só que

aqui proposta para sujeitos adultos, com suas especificidades e requerimentos relativos ao

mundo adulto, a que a andragogia deveria responder com conhecimento adequado sobre as

formas de ensinar e educar adultos. Justamente no item relativo à formação de educadores é

que se dará ênfase a este conceito, para constatar e criticar os modos como profissionais

vinham sendo formados, e recomendar a necessidade do desenvolvimento de pesquisas que

produzam conhecimentos específicos sobre o campo e o mundo adulto e seus processos de

aprendizagem. Mas apenas nesta Conferência há alusão a este termo, deixando de aparecer

nas subseqüentes, possivelmente pela imprecisão do conceito que se anunciava como solução

para os problemas da educação de adultos30.

Quanto aos fins e políticas da educação de adultos, e tomando em conta conferências

anteriores, recomendações e a própria Declaração Universal de Direitos Humanos, que

configura um viés de educação humanista nos consideranda do relatório final, pode-se

encontrar estreita vinculação entre educação permanente e desenvolvimento econômico,

30 Pode-se, então, dizer que, de curta existência, o termo “não pegou”, por vários motivos. O primeiro, e mais significativo, em meu entendimento, é porque a etimologia da palavra não se refere (andros) a homem, com o sentido de humanidade, portanto incluindo homens e mulheres adultos, mas a masculino, havendo uma total identificação desse prefixo no campo da biologia, em que a diferenciação sexual se faz entre homem (andros) e mulher (gino), determinando, por exemplo, palavras como androceu (relativa às estruturas masculinas nas flores) e gineceu (relativa às estruturas femininas); andrologia (estudo dos aspectos masculinos na diferenciação sexual) e ginecologia (aspectos femininos) etc. O segundo motivo, é que se a origem é esta, e ainda que se quisesse estender o significado para as mulheres, se estaria, uma vez mais, lidando com a lógica masculina como generalizante (os professores, para designar a maioria de professoras; os trabalhadores, idem; todos os presentes etc.), e indo contra a denúncia de muitos autores adeptos da explicitação dos sujeitos homens e mulheres na enunciação dos textos, por não caber mais as formas dominantes de pensar e nomear o mundo pela lógica estritamente masculina, coerente com as lutas dos grupos de mulheres em todo o mundo, pelo apagamento de suas presenças em diversas culturas, anuladoras do lugar social das mulheres. Um terceiro motivo, conseqüente a estes, faz-se pelo fato de que a imprecisão/precisão (na oposição pedagogia/andragogia), justamente, não se coloca sobre os sujeitos, quando se explicita educação infantil, ensino regular de crianças, educação de adultos, porque nesses termos os sujeitos são bastante nítidos e visíveis. Também quando se usa pedagogia para se referir a crianças e a adultos, não se põe o problema. A questão está, justamente, na imprecisão de concepções sobre o que é ensinar crianças e o que é ensinar adultos, assim como sobre como se faz isto, para uns e para outros. O grande problema que a educação de adultos compartilha com a pedagogia (se se quiser tomá-la restritivamente aos sujeitos crianças) é a falta de conhecimento dos que fazem a educação sobre os modos e meios de intervir para produzir situações de aprendizagem que levem em conta a diversidade de sujeitos, suas origens, culturas, experiências, saberes prévios etc. Talvez por isso, o esforço de introduzir um novo termo tenha se esvanecido, no labirinto de problemas com o qual se defronta a educação de adultos, para desfocar e debater, inocuamente, um novo termo, facilmente demolido pelos estudiosos da área, pelos limites e ardis que contém. No Brasil, somente o SESI ainda hoje insiste em defender esta idéia como o diferencial da proposta de educação de adultos que estabelecem para os trabalhadores. Dois documentos a que tive acesso (MADEIRA, s/d.; OLIVEIRA, s/d.) não conseguem estabelecer rigor científico para assumir tal termo, para além de uma inovação e marca que a instituição gostaria de deixar na área ao propô-lo. Nem assim, no entanto, conseguem mudar as formas de dizer, pensar, fazer dos seus técnicos, também eles pouco convencidos da propriedade da mudança.

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90

social, científico e tecnológico do mundo contemporâneo, mantendo a associação entre

população educada e desenvolvimento econômico, marcadamente pela existência de setores

mais marginalizados na sociedade — representados pelas mulheres, idosos, jovens —

privados da educação e de bens e serviços que o acesso a ela proporciona, sabendo ler e

escrever.

A Conferência, por fim, declara o direito de aprender como desafio capital da

humanidade, traduzindo-o por:

— o direito de saber ler e escrever; — o direito de fazer perguntas e de reflexionar; — o direito à imaginação e à criação; — o direito de interpretar o meio circundante e ser protagonista da história; — o direito de ter acesso aos recursos educativos; — o direito de desenvolver as competências individuais e coletivas.

Ainda reforça a importância desse direito, enunciando que:

O direito de aprender não é um luxo cultural que se possa dispensar; [...] não é uma etapa posterior à satisfação das necessidades básicas; o direito de aprender constitui, desde agora, um instrumento indispensável para a sobrevivência da humanidade. [...] Para que os povos possam satisfazer eles mesmos suas necessidades essenciais [...]; para que as mulheres e os homens possam gozar de boa saúde, deverão ter o direito de aprender; para evitar a guerra, será preciso aprender a viver em paz, aprender para compreender-se. Aprender é a palavra-chave. O direito de aprender é uma condição prévia do desenvolvimento humano; [...] é uma exigência necessária também para a solução dos problemas agrícolas e industriais, o progresso da saúde comunitária e a própria transformação das condições pedagógicas. Sem o direito de aprender não se poderão melhorar as condições de vida dos trabalhadores da cidade e do campo. (IV CONFERÊNCIA DE EDUCAÇÃO DE ADULTOS, 1985, p. 30).

Entende, também, que o direito de aprender não pode ser só um instrumento

econômico, mas ser reconhecido como direito fundamental. Como direito humano

fundamental, portanto, sua legitimidade é universal, não se restringindo somente a parte da

humanidade: aos homens, aos países industrializados, ou somente a classes pujantes, ou aos

jovens que tiveram o privilégio de ir à escola. Conclama a todos os países que reconheçam o

direito de todos, criando condições necessárias para o exercício universal, com recursos

humanos e materiais necessários, e termina questionando sobre quem decidirá como será a

humanidade do futuro, como questão para todos os governos, sociedades e indivíduos, ao

tempo em que a educação de adultos prega a condução dos destinos humanos por todos os

protagonistas da história.

Page 93: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

91

44..66 AAPPOORRTTEESS IINNTTEERRNNAACCIIOONNAAIISS PPRROOTTAAGGOONNIIZZAADDOOSS PPEELLAA UUNNEESSCCOO,, RREEVVIISSIITTAADDOOSS AATTÉÉ AA

MMEETTAADDEE DDAA DDÉÉCCAADDAA DDEE 11999900

No interregno entre a IV Conferência e a V CONFINTEA, alguns estudos realizados

por comissões protagonizadas pela Unesco e/ou por especialistas, além de conferências de

educação tiveram lugar nesse tempo-espaço recente com que a memória compactua e que

influenciaram, seguramente, os caminhos, as ações e as políticas desenvolvidas pelos países,

em especial o Brasil, destaque dessa pesquisa.

Assim, o olhar sobre essas iniciativas, sem pretender esgotá-las, focará algumas, em

busca das marcas e das concepções de educação de jovens e adultos que aportam.

Para chegar à questão da educação, no entanto, é necessário compreender o processo

de mudanças instalado, nesta década, na América Latina, com grande intensidade, conhecido

como globalização, expressão de sentido amplo, que representa, em verdade, para Chesnais

(1996, p. 14) a fase denominada de mundialização do capital, em que:

[...] o capitalismo parece ter triunfado e parece dominar todo o planeta, mas os dirigentes políticos, industriais e financeiros do G7 cuidam de se apresentarem como portadores de uma missão histórica de progresso social.

[...] É na produção que se cria riqueza, a partir da combinação social de formas de trabalho humano, de diferentes qualificações. Mas é a esfera financeira que comanda, cada vez mais, a repartição e a destinação social dessa riqueza.

A compreensão desse processo, da forma de destinação social da riqueza produzida, e

os modos como os países dele participaram — por adesão ou compulsoriamente —, exige

admitir, como afirma Chesnais (1996, p. 34), que:

A mundialização é o resultado de dois movimentos conjuntos, estreitamente interligados, mas distintos. O primeiro pode ser caracterizado como a mais longa fase de acumulação ininterrupta do capital que o capitalismo conheceu desde 1914. O segundo diz respeito às políticas de liberalização, de privatização, de desregulamentação e de desmantelamento de conquistas sociais e democráticas, que foram aplicadas desde o início da década de 1980, sob o impulso dos governos Thatcher e Reagan.

As conseqüências desse processo de mundialização do capital, e que a América Latina

ainda vive até a contemporaneidade, buscando entender suas manifestações, apropriações e as

resistências criativas de movimentos sociais, sindicais, de trabalhadores, em geral, é explicada

dessa forma pelo autor:

A perda, para a esmagadora maioria dos países capitalistas, de boa parte de sua capacidade de conduzir um desenvolvimento parcialmente autocentrado

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92

e independente; o desaparecimento de certa especificidade dos mercados nacionais e a destruição, para muitos Estados, da possibilidade de levar adiante políticas próprias, não são conseqüência mecânica da globalização, intervindo como processo “externo”, sempre mais coercitivo, impondo a cada país, a seus partidos e a seus governos uma determinada linha de conduta. Sem a intervenção política ativa dos governos Thatcher e Reagan, e também do conjunto dos governos que aceitaram não resistir a eles, e sem a implementação de políticas de desregulamentação, de privatização e de liberalização do comércio, o capital financeiro internacional e os grandes grupos multinacionais não teriam podido destruir tão depressa e tão radicalmente os entraves e freios à liberdade deles de se expandirem à vontade e de explorarem os recursos econômicos, humanos e naturais, onde lhes for conveniente. (CHESNAIS, 1996, p. 34).

Essa perda da capacidade de conduzir seu próprio desenvolvimento, no tocante ao

setor educacional, tem ativamente o protagonismo do Banco Interamericano de

Desenvolvimento – Banco Mundial (1995, p. XI apud CORAGGIO, 1996, p. 99), que no

documento Priorities and strategies for education: a World Bank sector review, assim se

expressa:

A educação é o instrumento principal para promover o crescimento econômico e reduzir a pobreza. [...] A educação em todos os níveis aumenta o crescimento, mas a educação sozinha não gera crescimento. O crescimento requer não apenas investimento em capital humano, mas também em capital físico; ambos os tipos de investimento dão sua maior contribuição ao crescimento em economias abertas, competitivas e que estão num equilíbrio macro-econômico.

Coraggio (1996, p. 100-101) discute esta posição do Banco Mundial, afirmando que o

Banco “sabe” muitas coisas sobre os países, e que esse “saber” passa a direcionar as políticas

impostas aos governos latino-americanos. Descentralização dos sistemas educativos,

desenvolvendo capacidades básicas em determinados níveis de ensino, satisfaz a demandas de

trabalhadores flexíveis; recursos escassos orientados para alunos que têm capacidade de

aprender, mas não podem pagar pela educação, reduzem a pobreza e potencializam a

capacidade produtiva; a avaliação de estabelecimentos de ensino deve ser realizada pelo

aprendizado dos alunos e a eficiência pelo custo por diplomado; o corpo docente deve ser

capacitado, mas com programas paliativos em serviço (se possível a distância), não investindo

mais na formação inicial; maior oferta de livros didáticos, educação pré-escolar, programas de

saúde e nutrição para a “fome de curto prazo” etc. são algumas das ações que revelam as

lógicas com as quais opera o Banco Mundial, deixando pequeníssima margem de autonomia

para pensar e propor políticas educacionais autônomas. O autor ainda indaga como o Banco

“sabe” tanto, o que implica saber que procedimentos emprega para produzir esse

conhecimento.

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93

O problema que, mais cedo ou mais tarde, os intelectuais e técnicos do Banco deverão assumir, e que agora nossas sociedades enfrentam perante as novas políticas educativas, é que nossa realidade histórica (e sobretudo em algumas sociedades de outras regiões do mundo) não se ajusta ao modelo, e que aceitar as propostas sem discuti-las pode significar a aceitação de uma intervenção política externa, ou a introjeção de valores não propostos abertamente à sociedade como uma opção. (CORAGGIO, 1996, p. 103).

Como decorrência desse processo, são promovidas reformas educacionais submetidas

ao condicionamento imposto pelo ajuste econômico de restrição aos gastos públicos,

produzindo conflitos educacionais de diversas ordens.

Influenciadas pelo assessoramento do Banco Mundial, que vem financiando crescentemente o setor, as reformas redirecionam e focalizam o gasto público na educação básica de crianças e adolescentes das camadas sociais mais pobres, de vez que se considera esse nível como aquele que provê maior taxa de retorno econômico individual e social (Banco Mundial, 1995; Coraggio, 1996). A educação básica é entendida pelo Banco Mundial estritamente como ensino primário e secundário de primeiro ciclo, o que, no Brasil, corresponde ao ensino fundamental. Considerando que as taxas de escolarização no ensino básico já são elevadas e que o problema de cobertura resolver-se-á com a melhoria do fluxo escolar, privilegiam-se medidas que visam à melhoria da qualidade, reduzindo os índices de evasão e repetência escolar e elevando os padrões de aprendizagem. [...] (DI PIERRO, 2000, p. 20).

Soares (1996, p. 35) indica a evolução da participação da educação nos empréstimos

do Banco Mundial, para o Brasil, de 1987 a 1990, como da ordem de 2%, contra 98% para as

demais áreas, assinalando o crescimento dos empréstimos de 1991 a 1994 — e depois ainda

mais expressivos no governo Fernando Henrique —, assim como da participação da educação

nesses empréstimos, para 29% do total.

Gentili e Suárez (2004, p. 22), analisando os conflitos educacionais, no cenário das

reformas em curso na América Latina, cujo pano de fundo, por sua vez, compõe-se dos

conflitos sociais e políticos, intensificados nos últimos 20 anos em todos os países, indicam

que esses conflitos foram protagonizados, principalmente, pelos movimentos docentes, na

última década. Movimentos docentes de resistência às políticas neoliberais juntaram-se às

lutas promovidas pelos demais trabalhadores, protagonistas e vítimas de protestos e

mobilização reivindicativa dos assalariados sindicalizados. Economias e sociedades em crise,

sistemas educacionais enfraquecidos, organizados centralmente, desprovidos de recursos,

fragmentados por dentro em contraponto com:

[...] ambiciosos processos de reforma educacional que, sob o lema da “qualidade, eqüidade e eficiência” e uma importante mobilização de recursos e esferas públicos, pretenderam modificar de uma só vez a estrutura do sistema escolar, o currículo de todos os níveis e modalidades educacionais, a

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organização e a gestão dos sistemas e dos estabelecimentos de ensino, bem como a cultura organizacional instituída neste campo. (GENTILI, SUÁREZ, 2004, p. 23).

Apontam, ainda, os autores, que esse cenário faz parte de um processo global de

reestruturação do Estado, e do aprofundamento da crise econômica traduzida pela recessão,

desemprego, pobreza, ausência de investimento público, e à redefinição das condições

internacionais para o desenvolvimento e crescimento sustentável, e processos de

pauperização, desigualdade e exclusão social que castiga os países latino-americanos. Esse

processo incide diretamente nas formas de construção da experiência dos professores, assim

como em sua subjetividade, redefinindo as tarefas docentes e as qualificações requeridas, ao

mesmo tempo em que os salários, com perdas vertiginosas reais e simbólicas, nos espaços de

reconhecimento social. (GENTILI, SUÁREZ, 2004, p. 23).

Do ponto de vista da educação de jovens e adultos, a questão não é diferente:

A oportunidade aberta pelas recentes reformas educativas implementadas no continente tampouco modificou a posição relativa da educação de jovens e adultos nas políticas educacionais. Ao contrário, a lógica segundo a qual as reformas vêm sendo implementadas reiterou essa posição desfavorável, ao dicotomizar e estabelecer uma falsa disjuntiva entre a prioridade conferida à educação básica de crianças e adolescentes e as possibilidades de revalorização e desenvolvimento da educação de jovens e adultos. (DI PIERRO, 2000, p. 23).

Ribeiro (2004, p. 11), corrobora a citação anterior, acrescentando:

Ao mesmo tempo em que as agências financiadoras estimulam uma redução do atendimento a jovens e adultos, os organismos internacionais, pressionados por educadores comprometidos com a ampliação e qualidade do atendimento da EJA, promovem debates internacionais com o intuito de mudar tal orientação. Analisando os documentos internacionais, marcos e impulsionadores do desenvolvimento da EJA, como os elaborados na V Conferência Internacional sobre Educação de adultos – CONFINTEA, realizada em Hamburgo, em 1997, observa-se o esforço de legitimação da área.

É neste contexto, portanto, que a década de 1990, em especial, vivencia tensões,

conflitos e novos protagonismos no campo educacional, prenunciando os acontecimentos à

Conferência Mundial de Educação para Todos, em Jomtiem, Tailândia.

44..66..11 CCoonnffeerrêênncciiaa MMuunnddiiaall ddee EEdduuccaaççããoo ppaarraa TTooddooss –– JJoommttiieemm,, TTaaiillâânnddiiaa –– 11999900

Internamente, o Brasil vivia tempos de adaptação à nova Constituição Federal e, para

cumprir o Art. 60 das Disposições Gerais e Transitórias, governo federal e sociedade civil

deveriam encarregar-se de juntar esforços para erradicar o analfabetismo no país em dez anos.

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95

A Fundação EDUCAR, até então, era a principal responsável pela coordenação da execução

desta tarefa, o que a levou, juntamente com o MEC, em 1989, a convocar uma comissão

composta por especialistas — que desenvolviam trabalhos e pesquisas no campo da EJA —,

para que discutissem a preparação do Ano Internacional da Alfabetização, definido para 1990,

pela Unesco. A comissão, denominada Comissão Nacional para o Ano Internacional da

Alfabetização - CNAIA, foi desarticulada com a extinção da Fundação EDUCAR pelo

governo de Fernando Collor de Melo, tão logo assumiu a Presidência da República, em

janeiro de 1990, deixando a EJA sem organismo articulador de políticas, justamente no ano

comemorativo à alfabetização. A esse tempo, eram realizados, em todo o país, debates,

encontros, congressos e seminários por entidades governamentais e não-governamentais, no

sentido de discutir e apresentar propostas para a erradicação do analfabetismo no Brasil. Para

ocupar o lugar da Fundação EDUCAR, o governo Collor lança o Programa Nacional de

Alfabetização e Cidadania - PNAC31, que pretendia reduzir em 70% o número de analfabetos

no país, nos cinco anos seguintes, ou seja, 12.433.840 pessoas alfabetizadas para um total de

população de 17.762.629 de pessoas não-alfabetizadas.

Logo em seguida é formada a Comissão do Programa Nacional de Alfabetização e

Cidadania32, composta de diversas organizações e "personalidades de notório conhecimento

em programas de alfabetização" e, meses depois do lançamento do PNAC, verificou-se uma

completa desvinculação do Programa com a Comissão, principalmente pela forma como os

recursos eram liberados para instituições e empresas que, freqüentemente, não tinham

envolvimento anterior com a área. Tão logo o governo se iniciou, acontecia em Jomtien, na

Tailândia, de 5 a 9 de março de 1990, a Conferência Internacional de Educação para Todos.

31 O folheto de lançamento do Programa, de 11 páginas, com cinco dedicadas a definir os compromissos do Governo do Brasil Novo, conclamando poder público e sociedade civil para a “desafiante caminhada de resgatar a dívida social para com crianças, jovens e adultos marginalizados do direito à educação” (BRASIL, 1990, p. 7), é composto de sete itens: I) universalização do ensino fundamental e eliminação do analfabetismo; II) princípios norteadores, que incluem a formação da cidadania, a responsabilidade solidária, a responsabilidade financeira compartida, o fortalecimento da instituição escolar, a valorização do professor; III) o compromisso do poder público e a colaboração da sociedade civil; IV) metodologia para a formulação do Programa, defendendo a elaboração de planos municipais, estadual e nacional consolidados e integrados, pela constituição de comissões e conselhos consultivos; V) duração para um período de cinco anos (coincidente com o do governo, 1990-1995); VI) metas, que incluíam o aumento da escolarização de crianças de 7 a 14 anos, com 100% de vagas garantidas e a ampliação da taxa de alfabetização para as pessoas de 15 anos e mais, “assegurando-lhes progressivamente o ensino fundamental”, dentre outras ligadas à pré-escola, valorização do magistério, compromisso com a qualidade e incorporação dos portadores de deficiência (todos, com exceção dos de 7 a 14 anos, sem metas quantitativas, ou percentuais, nesse documento); VII) financiamento, também um conjunto de intenções. 32Membros da Comissão Nacional do Programa Nacional de Alfabetização e Cidadania (D.O. de 12/09/90, Seção II): Anna Bernardes da Silveira Rocha, Celso Beisegel, Eglê Franchi, Luiza de Teodoro Vieira, Maria Odozinda Costa, Walter Garcia, Sérgio Antônio da Silva Leite, Sônia Kramer, Thereza Penna Firme, Maria Valderez de Souza Barbosa, Lúcia Rolla Senna, Adolfo Homma, Maria Regina Cabral, Abiacy Fradique, Eurides Brito, Júlia Cury e Creuza Maria Gomes Aragão.

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96

Jomtien inaugura a década marcada por inúmeras conferências protagonizadas pela

ONU, o chamado ciclo social — a Década Mundial de Desenvolvimento Cultural (1988-

1997); a Década Mundial de Desenvolvimento (1991-2000) promovida pelo Programa das

Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD); a Conferência sobre Meio Ambiente do Rio

de Janeiro, Brasil, 1992; a Conferência sobre Direitos Humanos em Viena, Áustria, 1993; a

Comissão Internacional sobre Educação para o Século 21, de 1993 a 1996; a Conferência

Internacional sobre Populações no Cairo, Egito, 1994; a Conferência Internacional sobre a

Mulher em Beijing, na China, 1995; a Cúpula de Desenvolvimento Social de Copenhague,

Dinamarca, 1995; a Conferência sobre Segurança Alimentar em Roma, Itália, 1996; a

Conferência sobre Assentamentos Humanos (Habitat II) em Istambul, Turquia, 1996; a V

Conferência sobre Educação de adultos em Hamburgo, Alemanha, 1997; a Conferência sobre

a Paz em Haia, Holanda, 1999; a Conferência sobre Educação para Todos em Dacar, no

Senegal, 2000; a Conferência contra o Racismo e a Xenofobia em Durban, África do Sul,

2001, todos com vista a pactuar acordos face à chegada do novo século e milênio.

A importância simbólica dessa Conferência inaugural mobilizou a comunidade

internacional, assolada pelos ventos e efeitos do neoliberalismo, principalmente econômicos,

mascarados pela face da globalização, pelo que de positivo, apenas, poderia conferir à vida

planetária.

Foram tempos de discutir o meio ambiente, populações, mulheres, assentamentos

humanos etc., e em que a ação educativa se fez fortemente presente, em temas de variadas

naturezas, por se entender que novos paradigmas de vida societária exigiriam essa ação, para

além das intervenções educacionais já acertadas como básicas para a humanização e

desenvolvimento das pessoas.

Havia mais de 40 anos que as nações do mundo afirmaram que "toda pessoa tem

direito à educação”, na Declaração Universal dos Direitos Humanos. No entanto, em 1990, a

Declaração de Educação para Todos constatava a presença de mais de 100 milhões de

crianças sem acesso ao ensino primário, das quais pelo menos 60 milhões eram meninas; de

mais de 960 milhões de adultos analfabetos, dos quais dois terços eram mulheres, somados ao

analfabetismo funcional — problema em todos os países industrializados ou em

desenvolvimento; de mais de um terço de adultos do mundo sem acesso ao conhecimento

impresso e a tecnologias; de mais de 100 milhões de crianças e de largo contingente de

adultos que não concluíram o ciclo básico, e de outros milhões para os quais o fato de o terem

Page 99: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

97

concluído não possibilitou a aquisição de novos conhecimentos, nem de habilidades

essenciais à vida.

A Declaração afirmava, também, que durante a década de 1980, problemas ligados à

dívida externa, ao empobrecimento, à devastação ambiental, guerra, ocupações, lutas civis,

rápido aumento populacional, decadência econômica haviam dificultado os avanços da

educação básica em muitos países menos desenvolvidos. Nos que o crescimento econômico

permitira financiar a expansão da educação, assistia-se o aprofundamento da desigualdade,

com cada vez mais populações pobres privadas de escolaridade ou analfabetas, além de que,

mesmo em muitos países industrializados, os cortes nos gastos públicos contribuíram para a

deterioração do ensino. Reafirmava a esperança no novo século, pelas imensas conquistas

científicas e tecnológicas que revolucionavam o conhecimento e poderiam contribuir para

melhor qualidade de vida, de maior cooperação entre as nações, como aposta nas soluções

pacíficas, com a queda do muro de Berlim e a mudança política na antiga União Soviética, do

mesmo modo que no reconhecimento dos direitos essenciais das mulheres, em franca

desigualdade em relação aos homens no aspecto educativo e, principalmente, cultural. O

volume das informações é saudado também como possibilidade de compartilhamento, pelos

recursos disponíveis de disseminação, em ritmo crescente e aceleração constante, assim como

a combinação da experiência acumulada de reformas, inovações, pesquisas, e o progresso em

educação registrado em muitos países. Os conferencistas se encantavam e assumiam que, pela

primeira vez na história, a educação para todos passava a ser uma meta viável. Di Pierro

(2000, p. 14-15) chega a afirmar:

Em meio às divergências e polêmicas características dos períodos de transição, produziu-se no pensamento social contemporâneo um surpreendente consenso em torno da prioridade a ser conferida à universalização da educação básica. A Declaração da Conferência Mundial de Educação para Todos (Jomtien, Tailândia, 1990) e o informe à Unesco da Comissão Internacional sobre a Educação para o Século XXI (DELORS, 1996) são expressões desse consenso que, entretanto, não produziu ainda os resultados pretendidos no campo das políticas educacionais concretas dos países periféricos e das políticas de cooperação dos organismos multilaterais.

O anúncio dos compromissos assumidos na Declaração é precedido de alguns

aspectos inolvidáveis, relembrando aos delegados-membros que se põem de acordo, ao

declarar que a educação:

[...] é um direito fundamental de todos, mulheres e homens, de todas as idades, no mundo inteiro;

[...] pode contribuir para conquistar um mundo mais seguro, mais sadio, mais próspero e ambientalmente mais puro, e que, ao mesmo tempo,

Page 100: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

98

favoreça o progresso social, econômico e cultural, a tolerância e a cooperação internacional;

[...] embora não seja condição suficiente, é de importância fundamental para o progresso pessoal e social;

[...] reconhece que o conhecimento tradicional e o patrimônio cultural têm utilidade e valor próprios, assim como a capacidade de definir e promover o desenvolvimento;

[...] que hoje é ministrada apresenta graves deficiências, que se faz necessário torná-la mais relevante e melhorar sua qualidade, e que ela deve estar universalmente disponível;

[...] básica adequada é fundamental para fortalecer os níveis superiores de educação e de ensino, a formação científica e tecnológica e, por conseguinte, para alcançar um desenvolvimento autônomo; [...]

e, por fim, “reconhecendo a necessidade de proporcionar às gerações presentes e

futuras uma visão abrangente de educação básica e um renovado compromisso a favor dela,

para enfrentar a amplitude e a complexidade do desafio”, finaliza-se o preâmbulo e inicia-se o

texto propriamente dito da Declaração.

44..66..22 NNeecceessssiiddaaddeess bbáássiiccaass ddee aapprreennddiizzaaggeemm ——aa ccoonnttrriibbuuiiççããoo ddee SSyyllvviiaa SScchhmmeellkkeess aaoo

ccuurrrrííccuulloo ddaa EEJJAA nnaa AAmméérriiccaa LLaattiinnaa

No âmbito das ocorrências na América Latina, ainda na década de 1990, para a EJA, o

Seminario Taller Regional Unesco/CEAAL33 sobre Los nuevos desarrollos curriculares de la

educación de jóvenes y adultos de América Latina aconteceu de 22 a 26 de janeiro de 1996,

na cidade de Monterrey, no México. Tinha como base o documento Las necesidades básicas

de aprendizaje de los jóvenes y adultos en América Latina, elaborado por Sylvia Schmelkes,

em revisão a um outro, previamente apresentado ao Seminario Consulta Educación de

Adultos: prioridades de acción estratégicas para la última década del siglo, celebrado em

Bogotá, Colômbia, em 1992.

A pesquisadora, do Centro de Investigación y Estudios Avanzados del Instituto

Politécnico Nacional, México, D.F., sustenta algumas teses/propostas sobre o que se faz

necessário para que a educação de adultos possa ser conseqüente na América Latina:

a) reivindicação de prioridade para a educação de adultos na política educativa

e social dos países latino-americanos.

Apóia-se nos orçamentos negligenciados, no quadro de pessoal não-profissional,

motivado pela boa-vontade, bastando saber ler e escrever para ser alfabetizador. Indica, então,

33 Conselho de Educação de Adultos de América Latina – CEAAL.

Page 101: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

99

que as causas desta situação são complexas, e que os escassos resultados das atividades de

educação de adultos estão relacionados à qualidade da oferta proporcionada; a desimportância

política desse atendimento, para o qual não existiria demanda efetiva, por parte dos

beneficiários; a influência do Banco Mundial, autorizada pelos países sobre políticas sociais,

entre elas as educativas, priorizando com apoio e recursos a atenção compensatória em

educação escolar básica.

b) vinculação da educação de adultos às necessidades e interesses dos diversos

grupos de adultos, tendo como horizonte as características da realidade em

que vivem, considerando que é esta mesma realidade que interpõe demandas

sobre informação, conhecimentos, habilidades e valores a esses adultos.

Nessa tese, sustenta a idéia de que a solução das problemáticas nas quais se inserem os

adultos só se dará em conjunção com outros programas de desenvolvimento e transformação

social. Do mesmo modo, assume que, na consideração de adultos nessas realidades, o grande

público envolvido na América Latina não é adulto, mas jovem, sujeito não levado em conta

nos programas que atendem a adultos, com expectativas de escolarização diversas das dos

adultos, sem emprego e sem ter tido oportunidades educativas, o que conformaria a dupla

problemática em que estão envolvidos. A situação é agravada, ainda mais, se considerado que

os jovens dos setores populares urbanos e rurais mal saem da adolescência e se vêem com

responsabilidades do mundo adulto, o que não significa que as necessidades próprias de sua

idade e de seu mundo não estejam carenciadas, seja pelas questões que eles próprios se põem

diante do mundo, seja pela vontade de aprender. Sustenta que essas características fazem com

que respondam mais efetivamente a ofertas educativas, desde que se adaptem às suas

necessidades.

c) a acumulação de experiência e pesquisa na América Latina sobre a educação

de adultos permite algumas certezas com as quais construir uma proposta

própria;

d) a principal pergunta da educação de adultos não deve ser quais as

necessidades básicas de aprendizagem, mas quais as necessidades básicas

em geral, e dos adultos em situação de pobreza em particular. Perguntar

primeiro que realidade transformar e, depois, o que pode fazer a educação

para que a transformação seja de melhor qualidade;

e) as necessidades básicas são, na essência, os direitos humanos;

Page 102: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

100

f) as necessidades básicas de aprendizagem (chamadas de competências, pela

autora) em resposta do quefazer educativo à vigência dos direitos humanos,

como base para a construção do currículo da educação de adultos.

Para tornar-se sujeito educativo, afirma que o sujeito tem que sentir, ou chegar a sentir

que tem uma necessidade, ou que não exerce um direito. Definir o que caberia à educação

frente a direitos não exercidos — questão central da tese — implica assumir a categoria de

competência, como um complexo que abarca, pelo menos, quatro componentes: informação,

conhecimento, habilidade e valor. Ao conceito de competência, no sentido que pretende lhe

seja atribuído, nomeia-o como qualidade de vida, afirmando que a tarefa educativa é oferecer

competências para uma vida de qualidade. No caso de adultos, qualidade de vida está referida

ao aqui e agora. No caso de crianças, é formar para, no futuro, enfrentar as exigências da vida

pessoal e social com qualidade.

44..66..33 OO RReellaattóórriioo JJaaccqquueess DDeelloorrss —— ddee ““tteessoouurroo aa ddeessccoobbrriirr”” aa ““aacchhaaddooss iiddeeoollóóggiiccooss””

eemm mmeeaaddooss ddooss aannooss 11999900

O Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o Século

XXI - Relatório Jacques Delors, iniciado em março de 1993 e concluído em setembro de

1996, teve a contribuição de especialistas do mundo todo, no movimento dos processos de

globalização de relações econômicas e culturais que assolavam os países e afetavam as

políticas públicas de modo geral, e a educacional em especial, assim como os modos de viver.

O Relatório reuniu um conjunto expressivo de membros, de vários países, a saber:

França (na pessoa de Jacques Delors, que presidiu a Comissão Internacional sobre Educação

para o Século XXI, antigo Ministro da Economia e Finanças e ex-presidente da Comissão

Européia de 1985 a 1995); Jordânia, Japão, Portugal, Zimbábue, Polônia, Estados Unidos,

Eslovênia, Jamaica, Venezuela, Senegal, Índia, México, Coréia do Sul e China. Como

princípios fundamentais básicos para o trabalho da Comissão, foram estabelecidos:

[...] a educação é um direito fundamental da pessoa humana, e possui um valor humano universal: a aprendizagem e a educação são fins em si mesmos [...] desenvolvidos e mantidos ao longo de toda a vida;

[...] a educação, formal e não-formal, deve ser útil à sociedade, funcionando como um instrumento que favoreça a criação, o progresso e a difusão do saber e da ciência, e colocando o conhecimento e o ensino ao alcance de todos;

[...] qualquer política de educação se deve orientar pela tripla preocupação da eqüidade, da pertinência e da excelência [...];

Page 103: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

101

[...] a renovação da educação e qualquer reforma correspondente devem se basear numa análise refletida e aprofundada das informações de que dispomos a respeito das idéias e das práticas [...], devem ser decididas de comum acordo, mediante pactos apropriados entre as partes interessadas, num processo de médio prazo;

[...] se a grande variedade de situações econômicas, sociais e culturais exige, evidentemente, diversas formas de desenvolvimento da educação, todos devem levar em conta os valores e preocupações fundamentais sobre os quais já existe consenso no seio da comunidade internacional e no sistema das Nações Unidas: direitos humanos, tolerância e compreensão mútua, democracia, responsabilidade, universalidade, identidade cultural, busca da paz, preservação do meio ambiente, partilha de conhecimentos, luta contra a pobreza, regulação demográfica e saúde;

[...] a responsabilidade pela educação corresponde a toda a sociedade [...].

Com base nesses seis princípios, o relatório foi organizado como um conjunto de

textos em três partes e nove capítulos, além de um prefácio e um epílogo, sob as seguintes

temáticas: no prefácio, a educação é apresentada pelo presidente da Comissão como utopia

necessária; na primeira parte — horizontes —, onde se faz a leitura de mundo da sociedade

planetária atual, passa-se da coesão social à participação democrática e do crescimento

econômico ao desenvolvimento humano; na segunda parte, estabelecem-se princípios,

tecendo-se considerações sobre “quatro pilares da educação” e sobre a educação ao longo de

toda a vida; na terceira parte, fornecem-se orientações aos níveis educativos e de ensino, aos

professores, ao papel político exercido pela educação, à cooperação internacional. No epílogo,

onze autores discorrem sobre questões atinentes à educação e seu papel social.

Um dos destaques ao relatório faz-se sobre o conceito de long life education que, na

atual situação histórica, deve ser pensado pelo reforço da educação básica; abertura maior dos

países à entrada do universo da ciência na escola preparando pessoas para o impacto da

tecnologia e transformações do século XXI; educação básica contextualizada para países

desfavorecidos; alfabetização e educação básica para adultos; valorização da relação

professor-aluno; ensino secundário na perspectiva de continuidade por toda a vida; debates

sobre seletividade e orientação para permitir aos jovens pluralidade de opções; existência de

outros estabelecimentos de ensino superior, além da universidade; ensino que veicule

responsabilidades éticas e sociais; diversidade do ensino secundário e universitário e

alternância estudo/trabalho; novas formas de certificação para o resto da vida, de forma a

levar em conta o conjunto de competências a serem adquiridas. (UNESCO, 1998, p. 150-151).

Outro destaque se assenta nos “quatro pilares” que têm conduzido inúmeras iniciativas

educacionais, inclusive quanto a propostas metodológicas e teóricas. Cabe, portanto,

compreender o que essas propostas significam para o contexto em que foram produzidas e

Page 104: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

102

porque significaram tanto. Tratarei primeiro das abordagens e concepções que o relatório

imputa a cada um deles para, depois, tecer comentários e trançar os necessários fios com o

modelo de educação que interessa à globalização do capital, em franca expansão no momento

político em que o mundo se encontrava.

Como aprender a conhecer, o Relatório afirma que esse tipo de aprendizagem visa

não tanto à aquisição de um repertório de saberes codificados, mas antes ao domínio dos

próprios instrumentos do conhecimento, considerando-o, simultaneamente, como meio e

finalidade da vida humana. Sobre esse aspecto alerta para dois riscos, caso não seja assim

considerado: um, a tentação de imaginar possível a omnidisciplinaridade, em um mundo

como o que se vive; outro, a superespecialização, porque esta não prescinde nem da cultura

geral, nem de diálogo com outros campos de saber. Dessa forma, relaciona aprender a

conhecer a aprender a aprender, pelo fato de o processo do conhecimento nunca estar

acabado, podendo enriquecer-se com qualquer experiência.

Para aprender a fazer, a primeira indicação é a sua indissociabilidade de aprender a

conhecer, mas ligando a aprendizagem do fazer, no entanto, mais à questão da formação

profissional, com o seguinte questionamento: “como ensinar o aluno a pôr em prática os seus

conhecimentos e, também, como adaptar a educação ao trabalho futuro quando não se pode

prever qual será a sua evolução?” O pilar se assenta no abandono do conceito de qualificação

profissional, substituindo-o pelo de competência pessoal, exigido pelo progresso técnico, que

também justificaria a “desmaterialização do trabalho”. Por essa idéia, a competência pessoal

não prescinde de qualificação técnica, em sentido estrito, resultante de formação técnica e

profissional mas, além disso, o comportamento social, a aptidão para o trabalho em equipe, a

capacidade de iniciativa, o gosto pelo risco, no que denomina de coquetel individual,

identificado com os modelos perseguidos nas indústrias japonesas. No caso da

desmaterialização no setor serviços entende o Relatório que matéria e técnica devem ser

complementadas com aptidão para as relações interpessoais, qualidades consideradas “mais

ou menos inatas”. Na economia informal, em que não existe assalariamento, a economia de

subsistência é compreendida como tradicional, o que indicaria à aprendizagem a função mais

de qualificação social, do que profissional.

Aprender a viver juntos, aprender a viver com os outros, é considerada uma

aprendizagem desafiadora para a educação. Opondo violência e esperança como as questões

que o progresso da humanidade trouxe ao mundo atual, reconhece o conflito subjacente à

história humana, mas acentua o perigo de elementos novos, como o potencial de destruição

Page 105: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

103

criado no decorrer do século XX. A proposta é o ensino da não-violência na escola “mesmo

que apenas constitua um instrumento, entre outros, para lutar contra os preconceitos geradores

de conflitos”, entendendo que “a atividade econômica no interior de cada país, e sobretudo em

nível internacional, tem tendência de dar prioridade ao espírito de competição e ao sucesso

individual”. (UNESCO, 1998, p. 96-97). Para a melhoria dessa questão, propõe o contato dos

iguais em contexto igualitário, com objetivos e propósitos comuns, acreditando, com isso, que

“os preconceitos e a hostilidade latente podem desaparecer e dar lugar a uma cooperação mais

serena e até à amizade”. À educação escolar cabe reconhecer o outro, por meio do diálogo e

da troca de argumentos, assim como reservar tempo e ocasiões para iniciar os jovens em

projetos de cooperação, em atividades desportivas e culturais, desde a infância, e em

atividades sociais e humanitárias (Unesco, 1998, p. 98-99).

Por último, aprender a ser compromete-se com o desenvolvimento total da pessoa, e

para isso precisa ser preparado pela educação que recebe na juventude, especialmente, com

vista a “elaborar pensamentos autônomos e críticos e para formular os seus próprios juízos de

valor, de modo a poder decidir, por si mesmo, como agir nas diferentes circunstâncias da

vida”34. Por fim, destaco que o relatório entende que, mais do que privilegiar o acesso ao

conhecimento — característica dos sistemas educativos formais — em detrimento de outras

formas de aprendizagem, importa conceber a educação como um todo, o que deve inspirar

reformas educativas e definição de políticas pedagógicas.

Chama a atenção, nesses pilares que têm sido tão cortejados, os vínculos, pelos quais

se sustentam, com o modelo capitalista em crise, gerador de desigualdades nunca dantes

vistas, em tempos curtos e tão acelerados. O aprender a fazer carrega a concepção inata da

inteligência e das capacidades e, assim sendo, justifica as não-competências, que acomodam

as insatisfações pelas inserções diferentes dos trabalhadores no mundo do trabalho, cada vez

mais especializado e complexo, e não admite lugar para a qualificação, esta insuficiente e, por

isso mesmo, justificadora dos maus lugares de muitos. Nenhuma dessas condições está posta

no modelo em que se faz a educação, mas no sujeito, incapaz, se não detiver a competência

social, atributo eficiente das aptidões dos indivíduos.

As desigualdades de classe, fomentadoras desses lugares na sociedade e no mundo do

trabalho não são objeto de discussão e seguem, na mesma compreensão, só subrepticiamente,

a explicitar a competição individual — condição formal do modelo capitalista excludente,

34 Este item remete-se ao relatório da Comissão Internacional sobre o Desenvolvimento da Educação, de Edgar Faure e outros, Apprendre à être. Unesco, Paris, 1972.

Page 106: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

104

como resultante de preconceitos geradores de conflitos, pela tendência nas atividades

econômicas do interior dos países, a “estimular o espírito de competição e o sucesso

individual”, como se esses não fossem os elementos fundantes do modelo. Às desigualdades,

encobertas, atribui-se o valor de preconceitos, admitindo-se, portanto, que se se aprende a

trabalhar com projetos comuns, entre iguais, mitiga-se o conflito, encobrindo-se a apartação

que essa proposta significa. E finalmente, de posse de uma educação com esse perfil,

chegando-se ao sujeito apassivado, que aprende a ser dessa maneira, forjado para o sistema,

recomendam-se reformas e projetos políticos.

Em tese de doutoramento que aprofunda a constituição do “sujeito Delors”, ou seja, o

sujeito da educação como proposto pelo Relatório Delors, e põe em cheque os papéis

multifacetados da ONU e da Unesco diante da concertação de acordos no mundo, Rizo (2005,

p. 28) alerta para as incertezas e a imprevisibilidade de futuro com que lidam as comunidades

humanas diante dos fenômenos da globalização: “vistos por alguns como benefícios, mas para

outros revelam o aumento da polarização mundial, ou seja, os muito ricos estão cada vez mais

distantes dos muito pobres, e, sobretudo para os excluídos, a imprevisibilidade de seu futuro

os coloca à deriva, entregando suas vidas aos mais poderosos”. A respeito dessa

imprevisibilidade dos tempos, assinala ser ela a condição que faz a todos “indubitavelmente

submetidos à mesma demanda educacional, qual seja, capacitamo-nos necessariamente para

analisar e construir o futuro de forma a evitarmos nossa própria eliminação e de nossa

cultura”. E acrescenta:

Ainda que a educação não possa sanar os problemas existentes, por seu caráter teleológico, visa utopicamente estabelecer metas para a possível superação dos problemas do presente, uma vez identificados, em função de um projeto futuro – no caso da Unesco, este projeto é a paz mundial, e para a ONU, trata-se da segurança planetária (RIZO, 2005, p. 28).

A educação, como um “tesouro a descobrir”, pode ser pensada, realmente, como ainda

não-descoberta, mas expressa o equívoco de ser pensada como tal. Em verdade, a chave que

abriu esse “tesouro” em governos neoliberais possibilitou encontrar, sem pejo, propostas

focalizadas, excludentes, apartadoras, ainda não adequadamente avaliadas. Mas os efeitos

dessa descoberta são sentidos, principalmente pelos danos causados às populações dos países

mais pobres, impedidas de ter acesso à educação, e inegavelmente os dados da Conferência de

Dacar vieram, posteriormente, confirmar os ônus da escolha dos organismos ligados à ONU

que patrocinam e regulam a educação mundo afora.

Page 107: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

105

44..77 VV CCOONNFFEERRÊÊNNCCIIAA IINNTTEERRNNAACCIIOONNAALL DDEE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE AADDUULLTTOOSS –– CCOONNFFIINNTTEEAA ––

HHAAMMBBUURRGGOO,, AALLEEMMAANNHHAA,, JJUULLHHOO 11999977 —— AAPPRREENNDDIIZZAAGGEEMM DDEE AADDUULLTTOOSS,, UUMMAA CCHHAAVVEE

PPAARRAA OO SSÉÉCCUULLOO XXXXII

A última e mais recente Conferência Internacional faz-se aos pés do Instituto

Internacional de Educação da Unesco, na cidade-sede na qual se desenvolvem estudos e se

decidem políticas para a cooperação internacional. Esta Conferência, precedida por

mobilização nacional desde meados de 1996, com vistas a cumprir a metodologia de trabalho

recomendada pela Unesco, no sentido de reunir e agregar estudiosos, pesquisadores,

militantes, professores, educadores de órgãos públicos e privados, governamentais e não-

governamentais, teve no Brasil uma forte movimentação, em direção à própria Conferência, e

em novos e legítimos desdobramentos, que marcaram em definitivo a história política da EJA

no país.

Pela proximidade do tempo histórico em que ocorre, e pela minha própria inserção

como pesquisadora e estudiosa do tema além de militante em defesa do direito à EJA em

vários espaços e, principalmente, nos Fóruns de EJA, situar o contexto dessa Conferência e

todas as etapas que a precedem, no âmbito brasileiro, é tarefa indispensável para a

compreensão das formulações e das tensões fortemente vivenciadas naqueles anos, não

apenas como estudiosa, mas como protagonista dessa história, da qual sou ativa testemunha.

Para chegar a Hamburgo, portanto, percorro um conhecido, porque vivenciado caminho, para

que as imbricações que lhe dão sentido possam ser feitas no tempo histórico em que

ocorreram.

44..77..11 OOss eennccoonnttrrooss pprreeppaarraattóórriiooss eemm ââmmbbiittoo nnaacciioonnaall ee rreeggiioonnaall:: mmeettooddoollooggiiaa ddee aaççããoo

Inicialmente, devo registrar que os encontros de nível estadual ocorreram em muitos

estados, recolhendo dados, organizando documentos com informações e concepções, com

fronteiras mais definidas. Desse momento inicial não participei diretamente; apenas

acompanhei os trabalhos por meio dos companheiros que o fizeram, pelo fato de estar com

outro compromisso agendado. A ausência nesse primeiro encontro estadual impediu-me de

concorrer, como delegada, a um lugar para o subseqüente encontro regional. Mas não me

impediu de inserir-me, como membro fundador do Fórum de Educação de Jovens e Adultos

do Estado do Rio de Janeiro, que nasce justamente da possibilidade concreta criada por esse

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106

encontro, ao reunir pessoas da EJA, dispersas desde a extinção da Fundação EDUCAR, pelo

território fluminense, sem nenhum tipo de organização que as agremiasse35.

Os encontros estaduais preparatórios à CONFINTEA, tanto quanto os regionais,

envolvendo diversos setores da sociedade civil, as universidades e as várias instâncias de

governo seguiam orientações36 da então Secretaria de Educação Fundamental (SEF) do MEC,

por meio da Coordenação Geral do Magistério e de Educação de Jovens e Adultos. Essas

orientações eram oriundas de uma discussão realizada entre a Comissão Nacional de

Educação de Jovens e Adultos, ainda existente, àquela época, e a SEF, para cumprir os

acordos firmados com a Unesco e orientados, no tocante à América Latina, pela Oficina

Regional de Educação para a América Latina e Caribe (OREALC). O documento orientador

indicava às secretarias de educação estaduais que, munidas de demais documentos

encaminhados pela SEF37, promovessem encontros estaduais, nos quais seriam escolhidos

delegados aos encontros regionais, em um total de quatro por estado, da seguinte forma: o

responsável pela EJA no estado; um representante das secretarias municipais; um

representante das universidades; um dos demais setores da sociedade civil (organizações não-

governamentais, sindicatos, movimentos etc.). Os encontros regionais foram assim agrupados:

um encontro na região Nordeste, ocorrido nos dias 11 e 12 de junho, em Salvador, Bahia; um

encontro das regiões Sul e Sudeste, ocorrido em 25 e 26 de junho em Curitiba, Paraná; e um

encontro das regiões Norte e Centro-Oeste dias 9 e 10 de julho, em Campo Grande, Mato

Grosso do Sul. Os encontros regionais foram concebidos como reuniões de trabalho, devendo

produzir subsídios e recomendações de cada região, com vista à elaboração de um documento

final, previsto para o encontro nacional. Recomendava-se que as reuniões de trabalho fossem

acompanhadas, na mesma ocasião, por reuniões ou seminários mais amplos, abertos ao

público, como espaços de mobilização e de discussão de idéias sobre a temática da EJA. Para

o encontro nacional o documento orientador indicava como participantes os representantes

regionais, os membros da Comissão Nacional de EJA, além de convidados do MEC. Naquele

espaço seria produzido o documento nacional e escolhidos os representantes nacionais que 35 A história do Fórum de EJA/RJ ocupa o capítulo 5, a ser consultado para melhor compreender as motivações que o constituíram. 36 O documento intitula-se Orientações gerais visando a participação do Brasil na Conferência Regional, preparatória à Conferência Internacional de Educação de Adultos, e se encontra nos arquivos do Fórum EJA/RJ. 37 Os documentos encaminhados pela SEF foram: Convocatoria para la Conferencia Regional Preparatoria de la Quinta Conferencia Internacional de Educación de Adultos (CONFINTEA V) (Anexo 1); orientaciones para la realización de las reuniones nacionales (Anexo 2); La educación con personas jóvenes y adultas en América Latina en la transición al siglo XXI (Anexo 3); Aprendizaje de adultos: una clave para el siglo veintiuno (Anexo 4); Diretrizes políticas para a educação de jovens e adultos em 1996.

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107

participariam da Conferência Regional, que o documento também indicava estar a cargo do

Brasil sediá-la.

No conjunto de documentos encaminhados, podem-se destacar alguns aspectos.

O Anexo 1, a Convocatória, oriundo da OREALC, indica a metodologia adotada para

a Conferência Regional38, e o uso dos subsídios produzidos para os encontros preparatórios.

Indica, ainda, o acordo e o aceite do Ministro da Educação e do Desporto para sediá-la.

Reafirma também o objetivo geral da V CONFINTEA, que toma em conta as quatro

conferências anteriores, e os formula no marco do cenário das iniciativas de longo prazo em

que a ONU desenvolveu o chamado ciclo de conferências da década de 1990. Afirma-se:

[...] manifestar la importancia del aprendizaje de los adultos y forjar compromisos de alcance universal para la educación continua y de adultos en la perspectiva de un aprendizaje permanente orientado a i) posibilitar la participación de todos en la construcción de un desarrollo sustentable y equitativo; ii) promover una cultura de paz basada en la libertad, la justicia y el respeto mutuo; iii) un mayor acceso de las mujeres a fuentes de poder; y iv) crear sinergia entre la educación formal y la no formal.

O Anexo 2, Orientações para as reuniões nacionais, estabelece dois temas-eixo das

discussões, a saber:

a) ¿Cuál es la importancia que tiene hoy la educación de jóvenes y adultos u cuáles son los procesos institucionales para enfrentar los desafíos de la construcción de una sociedad democrática, equitativa y económicamente competitiva en el país?

b) ¿Cómo articular la educación de jóvenes y adultos con los actuales procesos de reforma educativa para que éstos tengan más relevancia económica, política y social, en términos de:

contribuir a evitar la reproducción generacional de la pobreza;

obtener aprendizajes, competencias y actitudes significativas para el logro del desarrollo personal, ciudadano y social, productivo?

O Anexo 3, contendo subsídios aos trabalhos das reuniões nacionais, informa ter sido

preparado pela OREALC e CEAAL, como insumo à Conferência Regional. Uma demarcação

importante feita nesse documento diz respeito à característica latino-americana de encontrar,

nos programas, à parte dos adultos, propriamente, adultos e jovens em sua grande maioria,

assim como mulheres pobres, com demandas de aprendizagem e situações de vida distintas à

dos adultos escolarizados e dos jovens e das mulheres de setores sociais mais favorecidos. As

38 Para facilitar os trabalhos da reunião regional, a Unesco, através da OREALC, em acordo com o CEAAL estabelece definições prévias para a convocação de organizações não-governamentais e obter de um governo da região o compromisso de sediar a referida reunião.

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108

necessidades e modos de vida incluem o fato de serem pessoas com baixa qualificação

profissional, trabalhadores informais; pais ou mães prematuros; evadidos do sistema escolar,

seja pelo baixo rendimento, seja pela necessidade de se incorporar ao mundo do trabalho. O

reconhecimento do caráter juvenil e feminino dos participantes dos programas indica, para os

formuladores do documento, a necessidade de mudar a referência até então feita à educação

de adultos, assumindo-a como de pessoas jovens e adultas. Outro aspecto relevante que o

documento destaca é o fato de que a educação de adultos não ocupa lugar de prioridade nas

políticas públicas, agravado pela não-existência, em muitos casos, de equipes qualificadas na

área, sem poder para influenciar e transformar as propostas existentes até então.

O Anexo 4, Aprendizaje de adultos: una clave para el siglo ventiuno, destaca os temas

comuns das conferências precedentes, nos 45 anos em que a Unesco opera nessa área,

sintetizando-os da seguinte forma:

Logro la alfabetización universal; establecimiento de la paz y cooperación internacionales; creación de un espíritu genuino de democracia; aumento de las oportunidades de aprendizaje para todos los grupos de edad; promoción de la igualdad de géneros; contribución al desarrollo sostenido (p. 1).

Acrescenta, ainda, que nos anos 1960, com a descolonização crescente, novos temas se

incluíram, como o da cooperação internacional para apoio aos países em desenvolvimento; o

do comprometimento das organizações não-governamentais; a reflexão sobre valores estéticos

e morais; o papel da ciência e da tecnologia para o progresso social; a relação entre

aprendizagem de adultos e educação inicial. Mas também destaca que, a partir da Conferência

de 1985, temas-chave foram sublinhados: a intensificação da luta contra o analfabetismo, sob

as novas alianças entre governos e instituições não-governamentais; a alta prioridade à

educação de mulheres; o vínculo da educação formal e não-formal na perspectiva de

aprendizagem; o impacto decisivo dos meios de comunicação para os processos de

aprendizagem; a necessidade de criatividade e inovação na aprendizagem de adultos; a

preocupação com o analfabetismo funcional em países industrializados.

Também está em destaque o fato de que a aprendizagem de adultos chega a ser parte

integrante de estratégias de prevenção em saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS), de

políticas de população e programas mundiais de meio ambiente, e de desenvolvimento

sustentável dos planos de economia de todos os entes das Nações Unidas: Organização das

Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), Programa das Nações Unidas para o

Desenvolvimento (PNUD), Fundo das Nações Unidas para a População (FNUAP), Fundo das

Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas

Page 111: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

109

para a Mulher (UNIFEM), Banco Mundial, sem deixar de mencionar ainda a Organização dos

Estados Americanos (OEA), e a Organização para a Unidade Africana, a Secretaria da

Comunidade Britânica, outras organizações regionais inter-governamentais junto às

organizações não-governamentais reconhecidas em todas as regiões, em nível internacional.

Sobre o tema Aprendizaje de adultos: uma clave para el siglo ventiuno, o documento

afirma ser ela não apenas uma chave e uma ferramenta, mas “ao mesmo tempo, um direito

(grifo meu), uma alegria e uma responsabilidade compartilhada”.

Para desenvolvê-lo, são propostos dez subtemas, a saber:

a) aprendizagem de adultos e desafios do século XXI;

b) melhoria de condições e da qualidade da aprendizagem dos adultos;

c) assegurar o direito universal à alfabetização e à educação;

d) promoção de maior poder à mulher por meio da aprendizagem de adultos;

e) aprendizagem de adultos e evolução do mundo do trabalho;

f) aprendizagem do adulto em contexto de prevenção e segurança: meio ambiente, saúde e população;

g) aprendizagem de adultos, meios de comunicação e cultura;

h) aprendizagem de adultos e de grupos com necessidades especiais;

i) a economia e a aprendizagem de adultos;

j) ampliação da cooperação e solidariedade internacional.

Por último, destaco o texto Diretrizes para a educação de jovens e adultos em 1996,

também encaminhado pela SEF/MEC, na mesma ocasião. Esse documento trata de afirmar o

pensamento e a forma de conduzir a área de EJA por meio das políticas públicas. Por ele

observam-se as discrepantes concepções metodológicas do governo brasileiro e a perspectiva

apontada pela Unesco/OREALC na condução das atividades preparatórias e para a própria

Conferência. Embora afirmando a área como uma das prioridades do Governo Fernando

Henrique Cardoso, a leitura do texto, no entanto, vai trazendo à luz o verdadeiro lugar

reservado à EJA, assim como a concepção restrita — a de escolarização de quem não teve

sucesso na escola — com a qual os dirigentes da SEF se pautavam para responder às

“demandas de uma parcela da população que não foi atendida na época devida por

interposição de determinantes internos e externos ao sistema educacional.” (BRASIL, 1996, p.

1).

Explicitando o que entende como determinantes externos, diz que são relevantes “a

insuficiência e ineficiência da oferta — representados pelos limites de acesso e, quando

Page 112: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

110

superados estes, pela decorrência do fracasso” (BRASIL, 1996, p. 1). E segue, na mesma

página:

A Educação de Jovens e Adultos aparece, então, como medida curativa. Assim, não é possível ignorar que todos os esforços na direção da melhoria do ensino fundamental para crianças de 7 a 14 anos representam, na forma de medidas preventivas, intervenções positivas na área de Educação de Jovens e Adultos, uma vez que acabam por diminuir a necessidade de um atendimento extemporâneo.

Este parágrafo, emblemático, revela toda forma de pensar EJA do então governo,

denunciando, contraditoriamente, aspectos questionáveis da própria política adotada.

A primeira questão a destacar é a assertiva de que a EJA é medida curativa, revelando

preconceito em relação ao analfabetismo, visto como doença — daí a necessidade de curá-lo

—, assim como o passar ao largo da conquista constitucional da EJA como direito. A segunda

questão é a explicitação do entendimento de que a EJA só se justifica pela desescolarização,

não assumindo a perspectiva de educação continuada, como integrante da condição de sujeitos

adultos, que aprendem continuadamente, como forma precípua do estar no mundo, vivendo. A

terceira questão é a ausência de crítica ao fracasso do próprio sistema, que mesmo priorizando

crianças de 7 a 14 anos, produz analfabetismo — pelo fracasso e pela insuficiência de vagas

—, porque a relevância implicitamente admite que o fracasso apontado é culpa dos sujeitos, e

jamais de uma escola inadequada para aceitar os integrantes de classes sociais diversas, com

suas expressões de classe, promovendo e produzindo currículos que tomam em conta seus

valores, suas aprendizagens e expressões culturais. Assim, ao conferir prioridade a um

segmento etário, deixando os demais sem atendimento (ou quase sem), e revelando os dados

do IBGE (1991) sobre analfabetismo absoluto (20 milhões), e em 1987 de 87 milhões de

brasileiros com escolaridade somente até a 4ª série do 1º grau (sic), não submete estes dados

ao crivo da crítica, quanto ao fracasso dessa estratégia, já que a prioridade não se converte em

sucesso dos que passam pela escola, pelo contrário, indicam que até a acessam, mas que não

permanecem (vide o baixo nível de escolaridade), nem obtêm êxito.

Apesar de alegar atendimento e financiamento expressivo, em comparação a anos

anteriores, observa-se a sugestão de critérios, indicados pela Comissão Nacional de EJA à

SEF, para a distribuição de recursos disponíveis (em 1996, 36 milhões, contra 17 milhões em

1995), que representam percentualmente 5% para ações internas de EJA; 45% para

transferência a estados; 35% para transferência a municípios; e 15% para transferência a

organizações não-governamentais. No tocante ao repasse a estados e a municípios, a

Comissão propôs alguns critérios, acatados parcialmente pela SEF, alegando ausência de

Page 113: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

111

tempo hábil para avaliação da capacidade financeira dos municípios e de dados estatísticos

referentes à EJA no Censo Escolar, e acrescentando um novo critério. Dessa forma, a seleção

de projetos deveria contemplar: número absoluto de analfabetos, em razão direta e peso 5;

taxa de analfabetismo, razão direta e peso 4; existência de órgão de EJA na estrutura, razão

direta e peso 1. No entanto, para os mais de 5500 municípios, a prioridade vai para dez

municípios de cada estado que apresentem maiores taxas de analfabetismo, apenas, e a

conseqüente prioridade para o estado que os englobe. Como se pode observar, a política

proposta é focalizada e excludente, com baixíssima perspectiva de atendimento e de

constituir, efetivamente, ação pública, o que também se encontra explicitado no documento,

ao indicar recursos para organizações não-governamentais, e definir, no texto, a estratégia de

apoio e estímulo a iniciativas no campo da alfabetização. Por 1996 ser ano eleitoral, o

documento anuncia que em 30 de junho reavaliará a distribuição de recursos, por estar

impedida de realizar repasses após essa data.

Por último, o documento indica os eventos que se seguirão, com vista a cumprir o

calendário dos encontros preparatórios à V CONFINTEA.

44..77..22 EEnnccoonnttrrooss pprreeppaarraattóórriiooss:: ddeessddoobbrraammeennttooss iimmpprreevviissttooss —— ddoo RRiioo ddee JJaanneeiirroo aa

NNaattaall//RRNN

O encontro estadual do Rio de Janeiro foi marcado por uma ação enérgica da

Delegacia Regional do MEC (DEMEC/RJ), mobilizando o poder estadual e organizando o

encontro, pois se aproximava o tempo de fazê-lo e a secretaria estadual de educação não

iniciava as providências. Um grupo de técnicos, integrantes da equipe da DEMEC/RJ,

interessados na EJA, pressionou o coordenador de EJA dessa secretaria no sentido de atender

ao chamamento da Unesco, segundo recomendações já explicitadas. De pouco êxito, a equipe

iniciou a organização do evento, que acabou por acontecer, marcando um precioso lugar de

encontro de interessados na EJA dispersos em todo o território fluminense.

É desse momento que se origina o Fórum de Educação de Jovens e Adultos do Estado

do Rio de Janeiro, como espaço de encontro de muitos e variados atores da EJA que se

encontravam dispersos em várias instituições, sem mais haver um “lugar” de agregação. A

idéia é encampada de imediato pelo grupo contatado e estendida a outras pessoas, iniciando-

se um movimento social novo e revelador da disposição de luta da sociedade, que inaugurou

formas e táticas de resistência, diante do quadro a que vinha sendo relegada a EJA.

Page 114: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

112

Nos acervos disponíveis, encontro um documento-síntese de um dos grupos de

trabalho nesse encontro estadual, integrado por participantes até hoje engajados na EJA, em

sua maioria, e dele destaco que as trocas efetivadas entre os presentes apontaram para

questões como o vácuo na área, provocado pela extinção da Fundação EDUCAR;

preocupação com a transferência de encargos e recursos públicos para empresas e

organizações não-governamentais; falta de iniciativas no Rio de Janeiro para responder à

crescente demanda de EJA; e expectativa positiva com a perspectiva aberta pelas reuniões

preparatórias da V CONFINTEA, acenando para a retomada de políticas governamentais na

área.

As recomendações desse grupo já apontavam para a necessidade de que a política

nacional de EJA contemplasse democraticamente a pluralidade de concepções e paradigmas,

atuando nas interfaces entre eles, atendendo à perspectiva de ser uma política de inclusão para

os analfabetos, aos quais essa condição tem determinado condições sociais mais frágeis e

desvantajosas. O grupo recomendava, ainda, que a EJA fosse desenvolvida no contexto da

educação permanente, com pressupostos antropológicos, culturais e epistemológicos das

formas de saber e conhecimentos dos adultos e jovens, e jamais pautada pelos princípios da

educação regular ou de forma compensatória, mas como resgate de uma dívida social para

com os jovens e adultos. E, por último, recomendava que o MEC assumisse a coordenação

política nacional, estimulando as universidades para o ensino, a pesquisa e a extensão na área,

além de uma política efetiva de monitoramento, acompanhamento e avaliação em relação às

determinações constitucionais e dos acordos internacionais sobre EJA.

Como se pode observar nos registros desse grupo, à época já havia bastante clareza em

relação ao que se devia propor no tocante à EJA, oriundo de participantes tanto de

universidades, como de sindicato patronal, Sistema S, secretarias municipais, organizações

não-governamentais, empresas públicas, ressaltando-se, no entanto, ainda uma visão

reforçadora da idéia de dívida social, e não de direito. De todo modo, é surpreendente

verificar, quase dez anos depois, como estava constituída a reflexão sobre a EJA, com

perspectivas tão próximas às assumidas ainda hoje, e, ao mesmo tempo, lamentar o quão

pouco se caminhou nas práticas em direção à consecução das compreensões explicitadas.

Do encontro regional Sul-Sudeste, do qual participou a delegação do Rio de Janeiro,

em 25 e 26 de julho, em Curitiba, no Paraná, não localizei qualquer registro passível de leitura

e discussão.

Page 115: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

113

Nos encontros regionais foram firmados documentos, e novas delegações indicadas

para participação no encontro nacional, ocorrido em setembro de 1996, em Natal, objetivando

consolidar o documento nacional que representaria o Brasil no seguinte Encontro Regional

Latino-americano, assim como definir a delegação participante desse momento mais amplo.

Antes, porém, de destacar os fatos envolvidos com o Encontro Regional, cabe demarcar os

acontecimentos políticos vinculados ao Encontro de Natal.

O Encontro de Natal foi marcado pela surpresa de, na abertura, a delegação se ver

como platéia para o lançamento do Programa Alfabetização Solidária - PAS, como resposta

às demandas de alfabetização do país, no âmbito do Programa Comunidade Solidária,

coordenado pela então primeira-dama Ruth Cardoso. O PAS, que será tratado adiante, passava

a ser a resposta política ao chamamento da Unesco, e sequer fora alocado no MEC, estando

fora dos espaços norteadores de políticas públicas. Alterando a lógica da mobilização nacional

até então realizada, como também a discussão que se fazia com empenho da sociedade e

muito pouca colaboração do MEC, o lançamento extemporâneo não conseguiu que os

delegados desistissem de promover os grupos de trabalho e fechar um documento final.

O documento desse momento, intitulado Documento final do Seminário Nacional de

Educação de Jovens e Adultos - Natal / RN: 8 - 10 set. 1996 Elementos para um diagnóstico

da EJA no Brasil foi aprovado pelos delegados reunidos em plenária e origina-se da

consolidação dos relatórios dos encontros preparatórios realizados nas regiões Nordeste, Sul e

Sudeste, Norte e Centro-Oeste39. Contempla dados de contextualização da educação de jovens

e adultos, no tocante a população, analfabetismo e escolarização, e ainda o atendimento

prestado nas Regiões Nordeste; Norte e Centro-Oeste — nesta o aumento do problema

também; Região Sul e Sudeste, com a focalização no contexto social e na questão do

analfabetismo. Enuncia, em seguida, princípios orientadores e compromissos firmados pelos

participantes do evento, percebendo-se dentre esses compromissos a preocupação em pensar a

questão social mais amplamente, entendendo que a educação de jovens e adultos não terá

sucesso, enquanto não se resolverem questões de forma integrada, em perspectiva totalizadora

do processo de reversão da pobreza e da desigualdade. Do mesmo modo, a perspectiva da

educação de jovens e adultos carrega uma concepção mais ampla, de educação continuada:

[...] desenvolver políticas voltadas à resolução dos problemas da exclusão social, promovendo políticas industrial, agrícola e de reforma agrária, de forma a estimular a geração de emprego, a redistribuição da renda e da terra.

39 Os encontros regionais deram-se em Campo Grande, no Mato Grosso (Norte e Centro-Oeste); Salvador, na Bahia (Nordeste); Curitiba, Paraná (Sul-Sudeste).

Page 116: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

114

[...] Promover a reflexão e discussão permanentes sobre a vinculação da EJA à melhoria de vida e ao desenvolvimento socioeconômico do país e sobre as políticas educacionais mais adequadas, comprometendo os governos Federal, estaduais e municipais com a superação do analfabetismo e a elevação dos níveis de escolaridade da população.

[...] Promover a continuidade e institucionalização de programas e projetos educacionais em todas as instâncias governamentais e não-governamentais, visando à consolidação de uma política nacional de educação continuada. (p. 32).

É reiterada a defesa do direito à educação, nos termos da Constituição Federal de

1988, assim como a responsabilidade das esferas públicas em parceria com entidades da

sociedade civil, exigindo-se pensar planejadamente as alternativas de cumprimento do direito

em planos plurianuais, com financiamento próprio e condições adequadas, destacadamente no

tocante à formação docente, para o que recomendam o concurso das universidades, como

também para a sistematização e produção de conhecimentos em subsídio ao avanço do

estatuto epistemológico da EJA.

O resgate da idéia de planos plurianuais se fazia — e ainda se faz — como uma

necessidade no planejamento público, fortemente sujeito às condições orçamentárias

condicionadas pela correlação de forças políticas no Legislativo. Especialmente em se

tratando de EJA, cujo déficit de atendimento é imenso, exigia-se reorganização e

reestruturação dos sistemas de ensino — o que incluía concursos públicos, ampliação de

escolas, equipes técnicas gestoras qualificadas etc. Pensar planejada e prospectivamente a

ação do Estado fazia-se indispensável, tomado a sério o dever constitucional de garantir o

direito do ensino fundamental para todos, considerado o largo contingente desescolarizado ou

subescolarizado constituído, principalmente, por jovens, a quem o poder público era devedor

de permanência e sucesso, na passagem pelo ensino fundamental, especialmente nos últimos

anos. Assim sendo, a delegação, sensível à tarefa que o Estado brasileiro teria pela frente para

enfrentar o desafio de cumprir o dever que lhe cabia, recomendava apropriadamente a

necessidade de prever condições exeqüíveis, para executar a ação de EJA para toda a

população.

Page 117: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

115

44..77..33 CCoonnffeerrêênncciiaa RReeggiioonnaall PPrreeppaarraattóórriiaa LLaattiinnoo--aammeerriiccaannaa:: aarrddiiss ddoo ppooddeerr ààss

pprrooppoossttaass ddaa OORREEAALLCC

A última etapa no continente, a da Conferência Regional Preparatória Latino-

americana, ocorreu de 22 a 24 de janeiro de 1997, em Brasília — cidade-sede desse nível

preparatório da Conferência Internacional —, com certo atraso (inicialmente era prevista para

novembro de 1996), sob a alegação de impossibilidade para a organização, frente à destituição

da Profª. Consuelo Jardon, coordenadora de EJA no MEC, em seguida ao Encontro de Natal.

Tendo em vista esse e vários outros fatos, a Comissão Nacional de Educação de

Jovens e Adultos, pela pessoa do professor Moacir Gadotti, como membro titular da referida

Comissão e com a autorização de onze entidades-membro40, enviou correspondência ao

Ministro Paulo Renato, datada de 2 de outubro de 1996, com uma série de consideranda em

relação a acontecimentos sobre os quais não foram notificados, entre eles a exoneração da

Coordenadora, que também integrava a Comissão, e a alteração da data do evento regional, de

que foram informados através do CEAAL, solicitando audiência ao Ministro para

esclarecimentos adicionais sobre o papel da Comissão.

Primeiro ardil: negando Paulo Freire em sua pátria

Para esse momento, a OREALC negociara, na pessoa de José Rivero – o Pepe,

representante de longa data daquele escritório e bastante conhecido dos educadores da área

pelos longos anos em que atuou em toda a América Latina e Caribe —, além do local como

sede, também uma justa homenagem a Paulo Freire, a ser feita em sua pátria, pela

representação latino-americana, que tanto respeitou e apreendeu de suas discussões. Aí se

encontra o primeiro ardil.

O governo brasileiro rejeitou a idéia, por considerar o educador pertencente a um

passado distante, e sem maior expressão no presente histórico e político nacional. Assim, a

40 Autorizam a correspondência os representantes da União dos Dirigentes Municipais de Educação - UNDIME; Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras - CRUB; Central Única dos Trabalhadores - CUT; Movimento de Educação de Base - MEB; Pensamento Nacional das Bases Empresariais - PNBE; Rede de Apoio à Ação Alfabetizadora no Brasil - RAAAB; Instituto Sócio-ambiental de Ação Educativa; Sindicato da Construção Civil Rio - SINDUSCON-RJ; Associação Brasileira de Organizações Não-governamentais - ABONG; Associação Projeto Educação do Assalariado Rural Temporário - APEART; Associação Nacional de Cooperação Agrícola - ANCA.

Page 118: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

116

OREALC levou a proposta da homenagem ao UIE/Hamburgo, para que fosse feita durante a

V CONFINTEA, o que de fato ocorreu, mas como homenagem póstuma41.

À Conferência Regional participaram representantes dos governos de cada país;

representantes das organizações não-governamentais em nível nacional e regional; consultores

e especialistas regionais em educação de jovens e adultos. Manteve os objetivos previstos

para todas as etapas preparatórias, em consonância com os objetivos da V CONFINTEA,

adotando metodologia de trabalho com grupos por temas, analisando, elaborando,

compatibilizando, sistematizando e aprovando a declaração e as recomendações da

Conferência Regional Preparatória da América Latina e Caribe.

Segundo ardil: negando a produção coletiva nacionalmente constituída

O segundo ardil foi quanto ao documento brasileiro levado à Conferência Regional:

não o sistematizado em Natal — embora os delegados indicados na reunião nacional tivessem

sido conservados —, mas outro documento, produzido nos gabinetes ministeriais,

expressando posição bem distante daquela assumida como síntese dos pensamentos diversos

que se fundiram em uma proposta coletiva no Rio Grande do Norte. Sobre esse documento,

cabe leitura e reflexão detalhada, pelo conteúdo teórico e ideológico, em rigorosa sintonia

com o pensamento neoliberal que orientava a ação política do governo Fernando Henrique

Cardoso e, particularmente, do ministério Paulo Renato.

O documento do MEC, intitulado A educação de jovens e adultos no Brasil, no

contexto da educação fundamental, historia a metodologia de trabalho recomendada pela

Unesco, indicando que nos encontros regionais foram compatibilizados documentos em

subsídio ao Seminário Nacional, e que neste, “as discussões [...], por sua vez, ofereceram

subsídios para a consolidação dos encaminhamentos que dizem respeito, não apenas ao papel

do Estado, mas caracterizam, sobretudo, um compromisso social da nação brasileira”.

(BRASIL, 1996-1997, p. 1). Nesta citação, retirada da introdução, observa-se o caráter

dispensado ao trabalho dos delegados participantes do Seminário Nacional — responsáveis

pelas discussões, em subsídio ao documento a ser formulado pelo MEC. Este caráter é

reforçado pela ausência absoluta de referências bibliográficas que demonstrem levantamento

de fontes para sustentar as afirmações feitas, e não inclui, evidentemente, qualquer alusão ao

documento de Natal.

41 Paulo Freire morreu em 2 de maio de 1997, pouco antes da Conferência que o homenagearia.

Page 119: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

117

O documento itemiza aspectos referentes, ainda, a: contexto; educação de jovens e

adultos: demanda e atendimento; atuação do Ministério da Educação e do Desporto;

recomendações e encaminhamentos. Dele, algumas questões devem ser destacadas.

A primeira, no item contexto, apresenta o que se poderia chamar de concepção oficial

da EJA vigente naqueles anos, por ser formulada pelo MEC, em sua instância máxima de

representação, produzida para uma conferência regional, integrando um processo

internacional. Analisando o papel da escola em contexto de países subdesenvolvidos, ou em

desenvolvimento da América Latina, incluído o Brasil, aponta que o desafio não se põe

apenas na transformação indispensável à escola tradicional com crianças provenientes de

famílias com tradição de freqüência à escola, mas da incorporação de crianças sem tradição

familiar de escolarização, com recursos muito escassos, sem professores qualificados, e com o

agravante de ser feito com altas taxas de crescimento demográfico e extensão de anos de

atendimento da escolaridade obrigatória (BRASIL, 1996-1997, s.p.). Nesse contexto, segue

apontando o desafio — tema da reunião: “recuperar, para os jovens e adultos que ficaram à

margem do processo educativo, a oferta de uma formação que lhes garanta condições

mínimas de ingresso e competição no mercado de trabalho”. (BRASIL, 1996-1997, s.p.). E

segue indicando, também, que a “história educacional recente demonstra que o esforço

nacional para universalizar o acesso ao ensino fundamental obrigatório tem sido bem recebido

no sentido de diminuir substancialmente os índices de analfabetismo no país”. (BRASIL,

1996-1997, s.p.).

Essas primeiras idéias subsidiam e organizam todo o documento. Parece-me que, aqui,

está a objetivação da política que o MEC cumpriu durante todo o mandato Fernando Henrique

Cardoso. Inicialmente, entendo que há clareza discursiva para assegurar que, mesmo com o

esforço de universalização (ainda que de resultados discutíveis), a idéia de incorporação de

todas as crianças aos sistemas de ensino não se colocava como convicção para o governo,

justificado pela cultura societária de não-valorização da escola pelas classes populares (a que

o documento não nomeia como tal, mas o faço eu), o que certamente punha em dúvida o êxito

da empreitada. Adicionado a essa falta de convicção, observa-se a descrença no corpo de

professores, uma tônica dos oito anos do Ministro Paulo Renato Souza à frente do Ministério

da Educação. Em seguida, é apresentada a compreensão do por que educar jovens e adultos

marginados do processo educativo — sobre o porquê, nenhuma hipótese é levantada —,

associada à relação da formação (de que tipo, de que espécie, também não se explicita), com

condições mínimas (o grifo é meu, mas a atenção deve ser dada ao fato de que, segundo o

Page 120: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

118

MEC/SEF, para esses bastam condições mínimas, nada além) é apresentada, com a finalidade

do ingresso e competição no mercado de trabalho (provavelmente mínimo, de qualificação

mínima, salários idem, portanto). Ou seja, para jovens e adultos não-escolarizados, o destino é

o mercado de trabalho subalternizado, sem qualquer referência ao direito constitucional que

lhes é devido, desde 1988. Esta idéia retorna, na página seguinte, ampliando a concepção

expressa, pela agregação de novos elementos: a oferta é reconhecida como a de formação

“supletiva” (grifo meu, e aqui se esclarece a qualidade da formação referida anteriormente) ou

“complementar para milhares de jovens e adultos”, destacando, no entanto, que a formação

destes ainda é melhor que a de seus pais, embora permaneça “inadequada em face das novas

exigências do mercado de trabalho e da sociedade”.

Por último, destaque-se entre essas idéias a da relação entre ensino fundamental

obrigatório e diminuição do analfabetismo, na mesma direção das concepções que propõem

“estancar a fonte de analfabetos”, pelo investimento nas crianças, até que os primeiros

desapareçam da face vergonhosa/envergonhada do país com a sua presença.

Em seguida, dois gráficos demonstram que duas são as fontes de geração de demanda

na EJA: uma, o insucesso verificado nos índices de repetência; outra nos índices de evasão do

ensino fundamental regular. A despeito de afirmações, no seguimento do texto, que põem em

cheque concepções anteriores, demonstrando inconsistência e contradições na formulação dos

primeiros argumentos, novamente volta-se, ao encerrar o item contexto, a enunciar, agora sem

maiores dúvidas, a “posição brasileira”, assumida diante da Conferência:

[...] continua a ser a de que o objetivo primeiro da política educacional é o de oferecer a formação adequada, na idade própria, no ensino fundamental, superando a repetência e a evasão e elevando a porcentagem de concluintes do ensino fundamental. Esta política eliminará, em muito, a necessidade de prover EJA, a não ser como educação continuada, cada vez mais necessária num mercado de trabalho em transformação, que coloca exigências crescentes em termos de escolarização. [...] o equacionamento do problema do analfabetismo e de escolarização insuficiente da população jovem e adulta passa, necessariamente, pela ampliação da oferta de ensino regular e pela melhoria de sua qualidade, de forma a atender, plenamente, às necessidades de escolarização das crianças e jovens na idade adequada. Trata-se, portanto, de afirmar a prioridade da ação preventiva.

Ainda que concentre seus esforços no fortalecimento da educação básica regular, o Brasil vem também se empenhando em conceber e implantar estratégias para recuperar as vítimas do déficit escolar passado e presente. (BRASIL, 1996-1997, s.p.).

Este trecho não deixa dúvida sobre a concepção assumida pelo MEC no tocante à EJA.

Preservam-se os elementos constitutivos da patologia que o analfabetismo representou

Page 121: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

119

historicamente — ação preventiva; vítimas —, e todos os que acompanharam de perto as

políticas educacionais desses anos são testemunhas das práticas coerentes com a enunciação

desse discurso. Quanto à educação continuada, possível como alternativa pelo esvaziamento

de demanda da EJA se executada a política proposta, essa jamais surgiu ou teve lugar no

âmbito do Ministério da Educação, nos oito anos de controle do poder do Estado pelo PSDB.

Justificando a proposta, o documento exemplifica com alternativas voltadas a

populações específicas o atendimento diferenciado, e não por razões de princípio da EJA,

assim como justifica a redução da oferta pelo clichê usual nesses casos — o do país-

continente. Um aspecto importante a destacar é que, quando se referindo às alternativas de

oferta, embora a maioria delas esteja posta como supletivo, não há qualquer comentário

quanto à enunciação da LDB nº. 9394 em negociação, aprovada em 20 de dezembro de 1996,

que já apontava para uma concepção diferente da concepção de supletivo.

Outro aspecto relevante, citado no item sobre a atuação do MEC, faz alusão ao

FUNDEF, em tramitação final no Congresso Nacional, à época, como passível de aplicação

para jovens e adultos. O texto em questão contraria a recomendação feita quase

simultaneamente pelo Ministro da Educação ao Presidente, para que este vetasse, dentre

outros, justamente o artigo que contabilizava as matrículas dessa oferta de atendimento, para

efeito de cálculo dos recursos destinados ao ensino fundamental de jovens e adultos.

Destacando, ainda, sua atuação na área, o MEC evidencia a quase desobrigação do

poder público no cumprimento da oferta da EJA como dever do Estado, para defender as

parcerias que faz com entidades. Assim, explicita como “iniciativa mais importante” o

Programa Educação para a qualidade do trabalho, feito em parceria com organizações

governamentais e não-governamentais, e especialmente com o setor empresarial42. No tocante

à formação inicial e continuada de professores, cria uma linha de financiamento para as

universidades, em atenção a esse fazer e com vista à produção de material didático43. Por

último, explicita o Programa Alfabetização Solidária, como estratégia do governo brasileiro, 42 O Programa se amplia e passa a representar o coração do fazer da EJA desses tempos, com recursos oriundos do FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador, sendo, ao final dos anos 1990, a forma de fazer política educacional para a EJA, e deslocando as orientações pedagógicas do MEC para o Ministério do Trabalho, que coordenava e administrava, como visibilizado no I Encontro Nacional de EJA em 1999, no Rio de Janeiro, cerca de 2 bilhões de reais, contra o orçamento do MEC para a área da ordem de, aproximadamente, 35 milhões. 43 Esta estratégia foi, em seguida, modificada, deixando as universidades de receberem esses recursos para a formação, disputada, desde então, por firmas de assessoria que oferecem, com qualidade discutível, serviços de formação continuada às prefeituras. A dificuldade de oferta por parte das universidades se ampliou quando um decreto da Presidência, reeditado recentemente pelo Governo Lula, passou a impedir o pagamento de pró-labores a servidores públicos, desconsiderando até mesmo os casos previstos pela Constituição, de duplicidade de matrículas para médicos e professores.

Page 122: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

120

alinhando cinco parceiros: MEC, Conselho da Comunidade Solidária, empresas,

universidades e prefeituras, estruturado em forma de projeto-piloto, com previsão de

ampliação, para o que concorre com as “características de baixo-custo e gestão simplificada”,

iniciando-se nos 32 municípios brasileiros com maior índice de analfabetismo, dividindo seus

custos com empresas, selecionando e oferecendo materiais didáticos através da SEF/MEC e

atribuindo “às universidades o papel de capacitar monitores/professores”. Um penúltimo

destaque cabe à referência à Proposta Curricular de EJA, que “publica, socializa e

recomenda”, elaborada por Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação, com o

objetivo de:

[...] promover a melhoria do ensino de EJA, por meio da oferta de referenciais, que pressupõem sua adequação às peculiaridades locais, favorecendo a revisão dos conteúdos, da elaboração de material didático e da capacitação docente, apoiando a elaboração e reestruturação das propostas curriculares das secretarias estaduais e municipais (s.p.).

Como destaque, cabe a referência à instituição da Comissão Nacional de Educação de

Jovens e Adultos, sob a Coordenação da SEF, com a “finalidade de fazer convergir a

formulação e implantação de políticas públicas para a educação de jovens e adultos para os

legítimos interesses e necessidades nacionais”44.

No item final do documento, a SEF/MEC “reafirma seu papel de articulador da

política nacional de Educação de Jovens e Adultos, apoiando eqüitativamente a

operacionalização das ações para a área nos estados e municípios”, e “orientado pelos

princípios de integração, autonomia, qualidade, eqüidade, flexibilidade e pluralidade”, resume

a posição brasileira, nos seguintes pontos: a) EJA como política de Estado, inserida nas

políticas de educação básica; b) EJA como alavanca necessária, mas não suficiente para a

construção da cidadania dos povos latino-americanos; c) continuidade e ampliação

dependentes da participação eficaz da sociedade civil, com mecanismos que possam garanti-

44 A Comissão instituída não foi a primeira, já tendo existido outras, desde o tempo da Fundação EDUCAR, tendo, inclusive, o Prof. Paulo Freire como integrante. A última, que se extingue por falta de convocação, teve a contribuição da sociedade civil organizada em pressão para a sua atuação, nos tempos de absoluta ausência de resposta do Estado à EJA. Esta Comissão contava com a participação de representantes de 16 entidades, nem todas de reconhecimento e legitimação pelos educadores e estudiosos da EJA: CONSED – Conselho de Secretários Estaduais de Educação; UNDIME – União dos Dirigentes Municipais de Educação; ABONG – Associação Brasileira de Organizações Não-governamentais; MEB – Movimento de Educação de Base; CMB – Confederação das Mulheres do Brasil; CGT – Confederação Geral de Trabalhadores; ANCA – Associação Nacional de Cooperação Agrícola; APEART – Associação Projeto Educação Assalariado Rural; SESI – Serviço Social da Indústria; SINDUSCON – Sindicato da Indústria da Construção Civil; IPF – Instituto Paulo Freire; Ação Educativa, Assessoria, Pesquisa e Informação; IBEAC – Instituto Brasileiro de Estudo e Apoio Comunitário; RAAAB – Rede de Apoio à Ação Alfabetizadora no Brasil; CRUB – Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras; PNBE – Pensamento Nacional de Bases Empresariais.

Page 123: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

121

la; d) EJA concebida segundo princípios de modelo inovador e de qualidade, orientado para a

formação de cidadãos democráticos e sujeitos de sua ação, com currículo variado, em respeito

a etnias e culturas populares, com relação ensino-aprendizagem predominantemente de troca

de saberes; com conteúdos básicos, interdisciplinar; articulada à formação profissional, com

modelo educacional voltado para a formação do cidadão e do ser humano em todas as suas

dimensões; com recursos das modernas tecnologias da comunicação; com gestão democrática,

instituindo conselhos e formas variadas de participação para o acompanhamento, controle,

fiscalização e avaliação das ações e recursos.

Terceiro ardil: negando a educação de jovens e adultos e assumindo caráter corretivo para

as ações na área

Um terceiro e último ardil se anuncia, este ao fim do documento, reiterando o MEC

sua disposição de manter-se na contramão da história, segundo a minha ótica, mas estando

seguro de que o fazia por estar comprometido com os novos tempos, enquanto os demais, de

pensamento diverso ao seu, representavam o atraso político e teórico. Diante de toda a

América Latina, o Brasil reafirmava seu compromisso de investimento na educação

fundamental de qualidade para todas as crianças de 7 a 14 anos, em caráter preventivo, e

simultaneamente para jovens e adultos, em caráter corretivo, recomendando ainda, à Unesco,

a criação de um fórum permanente de discussão e linhas de apoio à formação permanente dos

educadores, de um banco de dados e a efetivação de pesquisas na área, reforçando a

concepção compensatória e tutorial para a EJA, que impede pensar prospectivamente essa

ação educativa e benefícios futuros dela advindos.

Di Pierro (2000, p. 24-25), analisando a posição de críticos sobre a concepção

compensatória sob a qual as políticas públicas de EJA vêm se fazendo, assim se expressa:

[...] ela se baseia em um conjunto de argumentos equivocados, o primeiro dos quais consiste em referir-se aos problemas do analfabetismo e dos baixos níveis de escolarização como se fossem resquícios do passado, o que resulta em estratégias de educação de jovens e adultos visando à reposição da escolaridade perdida na "idade apropriada" (Flecha, 1990a; 1990b). Ao projetar no passado a origem do problema, produz-se um argumento que resulta operacional àqueles que defendem ser prioritário investir na educação de crianças e adolescentes, delegando à sucessão "natural" das gerações a tarefa de extinguir o problema. [...] ao propor a reposição da escolaridade não recebida na infância por meio da reprodução do modelo de ensino escolar de crianças, a educação de jovens e adultos resulta ineficaz e desmoraliza-se como investimento social e politicamente relevante. [...] a concepção compensatória acaba legitimando no campo psicopedagógico as teorias do déficit que supõem a existência de uma idade apropriada para

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122

aprender, a partir da qual as aprendizagens possíveis são limitadas e os resultados pouco expressivos, teorias estas que fomentam preconceitos etários e ignoram desenvolvimentos recentes das ciências cognitivas. A persistência da concepção compensatória dificulta que a sociedade vislumbre os benefícios futuros da educação de pessoas adultas, dispondo-se a nela investir no presente, o que limita a construção de consensos sociais amplos que possam sustentar políticas públicas continuadas para esses grupos etários.

No conjunto de idéias finais do documento, a SEF/MEC mantém sempre uma posição

ambígua em relação à EJA, ao enunciar papéis e finalidades e, de outro lado, definir

prioridades. Atribuindo à EJA sentidos desejáveis, escapa imediatamente pela via

denunciadora dos projetos neoliberais, contidos nos recursos aplicados à área social e

praticando políticas focalizadas, discriminando e excluindo setores e segmentos sociais com

discursos palatáveis que, em muitos casos, passam despercebidos de educadores e de

professores que até defendem essas políticas.

Sobre os resultados dessa Conferência, conforme indicado no documento preliminar, o

livreto da Unesco, CEAAL, Centro de Cooperación Regional para la Educación de Adultos

en América Latina y el Caribe (CREFAL) e Instituto Nacional para la Educación de los

Adultos (INEA - México) Hacia una educación sin exclusiones (1998, p. 25) assim se refere:

“se planteó la necesidad de considerar una nueva política de EDJA en el contexto de las

transformaciones de la educación en la región y del sector educativo particularmente”.

Constata-se o fato de que no momento em que se analisava a EJA e seu fazer político na

América Latina, vivenciavam-se as intensas reformas educativas de traço predominantemente

economicista, com eixo forte na educação básica impostas pelos organismos multilaterais,

como por exemplo o Banco Mundial que ditava políticas educacionais no continente durante a

década de 1990. Essas mudanças e transformações tanto afetaram a EJA pelo descaso que a

ela se impunha, como resposta política, como definiram um espaço de independência para que

ela se pensasse — e até mesmo se realizasse, em muitos casos —, com escassos recursos, mas

com autonomia pedagógica, criatividade e autenticidade, pelos cursos promovidos pela

sociedade civil e assumidos pelos protagonistas, de certa forma “abandonados” pelo Estado

quanto ao direito à educação, exercendo pressão sobre esse mesmo Estado. No nível dos

governos, o que se observa é que as ações de EJA eram assumidas como compensatórias, com

recursos escassos e equipes técnicas mal formadas e desatualizadas.

Na Conferência de Brasília definiram-se algumas opções estratégicas, como forma de

pressão regional sobre a V CONFINTEA: a) centrar o foco da EJA no ensino e na

aprendizagem, melhorando a qualidade dos processos educativos; b) atenção especial aos

Page 125: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

123

jovens; c) vínculos com a transformação produtiva e com o trabalho; d) superação do círculo

vicioso da pobreza e ampliação de políticas de manejo sustentável do meio ambiente, no

marco de um desenvolvimento justo; e) práticas orientadas para desenvolver valores

democráticos e os direitos humanos; f) universalidade do direito à educação por toda a vida e

adoção da perspectiva de aprendizagem permanente como expressão do desenvolvimento

humano.

44..77..44 AA VV CCOONNFFIINNTTEEAA —— aa EEJJAA ddiiaannttee ddoo ssééccuulloo XXXXII

A V CONFINTEA marcou diferenças de outras reuniões semelhantes pelo

protagonismo dado à sociedade civil, representada por organizações não-governamentais, que

junto com delegados governamentais, definiram seus principais documentos.

Dos 1.507 participantes, 41 eram ministros e 18 vice-ministros; 734 representavam

135 Estados-membro da Unesco; 478 representavam a sociedade civil, fundamentalmente

organizações não-governamentais; 14 representavam outros organismos da ONU; 37

representavam fundações ou instituições, ou eram especialistas convidados (Unesco-CEAAL-

CREFAL-INEA, 1998, p. 26). Na condição de representante da sociedade civil, pude

participar dos trabalhos, aportando questões da prática dos educadores brasileiros, no âmbito

em que atuava, assim como a de pesquisadora, à ocasião, de um projeto de educação

ambiental — uma vertente da educação de adultos, a educação continuada ao longo da vida

— em bairro da Baixada Fluminense.

O tema central da Conferência, Aprendizagem de adultos: a chave para o século XXI,

já recebera aportes variados, inclusive do conhecido Relatório Delors, de 1996. Rivero (2000,

p. 112), referindo-se à contribuição latino-americana na V CONFINTEA, assim se expressa:

A contribuição latino-americana foi importante. Foi a região que insistiu na necessidade de considerar prioritário o trabalho educativo com jovens carentes e de conceder ao problema de gênero valor especial; seus representantes exigiram a necessidade de superar uma educação centrada em desempenhos; passar de uma educação controlada por exames a outra, baseada na responsabilidade individual e coletiva; de uma educação acumuladora de informação para uma educação que processe e utilize essa informação.

O mesmo livreto da Unesco-CEAAL-CREFAL-INEA Hacia una educación sin

exclusiones (1998, p. 35) também explicita o significado da contribuição da América Latina,

principalmente no tocante à presença juvenil na EJA:

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124

[...] que los jóvenes constituyen hoy en día uno de los principales públicos de la denominada DEJA y de que es necesario establecer nuevas estrategias que den respuesta adecuada a las demandas educativas juveniles. El eco de esta iniciativa latinoamericana fue mayor en representaciones de Africa, Estados Arabes y parte del Asia que en las de países del Norte desarrollado, con realidades etáreas y poblaciones distintas a las nuestras. [...]

Se plantean por lo menos tres áreas de acción prioritaria:

— Generar motivaciones para una mayor participación ciudadana juvenil

— Programas en apoyo a la inserción laboral de la Juventud

— Enfasis en la educación media de jóvenes con escasos recursos.

Da Conferência dois documentos ganham o mundo: a Declaração de Hamburgo e a

Agenda para o Futuro, este último formulado a partir de dez temas de estudo, para os quais a

Conferência indicou compromissos entre os Estados-membro. O reconhecimento desses

países e governos como prioritários para garantir os compromissos com a educação de adultos

mantém-se enfático na Declaração, não prescindindo, no entanto, das demais forças sociais

com as quais devem interagir e somar para o atendimento aos desafios da EJA.

A Declaração reafirma que “apenas o desenvolvimento centrado no ser humano e a

existência de uma sociedade participativa, baseada no respeito integral aos direitos humanos

[grifo meu], levarão a um desenvolvimento justo e sustentável”. E continua, assumindo que

[...] “A educação de adultos, dentro desse contexto, torna-se mais que um direito [grifo meu]:

é a chave para o século XXI; é tanto conseqüência do exercício da cidadania como condição

para uma plena participação na sociedade”. (BRASIL, 1998, p. 89). Dois importantes aspectos

são destacados no texto dessa Declaração: o primeiro, a reafirmação do direito à educação –

mais que direito —, e o segundo, o vínculo inalienável na materialidade do ser humano como

centro de ações de desenvolvimento, o que, inegavelmente, leva aos direitos humanos como

pacto maior de qualquer ação em que a pessoa humana esteja envolvida. Ausente a

perspectiva do direito de algumas conferências anteriores, nessa década, a reafirmação do

direito — e mais ainda, do direito à educação — não somente é reforçada, como modo pelo

qual acordos em torno do meio ambiente, de mulheres, de populações, de assentamentos

humanos etc. apóiam suas proposições. Eis como a Conferência expressa os sentidos para

direito à educação e para o direito a aprender por toda a vida:

O reconhecimento do “Direito à Educação” e do “Direito a Aprender por Toda a Vida” é, mais do que nunca, uma necessidade: é o direito de ler e de escrever; de questionar e de analisar; de ter acesso a recursos e de desenvolver e praticar habilidades e competências individuais e coletivas. (BRASIL, 1998, p. 93).

Page 127: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

125

Ainda enfatiza a educação de jovens e adultos como processo de longo prazo,

destacando “uma nova visão de educação, onde o aprendizado acontece durante a vida

inteira”, a começar da infância, e não apenas em relação a jovens e adultos, ou seja, como

educação continuada por toda a vida. Reafirma, com isso, o vínculo entre modalidades de

educação, na constituição de um sistema, descartando as formas paralelas pelas quais a EJA

vem sendo realizada, regra geral: “O novo conceito de educação de jovens e adultos apresenta

novos desafios às práticas existentes, devido à exigência de um maior relacionamento entre os

sistemas formais e os não-formais e de inovação, além de criatividade e flexibilidade”.

(BRASIL, 1998, p. 90, 92).

Tema de compromisso dos participantes, a educação básica para todos “significa dar

às pessoas, independentemente da idade, a oportunidade de desenvolver seu potencial,

coletiva ou individualmente. Não é apenas um direito, mas também um dever e uma

responsabilidade para com os outros e com toda a sociedade”. (BRASIL, 1998, p. 91). O que

a Declaração não faz é definir o que seria chamado de básico, cabendo a cada país,

estabelecer o conceito, segundo seus próprios entendimentos e corpo legal.

Quanto à alfabetização, esta é destacada dos contributos da educação de adultos e da

educação continuada “para a erradicação do analfabetismo” e, concebida “como o

conhecimento básico, necessário a todos num mundo em transformação em sentido amplo, é

um direito humano fundamental”. A proteção da cultura oral, para assegurar oportunidades

para que todos possam ser alfabetizados surge como elemento de destaque, quase sempre

desprezada quando se põe sob foco a cultura do escrito. (BRASIL, 1998, p. 90, 92).

As preocupações da Unesco com as questões candentes do mundo seja pela

intolerância seja por razões de segurança internacional, presentes no texto, não apenas

reafirmam os direitos das populações excluídas e marginalizadas, sobre a expressão de sua

cultura e natureza, como também reafirmam direitos à saúde (como direito humano básico), à

informação, à diversidade, e a sustentatibilidade ambiental, como um direito emergente, de

vínculo indispensável com a educação, para a garantia de um futuro sustentável. Ou seja, os

direitos cuja conquista se põe na dependência de processos educativos vão dos aspectos micro

da vida cotidiana, às questões macro, fetichizando a função social da educação, num

deslocamento que deixa de fora as questões macro-econômicas, responsáveis, em grande

medida, pelos problemas agravados que o mundo e suas populações mais pobres,

principalmente, têm vivenciado. A educação, no sentido para o qual segue o texto, sem

dúvida, é muito mais do que a chave para o século XXI, porque a ela se credita o poder de

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126

mobilização e participação social, democratização das oportunidades, participação no

mercado de trabalho e geração de renda, inclusão na sociedade da informação, participação de

homens, mulheres, jovens, idosos em igualdade de condições, valorizando uma cultura de paz

e apontando para novos paradigmas de desenvolvimento.

Por fim, destaco que a Declaração, representando os participantes que a assinam, se

compromete com “o objetivo de oferecer a homens e mulheres as oportunidades de educação

continuada ao longo de suas vidas” [...], construindo “alianças para mobilizar e compartilhar

recursos, de forma a fazer da educação de adultos um prazer, uma ferramenta, um direito e

uma responsabilidade compartilhada”. (BRASIL, 1998, p. 96).

Embora Hamburgo tenha demarcado a assunção da Unesco para uma concepção de

educação de adultos que inclui o reconhecimento dos jovens como sujeito dessa modalidade

educativa, no texto da Declaração passa-se a usar, indistintamente as expressões educação de

adultos e educação de jovens e adultos, sem que se tenha demarcado o porquê da inclusão do

segmento jovem na segunda expressão adotada. A única alusão mais próxima na Declaração

está quando se enuncia que a “educação de adultos engloba todo o processo de aprendizagem,

formal ou informal, onde pessoas consideradas ‘adultas’ pela sociedade desenvolvem suas

habilidades [...]”. (BRASIL, 1998, p. 89). Este elemento indica, seguramente, um dos

aspectos constitutivos da identidade dos jovens, para além da pouca idade — o fato de

assumirem, precocemente, atribuições e responsabilidades do mundo adulto —, mas deixa de

fora a complexidade das culturas juvenis nas formas como se expressam, em busca de

identidades próprias dos grupos populares a que pertencem. Ribeiro (2004, p. 136), em estudo

sobre a presença dos jovens nas escolas noturnas, e ouvindo suas razões sobre a busca

renovada à escola, traz argumentos incontestáveis para garantir um olhar diverso sobre o que,

com outros estudiosos, denomina de juventudes:

Entretanto, a escola continua sendo um espaço privilegiado de encontro e socialização, apesar de sua inadequação às necessidades desses jovens. A partir dela e dos locais onde vivem, organizam-se em grupos, vivenciam processos de aprendizagem, sociabilidade e, conseqüentemente, de afetividade. São trabalhadores, telespectadores, mães e pais, negros, brancos, consumidores, detentores de diferentes expressões artísticas e religiosas, como também portadores de necessidades especiais, entre muitos outros.

Assumir a presença dos jovens na educação de adultos é reconhecer o fracasso dos

sistemas de ensino, que não conseguem levar os adolescentes e jovens à terminalidade da

educação básica, cuja prioridade, na maioria dos países, nos orçamentos locais e

internacionais não tem correspondido aos investimentos efetivados. Talvez esse ônus a

Page 129: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

127

Unesco não tenha querido assumir nessa Declaração, pelas formas políticas como investe e

apóia ações educativas para crianças, pelo mundo afora, especialmente no âmbito do

UNICEF. Mulheres, como expressão de gênero, têm enorme visibilidade, e os idosos, dessa

feita, já aparecem como um segmento de preocupação, reservando-se a eles o direito a

aprender por toda a vida.

Da Agenda para o Futuro devo ressaltar o destaque feito ao Relatório Delors, que 25

anos depois do Aprender a Ser de Edgar Faure, declarando que a educação ao longo da vida

era a chave para o século XXI distinguia-se da tradicional concepção de educação básica e

educação permanente, ligando-se a “outro conceito”: [...], “o da sociedade educativa, na qual

tudo pode ser ocasião para que o indivíduo aprenda e desenvolva seus talentos”. (BRASIL,

1998, p. 99). A Agenda, assumindo os princípios da Declaração, tratava de estabelecer, para

cada tema, a compreensão básica, e os compromissos para que a concepção por ele assumida

pudesse ser empreendida nas práticas sociais dos países. São dez os temas: educação de

adultos e democracia: o desafio do século XXI; a melhoria das condições e da qualidade da

educação de adultos; garantia do direito universal à alfabetização e à educação básica; a

educação de adultos como meio de se promover o fortalecimento das mulheres; a educação de

adultos e as transformações no mundo do trabalho; a educação de adultos em relação ao meio

ambiente, à saúde e à população; a educação de adultos, cultura, meios de comunicação e

novas tecnologias de informação; a educação para todos os adultos: os direitos e aspirações

dos diferentes grupos; os aspectos econômicos da educação de adultos; a promoção da

cooperação e da solidariedade internacionais.

O retorno de Hamburgo teve seguimento, para alguns participantes, na IV Feira

Latino-americana de Alfabetização, em Recife, quando 1.624 educadores de jovens e adultos,

de todo o Brasil, reuniram-se de 28 de julho a 1 de agosto, sob a promoção da Rede de Apoio

à Ação Alfabetizadora no Brasil – RAAAB, aprofundando o tema Educação popular:

participação vs. exclusão na América Latina. México, Colômbia e Chile garantiram o caráter

latino-americano, constituindo o primeiro e imediato momento para tornar conhecidas a

Declaração e a Agenda. Dessa Feira, os participantes enviaram carta ao Ministro da

Educação, datada de 2 de agosto de 1997, comprometendo-se com o MEC a possibilitar a

concretização de compromissos firmados na Conferência, a lutar pela derrubada dos vetos ao

FUNDEF, entre outras, com o objetivo de “reversão da injusta situação de milhões de jovens

e adultos, privados do direito à educação básica, na idade própria”.

Page 130: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

128

44..88 SSEEMMIINNÁÁRRIIOO NNAACCIIOONNAALL DDEE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE PPEESSSSOOAASS JJOOVVEENNSS EE AADDUULLTTAASS PPÓÓSS--

CCOONNFFIINNTTEEAA

A partir da V CONFINTEA, os países membros, que firmaram os acordos,

comprometeram-se a cumprir a agenda proposta para dez anos, na condição de,

periodicamente, “prestar contas” entre si, sob coordenação da Unesco, quanto aos

encaminhamentos propostos em nível nacional para alcançar as metas estabelecidas.

A primeira prestação de contas ocorreu em 1998, intermediada pela OREALC, que

convocou os países da região latino-americana e caribenha para participarem de seminários

regionalizados, assim distribuídos: no México, envolvendo este país e os da América Central

e Caribe; na Colômbia, envolvendo os países andinos; em Montevidéu, com os países

integrantes do Mercosul. Até chegar à reunião regional, cada país deveria organizar um

seminário nacional, com a participação dos parceiros ou de representantes que discutissem o

estado das políticas e das ações na EJA. A tarefa, em princípio confiada ao MEC, foi por ele

descartada, sob a alegação de contenção de custos, conferindo, apenas, apoio ao evento. A

organização do evento coube, então, ao CONSED, à UNDIME e ao CEAAL, sendo realizado

em 29 e 30 de outubro, tendo a Secretaria de Estado de Educação do Paraná, em Curitiba,

como anfitriã. Da proposta técnica das atividades e da organização dos documentos básicos

ficou encarregado o CEAAL, que orientou o trabalho de formulação de subsídios temáticos,

feitos por especialistas convidados. A abertura oficial do evento contou com a presença de

representantes dos organismos envolvidos, incluindo José Rivero, pela Unesco. O MEC,

presente na pessoa da coordenadora de EJA, Ana Lúcia Jatobá, participava como observador,

sem qualquer função diretora.

De posse das sínteses das discussões dos grupos, a plenária ouviu as proposições sobre

cada tema e discutiu-as, incorporando as questões na redação do documento final. Deste

Seminário saíram indicados delegados que participariam da reunião regional em

Montevidéu45.

O conhecimento da OREALC sobre a questão brasileira no tocante à EJA permitiu

uma atuação mais contundente, pressionando o MEC a ampliar a participação para outros

órgãos, na sua ausência oficialmente assumida. Pela experiência anterior de Natal, a definição

45 Em Montevidéu ocorreu a Reunião Sub-regional para os países do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai) e Chile, de 17 a 20 de novembro de 1998. Outras duas reuniões ocorreram na América Latina, agrupando os países da região, como uma estratégia de seguimento das conclusões da V CONFINTEA, com vistas a enriquecer com propostas as sete áreas de ação regional e estabelecer acordos de ação, considerando os subsídios disponíveis e os esforços nacionais de cada país para a educação de jovens e adultos.

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129

do documento final e da delegação ocorreram no âmbito do próprio seminário, reservando ao

Ministério da Educação três vagas para indicação de seus representantes, sem diminuir os

demais. Já naquele momento, a existência do Fórum de EJA do Estado do Rio de Janeiro, era

reconhecida por todo o país, inspirando múltiplas experiências semelhantes em diversos

estados. A própria OREALC, conhecedora da experiência, ressaltava sua importância, tendo

registrado no Instituto Internacional de Planejamento Educacional da UNESCO (IIEP-

UNESCO) em Paris e em Hamburgo o modelo de ação coletiva de luta pela EJA.

O seminário demonstrou alguns aspectos sobre o modo de configuração do campo da

EJA, à ocasião: a base da ação que acontecia, em nível nacional, era de âmbito municipal,

devendo-se registrar o esvaziamento das Secretarias de Estado, de modo geral, na área. No

entanto, a multiplicidade de experiências dava-se sem que houvesse política mais ampla,

fazendo da EJA um campo de responsabilização do Estado com essa modalidade de educação,

com a parceria da sociedade civil. A Carta de Curitiba firmava a posição política dos

participantes/representantes dos diversos segmentos da EJA presentes, e foi assumida

coletivamente.

44..99 OO MMAARRCCOO DDEE AAÇÇÃÃOO DDEE DDAACCAARR —— RREEAAFFIIRRMMAANNDDOO CCOOMMPPRROOMMIISSSSOOSS DDEE 11999900,,

RREEEEDDIITTAANNDDOO OO MMIITTOO DDEE SSÍÍSSIIFFOO EEMM 22000000

O esperado ano 2000 chegou e uma nova ação política da ONU reuniu Estados-

membro na Cúpula Mundial de Educação, em Dacar, de 26 a 28 de abril que, uma vez mais,

comprometeram-se “a alcançar os objetivos e as metas de Educação Para Todos (EPT) para

cada cidadão e cada sociedade” (UNESCO, 2000, p. 1). Entendem, como exposto no item 2,

que esse é um compromisso coletivo para a ação, que deve ser realizada com “amplas

parcerias no âmbito de cada país, apoiada pela cooperação com agências e instituições

regionais e internacionais” (UNESCO, 2000, p. 1).

A leitura desse documento não deixa dúvidas: a imagem mais forte que suscita é,

novamente, a do mito de Sísifo, mais uma vez tentando levar montanha acima a enorme pedra

que, teimosamente, insiste em rolar morro abaixo. A ação da gravidade, mais forte do que o

quase-herói atua sem que qualquer interferência humana possa contê-la, apenas pela

correlação desigual de forças ascendentes e descendentes.

Do mesmo modo — e apesar dos esforços da ONU/Unesco — em reequilibrar as

forças desiguais que atuam no tocante à distribuição de riquezas entre os Estados-nação e os

organismos bi e multilaterais, representantes das forças do capital internacional, os resultados

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130

e o balanço de ações educacionais feito em Dacar, dez anos após Jomtien, são inequívocos em

revelar como a educação — a pedra, no mito —, é “fardo” pesado demais para ser alçado ao

cimo da montanha, sem que outras forças contribuam para fazê-la chegar até lá. De

Arquimedes a Newton, Pascal, Galileu e tantos outros que consolidaram as leis da Física

clássica, é impossível admitir que qualquer um deles veja solução para o caso, apenas com os

recursos que o mantêm.

Como as tarefas de acompanhamento e monitoramento dos acordos firmados são

muitas, e os países têm exigências diversificadas de cooperação internacional para atender os

compromissos, a Unesco mantém escritórios regionais. No caso de América Latina e Caribe, a

OREALC teve atuação destacada, ao longo dos anos, com forte aproximação, durante o

tempo de José Rivero Herrera à frente da Oficina, com o Brasil e com educadores brasileiros.

Diversas estratégias foram possíveis pelo fato de essa aproximação ter municiado a Oficina no

sentido de decodificar os bastidores das políticas negadoras de EJA, no nível nacional, para

fazer avançar, pelo chamamento internacional, no sentido minimamente necessário. Com a

aposentadoria de José Rivero, uma brasileira, Ana Luiza Machado, assumiu o lugar, e desde

então os laços anteriores não mais se confirmaram com a Oficina Regional, no apoio e

interlocução para políticas brasileiras. Uma das ações importantes da Oficina é, justamente,

disseminar os textos de acordos e subsidiar as temáticas, com documentos, pesquisas e

produção de conhecimento, com vista a ampliar a compreensão da dinâmica da região e

estabelecer aproximação entre os países, fortalecendo uns aos outros, pelas saídas comuns.

O Marco de Dacar afirma que uma avaliação da Educação para Todos 2000 demonstra

que houve progresso significativo em muitos países, mas considera inaceitável que ainda

existam mais de 113 milhões de crianças sem acesso ao ensino primário, e que 880 milhões de

adultos sejam analfabetos. Para isso, restabelece a meta de melhoria de 50% nos níveis de

alfabetização de adultos até 2015, especialmente para as mulheres, assim como acesso

eqüitativo à educação básica e continuada para todos os adultos, reafirmando seis objetivos

dos quais dois pactuados referem-se à alfabetização e à educação de jovens e adultos, ao

longo de toda a vida.

No caso da América Latina e Caribe, a crítica situação latino-americana que ultrapassa

as questões educacionais, indica o agravamento da pobreza e a ineficácia das políticas sociais

voltadas para esse fim, como se pode ler, na apresentação assinada por Ana Luiza Machado,

diretora regional, no folheto Educação para todos: compartilhar desafios, multiplicar

resultados, organizado com a finalidade de prestar contas das ações empreendidas pela

Page 133: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

131

Oficina e demonstrar possibilidades de apoio aos países da região em direção ao atingimento

das metas de Dacar:

América Latina e Caribe formam a região com maior desigualdade do planeta e onde a pobreza cresce de maneira surpreendente. Em 1980 havia 80 milhões de pobres, ao final dos anos 90 a cifra havia subido para 192 milhões; hoje mais de 250 milhões, isto é, cerca de metade da população, vivem na pobreza. As políticas sociais não têm sido capazes de reverter essa tendência. A educação não tem conseguido diminuir esta brecha, nem aumentar a mobilidade social através de uma oferta educativa que assegure igualdade de oportunidades à população.

Garantir uma educação básica de boa qualidade para todos, reduzir as taxas de analfabetismo e possibilitar a formação das pessoas ao longo da vida são desafios que precisam ser enfrentados por toda a sociedade. Os recursos e esforços para melhorar a qualidade e eqüidade da educação necessitam ser intensificados em prol de um desenvolvimento mais justo e humano. (OREALC/UNESCO, 2004, p.5).

Apesar do reconhecimento da situação e da aceleração intensa da pobreza na região,

nos últimos 25 anos, quando a população pobre praticamente triplicou, o organismo

internacional, mesmo demarcando o fracasso das políticas sociais, traz ainda marcas do

pensamento que admite ser a educação capaz de reduzir essa tendência, pelo aumento da

mobilidade social. Esse pensamento parece sugerir a interpretação regional para a questão,

pois o Marco de Ação de Dacar, ao reafirmar a “educação como direito humano fundamental

(grifo meu) e chave para um desenvolvimento sustentável, assim como para assegurar a paz e

a estabilidade dentro e entre países e, portanto, um meio indispensável para alcançar a

participação efetiva nas sociedades e economias do século XXI” (UNESCO, 2000, p. 1),

toma, uma vez mais, a educação como direito humano fundamental, sem atribuir a ela

qualquer finalidade no sentido da mobilidade social. Ao reiterar a educação no marco da

Declaração Universal de Direitos Humanos, o que a coloca para além da perspectiva de

direito social conquistado no início do século XX, Dacar recomenda que a aprendizagem de

jovens e adultos seja feita a partir do atendimento às necessidades, nos seguintes termos:

“assegurar que as necessidades de aprendizagem de todos os jovens e adultos sejam atendidas

pelo acesso eqüitativo à aprendizagem apropriada, a habilidades para a vida e a programas de

formação para a cidadania” (UNESCO, 2000, p. 2).

No folheto da OREALC, a compreensão desse objetivo se faz por uma ilustração e

texto que informam que, na região, metade dos países já conseguiu ter 70% dos jovens em

idade escolar cursando o ensino médio, mas que o atraso pronunciado de atendimento em

alguns países, como El Salvador, República Dominicana, Nicarágua e Guatemala, em ordem

decrescente, faz com que esse atendimento não alcance 50%. (OREALC, 2004, p. 10). O que

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132

se observa é que a preparação para a vida ativa se coloca em termos da escolaridade de nível

médio, não se destacando a importante função dos currículos próprios e adequados a jovens e

adultos, cujo marco regulador não pode continuar a ser a escola regular, mas as necessidades

cotidianas do estar no mundo, aprendendo, agindo, transformando-o.

No segundo objetivo que envolve a EJA — que estabelece o compromisso em

melhorar o acesso à alfabetização de 50% dos adultos, até o ano 2015, e nessa meta,

destacadamente, a alfabetização de mulheres, assim como facilitando a todos os adultos o

acesso eqüitativo à educação básica e à educação permanente —, Dacar estende no tempo —

15 anos — a meta que os países não conseguiram atingir em dez anos. O folheto da OREALC

explicita o sentido que atribui a essa meta, colocando em cheque a metodologia que, de modo

geral, assumem os recenseadores/pesquisadores em relação à condição ser ou não ser

alfabetizado: saber/não saber ler e escrever. Por ser assim, o quantitativo expresso no Informe

Regional de Monitoramento de Educação para Todos 2003 é questionado, pelo fato de a

resposta possível – binária - não revelar o que cada informante entende por saber/não saber ler

e escrever, o que deve alterar, se modificada a metodologia, os resultados constatados até esse

momento:

Segundo consta do Informe Regional de Monitoramento de EPT 2003, 89% da população de 15 anos ou mais declaram saber ler e escrever. Isto significa que ainda existem mais de 36 milhões de pessoas que declaram não estar nessa condição. Entretanto, essa declaração baseada em uma pergunta bipolar (sabe/não sabe ler e escrever) não é suficiente para captar os diferentes graus em que as pessoas têm desenvolvido suas competências de alfabetização. Por esse motivo a Unesco iniciou um novo programa (LAMP: Programa de Monitoramento e Avaliação da Alfabetização) destinado a obter informação mais precisa e que possa subsidiar com informações mais úteis a definição dos programas de alfabetização de adultos. (OREALC, 2004, p. 11).

O documento de Dacar traz, também, uma importante bandeira de luta no campo dos

direitos, que se anunciou a partir das Conferências da ONU na década de 1990: o aumento da

ajuda para o desenvolvimento e o perdão da dívida em prol da educação por parte dos

credores bilaterais e multilaterais, além da demanda de apoio financeiro adicional dos países,

para atender às exigências dos compromissos da Educação Para Todos, o que custará em

torno de U$ 8 bilhões por ano.

Às vésperas do novo século e do novo milênio, a construção do mundo civilizado não

passava de textos escritos, de cartas de intenções e de compromissos, reveladores do poder

dos que podem ler e escrever, fazendo desses textos poderosos instrumentos que exigem

Page 135: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

133

reuniões, seminários internacionais, conferências — enquanto a palavra, a que precisava ser,

imediatamente, tornada prática, continuava a navegar errante nos becos, nos porões, nos

gabinetes, nos palácios, sem que tivesse a chance de cumprir seu destino humanizador:

educação para todos.

44..1100 PPRROOJJEETTOO PPRRIINNCCIIPPAALL DDEE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO PPAARRAA AAMMÉÉRRIICCAA LLAATTIINNAA EE CCAARRIIBBEE 22000022--22001177

O Projeto Principal de Educação para América Latina e Caribe – PROMEDLAC

1980-2000, conhecido entre nós como Projeto Principal, que antecede o momento aqui

abordado, contribuiu para o esforço regional dos países, com vista a ampliar a abrangência

dos sistemas educativos, reduzir o analfabetismo de forte monta na região, e introduzir

reformas para melhorar a qualidade em educação.

O Projeto Principal balizou a política regional dos países da região na área de EJA,

atentos à presença forte e incisiva da Oficina Regional da Unesco no Chile, e aos

chamamentos temáticos para conferências, seminários, reuniões regionais.

Esgotados os 20 anos para os quais o Projeto foi pensado, avaliou-se, durante a VII

Reunião do Comitê Regional Intergovernamental do Projeto Principal de Educação em

América Latina e Caribe, realizada em Cochabamba, na Bolívia, entre 5 e 7 de março de

2001, que, apesar dos esforços, os três objetivos do Projeto não haviam sido alcançados em

sua totalidade, podendo-se apontar que o melhor deles estava representado pela ampliação da

abrangência da oferta da educação básica, sem que a permanência e a qualidade tivessem

chegado a um mesmo patamar, e que a melhoria nos índices de analfabetismo absoluto, em

toda região, ainda implicava a convivência com 41 milhões de analfabetos. Mas, de todo

modo, ali se criavam bases objetivas e subjetivas para declarar o direito de todos a uma

educação de qualidade, nos marcos anteriores dos variados fóruns de educação.

Nessa Reunião, os ministros de educação demandaram à Unesco a elaboração de um

novo Projeto Regional de Educação com uma perspectiva de 15 anos, projeto esse largamente

difundido pela rede mundial de computadores, de forma aberta e pública, recebendo

contribuições a partir desse dispositivo eletrônico. Em agosto de 2002, em Santiago do Chile,

uma segunda versão foi submetida à Mesa de PROMEDLAC VII, composta pelos vice-

ministros de Bolívia, Costa Rica, Cuba, México, Panamá e Chile, como país anfitrião, para

mais uma rodada de consultas, precedendo a convocatória da Primeira Reunião

Intergovernamental do Projeto Regional de Educação para América Latina e Caribe, realizada

em Havana, Cuba, de 14 a 16 de novembro de 2002.

Page 136: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

134

Com a participação de 29 Estados-membro e quatro estados associados da região —

além de observadores de Estados-membro de outras regiões, representantes do sistema das

Nações Unidas, observadores de organizações intergovernamentais e de organismos

internacionais não-governamentais, assim como diretores de instituições multilaterais e

fundações — o texto cuja versão era discutida foi, finalmente, aprovado, saindo desta Reunião

a Declaração de Havana e o Informe Final que contempla toda a dinâmica da Reunião e o

novo Projeto Regional de Educação para América Latina e Caribe - PRELAC, para o

período de 2002 a 2017.

Na Declaração de Havana, os Ministros reconheceram que a execução do Projeto para

mais 15 anos representava um desafio aos países, para que a educação se tornasse o eixo que

permitisse níveis elevados de desenvolvimento humano e de dignidade às populações, nos

umbrais do século XXI e, além do Projeto Regional, aprovaram o Modelo de

Acompanhamento do Projeto Regional de Educação para América Latina e Caribe 2002-

2017.

Declararam, reafirmando, a prioridade aos processos de alfabetização como etapa

inicial ao futuro desenvolvimento educativo das pessoas e um meio de enriquecimento

cultural, que deveria envolver todos os aspectos sociais, valorizando as experiências com

métodos ajustados à realidade, utilizando rádio, televisão e recursos compatíveis com as

economias latino-americanas. Tudo isso com a finalidade de reduzir em cinco anos os índices

de analfabetismo e erradicá-lo em dez anos, para o que os ministros se comprometiam a

coordenar os esforços necessários. Declararam, também, a necessidade de promover a

educação ao longo de toda a vida, em múltiplos ambientes humanos e educativos, em

interação, educação esta centrada em valores — como núcleo da formação da personalidade

—, promovendo aprendizagens orientadas a possibilitar o ser, o fazer e conhecer e a favorecer

a convivência humana, destacando como aspecto positivo a diversidade étnica e cultural dos

povos da região.

A diversidade étnica, nas formas como vem sendo defendida para o fundamento de

políticas educacionais, tenta inverter a concepção explicativa dos modelos de poder que

impuseram aos povos latino-americanos a colonialidade, caracterizando assim o processo

político da região, de dominação racial e de negação de direitos. Quijano (2000, p. 242),

assim se refere ao que se pode avançar e conquistar em termos de direitos políticos e civis, na

necessária redistribuição de poder, da qual a descolonização da sociedade é pressuposto e

ponto de partida:

Page 137: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

135

[...] está ahora siendo arrasado en el proceso de reconcentración del control del poder en el capitalismo mundial y con la gestión de los mismos funcionarios de la colonialidad del poder. En consecuencia, es tiempo de aprender a liberarnos del espejo eurocéntrico donde nuestra imagen es siempre, necesariamente, distorsionada. Es tiempo, en fin, de dejar de ser lo que no somos.

Principalmente no tocante a recursos, as formas colonialistas têm-se imposto, talvez

apenas mudando o eixo do mundo que o faz, depois de mais de 500 anos.

No novo Projeto Regional, o compromisso com o cumprimento dos direitos humanos

de todos e da cada um, mulheres e homens, é requisito essencial para gerar processos de

desenvolvimento sustentável, a consolidação de instituições democráticas e o estabelecimento

da transparência nas leis, ao mesmo tempo responsáveis e efetivas. O documento destaca que

o direcionamento tendo em vista a consolidação democrática é um dos êxitos recentes na

América Latina, ainda que a situação econômica da região, definida pelos poderosos do

mundo, venha impondo duras penas aos países, desde há muito, dificultando a integração

regional e o fortalecimento de laços comuns.

O Projeto Regional recupera os pilares da aprendizagem para o século XXI, definidos

pela Unesco, a partir do Relatório Delors, considerado guia quanto aos sentidos e conteúdos

da educação. Assim, seis anos depois, o paradigma ainda se mantém sobre o aprender a ser;

aprender a fazer; aprender a conhecer; aprender a viver juntos; aos quais o documento

acrescenta o aprender a empreender, como atitude proativa e inovadora, para formular

propostas e tomar iniciativas.

Entende, também, que o sentimento da sociedade, participando de decisões, a moverá

no sentido de ocupar os espaços em que se faça protagonista do próprio desenvolvimento.

Tanto o desenvolvimento humano, como a educação, têm aspiração à liberdade, ao bem-estar

e à dignidade de todos, em todos os lugares. As políticas públicas em educação devem para

isso contribuir, para o que o Projeto Regional propõe cinco focos estratégicos, para os

próximos 15 anos, relacionados a seguir, com os principais elementos constitutivos das

concepções que revelam:

1. Foco nos conteúdos e práticas da educação para construir sentidos sobre nós

mesmos, sobre os demais e sobre o mundo em que vivemos.

Nesse foco, a intenção é discernir qual o sentido da educação em um mundo de

incertezas, em que os conhecimentos mudam em grande velocidade e se ampliam

permanentemente. Muitas questões advêm dessa constatação e têm reflexo direto sobre as

Page 138: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

136

formas organizativas do currículo escolar e do que devem saber os alunos, ou seja, que peso

dar ao conhecimento nas escolas e como aproveitar as aprendizagens de fora da escola?

2. Foco nos docentes e fortalecimento de seu protagonismo para a mudança educativa

que responda às necessidades de aprendizagem dos alunos.

Defende o apoio nas políticas públicas que valorizem os docentes e seus saberes, como

aportes às transformações necessárias dos sistemas educativos, pelo esgotamento dos modelos

em que se lhes não atribui autonomia para formular e interferir nos desenhos e sistemas de

avaliação, propondo modos menos individuais e mais cooperativos de trabalho.

3. Foco na cultura das escolas para que se convertam em comunidades de

aprendizagem e de participação

Lida com a constatação de que lugares e tempos de aprendizagem se ampliam cada

vez mais e que a escola não é o único locus do saber, ainda que seja a única a assegurar a

eqüidade do acesso, oferecendo oportunidades de aprendizagem qualificada para todos,

contribuindo, assim, para a distribuição de oportunidades sociais.

4. Foco na gestão e flexibilização dos sistemas educativos para oferecer

oportunidades de aprendizagem efetiva ao longo da vida

Trata-se de fazer efetivo o direito de todos à educação, oferecendo oportunidades de

aprendizagem ao longo da vida, o que exige transformar a organização e as estruturas dos

sistemas — rígidos e com propostas homogêneas, para necessidades educativas heterogêneas.

Significa oferecer respostas diversas a necessidades diferenciadas, ditadas pelas condições de

cada público, fortalecendo a demanda pela educação de qualidade dos coletivos, em situação

de maior vulnerabilidade social.

5. Foco na responsabilidade social pela educação para gerar compromissos com seu

desenvolvimento e resultados

Como o Estado é o primeiro responsável pela educação, as políticas públicas devem

consolidar visões cidadãs sobre a educação nacional, com diferentes visadas sobre a realidade.

Se não há canais de expressão social sobre os conteúdos da realidade, há que haver vontade

política, por parte dos governos, para possibilitar a participação da população, exercendo

controle, com responsabilidade, sobre a educação de seus filhos, como um direito da

cidadania.

Page 139: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

137

A finalidade do Projeto Principal é, pois, promover mudanças nas políticas educativas,

partindo da transformação de paradigmas educativos vigentes para assegurar aprendizagem de

qualidade, voltada ao desenvolvimento humano, para todos, ao longo de toda a vida. A

educação ao longo da vida vai mais além da distinção entre educação básica e educação

permanente: significa conquistar uma sociedade educadora em que existam oportunidades

múltiplas para aprender e desenvolver as capacidades das pessoas.

O Projeto Regional ainda afirma que a distinção entre educação formal e não-formal e

educação presencial e a distância, é cada vez menos nítida, pela existência de diversos

âmbitos de aprendizagem que não passam pela educação escolarizada. Credita importância à

flexibilidade da oferta educativa e à multiplicidade de itinerários formativos, no sentido de

superar os índices de analfabetismo absoluto e funcional, assim como garantir a continuidade

de estudos para os que superaram o analfabetismo.

Reafirma o papel da implementação integrada de políticas sociais e econômicas que,

se não agregadas, permanecem gerando desigualdades nos sistemas educativos, impedindo

que se interrompa o círculo vicioso da pobreza e da exclusão.

44..1111 AA PPRREESSEENNÇÇAA DDAA SSOOCCIIEEDDAADDEE CCIIVVIILL OORRGGAANNIIZZAADDAA –– OO CCEEAAAALL

O CEAAL é uma associação de 200 organizações não-governamentais distribuídas em

21 países da América Latina e Caribe. Há 20 anos trabalha pela produção de conhecimentos a

partir de práticas de educação popular dos membros, em toda a região. Por ocasião do

lançamento do novo Projeto Regional, associado à OREALC como promotor do evento, o

CEAAL ratificou a afirmação da educação como direito humano fundamental, entendendo a

responsabilidade preponderante do Estado para assegurar essa conquista, de modo que a

cidadania possa fazer valer seus direitos, chamando os governos presentes para que

manifestassem decidida vontade política em favor da educação e da eqüidade.

Alertou para as cifras regionais da ordem de 41 milhões de pessoas analfabetas e cerca

de 110 milhões de jovens e adultos que não completaram os estudos do primeiro segmento,

portanto analfabetos funcionais, o que exigiria um esforço de escolarização intenso, mas

assumindo a posição, entretanto, de que a dinâmica educativa não pode estar restrita à

escolarização, o que exige a ampliação de espaços múltiplos e de todos os recursos de

aprendizagem que garantam a possibilidade de aprender por toda a vida, o que se esperaria,

também, dos sistemas educativos nacionais. Para isso, assevera a necessidade de

reestruturação dos sistemas, interrompendo processos de uniformização, segmentação e

Page 140: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

138

desarticulação que os sustentam. Condenou a privatização da educação, assim como as

tendências de priorizar a educação de crianças, esquecendo todo o restante da população,

mantendo visões economicistas que aprofundam os ressentimentos e a iniqüidade social. Do

mesmo modo, condenou o papel que o Banco Mundial tem representado na América Latina e

em outras partes do mundo, orientando reformas e políticas educativas. Defendeu para o

Banco o apoio financeiro, com recomendações que não sejam impostas como condição para

seus préstimos. Aos governos, incitou-os a afirmar sua soberania e servir-se do que tiverem de

mais qualificado no próprio povo e na comunidade internacional para recuperar e renovar os

sistemas educativos. Reconheceu limitações financeiras graves nos países, absurdas, se

consideradas as riquezas econômicas, de recursos naturais, culturais e intelectual, e o quanto a

globalização econômica ata as possibilidades de futuro diante da dívida externa e da vergonha

da ação predadora das elites políticas dos países.

Reafirmando, por fim, o compromisso com os focos estratégicos do Projeto Regional,

o CEAAL assumiu que o aprender a viver juntos e que a educação cidadã para a paz, e o

cultivo dos direitos humanos tornam-se fatores imprescindíveis na reconstituição do tecido

social.

44..1122 AA SSOOCCIIEEDDAADDEE CCIIVVIILL EEMM RREEDDEE —— OO PPRROONNUUNNCCIIAAMMEENNTTOO LLAATTIINNOO--AAMMEERRIICCAANNOO

O Pronunciamento Latino-americano sobre “Educação para Todos” foi uma

iniciativa levada a cabo por Pablo Latapí (México), Sylvia Schmelkes (México) e Rosa María

Torres (Equador), que redigiram um texto firmando algumas posições críticas e propositivas

em relação à avaliação da década de Educação para Todos, e ao papel assumido por governos,

sociedade e agências internacionais, para serem apresentadas no Fórum Mundial de Educação

realizado em Dacar, no Senegal, em abril 2000. O texto, submetido a uma comunidade

educativa da região, foi firmado na ocasião por mais de 600 educadores, continuando a

receber adesões a partir da sua divulgação no evento. Alcança, atualmente, mais de 4.000

firmantes da América Latina e de outras regiões do mundo, provenientes de universidades,

movimentos sociais, Estado, organizações de base, sindicatos docentes, partidos políticos,

igrejas, meios de comunicação, organismos de direitos humanos, sistemas escolares, agências

internacionais.

O compromisso dessa comunidade de firmantes latino-americanos desencadeou o

monitoramento dos acordos postergados até 2015, assim como de outros compromissos

firmados pelos governos da região nos últimos anos, como a Cumbre das Américas (2004-

Page 141: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

139

2010), a Declaração e Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (2000-2015) e, mais

recentemente, o Projeto Regional de Educação para a América Latina e Caribe - PRELAC

(2002-2017), no contexto social, político e econômico sem o qual não é possível compreender

os cenários da educação.

O documento organiza-se em torno de três distintas partes: Nossos povos merecem

mais e melhor educação; Retificações necessárias; Salvaguardar os valores latino-

americanos.

Na primeira parte, sustenta que a América Latina tem produzido pensamento

pedagógico, inovações, e práticas no sentido de cumprir o objetivo da educação de

aprendizagem e formação integral da pessoa, sem que venha sendo relevada toda essa

experiência e produção. Faz crítica à forma como se desenvolveram as políticas educacionais

na década de 1990, que apesar de se comprometerem a melhorar a aprendizagem,

demonstram, pelas avaliações realizadas, a pobreza de resultados e a falta de indicadores de

êxito. A despeito das sobrepostas reuniões, declarações, seminários na região, demarcadas a

partir de 1979, com a Declaração do México, que aprova, definitivamente em 1981, o Projeto

Principal de Educação para América Latina e Caribe - PPE, priorizando o acesso à escola, a

eliminação do analfabetismo adulto e a melhoria da qualidade e da eficiência educativa; em

1990, com a assunção das seis metas da Educação para Todos, coincidentes com o PPE até

2000; e em 1994, com a Cumbre de Miami, convocada pelo então presidente dos Estados

Unidos da América Bill Clinton, conformando o Plano de Acesso Universal de Educação até

2010, depois ratificado como Iniciativas de Educação, pela II Cúpula em 1998, em Santiago

do Chile, prevendo metas educacionais para os três níveis, sob a liderança dos EUA, e

coordenada por México, Argentina e Chile, além de OEA, Banco Mundial, BID e United

States Agency for International Development (USAID), o Fórum de Dacar estenderá os prazos

para atingimento de metas até 2015, porque estas não se cumpriram nos dez anos precedentes,

tomando Jomtien como marco inicial.

Argumenta, ainda, que a tradição para o desacerto do acordo tem culpado a falta de

recursos e a execução de programas e projetos, quando, o que se observa é a estrita

necessidade de revisar o desenho das políticas e de como os organismos mundiais encaram o

tema educação. Exemplifica com o caso de Cuba — único país que tem resultados diversos

dos demais, e não segue nem as políticas, nem as exigências dos financiamentos externos.

No item Retificações necessárias, afirma ser indispensável inspirar as opções

educacionais, os apoios e indicadores de avaliação em valores fundamentais, e não no avanço

Page 142: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

140

da cobertura e da eficiência dos sistemas, considerando que o desenvolvimento integral do

educando, a formação de consciência, o exercício responsável da liberdade e a capacidade de

relacionar-se com os demais e respeito a todos são, estes sim, os marcos que devem reger a

educação nos acordos firmados.

Invoca, como tarefa dos que decidem, nova postura no plano ético, por não ser a

educação engrenagem a serviço da economia, do consumo e do progresso material,

demonstrando que a questão da eqüidade – traduzida pelo acesso, permanência, sucesso, e

participação nos processos de produção do conhecimento não vem sendo enfrentada com a

devida ação política, que reduza as distâncias dos grupos mais marginalizados da educação.

Para essa tarefa, entende que a diversidade cultural dos povos latino-americanos é a

forma de garantir a qualidade, não pela homogeneização, mas justamente pela diversificação.

Nesse sentido, exige recuperar da Educação para Todos a visão ampliada de educação, como

a que se faz não apenas dentro dos sistemas escolares, mas fora também, em toda a sociedade,

resgatando, para isso: a visão multissetorial — que não entende ser a educação capaz,

sozinha, de dar conta da complexidade de múltiplas questões envolvidas nos processos

educativos; a visão de sistema, que implica pensar o todo e não isoladamente as partes, níveis

e modalidades que compõem o conjunto educacional; e, por último, resgatar a visão de longo

prazo que assume ser a educação tarefa para várias gerações.

Por fim, o Pronunciamento aborda o item Salvaguardar os valores latino-americanos,

defendendo o valor supremo da pessoa e da busca de sentido para a existência humana,

assentado em características dos povos latino-americanos, que propiciariam outras formas de

pensar a educação: o sentido comunitário da vida, principalmente entre a população indígena,

que se expressa por culturas mais solidárias do que competitivas; a multiculturalidade e a

interculturalidade produzida no interior dos povos; a abertura e valorização de formas de

conhecimento que transcendem a racionalidade, para assumir valores e fundamentos das

culturas regionais; o valor da liberdade, no sentido freireano, de autonomia da pessoa e

responsabilidade; de sustentar o trabalho como direito fundamental; da busca do outro na

construção do nós, o que garantiria a presença da utopia e da esperança, fundantes para a

construção da identidade, da conquista da paz e da justiça para todos.

Para isso, invoca-se a participação da sociedade não apenas na execução, mas na

formulação e discussão de políticas, e o redobrar de esforços de países, governos e agências

em prol da eqüidade, o que exige assumir a prioridade para os grupos marginalizados, assim

como a preservação da diversidade cultural, antepondo-a à globalização hegemônica e

Page 143: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

141

homogeneizadora. Uma enorme preocupação é levantada, com o protagonismo da banca

internacional, que o faz mediante a defesa do pensamento único e de modos de cooperação

internacional atinentes a esse modelo, o que exigiria revisão.

Convoca, por fim, os governos e a sociedade a recuperar a liderança em matéria

educacional, não deixando de assumir o protagonismo das políticas educacionais, e termina

com um convite à comunidade educacional do Fórum de Dacar, para que compartilhe

fraternalmente das reflexões levadas como contribuição ao evento.

O Pronunciamento Latino-americano, na área da educação, é inaugural no sentido de

reduzir a fragilidade dos que pensam a educação nos países, diante das formas e mecanismos

como as reformas educacionais e os financiamentos têm sido tramados pelos agentes do

capital internacional. As forças sociais, ressurgentes, parecem ter encontrado uma ferramenta

de reforço, de certo modo recuperadora da esperança, contra os avassaladores movimentos

concertados em bloco nos países pobres e em desenvolvimento: a rede Internet, capaz de

mobilizar, com rapidez e eficiência, uma multiplicidade de atores e demarcar, assim, lugares

de resistência nos espaços consorciados de iguais pela submissão, em que a divergência não

costuma ter assento, pela posição com que o poder instaura e convoca os que, de pronto, e a

priori, não lhe podem fazer oposição.

44..1133 CCOONNFFEERRÊÊNNCCIIAA DDEE SSEEGGUUIIMMEENNTTOO ÀÀ CCOONNFFIINNTTEEAA VV:: BBAALLAANNÇÇOO SSEEIISS AANNOOSS PPÓÓSS--

HHAAMMBBUURRGGOO —— BBAANNGGCCOOCC,, SSEETTEEMMBBRROO 22000033

As iniciativas da Unesco em relação ao monitoramento dos acordos não esmorecem. A

Declaração de Hamburgo e a Agenda para o Futuro submetidas à prova seis anos depois, na

metade do intervalo para a próxima Conferência (2009), mereciam ser avaliadas, o que foi

feito em setembro de 2003, em Bangcoc, Tailândia.

Cerca de 300 pessoas, de mais de 90 países convocados, avaliaram os pontos de

chegada às recomendações de Hamburgo e os compromissos assumidos. Ireland (2004, p. 1)

presente à Conferência e escrevendo sobre seus significados, diz ter tido a “impressão de que

a reunião intermediária possuía uma importância política maior, no sentido de garantir a

própria continuidade das CONFINTEA’s, marcando a próxima para o ano 2009”. Atesta o

fato pela participação restrita de apenas 50 países com delegações oficiais.

A fase preparatória a Bangcoc foi bastante limitada para a constituição de um amplo

relatório. Especialistas convidados de alguns países redigiram um informe sobre a realidade

Page 144: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

142

das políticas e dos programas de alfabetização e EJA; sobre a condução pública dessas

políticas e o investimento aportado, com dados de atendimento, propostas curriculares,

materiais didáticos, formação de professores. O relatório brasileiro, datado de junho de 2003,

foi redigido por Maria Clara Di Pierro e Mariângela Graciano, ambas de Ação Educativa, de

São Paulo46. O texto formulado, totalmente apropriado no Informe Regional — apresentando

a situação da EJA na região latino-americana —, ilustra o estudo de caso Brasil, conforme

estrutura do documento da América Latina.

O Informe Regional La Educación de Jóvenes y Adultos en América Latina y el

Caribe Hacia un estado del arte (OREALC, 2003) inicia com a descrição do marco analítico-

político geral da EJA na região, recolhendo práticas em alfabetização e educação de jovens e

adultos. Apresenta uma análise geral do contexto e sete estudos de caso baseados na

experiência dos países selecionados – Brasil, Chile, Equador, Honduras, Jamaica e Trinidad e

Tobago e México.

Uma das características relevantes destacada pelo Informe Regional diz respeito ao

conceito que a EJA assume na região. Observe-se:

Durante la década de los noventa se desarrolló una nueva política de la EPJA, poniendo énfasis en la incorporación de la juventud socialmente marginada al empleo. Modelos de una educación “secundaria” para jóvenes y adultos, la mayoría de las veces a través de programas acelerados, se convirtieron en la primera prioridad en los distintos países considerados. Chile ofrece un modelo en esta dirección. Por otro lado, observamos la integración de sistemas de formación vocacional tradicional para los trabajadores en una nueva dimensión, en la que se han incorporado las destrezas generales básicas y secundarias. En varios países, estrategias tripartitas, en las que cooperan gobierno, trabajadores y juventud, así como el sector privado, indican soluciones para el desempleo juvenil que merecen ser replicadas (ver los capítulos de Brasil e Jamaica). México y algunos países del caribe inglés han tomado una dirección distinta y están desarrollando un acercamiento más integrado y holístico, que combina la búsqueda de oportunidades de empleo con las siete áreas temáticas de CONFINTEA antes mencionadas. (OREALC, 2003, p. 10).

O documento informa, ainda, que há uma variedade de estratégias que demonstram as

disparidades sociais e econômicas da América Latina e uma tendência à formalização na EJA,

assim como à funcionalidade da educação básica, como aspecto central. Em alguns casos,

aponta o documento, a ênfase está no emprego e trabalho, de tal forma, que se subestimam os

aspectos sociais e políticos que afetam a vida das pessoas beneficiadas pelos programas.

(OREALC, 2003, p. 37). 46 A Profª. Maria Clara, desde o início de 2005, integra a Faculdade de Educação da USP, não sendo mais técnica e pesquisadora de Ação Educativa.

Page 145: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

143

Tanto as Metas de Desenvolvimento do Milênio da ONU não fazem referência ao

analfabetismo, como a Iniciativa de Via Rápida (Fast Track Initiative), coordenada pelo

Banco Mundial, manteve a aposta e o apoio à proposta de educação básica para crianças e

adolescentes. Um desafio restava: seria o Plano Internacional de Ação da Década de

Alfabetização das Nações Unidas - UNLD (2003-2012), na perspectiva da aprendizagem ao

longo da vida capaz de incorporar as recomendações da V CONFINTEA para a alfabetização

e educação básica de adultos?

Bangcoc não inovou do ponto de vista das tendências que a educação de jovens e

adultos assumia no interior dos países. Mesmo diante de concepções cujo enfrentamento

exigiria investimentos fortes — o caso da juventude como público de grande expressividade

—, não questionou as orientações dos agentes financeiros que têm ditado as regras para o

campo, contendo as políticas de largo atendimento a propostas tímidas e compensatórias. Ao

contrário, reafirmou as metas estabelecidas e sustentou o monitoramento nas mesmas bases,

embora atestando a distância dos países, decorridos seis anos, dessas metas e sua

inexeqüibilidade prática.

44..1133..11 AA pprreesseennççaa iinntteerrnnaacciioonnaall ddee ppeessqquuiissaaddoorreess ddaa EEJJAA àà CCoonnffeerrêênncciiaa

Apesar das limitações da fase preparatória e da sistemática adotada durante a reunião,

a Conferência ressaltou a vitalidade da área para enfrentar ambientes adversos, presentes nos

informes de muitas regiões. As mudanças no cenário mundial, desde Hamburgo,

inequivocamente demonstravam o fôlego da área, para sobreviver em ambientes tão hostis às

populações marginalizadas. Desemprego, desmonte do mundo do trabalho até então

conhecido e as perplexidades geradas para as multidões; o individualismo exacerbado das

políticas neoliberais; o ressurgimento de ações discriminatórias e intolerantes contra

manifestações religiosas, raciais, ideológicas, expressas pelo terrorismo, no vácuo da luta

contra o comunismo, conformando terrorismo de Estado, especialmente contra o mundo

islâmico; e a substituição de princípios éticos por valores de mercado, em que tudo tem seu

preço, compunham o doloroso cenário sobre o qual Bangcoc operou.

A educação de adultos revelou, rotineiramente, a importância marginal nas políticas

educacionais da maioria dos governos, cuja concepção, no mais das vezes, restringe-se a

metas de educação básica para todos, no caso brasileiro afeto ao nível de ensino fundamental.

Também se destaca que:

Page 146: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

144

Os conceitos de educação continuada e de educação como aprendizagem no seu sentido amplo, de um processo que possui uma centralidade fundamental para a consolidação e o aprofundamento da democracia, para a igualdade de oportunidades e a afirmação do papel social das mulheres, não foram postos em prática em muitos países. (IRELAND, 2005, p. 4).

Porque tanto a educação de adultos quanto o ensino superior estão incluídos para

negociação no Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio – GATT, da Organização Mundial do

Comércio – OMC, sugere-se que os governos andam a reboque do mercado, perspicaz como

sempre.

Uma última anotação relevante destaquei de Ireland (2005, p. 6), alertando para as

dificuldades relativas a ser a EJA um campo desprestigiado no rol das áreas de interesse

segundo a lógica hegemônica: “Não existem soluções fáceis, mas é difícil imaginar um futuro

melhor que não dê a devida importância à educação e à aprendizagem de adultos.

44..1133..22 AA nnoovvaa pprreesseennççaa bbrraassiilleeiirraa —— oo MMEECC ddee CCrriissttoovvaamm BBuuaarrqquuee nnoo ggoovveerrnnoo LLuullaa,,

eemm BBaannggccoocc

Diferentemente do momento anterior, na V CONFINTEA, um novo governo, afeito à

alfabetização de jovens e adultos, teve a responsabilidade de preparar o Relatório Nacional da

Educação de Jovens e Adultos para Bangcoc. Sob a coordenação do Ministro Cristovam

Buarque, o MEC tentava fazer da alfabetização de adultos, como prioridade do governo

federal, uma realidade no país. Mas o fazia pela via restrita, e sempre autoritária a que se

apegam os dirigentes, sem escuta dos setores que atuam sobre o campo e que sobre ele

pensam sistematicamente. A despeito das diversas tentativas de chegar ao núcleo de poder e

viabilizar o diálogo, a posição do Ministro — e conseqüentemente a do Ministério —, não se

sensibilizaram. Louvável a prerrogativa de não ser ético propor a alfabetização para alguns, e

não para todos os 20 milhões47, como pregava o Ministro, mas na prática inexeqüível em

quatro anos, se não se consolidasse um plano de ação de médio e longo prazos, e não um

programa; assim como se a continuidade dessa etapa do processo de formação de leitores não

se enraizasse nos sistemas, dando oportunidade de estudos mais amplos, cumprindo pelo

menos o dever do Estado, e direito de todos, ao ensino fundamental. Entre a esperança e a

insatisfação imediata, assistiu-se ao lançamento do Programa Brasil Alfabetizado, cujo

assento na nova Secretaria Extraordinária de Erradicação do Analfabetismo (SEEA) assustava

pela exumação de um termo sepultado na prática social da EJA.

47 O número 20 milhões foi usado todo o tempo do exercício do Ministro Cristovam Buarque à frente do MEC, embora o Censo IBGE 2000 apontasse cerca de 17 milhões como o quantitativo de analfabetos absolutos.

Page 147: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

145

Para a Conferência Internacional Mid Term em Educação de adultos, em setembro de

2003, no primeiro ano de um governo que representava a chegada dos pensamentos de

esquerda ao poder, ainda que sob alianças contestáveis, o MEC formulou um documento de

que vale destacar alguns aspectos, pelo fato de se dirigir ao cenário internacional, no qual

demarcaria um novo momento do país, diante das anteriores concepções levadas a termo até

Hamburgo.

A primeira afirmativa é a de que o MEC, para concretizar a Agenda para o Futuro,

acordada em Hamburgo, fortalece “iniciativas e parcerias com os sistemas municipais e

estaduais de educação e organizações não-governamentais, atuando junto aos Fóruns que

discutem a ampliação e a melhoria da qualidade da educação de pessoas adultas no Brasil”

(BRASIL, 2003 In: IRELAND, MACHADO, PAIVA, 2004, p. 187), e ressalta que a EJA é a

única modalidade de ensino que transfere recursos a instituições não-governamentais.

Nesse momento já se observa a legitimidade sendo conferida aos fóruns de EJA,

visibilizados no novo governo; e o compartilhamento da LDBEN, sobre a qual se alude a

importância de ter trazido “nova perspectiva à educação de jovens e adultos, incorporando-a

como modalidade da Educação Básica e reafirmando a obrigatoriedade e gratuidade de sua

oferta” (BRASIL, 2003 In: IRELAND, MACHADO, PAIVA, 2004, p. 188). Do mesmo

modo, são destacadas as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação de Jovens e Adultos

- Resolução Nº. 01/2000, do Conselho Nacional de Educação, ressaltando “o direito à

educação escolar para jovens e adultos, observando a formação inicial e continuada de

professores e a formulação de propostas pedagógicas coerentes com as especificidades desta

modalidade” (BRASIL, 2003 In: IRELAND, MACHADO, PAIVA, 2004, p. 188). Por fim, o

documento afirma ser um dos objetivos do MEC “definir e implementar uma política nacional

para a educação de jovens e adultos”. ((BRASIL, 2003 In: IRELAND, MACHADO, PAIVA,

2004, p. 188).

Por esse documento, o MEC também assume que o mapeamento do analfabetismo no

país coincide com o mapa das desigualdades regionais, sociais e étnicas, assim como sinaliza

para o número de jovens e adultos que não cumpriram a escolarização obrigatória de 8 anos,

dizendo que faltam orientações curriculares que apóiem educadores na compreensão das

inovações metodológicas e nas temáticas adequadas ao universo desse público. Indica que a

orientação do material até então existente, a Proposta Curricular para o 1º Segmento do

Ensino Fundamental, elaborada por Ação Educativa e utilizado pelos sistemas públicos de

ensino, segue em subsídio ao trabalho pedagógico na EJA, não se estabelecendo um currículo

Page 148: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

146

obrigatório a ser implementado em nível local, regional ou nacional, o que estimula o debate

em torno da questão curricular e a busca de outras propostas.

Acentuando a meta prioritária de assegurar o ingresso, a permanência e a conclusão do

ensino fundamental com qualidade, em parceria com estados, municípios e sociedade civil a

todos os brasileiros de 15 anos e mais que não tiveram acesso à escola, ou dela foram

excluídos precocemente, o documento afirma que o MEC implementa um conjunto de ações

visando à ampliação da oferta, recuperação e melhoria da escola pública e valorização do

professor. (BRASIL, 2003 In: IRELAND, MACHADO, PAIVA, 2004, p. 201). Na

conclusão, o documento aponta o que ocorreu nos últimos seis anos, prestando contas das

ações de EJA, finalmente, à Conferência, tendo em vista os acordos de Hamburgo.

Uma das ocorrências a que o MEC atribui importância diz respeito aos fóruns

permanentes de educação de jovens e adultos, naquela ocasião já existentes em quinze estados

brasileiros, o que teria promovido, segundo o texto, ampla discussão com a sociedade sobre as

políticas públicas para jovens e adultos, configurando avanço democrático na área.

Outra, as formas de parceria com instituições governamentais e não-governamentais,

“visando resgatar a dívida social que tem com essa camada da população” (BRASIL, 2003 In:

IRELAND, MACHADO, PAIVA, 2004, p. 202). Informa ter apoiado financeiramente cerca

de 3.136 instituições governamentais e dez não-governamentais, em todas as unidades da

federação, assim como dá destaque ao crescimento de matrícula no período de 2000 a 2002,

nas Regiões Norte e Nordeste do Brasil de 48% e 102,5%, respectivamente, e

conseqüentemente, o aumento em 104% no montante de recursos transferidos. Destaca, por

fim, a criação da SEEA, em 2003, para elaboração e execução de políticas públicas com vistas

à superação do analfabetismo no Brasil e o lançamento do Programa Brasil Alfabetizado

(BRASIL, 2003 In: IRELAND, MACHADO, PAIVA, 2004, p. 203).

Apesar de o Brasil, naquele momento, demonstrar a retomada dos compromissos com

a EJA, não consegue realizar o esperado balanço dos seis anos pós-Hamburgo, pelo fato de

concentrar a descrição de suas ações no período mais recente de atuação governamental.

Mesmo que os dados não fossem de relevo — e até admite-se que não tenham sido, face à

opção política do governo anterior —, a memória desse tempo e sua crítica deixam de ser

feitas, denotando a parcialidade, também, com que se assume o compromisso internacional.

Além dessa questão, a crítica da sociedade sobre a prioridade para a alfabetização, e as

tensões geradas pela pressão dos fóruns, não aparece, se não pelo enaltecimento do papel

social que estes têm exercido. Se é verdade que conferir a eles legitimidade é significativo,

Page 149: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

147

não é verdade que estes tenham se alinhado sem crítica à política do MEC, o que exigiria

“passar a limpo” a história desse tempo, para que o jogo de poder e as disputas contra-

hegemônicas pudessem aflorar multifacetadamente.

44..1144 GGRRUUPPOO DDEE AALLTTOO NNÍÍVVEELL DDEE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO PPAARRAA TTOODDOOSS —— DDEECCLLAARRAAÇÇÃÃOO DDEE BBRRAASSÍÍLLIIAA

Chefes de Estado, Ministros, dirigentes de instituições e agências internacionais,

governamentais e não-governamentais, reunidos de 8 a 10 de novembro de 2004 em Brasília,

a convite do Diretor Geral da Unesco, participaram da quarta reunião do Grupo de Alto Nível

de Educação para Todos. A primeira declaração feita à comunidade internacional é a de que

não alcançaram a meta de assegurar um número igual de meninos e meninas na educação

fundamental e básica, antes de 2005, encontrando-se ameaçada a meta de alcançar a educação

com igualdade de gênero e educação primária universal para todos que estão fora da escola

até 2015, assim como todas as demais metas da Educação para Todos. O acesso à educação

vincula-se ao imperativo da qualidade, as metas depois de Dacar vêm melhorando, e a

despeito de mais 100 milhões de crianças nas escolas, no esforço dos países, desde 1990,

segue o enorme contingente dos que não concluem os níveis mais elementares, dos

analfabetos e dos grupos marginalizados de direitos, exigindo pensar políticas integradas para

diferentes problemas que atingem concomitantemente as mesmas populações pobres do

mundo. Reafirmando os problemas da maioria das questões reiteradas em todas as

conferências e reuniões internacionais, a Declaração enfatiza três pontos a serem enfrentados

com primazia: gênero e educação de meninas; professores e recursos financeiros. O indicativo

de data da próxima reunião do Grupo aponta para 28 a 30 de novembro 2005 e o país a

República Popular Democrática da China, sob o tema alfabetização.

Como se observa pela Declaração, as questões referentes à

alfabetização/escolarização de jovens e adultos, por não ser tratada como prioridade,

apresenta, nos dados da educação, a tendência de outras reuniões mais gerais, consonantes

com as orientações das agências que continuam priorizando os investimentos na educação de

crianças, como forma preventiva ao analfabetismo, com ênfase na educação do campo.

44..1155 AALLGGUUMMAASS CCOONNQQUUIISSTTAASS DDEE HHÉÉRRCCUULLEESS

Dos muitos eventos, seminários, conferências recolhidos, que em absoluto esgotam a

riqueza desse recorte histórico que me propus fazer, assinalando principalmente os eventos

internacionais protagonizados pela Unesco, pode-se ir verificando a recorrência de

Page 150: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

148

concepções e perspectivas nos documentos sistematizadores, que assumem sentidos e fazem

emergir novas intencionalidades, à mercê dos cenários que mudam. Nesses cenários em

mudança, a educação de jovens e adultos vem lutando — e resistindo — pelo espaço de

existir/não-existir; ser/não-ser, em busca da constituição de um lugar de direito para se fazer a

humanidade de muitos homens e mulheres, que desde muito jovens vivem destituídos do

direito, negado convictamente pelos dirigentes em muitos governos do mundo,

convincentemente justificando a iniqüidade das escolhas políticas. Nos percursos históricos, o

embate, o bom combate, tem demonstrado que o risco, inerente à aventura da vida, consegue

produzir saídas, alternativas para reinventar a educação e a vida.

Page 151: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

149

55.. OO DDIIRREEIITTOO ÀÀ EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO PPAARRAA TTOODDOOSS NNOO BBRRAASSIILL:: CCOONNQQUUIISSTTAASS

HHIISSTTÓÓRRIICCAASS EE PPEERRSSPPEECCTTIIVVAASS NNAA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE JJOOVVEENNSS EE AADDUULLTTOOSS

Cabe acrescentar que, mesmo independentemente desse ideal de cultura, a simples alfabetização em massa não constitui talvez um benefício sem-par. Desacompanhada de outros elementos fundamentais da educação, que a completem, é comparável, em certos casos, a uma arma de fogo posta nas mãos de um cego. (BUARQUE DE HOLANDA, 1995, p. 166).

Para melhor compreender os caminhos como esse direito à educação vem-se fazendo

no país, no sentido de consolidar um espaço de igualdade de condições para a participação de

todos na vida social — princípio da cidadania e da democracia —, encaminho este capítulo

pelo percurso nacional, naturalmente ligado ao percurso internacional, porque

sincronicamente acontecidos e com imbricações concomitantes, mas separados pela escritura,

para efeito de facilidade da argumentação. No plano nacional o percurso encontra-se marcado

não apenas por determinados momentos-símbolo da educação de adultos e das lutas de

resistência pela educação popular, historicizados por autores viventes em muitos casos do

tempo histórico em que se deram, mas também marcado pela história recente dos que,

vivendo e fazendo a EJA, são personagens ativos dessa história, que busco compreender sob a

perspectiva do direito e da democracia. Esse percurso incorpora, posteriormente, as

expressões da EJA reveladas pelos programas e projetos, suas concepções e sentidos

atribuídos à área nos últimos anos, para cumprir o direito e consolidar a perspectiva

democrática.

55..11 EEVVOOCCAANNDDOO OO MMIITTOO DDEE SSÍÍSSIIFFOO:: DDIIRREEIITTOO FFOORRMMAALL EE RREEAALLIIDDAADDEE SSOOCCIIAALL

No Brasil, pode-se observar, acompanhando estudos sobre a educação nas

constituintes brasileiras (FÁVERO, 2001), como só em 1934, pela primeira vez, a

Constituição Federal declara que “a educação é direito de todos e deve ser ministrada pela

família e pelos poderes públicos (art.149)”. Segundo Rocha (2001, p. 111), um dos autores da

coletânea de artigos organizada por Fávero, essa declaração traduz, por parte dos legisladores,

o lado “histórico-crítico inovador (que) estendeu-se também à renovação do campo

educacional”. E segue afirmando que “a concepção doutrinária dos renovadores é a de

considerar que o Estado moderno constitucional exige que se faça a afirmação da educação

como um direito individual à semelhança do direito ao trabalho, à subsistência etc., já

consagrados nas constituições modernas”. (ROCHA, 2001, p. 125).

Page 152: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

150

Bosi (apud FÁVERO, 2001, p. 249), analisando a educação e a cultura nas

constituições brasileiras, afirma que no Império e na República Velha a educação foi tratada

como assunto privado, e que tanto a Constituição de 1967, quanto a Emenda de 1969, durante

o regime autoritário, mais ainda se prestam a confundir público e privado, antes separados

pela Constituição de 1934, no tocante, principalmente, aos recursos públicos. Legitimando o

projeto nacional do golpe militar, tanto a Constituição Federal de 1967, quanto a Emenda de

1969, e todas as intervenções decorrentes na área educacional, asseguram o mínimo à

educação, assim como adequam “o projeto educacional, em todos os níveis e em todas as

modalidades de ensino e da formação profissional, ao novo projeto nacional” (FÁVERO,

2001, p. 253), marcado pela relação educação e desenvolvimento e pela idéia de educação

como investimento. Na Emenda Constitucional de 1969 (Art. 176, § 3º incisos I e II) aparece,

pela primeira vez, a educação como dever do Estado, assegurado, apenas, o ensino primário

obrigatório para todos, dos sete aos 14 anos como direito. Baia Horta (1998, p. 24) assinala,

ainda, que essa mesma Constituição “retoma dispositivos legais presentes na educação

brasileira desde o Império, relacionando a obrigatoriedade escolar com a faixa etária e com o

nível de ensino”. Mais tarde, a Lei nº. 5692/71 consagra esta relação (constante nos Art. 176 e

178 da Constituição), entendendo o ensino primário como o de 1º Grau, já de oito anos, agora,

e de obrigatoriedade dos sete aos 14 anos.

Mas é a “Constituição Federal de 1988 que fecha o círculo com relação ao direito à

educação e à obrigatoriedade escolar na legislação brasileira, recuperando o conceito de

educação como direito público subjetivo, abandonado desde a década de 30” (BAIA HORTA,

1998, p. 25), cuidando, segundo o autor, para que a proteção ao direito estivesse assegurada.

Mas a assunção da educação como direito público subjetivo amplia a dimensão democrática da educação, sobretudo quando toda ela é declarada, exigida e protegida para todo o ensino fundamental e em todo o território nacional. Isto, sem dúvida, pode cooperar com a universalização do direito à educação fundamental e gratuita. O direito público subjetivo auxilia e traz um instrumento jurídico institucional capaz de transformar este direito num caminho real de efetivação de uma democracia educacional. (CURY, BAIA HORTA, FÁVERO, 2001, p. 26).

Pela formulação constitucional, e no entendimento dos autores, a perspectiva do

direito como caminho da efetivação da democracia educacional inaugura não apenas para as

crianças, mas principalmente para jovens e adultos, uma nova história na educação brasileira.

É também Cury, na qualidade de relator do Parecer nº. 11/2000 da Câmara de

Educação Básica do Conselho Nacional de Educação – CNE, que estabelece as Diretrizes

Page 153: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

151

Nacionais Curriculares para a EJA, discorrendo em um dos muitos momentos em que o faz,

em bela defesa do direito à educação para todos e na linha de argumentação que segue, quem

assim se refere à nova concepção de EJA, sua vinculação com a redemocratização dos anos

1980 e a ampliação da noção de direito:

[...] é no processo de redemocratização dos anos 80 que a Constituição dará o passo significativo em direção a uma nova concepção de educação de jovens e de adultos. Foi muito significativa a presença de segmentos sociais identificados com a EJA no sentido de recuperar e ampliar a noção de direito ao ensino fundamental extensivo aos adultos já posta na Constituição de 1934. (BRASIL, 2000, p. 21).

Poder-se-ia questionar em que medida a Constituição Federal de 1988 agregou, com

êxito, os direitos coletivos, ou anexou princípios destes, tratando-os, no entanto, como direitos

individuais. Apenas após a Assembléia Constituinte que promulgou o texto da atual

Constituição brasileira em 5 de outubro de 1988, e depois de muitas lutas e tensões no

plenário, defendendo interesses públicos e privados, e de intensas negociações com instâncias

da sociedade organizada48, a educação volta a assumir o caráter de direito de todos, vista

como direito social (Cap. II, Art. 6º), ao lado da saúde, do trabalho, do lazer, da segurança, da

previdência social, da proteção à maternidade e à infância, da assistência aos desamparados e

tratada como direito individual no Capítulo III, Art. 205, 206, 208. Embora exista a

preocupação de assegurá-la como direito de todos, não se confere a ela o status de direito

coletivo. Constituída como direito público subjetivo (Art. 208, VII,§ 1º), traz a dimensão

individual expressa, no caso de ações contra o poder público que deixe de oferecer o ensino

obrigatório. Este ensino obrigatório, de nível fundamental, é garantido na Constituição

Federal de 1988, como direito de todos, pela seguinte formulação, já incorporando a redação

dada pelo Inciso I da Emenda Constitucional 14 de 1996:

[...] Art.208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

I – ensino fundamental obrigatório e gratuito assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria; [...]

A Emenda Constitucional 14 trouxe, quando realizada, uma polêmica discussão sobre

a retirada da obrigatoriedade da oferta do ensino fundamental gratuito, tal como formulado no

texto constitucional original. À primeira vista, alterar a formulação original de “ensino 48 É possível admitir que esses dados venham mudando, face às intervenções que o governo federal vem fazendo na área, desde 2003, com a assunção de Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência, e a defesa da alfabetização para todos os brasileiros não-alfabetizados, por intermédio do Programa Brasil Alfabetizado.

Page 154: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

152

fundamental obrigatório e gratuito para todos os que a ele não tiveram acesso na idade

própria” para esta anteriormente reproduzida, pode significar que a oferta fica comprometida

como dever do Estado. Mas há a compreensão, também, expressa, inclusive, pelo legislador,

de que a questão em jogo não era essa, mas a de retirar dos sujeitos jovens e adultos a

obrigatoriedade do cumprimento do ensino fundamental, como se faz com crianças, pela

impossibilidade de exigi-la. Assim sendo, não se trataria de desobrigar o Estado da oferta

gratuita do ensino fundamental a quem quer que seja, mas de deixar os sujeitos jovens e

adultos livres para decidir por ela. Ou seja, garante-se o direito para todos, mas se deixa ao

livre arbítrio, no caso de jovens e adultos não escolarizados na chamada “idade própria” —

conceito também discutível quando se trata de aprendizagem para além da escolarização, mas

ao longo da vida, como vem sendo conceituado na educação de jovens e adultos —, o direito

de escolha para decidir pela assunção da oferta.

Essa questão foi bastante questionada pelos educadores e pesquisadores da área no

governo FHC, quando o MEC não oferecia educação de jovens e adultos (entenda-se essa

oferta como a de recursos substantivos e políticas públicas), alegando não haver demanda.

Analisando-se o texto da Emenda 14, assim como o da formulação original na interpretação

que estou assumindo, percebe-se que, por ser dever do Estado a oferta, prescinde-se de

demanda para que os sistemas sejam organizados independentemente de haver ou não

procura. Acrescente-se que, a imperar a lógica governamental, a demanda pouco existiria

(como efetivamente aconteceu), porque historicamente a procura pela educação de jovens e

adultos, especialmente no nível da alfabetização, nunca foi expressiva, pelos estigmas que

carregam os sujeitos quanto ao que significa ser analfabeto, o que muito freqüentemente

impede que eles se assumam em tal condição. O estigma, que vitima duas vezes o analfabeto,

porque além da vergonha ainda o coloca como culpado pelo seu não-saber, traz arraigada a

não-consciência do direito, e quando a chance reaparece, é percebida como prêmio, como

bênção. Para a lógica do poder que rejeita e nega o direito a esses jovens e adultos, é

confortável que assim seja, porque a demanda permanece contida pela opressão do próprio

estigma, sem que haja cobrança dos beneficiários do direito quanto a políticas públicas que

traduzam esse direito em oferta.

Direito à educação, assim entendido, tem existido como fundamento à idéia de

educação como condição necessária, ainda que não suficiente, para se pensar o modelo

democrático de sociedade, no qual o papel do Estado, como garantidor desse direito, tem sido

insubstituível.

Page 155: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

153

Cury, no Parecer CEB nº. 11/2000, assim se expressa:

O direito à educação para todos, aí compreendidos os jovens e adultos, sempre esteve presente em importantes atos internacionais, como declarações, acordos, convênios e convenções.

Veja-se como exemplo, além das declarações assinaladas neste parecer, como a Declaração de Jomtien e a de Hamburgo, a Convenção relativa à luta contra a discriminação no campo do ensino, da UNESCO, de 1960. Essa Convenção foi assinada e assumida pelo Brasil mediante Decreto Legislativo n.º 40 de 1967 do Congresso Nacional e promulgada pela Presidência da República mediante o Decreto n.º 63.223 de 1968. (BRASIL, 2000, p. 20).

O mesmo autor, em nota ao último parágrafo, chama a atenção para o fato de a

Constituição Federal dizer, no art. 5º, § 2º, que os direitos e garantias expressos na

Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou

dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, preceituando

ainda que a celebração de tais atos é competência privativa da Presidência da República e

sujeita a referendo do Congresso Nacional. (BRASIL, 1988, art.84, VIII). O que equivale

dizer que, para que qualquer um dos tratados ser incorporado ao ordenamento jurídico,

ganhando força de lei federal, precisa tomar a forma de decreto-legislativo.

Para que o direito, entretanto, se faça prática, é preciso mais do que sua declaração

legal. Assim é que se chega ao novo século e milênio com dados colhidos pelo Censo de 2000

que revelam a face cruel da desigualdade no tocante não apenas ao campo econômico, mas

também no tocante ao direito social da educação. Vários estudos, como o Mapa do

analfabetismo realizado pelo INEP, revelam com clareza o quanto a sociedade brasileira tem

sido vítima das políticas e conduções de seqüentes governantes imóveis ao problema do

analfabetismo e da interdição histórica de brasileiros e brasileiras aos instrumentos da leitura e

da escrita.

55..11..11 IInnddiiccaaddoorreess ee ddaaddooss eedduuccaacciioonnaaiiss:: aauuxxíílliioo àà ccoonntteexxttuuaalliizzaaççããoo ddoo ddiirreeiittoo àà EEJJAA

No interessante trabalho publicado em 2000 pelo Instituto Nacional de Pesquisas

Educacionais Anísio Teixeira (INEP), denominado Mapa do analfabetismo, alguns dados

ajudam a compreensão de como o direito à educação esteve sempre tão vilipendiado no

Brasil. Um deles é o de que, em 1886, o percentual da população escolarizada no Brasil era de

1,8%, enquanto na Argentina era de 6%. Em 2000, no ranking do Índice de Desenvolvimento

Humano (IDH), enquanto o Brasil ocupava a 73ª posição, em situação inferior a muitos países

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154

da América Latina, a Argentina ocupava o 34º lugar. Chile, Costa Rica, Trinidad e Tobago,

México, Colômbia, todos esses à frente do Brasil, nos estudos do PNUD e UNESCO.

Embora a queda percentual do analfabetismo de maiores de 15 anos tenha caído

fortemente no século XX, passando de 65,3% em 1900 para 13,6% em 2000, esse percentual

ainda corresponde ao número absoluto de 16.295 milhões, nada desprezível, porque são

pessoas, e não percentuais, que nos obrigam a um acurado senso crítico de admitir o quanto

nos envergonham esses dados de apartação. Desde 1953 Anísio Teixeira (1971) assinalava

essa preocupação de que os números absolutos é que importam, não nos devendo vangloriar

com os percentuais em queda. Em 2000, a população analfabeta, em números absolutos,

representava duas vezes e meia o número de 1900.

O Mapa ainda alerta, no entanto, que, se considerarmos o conceito de analfabetismo,

que evolui historicamente, adotando a idéia de que é analfabeto funcional quem não cumpriu

quatro anos de escolaridade, esse número pula para mais de 30 milhões, considerando a

população de 15 anos e mais. Do ponto de vista das diversidades regionais, o Mapa confirma

o Nordeste como o campeão da desigualdade, com quase 8 milhões de analfabetos, quase

50% do total do país. Mas, na distribuição de analfabetos absolutos entre os estados, Bahia,

São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco e Ceará respondem por cerca de metade deles no país.

Nos 100 primeiros municípios em concentração de analfabetos, do ponto de vista do

direito, a situação da população de mais de 60 anos é crítica, porque representa 22,6% de

analfabetos, seguida pelo mesmo índice entre os de 30 a 59 anos (1.828.686), o que

corresponde a cerca de mais 700.000 pessoas em relação ao número de idosos (1.153.770).

Uma das questões também relevante é a que 35% dos analfabetos já freqüentou a

escola, e o Mapa sugere que a dispersão da taxa de analfabetismo entre as faixas de idade,

pode indicar a necessidade de estratégias específicas no tocante a políticas públicas para os

diferentes segmentos. Além disso, a continuidade que não vem sendo assegurada para os

recém-alfabetizados indica o risco do analfabetismo funcional em curto tempo, sem o

correspondente aumento da escolaridade da população.

Muitos são os indicadores disponíveis, sinalizando no sentido da afirmação de

Semeraro (cf. 1999, p. 6) quanto à convivência de um país ainda não realmente moderno e

com expressões sociais e culturais de conotação tipicamente pós-modernas, oriundas da face

metamorfoseada do capitalismo implantado rápida e acriticamente. Se por um lado vive-se a

influência da mais moderna tecnologia da informação e da robótica, por outro, por exemplo,

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155

convive-se com um contingente de cerca de 13% de analfabetos, que participam da cultura

escrita e de todas as suas construções, porque nenhuma organização na sociedade se faz

voltada aos que não sabem ler, sem sequer dominar o código do sistema escrito. Segundo o

IBGE, em dados referentes à coleta feita pelo Censo 2000, considerando-se a distribuição da

população de 10 anos ou mais de idade, observa-se que 31,4% tinha até três anos de estudo,

ou seja, que o terço da população brasileira que conseguiu ir à escola não chega à metade do

ensino fundamental de oito anos. O Piauí e o Maranhão detêm as taxas mais altas (56,6% e

53,2%, respectivamente) e o Distrito Federal (16,1%) a mais baixa. Levando-se em conta a

distribuição dos estudantes por nível de ensino freqüentado, verifica-se que o ensino

fundamental absorve o maior número de alunos. Nesse nível a matrícula atinge 58,2%, sendo

que nas regiões Norte e Nordeste esta proporção é ainda maior, 62,6% e 64,1%,

respectivamente. Entre os jovens de 15 a 17 anos de idade, a taxa de escolarização passou de

55,3% para 78,8%, o que significa dizer que os jovens estão tendo mais acesso à escola e nela

permanecem por mais tempo, embora os dados de conclusão do ensino fundamental ainda

demonstrem um distanciamento forte em relação aos dados de ingresso, e os dados do ensino

médio não revelam que essa escolarização ampliada se faça nesse nível de ensino, como era

de se esperar, pela faixa etária envolvida. Em relação às pessoas de 18 e 19 anos de idade, a

proporção é menor: apenas 50,3% do grupo estava estudando e, entre os jovens de 20 a 24

anos, a proporção é de 26,5%. No grupo de 25 anos ou mais de idade, embora a taxa de

escolarização seja baixa, e tenha triplicado de 1991 para 2000 — passou de 2,2% para 5,9%

—, é insuficiente para revelar algum movimento efetivo de retorno à escola por parte dos que

interromperam os estudos. Essa afirmação é ainda mais contundente quando se explicita que o

indicador inclui desde os estudantes que estão aprendendo a ler e a escrever até os que

estavam na pós-graduação. Pela primeira vez o Censo revela a freqüência escolar pela rede

freqüentada: 79% dos alunos estão matriculados na rede pública de ensino, o que reforça a

necessidade de compreensão da oferta pública de educação como direito. A despeito desses

dados, o número absoluto de sujeitos de 15 anos ou mais (que representam 119,5 milhões de

pessoas do total da população) sem conclusão do ensino fundamental (oito anos de

escolaridade), como etapa constituidora do direito constitucional de todos à educação, é ainda

de 65,9 milhões de brasileiros. Da população economicamente ativa, 10 milhões de pessoas

maiores de 14 anos e integradas à atividade produtiva são analfabetas ou subescolarizadas.

Atualizando esses dados, a PNAD de 2001 aponta que os analfabetos com mais de 15

anos representam 12,4% da população. No Gráfico 1, observa-se a distribuição desigual da

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156

Média de anos de estudo da população de 10 anos ou mais de idade

Cor ou raça Grandes Regiões

Total Branca Preta Parda

Brasil (1) 6,1 7,0 5,0 5,0 Norte (2) 6,1 7,0 5,2 5,7 Nordeste 4,7 5,7 4,2 4,3 Sudeste 6,8 7,4 5,4 5,7 Sul 6,6 6,8 5,5 5,1 C-Oeste 6,3 7,2 5,2 5,6

população analfabeta, que pode estar associada, nas regiões, às condições econômicas, e à

rarefação na ocupação do território, no Norte do país. Haddad (2002) já assinalava que os

analfabetos não são pobres porque são analfabetos, mas são analfabetos porque são pobres.

Gráfico 1

Taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais, segundo as grandes regiões. Brasil, 1999/2001

Taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais de idade. Brasile Grandes Regiões - 1999/2001

13,311,6

26,6

7,8 7,8

10,812,4

10,6

24,3

7,5 7,1

10,2

Brasil Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

1999 2001

%

Fonte: IBGE, PNAD 1999 e 2001.

Como reflexo das desigualdades, negros e pardos com mais de dez anos de idade

também são mais vitimados nesse processo, com menos anos de escolarização do que

brancos. Nas Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste as diferenças se apresentam de forma

mais aguda, como indicada na Tabela 1, a seguir.

Tabela 1 Média de anos de estudo da população de 10 anos ou mais de idade, por cor ou raça, segundo as Grandes Regiões. Brasil, 2001.

Fonte: IBGE - Síntese de Indicadores Sociais, 2002. (1) Exclusive a população rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá. (2) Exclusive a população rural.

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157

A grave situação educacional que os números revelam exige refletir o quanto têm

estado equivocadas as políticas públicas para a EJA, restritas, no mais das vezes, à questão do

analfabetismo, sem articulação com a educação básica como um todo, nem com a formação

para o trabalho, assim como com as especificidades setoriais, traduzidas pelas questões de

saúde, gênero, raça, rurais, geracionais etc. Alterar as políticas públicas no sentido de tornar

indissociável alfabetização e educação básica, como integrantes de um mesmo processo, tem

sido o grande desafio para a EJA no Brasil.

O imenso contingente de jovens que demanda a EJA, resultante de taxas de abandono

de 12% no ensino fundamental regular e de 16,7% no ensino médio, acrescido de distorção

idade-série de 39,1% no ensino fundamental e de 53,3% no ensino médio (BRASIL, 2001),

revela a urgência de tratamento não fragmentado, mas totalizante, sem o que se corre o risco

de manter invisibilizada socialmente essa população, frente ao sistema escolar e, seguramente,

no mundo do trabalho formal, exigente de certificações e comprovações de escolaridade

formal.

Marcadamente quando as políticas públicas voltam-se para o que tem sido chamado de

universalização do atendimento49 e a escola básica deixa de ser elitizada, passando a atender,

preferencialmente, as classes populares, não é o acesso suficiente para dar conta do saber ler e

escrever, porque os fundamentos das práticas pedagógicas permanecem reproduzindo

modelos culturais de classes sociais diversas das dos alunos, produzindo o fracasso escolar e a

chamada “evasão”, o que, ainda hoje, faz sair, mesmo os que chegam ao final, sem dominar a

leitura e a escrita. Este fato tem representado um aumento substantivo de jovens na EJA,

todos com escolaridade descontínua, não-concluintes com êxito do ensino fundamental,

obrigados a abandonar o percurso, ou pelas reiteradas repetências, indicadoras do próprio

“fracasso”, ou pelas exigências de compor renda familiar, insuficiente para a sobrevivência,

face ao desemprego crescente, à informalidade das relações de trabalho, ao decréscimo do

número de postos. Essa presença marcante de jovens na EJA, principalmente nas áreas

metropolitanas, vem desafiando os educadores do ponto de vista das metodologias e das

intervenções pedagógicas, obrigando-os a refletirem sobre os sentidos das juventudes — e de

seus direitos — que permeiam as classes de jovens e adultos.

49 O percentual de cerca de 97% de atendimento significa cerca de três milhões de alunos, na idade e etapa obrigatórias, fora da escola. Os dados do acesso foram anunciados sempre pelo Ministro Paulo Renato Souza, no Governo Fernando Henrique Cardoso, como conquista política, sem análise de que não representavam nem permanência, nem sucesso na escola básica.

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158

Distorções idade-série e idade-conclusão também vêm influenciando a composição de

um contingente jovem na EJA. Na prática, a grande maioria de alunos de EJA provém de

situações típicas dessas chamadas “distorções”.

Gráfico 2 Distorção idade-conclusão no ensino fundamental e médio na rede pública. Brasil, 2004

0%

50%

100%

2002 2001 2000

Ensino FundamentalEnsino Médio

Fonte: MEC/INEP/EDUDATA, 2004.

Com um leve decréscimo nas porcentagens, em três anos (2000, 2001 e 2002), no

ensino fundamental, o número de alunos concluintes com idade superior a 14 anos, em 2000,

equivalia a 49,3%; em 2002 correspondia a 43,5%, o que indica haver ainda um longo

percurso até que os sistemas de ensino possam corrigir o fluxo de matrículas, melhorar o

rendimento dos alunos, adequar o calendário escolar, dentre outros fatores que podem

contribuir no enfrentamento dos desafios que modifiquem o quadro de exclusão precoce de

crianças, adolescentes e jovens das escolas públicas brasileiras.

No ensino médio, há também queda nos índices de distorção, embora em 2000, do

total de alunos concluintes dessa etapa, 55,1% se encontrava fora da idade prevista para o

término, ou seja, tinha mais de 18 anos; em 2002, o percentual cai para 52,4%, significando

que ainda mais da metade de alunos concluintes se encontra na mesma situação.

Gráfico 3 Distorção idade-série no ensino fundamental e médio na rede pública brasileira, 2000, 2001, 2002, 2003

2000 2001 2002 2003

60%

40%

20%

0%

!ª A 4ª Série5ª A 8ª SérieEnsino Médio

Fonte: MEC/INEP/EDUDATA, 2004.

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159

Observando-se o Gráfico 3, verifica-se que os percentuais são proporcionais à

progressão na educação básica: os menores níveis de distorção idade-série estão no primeiro

segmento, crescendo no segundo segmento do ensino fundamental, e ampliando-se, ainda

mais, no ensino médio. Essa observação permite dizer que os fatores de distorção podem estar

direta e indiretamente relacionados à organização e à estrutura dos sistemas de ensino, que

acabam por impedir ou dificultar o fluxo escolar (dentre alguns fatores, destaca-se a

inexistência de vagas, as precárias condições de oferta, a falta de professores, a baixa

qualificação dos profissionais, a inadequação do calendário, além da adoção de um projeto

pedagógico que muitas vezes especifica a importância da diversidade, mas trabalha com uma

concepção de aluno modelar). No ano de 2000, o primeiro segmento do ensino fundamental

apresentava uma taxa de distorção de 38,8%, índice que se eleva para 53% no segundo

segmento e, no ensino médio, alcança 60,1%. No ano de 2003, percebe-se que há uma

sensível melhora desse fluxo, refletida nas taxas de distorção que sofrem queda de 9,5% para

o primeiro segmento do ensino fundamental (29,3%), de 7,2% para o segundo segmento

(45,8%) e de 5,6% para o ensino médio (54,5%).

Indicadores educacionais, como os apresentados, ganham vida quando se circula nos

diferentes espaços da EJA existentes em todo o país, constatando-se que, atrás dos números,

há milhões de pessoas que convivem cotidianamente com condições de oferta e de

permanência precárias; com má qualidade de ensino e com uma modalidade educacional

desvalorizada socialmente. A ausência de oportunidades concretas para vivenciar trajetórias

de sucesso no sistema educacional acaba por culpabilizar a vítima, ou seja, cada sujeito, por

mais uma história de fracasso. Frente aos descaminhos da EJA, torna-se imperativo assumir

uma postura vigilante contra todas as práticas de desumanização.

Esses dados se agravam quando a eles se junta o que revela o quadro dos infratores de

18 a 29 anos, jovens pobres, com escolarização precária, e que privados da liberdade passam

ainda a ser privados de qualquer chance de escolarização, pela insuficiência de atendimento

no sistema penitenciário. Julião (2003, p. 27-28), estudando o sistema penitenciário do Rio de

Janeiro e a oferta pública de ensino que se faz em uma de suas penitenciárias, aponta que os

dados do Censo Penitenciário de 1995 identificavam 129.000 presos no Brasil, país com a

quarta população carcerária do mundo. Desses, 96% são do sexo masculino, jovens, dos quais

53% entre 18 e 30 anos, 42% da população carcerária total composta por negros e mulatos,

75% com escolaridade inferior ao ensino fundamental e 95% em situação de pobreza. Dados

mais atualizados de 2001, do Informações Penitenciárias, do Ministério da Justiça,

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160

demonstram a ampliação desse número para 222.330 presos, dos quais 4,4% são mulheres

(9.574), e 95,6% homens (212.756). No caso do Rio de Janeiro, segundo o jornal O Globo (8

ago. 2004), 53% dos internos integram a faixa etária de 18 a 24 anos, que somados aos 19%

de 25 a 29 anos, totalizam uma população de 72% dos condenados com menos de 30 anos.

Como se observa, além da privação da liberdade, gera-se sob a guarda do Estado uma nova

exclusão: a do direito a acessar a escolarização, por não ser ela ofertada para sujeitos

apenados, na maioria dos estabelecimentos prisionais, como dever do Estado.

55..22 TTEENNSSÕÕEESS CCOONNCCEEIITTUUAAIISS EE SSEENNTTIIDDOO DDOO DDIIRREEIITTOO ÀÀ EEJJAA

Quando se pensa a educação de crianças, admitir o seu não atendimento causa

perplexidade e não resta qualquer dúvida, a ninguém, que este direito tem de ser cumprido.

Nenhum cidadão não-escolarizado optaria, em sã consciência, por escolher por sua educação

primeiro, em detrimento da educação de seus filhos. Pelo contrário, a afirmação corrente entre

esses sujeitos é a de que “não quero que meus filhos sejam iguais a mim, analfabetos”50.

Somente quando conseguem assegurar o que para eles não foi possível, é que se dispõem a

pensar na própria educação, o que freqüentemente implica um longo tempo e adiamentos

constantes, já que a essa garantia sucedem-se e acoplam-se outras, todas relativas a não viver

a situação humilhante de ser pobre, analfabeto, excluído. O estigma do analfabetismo não se

encontra apenas no preconceito dos que sabem ler e escrever (os estabelecidos) em relação

aos que não sabem, mas está fortemente interiorizado nos outsiders, o que Elias e Scotson

(2000), chamam de vínculo duplo:

[...] a estigmatização, como um aspecto da relação entre estabelecidos e outsiders, associa-se, muitas vezes, a um tipo específico de fantasia coletiva criada pelo grupo estabelecido. [...] transforma-se, em sua imaginação, num estigma material — é coisificado. [...] O sinal físico serve de símbolo tangível da pretensa anomia do outro grupo, de seu valor humano inferior, de sua maldade intrínseca; [...] (ELIAS, SCOTSON, 2000, p. 35-36).

50Afirmações desse tipo são ouvidas em inúmeros relatos de sujeitos em turmas de alfabetização, ou em entrevistas feitas com não-alfabetizados. Em um projeto de vídeo que produziu Sujeitos, falas, histórias, em 2000, como resultado da disciplina Prática de Ensino e Estágio Supervisionado em Educação de Jovens e Adultos, na Faculdade de Educação da UERJ, gravada com sujeitos-alunos do Projeto de Extensão Educação, Vida e Trabalho, à época coordenado pela Profª. Edmée Salgado, hoje sob a minha coordenação, por aposentadoria da referida professora, pode-se observar como todos os entrevistados assinalam o compromisso que tiveram com seus filhos para que estes não fossem iguais na condição de não-alfabetizados, nem de pouco escolarizados. As histórias de luta, de estigma, de dor que passaram, fizeram com que optassem por, primeiro, educar seus filhos, para que não vivessem a mesma condição. Falavam com orgulho de filhos que estudaram, vários tinham filhos formados e uma delas, Sônia, cabeleireira, tinha, inclusive, uma filha cursando a habilitação de Educação Artística na Faculdade de Educação da UERJ, uma outra filha professora formada em nível de ensino médio e outros dois menores também na escola, regularmente matriculados. Com altivez falavam da luta, de não se sentirem derrotados, mas vencedores, no momento em que seu tempo também chegara.

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161

Não seria o dedo polegar a materialização do estigma? Não é este o gesto simbólico

quando se quer humilhar alguém por não ser capaz de compreender alguma coisa? Quantas

pessoas se excluem de determinadas situações exatamente pelo temor de terem de ser

submetidas ao constrangimento de “assinar” com o polegar?

Ainda que de oferta pública insuficiente51 e qualidade discutível, nenhuma dúvida

resta, já se assinalou, quanto à necessidade de o Estado garantir o direito à educação para

todas as crianças. Os dados do MEC que afirmam a universalização do ensino fundamental de

7 a 14 anos, da ordem de 97%, não são submetidos a críticas por parte da sociedade, nem

quanto à qualidade, nem quanto às formas de atendimento. Esse atendimento nem sempre é

feito em escolas públicas, já que grande parte das vagas é comprada às escolas privadas, sob o

sistema de bolsas de estudo, o que faz com que os governos prescindam de investimentos

públicos para a construção de novas unidades escolares e para a composição de quadros

profissionais, além de não sujeitar as escolas privadas a fiscalizações condizentes com a

responsabilidade social que deveriam assumir. Além disso — e os dados dos gráficos

anteriores revelam —, acesso não tem sido suficiente para garantir escolarização, porque não

se consegue a permanência, nem o sucesso dos alunos no ensino fundamental, nem no médio.

Exames integrantes do sistema de avaliação do MEC/INEP também revelam o quanto a

qualidade — que como conceito deve ser precisada, em qualquer caso — qualquer que seja o

atributo a ela dispensado, é baixa na escola brasileira, seja pelos anos de escolaridade, seja

pelos resultados alcançados pelos alunos quando submetidos a diversos tipos de avaliação,

segundo o que o MEC, nos anos do governo Fernando Henrique, definiu como básico e

nacional.

Pode-se afirmar que a escola brasileira continua, por assim dizer, produzindo em

grande parte o analfabetismo e a subescolarização, expulsando dela alunos (e até mesmo

professores) que não encontram respostas para o que buscam. Os primeiros, porque não

aprendem (segundo os modelos escolares), têm na escola um dos modelos constitutivos das

formas de exclusão social, reproduzida sob a forma de preconceitos, rótulos, discriminações,

tanto étnicas, quanto sociais e de gênero. Os segundos, porque não conseguem subsistir na

51 Deve-se destacar que o modelo de educação nacional traduzido pelos Parâmetros Curriculares que foram objetos principais da ação política do MEC, na tentativa de garantir, por cima, a qualidade, pela formulação competente de propostas e concepções (segundo um modo de pensar a escola e a educação), não alcançou mudanças concretas na base do sistema — este sim o lugar da prática pedagógica, do fazer e da transformação. Por desprezar os saberes docentes produzidos por professores na prática pedagógica, diante das carências, dos improvisos e da existência real de poucas condições, que acabam definindo graus de autonomia e de criatividade, as propostas, extremamente elitizadas, não conseguiram estabelecer diálogo com os professores que, no máximo, mudam discursos pedagógicos, sem alterar as práticas.

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162

condição profissional de professores e abandonam o emprego. Os que ficam, resistindo a

projetos de detratação da escola pública, conseguem em alguns casos formular projetos

alternativos de educação capazes de fazer frente aos interesses populistas e domesticadores de

muitas administrações eleitas. Uns poucos, de escolas bem aquinhoadas, não precisam de

qualquer esforço para que sejam “bem-sucedidos”, porque os alunos, pertencendo a classes

economicamente favorecidas, deixam ao trabalho pedagógico (e até mesmo apesar dele)

pouco a fazer para que tenham sucesso.

Os dados dos que entram no ensino fundamental ainda revelam que cerca da metade,

apenas, o conclui. Dado historicamente resistente, como se observou, sofreu poucas mudanças

nos últimos anos. Se o ensino fundamental, de oito anos obrigatórios vai mal, necessariamente

o nível que lhe segue, o médio, reforça esta condição de exclusão, em primeiro lugar, pela

escassez de matrículas, o que não o disponibiliza para a maioria e, em segundo lugar, por não

ter clareza em suas finalidades e objetivos. O ensino médio, reformado no governo FHC,

criou a dicotomia escola propedêutica x profissionalização, debatendo-se entre os que

defendem o caráter profissionalizante — para as classes populares, evidentemente — e os que

o querem com viés humanista, para se fazer, na prática, nem uma coisa, nem outra,

desfigurado na identidade ainda não-adequadamente constituída.

Se o direito à educação pela via do acesso não mais se põe como problema quando se

trata de crianças, tanto pela existência de consenso social que considera essa oferta prioritária

quanto pela chamada “universalização” alcançada, novos direitos emergem, no entanto, como

por exemplo, o que resume a idéia de educação pública de “qualidade social”, que tem sido a

tônica dos movimentos organizados em defesa de direitos emergentes no campo da educação.

Mas esta questão encerra a lógica do direito apenas para um conjunto etário — as crianças —,

deixando de problematizar o conjunto de jovens e adultos, cujo direito primeiro de acesso ao

ensino fundamental sequer se fez prática, não existindo consenso mesmo entre os que dela

precisam quanto a se fazer prioridade, assim como entre dirigentes e formuladores de políticas

públicas.

Historicamente, nem sempre o direito à educação esteve resguardado. Apesar da

formulação do texto constitucional, no entanto, não se fez prática. A forma como as políticas

públicas conceituam a EJA, e como vêm desenvolvendo ações como oferta pública merece

atenção, especialmente quando vinculam ações de educação ao utilitarismo do voto, ou

defendem este último, sem precisar da primeira. Embora pareça ultrapassada essa

problemática, no “país” que não chega a ser moderno, a utilidade do voto ainda consegue

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sobrepor-se à da oferta da alfabetização. Assim é que Cury (2001, p. 194), estudando a

cidadania republicana e a educação e relacionando a questão ao voto do analfabeto, mostra

como este último encontrava vozes que lhe eram favoráveis, mas não ao ensino público

obrigatório:

O serviço à pátria, independendo do domínio da escrita, é um serviço voltado para o bem público e, portanto, não se deve diferenciar o cidadão pelo critério de escolarização. O voto deveria ser extensivo a todos. Eis, em síntese, o pensamento de Moniz Freire.52

A história da educação brasileira e, nela, da EJA, tem revezes já amplamente

estudados por alguns pesquisadores (PAIVA, 1973, BEISIEGEL, 1974, principalmente).

Parte dessa história se imbrica com a da educação popular, de que Brandão (2002) tem sido

importante guardião, mas que tem em Osmar Fávero, Aída Bezerra, Nazira Vargas, José

Carlos Barreto e Vera Barreto, dentre outros, protagonistas ativos até os dias atuais,

sintonizados com a história e sua origem, mas também com o tempo em que vivem

contemporaneamente a EJA. História que leva Paulo Freire ao desenvolvimento da Pedagogia

do oprimido, não sem antes passar por uma breve incursão na política pública, no mesmo

governo em que é deposto João Goulart. As ações que passaram com ênfase à história, em sua

maioria, não nasceram do poder público, mas da luta e da resistência social aos projetos de

dominação que, desde a República, conformaram — e ainda conformam — a nação brasileira.

Estudantes e intelectuais, junto a grupos populares, desenvolveram novas perspectivas de

cultura e educação popular. No início dos anos 1960, o Movimento de Cultura Popular,

nascido em Recife; os Centros de Cultura Popular da União Nacional dos Estudantes; o

Movimento de Educação de Base (MEB), ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

(CNBB), representando a Igreja Católica; iniciativas como a da Prefeitura de Natal com a

Campanha "De Pé no Chão Também se Aprende a Ler", tocada pelo educador Moacyr de

Góes; e a Campanha de Educação Popular da Paraíba (CEPLAR), são alguns exemplos do

que foi o fértil período da educação para adultos, pensada na sociedade, enraizada na cultura

popular.

O golpe de 1964 interrompeu a efetivação do Plano Nacional de Alfabetização,

coordenado por Paulo Freire. Programas, movimentos e campanhas foram extintos ou

fechados por constituírem, segundo os novos donos do poder, ameaças à ordem. A educação

popular é minada pela desconfiança e pelas práticas da repressão, que prendem e isolam, até o

52 Moniz Freire, constituinte pelo ES, assim se expressa na sessão de 12 de janeiro de 1891. (ANNAES, I, p. 233).

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164

exílio, muitas lideranças. Mas o analfabetismo resiste e expõe as feridas abertas de um país

cujo projeto de desenvolvimento implica a escolarização das massas. A expansão da Cruzada

ABC, entre 1965 e 1967 e, depois de 1970, o Movimento Brasileiro de Alfabetização

(MOBRAL) passam a ser as primeiras respostas do regime.

A educação de jovens e adultos, nas décadas recentes, teve seu campo conceitual tanto

vinculado aos sujeitos a quem se destinava — os adultos — e, por isso mesmo denominava-se

educação de adultos, quanto ao tipo de intervenção pedagógica a ser feita, restrito, no mais

das vezes, à alfabetização e à pós-alfabetização. Também se tem caracterizado por ser,

quando se trata de atendimento de massa, de cunho governamental, mantida por instâncias

oficiais e marcadamente com concepção compensatória, para pessoas consideradas

“culpadas” por não saberem ler e escrever. Quando vivenciada por pequenos grupos de

sujeitos populares adultos, em iniciativas da sociedade, com natureza epistemológica e

ideológica diferente dos projetos/ofertas governamentais, resumidas como experiências,

intencionalmente fortalecendo as populações, tratando seus integrantes como sujeitos

portadores de cultura, saberes e direitos, aos quais se confere poder pelo domínio dos

conhecimentos da leitura e da escrita, tem sido identificada com o que se conhece por

educação popular.

Beisiegel (1974, p. 56-57) em amplo estudo sobre a educação de adultos, discutindo as

origens da educação popular no Brasil, afirma que remonta ao Império o surgimento, pelo

ideário liberal, sob influência do pensamento europeu, da educação para todos nas

constituições brasileiras. Mas afirma, também, que as principais características da evolução da

educação popular, entre nós, localizam-se: na atuação do poder público, que se antecipa às

demandas das comunidades; na idéia de educação que, como dimensão necessária da utopia,

conformaria o instrumento de preparação dos homens para a construção da nova sociedade e,

portanto, do futuro (e que por isso mesmo traria a idéia de obrigatoriedade, devendo ser

imposta a todos). Ressalta que essas características só se esclarecem quando analisadas no

contexto das orientações globais da atuação do Estado, do mesmo modo que a compreensão

dessas origens exige conhecer os caminhos das vicissitudes da educação para o povo, o que

passa pela análise das ideologias em que se exprimem as orientações do Estado. Em

continuidade, Beisiegel (1974, p. 59) afirma que as origens da história da educação de adultos

no Brasil se iniciam nos anos 1940, embora as preocupações — e algumas práticas jesuíticas,

por exemplo — venham de longa data, atendendo ao que se observa como característica da

educação comum para todos os cidadãos, e que se apresenta também como tarefa do Estado,

Page 167: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

165

no âmbito das novas orientações de atuação desse Estado, conformadas pelas ideologias que

prevalecem no país nesse período. Assim, localiza alguns marcos significativos da inclusão da

educação de todos os adolescentes e adultos analfabetos entre os objetivos da atuação do

Estado no Brasil:

[...] a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, em 1930; a fixação da idéia de um plano nacional de educação, na Constituição de 1934; a criação do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, no Ministério da Educação e Saúde, em 1938; os resultados do Recenseamento Geral do Brasil, de 1940; a instituição do Fundo Nacional de Ensino Primário, em 1942, e sua regulamentação, em 1945; e, acima de tudo, a criação de um Serviço de Educação de Adultos, no Ministério da Educação e Saúde, em 1947, e a aprovação, nesse mesmo ano, de um plano nacional de educação supletiva para adolescentes e adultos analfabetos. (BEISIEGEL, 1974, p. 68).

Beisiegel (1974, p. 68) chama a atenção, porém, que as profundas mudanças no campo

da educação comum, no Brasil, após 1930, e a inauguração de serviços oficiais para

atendimento às demandas educacionais de adolescentes e adultos analfabetos “se explicam,

por isso mesmo, basicamente, a partir da emergência das denominadas ‘massas populares

urbanas’ como um dos elementos que passam a informar a atuação do Estado brasileiro nesse

período”.

Essa educação de adultos vai, lentamente, pelas práticas, absorvendo para o campo

conceitual os novos sujeitos que a ela chegam, produzidos tanto pela ausência de atendimento

escolar, quanto pelo fracasso no interior das escolas, não mais adultos — que respondem pela

imagem estereotipada que se tem deles, idosos, velhinhos de cabelos brancos —, mas agora

jovens, apartados e expulsos para um sistema53 que inicialmente também não os reconhece

como sujeitos, mas que com o tempo e a pressão da demanda, transforma a concepção

original em educação de jovens e adultos.

55..33 OO PPOODDEERR DDAA SSOOCCIIEEDDAADDEE NNAA CCOONNSSTTIITTUUIIÇÇÃÃOO DDOO DDIIRREEIITTOO ÀÀ EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE JJOOVVEENNSS EE

AADDUULLTTOOSS

Estudos importantes, nos últimos anos (CAMPOS, 1982; SPOSITO, 1993; CAMPOS,

1989) vêm mostrando como os serviços públicos de educação sofrem, para sua oferta, a ação

direta dos demandantes, em busca de direitos. Esses estudos, portanto, explicam as demandas

53 Uso o termo sistema sem nenhuma convicção, porque nem sempre se pode reconhecer a existência de sistema, como organizador das ofertas de educação de adultos.

Page 168: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

166

populares e as formas de negociação estabelecidas com os poderes públicos, em defesa dos

serviços que lhes sabem devidos.

Para tratar do poder da sociedade na constituição do direito à educação de jovens e

adultos, nesse item, trabalharei a perspectiva da educação popular, como uma das fontes

desse poder, por um lado, e da luta dos trabalhadores pela educação, por outro.

Dos anos 1950 a 1970 muitas formas de participação social organizada ficaram

conhecidas como educação popular. Segundo Haddad (1994, p. 101):

A EDA54, de fato, acabou por se constituir numa das principais ações educativas dos movimentos organizados da sociedade civil, durante o regime militar. [...] os movimentos educativos de educação popular, [...] se organizaram sob dois influxos: crítica ao Estado autoritário e crítica ao modelo excludente e diretivo da educação e dos sistemas escolares de uma maneira geral.

Beisiegel (1974), apontado anteriormente, discute na história desde o Império, como a

educação de jovens e adultos se faz a partir de uma idéia-embrião de educação popular, que

nasce não das demandas populares, mas da atuação do Estado, que também a ela associa a

necessidade de pensar a sociedade e o futuro.

Percebo em Brandão (1984, p. 8-9) uma compreensão diversa da que Beisiegel aponta,

quando associa ao Estado, como garantidor histórico da educação para todos, o papel

fundador da educação popular.

Uma das mais importantes características da educação popular é o fato de que ela emerge historicamente, onde quer que surja no continente, como um movimento de educação ou, se quisermos, como a educação em estado de movimento. Como um momento em que, política, teórica e metodologicamente a educação quer ser uma transgressão de si mesma. Nos primeiros anos da década de 60 ela não apareceu como um desdobramento simples de teorias e métodos de uma educação de adultos antecedente, mas como a experiência da possibilidade de sua subversão. Como uma sucessão de movimentos de diferentes tipos de educadores em favor de tornar a educação algo absolutamente diverso daquilo que ela sempre fora. Ao invés de pensá-la como um tipo de atividade profissional competente, destinada a um tipo de ensino compensatório a sujeitos pobres e defasados, ela pretendeu ser uma espécie de re-totalização de todo o sentido da educação, desde um ponto de vista não apenas estrategicamente popular, mas historicamente situado como um serviço pedagógico a projetos políticos das classes populares. (BRANDÃO, 1984, p. 8-9).

54 EDA é a sigla designativa de educação de adultos, como até então era conhecida, antes de absorver oficialmente o segmento jovem que passa a integrar, juvenilizando, essa modalidade educativa. (Nota da autora).

Page 169: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

167

Coraggio (1994, p. 92-93), discutindo os sentidos da educação para a participação e

para a democratização, lembra que o caráter do Estado capitalista, em tempos neoliberais e de

globalização, reduzindo sua função reguladora sobre a economia e a vigilância da eqüidade

social, tem determinado a transferência de funções do Estado nacional para o reino das ONGs,

alterando as correlações de poder em relação à sociedade, inclusive mesmo fazendo,

paradoxalmente, o redesenho “em nome de bandeiras forjadas pelos próprios intelectuais do

campo popular, como a devolução do poder à sociedade, a descentralização do Estado,

autogestão, autogoverno local, participação, controle direto da sociedade civil sobre suas

condições de vida, criatividade popular etc.”

Na esteira dos poderes locais supostamente assumidos pela sociedade, Coraggio

(1994, p. 94) indaga se a descentralização do Estado pelo poder global gera, efetivamente,

poderes populares, ou se reforça as práticas populistas, de caciquismo, dos “grandes do

lugar”, questionando, por fim, qual a definição de democracia que essa participação gesta/ou é

por ela gestada. De posse dessas reflexões, Coraggio (1994, p. 98-99) busca verificar os

desafios enfrentados pela educação popular, em contribuição aos processos locais de

democratização. Um deles, localizado na pretensão da educação popular em ser

“‘alternativa’, negando a possibilidade de gerar propostas e de atuar diretamente sobre o

Estado e suas políticas”. Outro desafio a enfrentar, está posto na necessidade de reelaboração

do sentido da educação popular, que “requer uma profunda autocrítica, pela tensão não

resolvida entre a proposta teórico-ideológica e a prática real. A EP assumiria o desafio da

reestruturação de suas bases teóricas, revendo, conseqüentemente, a eficácia de seus

procedimentos, visando a um projeto de desenvolvimento popular”. (CORAGGIO, 1994, p.

99).

Brandão (1984, p. 9) também atualiza e alerta para a mudança de sentido que o

conceito e a prática assumem:

[...] nada há que impeça que ela passe a ser, de um momento da história em diante, um trabalho pedagógico diferencialmente posto a serviço de sujeitos e classes populares que, continuamos acreditando, devem participar da condução daquilo que faz a história de um povo tomar este ou aquele rumo. Por isto mesmo, pelo menos em suas formas mais autônomas ao longo de sua múltipla experiência, a educação popular evoluiu de ser vivida como um movimento em si mesmo, dirigido a camponeses, operários e outras categorias de sujeitos populares, para vir a ser um trabalho do educador que, sem projetos preestabelecidos, submete a sua prática às iniciativas de ação política dos movimentos populares.

Page 170: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

168

Osório (1994, p. 112), discutindo a força, a capacidade e as “novas formas de fazer

política” desses movimentos sociais e populares, constituídos como sujeitos coletivos, destaca

as transformações profundas que eles operam na lógica social,

[...] recolocando a questão da relação entre social e político, público e privado, cotidiano e institucional. Desta forma, diminui a visão do político como um espaço homogêneo, emergindo a pluralidade do social, cuja expressividade não se esgota na “política” convencional. Ela se manifesta, sim, na reivindicação das demandas, na socialização de valores e formas de vida e nas diversas formas de articulação de interesses locais e nacionais.

Coraggio (1994, p. 103), alertando para a eficácia que a educação popular pode

assumir, diante dos efeitos vertiginosos da globalização, destaca a necessidade de

conhecimento sobre os processos de gestão popular, em nível local, nacional e supraregional,

incluindo pesquisas que não idealizem as práticas populares, para que estejam abertas a um

novo conhecimento teórico. Prossegue:

Diante da proposta dos organismos multilaterais de “focalizar os recursos nos setores de extrema pobreza”, e ainda que a EP tenha sido pensada basicamente para os setores mais pobres, deve-se sugerir uma política que permita ao campo popular adquirir uma solidariedade orgânica, o que implica ver o popular como campo social, culturalmente heterogêneo. (CORAGGIO, 1994, p. 103).

Nos últimos 15 anos, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – MST

defendendo uma educação do campo tem representado, junto ao movimento dos educadores

indígenas, em defesa de uma escola indígena, os mais significativos e amplos projetos de

educação popular, (re)significados, pautados na visão de uma escola democrática, integrada

ao sistema educacional, mas cuja singularidade/diferença seja respeitada na constituição da

oferta do direito à educação. Não sem tensões, e com a mão forte do Estado buscando brechas

para a regulação, os movimentos avançam, no que Brandão (1984, p. 176) reconhece como “o

limite da educação popular na sociedade de classes”.

No tocante à educação de jovens e adultos e a formação profissional, pode-se iniciar

afirmando que são tênues as iniciativas do Estado para resolver o problema da exclusão dos

trabalhadores da escola. Embora a legislação admita a possibilidade de horários de trabalho

diferenciados, além de metodologias e currículo, concretamente não há ações formais de

reinserção dos trabalhadores não escolarizados para seguirem o fluxo (des)contínuo pelo qual

passaram em algum momento pela escola.

As denúncias e lutas dos trabalhadores mostram um longo caminho a ser percorrido em busca da obtenção de seus direitos à educação; um caminho

Page 171: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

169

marcado por promessas, pelo labirinto burocrático dos órgãos responsáveis pela construção da escola, por obstáculos erguidos pela legislação, pelas pressões políticas para conseguir, às vezes depois de anos, a construção de uma escola no bairro, quando há vitória nesse extenuante embate. (CAMPOS, 1989, p. 50).

Educação profissional estrita sempre foi demanda dos setores produtivos. Esta mesma

idéia é freqüentemente evocada em momentos de formação de professores, pelo que entendem

devesse ser a escola para jovens e adultos trabalhadores. A lógica que esta alternativa

encobre, e surpreendentemente acompanha toda a trajetória da sociedade brasileira, é a de que

a educação profissional só é reivindicada para as camadas pobres, porque às camadas médias

ou ricas, destinar-se-á o caminho propedêutico, capaz de possibilitar o seguimento e o acesso

à universidade. Mesmo quando se admite o ensino profissionalizante de nível médio, as

ocupações pensadas quase sempre revelam lugares subalternizados do mundo do trabalho,

jamais oferecendo-se a possibilidade de formação de sujeitos independentes, autônomos,

livres no domínio de suas ocupações profissionais.

Oscilando entre a idéia de qualificação, de empregabilidade (pela suposição de que a

falta de conhecimento é que gera o desemprego), e de competências nos últimos tempos, a

educação profissional para jovens e adultos, no amplo espectro em que pode ser assumida,

vagueia entre as propostas oficiais e as nem sempre ideologicamente claras propostas

sindicais, negociadas pelas centrais de trabalhadores, em convênios tripartites e/ou como

respostas aos fundos de financiamento público, com recursos dos próprios trabalhadores.

Paiva (1994, p. 34) assim se expressa:

A América Latina confronta-se hoje com a baixa qualidade de sua força de trabalho e dos membros de suas sociedades, em geral, num mundo em que se agudizou a consciência de que a produtividade de cada um depende não apenas do seu nível de conhecimentos, mas dos conhecimentos daqueles que o cercam.

A tarefa da sociedade na construção de uma educação de jovens e adultos de caráter

popular, e do interesse dos trabalhadores, entende que o ponto crucial reside na capacidade de

manejo e controle de fundos públicos, na ampliação da esfera pública e na disposição do

embate, da disputa, do conflito, implicando mais sujeitos coletivos com densidade analítica e

organizativo-política para dar densidade ao embate. (FRIGOTTO, 1995, p. 204).

Page 172: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

170

55..44 EEJJAA EEMM TTEEMMPPOOSS AAUUTTOORRIITTÁÁRRIIOOSS —— OONNDDEE OO DDIIRREEIITTOO??

Seguindo a linha argumentativa de Beisiegel (1974), de que foi o Estado brasileiro o

indutor da idéia de educação para todos, segundo orientações do pensamento ideológico de

cada período, passo a discutir como a educação de jovens e adultos se organiza durante o

tempo da ditadura militar. A inspiração ideológica do momento, então operada pela visão de

desenvolvimento nacional (já iniciada nos anos JK) em tensão com as forças do capitalismo

internacional, havia levado ao golpe militar.

Santos (2000, p. 94-95) aponta como o surgimento do capital internacional no campo

industrial criara uma nova realidade para o pensamento ideológico da região latino-americana,

gerando um realinhamento de forças que produziu muitas lutas na década de 1950, incluindo a

revolução boliviana de 1952, equatoriana de 1954, venezuelana de 1958, culminando com a

cubana de 1958-1959, contra as velhas oligarquias primário-exportadoras e os regimes

autoritários que as sustentavam. O capital internacional reage fortemente a todas elas, assim

como o governo norte-americano. O pensamento de que havia necessidade de intervir

politicamente na região tem uma de suas bases na Universidade de Stanford, na Califórnia,

consolidando a visão de que a implantação de um processo de desenvolvimento exigia uma

elite militar, empresarial e até mesmo sindical com um regime político forte, esclarecido e

modernizador. O golpe de 1964 foi, no Brasil, o momento fundador desse modelo, segundo

Santos (2000, p. 95), contendo a burguesia nacional e seu projeto, que aspirava ser um poder

internacional, pela riqueza do território, tanto em extensão, quanto em recursos naturais. Em

substituição, a modernização fundava-se na aliança e integração dessa burguesia ao capital

multinacional, conformando um tipo de industrialização dependente da lógica de expansão do

centro hegemônico mundial. Como sócios menores do capital internacional, as burguesias

latino-americanas abandonam suas perspectivas de independência nacional e de

desenvolvimento tecnológico próprio.

O conceito de capital humano, a que foi alçada a educação no final da década de 1950,

e explicativo do desenvolvimento econômico sem precedentes no Japão e na Alemanha do

pós-guerra, desenvolve-se pelos estudos de Schultz nos Estados Unidos da América com a

“descoberta” do fator H (humano) para além da fórmula geral neoclássica de Cobb Douglas

sobre as variações do desenvolvimento e do subdesenvolvimento entre os países. No Brasil,

no contexto do milagre econômico, a teoria é rapidamente incorporada, alimentando a idéia de

Page 173: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

171

educação como investimento, e não apenas consumo, subjacente também à de mobilidade

social. Nos países latino-americanos e de Terceiro Mundo, a disseminação é veloz, induzida

por organismos internacionais como Banco Mundial (BID), Banco Interamericano de

Desenvolvimento (BIRD), Organização Internacional do Trabalho (OIT), Organização das

Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura (UNESCO), Fundo Monetário

Internacional (FMI), United States Agency for International Development (USAID), Fundo

das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e regionais como Comissão Econômica para a

América Latina (CEPAL), Centro Interamericano de Investigação e Documentação sobre

Formação Profissional (CINTERFOR), representantes dos interesses do capitalismo integrado

ao capital internacional.

Por esta via, segundo Frigotto (1995, p. 41-42), Mário Henrique Simonsen defendeu o

desenvolvimento e a eliminação das desigualdades, oferecendo a alternativa da equalização

pelo acesso à escola e pelo alto investimento em educação. Nessa esteira, foi o concebedor do

MOBRAL, como resposta às necessidades do desenvolvimento durante a ditadura militar.

Frigotto (1995, p. 43) ainda chama a atenção para o fato de que, no plano da política, e de

forma autocrática, o economicismo serviu às forças promotoras do golpe, sobretudo no

período de 1968 a 1975, ajustando a educação à opção por um modelo de capitalismo

associado e subordinado ao grande capital representados, principalmente, na Reforma

Universitária de 1968 e, sobretudo, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de

1971, que orientava o sistema de ensino para a instrução e a formação de mão-de-obra

qualificada, adotando, como concepção no nível do 2º Grau, o ensino profissionalizante de

nível técnico.

No tocante à educação de jovens e adultos, durante a ditadura militar houve um tempo

de investimentos e de prioridades, animadas justamente pelo ideário economicista da teoria do

capital humano. Um dos projetos em que o Estado brasileiro foi protagônico, está

representado pelo MOBRAL, instância de fôlego, criada em 1967, para servir aos propósitos

desenvolvimentistas. Os recursos, advindos da indicação de até 2% do imposto de renda

devido por pessoas jurídicas, nos primeiros tempos foram ainda somados a recursos

percentuais oriundos da loteria esportiva, e junto com a estrutura de fundação, davam à

entidade uma autonomia e agilidade diversas das encontradas nas instâncias da administração

direta do executivo federal. Outro projeto protagônico para a educação de jovens e adultos,

nesse tempo, foi o da organização do Ensino Supletivo, no interior dos sistemas públicos.

Ambos os projetos integraram os planos nacionais de desenvolvimento econômico e social

Page 174: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

172

que planejaram, para médio e longo prazo, as metas educacionais, sob o controle político do

Estado, com o instrumento da tecnocracia, das racionalidades técnica e científica, evitando

erros e desperdícios na acumulação do capital e expansão do capitalismo (DE VARGAS,

1984, p. 17).

Se, por um lado, a organização do MOBRAL representava um reconhecimento da

necessidade de saber ler e escrever, ainda que com finalidade não partilhada pela grande parte

dos educadores que se colocaram contra o golpe, por outro se conferia autonomia

administrativa e financeira, com definição legal de recursos em volume e tamanho para

“resolver”, em dez anos, uma questão nacional: o analfabetismo de largo contingente da

população. Do ponto de vista de política pública, sem dúvida o MOBRAL representou, nos 15

anos de atuação55, uma realidade, ainda que não possa afirmar isto do ponto de vista da

constituição de um direito. O que estava em jogo, no marco do desenvolvimentismo, era a

necessidade de investir na força produtiva dos trabalhadores, apostando que a alfabetização —

e depois a necessidade de pós-alfabetização — contribuiriam para tirar o Brasil do atraso, e

conformar o projeto de país grande, do “pra frente Brasil” que animava a ideologia da época.

Não se criava toda uma estrutura de atendimento que chegava, com certeza, a todos os

municípios brasileiros para conferir o direito de todos à educação. Chegava-se porque o

analfabetismo era um mal, a chaga a ser curada, responsável pelo atraso do processo

produtivo e industrial, sem o que o país não ingressaria no “clube” dos desenvolvidos.

Essa perspectiva era tão forte, que Arlindo Lopes Corrêa, presidente do MOBRAL,

apresentando o ambiente da época de 1965 a 1967, no artigo “MOBRAL — Pedagogia dos

homens livres”, resgata a história de sua gênese, quando sob a batuta de Mário Henrique

Simonsen, é levada ao então Ministro Roberto Campos, uma proposta de criação de um Setor

de Educação no que é hoje o atual Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA,

encarregado de desencadear o processo de planejamento educacional no Brasil. A

argumentação de fazê-lo ali se pauta nas análises econômicas do “desenvolvimento material

da sociedade brasileira”, sob metodologia também herdada da área econômica, que ainda

apontava os déficits de escolarização, a ociosidade dos prédios escolares, equipamentos e

professores e a desatualização de estatísticas — todos indispensáveis para compor

inicialmente um diagnóstico e, a seguir, um Plano Decenal de Educação, como definira o

Ministro. De orientação claramente economicista, a política educacional traçava-se nesse

55 Apesar de ter sido criado em 1967, sua atuação só se inicia em 1970, indo até 1985, setembro, quando então é sucedido pela Fundação EDUCAR, reorientando, sob a égide da Nova República, sua atuação.

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173

ninho, e Corrêa assim se refere a momentos precedentes à criação do MOBRAL para

contextualizar o vigor com que nasce e fundamentar sua tese que o compara à criação da vida

na Terra:

O trabalho de planejamento foi intenso e não se restringiu às exaustivas tarefas de coletar e sistematizar informações. Estas estavam dispersas e eram falhas, eminentemente qualitativas, além de incidirem predominantemente sobre aspectos psicológicos, metodológicos e históricos da educação brasileira, ignorando vários de seus mais importantes fatores. A visão econômica procurava atacar a ineficiência e ineficácia do setor e, como estes pontos eram pouco estudados, foi necessário interessar grupos acadêmicos e de consultoria capazes de ampliar o conhecimento nesses campos. Grupos de bom nível técnico eram raros nessa fase de pioneirismo.

Ao mesmo tempo era preciso conquistar os meios intelectuais e a opinião pública para a Economia da Educação. (CORRÊA, 1979, p. 19).

O fato é que, tanto o modelo excludente escolhido para desenvolver o projeto

nacional, assim como as opções teórico-metodológicas feitas, contribuíram, porque

desconectados de outras questões intervenientes na vida civil, social e política dos sujeitos,

para que o esforço não superasse os índices tal como previsto, nem resultasse em mudanças

efetivas no quadro da escolarização de brasileiros.

Muitos foram os programas criados para essas finalidades, cabendo-me questionar o

fato de, mesmo tendo a Emenda Constitucional de 1969 resgatado o direito de todos à

educação, a escolha político-ideológica para a educação de adultos ser conformadora de uma

lógica de adaptação dos sujeitos a um sistema social de classes, em que o capitalismo é senhor

soberanamente. Cito os principais programas desenvolvidos: Programa de Alfabetização

Funcional (PAF), baseado em palavras geradoras supostamente do contexto de vida dos

sujeitos (emblematicamente, tijolo, vida, trabalho), com material didático próprio e único

para todo o território nacional, usando o método silábico; em 1972, a demanda pela

continuidade organiza o Programa de Educação Integrada (PEI), que dá continuidade ao

processo da alfabetização, seguindo as recomendações da UNESCO no tocante à necessidade

da pós-alfabetização, em nível de 4ª série do 1º Grau, também com material didático próprio;

o Programa de Autodidatismo, a partir de volumes temáticos, sob a concepção de estudo

independente, semipresencial, certificado mediante a realização de provas; o Programa de

Saúde (PES); o Programa Cultural, com biblioteca e espaço cultural volantes, a Mobralteca,

com projetos de resgate dos saberes populares na área da alimentação e de medicina caseira,

de manifestações culturais etc.; o Programa de Ação Comunitária; o Programa de

Profissionalização entre muitos outros, valendo-se de metodologias presenciais e a distância

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174

— com o uso do rádio, da televisão e de materiais impressos. Além destes, vários outros

programas foram concebidos visando ao alfabetizador, ao educador, a agentes comunitários

de saúde, de ação cultural etc.

Apesar das inúmeras concepções e esforços voltados a dar sustentação aos limites da

ação alfabetizadora que se fazia com maioria de leigos, oferecendo outras propostas

educativas aos mesmos sujeitos da desigualdade que gerava a pobreza e a exclusão social, os

números e as metas fixadas não se portaram segundo o que a tecnocracia imaginava poder

controlar com seus planejamentos tecnicamente bem-feitos. Embora se deva reconhecer

alguma redução nos percentuais do analfabetismo, o esforço realizado e os recursos

empenhados não revelavam a preocupação com o desperdício (o custo-benefício) posta como

fator central nos planos. A complexidade da realidade brasileira daquele tempo exige, ainda

hoje, maiores estudos sobre os significados de todos os projetos e ações nas comunidades,

para além do que as metas revelam, e para além das conclusões a que chegaram os poucos

estudiosos do MOBRAL. A dimensão da instituição, sua abrangência e volume de recursos

investidos, o quadro técnico-profissional formulador de concepções, projetos e ações, durante

15 anos, a evolução dos modos de pensar e atuar na educação de jovens e adultos, a coerência

entre determinadas posições, além das pesquisas e avaliações que a instituição produziu

internamente constituem fontes inexploradas, intocadas por pesquisadores que queiram,

efetivamente, compreender os processos contraditórios e os conhecimentos que em seu

interior foram gerados, tanto em nível de órgão central, quanto nos níveis descentralizados.

A Fundação EDUCAR, sucedânea do MOBRAL, presente desde 1985 no cenário da

EJA, incorporando os ventos da “Nova República”, o primeiro governo civil pós-ditadura

militar, com modos de operar reformulados, já apresentava reconceitualização, especialmente

traduzido na forma como o Estado brasileiro passa a atribuir a si a responsabilidade com a

educação de adultos. Em regime de colaboração, governo federal, estados e municípios são

parceiros no planejamento do atendimento, na formação de educadores, repartindo a

responsabilidade com recursos, tanto financeiros, quanto materiais e humanos. Iniciou-se

assim um processo de invocar à responsabilidade os sistemas educacionais, para que

assumissem a inserção orgânica da EJA nas redes públicas, abandonando o modelo de para-

sistema adotado todo o tempo pelo MOBRAL, o que significou sua subordinação à Secretaria

de Ensino de 1º e 2º Graus do MEC.

O documento Fundação Educar diretrizes político-pedagógicas, de janeiro de 1986,

revela a concepção já presente no pensamento pedagógico, que se consolida no texto

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175

elaborado por ampla comissão de 12 pessoas, sendo três da Fundação EDUCAR; três de

representantes da sociedade organizada (uma da Associação de Servidores – ASMOB e duas

de organizações não-governamentais, CEDI56 e IDAC); três de universidades (duas federais

— UFSCar e UnB, e uma estadual paulista - USP); três do MEC (duas da Secretaria de

Ensino de 1º e 2º Graus - SEPS e uma do INEP); além de dois suplentes (SENAR e

Universidade). Observe-se que, entre as universidades integrantes da comissão, aparecem

duas paulistas, enquanto o Rio de Janeiro, sede do MOBRAL por longos anos, não teve

nenhuma representação, embora universidades no estado tivessem envolvimento direto com o

setor de avaliação e pesquisa, tanto pela produção sobre a área, realizada em classes mantidas

pelo MOBRAL, quanto pela atuação de profissionais que tinham duplo vínculo institucional.

Pode-se encontrar o seguinte trecho no referido documento, no item que trata de

Educação e democracia: “O Programa Educação para Todos prevê a universalização do

ensino básico, que a Constituição declara obrigatório e gratuito, como fundamento do regime

democrático que o Governo da Nova República se propõe a construir e consolidar.”

(FUNDAÇÃO EDUCAR, 1986, s/n).

E adiante, segue afirmando:

Entende-se perfeitamente, assim, que os direitos educacionais da cidadania, há muito incorporados no discurso oficial sob a forma de deveres educacionais do Estado, ainda não encontrem correspondência efetiva no plano das realidades sociais — como o atestam os indicadores de não atendimento escolar, de evasão, de repetência, de analfabetismo ou de semi-analfabetismo, em grandes contingentes de crianças, jovens e adultos das camadas populares. (Fundação EDUCAR, 1986, s/n),

o que indica a perspectiva de que os direitos já vinham sendo enunciados, sem que se

fizessem prática. Por fim, enfatizando como recomendações da Comissão, no sentido de

reorientar e transformar a política da educação de jovens e adultos (aqui já assim nomeada,

incluindo-se o segmento jovem), pode-se ler: “reconhecer constitucionalmente o direito de

jovens e adultos à educação básica de 1º grau; considerar, na política global de educação de 1º

grau para toda a população brasileira, a definição de uma política global para educação de

jovens e adultos;”. A passagem de educação de adultos para educação de jovens e adultos

representa um importante momento, na perspectiva do direito.

56 O CEDI foi, posteriormente, desdobrado segundo as atividades específicas que executava, representadas atualmente pela ONG Koinonia e pela Ação Educativa, até hoje de forte presença na educação de jovens e adultos.

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176

Mesmo com a reorientação, supostamente oferecendo condições mais democratizantes

às parcerias instituídas formalmente, a situação do analfabetismo no país permaneceu em

tamanho, abrangência e perspectiva não-ética ainda de dimensões escandalosas. Não bastava

admitir redução de índices, nem percentuais de atendimento, porque o dado absoluto de

pessoas interditadas à educação era inadmissível e, mais grave, começava a mudar de perfil,

por demonstrar uma elevadíssima incorporação do segmento jovem nos sem-escolarização.

Apoiando técnica e financeiramente iniciativas inovadoras de prefeituras e da

sociedade civil, em conseqüência da expressão e organização de movimentos sociais urbanos

e rurais, que passavam a gozar de liberdade depois de longo período de obscurantismo,

alargava-se o campo da experimentação pedagógica. A revitalização dessas práticas

influenciou, sem dúvida, os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, cujo maior feito

para a EJA residiu na consagração do direito universal ao ensino fundamental público e

gratuito, independente da idade. (HADDAD, DI PIERRO, 2000, p. 120).

Em setembro de 1988, fruto de um novo trabalho em comissão paritária com

integrantes da Fundação Educar, do MEC, de secretarias de estado de educação e de

secretarias municipais de educação, depois de seis meses de intensas atividades e

contribuições de coordenações estaduais da Fundação Educar, secretarias de educação,

universidades públicas e privadas, fundações públicas (do índio, educacionais, Rondon, do

bem-estar social, universitárias entre muitas outras), institutos de educação, Sistema S,

associações profissionais e de pais, federação de associações de moradores e associações de

bairro, entidades da sociedade civil, Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste

(SUDENE), Associação Cristã de Moços, Ministérios, escolas técnicas e agrotécnicas, centros

de ensino supletivo, comissões municipais de educação, Associações de Pais e Amigos dos

Excepcionais (APAEs), prefeituras, professores e supervisores, sociedades religiosas, obras

sociais, organizações não-governamentais, igrejas, pastorais, empresas, conselhos estaduais de

educação, União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), Delegacias do

MEC, Instituto de Estudos Avançados em Educação, da Fundação Getúlio Vargas (IESAE),

Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) GT Alfabetização

representando 18 estados e o Distrito Federal, divulga-se o documento Diretrizes para uma

política nacional de educação básica de jovens e adultos, atendendo ao disposto na Portaria

MEC n. 173 de 8 de março de 1988, com vistas a propor diretrizes fundamentais para uma

política na área, e não mais visando a atuação apenas da própria Fundação Educar. Depois de

analisar o panorama da sociedade brasileira em que se inscrevia a educação de jovens e

Page 179: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

177

adultos, uma segunda parte propõe as diretrizes para essa política nacional. Seis são essas

diretrizes, assim enunciadas:

[...] garantia de educação básica57 para os jovens e adultos das camadas populares; inserção orgânica da educação de jovens e adultos no sistema de ensino do país; alocação de dotação orçamentária para o desenvolvimento dos serviços educacionais para jovens e adultos no conjunto do sistema nacional de ensino; construção da identidade própria da educação de jovens e adultos; garantia de habilitação e profissionalização dos educadores de jovens e adultos; exercício da gestão democrática na educação de jovens e adultos. (FUNDAÇÃO EDUCAR, 1988, p. 18-19).

Como se observa, a proposta que se consolida, e a qual muito antes vinha sendo

defendida, é a de inserção do serviço de atendimento a jovens e adultos nos sistemas

adequados ao público demandante, assim como formação e profissionalização do educador,

com recursos orçamentários próprios, além de pensar essa modalidade educativa com

identidade e com base no exercício da democracia.

Paralelamente a toda a ação que o MOBRAL e a EDUCAR executam nesse para-

sistema que foi constituído pela ditadura militar, e demonstrando como a ideologia do capital

humano estivera presente nos planos de metas de desenvolvimento, cabe agora explicitar a

organização e o crescimento do sistema de ensino supletivo nas redes públicas.

Com a Lei nº. 5692 de 11 de agosto de 1971, capítulo IV, o ensino supletivo passa a

constituir um novo ordenamento na legislação educacional. Essa ordenamento legal é ainda

melhor compreendido por meio do Parecer nº. 699/72 do Conselho Federal de Educação,

exarado pelo relator Valnir Chagas, ideólogo do modo de conceber o ensino supletivo, ainda

hoje fortemente presente entre nós. Entendido a partir de quatro funções — suplência,

suprimento, qualificação e aprendizagem —, manteve, no entanto, como face mais visível da

regulamentação a função suplência, traduzida pela idéia de “suprir a escolaridade regular para

adolescentes e adultos que não a tenham seguido ou concluído em idade própria”. Concebido

como um subsistema integrado, independente do ensino regular, mas com ele intimamente

relacionado, realçava a vinculação com o esforço do desenvolvimento nacional, já propondo

metodologia ajustada às características da modalidade. 57 O documento registra a nota, assinalando que “Na Nova Carta Constitucional, a educação básica é denominada de ensino fundamental” (p. 18), o que não corresponde exatamente à formulação do texto constitucional, já que por educação básica assumiu-se a educação feita a partir de zero anos ao final do ensino médio, estando a referência do direito de todos, independente da idade, esta sim, associada ao ensino fundamental.

Page 180: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

178

Ligando o presente ao passado e ao futuro, na mais longa linha de continuidade e coerência histórico-cultural de uma reformulação educacional já feita entre nós, ele constitui — e constituirá cada vez mais daqui por diante — um manancial inesgotável de soluções para ajustar a cada instante, a realidade escolar às mudanças que se operam em ritmo crescente no País e no mundo. (PARECER nº. 699/72, p. 37).

Valnir Chagas demonstrava no Parecer a dificuldade de conceituar o ensino supletivo,

quando se dispõe a fazê-lo pelo que não é, buscando explicitar o que não fosse regular, para

constituí-lo. Segundo De Vargas (1984, p. 31), a complexidade do ensino supletivo foi de tal

monta que exigiu a criação de um organismo federal responsável pela sua coordenação, em

nível nacional. Em 1973, o Departamento de Ensino Supletivo (DSU) do MEC, elaborou um

documento denominado Diagnóstico Preliminar do Ensino Supletivo, com base no Censo de

1970, e nas estatísticas do serviço de Estatística da Educação e Cultura de 1971, estimando a

“clientela provável do supletivo” em 28,5 milhões, sendo 9,9 milhões analfabetos e 18,6

milhões de pessoas nos três graus de ensino fora da escola, entre a população de 15 a 39 anos.

(DE VARGAS, 1984, p. 31). A autora De Vargas (1984, p. 96) identifica quatro tendências,

que se entrelaçavam no desenvolvimento de projetos do Departamento de Ensino Supletivo:

“a) enfoque tecnicista na programação dos projetos e no controle da execução; b)

centralização técnico-financeira da programação; c) ênfase na certificação; d) prioridade à

formação de mão-de-obra”, concorrendo para a perspectiva de “ações corretivas para sanar

(sem o conseguir) as falhas da estrutura educacional.”

MOBRAL e Ensino Supletivo, estruturado nas secretarias estaduais de educação,

compunham, embora o primeiro não se submetesse, na prática, à supervisão do DSU, um

sistema na oferta do serviço: a alfabetização e as quatro primeiras séries do 1º Grau era

realizada pelo primeiro, mediante convênio58, enquanto às secretarias de educação passou a

caber, cada vez mais, o segundo segmento do 1º Grau e sua expansão.

A prática da Fundação EDUCAR, no entanto, alterou em muito a potência executora

do MOBRAL, passando esta a fomentar, inclusive com recursos, a constituição da oferta nos

níveis municipais, sem diretamente executar as ações. Esta medida em muito determinou o

início do enraizamento nos sistemas, que as diretrizes para a formulação de uma política para

a EJA defendiam. Quando a EDUCAR é extinta, em 1990, são os municípios, justamente, os 58 Estes convênios, em muitos casos, incluíam professores das próprias redes, cabendo a formação e a supervisão ao MOBRAL, assim como o material didático. O que se observa é que na prática social, as relações institucionais se estabeleciam com mais facilidade por meio das relações pessoais, do que no nível macro do sistema, em que as estruturas de poder e a disputa entre dirigentes e órgãos se colocavam à frente da construção efetiva de um sistema. O orçamento próprio e a maior flexibilidade de aplicação de recursos por constituir uma fundação, sempre fizeram do MOBRAL um órgão mais ágil do que as secretarias.

Page 181: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

179

que a duras penas mantêm a oferta um pouco mais qualificada, segundo a concepção

anunciada em 1988 pela Constituição Federal do direito de todos, e não mais de ensino

supletivo, mas de educação de jovens e adultos.

Sem querer negar as contradições das políticas que MOBRAL e EDUCAR efetivaram,

o fato é que representavam o poder do Estado comprometido com a educação de jovens e

adultos, que com a extinção deixava, então, de acontecer. O MOBRAL não representou, em

nenhum momento, a perspectiva do direito à educação, pois praticava uma concepção

compensatória de atendimento a jovens e adultos, com forte viés da escolarização para

melhorar os níveis de desenvolvimento. A EDUCAR, vagarosamente, mudava sua

formulação, e talvez se possa afirmar que avançou mais nesse nível, do que em suas práticas,

maculadas por uma série de desacertos de gestão que culminaram com sua extinção.

55..55 AA LLUUTTAA PPEELLOO DDIIRREEIITTOO ÀÀ EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO NNAA CCOONNSSTTIITTUUIIÇÇÃÃOO CCIIDDAADDÃÃ

A Constituição Federal de 1988, trazendo de volta à história brasileira a conquista da

educação para todos como direito, passa, em tese, a incluir o largo contingente de analfabetos

e analfabetos funcionais jovens e adultos que o país produzira, mesmo convivendo com

sucessivas propostas alfabetizadoras, expressões até mesmo de políticas públicas, ampliando-

se para a perspectiva de direito público subjetivo.

Segundo Bobbio (1992), o problema mais grave na atualidade, em relação à conquista

de direitos, não é o de sua fundamentação, mas de como protegê-los. Para a população que

luta por direito à educação, é clara a idéia de que a luta é cotidiana, que se luta hoje para

conquistar amanhã, mas que se não houver vigilância, o direito pode se perder, e então é

preciso voltar a lutar. A luta cansa, mas também ensina, e esta é, pois, uma grande

aprendizagem da luta. (SPOSITO, 1993; PAIVA, 2000).

Essa idéia de que a luta por direito inverte a mão tradicional do poder, que passa a vir

de baixo para o alto, leva diretamente à relação entre direito e democracia, assinalada por

Bobbio como subversiva59. Cury, Baia Horta, Fávero (2001, p. 26), referindo-se ao

pensamento de Bobbio quanto a ser a democracia subversiva porque inverte a concepção

descendente do poder em favor da concepção ascendente, dizem poder, talvez, fazê-lo

convergir com Lefort, sua “invenção democrática” como reinvenção permanente do real.

Cury, Baia Horta, Fávero ainda (2001, p. 26) ressaltam:

59 Citação em outro capítulo.

Page 182: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

180

O grau de participação da sociedade civil na elaboração da Constituição de 1988 traduziu esta concepção ascendente e. talvez por isso, ela seja reinventora de novos direitos sociais, aí compreendida a própria educação. Ela incluiu novos direitos a fim de possibilitar uma situação de maior participação para aqueles que foram historicamente excluídos do acesso aos bens sociais.

Nas lutas travadas pela educação durante os trabalhos da Constituinte, o Fórum

Nacional da Educação na Constituinte em Defesa da Escola Pública significou uma forma de

participação democrática inédita, ascendente, que se prorrogou, como movimento, durante os

trabalhos de discussão até a aprovação da LDB e se perpetuou até os dias atuais, passando

pelo Plano Nacional de Educação e, atualmente, pelo Fundo Nacional para o

Desenvolvimento da Educação Básica – FUNDEB.

Baia Horta (1998, p. 7-8), indagando como se faz para proteger um direito social,

argumenta que este é mais difícil de proteger do que os direitos de liberdade, porque quanto

mais satisfeitas as necessidades, mais aumentam as pretensões.

Alguns mecanismos jurídicos foram introduzidos pela Constituição Federal, como

proteção ao direito do cidadão, como o mandado de injunção, forma de garantir o direito da

cidadania e o dever do Estado, que constituem o direito público subjetivo.

Afirmando que um dos passos da proteção ao direito à educação se dá quando ela é

definida como direito público subjetivo, Baia Horta (1998, p. 7) diz ainda que embora venha

sendo defendido desde 1930 por juristas, só em 1988 foi proclamado. O poder de ação de uma

pessoa para proteger ou defender um bem inalienável, e ao mesmo tempo legalmente

constituído, é o que se entende por direito público subjetivo, e os dispositivos jurídicos desse

poder traduzem-se pela ação popular, ação civil pública, mandato de segurança coletivo e

mandato de injunção — todos previstos e regulamentados pela Constituição Federal de 1988.

Baia Horta (1998, p. 8-9) também destaca o que Boaventura de Sousa Santos (1989)

considera como “a igualdade dos cidadãos perante a lei” que se choca com “a desigualdade da

lei perante os cidadãos”, assim como a existência da desigualdade na administração da justiça,

e, ainda, na presença necessária do Estado para a proteção dos direitos sociais traduzida por

políticas públicas adequadas.

Recuperando a formulação de Paul Singer (1996), quanto ao atendimento do direito à

educação pelo Estado, Baia Horta (1998) assinala que Singer funda-o em duas posições: a

primeira, chamada de civil democrática, que se traduz pela obrigatoriedade escolar e reafirma

o dever do Estado; a segunda, a que denomina de produtivista, acentuando a perspectiva da

Page 183: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

181

oferta e da demanda e deixando em segundo plano o dever e a obrigatoriedade. Pode-se

reconhecer, por exemplo, nessa segunda posição, a mesma adotada durante todo o governo

FHC em relação à EJA, cuja oferta só se daria mediante demanda, ausente, pois, como

política pública, aspecto discutido por mim neste texto.

Cury, Baia Horta, Fávero (2001, p. 28-29) destacam o papel do mandado de injunção e

de outros instrumentos legais, como um conjunto através do qual a sociedade organizada

pode:

[...] educar o educador, estatuindo ou impedindo. Nesse caso, a sociedade civil não educa apenas o Estado-educador no sentido de conduzi-lo a realizar aqueles direitos que, nos limites constitucionais, efetivam a igualdade fundamental entre os cidadãos. Ela também se educa como fonte de poder e pode, reciprocamente, ser educada pelo Estado. Cobra-se, nessa medida, o que é dever do Estado em suas funções clássicas e ao mesmo tempo controla-se o abuso do poder.

É Bobbio (1992, p. 72) quem, em seguimento às idéias até aqui organizadas, ajuda-me

a compreender como o poder do Estado se faz mais necessário, em se tratando de direitos

sociais:

Enquanto os direitos de liberdade nascem contra o superpoder do Estado — e, portanto, com o objetivo de limitar o poder —, os direitos sociais exigem, para a sua realização prática, ou seja, para a passagem da declaração puramente verbal à proteção efetiva, precisamente o contrário, isto é, a ampliação dos poderes do Estado.

Enfoco, então, por entender que devo recortar ainda mais o tema do direito à educação,

a questão posta na EJA, modalidade da educação básica composta de sujeitos não

beneficiários desse direito na época própria, o que lhes impediu o processo de escolarização.

Destaco que este é um dos muitos sentidos da EJA, que não deve ser compreendida, no

entanto, apenas por esse viés. A educação de jovens e adultos, conforme a Declaração de

Hamburgo, firmada em 1997, durante a V Conferência Internacional de Educação de Adultos,

reconheceu que essa área é fundamental à vida em sociedades contemporâneas, em que os

processos de aprender são fundamentos cotidianos. O sentido verdadeiro da EJA é o da

educação continuada, que favorece processos educativos para jovens e adultos, cujas

condições de vida os mantêm afastados dos conhecimentos indispensáveis à sua humanização,

assim como quanto aos direitos sociais à saúde, ao emprego, à qualidade de vida, à formação

profissional etc. Com isto, deve-se conferir-lhes condições mais adequadas para se moverem

na sociedade complexa em que vivem e da qual participam, sem os instrumentos básicos da

cidadania. Mas também o conceito explicitado na V CONFINTEA reafirma a escolarização

Page 184: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

182

como uma das dimensões da EJA, pelo reconhecimento da melhoria que a condição cidadã

passa quando os sujeitos dispõem do aprendizado da leitura e da escrita, formando leitores e

escritores dos textos que produzem em suas passagens pelo mundo. Ler e escrever, como

requisitos que a escola legitima para conferir aos sujeitos melhores condições de exercer a

cidadania, atendem à dimensão da escolarização, fundamental para a vida em sociedades

grafocêntricas, constituindo direito em qualquer idade, para quem não o auferiu na época da

infância.

Pelo contrário. Todos os esforços realizados ao longo da história da educação de

adultos no país, no sentido de assegurar a educação aos que não usufruíram da escola regular

quando crianças não conseguiram alcançar a universalização do atendimento, nem sequer o

êxito na tarefa, ou seja, fazer ler e escrever com competência os que se encontram à margem

do domínio do código. Campanhas, instituições, políticas funcionaram em sua maioria na

mesma perspectiva do estigma, do alívio ao analfabetismo, poucas vezes pela razão do direito

de iguais. A ferida, a chaga; erradicação, extirpar o mal, mancha negra, vergonha nacional

são muitas das expressões que acompanham não apenas o imaginário social, mas estão postas

em planos, legislações, cartas magnas.

Cabe, nesse ponto, um comentário adicional quanto à questão do direito. A

alfabetização, tomada como oferta de atendimento para jovens e adultos, em muitas

campanhas e programas no Brasil, foi a medida do que se entendia como educação de adultos.

Em alguns casos, estendia-se essa medida até o nível das quatro primeiras séries, oferecidas

em tempos e com conteúdos reduzidos, no que se chamou de pós-alfabetização. Sob a guarda

da atual Constituição, no entanto, que expressa o dever do Estado com a educação em nível de

ensino fundamental, qualquer proposta menor do que a correspondência a este nível de ensino

não cumpre o preceito da Carta Magna. Assim, defender projetos de alfabetização, ou o

objetivo de alfabetizar não dá conta do compromisso e do dever que o Estado brasileiro

precisa ter com a EJA.

A Constituição Federal de 1988, postulando o direito ao ensino fundamental para

todos, independente da idade, por meio do art. 208 inciso I, representara um avanço. Na

prática, no entanto, começava a ser negado. Alterado o Art. 208, pela Emenda Constitucional

nº. 14/96, propugnou-se, a partir de então, que o ensino fundamental fosse uma possibilidade

para jovens e adultos, e não mais obrigatoriedade, por se entender que não se pode obrigar

adultos e jovens além dos 14 anos a irem à escola, se não o fizeram na chamada idade própria.

Di Pierro (2000) questiona esta expressão “idade própria”, perguntando-se o que significa,

Page 185: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

183

diante dos marcos epistemológicos que sustentam o aprender por toda a vida. Se por um lado

pode parecer razoável que o legislador tenha tido este cuidado, para não criar um preceito não

exeqüível na prática, por outro pode estar em jogo o fato de a nova redação sustentar mais

uma forma de desresponsabilização do Estado em relação à oferta da EJA, criando, sem

explicitação, prioridade para a tal “idade própria”. O que se coloca em risco, talvez mais do

que em jogo, é a perspectiva de esgarçar o ainda frágil direito, que muito embora tenha sido

conquistado constitucionalmente, passa a adotar uma formulação ambígua, capaz de admitir o

não-dever do Estado com o direito, e outras possíveis interpretações dele decorrentes.

Os sujeitos da EJA, potenciais trabalhadores, vivenciaram, juntamente com as disputas

relativas à política de direito à educação, o desemprego crescente, a informalidade das

relações de trabalho, o decréscimo do número de postos. Não são mais trabalhadores

modelares, tal como eram concebidos há alguns anos. Identidade e subjetividade desse papel

se deslocam em busca de assumir outras significações. Quem são esses pretensos

trabalhadores? São jovens? Práticos, experientes? Que expectativas têm da vida adulta, que

ainda se organiza pelo trabalho? O que é trabalho, para eles? De que trabalhador esse novo

mundo necessita? A presença marcante de sujeitos que questionam as próprias identidades

pelas quais aprenderam a se constituir, subjetivando-se por elas, vem desafiando os

educadores do ponto de vista das metodologias e das intervenções pedagógicas, obrigando-os

a refletirem sobre os sentidos das juventudes — e de seus direitos — que permeiam as classes

de EJA, mas também atentos para o que cabe à escola fazer, para além do ensinar a ler e a

escrever.

Aqui cabe fazer uma certa digressão quanto à questão dos adolescentes e jovens, na

relação de direito à educação e à condição de trabalhador. Apesar de devidamente ordenada

do ponto de vista jurídico nacional, que ainda admite o trabalho do menor na qualidade de

aprendiz, sem dúvida implica contradição com os acordos internacionais de que o Brasil é

signatário, que visam à eliminação do trabalho infantil. Cury (BRASIL, 2000, p. 23) alerta

para o fato de a Emenda Constitucional nº. 20 de 1998 ter alterado o teor do art. 7º, XXXIII da

Constituição Federal para a seguinte redação: proibição de trabalho noturno, perigoso ou

insalubre a menores de dezoito anos e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos,

salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos, sugerindo a leitura do Estatuto da

Criança e do Adolescente (ECA), Art. 60-69 e Art. 402 a 414, e 424-441 da Consolidação das

Leis do Trabalho (CLT) que tratam do adolescente aprendiz. A possibilidade admitida, sem

dúvida, acaba encobrindo inúmeros desvios à formulação legal sobre como o trabalho se faz,

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184

mas não na condição de aprendiz, muito menos cumprindo a legislação trabalhista. Pode-se

dizer que no Brasil o trabalho infantil só deixará de existir quando for encarado como

problema, porque até então tem sido encarado como solução, admitindo-se a concepção social

que considera melhor que a criança, o adolescente, o jovem trabalhem, do que acabem, pelo

ócio, caindo na marginalidade. Evidentemente que esse modo de pensar não se aplica a todas

as classes sociais, mas apenas às populações pobres, vistas como marginais na essência, e às

quais, diante de “oportunidades”, passam a “desenvolver essa potência”.

Admitindo-se que, pelo menos, a proibição do trabalho noturno ao menor se faça em

respeito à sua condição de sujeito em formação, a oferta de ensino noturno regular, adequado

às condições do educando passa a ser dever do Estado, conforme o Art. 208 inciso VI da

Constituição Federal reiterado pelo inciso VI Art. 4º da LDB., assim como a oferta de

educação escolar regular para jovens e adultos, com características e modalidades

adequadas às suas necessidades e disponibilidades, garantindo-se aos que forem

trabalhadores as condições de acesso e permanência na escola (inciso VII Art. 4º). Este

dever do Estado com a educação escolar pública assim enunciado visa a assegurar a

possibilidade de acesso à escola, horários, metodologias, direito garantido pelo Art. 54, VI da

Lei 8.069/90, que especifica a adequação deste turno às condições do adolescente trabalhador;

do mesmo modo que o Art. 227 da Constituição Federal, ao tratar do direito à proteção

especial, impõe, no inciso III, a garantia de acesso do trabalhador adolescente à escola.

Também visa a assegurar gratuitamente aos jovens e adultos, que não puderam efetuar os

estudos na idade regular, oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as

características do alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho, mediante cursos

e exame e, ainda, caberá ao Poder Público viabilizar e estimular o acesso e a permanência do

trabalhador na escola, mediante ações integradas e complementares entre si. (LDBEN, 1996,

Art. 37 § 1º e 2º).

Ao tempo em que no mundo a educação vem sendo tomada como um direito humano,

mais do que, apenas, direito social, a conquista no aspecto jurídico, entre nós, continua não

garantindo, na prática, esse direito. A letra da lei não consegue alterar o jogo das relações

políticas e dos programas governamentais que vêm excluindo, pelas opções que realizam,

uma dupla vez os brasileiros já excluídos na infância, negando-lhes o atendimento, o

reconhecimento de serem cidadãos de direito, a “chance” renovada do saber sistematizado da

cultura escrita que organiza a vida social nas sociedades grafocêntricas.

Page 187: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

185

Como direito humano, busca-se legitimar para a educação a ontologia do ser social,

entendendo-se que, mais do que uma construção da história, ela significa um atributo da

própria humanidade dos sujeitos, sem o qual homens e mulheres não se humanizam

completamente. É por meio dos direitos humanos que o valor da liberdade passa a ser posto

no horizonte como fundamento essencial da vida, cuja realização exige regras e formas de

convivência capazes de garantir a igualdade para todos os sujeitos. O modo possível de operar

com essa igualdade tem sido defendido pela democracia como valor universal.

Observa-se, então, como a construção social inicia seu processo de complexificar o

sentido de direito, já que o que antes poderia resumir um direito — escola para todos —, não

mais se faz suficiente, se esta escola não garante a todos o saber ler e escrever com qualidade.

Isto não configura um outro direito, mas se amalgama à idéia original de tal maneira, que

impõe pensar direito à educação nessa significação ampla: ir à escola e aprender a ler e a

escrever como leitor/escritor experiente, considerando-se a diversidade de sujeitos e suas

experiências e trajetórias de vida.

A enunciação dessa nova significação, no entanto, não basta para que esses “dois”

sentidos — ir à escola e aprender — se encontrem na prática social. Continua-se a lutar pela

escola para todos, não consagrada para enorme contingente, assim como se defende a

qualidade, forma pela qual o saber ler e escrever parece estar associado.

Como conquista, o direito à educação vem se fazendo em movimentos mais ou menos

densos e tensos, tanto provocado como resposta do setor público a exigências populares,

quanto por meio de algumas proposições de políticas públicas cuja face exteriorizada se

afirma com essa intenção e por ela tenta se sustentar.

55..66 DDIIRREEIITTOO ÀÀ EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO NNAA DDÉÉCCAADDAA DDEE 11999900

Na década de 1990, pós-constitucional60, os arranjos da década anterior em torno de

uma nova ordem econômica avançaram, mal dando tempo para que os países que, como o

Brasil, se redemocratizavam, pudessem exercer livremente suas conquistas cidadãs, já

mergulhando nas amarras do poder econômico ditado pelo neoliberalismo e por um governo

discutível, mesmo para a execução dessa tarefa, pela fragilidade de compromisso ético com o

mandato que se iniciava para o mais alto cargo do executivo. Dentre as muitas medidas

60 Refiro-me especificamente ao fato de, em 5 de outubro de 1988, o país voltar a ter uma Constituição democrática, fruto das lutas contra a ditadura militar no Brasil, aprovada após o trabalho de uma Assembléia Nacional Constituinte que para isso foi eleita.

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186

imediatas da posse de Fernando Collor de Melo, destaca-se a da extinção da Fundação

EDUCAR, deixando sem qualquer sucedâneo o campo da EJA, e interrompendo o

atendimento de milhares de alunos jovens e adultos.

É desta mesma década o pronunciamento público do Ministro da Educação, José

Goldenberg, afirmando reconhecer que o analfabeto não tinha um bom lugar, mas por já estar

lá e ter conseguido se arranjar assim, não valia a pena mexer com ele, porque a prioridade era

a de prevenir o mal, educando as crianças. Ao lado deste, o educador Darcy Ribeiro, em

Congresso Brasileiro de Alfabetização em São Paulo, 1990, proferiu a frase em sua

conferência que Haddad (1997, p. 106) cristalizou no início de um artigo discutindo a nova

LDB: “Deixem os velhinhos morrerem em paz !”61

A turbulência dos episódios que se seguiram, com o impeachment do presidente,

acabou por adiar, por mais tempo, a definição de leis ordinárias que sucederiam a

Constituição Federal, nesse caso a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN,

fazendo avançar o uso de medidas provisórias que legislavam em nome de um ordenamento

legítimo.

Especialmente a partir daí, e a despeito da assinatura, pelo Brasil, do acordo de

educação para todos em Jomtien, na Tailândia, ainda em 1990, vem-se assistindo o

desmantelamento das políticas na área, alijando do atendimento milhões de jovens e adultos

credores de políticas governamentais, desde que foi extinto o órgão que respondia e

fomentava ações de educação de adultos no país.

Novamente o espaço aberto foi, por isso mesmo, gradativamente sendo ocupado pela

sociedade civil, por meio de suas forças organizadas62, em tamanho e número reduzidos a

experiências, quase sempre de alfabetização, cuja continuidade não se conseguia assegurar,

frustrando e interrompendo projetos de estudo daqueles que tardiamente conseguiam ir à

escola.

61 O artigo denomina-se A educação de pessoas jovens e adultas e a nova LDB e se encontra In: BRZEZINSKI, Iria (Org.). LDB Interpretada: diversos olhares se entrecruzam. São Paulo: Cortez, 1997. Nesse artigo, Haddad resgata o encerramento do Congresso Brasileiro de Alfabetização, organizado pelo GETA – Grupo de Estudos e Trabalhos em Alfabetização, e realizado em São Paulo em 1990, por ocasião das mobilizações que marcaram o Ano Internacional da Alfabetização, quando Darcy Ribeiro, diante de Paulo Freire, de câmaras de vídeo e olhares atônitos de 1500 pessoas, expressou sua posição, desqualificando a educação de jovens e adultos, no auditório da antiga Escola Caetano de Campos. 62 As ONGs, na década de 1990, seguram o atendimento a jovens e adultos, além das iniciativas dispersas em igrejas, movimentos de bairro etc. Mas é de meados dessa década a constituição do Telecurso 2000 que acabou sendo “a alternativa” de EJA, inclusive para muitos municípios que conveniam com o programa, formulado e vendido pela Fundação Roberto Marinho.

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187

Por outro lado, muitos municípios, sensíveis e próximos ao drama do abandono

educacional a que novamente jovens e adultos eram protagonistas, assumiram nas redes

públicas o financiamento da área, garantindo a inserção da EJA nos sistemas públicos de

ensino. Assiste-se, nesse momento, a um movimento do poder local, em busca de assegurar

atendimento aos munícipes, cidadãos demandantes da EJA. Algumas prefeituras,

principalmente do PT, cujo compromisso com a educação para todos constituía programa

partidário, seguem os passos da Prefeitura de São Paulo, que com Paulo Freire à frente da

Secretaria Municipal de Educação, constrói o MOVA – Movimento de Alfabetização, uma

iniciativa executada “fora da rede” nas comunidades, mas acompanhada e alimentada pelo

poder público, inclusive com recursos. Desenhos do MOVA aparecem pelo país, inclusive em

governos não-petistas, e permanecem até hoje. A concepção que o MOVA encerra ofereceu

muitas lições aos educadores e aos sistemas públicos, mas seu não-enraizamento na rede

pública, definiu, em quase todos os lugares em que o PT perdeu a continuidade dos mandatos,

a ruptura e o abandono do programa, novamente entregando os então atendidos à própria

sorte. Mesmo onde o partido fez sucessor e o MOVA continuou a ser realizado — o que

poderia configurá-lo como uma política pública — porque permaneceu “fora da rede”, correu

sempre o risco de deixar de ser a expressão política da EJA, a qualquer tempo. Nesses casos

de permanência, os integrantes das redes públicas — professores formados e concursados —

não vêm com bons olhos os “competidores”, muitas vezes mais prestigiados do que os

profissionais da educação, causando disputas internas, forjadas pela crença de que os

educadores populares, por serem das comunidades — o que nem sempre se confirma —

conseguem estar próximos das necessidades e interesses dos educandos.

As prioridades que os sucessivos governos estabelecem para o ensino fundamental de

crianças, no contexto político não apenas nacional, mas internacional, em que as áreas sociais

perdem espaços significativos no cenário de um mundo em que o capital globalizado derruba

fronteiras e desterritorializa nações, fazem, por assim dizer, o pano de fundo da EJA. Que

perspectivas ideopolíticas têm definido as escolhas e as opções feitas pelos diferentes atores

sociais envolvidos com a educação de jovens e adultos?

Momentos significativos nessa década chamaram o Brasil a participar de acordos

sociais firmados internacionalmente em eventos, à medida que proliferavam, paralelamente, a

política neoliberal e seus danos às populações, aos seus direitos de existência e à sua

qualidade de vida, expressos pela voracidade do capitalismo; assim como os acordos de livre

comércio que impõem unilateralmente barreiras aos mercados dos países pobres do sul.

Page 190: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

188

Mas a década de 1990 (e de certa forma o início do novo século) foi também pródiga

em organizar conferências internacionais63, sob a égide da ONU e da UNESCO, com o claro

sentido de ordenar o mundo para uma nova lógica econômica, minimizando os efeitos sociais

que adviriam do modelo adotado. De modo geral, privilegiaram a temática da educação,

considerando-a básica para a sustentação de novos modelos de desenvolvimento, e para a

retomada do crescimento econômico. Assim, esse campo esteve fertilizado pelos olhares e

contribuições de muitas áreas do conhecimento, passando pelas questões de direitos dos

excluídos (à habitação, à alimentação, à qualidade de vida etc.) e das diferenças étnicas, de

gênero, culturais, mas sempre reforçado pela destacada necessidade de tomar a ação educativa

como central, para pensar de que educação se fala, para que sujeitos homens e mulheres, para

que sociedades, para que mundo.

Muitos acordos de cúpula também expressam as preocupações com o poder incontido

do modelo capitalista hegemonicamente concentrador nos países desenvolvidos em relação

aos demais países, submetidos pela metáfora da globalização a novas formas de imperialismo.

Dos compromissos assumidos pelo Brasil, um dos mais significativos se expressa na

área da educação, tanto pela exigência de mudar os dados de escolarização — insuficientes

para atrair investimentos estrangeiros, na economia de mercado livre, sem barreiras à

importação e à entrada de corporações que passam a ser mais fortes que o Estado-nação —,

quanto de redimensionar a oferta de serviços educacionais, restringindo os recursos da

pesquisa (possível para os países hegemônicos centrais, mas inviável para os periféricos, que

devem passar a importadores de conhecimento produzido) e padronizando as propostas

curriculares e a formação continuada de professores, com vistas a reduzir investimentos e

custos. A educação de jovens e adultos, mesmo quanto à dimensão da escolarização para

cumprir o direito ao ensino fundamental para todos é esvaziada nas políticas públicas

educacionais, restringindo-se as fontes de financiamento, até quando se destinam

compulsoriamente formas de aplicação de 15% dos recursos obrigatórios, por meio do

FUNDEF (1996). No entanto, a educação do trabalhador, estimulada pela idéia não mais da

ascensão social, mas da empregabilidade, passa a apreender o sentido das políticas educativas

63 As conferências do chamado ciclo social da ONU foram: em Jomtien, Tailândia, 1990, sobre Educação para Todos; no Rio de Janeiro, 1992, sobre Meio Ambiente; em Viena, Áustria, 1993, sobre Direitos Humanos; no Cairo, Egito, 1994, sobre População; em Beijing, na China, 1995, sobre Direitos das Mulheres; em Copenhague, Dinamarca, 1995, sobre Desenvolvimento Humano; em Roma, Itália, 1996, sobre Segurança Alimentar; em Istambul, Turquia, 1996, sobre Assentamentos Humanos (Habitat II); em Hamburgo, Alemanha, 1997, sobre Educação de Adultos; em Haya, Holanda, 1999, sobre a Paz; em Dakar, no Senegal, 2000, sobre Educação para Todos; em Durban, África do Sul, 2001, contra o Racismo e a Xenofobia.

Page 191: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

189

do Ministério do Trabalho. Assim, se antes o campo de atuação desse Ministério restringia-se

à formação profissional, passa então a incorporar a formação geral como indispensável à

educação do trabalhador, sem o que de nada adianta investir na formação profissional.

Enquanto se encolhem os recursos para a educação de jovens e adultos no MEC, se ampliam

as do MTb, este sim o mais potente formulador de políticas educativas para jovens e adultos

trabalhadores.

Alguns programas são estimulados em parceria com centrais sindicais, que pensam

modelos de educação próprios, traduzindo as concepções de mundo do trabalho e de formação

de sujeitos trabalhadores críticos aos modelos que o capital modifica, pelo avanço neoliberal.

55..66..11 NNeeggaannddoo oo ddiirreeiittoo àà EEJJAA nnoo FFUUNNDDEEFF

Quando o Presidente da República vetou, em julho de 1996, a inclusão da contagem

das matrículas do existente ensino supletivo (que atendia aos educandos jovens e adultos) para

o cálculo de distribuição de parte dos recursos da educação, submetidos a novos parâmetros

de aplicação, usando a justificação de falta de dados confiáveis de matrículas para a aplicação

da Lei nº. 9424/96 que instituiu o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino

Fundamental e de Valorização do Magistério – FUNDEF. A justificativa, oferecida pelo

Ministro da Educação, em subsídio ao veto presidencial, negava todo o trabalho organizador

de dados da educação brasileira — dados até então inexistentes —, promovido pelo INEP,

através do Censo Educacional anual. Apesar de o Fundo destinar-se a garantir maior eqüidade

de recursos para a faixa de ensino obrigatório, e direito de todos desde 1988, não se permitiu a

sua aplicação para o enorme contingente de brasileiros excluídos dos instrumentos da leitura e

da escrita, de subescolarizados e de não concluintes do ensino fundamental quando crianças,

do mesmo nível de ensino.

A luta, a partir daí, pelo resgate do direito à inclusão no FUNDEF tem sido contínua,

propondo a derrubada dos vetos presidenciais que impedem o uso de recursos para a EJA.

Embora passados oito anos da promulgação da Lei, e tendo o PT assumido a chefia do

executivo federal, nenhuma mudança substantiva se consolidou sobre o assunto até agora. A

nova discussão em pauta, proposta pelo executivo, por meio do gabinete da Casa Civil, e

alavancada pelo Ministério da Educação, é a de criação de um novo Fundo de

Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB), que não apenas incluiria a EJA, mas

também a educação infantil, a educação especial e o ensino médio, fechando o ciclo da

educação básica. A proposta, nos moldes de ajuntamento de recursos do FUNDEF, mas sem

Page 192: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

190

qualquer recurso extra para o Fundo, e ainda lidando com a aprovação da DRU –

Desvinculação de Recursos da União, o que significa perda de receitas da ordem de 20% na

educação, não reflete a luta até então travada pelos educadores e pela sociedade, embora seja

indispensável, por assumir a EJA no item do financiamento como modalidade que o Estado

tem o dever de oferecer. No entanto, um largo percurso ainda há que ser percorrido, até que o

FUNDEB seja de fato um Fundo para a educação básica, tanto assegurando o financiamento

para níveis e modalidades até então não contemplados, como também assumindo a extensão

da universalização ao ensino médio, sem o que os requisitos de qualidade, como direito

emergente da educação, não se fará. A realidade dos países do primeiro mundo têm

demonstrado que são necessários, no mínimo, 12 a 13 anos de escolaridade para que um

jovem seja, efetivamente, leitor crítico e criativo de textos e escritor de sua palavra, não da

palavra dos outros.

55..66..22 NNoovvoo âânniimmoo nnaa ccoonnqquuiissttaa ddoo ddiirreeiittoo:: oo cchhaammaaddoo iinntteerrnnaacciioonnaall ddaa UUNNEESSCCOO

Nas reuniões preparatórias nacionais, que aconteceram nos estados brasileiros em

1996, antecedendo a V Conferência Internacional de Educação de Adultos em Hamburgo,

Alemanha, o MEC, pela voz de seus representantes, entre eles a Secretária de Ensino

Fundamental, defendeu publicamente, por inúmeras vezes, a prioridade da educação de

crianças, o que estancaria, como a uma fonte, a produção de analfabetos, condenando os

nessa condição (tal como dicionarizado por Buarque), à exclusão definitiva, até que, velhos,

como pregou Darcy Ribeiro, morreriam, reduzindo por inércia os dados que atestam a

inversão das prioridades sociais.

O documento final produzido durante o Encontro Nacional de Natal, em setembro de

1996, pela mobilização de educadores e instituições, cumprindo a metodologia de trabalho

proposta pela ONU, em preparação à V Conferência Internacional de Educação de Adultos,

assim concebia a perspectiva do direito à educação, em contexto mais amplo de direitos

fundamentais da pessoa humana visando à consolidação de uma sociedade democrática:

Para que o Brasil alcance níveis de desenvolvimento compatíveis com as necessidades e interesses das camadas populares urge que, ao lado de mudanças estruturais no âmbito socioeconômico, sejam implementadas medidas visando transformar os processos de aquisição e desenvolvimento das capacidades humanas. O processo de construção e consolidação da democracia por que passa o nosso país está a exigir de seu povo a consciência crítica do momento histórico.

Page 193: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

191

A educação fundamental é direito de todos e sua universalização urgente e necessária, devendo ser assegurada por políticas de acesso e permanência na escola. A consecução das metas constitucionais de superação do analfabetismo e universalização do ensino fundamental enseja a integração intra-setorial das políticas de educação de crianças, jovens e adultos e a articulação intersetorial com as demais políticas sociais (saúde, moradia, saneamento básico e assistência social) e de desenvolvimento (reforma agrária, geração de emprego e distribuição de renda). (Documento Final do Seminário Nacional de Educação de Jovens e Adultos. Natal, RN: 8-10 set 1996, p. 9)64

O Ministério da Educação - MEC não reconheceu esse documento, como também não

reconheceu a defesa que a ainda existente Comissão Nacional de Educação de Adultos lhe

fez. Mais que isso, lançou, na abertura do Encontro em Natal, sua concepção de atendimento a

jovens e adultos, expressa no âmbito do Programa Comunidade Solidária: Programa

Alfabetização Solidária – PAS, de viés compensatório, negador de todas as posições que os

representantes, reunidos, dispunham-se a defender na formulação do documento final. Após

esse momento, o MEC formulou, em nível de gabinete, sua própria concepção para a área,

defendida tanto na Conferência Regional Latino-Americana, da qual o Brasil foi sede, quanto

no evento internacional V CONFINTEA, realizado em Hamburgo, Alemanha, em julho de

1997.

Na Conferência Regional Preparatória, 1997, sediada em Brasília, congregando os

países do continente latino-americano, mais uma vez o Brasil sustentou a posição assumida

até então:

[...] continua a ser a de que o objetivo primeiro da política educacional é o de oferecer a formação adequada, na idade própria, no ensino fundamental, superando a repetência e a evasão e elevando a porcentagem de concluintes do ensino fundamental. Esta política eliminará, em muito, a necessidade de prover EJA, a não ser como educação continuada, [...] Trata-se, portanto, de afirmar a prioridade da ação preventiva. [...] Ainda que concentre seus esforços no fortalecimento da educação básica regular, o Brasil vem também se empenhando em conceber e implantar estratégias para recuperar as vítimas do déficit escolar passado e presente. (MEC, 1996-1997, p.6).

O país assumia, sozinho, posição contrária à que afirmava o mundo, que se punha de

acordo pela Declaração de Hamburgo, quanto ao direito à educação de jovens e adultos, mas

também como a chave para o século XXI, tanto conseqüência do exercício da cidadania,

como condição para uma plena participação na sociedade, afirmando, que a educação de

adultos: 64 O texto foi aprovado pelos delegados reunidos no plenário do Seminário Nacional de Educação de Jovens e Adultos (Natal, RN: 8-10/09/1996) e se origina da consolidação dos relatórios dos Encontros preparatórios realizados nas regiões Nordeste, Sul e Sudeste, Norte e Centro Oeste.

Page 194: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

192

Além do mais, é um poderoso argumento em favor do desenvolvimento ecológico sustentável, da democracia, da justiça, da igualdade entre os sexos, do desenvolvimento socioeconômico e científico, além de ser um requisito fundamental para a construção de um mundo onde a violência cede lugar ao diálogo e à cultura de paz baseada na justiça. (V CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE EDUCAÇÃO DE ADULTOS, 1998, p. 89).

A concepção brasileira confrontava explicitamente com as posições de todas as

regiões do globo e dos chamados países centrais e periféricos, estes, sem exceção, defendendo

não apenas o direito de todos à educação, como também o de aprender por toda a vida, idéias

fortemente fertilizadas, segundo inúmeros depoimentos, pelo pensamento do educador Paulo

Freire. Destoando do concerto das nações presentes, entendia ser a educação de adultos um

“desvio” causado pelo fracasso do ensino fundamental de crianças. Tão logo este desvio fosse

corrigido, dizia o MEC, cessaria a necessidade da educação de adultos. Desse modo, entendia

a opção política de priorização do ensino fundamental para crianças, mesmo que, para isso,

deixasse de cumprir o direito constitucional, justificando essa priorização pelo aspecto

econômico, alegando falta de recursos para atuar em mais do que uma frente. Por essa lógica,

prometia estancar no primeiro quadriênio do longo Governo FHC a “fonte” de analfabetos,

pela universalização do ensino fundamental. Como a universalização, ou seja, o acesso por si

só não garante nem a permanência, nem o sucesso, esta mesma universalização acabou, por

fim, concorrendo para a manutenção das taxas e dos números que aí estão, porque não foi

conduzida tendo em paralelo a qualidade da educação.

55..66..33 LLDDBB ee ddiirreeiittoo àà EEJJAA

Em dezembro de 1996, oito anos depois da promulgação constitucional, a LDB nº.

9394 regulamentou o direito à educação para todos. Promulgada depois de intensa disputa

entre setores organizados, deputados e senadores, tanto nas Comissões, quanto nos gabinetes,

via seu texto final levado a termo, em manobra não-regimental promovida pelo Congresso

para satisfazer o projeto do Executivo, pelas mãos do Senador Darcy Ribeiro, nesse momento

seriamente doente, que aceita apor seu nome à lei da educação, como uma última

homenagem, ainda em vida. O projeto substituído, dentre muitas mudanças com o texto

original negociado, reafirma e busca ordenar em dois artigos, 37 e 38, a educação de jovens e

adultos, assim nomeada no Capítulo II, Seção V, abandonando de vez a perspectiva

compensatória da antiga formulação do ensino supletivo, rompendo de vez com essa

concepção/nominação.

Cury (BRASIL, 2000, p.21) assim se refere ao que a Lei referendou:

Page 195: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

193

A LDB acompanha esta orientação, suprimindo a expressão ensino supletivo, embora mantendo o termo supletivo para os exames. Todavia, trata-se de uma manutenção nominal, já que tal continuidade se dá no interior de uma nova concepção. Termos remanescentes do ordenamento revogado devem ser considerados à luz do novo ordenamento e não pelos ordenamentos vindos da antiga lei. Isto significa vontade expressa de uma outra orientação para a Educação de Jovens e Adultos, a partir da nova concepção trazida pela lei ora aprovada.

Do ponto de vista conceitual, além da extensão da escolaridade obrigatória formalizada em 1967, os artigos 37 e 38 da LDB em vigor dão à EJA uma dignidade própria, mais ampla, e elimina uma visão de externalidade com relação ao assinalado como regular.

E continuando, acrescenta, para justificar a EJA como modalidade da educação básica:

A atual LDB abriga no seu Título V (Dos Níveis e Modalidades de Educação e Ensino), capítulo II (Da Educação Básica) a seção V denominada Da Educação de Jovens e Adultos. Os artigos 37 e 38 compõem esta seção. Logo, a EJA é uma modalidade da educação básica, nas suas etapas fundamental e média.

O termo modalidade é diminutivo latino de modus (modo, maneira) e expressa uma medida dentro de uma forma própria de ser. Ela tem, assim, um perfil próprio, uma feição especial diante de um processo considerado como medida de referência. Trata-se, pois, de um modo de existir com característica própria. (BRASIL, 2000, p. 18-19).

Reduzida a dois artigos, e entendida como modalidade da educação básica, observa-se

que são suficientes para estabelecer referências, porque não extensos e detalhados, não

engessando as possibilidades de pensar e realizar a EJA. Para os que querem muitas

definições, o risco da possível leitura aberta plena de significações e admitindo múltiplos

sentidos está posto, e não raro tem-se visto a mão de conselhos estaduais e municipais de

educação estreitando a interpretação que o legislador, nesse caso, intencionalmente ou por

acaso, deixou escapar.

Demarco aspectos que me parecem fundamentais assinalar nos artigos, como

constituidores das possibilidades pelas quais se deve fazer o direito à educação para todos:

No Art. 37, o primeiro aspecto amplia a abrangência da modalidade, estendendo-a ao

ensino médio, o que implica ampliar também para esse segmento a perspectiva do direito

anunciada pelo Art. 4º, inciso II, que trata do direito e do dever de educar, pela “progressiva

extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio”:

Art. 37. A educação de jovens e adultos será destinada àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e médio na idade própria.

Page 196: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

194

No § 1º, garante-se a gratuidade e a especificidade da oferta aos jovens e adultos, ao

quais se devem oferecer “oportunidades educacionais apropriadas consideradas as

características do alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho, mediante cursos e

exames”. Observa-se que, nesse parágrafo, a preocupação está posta em garantir a proposta

pedagógica que possa servir aos objetivos dos sujeitos alunos, tanto pelo currículo proposto,

como também pelas questões estruturantes do atendimento, que dizem respeito a horários,

temáticas, tempo de permanência em classe, apontando, ainda, para as formas de cursos e

exames65, o que, se por um lado garante o processo de aprendizagem nos cursos, por outro

não exclui os exames como forma de atestar e confirmar aprendizados ao longo da vida, não

necessariamente realizados na escola. Parece-me que esse entendimento, no entanto, não tem

sido a tônica nos modelos de exames praticados, mesmo quando as formas de fazê-lo têm

evoluído, rompendo as de massa, para avaliações em bancas, em comissões permanentes etc.

Não pelos modelos, é claro, mas pelos instrumentos que, mesmo nos casos em que se

buscaram alternativas mais condizentes com a realidade dos sujeitos, o “conteúdo” desses

instrumentos é, ainda, pautado firmemente no escolar, sem chance de aferir conteúdos para

além da escola, da prática cotidiana, social e cidadã.

Na leitura do § 2º, atribui-se ao poder público a viabilização e estímulo ao “acesso e

permanência do trabalhador na escola, mediante ações integradas e complementares entre si”.

Cabe pensar, neste ponto, o que vem sendo entendido, na escola regular, como forma de

garantir a permanência: programas de merenda escolar e de livros didáticos — na maioria dos

casos ainda não acessíveis aos jovens e adultos. Como o texto se refere, diretamente, a

trabalhador, depreende-se, também, que a intenção do legislador tenha sido a de, na

perspectiva de fazer cumprir o direito, prever vantagens para empresas, por meio de

programas que favoreçam a redução da jornada de trabalho e acesso a classes mantidas nos

próprios locais de trabalho, garantindo também a permanência. Essas condições estavam

previstas no primeiro projeto da Constituição, no capítulo referente ao Trabalho, e foram

65 Na primeira alusão a exames, a lei não os adjetiva, o que vai fazer no caput do Art. 38, quando os qualifica como exames supletivos. A discussão sobre esse sentido foi travada em plenária de fóruns temáticos (de EJA, de Financiamento, de Ensino Médio e de Formação de Professores) no Rio de Janeiro, em março 2000, com o Conselheiro Jamil Cury, da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, contribuindo para a interpretação que assumiu no Parecer CEB/CNE 11 de 5 de maio de 2000 (p. 22), qual seja: “No art. 38, a concordância do adjetivo supletivos, do ponto de vista gramatical, é ambígua, isto é, pode referir-se tanto a ambos os substantivos - cursos e exames - como pode estar referido somente ao último, ou seja, somente a exames. Se a redação, do ponto de vista gramatical, dá margem à interpretação ambivalente, o novo conceito da EJA sob o novo ordenamento jurídico, considerando-se o conjunto e contexto da lei, reserva o adjetivo somente para os exames.”

Page 197: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

195

umas das primeiras idéias derrotadas. Ações integradas entre MEC e Ministério do Trabalho e

Emprego – MTE, de toda forma, vêm acontecendo, embora com vínculos frágeis e esparsos.

Um dos instrumentos mais fortes que veio sendo utilizado pelo Ministério do Trabalho

– MTb (atual MTE), foi o Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT. Como um Fundo voltado

à formação profissional, esteve sempre sob a gestão desse Ministério, regulado a partir de um

comitê tripartite, formado pelo próprio Ministério, centrais sindicais representantes dos

trabalhadores e dos empresários. Essa estrutura reproduzia-se no nível dos estados para a

definição das políticas localizadas, e por meio dessas comissões é que se podia concorrer a

recursos para projetos. A despeito dos inúmeros problemas e das críticas que essa organização

do Fundo recebeu quanto às práticas e às exigências burocráticas criadas, e da dificuldade

para, por exemplo, municípios acessarem recursos, um aspecto teve bastante relevância na

inflexão que a política do Fundo tomou: o reconhecimento de que pouco adianta investir na

formação do trabalhador, se esse trabalhador não detém um mínimo de escolaridade. Esse

reconhecimento fez com que o MTb, por meio do FAT, por um certo tempo, investisse mais

do que o próprio MEC em educação básica de trabalhadores, permanecendo, inclusive, como

organismo responsável pela política de educação de jovens e adultos, então inexistente na

esfera do MEC.

Na leitura do Art. 38 explicita-se que cursos e exames supletivos serão mantidos pelos

sistemas de ensino, e que nesses cursos e exames estará compreendida “a base nacional

comum do currículo, habilitando ao prosseguimento de estudos em caráter regular”, mais uma

vez garante-se o direito, por assegurar a igualdade e a circularidade entre cursos, organizados

pela modalidade EJA, ou organizados pelo ensino regular; quanto por assegurar que a

aprovação em exames, mesmo sem os cursos, é garantia de continuidade. Em ambos os casos,

a continuidade tanto se pode dar pela forma regular quanto pela modalidade EJA, o que

mantém e expressa uma conquista já presente na Lei nº. 5692/71. Nos parágrafos e incisos

deste Artigo, ainda se legisla sobre as idades para esses exames, o que oferece a mão da lei

para conter ímpetos de substituir processos educacionais escolares, por provas de certificação,

que na prática, faltando a fiscalização do Estado, acabam por acontecer, por configurarem

caminhos supostamente mais rápidos de conclusão. “Os exames, sempre oferecidos por

instituição credenciada, são uma decorrência de um direito e não a finalidade dos cursos da

EJA”. (BRASIL, 2000, p. 22).

Devo destacar que um importante aspecto, nesses dois artigos, que possibilitam pensar

a perspectiva democrática, está posto no parágrafo 1º, quando se considera a diversidade dos

Page 198: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

196

sujeitos. O reconhecimento dessa diversidade e as singularidades que comportam tem a ver

com democracia hegemônica e suas formas de representação e a tensão que se estabelece com

a participação: “a dificuldade de representar agendas e identidades específicas”, no dizer de

Santos (2002, p. 50), que ainda admite que:

[...] essas questões se colocam de modo mais agudo naqueles países nos quais existe maior diversidade étnica; entre aqueles grupos que têm maior dificuldade para ter seus direitos reconhecidos (BENHABIB, 1996; YOUNG, 2000); nos países nos quais a questão da diversidade de interesses se choca com o particularismo de elites econômicas (BORÓN, 1994).

Destaca, ainda, que essa pluralidade humana, reconhecida em uma concepção não-

hegemônica de democracia é justamente a ênfase para o que chama de uma nova gramática

social e cultural, porque essa democracia não depende primeiro das determinações e da

engenharia institucional para acontecer, mas exatamente o inverso: é a democracia uma forma

sociohistórica, uma forma de aperfeiçoamento da convivência humana, que implica ruptura

com tradições estabelecidas, tentando instituir novas determinações, novas normas e novas

leis. (SANTOS, 2002, p. 50-51).

Se a perspectiva do direito já viesse sendo cumprida, desde 1988, talvez os dados do

Censo 2000 revelassem mudanças concretas quanto à escolarização da população. Treze anos

poderiam representar alguma diferenciação nos projetos políticos que o país tem assumido

pelo voto.

Nesse amplo mosaico que a EJA vai desenhando, em iniciativas dispersas e

desagregadas, e pelo modo como o governo federal, principalmente o MEC, a compreendeu,

configura-se claramente a desresponsabilização política pela EJA, sistematicamente assumida

como ação social solidária, ou deixando-a em larga escala a cargo do Ministério do Trabalho,

que a executou com verbas do Fundo de Amparo ao Trabalhador - FAT, especialmente, a

formação geral do trabalhador, desde a alfabetização, como tarefa precedente à formação

profissional. Dados de 1998, apresentados em plenária, quando da realização do I Encontro

Nacional de EJA – ENEJA, no Rio de Janeiro, espantaram os delegados presentes. Enquanto a

Secretária de Ensino Fundamental do MEC, Profª. Iara Glória Areias Prado afirmava que não

havia demanda para a EJA, pois dos 35 milhões de reais de recursos destinados a projetos de

formação continuada muito pouco havia sido gasto, o representante do Ministério do

Trabalho, Nassim Mehedef, dizia que os gastos com recursos do FAT nessa modalidade

alcançavam dois bilhões de reais, pela concepção que o MTb tinha de que a baixa

escolaridade do trabalhador — e o analfabetismo aí incluído — eram fatores determinantes na

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197

nova configuração do mundo do trabalho. Fazia-se o esforço de justificar as questões

estruturais que o modelo econômico impunha, uma vez mais responsabilizando a falta de

escolaridade dos trabalhadores como determinante do desemprego.

55..66..44 RReeaaffiirrmmaannddoo oo ddiirreeiittoo:: PPaarreecceerr CCNNEE nnºº.. 1111//22000000 ee nnoovvaass ccoonnttrraaddiiççõõeess

Recentemente, a necessidade de o Conselho Nacional de Educação – CNE normalizar

as Diretrizes Curriculares Nacionais para a EJA, realizada após um processo de ampla

discussão viabilizada por variados instrumentos, dentre eles o das audiências públicas, como

instrumento da construção democrática, permitiu ao Conselheiro Jamil Cury entabular um

diálogo plural com os atores da EJA pelo país e, ouvindo-os, sensivelmente, incorporar e

apreender sentidos e significados que vêm constituindo as práticas nos mais diversos espaços

de atuação.

Invoco Cury, quando, no texto do Parecer CNE nº. 11/2000, afirma:

No Brasil, país que ainda se ressente de uma formação escravocrata e hierárquica, a EJA foi vista como uma compensação e não como um direito. Esta tradição foi alterada em nossos códigos legais, na medida em que a EJA, tornando-se direito, desloca a idéia de compensação substituindo-a pelas de reparação e eqüidade. Mas ainda resta muito caminho pela frente a fim de que a EJA se efetive como uma educação permanente a serviço do pleno desenvolvimento do educando. (BRASIL, 2000, p. 46).

O Conselheiro, na defesa firme que faz em todo o texto do direito à educação de

jovens e adultos, entende que, para corrigir os erros históricos promotores de exclusão, e

tendo no horizonte os acordos firmados que assumem a perspectiva da educação como direito

humano fundamental, explicita para a EJA três funções: a reparadora (que devolve a

escolarização não conseguida quando criança); a equalizadora (que cuida de pensar

politicamente a necessidade de oferta maior para quem é mais desigual do ponto de vista da

escolarização); a qualificadora (entendida esta como o verdadeiro sentido da EJA, por

possibilitar o aprender por toda a vida, em processos de educação continuada).

No entanto, essa formulação é feita em um contexto em que se assumia uma

compreensão reduzida do que cabia à educação de jovens e adultos, revelada pela política de

quase exclusividade de atendimento à criança no ensino fundamental, tanto em documentos,

planos, ações e declarações de autoridades em momentos de importante definição, como pelas

alternativas compensatórias sob forma de ação social que se prorrogavam pelos dois mandatos

presidenciais de Fernando Henrique Cardoso. Aos não-alfabetizados e aos subescolarizados

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198

restavam os programas compensatórios de assistência social, sem a responsabilidade do

referido Ministério. As ofertas “públicas” que surgiram a partir daí vieram pelo viés da

assistência social, obra de voluntários, uma vez mais alívio para a pobreza. A visão estreita

que esta concepção encerra deixa de incorporar toda a construção até então feita, em que a

educação de jovens e adultos é vista como um processo de educação continuada,

indispensável para acompanhar a velocidade e a contemporaneidade do desenvolvimento das

ciências, técnicas, tecnologia, das artes, expressões, linguagens, culturas, enfim, que o mundo

— especialmente a partir do fenômeno da globalização — vem conferindo à história. Na

contramão, as políticas governamentais promoveram a exclusão, deixando de garantir o

direito à “cidadania inteira”66 a tão largo contingente populacional.

Essa política quase excludente do atendimento educacional a outras faixas etárias —

aliada às que favoreceram o empobrecimento das populações e mesmo a miserabilização de

milhões —, agravou-se, quando se analisa a realidade da educação. Somando-a aos resultados

da escola brasileira que cresce em atendimento, inegavelmente, mas não em sua qualidade,

passa-se a produzir, com intensidade, um expressivo contingente de jovens que demandam

uma outra modalidade de educação, então só de adultos. Isto ampliou, não apenas no Brasil,

mas em diversos países, afetados pelas mesmas condições estruturais e conjunturais, o

conceito de educação de adultos de antes, para o de jovens e adultos, pelo reconhecimento

desses novos sujeitos como demandatários dessa modalidade de atendimento. Aponto, nesse

momento, um aspecto extremamente relevante, o surgimento do segmento jovem na

formulação do campo educacional que abrange. Inicialmente, a área limitava-se aos adultos,

como se os jovens já não estivessem, desde sempre, incluídos nessa modalidade de educação.

Os conceitos de juventude e de vida adulta, porque históricos, mudam, marcando e

dissociando segmentos ocultados na área de EJA (ABRAMO, 1997; SPOSITO, 1997;

PERALVA, 1997; MELUCCI, 1997; GOMES, 1997). E o que pode significar a presença

ampliada do jovem em projetos dessa natureza, no sentido de formular novas enunciações

conceituais?

Reconhecer a educação como um direito para todos os segmentos populacionais,

independente de classe, raça, gênero, idade entre outros, ainda faz parte da luta pela

construção de uma sociedade cidadã e plural. Contudo, inserir a EJA efetivamente no

conjunto das políticas públicas de direito ainda é um desafio para os diferentes governos e 66 Estou usando a expressão “cidadania inteira” em oposição à idéia de “meio cidadão”, forma como venho denominando o direito político do voto, nos termos em que consta da Constituição: o analfabeto vota, mas não pode ser votado.

Page 201: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

199

para a sociedade como um todo. Como alerta Beisiegel (1997, p. 31), “durante muito tempo

ainda, as miseráveis condições de vida de amplos setores da população e as condições de

funcionamento do próprio sistema no país continuarão a produzir elevados contingentes de

jovens analfabetos. O sistema escolar não pode ignorá-los”.

Resumindo, o MEC assumiu durante anos o não-cumprimento do dever pelo Estado,

sem que até hoje fosse incomodado por ferir um preceito constitucional, posto como direito

público subjetivo, como assumiu também a concepção de que a EJA é tão somente a

escolarização, abandonando por completo a função social da qualificação (cf. Parecer CNE nº.

11/2000), como direito a aprender por toda a vida, continuadamente. A tarefa de zelar pela

Constituição, outorgada ao Ministério Público, ainda é frágil, especialmente em relação a

determinada sorte de direitos. Na sociedade de consumo, em que a cidadania se confunde com

o direito a ser consumidor, quase basta que se garanta a satisfação do cliente, motivo pelo

qual se mobilizam as forças sociais.

No balanço de Dacar, em abril de 200067, verificando o atingimento das metas de

Jomtien, todos os demais países, inclusive os desenvolvidos, chegam ao final da década em

situação educacional mais grave do que exibiam antes de assumir os compromissos da

Declaração. Constatado o descaso com a educação, fruto das políticas neoliberais que

grassaram na década de 1990, redefiniram-se metas e dilataram-se os acordos para os

próximos 15 anos, na tentativa de recuperar o tempo perdido.

Em janeiro de 2001, o Plano Nacional de Educação - PNE, homologado com vetos

presidenciais aos recursos, nasceu frágil, sem deixar ver em curto prazo saídas possíveis para

executar efetivamente um projeto emancipatório para a educação brasileira. No caso da EJA,

as metas e as diretrizes precisavam de sintonia e de vontade política para que se tornassem

realidade. Mais uma vez a educação de jovens e adultos sofre vetos, comprometendo a

construção social do direito que timidamente resiste.

67 El Foro tenía como propósito presentar los resultados globales de la evaluación de la década de "Educación para Todos" (EPT) -lanzada en Jomtien, Tailandia, en marzo de 1990 — y aprobar un nuevo Marco de Acción, fundamentalmente para continuar la tarea. Para continuarla, pues —como ya era evidente desde mitad de la década — no se alcanzaron las seis metas que se fijaron en Jomtien para el año 2000. El Marco de Acción aprobado en Dakar esencialmente “reafirma” la visión y las metas acordadas en Jomtien en 1990 y corre ahora el plazo 15 años más, hasta el año 2015. ¿Por qué 15? Nadie puede dar una respuesta científica o un cálculo razonado. (In: TORRES, Rosa Maria. Que pasó en el Fórum de Dakar? abr. 2000).

Page 202: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

200

55..66..55 PPoollííttiiccaass ppúúbblliiccaass ddee EEJJAA —— rreeaacceennddeennddoo aa eessppeerraannççaa

Quando se aprofunda a compreensão e se parte para verificar a questão do

analfabetismo jovem e adulto, a situação é ainda mais grave e sobre ela há muito a refletir. No

intervalo das duas Conferências de Educação para Todos, foi firmada, em julho de 1997, em

Hamburgo, na Alemanha, a Declaração pela Educação de Adultos, reiterando a importância

dessa modalidade para as sociedades contemporâneas, especialmente resgatando o verdadeiro

sentido da EJA, o da educação continuada, pelo direito de aprender por toda a vida68.

Não apenas o Brasil se destacou negativamente no plano educacional nesta última

década, mas todos os países do mundo, reunidos em Dacar, em abril de 2000, confirmaram

que as metas firmadas em Jomtien, em 1990, não foram alcançadas. O que coube, então, à

Conferência? Reafirmar os compromissos, tendo agora 2015 como horizonte:

[...] é inaceitável que, no ano 2000, mais de 113 milhões de crianças continuem sem acesso ao ensino primário, que 880 milhões de adultos sejam analfabetos, [...] Sem o progresso acelerado para uma Educação para Todos, as metas nacionais e internacionais acordadas para a redução da pobreza não serão alcançadas e serão ampliadas as desigualdades entre nações e dentro das sociedades.

O Balanço Intermediário da V Conferência Internacional de Educação de Adultos, a

CONFINTEA + 6, em setembro 2003 em Bangcoc, Tailândia, também reafirmou o quanto

estamos longe dos acordos estabelecidos em Hamburgo69 e faz novo “Chamado à Ação e à

Responsabilização” aos Estados Membros, às agências da ONU, às organizações não-

68 12. O reconhecimento do “Direito à Educação” e do “Direito a Aprender por Toda a Vida” é, mais do que nunca, uma necessidade: é o direito de ler e escrever; de questionar e de analisar; de ter acesso a recursos e de desenvolver e praticar habilidades e competências individuais e coletivas. (DECLARAÇÃO DE HAMBURGO, 1997, p. 93). 69 Nós, participantes do Balanço Intermediário da V Conferência Internacional de Educação de Adultos (V CONFINTEA) chegamos à conclusão de que, não obstante os compromissos assumidos em 1997 com a Declaração de Hamburgo e A Agenda para o Futuro, a educação e aprendizagem de adultos não receberam a atenção que merecem nas principais reformas educacionais e nas recentes iniciativas internacionais para eliminar a pobreza, alcançar a eqüidade de gênero, prover a educação para todos e fomentar o desenvolvimento sustentável. Nosso Balanço Intermediário da situação mundial da educação e aprendizagem de adultos – conduzida de forma temática, global, regional, nacional e local, pelos governos, pelas organizações não-governamentais e da sociedade civil, pelas redes engajadas, pelos movimentos sociais e por outros parceiros – tem revelado, efetivamente, uma regressão inquietante neste campo. Temos constatado um declínio no financiamento público para a educação e aprendizagem de adultos, mesmo considerando que a meta mínima de alfabetismo estabelecida no Marco de Ação de Dakar é alcançável – exigindo apenas US$ 2,8 bilhões por ano. Ademais, o apoio dado tanto pelas agências internacionais quanto por governos nacionais tem se concentrado na educação básica formal para crianças, em detrimento e descuido para com a educação e aprendizagem de adultos. (CHAMADA À AÇÃO E À RESPONSABILIZAÇÃO. Declaração aprovada no Balanço Intermediário da V Conferência Internacional de Educação de Adultos, realizada em Bangcoc, Tailândia, de 8 a 11 de setembro de 2003).

Page 203: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

201

governamentais e à sociedade civil, assim como parceiros sociais e privados para organizar a

VI Conferência Internacional de Educação de Adultos em 2009 para, em processo de

monitoramento e avaliação coletiva, acompanhar a situação de aprendizagem e da educação

de adultos no mundo.

Dados brasileiros mostram mudanças de índices, embora o contingente sem

escolaridade de ensino fundamental, obrigatório e direito de todos, por preceito

constitucional, esteja longe de ser atingido. Uma nova Década da Alfabetização se instaura e

reacendem-se os fogos com a prioridade do governo federal instalado em 2003, posta na

alfabetização de jovens e adultos, nunca dantes assumida como tal.

Apesar disso, da prioridade de governo, cujas metas são desafiadoras, os recursos são

ainda restritos, embora o compromisso ético com os desfavorecidos se apresente como

irrenunciável. Entre educadores, as dúvidas surgem de toda parte, os desejos foram frustrados,

porque o direito ainda não está posto no horizonte das políticas públicas. Alfabetizar, sem a

garantia da escolarização é insuficiente para alterar o quadro da desigualdade e da exclusão do

direito à educação. Como sujeitos de um direito interditado socialmente, jovens e adultos,

quando imersos na atividade do trabalho, são exigidos, contraditoriamente, da competência

para aquilo que lhes foi interditado: saber ler e escrever. Se não são trabalhadores, o não saber

ler e escrever acaba sendo a causa eficiente que lhes faz passar de vítimas a culpados.

No atual momento político, depois de passar um ano no embate da prioridade para a

alfabetização de adultos, defendida pelo MEC x continuidade da EJA, bandeira antiga dos

educadores e dos Fóruns, o governo brasileiro reconhece o movimento histórico nacional e

internacional de luta em defesa do direito à educação para todos, assumindo o desafio de

organizar, como política pública, especialmente, a área de EJA, não se restringindo mais ao

campo da alfabetização. A partir de 2004 investe no alargamento político da EJA, entendendo

que um programa de alfabetização, sem garantir o direito à continuidade, é pouco para fazer

justiça social a tantos excluídos do direito à educação. Assim, estabeleceu que a continuidade

de estudos é meta inalienável da EJA, que também se põe, como desafio, a garantia do acesso

ao ensino médio, por via da mesma modalidade. Esse ponto de chegada, no entanto, não é

outorga, nem beneplácito das autoridades e dos dirigentes. É fruto da luta social organizada,

da qual os Fóruns de EJA vêm assumindo estreita responsabilidade. A EJA, com o sentido de

aprender por toda a vida, em múltiplos espaços sociais, responde às exigências do mundo

contemporâneo, para além da escola. Como modalidade de ensino, descortina um modo de

Page 204: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

202

fazer educação diferente do regular, que começa na alfabetização, mas não pára aí, porque o

direito remete, pelo menos, ao nível do ensino fundamental.

Desigualdade e exclusão de toda sorte na sociedade brasileira e a perspectiva de

instituição de direitos definem, em verdade, a realidade da EJA, exigindo que o foco em

processos educativos esteja, pois, na diversidade de sujeitos.

É para eles que os projetos de educação de jovens e adultos precisam voltar-se, para

além da escolarização, embora se saiba o quanto ainda devemos avançar, de modo a garantir o

direito à educação negado a tantos jovens e a tantos adultos. As distâncias entre os sujeitos

que têm acesso aos bens culturais, aos avanços tecnológicos e os que não têm é

incomensurável, e cada dia mais se produzem apartações de toda ordem, desafiando a

possibilidade de compreensão, porque imersas numa extensa e complexa rede, à espera de

desvendamentos. Implica traduzir e apreender essa complexidade, não apenas ditada pelas

tecnologias da informação e da comunicação, mas também pelos bens e valores que

conformam a era em que vivemos: câmeras digitais de memórias que desafiam as nossas;

microcomputadores de todos os tamanhos e tipos, que se levam na palma da mão; celulares de

múltiplas funções aliados e confrontados com os livros — páginas que encerram códigos de

talvez mais difícil decifração, associados a crises éticas, violência, ausência de cidadania,

tênue vivência democrática.

Como política pública, pensar a educação nessa modalidade implica não apenas tomar

o sistema educativo formal nas mãos, mas assumir o concurso da sociedade em todas as

iniciativas que vem fazendo, para manter viva a chama do direito ainda não feito prática para

todos. Implica, também, assumir que a sociedade educa em todas as práticas que realiza, que

as cidades educam, e que projetos de nação e políticas de governo têm um vigoroso papel

pedagógico, se intencionalmente dispostos a transformar a realidade, incluindo a idéia de que:

[...] la educación y el aprendizaje de adultos conforman una clave indispensable para liberar las fuerzas creativas de las personas, los movimientos sociales y las naciones. La paz, la justicia, la autoconfianza, el desarrollo económico, la cohesión social y la solidaridad siguen siendo metas y obligaciones indispensables que habrá que seguir persiguiendo y reforzando en y a través de la educación y el aprendizaje de adultos. (CONFINTEA V Mid Term, 2003, p. 22)70.

Educar jovens e adultos, em última instância, não se restringe a tratar de conteúdos

intelectuais, mas implica lidar com valores, com formas de respeitar e reconhecer as 70 In: La renovación del compromiso con la educación y el aprendizaje de adultos. Informe en síntesis sobre el Balance Intermedio, CONFINTEA V, Bangkok, Tailandia, 6–11 de septiembre 2003.

Page 205: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

203

diferenças e os iguais. E isto se faz desde o lugar que passam a ocupar nas políticas públicas,

como sujeitos de direitos. Nenhuma aprendizagem, portanto, pode-se fazer destituída do

sentido ético, humano e solidário que justifica a condição de seres humanizados, providos de

inteligência, senhores de direitos inalienáveis.

55..66..66 RReeiinnvveennttaannddoo aa eemmaanncciippaaççããoo ssoocciiaall:: ooss FFóórruunnss ddee EEJJAA ee oo ddiirreeiittoo

Alternativas cidadãs, no entanto, vêm ganhando corpo e legitimidade no cenário

público, talvez inscrevendo outras razões e lógicas que passam a tensionar os poderes, porque,

coletivamente, fundamentam e fortalecem pequenos e indispensáveis atores sociais, em cena,

que ocupam cada vez mais o lugar central dos governos federal e estaduais.

Dessa forma, a sociedade civil ganha um papel extraordinário na consolidação de

direitos, particularmente os relacionados à EJA. A despeito do reconhecimento dessa

realidade, constatam-se avanços significativos no campo das ordenações jurídicas,

legislações, acordos, ampliação do acesso e o reconhecimento de novas práticas em que o

sujeito ganha centralidade nos processos educacionais. Assim, a formulação e execução de

novas políticas públicas acompanham um movimento da sociedade organizada, não como

espaço de outorga do Estado, mas como movimento de resistência, levando à incorporação de

direitos e, conseqüentemente, à perspectiva de inclusão de uma diversidade de sujeitos. Tal

movimento ganha expressão, por meio da construção de uma agenda pela EJA, que vem

sendo sustentada pela mobilização de amplos setores da sociedade organizada, congregando

movimentos sociais e sindicais, organizações não-governamentais, entidades de pesquisa,

universidades e setores técnicos.

Em movimento, a sociedade organizada, representada por articulações informais em

sua maioria, os Fóruns de EJA, vem resistindo às políticas e suas enunciações, propondo

ações e práticas claramente antagônicas e de compreensão ampliada em relação ao lugar que a

EJA deve ocupar oficialmente. Além desses, os atores diretamente envolvidos com as ações

na ponta dos processos — professores e educadores em geral — são, em última instância, os

responsáveis por esses “modos de fazer”, as práticas, que no cotidiano fundam e refundam as

verdadeiras expressões do que é a EJA, nesse tempo histórico que desejo compreender. A

“reinvenção da emancipação social”, no dizer de Santos (2002, p. 22-23) não pode esquecer

que:

[...] esse movimento é baseado em iniciativas locais destinadas a mobilizar lutas locais, mesmo que para resistir a poderes translocais, nacionais ou

Page 206: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

204

globais. [...] pode fazer esquecer que a resistência à opressão é uma tarefa quotidiana, protagonizada por gente anônima, fora da atenção e que sem essa resistência o movimento democrático transnacional não é auto-sustentável.

Os estudos de Gohn (2002, p. 251) me levam a compreender o Fórum como um típico

movimento social de meados dos anos 1990, tais como conselhos, articulações etc.,

caracterizados por uma “ação sociopolítica construída por atores sociais coletivos

pertencentes a diferentes classes e camadas sociais, articuladas em certos cenários da

conjuntura econômica e política de um país, criando um campo político de força social na

sociedade”. Gohn (2002, p. 252) ainda afirma: “trata-se de coletivos que no processo de ação

sociopolítica desenvolvem uma identidade de forma que se apresentam como atores

coletivos”.

O Fórum EJA/RJ, estudado por Dantas (2005), tem-se configurado como um espaço

em que diversos atores sociais, de diferentes concepções, identificam-se em torno da

problemática das políticas de EJA no país e unem forças e criam estratégias, encaixando-se na

caracterização proposta. Para Certeau (1994, p. 99) a criação de estratégias dá-se pelo

controle de relações de poder a partir do momento em que o “sujeito de querer e poder” pode

afastar-se das situações conflitantes do cotidiano, conferindo uma visão ampliada sobre os

“alvos”. Pela estratégia é possível dominar elementos que permitem controlar uma relação ou

adversário e constituir um novo poder.

Os Fóruns de EJA têm resistido, como uma dessas alternativas, aos desabamentos

constantes que obstruem os caminhos em construção na EJA, sedimentando, com a própria

matéria que desaba, novas fundações. As ações afirmativas que vêm propondo reafirmam

alguns direitos sociais diluídos e valores antes esgarçados, como a solidariedade, definem e

supõem novas formas de participação cidadã, no espaço das políticas públicas municipais.

Nesse espaço, a constituição do direito ao ensino fundamental para jovens e adultos vem-se

fazendo lentamente, mas institucionalizando, como dever municipal, como se espera da

proteção que um poder público deva oferecer à cidadania.

Com essas preocupações, iniciou-se no Estado do Rio de Janeiro, em junho de 1996,

quando da discussão nacional preparatória para a V Conferência Internacional de Educação de

Adultos – CONFINTEA, uma estratégia de incorporação da EJA aos direitos expressos em

políticas públicas, pautada na articulação informal de entidades públicas, não-governamentais

e educadores em geral, conhecida como Fórum de Educação de Jovens e Adultos. Este, o

primeiro instalado, seguindo-se a ele o Fórum Permanente de Educação Infantil. Mais adiante,

Page 207: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

205

foram criados, também no Rio de Janeiro, os Fóruns de Educação Especial, de Ensino Médio

e de Financiamento da Educação, todos de periodicidade mensal. No correr do tempo, apenas

o de EJA e o de Educação Infantil conseguiram se manter íntegros, sem rupturas de qualquer

espécie.

Por articulação informal, deve-se entender que os Fóruns não têm “dono”, não são

propriedade de nenhuma instituição, mas resultam dos esforços de várias pessoas/entidades

que acreditam na idéia e na possibilidade de gestão compartilhada e cooperativa para tomar

decisões e propor alternativas. Significa dizer que o poder circula, não está centralizado, não é

hierárquico. Além disso, por não exigir representação de entidades, seus participantes são

autônomos nas deliberações que tomam, independente das posições e cargos que ocupam, o

que implica, necessariamente, uma negociação constante dos “desejos” acordados nos Fóruns

com os limites expressos pelos poderes constituídos em todos os níveis. Por meio deles, foi

possível fortalecer e consolidar uma rede de saberes de baixa competitividade e alta

cooperatividade, permitindo que todos assumam lugares iguais nas negociações que são ali

estabelecidas. Experimenta-se a democracia, reinventando-a.

Tal estratégia, certamente, contribuiu para a desconstrução de posturas e atitudes

centralizadoras, adquiridas ao longo de muitos anos em nossa sociedade, possibilitando o

estabelecimento de relações paritárias e solidárias, fatores decisivos para um processo de

democratização da educação nas esferas locais, como preconiza a Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional (Lei nº. 9394, de 20/12/1996).

Questões como essas, trazidas à tona na trajetória dos Fóruns, conferem a eles o

caráter de vasto campo de investigação, sobretudo pelo desconhecimento que ainda se revela

acerca das instâncias locais de ação política e de administração públicas.

O crescimento do Fórum EJA/RJ ocorreu na mesma proporção em que passou a

abordar, progressivamente, temas variados, abrangentes e afetos às questões prementes do

cotidiano dos educadores e das redes públicas, funcionando, quase sempre, como espaço

privilegiado de formação. Guarda, ainda, como característica marcante, o fato de contribuir

para a ampliação dos olhares voltados para a educação e para a interlocução de diferentes

posições políticas, sem que isto signifique adesão a uma específica. Por ser aberto a todos, aos

poucos, a participação de secretarias municipais de educação e de outros órgãos de governo

tornou-se tão significativa quanto a de educadores independentes, de instituições privadas e de

organizações não-governamentais, de universidades, de entidades filantrópicas e de

movimentos sociais.

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206

A experiência fluminense deu frutos em muitos outros Estados, com a colaboração de

pessoas do Rio de Janeiro, e depois de outras pessoas dos fóruns que se iam formando, para

iniciar atividades semelhantes. Os Fóruns de EJA, como movimento social, caracterizam-se

pela diversidade na forma como vêm se constituindo e pela capacidade de mobilização com

que se têm instalado, alcançando, atualmente, quase todo o território nacional. Em 2005, são

26 os Fóruns Estaduais presentes e 34 Fóruns regionais e apresentam a seguinte configuração

nos estados e Distrito Federal: Região Norte — Rondônia (RO) e Regional RO (Ji-Paraná),

Roraima (RR), Amazonas (AM), Tocantins (TO), Pará (PA), Acre (AC); Região Sul — Rio

Grande do Sul (RS), Fórum RS e Fóruns Regionais (Serra, Litoral, Fronteira, Santa Cruz,

Central, Pelotas, Noroeste, Porto Alegre/Grande Porto Alegre), Santa Catarina (SC) e Fóruns

Regionais (Grande Florianópolis, Concórdia e Criciúma) Paraná (PR); Região Sudeste —

Espírito Santo (ES), Minas Gerais (MG) e Fóruns Regionais de MG (Vale das Vertentes,

Norte, Sudeste, Leste, Centro-Oeste, Inconfidentes e Zona da Mata), Rio de Janeiro (RJ), São

Paulo (SP) e Fóruns Regionais SP (Nordeste e Oeste); Região Centro-Oeste — Mato Grosso

(MT) e Fórum Regional Norte do Mato Grosso; Mato Grosso do Sul (MS), Distrito Federal

(DF), Goiás (GO); Região Nordeste — Bahia (BA), Fórum Regional BA (Extremo Sul);

Maranhão (MA); Piauí (PI), Alagoas (AL), Sergipe (SE); Rio Grande do Norte (RN), Paraíba

(PB), Pernambuco (PE) e Fóruns Regionais (Metropolitano, Litoral Sul, Mata Sul, Mata

Centro, Vale do Capibaribe, Agreste Meridional, Sertão do Moxotó-Ipanema, Submédio São

Francisco, Sertão do Araripe, Sertão Central e Vale do São Francisco); Ceará (CE).

Com modelos diferenciados, modos de organização e de operação distintos, exigem

estudos e conhecimento de suas formas de gestão; de fortalecimento (como constituidores de

núcleos de poder); de resistência às propostas homogeneizantes que encontram acolhida em

governos de traço autoritário. Organizados como articulação informal, têm encontrado modos

de gestão e apontado perspectivas de resistência que vêm sendo capazes de interferir, em

muitos casos, nas políticas locais e nacionais, no sentido de que, cada vez mais, possam ser

assumidas como políticas públicas, dada a relevância da participação e da consciência do

lugar político dos educadores, em defesa do direito à educação.

A idéia de realizar, anualmente, encontros nacionais, ampliando a agenda pública da

EJA, surgiu no evento ocorrido no Paraná, após um ano de Hamburgo, em 1998, por

convocação da Oficina Regional da UNESCO – OREALC/Chile, para um balanço do

encaminhamento das ações firmadas. A experiência bem-sucedida animou os participantes a

manterem um vínculo anual que, desde aí, não mais se interrompeu. A primeira edição

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207

realizou-se em 1999 no Rio de Janeiro, já com o expressivo apoio do Fórum RJ às entidades

mobilizadas para tal fim — SESI/Departamento Nacional, Ministério do Trabalho, Programa

de Alfabetização Solidária, CONSED, UNDIME entre outros, que tentavam fazer o MEC

assumir, de forma diferente da que vinha assumindo, a EJA; em 2000, em Campina Grande,

na Paraíba, as secretarias municipais de educação local e de João Pessoa, principalmente, com

o apoio da UFPB e do Fórum PB, interiorizaram o II ENEJA, enraizando-o no Nordeste, com

toda a complexidade da elevada demanda; em 2001, o Fórum SP, juntando-se à Prefeitura de

São Paulo então eleita, do Partido dos Trabalhadores, realizou o III ENEJA, desenhando um

modelo beneficiador de um largo conjunto de professores da rede pública da capital; já nesse

momento, 11 Fóruns eram registrados pela plenária de Fóruns, constitutiva do evento; em

2002, foi a vez do Fórum Mineiro assumir a coordenação local, em Belo Horizonte, para

acolher os participantes de todos os estados, que vinham integrando delegações de mais

Fóruns já formados, reafirmando a disposição de continuar em marcha o movimento nacional

organizado dos Fóruns EJA; em 2003, em Cuiabá, Mato Grosso, a sexta edição teve lugar,

demonstrando o vigor com que o movimento avançava; em 2004, o Fórum RS, em Porto

Alegre, acolheu, no âmbito da tradição que vem sendo construída nos últimos anos de que

“outro mundo/outra educação é possível”, o VI ENEJA e, em 2005, em Brasília, o VII

ENEJA marcou com sua mobilização o território do poder central, aprofundando e ampliando

as perspectivas de organização nacional, sob o tema da Diversidade na EJA: papel do Estado

e dos movimentos sociais nas políticas públicas.

O Encontro Nacional de Educação de Jovens e Adultos - ENEJA tem representado um

esforço de articulação dos Fóruns com múltiplos parceiros de nível nacional e internacional

— UNESCO, MEC, MTE e entidades a eles correlatas, como CONSED, UNDIME, e ainda o

MRA/INCRA, responsável pelo PRONERA – Programa Nacional de Educação na Reforma

Agrária, todos com maior ou menor participação, em função da conjuntura política de cada

ano. Além desses, o Sistema S, entre outros, tem participado ativamente. De caráter

propositivo, nesse evento, delegados indicados segundo critérios de representação por

segmentos nos Fóruns Estaduais e Regionais somam-se aos indicados em menor número,

pelos poderes estaduais, nos estados em que ainda não há Fórum, garantindo a representação

de todos as unidades da federação ao evento.

Uma importante parceria que para os Encontros Nacionais desempenhou papel

fundamental, principalmente quando o poder público da área mantinha-se reticente e afastado

das demandas políticas dos Fóruns, no sentido de questionar as ações que se vinham

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208

desenvolvendo, foi a Rede de Apoio à Ação Alfabetizadora no Brasil – RAAAB. Esta Rede,

originária do Nordeste, em meados dos anos 1980, em prol da alfabetização empreendida por

organizações não-governamentais, cuja expressão máxima foram as Feiras de Alfabetização

(a última em Recife, 1997, em data imediatamente seqüente à da V CONFINTEA), foi

deixando o lugar protagônico da resistência em benefício dos Fóruns, que na prática

conseguiram a adesão e a formação de uma rede muito maior e mais potente, do que o modelo

com o qual a RAAAB se forjara. Embora permaneça associada aos Fóruns e aos ENEJA, com

visibilidade inconteste para muitas questões, inclusive em relação ao Conselho de Educação

de Adultos para a América Latina – CEAAL, em outros casos atua como coadjuvante, o que

de forma alguma tem significado seu desprestígio. Pelo contrário, tem sido fortalecida, desde

que em 1999 sofreu reformulações profundas, abrindo-se para a realidade social da EJA, que

incluía múltiplos atores, para além das ONGs. Pode-se dizer que a RAAAB, que tanto

sustentou a organização nacional dos Fóruns, na atualidade recebe dele a deferência e o

legítimo lugar da tradição de luta dos movimentos sociais — uma espécie de velho sábio com

quem se dialoga e a quem se dedica tempo e escuta atenta.

Os encontros nacionais também têm reservado significativo espaço para a reunião e

troca de experiências dos fazeres dos Fóruns. A plenária dos Fóruns tem possibilitado não

apenas reconhecer as diferentes concepções, metodologias e estratégias de atuação desses

Fóruns, em direção ao sentido democrático da luta pelo direito de todos à educação, mas

também reforçar o conjunto de ações nacionais, mediante a representatividade na Comissão

Nacional de Fóruns de EJA. Esta Comissão, no entanto, tem lidado com muitas dificuldades

para se manter como um novo coletivo, à distância. As inúmeras inserções dos sujeitos ali

representados têm ocupado um tempo ainda não possível de produzir visibilidade e ação

política efetiva na consolidação do sentido desta Comissão.

Os encontros nacionais não trazem apenas o espírito de seminários/congressos, mas se

destacam por serem um espaço político sintonizado com o momento histórico, no sentido de

afirmar e consolidar estratégias, posições e compreensões acerca das políticas públicas

nacionais e dos movimentos internacionais que se fazem na área, com vistas a interferir nessas

políticas, em defesa do direito de todos à educação.

O Brasil tem, certamente, um novo cenário na EJA, e cada vez mais os novos atores

sociais estão se empenhando para que sejam reconhecidos como interlocutores legítimos das

instâncias do poder central — MEC, especialmente, representando a vontade e o

compromisso de educadores e de instituições fazedoras da educação de jovens e adultos, em

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múltiplos espaços do país. A disposição dos Fóruns em assumir compromissos políticos

efetivos — mantendo sobretudo a sua autonomia —, como parceiros, com ânimo suficiente

para mudar as condições em que a EJA vem se realizando no âmbito de ação local, regional e

nacional, adiciona-se à rede de pessoas, afetos e subjetividades postos em relação. Por meio

deles, toma-se consciência de que as práticas cotidianas são capazes de alterar as lógicas do

jogo político, desde que se as organize para além de táticas (CERTEAU, 1994), e sim como

estratégias de resistência e de transformação.

Enfim, os Fóruns tem como uma das grandes missões ampliar a compreensão de EJA,

clareando toda a riqueza que lhe é inerente, abrindo-se para novas possibilidades e

necessidades do fazer educativo. Resgatando Freire (1997, p. 154) “o sujeito que se abre ao

mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como

inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento na história”. A

sustentabilidade dos Fóruns é reflexo dessa abertura e da disposição para a transformação

desse modo de se fazer educação, compreendendo a dimensão solidária e intercultural que

essa prática exige. Poucas experiências com esse caráter têm, ou tiveram, tanta permanência.

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210

66.. PPRROOGGRRAAMMAA DDEE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE JJOOVVEENNSS EE AADDUULLTTOOSS DDAA SSEECCRREETTAARRIIAA DDEE

EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDOO EESSTTAADDOO DDAA BBAAHHIIAA —— DDAASS VVIIVVÊÊNNCCIIAASS ÀÀSS

CCOOMMPPRREEEENNSSÕÕEESS

A discussão do Programa de Educação de Jovens e Adultos da Secretaria de Educação

do Estado da Bahia e das formas como tem sido concebido, encaminhado e assumido pelos

profissionais da rede pública, ocorrerá de modo mais subjetivo, pelo fato de ter participado,

em parte desse processo, como consultora de alguns projetos, apoiando as discussões e

contribuindo na reflexão coletiva empreendida durante toda a proposta metodológica, em

2002 e 2003, revisionando as duas etapas do programa voltado ao ensino fundamental.

Como é de se esperar, portanto, o conhecimento sobre o processo de reformulação do

Programa Aceleração I e II71 — sobre o qual incide meu foco — e a nova proposta a partir daí

gerada, indicam um olhar de dentro, próprio de mergulhadores que, do fundo dos oceanos,

falam da visão singular de um mar, de peixes, de paisagens submarinas, visão esta conhecida

de poucos:

[...] mergulhador, sondo a escura voragem Na ânsia de descobrir, nos mais fundos arcanos Sob o oceano, oceanos; e além, a minha imagem. (Vinícius de Moraes, O Mergulhador).

Do mesmo modo, excepcionalmente, nesse caso, dar-se-á o movimento de

compreensão das concepções do pensar e fazer a EJA, como uma pesquisadora —

mergulhador — rigorosamente implicada com esse pensar, mas parcialmente implicada com o

fazer.

Pode-se indagar se esta mestiçagem não enviesaria o esforço de compreensão, mas

argumento que, na busca da complexidade do objeto, impossível seria ignorar que nesse olhar

cabe a experiência direta, conforme recomenda Larrosa (2001), como modo adequado ao

conhecer. Ademais, não assumiria rejeitar a escolha da rede estadual da Bahia como objeto de

investigação, apenas pelo fato de que com ela estive participando, em momentos diversos,

71 Esta denominação é gerada, não apenas no caso da Bahia, mas de vários estados e municípios, a partir do veto presidencial em 1996 aos recursos do FUNDEF para a educação de jovens e adultos. Cada executor encontrou, como Certeau (1992), táticas para reagirem à exclusão que tal procedimento impôs à oferta educativa de alfabetização e sua continuidade nos sistemas públicos. Essas táticas, de modo geral, nomearam os projetos segundo programas federais com recursos, que subsidiavam ações de correção da distorção idade-série (Aceleração da Aprendizagem, que inspirou a Bahia); ensino regular noturno (tomado pelo ensino noturno regular enunciado no Art. 208 da Constituição Federal: “O dever do estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: [...] VI – oferta de ensino noturno regular, adequado às condições do educando”), entre outras táticas de obtenção de recursos.

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mas descontínuos na intensidade dos calendários letivos. A metodologia, pela qual as políticas

públicas de EJA vêm sendo produzidas nesse estado, tem o mérito de incluir a participação, o

coletivo, a rede de saberes e práticas e as possibilidades de escolha como fundamentos,

desejáveis, todos eles, quando se busca a constituição do direito à educação.

Ainda assim, estive perto da trajetória72 e dos percursos que as equipes baianas vêm

realizando, e das práticas e esforços que distinguem o fazer pedagógico da EJA, nesse estado,

do de muitos outros. Acompanhei, incorporando essa experiência à minha própria trajetória, a

assunção que faziam dos distanciamentos existentes entre as formulações e as práticas; entre

as intenções e as execuções, ou seja, de como criticamente admitiam formas progressistas de

pensar a EJA, que esbarravam em diversos aspectos da realidade que compõem o cenário

complexo em que o fazer se dá. Assim, a compreensão de parte do Programa de EJA da

Bahia (EJA/BA) merecerá, de minha parte, uma atenção mais intensa, pelo fato de ser fruto

não simplesmente do momento formal da escrita, mas de reflexões permanentes, que vêm

acontecendo há alguns anos, e que desembocam, inexoravelmente, nessa pesquisa.

Como se pode observar no quadro-síntese do corpus da pesquisa, para além desse

conhecimento direto, fruto da experiência, fui em busca da participação de equipes —

técnicas, da Secretaria de Educação e de professores nas escolas —, tanto em entrevistas,

quanto em grupos focais, que possibilitaram capturar, para além da minha visada,

pensamentos, concepções e questões várias que não poderiam ser silenciadas sobre todo o

conjunto de ofertas do EJA/BA, que inclui projetos de alfabetização e vários de ensino

fundamental — presenciais e semipresenciais.

O trabalho de campo final, de março de 2005, foi acolhido prazerosamente em todos

os níveis, não apenas, em muitos casos, pelas relações afetivas anteriores já travadas, mas

pelo acolhimento caloroso que os professores baianos dispensam à nossa chegada. Com uma

agenda apertada, em curta viagem por dois estados, tive a grata surpresa de constatar que na

Bahia todas as providências solicitadas foram não apenas tomadas, para que o tempo possível

na cidade fosse aproveitado por mim da melhor forma, mas ampliadas, incluindo veículo,

escolas previamente agendadas e apoio integral de toda a equipe que me acompanhou nas

visitas realizadas, sem reservas, limitações ou tensionamentos comuns em pesquisas. Uma

72 Por trajetória estou compreendendo, como Certeau (1994, p. 98), o “movimento temporal no espaço, isto é, a unidade de uma sucessão diacrônica de pontos percorridos, e não a figura que esses pontos formam num lugar supostamente sincrônico ou acrônico”. [...] Tem-se então um traço no lugar dos atos, uma relíquia no lugar das performances: esta é apenas o seu resto, o sinal de seu apagamento. (CERTEAU, 1994, p. 99).

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relação ética e cúmplice, longamente estabelecida, talvez tenha garantido tantos suportes e

facilidades ao desenvolvimento da pesquisa.

Um grupo focal realizado com a equipe da Secretaria precedeu as visitas às escolas,

quando técnicos e gestores presentes foram pontuando as visões que, do lugar estratégico que

ocupam, conseguem ter de toda a rede, visão multirreferencial, não-linear, vislumbrando

problemas, dificuldades, e sendo capaz de perceber questões, muitas vezes impossíveis de

serem enxergadas, quando se olha o sistema na horizontalidade das percepções, de um mesmo

plano espacial. Olhar de cima, do alto, como alguém que vê o mundo da janela de um avião

deixa antever visadas completamente diversas das que se está habituado a ter, olhando-se no

mesmo plano. Tal como o menino que, deitado no chão contempla as nuvens e imagina

castelos, dragões, animais, enquanto nós, que andamos olhando em frente, ou de “cara para o

chão”, não somos sequer capazes de imaginar o que ele contempla com tanto embevecimento.

Não espanta que uma das cenas mais ricas do filme Sociedade dos Poetas Mortos fosse

justamente o momento em que o professor pede a cada aluno que suba na mesa e olhe para a

classe, para que todos aprendam a considerar novos pontos de vista. Exatamente como esses

jovens alunos, a equipe se esforça para capturar a imagem mais ampla, a da surpresa, a que

não se aprisiona nos modelos clássicos e acríticos em que as equipes centrais, de modo geral,

se escudam para falar de si mesmas, de suas realizações, de seus fazeres, de acertos — e

quase nunca de desacertos, de caminhos ainda não trilhados. Nascimento destaca a

compreensão que faz do papel ambivalente do diretor como gestor e coordenador pedagógico

de um processo que não pode prescindir da tomada de decisão, mas em nome de objetivos e

finalidades educativas que recoloquem a EJA como projeto da escola:

[...] o próprio sistema cria esse impedimento. Às vezes, o gestor fica muito envolvido com questões administrativas, e se perde um pouco, vamos dizer assim, na essência, no objeto de trabalho da escola. Então, é de fundamental importância essa reflexão também com os diretores de escola, retomando o projeto pedagógico de cada escola e a EJA nesse projeto. (Gestora Nascimento).

Outra questão, no entanto, coloca-se de um modo reconhecido como “estrutural”, que

tanto assinala o déficit da formação pedagógica ainda existente, diante do tamanho da rede,

apesar das iniciativas empreendidas, quanto cria o desestímulo para assumir cargos de

coordenação — deixando, com isso, de ser professor regente —, o que implica não receber a

gratificação de regência definida para professores de sala de aula, e evidenciando a lógica

burocrática do poder, que pensa a atuação do professor desarticulada de outras funções da

escola, essenciais para compor um projeto pedagógico e educativo:

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[...] uma questão que eu diria que é estrutural. Tem toda uma intenção, aqui a gente sempre procura, vamos dizer assim, a participação, sempre não pode chamar todo mundo, é por amostragem. Chama diretor, chama coordenador, mas existe, existe um problema estrutural que a gente não pode esquecer. Primeira coisa: a questão da formação pedagógica. Existe um déficit muito grande de formação pedagógica nas escolas. Estou sabendo até que vai ter um concurso agora. Então, esse papel do coordenador que poderia ser muito importante, pra esse processo... é terrível, porque o coordenador [...] o professor, hoje em dia, de uns anos pra cá, ganha, por exemplo, a regência. O coordenador, se ele não for concursado — e ganha um CAT da Comissão Especial de Trabalho —, ele não tem a regência de sala de aula e não ganha aquela, pela regência. Então, não tem incentivo pra que você seja coordenador. (Gestora 2).

Como iríamos encontrar não apenas professores, mas coordenadores e diretores,

caberia saber como se trançam as atuações de cada profissional no sistema, de modo a melhor

entender suas observações, seus comentários, posicionamentos e críticas.

Assim, as questões expressas pelos profissionais da equipe da SEC/BA, como também

pelos gestores que participaram do mesmo grupo focal, e as compreensões dele decorrentes,

vão sendo por mim apropriadas ao longo do texto, no esforço de ir enredando os diferentes

níveis de realidade para, com eles, melhor compor as concepções que dão corpo, na

atualidade, à educação de jovens e adultos, como política pública do estado da Bahia. Do

mesmo modo, valho-me da entrevista realizada isoladamente com uma gestora, esta

inesperada, não prevista, mas acolhida, no momento da possibilidade, com a mesma

disposição de colaboração e de compartilhamento.

66..11 CCOONNSSTTIITTUUIINNTTEESS EE DDEETTEERRMMIINNAANNTTEESS DDAA CCOONNCCEEPPÇÇÃÃOO DDEE EEJJAA EE DDEE AALLFFAABBEETTIIZZAAÇÇÃÃOO

EEXXPPRREESSSSOOSS EEMM DDIISSCCUURRSSOOSS EE EEMM DDOOCCUUMMEENNTTOOSS

As ações na EJA sob orientação do MEC, de 1994 a 2002, como visto, passaram por

um refluxo, pela priorização do ensino fundamental de crianças e adolescentes. Na Bahia,

como em muitos estados e municípios — que mantiveram a educação de jovens e adultos

acontecendo depois de extinta a Fundação Educar, parceira que fomentava o atendimento com

recursos —, foram sendo instituídas formas de “burla”, “astúcias”73 aos programas

73 Esta forma de referência não indica qualquer condenação, nem desaprovação de minha parte aos modos encontrados para conseguir apoio público às ações na área. Como num jogo de gato e rato, o governo federal, descumprindo um preceito constitucional, instituiu a exclusão do direito pelo FUNDEF, e porque sabia da ilegalidade do ato, para o qual acordos políticos de governabilidade fizeram todo o tempo vistas grossas, com a anuência do Ministério Público, jamais apurou ou agiu contra essas “burlas” dos estados e municípios, que por essas alternativas, cumpriam o dever do Estado com a educação. Certeau (1994, p. 104) denomina de astúcias ou de surpresas táticas os “gestos hábeis do “fraco” na ordem estabelecida pelo “forte”, arte de dar golpes no

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excludentes que deixavam jovens e adultos sem direito à educação, passando a se tornar

instituintes de concepções e de práticas. Nos sistemas de ensino, percebo serem essas

“saídas”, estratégias, que permitem cumprir o dever do Estado com a educação. No dizer de

Certeau (1994, p. 99), são:

[...] o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças (os clientes ou os concorrentes, os inimigos, o campo em torno da cidade, os objetivos e objetos da pesquisa etc.).

Deve-se destacar que a ausência de financiamento à EJA, que o veto no FUNDEF

determinou, em 1996, levou os sistemas à busca de outras fontes de financiamento para a

modalidade. Isso aconteceu tanto no caso do Programa federal Aceleração da Aprendizagem,

voltado a reduzir a defasagem idade-série (lato sensu, o caso de todos os jovens e adultos),

quanto na alternativa do ensino noturno regular74 adequado às condições do educando (Art.

208 inciso VI, Constituição Federal), tomado por ensino regular noturno, e de matrícula para

jovens e adultos, no nível do ensino fundamental, com verbas do FUNDEF — saídas

indispensáveis para, contando matrículas de alunos de EJA sob esses rótulos, auferir recursos

federais.

As alternativas institucionalizadas, instituídas pelos usos que os sistemas passaram a

fazer de linhas programáticas/programas, com interpretações próprias, para atender a EJA,

traduziram-se, na Bahia, pelo Programa Aceleração, destinado a alunos jovens e adultos do

ensino fundamental, valendo-se da efetiva “defasagem idade-série” desse público. O que a

equipe lamenta, no entanto, é que freqüentemente os dirigentes decidem certas alternativas

políticas, não pelo que elas contêm de obrigação do poder público para cumprir o dever do

Estado, mas porque, de algum modo, essas alternativas podem resolver questões financeiras,

sem criar para os dirigentes a necessidade de produzir fatos políticos que garantam nos

orçamentos os direitos dos cidadãos. Não é, pois, a consciência ética com o cargo e com o

dever que a este cargo se impõe, que os orienta, mas outras são as motivações para o que

fazem.

campo do outro, astúcia de caçadores, mobilidades nas manobras, operações polimórficas, achados alegres, poéticos e bélicos”. 74 Cf. discussão a esse respeito.

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Mas a visão, geralmente, do executivo, do secretário, tanto municipal quanto estadual, é muito em cima disso de quebrar mesmo. Porque aí eu estou olhando a minha folha de pagamento, a minha folha de... não é uma discussão da educação, nessa concepção de direito, mas que escapole muito isso. Toda vez... é muito difícil quando você vai discutir dinheiro, financiamento, aí parece que você esquece a concepção teórica, a questão do direito que passa por aí. Fica muito na questão, sabe, do técnico, do financeiro... (Gestora Castro).

Essas compreensões são indispensáveis para compreender os movimentos políticos

realizados pela Coordenação de EJA do estado da Bahia, aparentemente contraditórias às

escolhas e formas de conduzir a educação para jovens e adultos.

Do conjunto de programas, denominados de cursos na mais recente Portaria — a de

nº. 14158, de 26 de outubro de 2004, assinada pela Secretária da Educação do Estado da

Bahia, que orienta a oferta da educação básica na modalidade de educação de jovens e

adultos na rede estadual de ensino, observa-se o que vem sendo oferecido a jovens e adultos,

devidamente reestruturados, visando a “garantir padrões de qualidade às diversas ofertas desta

modalidade de ensino, com organização própria e diversificada, compatível com as

necessidades educacionais de jovens e adultos e com o estabelecido na Resolução CEE

(Conselho Estadual de Educação) nº. 138/2001”.

A portaria, em nove artigos, determina, nos dois primeiros, as alterações de estrutura e

duração, inclusive de denominação, para os cursos de Aceleração I, II e III; em seguida,

reorganiza a rede pública estadual, a partir de 2005, com as seguintes ofertas educacionais:

cursos de ensino fundamental – EJA I e II; curso de ensino fundamental – Tempo de

Aprender I e Curso de Ensino Fundamental – Modular I; curso de ensino médio – EJA III;

curso de ensino médio – Tempo de Aprender II e curso de ensino médio – Modular II; exames

supletivos de ensino fundamental e de ensino médio, realizados por meio de Comissões

Permanentes de Avaliação - CPA, também autorizadas pelo CEE, em resolução e portaria

próprias, visando à certificação de escolaridade de jovens e adultos, para fins de terminalidade

de estudos. Nos demais artigos, observa-se que são previstos postos de extensão vinculados a

escolas da rede estadual, mediante celebração de convênios, assim como se definem

atribuições dos diretores de unidades escolares onde há CPA, no tocante ao envio de relações

de notas e concluintes, para fins de publicação e validação dos certificados de conclusão.

Ainda está prevista a definição de indicadores de aprendizagem, compartilhada com a

comunidade escolar (para atender a requisito de um dos artigos anteriores); regula-se a

exigência do registro, na vida escolar do aluno, da equivalência de cursos, com vistas à

circulação de estudos; garante-se aos que cursam Aceleração I a conclusão dos estudos sob a

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mesma estrutura e denominação; regula-se a continuidade de estudos para egressos do

Programa de Alfabetização de Jovens e Adultos - AJA Bahia nos demais programas, segundo

estágios de aprendizagem alcançados, e conforme critérios previamente definidos e, por fim,

revoga portaria anterior, de 1998.

A educação de jovens e adultos no estado tem, no dizer da gestora Nascimento,

desafios muito intensos, que devem ser enfrentados, no sentido de alterar as práticas

pedagógicas que a rede realiza, em muitas escolas/salas de aula: a diversidade cultural dos

sujeitos, que pouco se revela nas práticas e não como seria desejável; a garantia de padrões de

qualidade, o que exige propor reestruturações na EJA quebrando, principalmente, relações

ainda mantidas com a seriação; a garantia da progressividade dos alunos, eliminando as

segmentações que ainda permanecem nos dois segmentos de ensino fundamental; a produção

de indicadores de ensino-aprendizagem, que favoreçam a avaliação dos professores quanto à

possibilidade de os alunos avançarem, segundo seus progressos; a garantia de

acompanhamento mais efetivo, pela presença constante da equipe central junto às escolas e às

demandas de escolas/alunos/professores; a compreensão plena do que significa, para a EJA,

ser modalidade de ensino.

Modalidade ainda não é compreendida entre prefeituras, entre os Secretários Municipais, o que é essa modalidade que a lei fala e que, necessariamente, não é escolaridade, não é criar uma escola paralela. É uma modalidade que pode desembocar aqui ou não. Aí é isso que eu fico pensando. Como é que a gente vai colocar para as prefeituras pra elas poderem ajudar no sentido de colocar a educação — EJA — como modalidade. Porque todo mundo pensa, pelo histórico, que EJA é uma educação formal.

Para a compreensão do que é essa modalidade, no que ela carreia de perspectiva de

inclusão emerge, também, a presença de portadores de necessidades especiais, invisibilizados

pelos sistemas, que começam a surgir expressivamente nos atendimentos da EJA, talvez pelo

fato de ali não se sentirem — nem serem — rejeitados, talvez pelo fato de se identificarem

com os excluídos da educação que, como eles, têm sido recorrentemente negados como

sujeitos de direito. Essa percepção foi também constatada na recente pesquisa realizada em

2004 e concluída em março de 2005, para avaliação diagnóstica dos Programas Brasil

Alfabetizado e Fazendo Escola, proposta pelo MEC e coordenada pela UNESCO, em que a

presença de portadores de necessidades especiais emerge como um dado que não pode mais

passar despercebido, embora a presença desses sujeitos não se faça somente pela perspectiva

do direito, mas também pela de não-rejeição, que compõe a biografia de muitos deles e dos

demais diferentes, que ocupam na atual concepção do MEC o lugar político denominado de

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diversidade, e vêm recebendo, ainda que com timidez, atenção por parte do poder público

federal.

Então, a gente não conseguiu fazer ainda com que o público, nós da política pública, entendesse que o cego, surdo e mudo, o... já passou da época, o jovem, o adulto, o índio, a criança, são modalidades que precisam ser tratadas como gente. Ainda a gente não conseguiu, não conseguiu ainda argumentar em favor disso. E que, por isso, precisa de dinheiro, porque eles existem. (Gestora Nascimento).

E a esta tomada de consciência, segue-se outra, a de que as chamadas minorias não o

são, porque englobam um contingente elevado de população cuja exclusão, reforçada pela

diversidade, tem na base econômica — a pobreza — a lógica perversa que as deixa de fora

dos direitos de cidadania. Quando o poder público organiza a oferta e não utiliza mecanismos

sutis para manter essa população ainda apartada, a demanda cresce e aparece, sem medo de,

uma vez mais, ser renegada pela condição de excluída pela origem socioeconômica.

É uma demanda de 240.000, não é uma demanda pequena. Só que só enxerga o povo para entrar na 1ª série, 2ª série, 3ª série. Com 7 anos, 8, 9, 10, 11, 12 e por aí vai. Então, é uma escola burguesa mesmo, onde papai e mamãe conseguem botar o filhinho ali naquele cantinho. Mas se não tem o papai e mamãe pra colocar o filhinho naquele cantinho... (Técnica SEC/BA).

[...] Criança, jovem, adulto. Independente se é do campo, se é da cidade... (Técnica SEC/BA).

Somadas a essas questões, jovens e adultos trabalhadores emergem pelo que, no

máximo, a educação tem definido como finalidade, ao tratar/oferecer atendimento a eles: a

condição de mão-de-obra:

[...] o país nunca viu a educação como educação. Sempre vê como formar uma mão de obra rápida e barata para usufruir. (Técnica SEC/BA).

Presentes e desafiando os que fazem a EJA na Bahia, essas questões são resultantes do

trabalho pedagógico desenvolvido, que em 2005 alcança 250.201 alunos de EJA, sendo

163.308 de ensino fundamental e 86.893 de ensino médio, em 977 unidades escolares, com

10.075 professores de EJA, dos quais 6.645 no ensino fundamental, nos 417 municípios do

estado. O financiamento para a EJA, pelo FNDE, acontece apenas em três municípios,

cobrindo 32 escolas em Barreiras, Ilhéus e Itabuna.

Uma questão decisiva para a EJA, quando se pensa na concepção não restrita à

alfabetização ou ao primeiro segmento, mas na perspectiva do direito ao ensino fundamental,

parece não constituir problema para a rede baiana, pois a organização do sistema não exclui

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qualquer aluno, seja qual for a sua origem: se “aluno do Sistema S, eles poderão também

utilizar o sistema estadual pra fazer. Porque, no nosso caso, quem é aluno e que sai do Brasil

Alfabetizado, da alfabetização, realmente não tem problema de vaga. Não existe isso. O

reordenamento da rede está mostrando isso”. Mas ainda assim, com a perspectiva da

continuidade assegurada, observam-se problemas detectados por uma técnica da equipe:

“Constatei que muitos alunos continuam estudando na classe de jovens e adultos por conta de

não ter uma continuidade na escola próxima”, ou seja, a questão não se põe apenas na

existência de matrículas para atendimento, mas é complexa, porque nem sempre a distribuição

de vagas se faz nos mesmos lugares em que o público está sendo atendido pelos projetos de

alfabetização. Outra observação diz respeito às expectativas dos próprios alunos nos projetos

nem sempre atendidas, e cuja identificação com ele, projeto, define, ainda assim, sua

permanência, por não desejarem substituir a inserção conseguida, pela incerteza de uma

escola formal, que muitas vezes já os excluiu antes: “o AJA Bahia não me dá o suporte que eu

quero, que é realmente ler e interpretar uma bíblia e eu não estou sabendo interpretar o que

um versículo diz”. (Depoimento de aluno relatado por uma técnica da SEC/BA).

Para ampliar a compreensão da EJA no estado da Bahia, então, a partir desse momento

inicio a leitura do documento Princípios e Diretrizes Político-Pedagógicas da Educação de

Jovens e Adultos do Estado da Bahia — Histórico, Concepção, Programas e Projetos, de

dezembro de 2002, que sistematizou, organicamente, englobando todas as ações, programas e

projetos, o que vinha a ser a política efetiva de educação de jovens e adultos no estado,

revelando suas concepções. É preciso destacar que a história da EJA no estado imbrica-se

fortemente com a do país, mas com contornos próprios, tanto dados pelas iniciativas

levantadas pela equipe da Secretaria, para fins desse trabalho de organização da política,

quanto pelas personagens que estiveram à frente dessas iniciativas, em alguns casos de

protagonismo nacional, muito além do âmbito local e até mesmo estadual. Junto, portanto, os

fios que lhe dão sentido, puxados a partir da história da educação de jovens e adultos na

Bahia, assinalando, em seguida, a diversidade de ofertas que comporta o Programa de

Educação de Jovens e Adultos, visando a atender à multiplicidade de sujeitos em suas

diversas realidades o que, sem dúvida, por si só atesta alguns dos princípios que serão

apresentados a seguir e que, por sua vez, fecundam as ofertas.

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66..11..11 FFiiooss,, pprriinnccííppiiooss ee nnóóss

Há, no estado da Bahia, uma significativa história na EJA, derivada não apenas das

inúmeras lutas e demandas da população pelo acesso às mais variadas necessidades de

escolarização, mas também pelas respostas que puderam ir sendo produzidas pelo poder

público, de modo a atender a essas necessidades.

Com a promulgação da Constituição, muitas mudanças ocorrem no sistema, e tendo

como referência a experiência acumulada com o funcionamento da Comissão Permanente de

Avaliação no Centro de Educação Supletiva – CESBA, em Salvador, são estabelecidos

estudos e, posteriormente, criadas as Comissões Permanentes de Avaliação – CPA, um novo

projeto de atendimento a jovens e adultos, com estrutura própria e oferta mensal de exames

supletivos, funcionando durante todo o ano, de forma permanente.

Ao longo da década de 1990, a demanda pela escolarização, ampliou-se, pressionada:

pelo mercado da força-de-trabalho, exigindo a certificação de conclusão de escolaridade por

nível de ensino; pela necessidade de competência escolar para a disputa, no mercado, das

poucas ofertas de emprego e de trabalho formal, exigindo respostas das redes públicas

estaduais e municipais quanto à organização de projetos de EJA, em respeito aos

demandantes.

A perspectiva do direito trazida pela Constituição de 1988, e toda a realidade dos

potenciais alunos da EJA acentuaram a necessidade de não adiar a definição de uma política

na área. Partiu a Secretaria, então, para a construção, com a comunidade escolar, de projetos

próprios para o atendimento das necessidades educacionais dos demandantes. Pela grande

procura por cursos, a Secretaria da Educação universalizou o 1º segmento do ensino

fundamental, o que, se por um lado iniciava o processo de assunção do dever da oferta pelo

poder público, dificultava, por outro, o acompanhamento às classes formadas, principalmente

em função da extensão territorial do Estado.

Aí estava a chave que demarcaria a atuação — e a concepção — do fazer política

pública de EJA no estado: a construção coletiva, tanto envolvendo sujeitos professores,

quanto alunos, o que, se por um lado deve ser saudado, como iniciativa democratizadora, por

outro precisa ser problematizado com a realidade dos fatos no meio dos quais se deu. Um

desses fatos revela a convivência, nesse processo metodológico adotado, com a desconfiança

inicial sobre a autenticidade das intenções de participação da comunidade escolar, e, outro,

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com as dificuldades, por parte dos professores, de lidar com alternativas pedagógicas não-

seriadas, pela cristalização de concepções tradicionais da educação. Enfrentando estas

dificuldades, vivenciaram movimentos de construções curriculares no âmbito das escolas, o

que trouxe um novo ânimo à educação de jovens e adultos: valorizaram-se práticas

pedagógicas que referendavam outra lógica escolar, identificando possibilidades educativas e

ampliando possibilidades, a partir dos projetos pedagógicos das próprias escolas, mediados

por processos de formação continuada de professores.

Mas essas iniciativas, por mim vistas como positividades, não apenas pela forma como

foram sendo desenvolvidas, mas também pelo conteúdo das propostas, no documento

Princípios e diretrizes político-pedagógicas da educação de jovens e adultos do estado da

Bahia — histórico, concepção, programas e projetos (SEC/BA, 2002) trazem uma

preocupação cabível: o fato de os indicadores educacionais de analfabetismo de jovens com

mais de 15 anos e a correlação entre idade e escolaridade ainda exigirem ações políticas mais

intensas do poder estadual. Do mesmo modo, o documento reconhece a lacuna existente entre

o que a equipe central pensa ser necessário para a EJA, do ponto de vista das concepções, e os

praticantes — professores em suas escolas, com suas experiências, realidades, vicissitudes,

solidão, isolamento — próprios dos grandes sistemas, afetados ainda pelas distâncias, restritos

recursos e ainda não-consolidada experiência de participação e de definição coletiva.

Essas concepções devem levar em conta marcas de idade, diferenciação de gênero, de culturas, que precisam ser identificadas no reconhecimento destas diferenças e, principalmente, do direito à educação de acordo com necessidades e aspirações dos sujeitos, de modo que as marcas não os discriminem, mas que sejam positividades na assunção plena da condição de cidadãos, com possibilidades de construírem sentidos para ser, fazer, viver e conviver socialmente com todos as formas de vida na atualidade. (SEC/BA, 2002, p. 10).

Nos dados dos censos educacionais, a confirmação da preocupação com o grande

contingente de jovens e adultos cursando o ensino fundamental e médio revelava, pelas

idades, a forte exclusão sofrida por muitos deles de processos educacionais anteriores, ou o

fato de nunca terem freqüentado a escola, demandando processos extensivos de inclusão,

articulados com a definição de políticas públicas no campo social. Em 1993 os cursos

presenciais de ensino fundamental estavam implantados em 191 escolas atendendo a 42.000

alunos — número insignificante, considerada a população analfabeta no Nordeste, para a qual

o estado da Bahia sempre concorreu com um número muito expressivo.

Page 223: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

221

O movimento de inclusão foi crescente e paulatino, motivado principalmente pelas

necessidades dos sujeitos dessa educação: jovens e adultos que precisam estudar para ter

escolaridade — exigência do mundo do trabalho, cuja oferta de postos, contraditoriamente,

reduziu-se na última década; e trabalhadores, que precisam estudar para manterem os seus

empregos. Diz o mesmo documento referenciado:

[...] definir uma política de redução do analfabetismo com metas preestabelecidas exige assegurar possibilidades orçamentárias e financeiras para o atendimento de tal objetivo. Metas deste porte — considerando o tamanho da demanda — têm que ter impacto suficiente para modificar a realidade social e cultural de pessoas que, motivadas por esta nova realidade — inserção no mundo letrado — possam vivenciar outras possibilidades no local onde vivem e serem estimuladas a continuar a aprender. Este é o sentido de uma política para a redução do analfabetismo, que somente tem impacto e efetividade com dimensão que reduza, de forma substantiva, a condição de ser analfabeto, requerendo, portanto, investimentos públicos robustos para tal fim. (SEC/BA, 2002, p. 11).

E continua:

O objetivo da EJA é proporcionar uma educação apropriada aos alunos que estão realizando a educação básica com idades acima das consideradas adequadas, principalmente aqueles que estudam no turno noturno por exigências do trabalho. A garantia de prosseguimento dos estudos expressa o sentido da eqüidade, possibilitando patamares de conhecimentos cada vez mais elevados, ao se assegurar uma educação de qualidade, com identidade própria. (SEC/BA, 2002, p. 11).

O percurso da Secretaria apresentado no documento até então revela o entendimento

de que propostas educacionais somente se tornam legítimas, se expressam aspirações dos

diretamente envolvidos, e se são exercitadas no cotidiano de cada sala de aula, com clareza de

finalidade e objetivos. Para consolidar essa compreensão, o documento Princípios e diretrizes

político-pedagógicas da educação de jovens e adultos do estado da Bahia — histórico,

concepção, programas e projetos defende a formação continuada como:

[...] requisito fundamental, mas não determinante para a melhoria das práticas pedagógicas do professor. As circunstâncias de cada trajetória profissional podem, sem dúvida, referendar o momento de cada um para pensar e agir de acordo com novas concepções. Muitas vezes persiste o medo, a insegurança para fazer o novo e de forma diferente, principalmente, por deficiências no domínio de conhecimentos básicos. (SEC/BA, 2002, p. 11).

Por fim, ainda expõe algumas constatações para pensar a necessidade de avanço

qualitativo e quantitativo na educação de jovens e adultos: a não-apropriação das bases

conceituais que norteiam propostas curriculares para jovens e adultos, gerando um

Page 224: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

222

distanciamento entre os referenciais estabelecidos e os processos desenvolvidos em sala de

aula, freqüentemente tradicionais, alicerçados em métodos que privilegiam o ensinar em

detrimento do aprender com significado; o retorno sistemático de jovens e adultos à escola,

mesmo quando o sistema educacional persiste em considerar que não aprendem, reprovando-

os uma vez mais, expondo-os a novos fracassos, ou permitindo que se evadam; a exclusão

sub-reptícia que a escola continua a promover, ao mesmo tempo em que inclui, quando

sonega a possibilidade de utilização dos espaços, dos serviços e dos recursos escolares,

principalmente no turno noturno, para esses educandos.

Em seguida, o documento enuncia os princípios e as diretrizes político-pedagógicas

da Educação de Jovens e Adultos do estado da Bahia, constituídos por um modo próprio de

entender e conceber a EJA. Esse modo tem coerência com o preceito constitucional do direito

ao ensino fundamental, ao mesmo tempo em que se alinha, na forma de consubstanciá-lo, com

os termos do Parecer CNE nº. 11/2000.

O princípio maior e primeiro para ações na EJA, apontado, é o do direito ao ensino

fundamental para todos, independente da idade, direito público subjetivo.

A partir desse, outros princípios são apontados, assinalando que:

[...] atravessam e estabelecem liames entre os diversos projetos que guiam as ações na área. [...] garantem a unidade de concepção da EJA, ao mesmo tempo em que conferem ampla liberdade para fazer opções, tomar decisões, escolher alternativas metodológicas e garantir o pluralismo e a diversidade de respostas às necessidades dos sujeitos da educação de jovens e adultos, afastando a tentação do discurso da uniformidade e da homogeneidade, absolutamente irrelevantes para a área.

Com as referências até então apontadas, retiro do documento Princípios e diretrizes

político-pedagógicas da educação de jovens e adultos do estado da Bahia — histórico,

concepção, programas e projetos os princípios que norteiam a EJA, reconhecidos quando se

trabalhava a pesquisa-ação que revisionou os programas presenciais de ensino fundamental,

dando origem ao programa cuja compreensão, quanto às concepções, enfocarei adiante.

Pluralismo e diversidade — traduzido pela possibilidade — e liberdade — de

criar alternativas capazes de responder, com maior competência, às exigências dos

diversos grupos populacionais/etários, acolhendo a variedade de identidades e

culturas que os sujeitos produzem ao longo da vida, na prática social, quase sempre

ocultadas, fazendo-as emergirem nessas propostas.

Page 225: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

223

Continuidade de estudos — a oferta se põe a partir da idéia do direito ao ensino

fundamental. Alguns oferecem segmentos ou parte desse nível de ensino, como

estratégia possível, em situações geográficas exigentes de alternativas que as

estruturas formais muitas vezes não dispõem. Mas todos prevêem e se organizam

com o compromisso da oferta da continuidade de estudos, para todos que o

desejarem, para que a vida escolar se mantenha regularizada e regular.

Inserção orgânica no sistema — os alunos de qualquer projeto de EJA são

sempre matriculados no sistema estadual de ensino, mesmo quando as alternativas

não se desenvolvem em prédios escolares, mantendo a regularidade do

atendimento — e do cumprimento da oferta como direito à educação —, e

auxiliando o processo de auto-estima do aluno, reconhecidamente inserido no

sistema como um sujeito de direito.

Circulação de estudos — assegurada entre todos os projetos/programas da rede

estadual, o que significa dizer que todos têm o direito de circular, tanto passando

da modalidade EJA para a de oferta regular, quanto o contrário. Como modalidade,

a EJA é um modo de organizar e adequar o currículo para jovens e adultos,

segundo as características, condições e traços desses alunos.

Coerência pedagógica — coerência interna de cada projeto, segundo princípios e

fundamentos definidos como próprios da educação de jovens e adultos, buscando

fazê-lo segundo os mesmos fundamentos daquilo que propõe para os alunos, ou

seja, envolvendo professores de diferentes escolas, Diretorias Regionais de

Educação (DIRECs) e regiões do estado, representando coletivos mais amplos, que

participam, como sujeitos, do repensar as práticas pedagógicas que realizam, com

vista a novas e possíveis proposições que as ultrapassam e reorganizam.

Ação coletiva — sintetiza a perspectiva de repensar a escola a partir de seus

sujeitos, com eles, sejam professores e demais especialistas, sejam alunos. A

experiência de trabalho na formulação de projetos vem mostrando o acerto da

aplicação desse princípio, não apenas pela riqueza do que pode ser proposto no

coletivo, mas pela autonomia ganha no pensar a própria prática; pela credibilidade

de saber-se capaz de; e pela responsabilização e compromisso que a ação coletiva

produz.

Page 226: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

224

As diretrizes político-pedagógicas orientam, do mesmo modo, as propostas de

avaliação, assim como a carga horária e a sua distribuição, respeitando, sempre, os princípios

que as fundamentam.

66..11..22 PPrrooggrraammaass ee pprroojjeettooss oorriieennttaaddooss ppoorr pprriinnccííppiiooss ee ddiirreettrriizzeess ppoollííttiiccoo--ppeeddaaggóóggiiccaass

ddaa eedduuccaaççããoo ddee jjoovveennss ee aadduullttooss ddoo eessttaaddoo ddaa BBaahhiiaa

Os programas e projetos foram sendo desenvolvidos a partir das demandas de alunos e

de professores, no desenvolvimento de atividades. Surgem, de modo geral, por meio da

participação desses professores, representando as diversas áreas e regiões da Bahia. Todos os

programas e projetos formulados convivem no sistema de ensino, sob a escolha e decisão das

unidades escolares, em função das propostas que apresentam e de sua adequação com as

características do público a ser atendido. Não há qualquer imposição da Coordenação de EJA

nessa decisão, que cabe exclusivamente às escolas. Pode-se observar, na apresentação que se

segue, a existência de mais de uma oferta para o mesmo nível de ensino, seja

aperfeiçoando/atualizando um programa anterior, seja produzindo uma nova alternativa de

atendimento, segundo concepções e modos de perceber a educação de jovens e adultos que,

continuadamente se superam.

AAJJAA BBaahhiiaa

O Programa de Alfabetização de Jovens e Adultos visa a reduzir os índices de

analfabetismo no Estado da Bahia e vem requerendo a mobilização e ação solidária de toda a

sociedade baiana, expressa nas contrapartidas que se fazem necessárias para alfabetizar, com

qualidade, jovens e adultos das áreas urbanas e rurais.

Iniciado em 1996, alfabetiza jovens e adultos, garantindo o acesso e a continuidade de

estudos em escolas da rede pública. As classes são organizadas a partir de projetos definidos

pela comunidade, funcionando em escolas da rede estadual e municipal, em empresas ou em

outros espaços onde se possam desenvolver práticas pedagógicas que possibilitem a vivência

de processos de alfabetização, com alfabetizadores normalistas, em regime de estágio, com

atuação “fora do sistema”, mas gratificados pelo sistema. A continuidade da escolaridade dos

alfabetizandos é garantida pela vinculação de cada espaço educativo a uma escola estadual ou

municipal.

A concepção de alfabetização parte do pressuposto de que, em um mundo repleto de

nomes e números, alfabetizar-se é entrar no mundo da escrita para ler e escrever, com

Page 227: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

225

compreensão, nas mais variadas situações de vida. É tornar-se usuário da escrita — usar a

leitura e a escrita na solução dos problemas do dia-a-dia, realizando leituras de mundo de

forma autônoma, crítica e criadora.

O AJA Bahia tem como estratégias básicas garantir a continuidade do processo de

alfabetização dos alunos nas escolas da rede estadual e municipal; a criação de um núcleo

municipal, em que representantes das comunidades atuam na construção e desenvolvimento

do Programa; o uso de espaços educativos e de espaços alternativos, que garantam condições

de abrigar os sujeitos alunos e profissionais do programa, assim como toda a infra-estrutura

necessária ao desenvolvimento das atividades, tanto da própria alfabetização, como de

trabalhos em oficinas de leitura e escrita, de planejamento e avaliação, de apoio para a

distribuição de material etc. Sua revisão, desenvolvida com a consultoria da ONG paulista

Vereda, de Vera e José Carlos Barreto, acontece com metodologia participativa semelhante à

da EJA I e II, exposta adiante, com material didático para professores e alunos, este último

sob a forma de um almanaque.

AAcceelleerraaççããoo II ee IIII —— EEnnssiinnoo FFuunnddaammeennttaall

A proposta de educação básica de jovens e adultos para o ensino fundamental —

Aceleração I e II — desenvolve-se em duas etapas, Aceleração I e II, cada uma delas com

dois estágios, que alcançam todo o ensino fundamental. Destina-se a constituir alternativa

para um grande contingente de jovens e adultos incorporados ao sistema educacional, bem

como para aqueles que não tiveram acesso a uma educação que respeite a sua identidade

cultural e a sua realidade de vida, de forma crítica e produtiva. Tem em vista garantir o

sucesso escolar, revertendo os índices de repetência e de evasão, investindo, também, para

isto, na valorização do profissional em exercício nas classes de EJA, proporcionando

condições para a melhoria da qualidade da formação, do que deverá decorrer a melhoria da

qualidade do ensino e o fortalecimento da escola pública. Incorpora a metodologia do ensino

com avaliação no processo e a sua dinâmica, tanto para o planejamento, como para a

avaliação, está pautada em uma prática pedagógica em que o aproveitamento do aluno é

dimensionado pelos objetivos alcançados. Trabalha com as seguintes diretrizes metodológicas

que norteiam a prática pedagógica:

o ambiente escolar deve conter e considerar toda a diversidade do mundo da

escrita;

o processo do educando tem que ser respeitado;

Page 228: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

226

a heterogeneidade da classe é que faz com que se efetive a aprendizagem;

o erro é considerado elemento natural na construção do conhecimento;

a educação para o êxito tem que ser contextualizada;

a prática pedagógica é problematizadora.

EEnnssiinnoo FFuunnddaammeennttaall —— EEJJAA

Trata-se de proposta produzida coletivamente por consultoras e professores do

Programa Aceleração I e II, a partir do revisionamento das bases pensadas originalmente para

a proposta, demarcando o direito ao ensino fundamental, para jovens e adultos, como um

continuum. Para isso, propõe um modo de organização do currículo que tem por base quatro

unidades conceituais, a partir das quais se estabelecem os programas do curso: trabalho,

cultura e ambiente; ética e cidadania; cultura, democracia e poder; gênero e etnia,

perfazendo o projeto de curso o mínimo de 3200h, em um tempo previsto de quatro anos (para

o projeto de curso, e não para o percurso do aluno).

As unidades conceituais escolhidas remetem ao sentido final do projeto educativo, ou

seja, a formação para a cidadania, com domínio dos instrumentos básicos para interferir e

agir, criticamente, sobre o mundo — a leitura, a escrita e o pensamento lógico-matemático.

Para dar-lhes sentido, lança-se mão dos conhecimentos relativos às diferentes áreas do

conhecimento que com ele dialogam, exigindo uma reorganização dos chamados

conhecimentos científicos de cada área, de modo a se conectarem, trançando-se, com os

demais.

AAcceelleerraaççããoo IIIIII —— EEnnssiinnoo MMééddiioo

Este curso organiza-se por áreas do conhecimento, disponibilizando ao aluno e à

escola a compreensão de que a articulação dos conhecimentos possibilita um modo de ver a

realidade de forma mais ampliada e o desenvolvimento de aprendizagens significativas,

conseqüência do entendimento de que o saber se produz na interação e nas práticas sociais.

Assume os princípios curriculares do trabalho, da cidadania e da democratização e da

construção do saber, bem como os seguintes princípios metodológicos: construção

progressiva de uma abordagem interdisciplinar dos conteúdos; o cotidiano do aluno e a

diversidade de suas experiências como ponto de partida da prática pedagógica; e a articulação

entre a teoria e a prática. A estruturação do currículo organiza os contextos teóricos e práticos

Page 229: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

227

por áreas do conhecimento, propondo como ação pedagógica a construção progressiva dessas

áreas pela escola. Adota como recurso pedagógico o desenvolvimento de projetos para

concretizar os princípios e linhas metodológicas; um trabalho pedagógico centrado em

acordos e compromissos firmados pelos sujeitos do processo educativo – professores e

alunos; o rompimento progressivo do modelo de currículo compartimentado em disciplinas

isoladas; a vivência coletiva por professores e alunos em suas fases de definição,

desenvolvimento e avaliação.

PPoossttoo ddee EExxtteennssããoo

“A escola vai onde o trabalhador está” define a essência do Posto de Extensão, em que

o trabalhador é o centro do processo educativo. No Posto de Extensão são implantados cursos

de educação de jovens e adultos de ensino fundamental e médio, que se desenvolvem no

próprio ambiente de trabalho, todos vinculados a uma escola estadual, responsável pela

matrícula, acompanhamento pedagógico e certificação.

A concepção de educação pretendida nos cursos dos Postos de Extensão fundamenta-

se na crença da capacidade do homem de produzir conhecimentos, ganhando significações

próprias com suas experiências, tendo como referência a natureza do trabalho das empresas

envolvidas. Realiza-se por meio de parceria (convênio), entre a SEC/Empresa/Órgão, que

juntos, elaboram e discutem um projeto pedagógico próprio, definindo a estrutura e os tempos

da aprendizagem, a organização, os princípios, as metodologias, os conteúdos programáticos,

a avaliação e o acompanhamento do curso de EJA para os trabalhadores. Até dezembro de

2002 foram implantados 30 Postos de Extensão, atendendo a 6.000 trabalhadores nos

ambientes de trabalho. Merece destaque a implantação de seis Postos de Extensão em seis

penitenciárias estaduais, atendendo a 300 reclusos, que se encontram realizando o ensino

fundamental, por meio do Projeto Educar para Reintegrar. Também se deve destacar o Posto

de Extensão implantado no próprio ambiente da Secretaria de Educação, desenvolvendo o

Projeto Aprendendo no Trabalho, que atende, até a mesma data, a 100 servidores.

PPrroojjeettoo TTeemmppoo ddee AApprreennddeerr II ee IIII

O Projeto Tempo de Aprender, em nível de ensino fundamental e de ensino médio,

constitui mais uma oferta para a educação de jovens e adultos, na maioria trabalhadores, com

dificuldades para freqüentar diariamente as salas de aula. O curso é semestral e

semipresencial, com avaliação no processo. Usa metodologia do Telecurso 2.000, agregando

Page 230: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

228

tecnologias, utilizando e disponibilizando em cada sala de aula TV, equipamento de

videocassete, fitas para o trabalho pedagógico do professor, livros didáticos para os alunos e

kits de materiais didáticos (dicionário, globo terrestre, mapas).

A organização do curso prevê a ida do aluno à escola duas vezes por semana, quando

tem aulas com professores especialistas das diversas áreas do conhecimento e quando também

são construídos roteiros de estudos para que realizem a complementação e terminalidade dos

cursos, desde que não estejam freqüentando a escola em cursos presenciais diários.

CCoommiissssõõeess PPeerrmmaanneenntteess ddee AAvvaalliiaaççããoo

As Comissões Permanentes de Avaliação – CPA constituem uma alternativa de

atendimento educacional que oferece exames supletivos a pessoas que interromperam seus

estudos regulares e que desejam comprovar seus conhecimentos, obtendo a certificação

equivalente aos níveis fundamental e médio. Funcionam em 17 escolas da rede pública

estadual e garantem a realização mensal de exames supletivos do ensino fundamental e médio

para jovens e adultos que precisam atestar sua escolaridade.

PPrrooggrraammaa ddee HHaabbiilliittaaççããoo ddee PPrrooffeessssoorreess LLeeiiggooss

O Programa de Habilitação de Professores Leigos – PROLEIGOS atende a

professores não-titulados que atuam da 1ª a 4ª séries do ensino fundamental na rede

municipal, paralelamente às suas atividades em sala de aula, todos eles jovens e adultos em

processo de aprendizagem, e de profissionalização.

Desenvolvido em escolas de magistério estaduais e municipais, numa ação conveniada

SEC/Prefeituras, compreende sete períodos semestrais, perfazendo um total de 4.140 horas. A

primeira etapa (três semestres) constitui o curso supletivo para atendimento a professores que

não completaram o ensino fundamental. A segunda etapa (quatro semestres) corresponde ao

ensino médio, com habilitação em magistério. O projeto trabalha com metodologia de ensino

direto e semidireto.

Page 231: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

229

66..22 CCOONNCCEEPPÇÇÃÃOO DDEE EEJJAA NNAA RREEDDEE EESSTTAADDUUAALL:: AARRTTEESS DDEE FFAAZZEERR7575

Embora sejam muitas as ofertas e propostas organizadas para a EJA no estado da

Bahia, tratarei de uma delas apenas, a do Curso de Ensino Fundamental I e II, nascido do

revisionamento dos fundamentos, princípios e práticas dos Programas Aceleração I e II. No

seguimento, quando me encontrar com as artes de fazer das unidades escolares pesquisadas,

as referências dos sujeitos estarão para além dessa, remetendo-se a todas as expressões que a

EJA assume nas variadas ofertas, como já visto anteriormente.

Inicialmente, devo destacar que a oferta do Programa Aceleração I e II não foi pensada

inteira, ao mesmo tempo, como política. Foi-se fazendo, à medida que as demandas foram

surgindo, a partir dos níveis iniciais, principalmente pelo fato de os alunos apontarem a

diferença de concepção que é desenvolvida no Aceleração I, em relação a outros programas

pelos quais passam. Essa diferença de concepção revela a possibilidade de que a EJA pode

assumir propostas que atendam a realidade da condição de jovens e de adultos, portadores de

saberes, conhecimentos, histórias, vivências, experiências, forjados nos múltiplos espaços da

prática social, e não apenas na prática escolar. Demandar a continuidade de estudos segundo

essa concepção, revela também a percepção dos alunos quanto ao que pode ser a educação,

em contraponto ao que vem sendo desenvolvido, em muitos programas/projetos, e requerer,

por isso mesmo, outra qualidade de proposta.

A gestora Guimarães da SEC/BA assim se expressa sobre a diferença de trabalho na

EJA na rede estadual:

[...] na Bahia nós realmente assumimos um papel de vanguarda no Nordeste porque, inclusive eu com minha experiência na educação de jovens e adultos, eu me comunicava muito com os coordenadores em nível do Nordeste e eu percebia as concepções que passavam [...].

Mas essa percepção nem sempre é compartilhada pelos professores que fazem a EJA

nas escolas, pela forte influência do modelo da escola regular, orientador, em última instância,

dos projetos e de suas organizações na educação de jovens e adultos. A marca da EJA de que

ela é multirreferencial, pondo em relação a vastidão de saberes dos alunos, acaba restrita à

visão de que todo esse conjunto, toda essa riqueza corresponde à multisseriação — forma

75 Usarei esta expressão, tomada de empréstimo do título do livro de Certeau (1994), A invenção do cotidiano: artes de fazer, pelo que o título sugere, e pelo que o autor, ao longo de sua exposição, apresenta como constituidor das relações dos sujeitos com o cotidiano, que o refazem, pela invenção.

Page 232: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

230

como se denominam as classes com alunos de diferentes níveis de conhecimento, e de

escolaridade formal, em zona rural, distantes de sedes municipais etc., quando só se oferece,

uma a duas salas de aula, atendimento com um único professor, responsável por dar conta de

todas as necessidades da região. A técnica Nascimento da SEC/BA revela o espanto com que

um professor descobriu essa possibilidade, sobre a qual ela mesma se interroga, entendendo-a

da seguinte maneira:

[...] “a gente pode fazer multiEJA?” Eu disse: “Olha, vocês têm Conselho pra deliberar isso?” “Não, mas a gente pode montar e pode montar multiEJA, que tem alunos de EJA 1, do estágio 1...” e aí foi citando as séries, ou seja, os módulos. E eu achei... me despertou isso e eu achei interessante o multiEJA e aí eu comecei... fui começar a me interrogar. Seria interessante realmente, já que existe multisseriado, os municípios onde tem três do estágio I, quatro do estágio II, fundar um multisseriado de EJA.

Em 1992, um Programa de Educação Básica de Jovens e Adultos, para atendimento a

pessoas sem escolarização, ocorreu na rede com a formulação, proposta pela então Gerência

de Educação Básica de Jovens e Adultos e com o apoio de consultores, de um projeto de

curso denominado Aceleração I, visando à oferta do ensino fundamental, nos termos

preconizados pela LDBEN n.º 9394/96, ou seja, adequado às características do alunado, às

suas condições de vida e trabalho, levando em conta seus saberes e experiências. A

Aceleração I correspondia, aproximadamente, ao primeiro segmento do ensino fundamental

(e se apresentava dividida em dois estágios de um ano cada). Mais tarde, a Aceleração II

(também dividida em dois estágios de um ano cada) foi proposta e oferecida como curso ao

segundo segmento do ensino fundamental.

Destaque-se que o Programa atendia, na Aceleração I, preferencialmente, os iniciados

em processos de leitura e escrita — tanto oriundos de projetos de alfabetização promovidos

pela própria Secretaria, como por exemplo, mais tarde, o AJA Bahia, que saíam conduzidos

para a continuidade no programa institucionalizado —, quanto oriundos de outras ações

promovidas por organizações não-governamentais, sindicatos, fundações que a rede pública

buscava acompanhar e assumir a continuidade, como, ainda, atendia a pessoas com passagens

anteriores pela escola (ou por outros modos de aprender). Trabalhando com a premissa de que

os conhecimentos de mundo e os saberes da prática permitem aos jovens e adultos avançar em

seus processos de aprendizagem, sustentava a idéia da aceleração como princípio da

educação então organizada, oferecendo um curso com duração de quatro anos para todo o

ensino fundamental. Essa, como assinalado anteriormente, foi a estratégia adotada pelo poder

público baiano para vencer as restrições impostas pelo FUNDEF à EJA, concorrendo, assim, a

Page 233: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

231

recursos do programa federal Aceleração da Aprendizagem, aplicando-os, astuciosamente,

nessa área.

No período de execução em que o Programa aconteceu, observou-se um crescimento

de matrículas, o que representou, como política pública, expansão do atendimento — dever do

poder público — sem, no entanto, universalizar o acesso a todos os potenciais sujeitos. Mas

também o desejo de continuidade fez com que fosse organizada uma segunda etapa, a

Aceleração II, que revelou, timidamente, resultados com um pequeno crescimento no número

de concluintes, em relação a séries históricas de atendimento na EJA em nível de ensino

fundamental. A gestora Guimarães assim explica o movimento de expansão da oferta:

[...] tínhamos 90 escolas e, por conta de políticas que foram definidas, começou a haver uma expansão muito grande. Então essa expansão nos pareceu prejudicial à questão qualitativa da educação de jovens e adultos.

A demanda gerada pelo Programa Aceleração II levou à organização do Aceleração

III, uma modalidade voltada ao ensino médio de jovens e adultos que não desejavam os

modelos regulares de escola, mas exigiam atendimento curricular adequado às necessidades

de vida e trabalho nos quais estavam inseridos, e de que já experimentavam no Programa

Aceleração.

Mais tarde, os Programas Aceleração I e II concebidos anteriormente a vários

documentos norteadores da EJA, de nível nacional e internacional, foram rediscutidos, para

adequá-los aos marcos legais que passavam a dar suporte à educação de jovens e adultos. A

revisão dos Programas ajustou proposta e práticas aos termos legais e, principalmente, estas à

realidade da educação de jovens e adultos, pensada como desafio para o novo milênio, com o

sentido do aprender por toda a vida.

Pode-se observar um dado relevante desse processo de revisionamento dos Programas:

qualificado como pesquisa-ação, envolveu professores e técnicos como parceiros desse fazer,

contribuindo para a investigação e a reflexão coletiva. Partia da experiência vivida por

sujeitos em diferentes lugares de inserção e em variados pontos de observação, produzindo

compreensão e crítica de suas práticas pedagógicas cotidianas e da de seus colegas,

ressignificando, assim, a proposta anterior de Aceleração I e II. Os níveis administrativos,

centralizados ou regionalizados, também contribuíam para pensar estratégias, pela visão

ampla que tinham de todo o sistema. Da base, professores e a experiência trazida das práticas

pedagógicas e a crítica construída sobre a proposta e sobre questões da prática pareciam

Page 234: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

232

indicar o acerto da Secretaria por elegê-los (os professores) como partícipes na proposta

metodológica em discussão.

66..22..11 AArrtteess ddee ffaazzeerr nnºº 11:: ppeessqquuiissaa--aaççããoo rreevviissiioonnaa aa EEJJAA aa ppaarrttiirr ddaa ffoorrmmaaççããoo

ccoonnttiinnuuaaddaa ddee pprrooffeessssoorreess

A condução do processo de pesquisa-ação passou pela necessidade de conhecer os

modos de pensar dos professores sobre o que entendiam ser currículo.

Antes, porém, de se chegar a essa revelação, um primeiro desafio teve de ser,

novamente enfrentado: a desconfiança permanente dos professores quanto aos reais objetivos

e procedimentos explicitados e acordados para o trabalho de pesquisa, tratada por eles como

um risco a que se expunham. Era como se, a qualquer momento, fosse surgir, num passe de

mágica, a proposta curricular já pronta, formulada pela consultoria, que apenas lançava mão

de uma tática de convencimento para que viessem a legitimá-la. Esse “risco” que os

preocupava, de serem levados a participar de um processo de pesquisa, contribuindo para

legitimar as propostas centralizadas dos poderes, pela história recorrente da educação e de

seus modos de operar, fazia sentido, não era ilusório. Sem a garantia de que os propósitos

eram outros, de que a proposta curricular produzida não seria imposta a quem não estivesse

disposto a implantá-la, era impossível seguir.

A gestora Nascimento reforça essa percepção, dizendo:

Inicialmente, com muita desconfiança da própria comunidade escolar, que estava um pouco cansada de iniciativas que se frustravam e não iam adiante e, até mesmo da própria coordenação... nós tínhamos essa desconfiança.

O segundo desafio, também recorrente, era o de fazê-los acreditarem que suas práticas

pedagógicas tinham valor, constituíam saberes, e que precisavam ser reveladas. A atitude

desqualificadora com que se tem tratado os profissionais da educação, desrespeitando seus

saberes, ao mesmo tempo em que se exige deles que respeitem os dos alunos, pelas sucessivas

políticas governamentais autoritárias, havia ensinado competentemente esta lição aos

professores. Portanto, constituía “risco” expor-se e ser criticado, mais uma vez, duramente,

como em tantas outras oportunidades. O silêncio como tática passava a ser o modo de resistir

a mais uma possibilidade de opressão. Acreditar, como Freire (1997), na autonomia dos

professores na constituição de saberes era, certamente, para eles, apenas um conhecimento no

nível cognitivo, que não operava na realidade afetiva dos professores, experientes por

aprendizados anteriores. Como, então, fazer emergir suas produções cotidianas, sua

Page 235: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

233

recriações, suas experiências criativas, suas elaborações, sem desconsiderar a legitimidade dos

“riscos” que temiam correr?

O contexto atual é o da maximização e máxima indeterminação do risco. Vivemos numa sociedade de riscos individuais e coletivos inseguráveis. São eles acima de tudo que minam a idéia de progresso e a linearidade e cumulatividade do tempo histórico. São eles os responsáveis pelo retorno da idéia do tempo cíclico, da decadência, da escatologia milenarista. O caráter caótico dos riscos torna-os presas fáceis de desígnios divinos ou, o que é o mesmo, de contingências absolutas. Esta situação traduz-se sociologicamente por uma atitude de espera sem esperança. Uma atitude de espera, porque a concretização do risco é simultaneamente totalmente certa e totalmente incerta. Só resta prepararmo-nos para esperar sem estarmos preparados. É uma atitude sem esperança porque o que vem não é bom e não tem alternativa. (SANTOS, 2000, p. 35-36).

Discorrendo sobre o significado do risco na sociedade atual, Santos faz considerações

bastante apropriadas para auxiliar o entendimento da posição dos professores baianos durante

a pesquisa-ação. Mas, como é sua característica, em seguida apresenta a compreensão de

como vem se dando a superação dessa atitude de espera sem esperança:

Recuperar a esperança significa, neste contexto, alterar o estatuto da espera, tornando-a simultaneamente mais ativa e mais ambígua. A utopia é, assim, o realismo desesperado de uma espera que se permite lutar pelo conteúdo da espera, não em geral mas no exato lugar e tempo em que se encontra. A esperança não reside, pois, num princípio geral que providencia por um futuro geral. Reside antes na possibilidade de criar campos de experimentação social onde seja possível resistir localmente às evidências da inevitabilidade, promovendo com êxito alternativas que parecem utópicas em todos os tempos e lugares exceto naqueles em que ocorreram efetivamente. (SANTOS, 2000, p. 36).

Os espaços consagrados nos seminários à escuta atenta das questões dos professores,

de práticas e experiências, registrando-as e trabalhando (com eles) sobre elas, criando

“campos de experimentação social”, buscando compreender o que revelavam/ocultavam, foi

construindo a “luta pelo conteúdo da espera no tempo e lugar em que se encontra”,

contribuindo, assim, para afastar o segundo “risco”, embora o primeiro ainda voltasse,

sempre, até o último seminário, enquanto intentávamos “promover, com êxito, alternativas”.

Mas foi este procedimento metodológico que permitiu a emergência — e a seguinte

constatação feita por eles próprios — do quanto sabiam e exercitavam currículos, sem ter a

consciência de que o faziam, e nem de que o que faziam tinha valor. Nos espaços de formação

continuada, a presença de saberes, tecidos nas “redes de conhecimento que constituem o

cotidiano das diversas instituições”, faziam “emergir, em diferentes momentos, uma série de

alternativas de ação”. (OLIVEIRA, 2001, p. 5).

Page 236: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

234

Outra questão relevante a destacar nesse processo vivenciado de pesquisa-ação foi o

de reconceitualizar, na prática, o sentido de formação continuada, muitas vezes reduzido à

idéia de capacitação, treinamento etc.

Pensar-se pela perspectiva de ser em inacabamento (FREIRE, 1992), em processo de

se fazer a si próprio e de humanização constante, requer admitir que o “estar preparado para”,

tão freqüentemente sedutor quando se cursa a formação inicial, cai por terra, para ser

substituído por uma outra concepção de que ninguém se prepara antes, mas aprende na e pela

experiência — e risco — do fazer. Resgatar o valor da experiência, no sentido de Larrosa

(2002), freqüentemente desperdiçada, passou a ser fundamento do processo de formação

continuada.

Para o revisionamento dos programas, então, no primeiro ano de trabalho, 2001, foram

promovidos três seminários em quatro meses, na capital, agendados com professores de

diferentes escolas, de pólos e de regiões do estado e da coordenação de EJA, com vista a

garantir a participação representativa das diversas realidades baianas na oferta de educação de

jovens e adultos76. As representações tinham o compromisso de apreender e levar, a seus

pares, com quem deveriam dialogar, as discussões dos seminários, voltando para momentos

subseqüentes com novas contribuições, ampliadas pela interlocução em seus locais de vida e

trabalho77.

Durante os seminários, alguns textos básicos produzidos para os eventos serviram de

subsídio às discussões, buscando polemizar questões teórico-práticas e avançar em direção à

proposição de um paradigma emergente mais adequado à modalidade de educação em foco.

Os seminários, no entanto, não paravam aí, mas se desdobravam, por ação dos professores,

76 De modo geral, todas as formulações têm sido realizadas com o concurso direto de professores, representando as escolas alocadas na jurisdição das estruturas descentralizadas que assumem a coordenação político-pedagógica pelo estado — Diretorias Regionais de Educação (DIRECs). Pode-se considerar a necessidade de uma organização como esta, face à extensão territorial do estado, às dificuldades de deslocamento, às grandes distâncias. A cada DIREC cabe um quantitativo de professores, distribuído pelas escolas envolvidas com os programas/cursos/níveis de ensino, escolhidos nas próprias escolas, compondo um conjunto aleatório, com profissionais de diferentes áreas. Estes profissionais convocados recebem passagem intermunicipal e deslocamento na capital, hospedagem, alimentação e materiais para participarem de seminários de duração variável, em função da proposta efetivada. O espaço onde esses seminários ocorrem tanto pode ser o Instituto Anísio Teixeira – IAT, um centro de formação de professores, com alojamento, refeitório e salas ambiente adequadas — salas de vídeo, auditórios, salas de aula, laboratórios de informática, biblioteca etc.; quanto pode ser em hotéis conveniados, quando o IAT não tem espaço disponível, pela forte utilização do local, e o seminário não havia constado do planejamento, nem da programação feita no ano anterior. 77 As propostas formuladas, ainda assim, não passam, automaticamente, a acontecer na rede. Apenas as escolas que desejarem as implantam, convivendo paralelamente com outras, ou não. Não há obrigatoriedade no sistema de executar qualquer uma delas, havendo, ainda, espaço para propostas próprias, nascidas na realidade das escolas.

Page 237: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

235

em suas escolas/espaços de trabalho, produzindo novos momentos de discussão, quando

aprofundavam os temas/questões, ampliando as perspectivas e enfrentando os conflitos

teóricos e práticos com seus pares. Suas considerações, reflexões, proposições, conhecimentos

produzidos eram levados em consideração pela consultoria e serviam de base para a

conformação das questões do seminário seguinte.

Com vista à consolidação da nova proposta preliminarmente formulada, um novo

seminário, o quarto, ocorreu em 2002 e, em seguida, duas reuniões de trabalho com a equipe

de EJA da Secretaria acertaram questões relevantes do ponto de vista da formulação histórica

da EJA no Estado e da prática burocrático-administrativa, que exigiria ações e intervenções na

área de planejamento, financeira, administrativa, assim como ações junto ao Conselho

Estadual de Educação78. Percebe-se o cuidado e a atenção com essas práticas políticas, sem o

que as propostas locais, os projetos pedagógicos podem não acontecer.

Ao longo do processo metodológico, algumas escolas, mergulhadas nas compreensões

de seus quefazeres e na possibilidade de autonomia que passavam a assumir, anteciparam-se

às formulações curriculares produzidas e iniciaram novos projetos pedagógicos. Um vivo e

dinâmico processo, catalisado por um esforço de organização e de pesquisa-ação que

constituía — e encarnava — novos sujeitos de pesquisa79.

[...] quando esses professores vêm, participam desses encontros, eles voltam pra escola entusiasmados, com vontade de fazer encontro com seus colegas para discutirem o que eles entenderam, absorveram e a proposta que eles querem colocar em prática, que eles pretendem colocar em prática. Isso pra gente, por exemplo, é interessante, mas na hora também que eles têm a dificuldade de participação... (Técnica SEC/BA).

O professor, quando ele é convocado, participa. Você se lembra daquele trabalho que foi feito aqui. A resposta maravilhosa do professor. Então, a

78 De maneira geral, as propostas de EJA formuladas são, tão logo aprovadas pelos coletivos, encaminhadas ao Conselho Estadual de Educação para apreciação e procedimentos cabíveis. Quando aprovadas, segue-se ato próprio do Secretário, que as regulamenta. Pode-se, com isso, constatar a preocupação de fazer não apenas legítimas, mas também legais as propostas de EJA, validando-as e garantindo a certificação plena aos usuários dessas propostas. 79 Por sujeito encarnado, entendo, com Najmanovich (2001, p. 23), aquele que passa a estar dentro do quadro, rompendo a “perspectiva linear que o mantinha de fora, imóvel e vesgo”. Participa de uma dinâmica criativa de si mesmo e do mundo, com o qual está em permanente intercâmbio, mas não está em todos os lados ao mesmo tempo, o que faz com que conheça em um contexto específico, expresso em uma linguagem determinada, ou seja, “haverá sempre um lugar específico da enunciação”. O conhecimento, dessa forma, “implica interação, relação, transformação mútua, co-dependência e co-evolução”, e haverá sempre um “buraco cognitivo”, uma zona cega que não podemos ver, e para a qual, constantemente, “somos cegos a esta cegueira”. A diversidade de enfoques é limitada por nossa corporalidade, que ajuda a compor um “imaginário” mais complexo, incluindo diversas fontes de informação, mas nunca infinitas fontes. Para a autora, só é possível conhecer o que sejamos “capazes de perceber e processar com nosso corpo. Um sujeito encarnado paga com a incompletude a possibilidade de conhecer”.

Page 238: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

236

gente tem um professor de EJA interessado, competente, sério. Eu acredito, nós acreditamos nesse professor (Técnica SEC/BA).

Também emergiu, entre os participantes, a compreensão de que a expressão do

currículo nas escolas se faz pelo projeto político-pedagógico que cada uma formule,

coletivamente, constatando que o movimento que as escolas para jovens e adultos fazem, para

essa tessitura, mostra a “nova face” dessas escolas, suas estratégias instituintes, que poderiam

vir a tornar-se instituídas, consolidando o compromisso com as classes populares, para quem

as escolas públicas majoritariamente se destinam. O nível micro da escola constituía um

espaço de autonomia que, nas contradições do sistema, poderia significar as brechas por onde

o novo ia sendo gestado.

No movimento da prática, algumas escolas traçaram caminhos com base na

participação direta, ousando experimentar o método democrático com todos os riscos e

virtudes que contém, dialeticamente. Aprendiam, nesse processo de construção do projeto, a

viver a autonomia, nos limites do que conseguiam intervir nas proposições formais, o que se

contrapunha, in limine, à uniformização, e se apresentava como o princípio básico da busca

que realizavam. Promovendo rupturas no pedagógico e no didático, as escolas dispunham de

outra possibilidade de autonomia, apesar de vinculadas ao sistema, aos poderes aos quais

estão ligadas, porque interferiam nas direções filosóficas e políticas, principalmente. Quanto

mais conseguiam participar de espaços de formação continuada em que as definições

filosóficas, políticas e epistemológicas eram rediscutidas, mais conseguiam avançar na

construção do espaço da autonomia. Contrária à padronização, a autonomia fazia com que a

diferença aparecesse. A diferença, surgindo como direito de iguais, permitia a parceria — ao

contrário do que autonomia poderia sugerir —, não significando isolamento, mas uma

incessante interação com a sociedade, para criar o novo.

Foi por essa autonomia que as escolas afirmaram sua singularidade, que lhes conferia

o direito de serem vistas, na rede constituinte do sistema público de ensino. Saíam do

imobilismo das teorias para construí-las no movimento vivo que os sujeitos coletivos

propunham na ação-reflexão-ação das práticas. E, sobretudo, ao estabelecerem outras relações

entre os sujeitos, no processo de tessitura do projeto de curso, resgatavam finalidades,

objetivos e conteúdos para a escola de alunos jovens e adultos, potenciais trabalhadores.

Reinventando o poder de se fazerem dirigentes do próprio processo de educação,

experimentavam metodicamente a democracia, para redizer o discurso da igualdade. A

proposta de curso de ensino fundamental para a educação de jovens e adultos enunciava,

Page 239: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

237

então, o caminho teórico-metodológico, assim como apontava a concepção epistemológica do

aprender e ensinar a esses sujeitos. Indicava a estrutura que absorvia a rede implantada, mas

deixava a cargo de cada unidade escolar definir aspectos que só ela, diante dos sujeitos alunos

e professores, seria capaz de fazer, porque tomava a realidade como objeto de conhecimento

para organizar sua proposta curricular.

Por meio do projeto político-pedagógico, professores e alunos, em cada escola, em

processo contínuo, poderiam fazer emergir suas práticas, valores, necessidades,

características, estabelecendo as melhores alternativas para permitir aos sujeitos jovens e

adultos usufruírem o direito ao ensino fundamental como experiência de sucesso, apagando

visíveis marcas de fracassos vividos em outras épocas.

Estando de acordo com a idéia de que o currículo incluía todo o processo de produção

sociocultural estabelecido no cotidiano das escolas/classes, em interação multicultural com as

formas dominantes (OLIVEIRA, 2001), e que esta vinha sendo a prática pedagógica de todos

os professores, a compreensão do coletivo avançou quanto à consideração inicial de que o

“produto” da pesquisa-ação deveria ter o caráter de um guia curricular, assumindo uma

concepção geradora de processos múltiplos de propostas curriculares.

Desvelavam-se, assim, para os professores, os fundamentos da concepção corrente do

que é currículo: propostas formais identificadas com listagem de conteúdos e/ou habilidades,

segmentados em disciplinas que se tornaram, pela visão da ciência moderna, uma forma

compartimentalizada de conceber o conhecimento. Alves (1999, p.2-3), assim explicita essa

idéia:

Esta “estrutura” vai, assim, organizar “uma” escola, em todos os seus níveis, cujos currículos são criados em torno de disciplinas, termo que tem um expressivo duplo sentido, e que são, elas também, hierarquizadas, fracionadas e entendidas como “passando” conhecimentos lineares.

O modelo e a realidade organizados a partir daí são “construídos”, com uma antecedência clara das disciplinas teóricas, formadoras de campo científico específico e organizadoras dos conhecimentos considerados necessários e aceitáveis de serem escolarizados, para o que precisam ser traduzidos para uma linguagem pedagógica. [...].

A maneira mesma como esta sociedade se desenvolve começa, especialmente a partir de meados deste século, a colocar em questão toda esta organização [...]. Nos novos campos de conhecimento, se detecta um esforço claro para superar a disciplinarização herdada do período anterior, com a criação de espaços que não se apresentam mais como “novas” ciências, e que são organizados como espaços amplos de múltiplos contatos e trocas.

Page 240: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

238

Observa-se que, mesmo quando há um único currículo proposto, entendido nesse

sentido, o que acontece nas escolas não corresponde à expectativa dos poderes que se

concebem com o papel de controlar as práticas docentes. O cotidiano da escola cria e recria o

currículo, intencional ou acidentalmente, com consciência, ou não, de que a alternativa

produzida seja, efetivamente, currículo.

Na educação de jovens e adultos, principalmente, tem sido quase impossível pensar

diferente deste modo de conceber currículo, pois os saberes em jogo não permitem ignorá-los.

Para que todos esses princípios ganhassem vida na proposta curricular, e considerando que os

saberes em rede não segmentam áreas, nem disciplinas, mas se enlaçam pelos fios de

conhecimentos, o coletivo de professores adotou um modo de organização do currículo,

tomando como base quatro unidades conceituais, a partir das quais se organizavam os projetos

de curso.

A gestora Nascimento, da Secretaria de Educação, ao discutir as questões desafiadoras

da EJA, assim se expressou:

[...] o professor, ele traz sempre a relação da seriação. E aí tem também essa relação da seriação vinculada ao conteúdo. Então, não é a necessidade do aluno, é o conteúdo da série X [...] Não gosto nem de falar de capacidades, não, competências. Capacidade que ele precisa desenvolver. Então, a grande dificuldade é fazer ele perceber que conteúdo está a serviço disso e não o conteúdo, como uma proposta em si [...] É desvincular, pra conceber o que é a EJA, da proposta seriada. Mas se vincular a proposta à necessidade do meu aluno... [...] A referência é quem é o meu aluno, o que ele precisa saber. O que a sociedade precisa que ele saiba, o que ele precisa saber. A referência precisa ser essa. (Gestora Nascimento).

Os conceitos escolhidos nesses momentos de formação remetem ao sentido final do

projeto educativo, ou seja, a formação da cidadania, com domínio dos instrumentos básicos

que facilitam o interferir e agir, criticamente, sobre o mundo — a leitura, a escrita, o

pensamento lógico-matemático e as relações sociais. Para dar-lhes sentido, conhecimentos

relativos aos diferentes campos de saber, que com eles dialogam, exigem reorganização — os

chamados conhecimentos científicos de cada campo —, de modo a se conectarem, trançando-

se, com os demais e com os produzidos na prática social, pela experiência.

Para Vygotsky (1987), a formação de conceitos dá-se sempre em processos

complexos, enlaçando os sentidos inicialmente atribuídos a novos fios que lhes vão

permitindo conexões que ampliam os sentidos originais. Quero entender este modo de pensar

a formação de conceitos como um processo em rede, o que significaria dizer que eleger

quatro unidades conceituais não redundaria, em absoluto, em restringir o trabalho pedagógico,

Page 241: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

239

pois a organização de cada unidade, ano a ano, tenderá a ser diversa, mais ampla, com novas

conexões, novos conteúdos, novos saberes, permitindo o tensionamento cada vez maior do

que era sabido até então, com o desafio de questionar esse saber e ampliá-lo/revê-lo,

modificando-o/reforçando-o, a partir dos novos fios que irão se entrelaçando com eles.

[...] na verdade a gente fala muito que os alunos precisam avançar, que os alunos têm saberes. Nós precisamos reconhecer esses saberes, mas pra gente é um pouco... tem sido ainda um pouco difícil, a gente matricula o aluno, o aluno apresenta determinados conhecimentos e saberes e a gente percebe que esses alunos poderiam estar em outro estágio e não apenas no estágio 1 e estágio 2. (Gestora Castro).

O que a gestora alerta é sobre como, apesar de o discurso dos professores levar em

conta os saberes dos alunos, na hora exata de reconhecê-los, até mesmo para efeito da

matrícula, o formalismo da escola prepondera e as referências evocadas criam obstáculos ao

reconhecimento do que são capazes os sujeitos que chegam, porque não portam os saberes

estritamente escolares — e que a escola sobrevaloriza.

Por isso mesmo, as quatro unidades conceituais estabelecidas para todo o curso

implicam, conseqüentemente, ressignificação permanente, pela ampliação de visões,

conhecimentos, saberes que se produzem a partir de conceitos já formados em momentos

anteriores/experiências vivenciadas. São alunos que chegam, são alunos que saem: a proposta

é viva e os níveis de realidade em que opera são multirreferenciados.

Coerentemente com o preceito do direito de todos ao ensino fundamental e a

concepção de que a aprendizagem não tem volta, mas se desenvolve como um continuum que

possibilita aos sujeitos avançar cada vez mais nas redes conceituais que estabelece, percebe-se

que a avaliação proposta para esse processo está prevista para ocorrer como um instrumento

que permita ao professor conhecer o que os alunos sabem, para continuar a propor desafios

cognitivos e afetivos que lhes permitam saber mais, trançando práticas, saberes, histórias.

Uma técnica da equipe da Secretaria de Educação relembra o que significaram os

variados momentos de formação, pelo que desdobraram de ocorrências transformadoras das

práticas dos professores nas próprias escolas: não mais isoladas mas, necessariamente,

coletivas:

Foi tão interessante, por exemplo, na reformulação do ensino fundamental, da proposta, com os professores... porque nem todos estavam, era um por escola, nós tínhamos uma representação com uma média de 80 professores participantes, e eles retornavam pra suas escolas, reuniam com seus colegas e discutiam. Quer dizer, eles traziam não apenas o produto deles, mas era o

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resultado de um coletivo. Quer dizer, eles pensavam, eles refletiam, mas também eles provocavam os seus colegas. Isso pra gente era muito rico. Isso foi, por exemplo, importante porque eles colocaram que foi, vamos dizer assim, eles colocaram que aquilo foi um desafio, porque eles não tinham ainda imaginado de eles retornarem... a intenção que eles pensavam era retornar pra trabalhar na sua prática. Mas eles sentiram que foram desafiados ao retornar para discutir o que se estava pensando sobre a educação de jovens e adultos. (Técnica SEC/BA).

Foi-se, assim, como se observa, fazendo a mudança tanto da proposta pedagógica,

como do projeto da escola, pelo novo entendimento do que significava a EJA, assim como dos

professores, em relação com seus pares. Co-autores da nova proposta, co-responsáveis pela

cumplicidade com os demais companheiros da escola, não são mais leitores, unicamente, de

um modo de conceber a educação de jovens e adultos mas são, principalmente, autores,

escritores dessa nova história.

66..22..22 AArrtteess ddee ffaazzeerr nn..ºº 22:: nnaa PPrraaççaa CCaassttrroo AAllvveess,, CCeennttrroo ddee EEdduuccaaççããoo ddee AAdduullttooss

MMaaggaallhhããeess NNeettoo

O Centro de Educação de Adultos Magalhães Neto foi criado, segundo seu atual

diretor, para ser uma referência em educação de jovens e adultos, com a particularidade de

abrigar diversas ofertas de atendimento na modalidade.

A história e as concepções que passo a construir são produzidas a partir da pesquisa,

quando visitei a unidade escolar e realizei entrevista coletiva nesse mesmo espaço com o

diretor e sua adjunta, em 11 de março de 2005, acompanhada de três técnicos da equipe de

EJA da Secretaria de Educação. Ambos bem jovens, solícitos, disponíveis para contar a

experiência à frente do Centro, apresentá-lo e compartilhar o entusiasmo com o trabalho na

EJA.

A iniciativa de implantação do Centro de Educação de Adultos não foi proposta nos

tempos atuais, mas na década de 1970, sob a concepção de que o aluno seria autodidata.

Instalou-se bem mais tarde no prédio em que está localizado, na Praça Castro Alves, no centro

de Salvador, local de forte relação com as manifestações populares na cidade, e de grande

circulação da população mais pobre, pelo comércio e oferta de serviços ali encontrados; de

economia informal, com ambulantes de toda a sorte oferecendo serviços e produtos quase

sempre de baixa qualidade, mas de preço acessível; de perambulação de meninos e meninas

em situação de risco social; de encontro e acordos entre desocupados, cheiradores de cola, ou

seja, tudo e todos que ali vivem e trabalham misturados ao afluxo de veículos e pessoas e ao

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241

vai-e-vem cotidiano. Um prédio vertical, espaço adaptado de antiga secretaria de estado, com

vários andares e acessos por escadas e elevador lento, com movimento intenso de alunos pelos

corredores, uma portaria de recepção no térreo acolhendo os chegantes. Nenhum modelo

arquitetônico ideal, mas um espaço limpo, provido de recursos variados, com pessoas

ativamente participando: vida por todo canto.

Convertida em Centro de Educação de Adultos quando se instalou no endereço atual,

funcionou como experiência inovadora, adotando a idéia de que a construção do

conhecimento é mais favorecida com o contexto, em grupo, o que exigiu de todos os

professores estudos e aprofundamentos teóricos, pautados na realidade do público local que

prontamente acorreu ao Centro, para que fosse possível a mudança de paradigma com a qual

era concebida, até então, a EJA. São 1.680 alunos matriculados no Programa Tempo de

Aprender (que utiliza materiais do Telecurso 2000, para ensino fundamental e ensino médio,

recebendo os alunos em dois dias na semana); 4.700 em programas modulares e mais de 100

alunos no Programa Aceleração, presencial. Além desse atendimento no local, a unidade

funciona em Postos de Extensão, outra tentativa da Secretaria de aproximar a escola dos

alunos, em modelos mais adequados à realidade dos trabalhadores, a partir da celebração de

convênios com empresas. A escola vai à empresa, cabendo à primeira a coordenação do grupo

de professores e a matrícula dos alunos; a organização do horário dos professores, cujas aulas

acontecem no espaço destinado na empresa, com carga horária determinada para cada

disciplina. Os Postos de Extensão vinculados ao Centro estão na Marinha, na Universidade

Católica, na empresa Paraíba capital, no CAP, no Ministério da Fazenda, no Hotel Fiesta, no

Shopping Iguatemi, no Supermercado Extra, quando os trabalhadores são dispensados durante

2h do turno de trabalho para estudar. Com a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) foi

assinado convênio, derivado da visita do príncipe de Espanha e denominado Projeto Escola

do Carnaval. Um outro convênio, com vista a atender adolescentes em situação de risco

social, com metodologia proposta pelo governo espanhol e financiamento do Ministério da

Cultura, visa à qualificação profissional na área de restauração e patrimônio, associada à

escolaridade. Este projeto já recuperou o prédio da Faculdade de Medicina, no Pelourinho, e

pela qualificação dos adolescentes na área de restauração disporá de pessoal com

conhecimentos para atuar em projetos de outros prédios vinculados ao patrimônio histórico da

cidade.

A presença de tantos adolescentes na região, muitos sem escolaridade e sem ocupação

formal foi sinalizada pelo diretor, e observada por mim, logo na chegada. Observe-se, ainda, a

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concepção expressa em sua fala, em que flagrante era sua preocupação com a

descaracterização do público a que se destina a EJA, pelo ingresso de jovens que deixam a

escola regular em busca de maior agilidade nos cursos, horários mais flexíveis e alternativas

mais adequadas à sua realidade de vida e trabalho, provocada, de certa forma, pelo

rebaixamento da idade para exames, no Art. 38 da LDBEN:

[...] E assim a gente percebe que o direito, esse direito que é dado pra esses adultos, porque deixaram de estudar na idade regular, porque lhe foi renegada a condição, ao próprio direito de estudar nesse período, é realmente dado nesta nova etapa da vida dele. Só que eu percebo, hoje, que está havendo uma descaracterização dessa clientela. Porque, na realidade, a educação passa por determinadas situações difíceis. A escola, hoje, está recebendo alunos dos mais variados segmentos, que antes não cursavam a escola pública. [...] em todas as modalidades, está incorporando clientes que não eram, que não são, talvez, o público realmente alvo da concepção. Tanto pela questão do perfil da clientela, pela faixa etária... não são tão adultos, mas às vezes são esses jovens que estão correndo da escola regular. Porque hoje em dia todo mundo acha que o tempo tem que ser eliminado pelo atalho. [...] E a gente tem percebido que é uma situação nova. O sistema de cotas foi implantado na universidade e está trazendo alunos da escola particular pra se certificar pela escola pública, pra ter direito a ingressar no sistema de cotas. Então, existe realmente, uma descaracterização da escola. Quem trabalhou em 91, e até com outra metodologia, percebe que hoje a clientela está totalmente assim, é uma demanda muito grande de alunos mais jovens, e aí muitas vezes o professor fica sem condições de... até pela própria diversidade que é a sala de aula, a diversidade que ele encontra, de fazer um trabalho. Porque a gente não quer homogeneidade, mas a gente quer um público com um perfil delineado pela política que está se propondo a atender nesse segmento. Então, hoje é isso.

Nesta fala, o diretor expôs duas situações que vêm mudando a concepção da educação

de jovens e adultos. A primeira, as pressões criadas pelos sistemas de cotas e de acesso direto,

desde que aluno de escolas públicas, fazendo com que jovens egressos de qualquer tempo e

nível venham para a EJA e, até mesmo, saiam de escolas que freqüentam, privadas, para

auferir os benefícios da legislação. Outra, a presença de muitos jovens que abandonam a

escola e o curso regular de ensino, para se beneficiarem de trajetórias mais encurtadas,

supostamente mais rápidas. Com isso, de muitos modos, percebem os interesses diferenciados

desses grupos etários, o que acaba comprometendo as propostas pedagógicas e curriculares

que estabelecem para o Centro.

O movimento de entrada dos mais jovens, que até mesmo abandonam a escola, em

função de políticas de ação afirmativa, como a das cotas, não é, apenas, uma disposição dos

alunos, mas também sofre o estímulo de seus pais, como se poderá conferir pelo seguinte

depoimento do diretor:

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243

[...] a gente acaba que aceita essas pessoas... essas mães, esse pais que permitem que os alunos fiquem dentro de uma faculdade 1º ano, 2º ano e depois passam pras faculdades particulares. Na Universidade Federal e na Universidade Estadual é mais difícil. Nas particulares é imenso e chegam aqui pressionando. Querem fazer todas as avaliações no momento único, como se houvesse essa condição. Então, a gente percebe que realmente, por conta de toda essa... esses fatores, aquela situação do professor que se atrofia na metodologia, na concepção de jovens e adultos, muitas vezes ele tem essa vontade. Mas, ao chegar na sala de aula, ele acaba tendo que, de certa forma, redirecionar o trabalho.

A preocupação do Centro repousa, primeiramente, sobre a necessidade de acolher os

alunos: “nesse momento que retorna é o momento de acolhida, de valorizar o que eles fazem.

[...] a gente tem o cuidado de fazer com que os alunos que retornam sejam bem acolhidos,

porque esses alunos carregam um estigma” (Diretor). Tanto o diretor quanto a adjunta

revelam preocupação com esses estigmas, de muitas e diferentes ordens, pelo fato de saberem

o quanto interferem na auto-estima. Muitas compreensões sobre essa condição de

subalternidade e como ela se expressa na vida de cada sujeito, produzindo fracassos os mais

variados e colocando-se como impedimentos para que possam resgatar o direito negado,

vieram à tona:

[...] valorizar a identidade das pessoas. Eu acho que a gente tem conseguido muita coisa. Entendemos que assim os resultados poderiam ser melhores, estamos até fazendo um levantamento agora. Mas porque essa clientela é também uma clientela muito sortida. [...] percebe-se aqui que muitos começam a escola e tem também aquela questão de troca de turno porque vive em função de uma ocupação, da informalidade. Então, quando tem emprego, perde o emprego ou estuda, e isso dificulta. Quantas vezes já tivemos que dar vale transporte pros alunos? [...] vem com essa concepção de que ele não aprendeu nada e sabemos o quanto a escola da vida ensina a pessoa. (Diretor).

E continua, dizendo do movimento que a escola faz no sentido de ajudar os que

chegam, por intermédio da ação pedagógica adequada, a permanecerem incluídos no sistema

e obterem êxito — palavra riscada do vocabulário da população pobre, em geral, no país.

Mas a gente aqui busca. Os professores aqui têm... têm assim esse objetivo de fazer com que ele se aproprie da metodologia, que tenha uma concepção de que a escola tem que ser inclusiva. Que não é apenas o acesso, mas manter esse aluno na escola, e buscar a... o conhecimento e a peculiaridade.

[...] em algumas situações acabamos mostrando que esses alunos são capazes de construir conhecimento. (Diretor).

O diretor explicitou, ainda, a busca por um sentido mais amplo para o que pode ser a

educação de jovens e adultos. Reforçou as formulações dos textos legais, indicando que a

oferta da escola não se restringia aos alunos matriculados em projetos de escolarização, nem

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somente voltada ao mesmo público, oferecendo projetos de natureza diversa, como era o caso

de cursos profissionalizantes. Ressaltou que a escola se abre e presta serviços à comunidade, a

todos que desejarem participar, anunciando o sentido do aprender por toda a vida, proposto

desde a Declaração de Hamburgo.

[...] inclusive o curso de informática também não é só para os alunos. Temos informática básica aqui com eles. Temos um laboratório com 32 máquinas. Então, temos professor nos três turnos e atendemos os alunos da casa e os alunos, ex-alunos e o pessoal da comunidade também que está interessado em participar.

O sentido do direito à educação, e da visibilidade que o atendimento a esse público

precisa ter, assim como da consciência pública de que educação é investimento, e não gasto,

também surgiu na fala. No segundo parágrafo, abaixo, referiu-se, especificamente, às formas

como veio sendo nomeada a área nas políticas públicas baianas, em busca de financiamentos

— Aceleração etc.:

[...] tem o direito, tem que ser garantido, tem que ser realmente. Acabou aquela coisa que é pra suprir, é pra... é um direito que lhe assiste.

Agora me parece que a EJA é EJA. Agora a EJA é EJA. Porque há alguns anos atrás, a EJA não era EJA. A gente tinha que fazer todo um malabarismo, pra fazer EJA. E aí hoje me parece que o recurso que vem realmente será investido na educação de jovens e adultos. Porque sabe que educação não é gasto, é investimento. Então, precisa investir na estrutura da escola.

Por último, quanto ao que pode/não pode a educação, mas sim quanto ao que sem ela

não se é capaz de fazer, e para o que se demandam políticas setoriais mais ampliadas, fugindo

de modelos compensatórios, o diretor assim se expressa:

[...] o quanto a sociedade está precisando investir em determinadas situações pra que a gente possa eliminar um pouco essas desigualdades. A saída não é só educação. É investir no emprego para que as pessoas possam se sentir capazes de trabalhar e lutar pela melhoria da sua qualidade de vida.

Sem ela (educação) não muda nada, não transforma. Mas, assim, é preciso que a gente pare de fazer tanta ação compensatória de bolsa isso, bolsa aquilo e resolva esses problemas todos que nós temos e são tão antigos.

FFeerrrraammeennttaass qquuee oorrggaanniizzaamm aass ssiittuuaaççõõeess ddee aapprreennddiizzaaggeemm:: ccoonncceeppççõõeess ddee ccuurrrrííccuulloo

Quanto ao currículo — o que é e como pode ser pensado em função de seu público e

dos objetivos da escola — emanou da entrevista, tanto na fala do diretor, quanto de sua

adjunta, revelando sinalizações centrais e acuradas de um modo de pensar currículo muito

próximo das concepções que buscam novos paradigmas, para além dos modelos

Page 247: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

245

convencionais, identificados com as célebres listagens de conteúdos universais (como se

fosse, isso, possível), submetidos aos alunos, para que os “dominem”.

Porque na escola regular, conteúdo por conteúdo já não atende, porque existe a necessidade de contextualizar, de desenvolver as competências, habilidades que, muitas vezes, aquela concepção de educação onde o professor é apenas um instrutor. [...] essa aqui é uma escola que tem uma concepção diferente, uma metodologia diferenciada.

[...] Mas a gente pede que eles [os professores] possam estar agregando a esses recursos, mas que eles [os professores] estejam com a intenção educativa, com a sua criatividade. Atrelado àquilo que eles planejam e aos projetos, que são desenvolvidos pra cada etapa, estarem buscando fazer a diferença porque se não os alunos acabam evadindo, além de fatores externos, acabam evadindo porque a escola muitas vezes está muito distante. [...] Não tem prazer, não tem nenhum tipo de atrativo. A gente tem realmente esse cuidado, agora eu acho que a Secretaria podia investir mais um pouco. (Diretora adjunta).

A construção metodológica de projetos, para expressar o currículo, parece vir sendo

adotada com relativo sucesso, pelo menos entre os alunos, que se encantam com as

possibilidades abertas à curiosidade, ao conhecimento, a novas e possíveis leituras de mundo,

oferecidas em atividades culturais, tanto no interior da escola, quanto em incursões pelo

bairro, próximo ou mais distante; por meio de palestras e ações concretas que desmitificam

práticas preconceituosas, arraigadas nos espaços públicos, encobridoras da identidade étnica

da população e fortemente conformadas nos sujeitos vítimas dos preconceitos. Observa-se que

se incluiu a declaração de cor nas fichas de matrícula, e de que modo podem se perceber

mudanças entre atitudes declaratórias na entrada de sujeitos, ao fazerem a matrícula, antes da

intervenção pedagógica:

Porque nós tivemos aqui algumas experiências de trabalhar com projetos que a gente acabava assim se... se espantando com o nível de comprometimento, o nível de envolvimento desses alunos, ao perceberem que eles podem fazer pesquisa. Tem professores que usam algumas atividades fora da sala de aula. Aqui mesmo eles passam bastante. Então existem aulas vivas no Pelourinho, vão para o Abaeté. Então, aquilo que sempre se pensou que não poderia ser feito com esses alunos, tem comprovação que foi feito. Talvez, a gente não tenha registro, tipo memorial. Mas tem até alguma coisa escrita, fotografias, que esses alunos podem demonstrar, através dessa metodologia, que eles se tornam sujeitos da construção de conhecimento. Quando eu passei aqui de 1997 a 2001, fizemos muito isso e eu tenho certeza que o pessoal ficou, de 2001 até agora, implementou mais projetos, buscando valorizar dimensões que muitas vezes a educação não desperta nos alunos. Na questão das artes, no envolvimento com questões de relações de etnia, de gênero. (Diretor).

[...] descobrir jovens que moravam aqui mesmo no centro da cidade, e não conheciam muitas coisas. Então, nas idas aos museus, isso foi uma coisa interessante que eles despertaram esse gosto. Então, eles vêem aqui e

Page 248: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

246

questionam: “A gente não vai continuar com aquele projeto?” Porque nós temos uma parceria também com o TCA [Teatro Castro Alves], então esses treinos, não é treino, é... a orquestra sinfônica faz sempre aquelas apresentações nos finais de tarde e os nossos alunos sempre estão presentes. Então, é também uma coisa interessante, que eles não conheciam o que era um teatro. Eles vão ao teatro. Eles, nós. Fizemos, também, ateliê de pintura. Eles começaram a descobrir que têm outros talentos que podem ser descobertos, e a escola está levando esses alunos a conhecerem que eles são capazes dessas coisas. [...] “aquilo eu pintei, aquilo foi uma criação minha naquele momento” [reproduzindo fala de aluno, aponta quadros na sala e depois também vistos nos corredores e no hall de acesso ao elevador]. [...] No mês de novembro é o mês da consciência negra. Nós fazemos, sempre, apresentações aqui, vêm palestrantes, eles têm ateliê de trançado. O pessoal do Pelourinho vem, trabalha aqui com eles. A gente mostra essa valorização da mulher, do homem negro, essa figura do negro que, até então, ainda é estigma. Esse ano mesmo, no período da matrícula, tem o item que foi colocado, que questiona sua cor e raça. Se ele é branco, preto, pardo, amarelo ou indígena e a gente nota que os que estão chegando, ainda não conseguem dizer que são pretos. Eles dizem todos que são pardos. “No meu registro está escrito pardo”. A gente olha e vê que a figura é negra. Eles não têm ainda aquela consciência do que é ser negro hoje na nossa sociedade. (Diretor).

A consciência da desigualdade não está ocultada, esteve presente nas falas e na defesa

das metodologias de trabalho pedagógico, assim como nos acessos aos espaços da escola, no

modo como circulam nesses espaços, como exibem os materiais produzidos, visíveis e

destacados nas paredes dos corredores, assim como a atenção dispensada a cada um deles,

quando saímos do gabinete do diretor para circular pelos andares da escola.

Aqui o negro tem espaço, o adulto tem espaço. Aquela pessoa que deixou de estudar 10, 20, 30 anos pra criar os filhos eles vêm pra aqui. Esse ano mesmo foi muito gratificante, uma aluna nossa saiu e passou na Universidade Católica e depois ela veio aqui agradecer. Ela disse: “Eu cheguei aqui pra baixo, eu achava que eu não era capaz e a escola me mostrou que eu sou capaz de conseguir alguma coisa”. Então, como ela, nós temos vários depoimentos desse tipo [...]. (Diretor).

Quanto às formas como a organização curricular vai-se fazendo, atendendo as

necessidades de horários de jovens, de trabalhadores, segundo recomendação/compreensão do

Parecer CNE nº. 11/2000, de modo a adequar a proposta curricular aos usuários da escola,

observa-se também que há autonomia no Centro de realizar sua própria proposta, sem que

haja interferência do poder central, coerente com a idéia de que se deve ter sob foco o jovem e

o adulto, em suas reais condições de vida. A diretora adjunta assim relatou o processo

decisório que a escola estabeleceu em relação à implantação do Telecurso 2000 (no Tempo de

Aprender), com vista a, reconhecendo as dificuldades e problemas do modelo inicial, ajustar o

Programa às condições do público envolvido.

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247

[...] a própria Secretaria, de início, quando implantou o projeto Telecurso 2000, tínhamos apenas um semestre daquela disciplina. Depois foi discussão, aqui mesmo da escola, juntou os professores. Então, nós percebemos que havia necessidade de, pelo menos nas duas disciplinas que os alunos chegavam com maior déficit (português e matemática), ser diferente. Era passar de seis meses para um ano. Era ficar em dois módulos. Então, isso partiu daqui. Agora já temos feito também com relação ao ensino fundamental, porque no fundamental o aluno pode concluir em até um ano, as quatro séries. Então, estávamos percebendo que eles estavam chegando no ensino médio com grandes deficiências, principalmente em leitura. Então, português e matemática também, a partir de 2006, já será um ano para os alunos também do ensino fundamental. E outras questões, como o projeto político-pedagógico... porque existe, a Secretaria tem modelo, mas a gente vai adequando à nossa realidade, às nossas necessidades e isso tudo de acordo com as necessidades que são observadas durante todo o período, com alunos, professores e isso tudo bem repensado. (Diretora adjunta).

Explicando o programa modular, em que o aluno tem maior flexibilidade de horário,

podendo organizar sua participação segundo sua disponibilidade, a mesma diretora adjunta

disse:

[...] agora, os alunos, eles não têm aulas regulares. Eles vêm, são atendidos... O mínimo são dois dias na semana. Eles têm que vir à escola. Eles têm cinco aulas de cada disciplina. Então, é como se fosse uma faculdade. Esse aluno já está preparado para a faculdade. Porque aquele horário que a Universidade Federal tem, que a Católica tem, você vai, olha a disciplina, fala com o professor. Aqui você olha essa mesma coisa. Então, o aluno chega e diz: eu só posso vir aqui 3ª e 5ª. Aí a gente vai acertar um horário com aquelas disciplinas, pra esse aluno, naquele dia. Aí ele vem assistir aula nos primeiros horários, ou nos últimos, naqueles dias. Depois ele vai embora. Então, a nossa rotatividade é muito grande. Uma sala só, cada turno são duas turmas, no mínimo. (Diretora adjunta).

Mas, ao mesmo tempo, a diretora adjunta reconhecia que a organização era mais

adequada quando se tratava de alunos trabalhadores, e pouco satisfatória em relação a

adolescentes. Para esses, a perspectiva desejável era a de que se reinserissem nos processos

pedagógicos de cursos, não saltando obstáculos, porque tinham a oportunidade até então

considerada perdida de capturá-la, em pleno vôo, possibilitando a vivência de processos de

aprendizagem mais sistematizados, com tempos menos acelerados, com ritmos adaptados às

múltiplas dimensões da juventude.

[...] aluno trabalhador, eu acho muito válida a proposta. Agora, para o aluno adolescente, que ele está assim: repetência, repetência, repetência, escola, que sai das regulares e vem pra aqui, ele às vezes se frustra um pouco, porque ele estava acostumado com aquela aula do professor puxar muito e tal, muito assunto e muito conteúdo. (Diretora adjunta).

Page 250: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

248

Diferentes questões foram sendo reveladas, sinalizando a acurada visão da direção em

relação às necessidades dos alunos, e para cada uma delas buscando a melhor alternativa,

inclusive dialogando com a coordenação da Secretaria de Educação, no sentido de negociar as

formas de atender novas demandas não previstas, criando saídas próprias, particulares, mas

jamais deixar de atender, mesmo quando os alunos vêm com questões burocráticas de

documentação não-regularizada.

A gente, a gente estava discutindo aqui com ela que nós estávamos recebendo um número muito grande de alunos com conhecimento, mas sem a certificação de 1ª a 4ª série, e aí tem uma Portaria, que pela LDB qualquer unidade escolar dentro do seu regimento essa... esse tipo de atendimento pode-se fazer. Mas a gente tem uma portaria que limita a apenas algumas escolas mas se percebe que tem crescido. Essa semana estava conversando com a coordenadora que os que vêm são agregados hoje e o que fazer com aqueles que não são agregados? A gente está com uma idéia embrionária de criar um tipo de atendimento pra essas pessoas, onde elas possam fazer oficina de leitura, de escrita, aprofundamento em matemática pra que essas pessoas retornem e se sintam capazes. Então, tem que estudar essas linhas.

[...] As escolas onde estudavam era de roça, de interior. Não eram autorizadas, eram professoras particulares. Então, esse pessoal é uma demanda muito grande, essa procura aqui pra regularização. (Diretor).

Por fim, e introduzindo a discussão da formação continuada, como suporte às

concepções que professores forjam sobre a EJA, trago para o texto a percepção do diretor,

quanto ao que fundamenta, em síntese, qualquer concepção traduzida como currículo: “Não

se faz política de currículo sem investimento em capacitação do professor”.

CCoonncceeppççõõeess ddee ffoorrmmaaççããoo ccoonnttiinnuuaaddaa ssuubbjjaazzeemm ààss ccoonncceeppççõõeess ddee EEJJAA

Devo destacar que o Centro de Educação tinha, todo o tempo, sempre muito a dizer a

respeito de cada aspecto do processo que envolve a educação de jovens e adultos. Como tal,

não deixaram de abordar, com consistência, questões relativas à formação continuada, sob

diferentes aspectos. Um deles referia-se à perspectiva de propor, com autonomia, processos

próprios, pela existência de recursos voltados a esse fim.

A escola hoje já recebe recursos pra capacitação do professor e, obviamente, que a escola sinaliza aos professores, e eles também dão opiniões de como que é... [...] hoje já tem até autonomia, os recursos, quando chegam, podem ser analisados pra esse... pra uma capacitação. (Diretor).

Percebe-se que a continuidade das iniciativas que formam, na prática, os professores,

dá margem à tomada de consciência da função social desse profissional, não mais submisso a

Page 251: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

249

um próprio do poder, que esvazia de sentido a prática — e a reflexão sobre ela —, de quem

faz educação80.

[...] com o tempo vai criando a consciência que não pode mais ficar recebendo as coisas sem poder falar, fazer crítica da situação. [...] Por mais que a gente tenha tido essa mudança na posição política, praticamente há séculos no Brasil a gente percebe que parece que tudo aquilo que se esperou você sabe que não se resolve num passe de mágica. (Diretor).

Mas ainda assim, e mesmo com recursos e autonomia para decidir, a avaliação do

diretor sobre os processos de formação continuada deixava perceber a insuficiência de tempo

dedicado a essa atividade, assim como expressava a demanda por especialização na área de

jovens e adultos, mesmo reconhecendo que em outros espaços isso não acontecia:

As capacitações que as escolas conseguem fazer são capacitações momentâneas, muito rápidas. Então, é preciso investir na formação do professor, que é fazer cursos de EJA. Nós temos aqui alguns professores que fizeram especialização em jovens e adultos. Então, pra esses professores é bem mais fácil trabalhar, porque ele entende a concepção, ele compreende que a metodologia tem que ser algo diferenciado. (Diretor).

Não só o tempo aparece como capataz nos processos de formação continuada. O

desafio que se coloca para a gestão pública, no tocante à formação continuada diz respeito ao

quanto tem sido difícil aproximar os momentos de formação, de reflexão, às práticas, que não

mudam facilmente, mesmo quando se consegue estabelecer um diálogo profícuo entre todos

os docentes.

[...] é um momento que a gente pára pra discutir, pra ler alguma coisa, pra repensar as nossas práticas. Mas o que eu observo também é que por aí afora isso não acontece com o professorado. (Diretor).

A gestora Castro apontava que a formação continuada, sem a possibilidade de

acompanhamento sistemático, resultava tibiamente em mudança, o que exigia repensar, nos

sistemas, o tamanho das equipes, sua composição, sua função permanente, e não episódica:

Mas a gente sente, não sei se é por falta de formação mesmo do professor, essa dificuldade que eles têm de traduzir isso na sua prática pedagógica [...]

80 Nesse aspecto, e comentando a reflexão do diretor, poder-se-ia admitir que também ele se refere aos modos como a política tem agrilhoado corações e mentes baianos, nos difíceis jogos e embates que estabelece com a realidade da população. Mas o cotidiano dos habitantes da cidade de Salvador, no entanto, têm dado também duras respostas políticas ao “poder carlista”, derrotando-o sistematicamente nas eleições da capital, com vitórias esmagadoras da oposição para a prefeitura da cidade. Do mesmo modo, o “poder carlista” vem-se enfraquecendo no interior, rapidamente nos últimos anos, face às situações complexas em que o político se envolveu/viveu, perdendo prestígio e fôlego, e abrindo flancos para a passagem de outras vozes de resistência, há 500 anos sussurrantes.

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250

Na época da implantação da suplência, quando a aceleração era suplência, nós fizemos núcleo e íamos em todas... a cada unidade nós visitávamos esses núcleos, fazíamos acompanhamento. Eu achei que naquela época houve um crescimento no entendimento (Gestora Castro).

Reforçando o aspecto da distância entre o discurso e a prática, uma técnica da equipe

central disse que isso fazia com que os avanços na área fossem tão pouco perceptíveis, mesmo

quando os professores se submetiam a processos de formação:

[...] Quer dizer, isso na fala, mas na hora mesmo de colocar na prática isso está sendo difícil. A gente não percebe, não faz esse encaminhamento, a gente não percebe a prática e a teoria. Porque a fala você vai perceber muito fácil aquilo. Porque muitos estão colocando que eles entendem, mas a prática deles é um pouco diferente. (Técnica SEC/BA).

Novas questões surgiram, estruturais, relativas à rotatividade de professores no sistema

que, embora tivessem passado por momentos de formação, não se fixavam na educação de

jovens e adultos por causa disso, nem tinham vínculo docente com a modalidade81, mais

atendendo a seus interesses pessoais, nas decisões tomadas quanto a turnos e horários, o que

implicava, para a gestão pública, um eterno recomeçar.

[...] aliado à questão que, às vezes, nós temos professores que participam até da capacitação, do período de formação. Em menos de um ano, de dois anos esses professores não estão mais na escola. Então, existe também, infelizmente, essa questão da rotatividade. Porque os professores do noturno eles não são professores efetivos do noturno de EJA. Eles estão trabalhando na EJA, estão trabalhando no noturno, são poucos os que querem, se identificam mesmo com profissionais de EJA, que querem permanecer na EJA. (Técnica SEC/BA).

De maneira geral, a avaliação da direção da escola sobre a forma como a educação de

jovens e adultos vem sendo tratada, como política pública, na rede estadual de ensino da

Bahia era positiva, revelando, no entanto, horizontes sempre mais distantes — da dimensão

do sonho de uma educação melhor, de uma escola melhor, em que todos seguissem...

aprendendo.

De 97 até agora, percebe-se que até as condições de trabalho melhoraram. [...] até a própria política da Secretaria, de investimento na gestão das

81 Essa observação na rede estadual da Bahia coincide com muitas outras pelo Brasil afora. Como poucos ainda são os cursos que formam, tanto em nível médio, quanto na educação superior, profissionais para a EJA, os concursos para professor não distinguem, na oferta de vagas, a distribuição por nível ou modalidade de ensino. Com isso, tanto um professor habilitado para a EJA pode passar a trabalhar na escola regular de crianças, quanto na educação infantil, quanto o contrário pode acontecer. Embora se aponte para a necessidade de discriminar as vagas ofertadas no sistema nos editais de concurso, não conheço registro de experiências acontecidas desse modo. O mesmo acontece, por exemplo, na educação infantil, em que o desconhecimento de cursos que habilitam para a área não impõe uma oferta discriminada de vagas para um sistema público.

Page 253: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

251

escolas... os ambientes estão mais favoráveis. Os recursos estão mais à vontade. Os recursos hoje precisamos realmente até valorizar, talvez, valorizar esses recursos, e estar sempre utilizando. Mas é preciso investir mais. Educação nunca é... a gente nunca teve tanto recurso.

Obviamente que a gente está... aos poucos, a gente está construindo a escola que a gente tanto sonha. Uma escola onde as pessoas cheguem, se sintam à vontade, aprendam e continuem sua trajetória de vida. (Diretor).

66..22..33 AArrtteess ddee ffaazzeerr nnºº 33:: CCoollééggiioo ZZiillmmaa PPaarreennttee ddee BBaarrrrooss

A passagem por essa escola foi breve, mas bastante relevante. Conhecida de há muito,

pelo fato de seus professores estarem sempre presentes e atuantes em momentos de formação,

considerou-se indispensável visitá-la. A primeira surpresa, para mim, deu-se pelo fato de a

escola ser pequena, acanhada, acuada no terreno imprensado no morro que lhe dá os fundos.

Espaços de circulação estreitos, mas tudo funcionando, sala de diretora, salas de aula,

biblioteca, alunos entrando e saindo, vida, pois.

A presença da diretora em sua pequena sala não era pequena: fazia-se grande pela

energia que emanava, quando narrava as realizações da escola, de seu corpo docente.

Informou que oferecem diversos programas/projetos em três turnos: no ensino fundamental, o

Modular I, em que o aluno estuda por disciplina, e à medida que vai estudando e concluindo

cada disciplina, avança no curso. Ao final, com as disciplinas do ensino fundamental

terminadas, recebe o certificado de conclusão. No Colégio funciona, também, uma Comissão

Permanente de Avaliação - CPA, em nível de 5ª a 8ª séries, para a avaliação de alunos sem

escolaridade comprovada. Os professores que atuam na CPA têm a metade de sua carga

horária como regentes de classe, para que não percam o vínculo, nem se afastem da realidade

dos alunos, de modo a melhor compreenderem as buscas dos candidatos aos exames. Para os

exames na CPA, o aluno estuda sozinho, por conta própria, ou “em algum cursinho que ele

tome aí pra poder adquirir mais conhecimento”. Observe-se que, nesse caso, diversamente do

que se espera de uma CPA, a diretora assume que não há qualquer orientação pedagógica ao

aluno, até mesmo para encaminhá-lo a uma das muitas possibilidades de cursar a EJA que a

própria escola oferece. A diretora continuava: “Ele vem, se submete e faz as provas naquela

escola. Tirando cinco, que é a média, ele também recebe o certificado de conclusão,

concluindo todas as disciplinas. E aí não tem idade fixa. De 15 até 50, 60, independente”.

O Zilma Parente, como é conhecido, ainda oferece o curso de Aceleração III, hoje

EJA III, em nível de ensino médio, além da EJA I e II. A diretora nomeava, indistintamente, o

Programa Aceleração como EJA, e vice-versa, revelando uma não-fixação da mudança,

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252

mesmo não sendo tão recente. O Programa Tempo de Aprender II, de nível médio, também

oferecido por disciplina, oferece alternativa semipresencial aos alunos, concorrendo com a

EJA III, presencial, embora com desenho bastante renovado. Destaca que o Programa Tempo

de Aprender II usa a metodologia do Telecurso, metodologia essa que no formato original não

prevê a presença de um professor, substituído por um orientador de aprendizagem. No

Programa Tempo de Aprender, no entanto, é um professor específico da disciplina que atua.

Todos os recursos — televisão, vídeo, livros — são oferecidos aos alunos e o Programa é

complementado com pesquisas, trabalhos individuais, em grupo.

[...] apesar de ser uma escola pública, nós somos bem equipados. Eu digo que nossa escola é uma escola rica. Nós temos tudo. Nós temos laboratório, não é fixo, aquele móvel. Nós temos laboratório móvel pra 2º grau. Nós temos em cada sala televisor de 29’’. Nós temos três aparelhos de som. Nós temos computadores. Nós temos DVD. Nós temos vídeo. Temos muita coisa aqui na escola. Graças a Deus, é uma escola rica. Temos duas máquinas de xerox, temos uma copiadora na CPA. Com a verba que nós recebemos não falta material na escola, graças a Deus. Em média, mais ou menos, entre o 1º e o 2º grau, 1.200, 1.500, não chega a 1.500, não. 1.200, 1300, mais ou menos (referindo-se ao número de alunos). Agora, com a CPA passa de 3.000. Com a matrícula da CPA durante o ano, dá mais de 3.000 alunos. (Diretora).

Sobre o discurso da diretora, cabe-me ressaltar uma questão que, embora não me

surpreenda, colho-a para simbolizar o quanto é tênue a construção democrática na escola

pública, e como o direito, quando se faz, ainda surpreende os próprios gestores. A diretora

mostra-me a ambigüidade de um sistema, em que, por dentro, mesmo os que o fazem,

entusiasticamente, atuando em gestões bem-sucedidas, com relativo sucesso são céticos em

admitir que é possível ser instituição pública e ser bem equipada, ter espaços pedagógicos de

qualidade e oferecer condições dignas ao fazer pedagógico. A descrença nas possibilidades

dos ideais republicanos é severa, até quando se é em grande parte responsável pelo seu êxito.

Um diretor, evidentemente, não pode, sozinho, ser responsabilizado pelas lacunas que deixam

o tecido da escola perfurado e frágil como um filó, qualquer que seja esta escola, mas sem

dúvida carrega a responsabilidade da gestão ou da denúncia pela inadequação de meios aos

fins que deve fazer cumprir. Ter recursos, na rede pública pode ser quase um privilégio, mas

não garante qualquer resultado por si só, porque os recursos podem constituir os meios,

enquanto os fins dependem de pessoas, de formação, de engajamento, de compromisso ético,

técnico e político.

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253

A diretora complementou a informação dizendo que os alunos passam, em média, na

escola, dois anos, dois anos e meio, no máximo, e respondendo a pergunta quanto ao número

de professores, informou-me que a escola tem, mais ou menos, uns 30.

A audiência a peças teatrais também foi apontada nessa escola como procedimento

pedagógico, assim como a ida a variados locais, como o Pelourinho, entre outros muitos

passeios que fazem com os alunos. Disse a diretora, buscando entender a minha surpresa com

o tamanho da escola: “Ela não é grande no espaço, mas em trabalho, em diversificação”.

Observo que sim, que a escola busca fazer uma EJA diferente, aproximando-se da concepção

de que a escolarização como direito, para jovens e adultos, não pára nos muros da escola, mas

se faz em múltiplos espaços educativos por toda a vida.

Referindo-se ao perfil dos alunos que freqüentam a escola, respondeu, apontando que

em nada o perfil diferia de muitos outros espaços de EJA:

Tem muita gente desempregada. Tem muita gente carente aqui também. Hoje mesmo chegou aqui uma menina. “Professora, a senhora” – com o olhinho quase fechado assim – “Minha diretora” – ela me chama de minha diretora – “Vim aqui conversar, eu não quero deixar de estudar”. Eu falei assim: “E por que é que você vai deixar de estudar?” Ela disse: “Olha eu não estou enxergando direito”. Eu disse “Por que é que você não foi fazer o seu óculos?” “Eu não tenho dinheiro pra comprar”. Eu disse “Vá, faça o óculos, traga, que nós vamos fazer uma vaquinha e vai comprar seu óculos aqui na escola”. Toda hora chega um pedindo: “Eu não tenho camisa”, pede a menina. “Pega a camisa M”... e lá vai o dinheiro de transporte. É muito carente.

Sobre os professores que trabalham na escola, a diretora diz que muitos ali estão desde

a inauguração, e que agora vários vão se aposentar. Chama a esses de “sócios fundadores do

Zilma”, dizendo que está cimentado entre eles a amizade, consolidada como se fosse uma

família: “[...] nós fazemos festa de aniversário, confraternização na casa de colegas, tem um

café junino aqui. Ano passado nós chamamos... quem foi que veio aqui? Foi... Irandina. Ano

passado ou ano atrasado, que nós chamamos pra ela participar. Festa de Natal...”

Questionada sobre como trabalhava com os professores, disse que com determinado

tipo de recurso que recebem, ofereceram, no ano anterior, curso de capacitação com os

professores da escola mesmo. Apresentou um material referente à Semana Pedagógica,

anunciando a programação e cada atividade a ser desenvolvida. Apresentou, ainda, módulos

que os professores elaboraram na área de matemática, e orgulhosamente contou que há ex-

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254

aluno da escola fazendo faculdade, aluno aprovado no vestibular de direito, outro que já fez

pedagogia, que cursou especialização na Uneb82 etc.

A falta de espaço cria dificuldades para abrir a escola para a comunidade. As salas são

pequenas, e quando há reunião, uma festa, uma confraternização, a comunidade é convidada,

mas de modo geral o limite da participação é dado pela falta de espaço.

Porque funciona em três turnos, há muitas mães de família, às vezes desempregados,

pessoas que deixaram de estudar há muito tempo e não têm o que fazer, muitas vezes

desocupados. Além desse público, adolescentes — que “ficam, ficam, ficam... 15, 16 anos,

não saem da 5ª série. Aí a mãe vem, bota aqui pra estudar. ‘Oh! vou botar no supletivo!’ Dá

certo. De repente eles se integram aqui na escola e vão embora” (significando que seguem em

frente).

Embora a descrição da escola se encaminhasse para admitir uma outra concepção de

EJA, em respeito ao direito dos alunos à educação, e a fazer uma escola inclusiva, a nomeação

da diretora ainda é de supletivo, o que talvez revele que ela também, não a única, acredita que

outra escola é possível, não importando o nome que lhe seja dado. Sua prática parece estar

mais fortemente demonstrando o quanto essa concepção é viva, quando aposta no

atendimento às necessidades dos alunos, desde o fato de ser uma escola de EJA funcionando

nos três turnos, visivelmente próxima às demandas do público que recebe, como também

disposta a produzir respostas, quer pelos materiais, quer pelas ofertas sociais e culturais

capazes de fazer a diferença no conjunto do sistema.

66..22..44 AArrtteess ddee ffaazzeerr nnºº 44:: oo CCoollééggiioo AAddrrooaallddoo RRiibbeeiirroo CCoossttaa

No Colégio Adroaldo Ribeiro Costa, localizado no Cabula, bairro de Salvador,

chegamos já era noite. Os professores, em maioria feminina, me esperavam há algum tempo,

quando cheguei à escola, acompanhada do pessoal da SEC. Escola grande, bem localizada,

embora, segundo a equipe, distante da rua principal onde passa o ônibus, mas abrigada no

interior de uma espécie de conjunto habitacional, em uma praça iluminada, simpática e

tranqüila. Havia um clima acolhedor no ar e quase todos permaneceram o tempo todo,

interessados e colaborativos, sem qualquer constrangimento quando teciam críticas ao

sistema, pelo fato de haver representantes da SEC. Com 500 alunos em cada turno, oferece

EJA II só à noite, atuando com 19 professores nesse turno. Em grupo focal com 13

82 Universidade do Estado da Bahia.

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255

professores da EJA II, incluindo a supervisora e a coordenadora pedagógica, e mais três da

Coordenação de Jovens e Adultos (CJA, equipe central da SEC), pude travar uma expressiva

discussão facilitada pela técnica de grupo focal.

Começaram falando sobre o que significava para eles trabalhar com a EJA:

O prazer é imenso. Porque você saber que está contribuindo pra alguém sair do ostracismo. Não é que a gente vá iluminar ninguém, mas você está contribuindo pra que ele vá adiante. É uma coisa assim impagável. E eu acho que a gente aqui faz o que a gente pode, o máximo que a gente pode. A gente fica criando [...] (Professora).

[...] conseguimos ter um noturno que todo mundo é apaixonado. Eu nunca vi nenhuma escola que todo mundo adora trabalhar no noturno porque fica até briga pra ocupar uma vaga no noturno porque encontra paz aqui, encontra tranqüilidade, a não-violência em todos os sentidos. E eles (os alunos) são muito respeitados aqui. Eles dizem. Eles dão esse depoimento. A gente cobra disciplina deles. Não é uma coisa assim aqui solta, ah! porque é noturno pode fazer o que quer... Os que têm menos de 18 anos a gente ainda chama pai. Qual a escola noturna que se preocupa com isso, o menor? A gente liga, pede pro pai vir, que acompanhe, por que é que não veio, por que é que não compareceu. Entendeu? Os pais gostam, trazem e às vezes vêm se matricular junto com o filho pra poderem acompanhar esses filhos que estão aqui. (Supervisora)

[...] eu gosto de trabalhar com o pessoal do noturno. Eu trabalho no noturno há 18 anos. Desde que eu entrei nessa escola. É uma vida, gente. É a minha vida que está aqui e meu sangue que está aqui. E eu dou meu sangue mesmo, sinceramente. Eu faço de tudo e aqui a gente faz o possível. Porque quando eu penso assim: “eu não vou, e se acontecer alguma coisa, eu não vou de jeito nenhum...” uma coisa que aconteceu comigo, eu estava me sentindo mal. A dor aumentando cada vez mais. Eu tinha marcado com eles pra ver um filme à noite – foi um período até de greve, porque a freqüência, porque estava de greve, eles faziam: “Será que lá tem aula? Porque nos outros colégios...” ficaram naquela dúvida. Então a gente fazia assim: filme, sessões de filmes assim, atividades, sessões de filmes com pipoca, com guaraná e tudo mais pra esses meninos. E nesse dia, eu tinha marcado e essa dor começou a aumentar. Eu estava na rua e começou a aumentar. Eu disse “Não, meu Deus do céu, eu marquei com eles. Se eu não for, eles não vão mais acreditar e não vêm mais!” “Não vou lá, não”. Eu fui no médico, na emergência, me deu injeção, até passar essa dor pra eu ir pra escola, porque eu marquei com eles. Então... porque aquela coisa... se fosse com outros meninos... — não que os outros não merecessem — eu não faria esse sacrifício. Eu ia pra minha casa. Aí a dor passou e eu vim pra cá. (Professora).

Os três depoimentos revelam o engajamento, o compromisso ético desses profissionais

com o fazer cotidiano da escola de jovens e adultos. Evocando Alves (1999), relembro como é

difícil pensar a escola como uma instituição única, homogênea dentro do sistema. Estão ali

fazeres diversos, pessoas comuns, profissionais como eu que, fortalecidos por laços de

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companheirismo trabalham cumplicemente para que a realidade dês muitos jovens e adultos

apartados do direito à educação possam tomar a oportunidade que lhes passa a ser oferecida,

sem futuros arrependimentos. Como dizer, então, a escola de jovens e adultos, se cada uma é

única, singular, na forma de expressar como se concebe, a serviço das classes populares? Ao

mesmo tempo, no entanto, não há simplificações, indiferença quando os alunos não fazem o

que lhes cabe: a disciplina traz até o pai dos jovens que, à custa da idade, tentam ser

inconseqüentes, expressando suas táticas de driblar os controles escolares, aprendidos nas

escolas regulares por onde já, seguramente, passaram. Não há autocomiserações, mas

consciência de que há acordos firmados, há pactos instituídos que não podem mais ser

rompidos, para que seja possível, de novo, a esperança, para acreditar que cada um que lá

está, importa, e que não pode desistir. Não há arrogância de saberes, mas há a certeza de que é

possível ir além, juntos, aprendendo, uns com os outros, e por isso, o prazer coletivizado.

[...] ela chega assim de mansinho como quem tem medo “Eu quero que a senhora tenha paciência comigo porque eu passei 20 anos fora da escola”. Então, isso aí quando você... você toma até um susto. Aí você diz assim: “O que é que eu posso fazer por essa criatura?” Você pega o textinho que ela construiu. Sente que ela está ali com um esforço danado e você se sente na obrigação de fazer o máximo que puder por aquela criatura. Então você vê a satisfação, a satisfação é grande nesse aspecto de você saber que está encaminhando alguém pra frente, não é? (Professora).

Falaram do perfil de seus alunos, novamente apontando a presença de jovens, que não

concluindo a escola regular, são “empurrados” para o noturno, pelas armadilhas sutis que o

poder sabe bem dispor, convivendo, por essas passagens prévias, com outros que estão há

muitos anos distantes dos bancos escolares.

Tem um público jovem e tem o que esteve afastado da escola por mais de cinco anos. Um exemplo assim recente é a turma da 1ª série desse ano, que tem dois alunos que estudaram no passado, abandonaram a escola e estão retornando e os demais estão afastados da escola por uns 10 anos. E o interessante é que são jovens de 18, 19, 25 anos, nessa faixa etária. (Professora).

Porque nós temos alunos até dentro do próprio colégio que já têm... que vêm do diurno e repetiram. Mesmo aqueles que repetiram, eles já têm uma bagagem maior. E aí nós encontramos também pessoas que passaram anos sem freqüentar uma escola. (Professora).

Mas falaram também da evasão, que não conseguem impedir, eles mesmos

reconhecendo a multiplicidade de causas/razões envolvidas nessa decisão que contraria as

apostas iniciais:

[...] a gente consegue alguns resultados, não mais, porque a gente tem uma evasão muito grande. O que dói, deixa a gente mais triste, é quando chega

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julho, agosto e a sala se esvaziando por conta de uma série de problemas que você não sabe. Se você pergunta assim quais são as razões desses alunos abandonarem? Uma razão só. Vêm duas, vêm três, são várias. (Professora).

Digamos a doméstica está trabalhando até de manhã... no Resgate. Então ela vem pra aula enquanto ela estiver trabalhando no Resgate. Aí, ela saiu, apareceu uma oportunidade pra Camaçari, foi pra outro lugar. E, muitas vezes, a gente não sabe se ela continuou, se levou a transferência dela pra lá. Ela saiu daqui, a gente sabe que saiu, mas não sabemos se ela está continuando [...] “Essa novela está muito boa, não vou voltar pra escola”. Então qualquer motivo é motivo pro aluno não voltar pra sala de aula. (Professora).

Mas apesar da evasão de muitos, localizada pelos professores com a compreensão

anteriormente explicitada, muitos são os alunos que ficam na escola, realizando o sonho de

estudar e aprender, pactuado com esses professores, cuja cumplicidade até mesmo impede a

continuidade, quando têm de ir embora, pela afinidade com a escola, não mais encontrada em

outros projetos pedagógicos, que ponham os sujeitos no centro do processo, como pessoas

com quem se compartilha mais que saberes, mais que conhecimentos:

Se afeiçoam, gostam da escola, são bem recebidos, a gente trata tão bem que eles continuam, ficam até o final. E tem também aqueles que querem de qualquer jeito conseguir um lugar pra continuar aqui. E muitos, que também deixam de estudar porque lá fora não encontram escola com o mesmo carinho que tem por eles (Professora).

O cuidado com os alunos. Eu acho que a gente consegue, de uma forma ou de outra, cuidar desses alunos porque a gente procura desenvolver várias habilidades neles, não só cognitivas, mas as atividades artísticas. Eles estão se desenvolvendo. O falar, o se mostrar, o trazer as emoções pra sala de aula. Porque eles não têm essa oportunidade realmente. Eles se sentem... eles procuram se sentir mais à vontade aqui. Pelo menos é o que a gente percebe, com a maioria. Dificuldades a gente tem muitas. A evasão é nosso pior inimigo. A gente não consegue manter mesmo os alunos. No final do ano a gente tem uma queda grande de alunos bons que poderiam ter conseguido, ter conquistado esse sucesso e a gente perde esses meninos pro desemprego. (Supervisora pedagógica).

Uma forte razão emergia nas falas dos professores: a disputa da escola com a

necessidade de trabalho, em que o último leva sempre a melhor. Discutir, pois, na educação

de jovens e adultos a proposição de políticas setoriais, que ultrapassam a área da educação,

para pensar como se constroem possibilidades capazes de reverter a profecia autocumprida do

fracasso, parece ser inadiável:

[...] existem os empregos temporários. E, quer queira, quer não, puxa uma grande maioria deles... e às vezes a pessoa está desempregada e aí encontra uma oportunidade pra trabalhar dois meses, três meses. Infelizmente, ele tem que pegar, eles têm que pegar essa questão desse emprego e que também tira eles daqui. Infelizmente, a gente corre atrás dessa... (Professor).

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Mas, ao mesmo tempo em que era denunciado que o trabalho muitas vezes afastava o

aluno da escola, emergia o orgulho da equipe docente, por saber que um aluno, formado

segundo o projeto dessa escola, demonstrou esse diferencial determinante em um processo de

seleção profissional:

[...] nós tivemos um depoimento lindo de um aluno nosso que foi aprovado em 1º lugar na seleção de uma empresa. Ele entrou numa sala com 40 pessoas pra fazer essa seleção. [...] Achei a coisa mais linda e arrepia. E ele fez a seleção, tinha 40 pessoas e a pessoa que fez a seleção lançou pergunta assim, foi lançando pergunta sobre os temas da atualidade: meio ambiente, a questão de ética, cidadania, pluralidade cultural, respeito às diferenças. E todo o nosso conteúdo é trabalhado em cima disso. Então, todas as vezes, ele levantou a mão, se posicionou. E quando ela, ela precisava... acho que eram oito pessoas... não, inicialmente ia selecionar oito e dessas oito ficariam cinco, e ele foi selecionado. Inicialmente, em função de todas as vezes que ele se levantou e se posicionou. E ela perguntou: “Você veio de onde?” E ele disse: “Eu fui aluno do Colégio Adroaldo Ribeiro Costa”. (Supervisora pedagógica).

Os professores apresentavam saídas para reverter a perspectiva do direito que não se

faz, porque as condições de vida — e as circunstâncias — conspiram contra os sujeitos da

EJA. A legislação, no tocante ao trabalho e ao direito do trabalhador ao estudo, ainda não

definiu a responsabilidade das empresas/instituições quanto a horários facilitados, preservação

de núcleos/períodos para que os sujeitos tenham estímulo à continuidade de estudos. Se por

um lado o trabalho é a segurança para o trabalhador poder continuar estudando, por outro cria

muitos óbices que acabam afastando o trabalhador da escola:

[...] divulgação em massa, pra que o nosso aluno realmente ele tenha oportunidade, pra que seja respeitado o direito dele de estar na escola naquele horário, mesmo com todas as dificuldades que nós já sabemos, que já foram listadas, mas nós tínhamos que incentivar o nosso aluno a vir pra escola pra participar [...]. Então, se você divulga isso com maior intensidade nos meios de comunicação, com certeza nós vamos avançar mais em relação à dificuldade que o nosso aluno enfrenta no dia-a-dia. (Professora).

As histórias dos sujeitos, trajetórias vividas, narradas, partilhadas, emocionam e

trazem ao momento as presenças-ausentes, mas vívidas em cada um ali. As formas e sentidos

pelos quais a opressão revela-se na vida dos alunos se estampa em cada fala, em cada

rememoração:

[...] empregadas domésticas que a gente coloca na sala de vídeo — e depois ela vai fazer outro serviço — e que, no meio do filme, a gente está vendo assim as lágrimas descendo. Por que? “É a primeira vez na vida que eu consigo assistir um filme”. Porque não tem oportunidade. Porque senta com o patrão: “Me dê um copo d’água”. Nunca vai conseguir assistir um filme do

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início ao fim. Aí elas se emocionam, choram e dão depoimentos assim lindíssimos.

Freire (2003, p. 53) relembra-nos ao defender a educação como prática da liberdade,

que:

[...] o que se sente, dia a dia, com mais força aqui, menos ali, em qualquer dos mundos em que o mundo se divide, é o homem simples esmagado, diminuído e acomodado, convertido em espectador, dirigido pelo poder dos mitos que forças sociais poderosas criam para ele. [...] É o homem tragicamente assustado, temendo a convivência autêntica e até duvidando de sua possibilidade.

Não estariam diante de nós, professores, esses homens e mulheres esmagados,

diminuídos pelos mitos que a sociedade de classes criou, tanto pela força da cultura do escrito,

que impede a “convivência autêntica”, como alerta Freire, quanto pelo ceticismo que os faz

julgarem-se incapazes?

As descobertas de quem são, em realidade, os sujeitos alunos, submetem todo o grupo

a práticas pedagógicas variadas, de entrevistas, por exemplo, em que os próprios alunos

atuam, e por meio dessas técnicas as biografias são escritas e possibilitam uma melhor

apreensão desses sujeitos, pelos professores, quando se reúnem nos Conselhos de Classe.

Esse ano mesmo a gente está fazendo uma sondagem. “O que é que te trouxe de volta à escola?” A gente aplica um questionário pra caracterizar isso assim da forma mais objetiva, produzir o histórico desses alunos. Quem são, onde moram, qual a idade que eles têm. A gente está fazendo isso, esse trabalho, essa semana, e eles estão trabalhando como uma entrevista. Ao mesmo tempo, eles vão estar trazendo as informações pra que a gente também utilize elas em Conselho de Classe, também olhar o aluno por essa ótica social. A gente já faz isso, mas agora, assim, instrumentaliza mais essa prática pedagógica que já existe aqui na escola e vê esse aluno também como sujeito (Professora).

Mas o Colégio Adroaldo Ribeiro Costa não desistia facilmente da captura, dessa

espécie de perseguição à prática da liberdade pela educação:

[...] na primeira semana de aula fazer atividades assim muito atraentes pra eles pra que eles comecem a gostar da escola, estabeleçam uma relação boa com o professor. É a coisa do cativar mesmo de todas as formas. E eles ficam fascinados com a forma como são tratados, o respeito com que são recebidos, o carinho com que são tratados. Isso eu acho que é fundamental. E cada um deles aqui contribui muito com isso. (Supervisora pedagógica).

Uma atitude bastante curiosa foi revelada pelos professores como forma de não afastar

os alunos, em qualquer hipótese, nem fazê-los perder a esperança duramente conquistada,

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ainda que, talvez, essa atitude pudesse ser mal compreendida pelos companheiros de outras

escolas e, certamente, pelo sindicato de classe:

A gente chega ao ponto de não fazer greve pra gente segurar esses meninos. É como se nós fôssemos assim os traidores [...] Nós não fazemos greve. Nós fazemos um acordo, não fazemos greve justamente para segurar. Há dois ou três anos que a gente faz isso. Segurar. Pra tentar segurar ao máximo que a gente puder. Que um dos grandes problemas nossos é segurar menino e tentar tornar esse encontro deles aqui conosco o mais agradável possível. (Professora).

Outras estratégias foram sendo relatadas, com a mesma preocupação: não deixar os

alunos se perderem pelo caminho, sem dizer a eles o quanto fazem falta, o quanto são

importantes, e questioná-los se desistiram do sonho.

Essa proximidade é muito forte. E esse vínculo mantém esses alunos que vencem essas ameaças, que foram ditas, como Júlio até reforçou, fazem com que eles permaneçam na escola até o final do ano. Alguns a gente consegue, a gente faz todo o contato de estar ligando pra eles, perguntando. Alguns voltam: “Ah, considerando que a senhora ligou, eu estou voltando” [...] (Coordenadora).

[...] se você tiver qualquer problema, não vai embora da escola antes de conversar com a gente sobre o que é que está acontecendo, pra saber o que é que a gente pode estar fazendo por esses alunos. E já tivemos aqui casos em que adotamos mesmo, assim, alguns... [...] ela não conseguia vir à escola, era uma aluna excelente. E aí nós adotamos, nos cotizamos aqui. Cada semana um professor dava o dinheiro do transporte pra ela ir e voltar porque ela já não conseguia mais andar aquela distância. E ela conseguiu concluir o curso. (Falando de uma aluna portadora de necessidade especial) (Professora).

Foram sendo reveladas, também, estratégias curriculares, todas com a intenção clara

de manter os alunos no processo — possibilidade de fazer com que se dêem tempo para os

aprendizados que desejam, o que deve contribuir para garantir a permanência, fazer chegar o

sucesso, experimentar o gosto doce da vitória.

Fazer coisas diferentes. Esses projetos, as culminâncias, as festas, tipo as festas que a gente faz pra ver se torna mais agradável. É muito assim, é difícil, viu. É difícil. Agora, quando chega assim no final do ano e você vê o progresso daquela que chegou pra você e disse assim “Tenha paciência comigo porque eu tenho 20 anos sem estudar” e você viu que ela progrediu, mesmo que ela não tenha condições de avançar muito, você sente que ela tem que ficar mais um pouco, é muito gratificante. E já tivemos casos assim de alunos que passaram digamos de 15 a 20 anos que... “Não vou conseguir, matemática não entra na minha cabeça” e eles são dos melhores alunos da sala. Isso é bom demais. Isso é muito bom.

A pedagogia de projetos, como integrante da concepção curricular, foi explicitada:

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O projeto aqui a gente constrói. Agora mesmo nós estamos na parte de rever, porque nós trabalhamos com pedagogia de projetos mesmo na educação de adultos, e agora mesmo eles estão assim, cada grupinho trabalhando a sua área: revendo o projeto que foi feito ano passado, o que é que a gente vai conservar, o que é que vai estar modificando. Alguns filmes – porque a gente usa toda a mídia, todo tipo de mídia, cinema, televisão, música, revista, tudo, todos os recursos – e aí eles ficam... “o que é que a gente pode mudar esse ano letivo?”, “o que esse ano vamos usar?” (Supervisora pedagógica).

Mas outras formas de trabalho também emergiram, ligadas à realidade cotidiana dos

alunos, de onde se parte, mas na qual não se fica, ampliando o conhecimento que têm dela:

Pegamos uma idéia central de fazer um estudo, no caso bem participativo dos alunos, no que diz respeito às coisas do dia-a-dia que eles trabalham. A partir de INSS, de 13º, de imposto de renda – uma vez que eles podem até não declarar imposto de renda, mas pelo menos a gente sai da ignorância, tem uma noção.

[...] tudo sobre a vida dele – porque a questão da cidadania a gente não faz por... ele é um cidadão agora – e a gente tem que esclarecer esses direitos. Então, nós trabalhamos aqui texto “Reforma da CLT: as dez grandes dúvidas” e aí trazemos esse tema com eles. Trazemos pessoas de fora, de empresa, quem trabalha com segurança? Segurança no trabalho, coisas bem dentro da realidade. Ano passado nós conseguimos trazer a presidente do Sindicato das Empregadas Domésticas. Foi um sucesso. Eles amaram essa palestra dela. [...] trouxemos uma advogada que falou sobre os diretos trabalhistas. [...] todos os trabalhos foram feitos em cima desse cidadão que existe e que está aí. Já trabalha, já precisa conhecer os direitos dele. E também uma grande preocupação nossa é sempre dar voz e vez a esse cidadão. Então, eles sempre têm um momento de culminância que usam o microfone, que cantam, dançam, fazem jogral, apresentam peças de teatro. (Supervisora pedagógica).

Cabe um destaque, nesse ponto. Ao tentar compreender como as práticas curriculares

criam/concebem a educação de jovens e adultos e não o contrário, ou seja, não é a educação

de jovens e adultos, sempre, quem concebe as práticas, porque estas, em muitos casos, falam

mais das concepções dessa modalidade do que qualquer enunciação que ela faça de si própria,

pode-se perceber um movimento de emancipação frente à força reguladora das normas que

constituem o espaço escolar. Há, portanto, um jogo permanente de manter/conservar e

mudar/transformar que não se dicotomiza, mas dialoga em tensão, importando aqui capturar a

complexidade dessa relação, e verificar se esse jogo é perceptível aos docentes que

contracenam na cotidianidade da escola.

Oliveira (2003, p. 81-82) chama de “caráter multicor” ao modo como as práticas

curriculares reais, complexas e relacionadas a saberes e fazeres, que nem sempre constituem

um todo coerente se revelam nas escolas, assumindo formas mais ou menos regulatórias, ou

emancipatórias, em suas diferentes expressões.

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É nesse sentido que entendemos as práticas curriculares cotidianas como “multicoloridas”, pois suas tonalidades vão depender sempre das possibilidades daqueles que as realizam e das circunstâncias nas quais estão envolvidos.

Os professores da Adroaldo Ribeiro foram seguindo esse curso durante o grupo focal:

[...] a partir do momento em que você coloca pro aluno que cada disciplina tem um valor, tem uma contextualização que ele pode utilizar na... no dia-a-dia, ele começa a tirar, desmistificar essa coisa de que a matemática é isso, que é aquilo outro (Professor).

[...] eu, jamais eu posso pedir, principalmente numa sala heterogênea como a gente tem – heterogênea de idade, heterogênea de questão de conhecimentos, de anos de estudo – eu não posso cobrar como eu cobro do 3º ano. A realidade é totalmente diferente. Eu estou dando uma matemática lá com trigonometria, com tudo isso e o que que aqui a gente procura fazer? Utilizar a maior contextualização porque a gente sabe das dificuldades que eles têm. As dificuldades são grandes. Então, a gente procura, dentro do programa que a gente tem, pegar assim bastante a contextualização pra que os assuntos sejam fechados e ele sinta vontade e não evada, ele não saia da escola. (Professor).

Muitas práticas curriculares se fazem presentes no cotidiano, e os professores,

mobilizados pelas necessidades dos alunos, encontravam saídas para ultrapassar as

dificuldades que as escolas enfrentam:

Então quando a gente tem condições e consegue professor voluntariado, porque o Estado não paga a aula de informática, como nós temos o laboratório, quando a gente consegue professor voluntário, eles vão pro laboratório e tem aula também. (Professora).

[...] leva muito os alunos pra biblioteca e faz um trabalho lá com eles. [...] nós temos todos os dias, três dias na semana (2ª, 4ª e 6ª) a biblioteca fica funcionando para o aluno e o professor que queira fazer um trabalho. [...] Eles pegam muito livro. Pegam muito livro na biblioteca, fazem muita pesquisa, até porque eles não têm livro. O aluno do EJA não tem livro. Eles levam pra casa deles. Isso é uma das coisas que eu acho assim terrível. Eu sinto muita falta desse livro (Coordenadora).

Reciclando o texto. Ele leva... nós utilizamos o texto. Eu utilizo uma semana, ela utiliza o mesmo texto, aí vai e a gente leva dessa forma. Até... eles têm vantagem em levar o texto pra casa. Aí quando eu recolho é uma briga (risos), recolho porque se faltar um... isso aqui é texto reciclado. (Professora).

Livros são objetos ainda disputados nas escolas, e mesmo a existência de bibliotecas

não garante a qualidade, porque freqüentemente os materiais em acervo são antigos, não se

renovam na medida da necessidade, haja vista a velocidade de produção de conhecimento e de

obsolescência de muitas verdades, dadas como ciência, em outras épocas. A escola traça

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objetivos segundo os desejos de continuidade de seus alunos, e usa estratégias para que o

percurso não se interrompa, já que o objetivo primeiro está mais adiante:

[...] o nosso objetivo é preparar pra escola técnica e eles têm conseguido. Porque essa escola técnica... CEFET, ano passado nós colocamos um em 2º lugar, um em 7º, esse ano nós já colocamos esse objetivo de grande parte de ir pro CEFET, porque eles consideram a grande oportunidade de ir pro vestibular sem dificuldade, devido a que eles são estimulados a isso o tempo todo. [...] estudarem com esse objetivo, já que não podem pagar uma escola boa, procurar a melhor escola e a gente direciona o tempo todo pro melhor. (Coordenadora).

A perspectiva da escola não se encerra nela mesma, mas com os projetos de futuro,

com o aprender por toda a vida de seus alunos:

Ainda falta muita coisa pra gente atingir aquilo que a gente gostaria de ser, mas a gente vai tentando cada dia se aperfeiçoar mais nos poucos recursos que a gente tem.

[...] pelo menos eu faço um trabalho de conscientização, acredito que todo mundo deva fazer também, pra que ele continue estudando na saída daqui, não é? Porque aqui tudo é um caminho e eu falo sempre a questão de associar o ser humano a um motor. Se um motor não trabalha, ele enferruja. [...] “Ó, professor, estou continuando, não parei de estudar, não”. E sempre a gente está dando a injeção de ânimo e dizendo que nunca aquilo ali está bom. Sempre aquilo está aquém da capacidade que ele pode atingir. (Professor).

66..33 EEMMEERRGGÊÊNNCCIIAASS DDOO MMEERRGGUULLHHAADDOORR:: CCOOMMPPRREEEENNSSÕÕEESS VVÊÊMM ÀÀ TTOONNAA

No mergulho realizado em busca de conhecer novos oceanos na educação de jovens e

adultos na Bahia, pode-se pensar que as águas verde-azuis de Abrolhos afloraram nas praias

da Baía de Todos os Santos. Com elas, cristalinas, trouxeram e se deram a conhecer algumas

concepções preciosas para o propósito dessa pesquisa.

Uma questão a destacar, certamente porque deve ter causado surpresa aos leitores, é o

fato de que, sendo a opção política do estado83 tão duramente criticada, pela herança histórica

que traz, e pelas práticas sob as quais a população vem sendo mantida submissa, se possam

observar comprometimentos e alternativas viáveis, além de metodologias participativas e

coletivizadas de trabalho e de produção de políticas públicas na EJA. A justificativa parece se

83 O estado da Bahia, de longos anos atrelado às “políticas carlistas” (do atual Senador Antônio Carlos Magalhães, muitas vezes governador e representante político do estado, com forte influência em todo o território e na política praticada pelo PFL, partido que acolhe sua ingerência e suas práticas clientelistas e de opressão política), parece surpreender ao favorecer a construção de processos e propostas com caráter próprio das organizações democráticas, em que a participação não se restringe ao poder representativo, mas à garantia de expressão de dizeres e fazeres diretos, resultantes de reflexões e críticas coletivas.

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construir pelo fato de a área se manter de certa forma invisibilizada para as autoridades

políticas, que do mesmo modo que não dispensam a ela importância nos planos e nos

orçamentos, não dispensam também atenção, ignorando as práticas, os efeitos, as

conseqüências. Visto de outro ângulo, pode-se destacar que políticas não acontecem

independente de pessoas, e que estas, em verdade, são as que fazem as opções políticas. E as

fazem no cotidiano de suas vidas, onde tecem e retecem saberes, onde inventam novas formas

de fazer política, em diálogo com a esfera mais ampla, e influenciada por ela, mas jamais

imobilizados, despossuídos de desejo e fé no poder da mudança, no poder de homens e

mulheres, protagonizando histórias locais, como possibilidade, porque transformam a si, suas

relações, as determinações, muitas vezes.

Afinal, a liberdade é o outro lado da imprevisibilidade, da indeterminação e, portanto, da incerteza. Por isso, nas coisas humanas, onde está presente a liberdade, a ação, a criatividade, não há certeza. Mudanças sempre são possíveis. [...] Mas todas as tradições que valorizam o livre-arbítrio reconhecem o papel da incerteza, na história, e sua contrapartida: o potencial da mudança. (SOARES, 2005, p. 116).

Neste sentido, cabe atestar que a atual superintendente da Secretaria de Educação,

conhecedora com bastante propriedade de estudos e fundamentos da EJA, inicia sua trajetória

nessa área, tendo exercido sua coordenação por largo tempo, e voltando para ela quando a

mudança política assim exigiu. Mas, mesmo mudando sua vinculação no organograma da

SEE, estabeleceu sempre laços fortes com a área, fortalecendo as coordenações e mantendo a

EJA em lugar de igualdade com os demais níveis e segmentos de ensino. E isso não é pouca

coisa, face à história próxima e recente da EJA, que jamais admite igualdade de tratamento da

área no sistema, porque, no mais das vezes, exclui, como política, o direito para esses tantos

jovens e adultos.

Paradoxalmente, a primeira tentativa de explicação parece eliminar qualquer chance de

a segunda ocorrer, mas até onde me tem sido possível conhecer as relações políticas e técnicas

na área de EJA, não consigo atribuir outros sentidos que não esses.

O saber da prática, valorizado, teceu redes de conhecimentos que ampliaram e

nortearam as práticas cotidianas, superando não só o paradigma da árvore do conhecimento,

como também a própria forma como são entendidos os processos individuais e coletivos de

aprendizagem — cumulativos e adquiridos — segundo o paradigma dominante. A tessitura de

conhecimentos trançou redes, com as informações às quais são submetidos os sujeitos sociais,

constituindo-as nos momentos em que se enredaram a outros “fios” já presentes, ganhando

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sentidos próprios. Desta forma, a troca de informações/experiências/saberes produziu

aprendizagens, sempre que se articulou com os interesses, crenças, valores e saberes dos

sujeitos envolvidos pelas situações de conhecimento propostas.

Pela metodologia de pesquisa-ação, como processo de formação de professores, foi

possível verificar a relevância de como as redes, constituídas por esses professores,

atravessam as fronteiras dos níveis de formação/titularidades; os tempos de magistério; a

experiência anterior com a EJA; as práticas pedagógicas, para se fazerem novas e complexas

formas de compreender e apreender da realidade da educação de jovens e adultos, em

trançados desiguais, diferenciados, heterogêneos, mas ricos da diversidade dos saberes,

produzindo mosaicos que se conectam, unem-se, dão-se nós, transpõem fios e se enredam em

uma trama sempre renovável. Pela formação de professores, como quer que ela se expresse,

os projetos de EJA têm chance de revirar/pesquisar/esgarçar as práticas desenvolvidas;

escavar em torno de conceitos estabelecidos, revolvendo os solos em que se esparramam os

trançados rizomáticos dos saberes. Professores baianos, em redes, nesse processos de

formação, saindo do litoral, passando pelo Recôncavo; pela Chapada; ao norte, por Paulo

Afonso; por Bom Jesus da Lapa e por tantos outros lugares de um estado tão grande,

esparramaram-se, lançaram raízes e fecundaram o solo da educação de jovens e adultos com

seus saberes, suas práticas, suas (re)descobertas.

Por último, uma preocupação da equipe da Secretaria de Educação, mas já com a

indicação da medida política adequada, põe-me a refletir sobre os percursos que mobilizam a

EJA, nesse estado, e que, por eles, sinalizam concepções mais próximas das enunciadas nos

acordos internacionais e tomadas como bandeiras de luta de educadores militantes. Trata-se

da forma como a ação pedagógica deve-se fazer no interior da sociedade política, do mesmo

modo que circula e percorre a sociedade civil. A responsabilidade que a equipe revela com a

formação dos quadros das prefeituras, não apenas no nível técnico, mas com os gestores,

implicados diretamente com as possíveis mudanças de rumos na perspectiva de constituição

do direito à educação, para tantos cidadãos e cidadãs. A desmotivação desses gestores — os

prefeitos — remete a práticas interessadas em auferir recursos apenas, em total desvínculo

com as idéias republicanas que deveriam estar sendo preservadas e cada vez mais

disseminadas no fazer público: “Eu não vou implantar EJA porque ela não entra, a gente não

vai receber por isso”, simboliza um modo de pensar o cargo público de viés personalista,

desarraigado por completo de programas partidários, de projetos coletivos.

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266

Vencendo essa tendência, a equipe me informa, em março, a disposição, a existência

de um planejamento com vista à realização próxima de um encontro, atuando pedagógica e

educativamente junto aos gestores, em benefício da educação de jovens e adultos:

[...] nós estamos promovendo um Encontro, não sei se vai ser através de videoconferência ou presencial, não sabemos se é agora em abril ou maio com os prefeitos que estão em parceria com o Brasil Alfabetizado, que estará exatamente discutindo a continuidade dos estudos, a posteridade, a possibilidade de estar estudando, a implantação desta EJA, como buscar o financiamento porque eu acho que esse que é o nosso papel... Eu acho que o Estado não tem que olhar pro aluno da rede pública estadual, ele tem que olhar pro cidadão. Então, é esse o nosso papel. (Gestora 2).

A dificuldade dos municípios é de como implantar legalmente a EJA e de como buscar

financiamento, deixando escapar um aspecto mais complexo que exige assumir o lugar de

coordenador e articulador da política local, com todos os atores da região que desenvolvem a

EJA:

Essa orientação que ano passado nós passamos, nós fizemos um trabalho compartilhando com a Alfabetização Solidária, e já pelo segundo ano estamos tendo a colaboração, porque há prefeitos novos. Porque a grande dificuldade que a gente percebe nessa continuidade é exatamente isso: como está sendo moldada a EJA no município. Não é nem o problema da rede física, é o aspecto legal. (Técnica SEC/BA).

Entender o papel educador, politicamente, em todos os espaços da EJA em que

atuamos, exige ir além do local, do micro, ultrapassando as fronteiras das instituições e suas

esferas — municipal, estadual, federal –, para assumi-lo globalmente, mas referenciado nos

sujeitos da educação, para o que, quem sabe, não devêssemos nós, como Thiago de Mello

(1965) na Canção para os fonemas da alegria, exercê-lo como aqueles que acompanham

enternecidos o homem, a mulher, o jovem, a jovem que

[...] atravessa os campos espalhando a boa-nova, e chama os companheiros a pelejar no limpo, fronte a fronte,

contra o bicho de quatrocentos anos, mas cujo fel espesso não resiste a quarenta horas de total ternura.

Peço licença para terminar soletrando a canção de rebeldia que existe nos fonemas da alegria:

canção de amor geral que eu vi crescer nos olhos do homem que aprendeu a ler.

Page 269: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

267

77.. PPRROOGGRRAAMMAA DDEE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE JJOOVVEENNSS EE AADDUULLTTOOSS –– PPEEJJAA:: EEMM CCEENNAA,, OO

PPÚÚBBLLIICCOO JJOOVVEEMM

A aranha realiza operações que lembram o tecelão, e as caixas suspensas que as abelhas constroem envergonham o trabalho de muitos arquitetos. Mas até mesmo o pior dos arquitetos difere, de início, da mais hábil das abelhas, pelo fato de que, antes de fazer uma caixa de madeira, ele já a construiu mentalmente. No final do processo do trabalho, ele obtém um resultado que já existia em sua mente antes de ele começar a construção. O arquiteto não só modifica a forma que lhe foi dada pela natureza, dentro das restrições impostas pela natureza, como também realiza um plano que lhe é próprio, definindo os meios e o caráter da atividade aos quais ele deve subordinar sua vontade. (MARX, O Capital).

O atual Programa de Educação de Jovens e Adultos (PEJA)84, da Secretaria Municipal

de Educação da cidade do Rio de Janeiro, com 20 anos de atuação, de acordo com as

estatísticas oficiais de março de 200585, apresenta os seguintes dados: estruturado em 10

Coordenadorias Regionais de Educação (CRE), 117 unidades escolares (PEJA I e PEJA II,

este desde 1998), todas funcionando no período noturno e dez delas também com classes no

diurno; um Centro de Referência da Educação de Jovens e Adultos (CREJA) funcionando em

tempo integral de 7h às 22h. Nessas escolas trabalham cerca de 1.200 professores, em 1.051

turmas atendendo a 32.482 alunos.

Observa-se a predominância de alunos maiores de 18 anos, principalmente nos dois

blocos do PEJA II, correspondente ao segundo segmento do ensino fundamental. Isto

significa que esse alunado abandonou ou foi expulso da escola nos primeiros anos do ensino,

voltando mais tarde para retomar os estudos. Quanto ao gênero, a maioria dos matriculados é

do sexo feminino: estão matriculados no PEJA I e no PEJA II 14.603 alunos e 17.879 alunas.

Além das turmas das unidades escolares, mantém duas classes anexas para

atendimento a servidores municipais não-escolarizados nas instalações da própria Prefeitura

Municipal e articula-se com outras 156, instaladas pelo Programa de Aceleração da

Aprendizagem (PAE), que oferece cursos de complementação da escolaridade no ensino

fundamental à população beneficiada pelo Programa de Urbanização de Assentamentos

84 O Parecer nº. 06/2005 aprova alterações no funcionamento do PEJ e dá outras providências: “Como solicitação inicial encontra-se a mudança de denominação. Criado para atender a jovens entre 14 e 25 anos, como descrito no Parecer CME 03/99, o PEJ tem sido procurado por adultos de todas as idades que desejam estudar e concluir o Ensino Fundamental. Tendo em vista a consolidação do trabalho e, em concordância com a nova demanda, com as leis em vigor e com as justificativas apresentadas no p.p somos de parecer que o nome PROGRAMA de EDUCAÇÃO DE JOVENS e ADULTOS (PEJA), deva substituir a designação usada até então”. 85 Fonte: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Secretaria de Educação. Assessoria Técnica de Planejamento. Informações Gerenciais. Matrículas do PEJA - março 2005. Essa fonte individualiza as matrículas dos 14 aos 18 anos e em mais de 18 anos.

Page 270: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

268

Populares do Rio de Janeiro (PROAP II). O PAE conta com financiamento do Banco

Interamericano de Desenvolvimento (BID) e sua execução está a cargo da Secretaria

Municipal de Assistência Social, em parceria com a Secretaria Municipal de Educação

(através do PEJA), de organizações da sociedade civil (especialmente o Viva Rio) e do Centro

de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC). O CREJA tem

se preocupado com o atendimento a pessoas com necessidades especiais, em articulação com

o Centro Integrado de Atendimento ao Deficiente e assessoria da Fundação Helena Antipoff,

que colocam à disposição do PEJ professores itinerantes. Esse público tem crescido nos

últimos anos, pelo aumento da consciência do direito à educação.

Nem sempre o PEJA foi assim nomeado. Antes, Programa de Educação Juvenil –

PEJ, um dos primeiros programas oficiais de ensino, após o fim do regime militar. Começou a

funcionar, a partir de 1985, nos 23 primeiros Centros Integrados de Educação Pública –

CIEPs, inaugurados pela SME entre os anos de 1985 e 1986, com objetivos outros bem

definidos, currículo e métodos de ensino adequados ao público jovem e mesmo adulto, apesar

do indicativo inicial de atender somente jovens da faixa etária de 14 a 20 anos para esse

público específico. Não se está diante, portanto, de uma mudança de nome, mas, em verdade,

da mudança de uma determinada concepção. Ao longo dos anos o projeto sofre mudanças,

incorporações e ressignificações, permanecendo, ainda, como resposta do poder público

municipal carioca às demandas dessa área. Para chegar a compreender esse movimento, que

expressa, com consistência, as apropriações que vão sendo feitas, com base nos diversos

enfrentamentos do Programa com seus dirigentes e destes com forças sociais, iniciarei

resgatando o contexto de época e os determinantes que levam à concepção original, por meio

de um breve histórico sobre o nascedouro que fecunda esse Programa, com base nos

diferentes materiais coletados.

Os materiais são fruto da pesquisa Juventude, escolarização e poder local: novos

desenhos da educação de jovens e adultos na esfera local, projeto financiado pela Fundação

de Amparo à Pesquisa no Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), integrado a uma rede de

pesquisadores de nove estados, com a finalidade de investigar políticas públicas ligadas à

educação de jovens e adultos e à juventude em municípios da região metropolitana das

capitais desses estados. No estado do Rio de Janeiro, a primeira etapa de levantamento de

dados sobre as políticas de EJA e juventude na região trouxe um conjunto de informações que

levaram à escolha, para a segunda etapa, de um programa/projeto para estudo de caso, o atual

PEJA.

Page 271: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

269

Integrada ao grupo da pesquisa86, pude incorporar ao meu próprio trabalho entrevistas

realizadas com professores que estiveram na fundação do projeto; grupos focais feitos com

professores e alunos em escolas; entrevista com dirigentes; documentos. Em seguida, passo a

considerar as concepções subjacentes, de posse de alguns instrumentos conceituais que venho

utilizando nos demais projetos, produzindo um movimento de captura e percepção dos

sentidos de educação de jovens e adultos que encerra.

O atual Programa de Educação de Jovens e Adultos está organizado como ensino não-

seriado, acelerativo e progressivo estruturando-se como PEJA I (atendendo ao 1º segmento do

Ensino Fundamental – 1ª a 4ª séries) e PEJA II (atendendo ao 2º segmento do Ensino

Fundamental – 5ª a 8ª séries), compostos por blocos de aprendizagem e unidades de

progressão (estas presentes apenas no PEJA II). O PEJA I divide-se em dois blocos, cada um

com duração de um ano. O PEJA II, também dividido em dois blocos, comporta em cada

bloco três unidades de progressão, com duração média de três meses. A previsão de tempo

para conclusão do PEJA II é de dois anos.

Novas mudanças curriculares deverão ser anunciadas em breve, porque o projeto da

Multieducação87 sofre revisão em todas as modalidades de ensino da rede municipal. Parte

desta revisão realiza-se com a participação de professores de todas as áreas e modalidades, em

encontros regulares e grupos de estudos.

77..11 OO ÚÚTTEERROO PPOOLLÍÍTTIICCOO,, SSOOCCIIAALL EE TTEEÓÓRRIICCOO DDOO PPRROOGGRRAAMMAA DDEE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO JJUUVVEENNIILL –– PPEEJJ

O que estou chamando de útero do PEJ, a caixa de abelhas de Marx, metafórica nesse

texto — por ser o locus que, de posse de um fértil terreno político, pôde possibilitar o trabalho

humano da fecundação de uma nova idéia —, está conformado por uma arquitetura política,

social e teórica que se insinua ousadamente no momento de abertura do regime militar e de

grave crise econômica que assolava o país, quando o país inicia o processo de retomada das

instituições democráticas, dentre elas a do voto para governador de estados, até então

estratégicos, cujos mandatários eram indicados pelo governo federal. Para compreender essa

fertilização in útero, passo a tecer, como pássaro com fios os mais diversos, as idéias que

86 A pesquisa no Rio de Janeiro é coordenada por Osmar Fávero e Paulo César Carrano (ambos da UFF) e cada etapa teve definida a equipe de pesquisadores. Nacionalmente a coordenação da pesquisa cabe a Marília Sposito, da USP, e Sérgio Haddad, de Ação Educativa. 87 Multieducação é a proposta curricular da rede municipal de educação do Rio de Janeiro, de todos os níveis e modalidades. A atualização do Documento Curricular tem por objetivo propor novos diálogos, rever alguns conceitos, acrescentar e ampliar temáticas anteriormente discutidas na Multieducação/1996, ano em que foi criada.

Page 272: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

270

ajudam a compreender a complexidade do momento, aninhando-as no período histórico que

fermenta o PEJ.

Sobre esse tempo, Cunha (1991) destaca a importância das entidades ligadas à área da

educação que nasciam um pouco antes desse período, nesse mesmo contexto de pressão para a

mudança das relações políticas no país: a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa

em Educação - ANPEd, congregando os programas de mestrado e doutorado em educação de

todo o país; o Centro de Estudos Educação e Sociedade - CEDES, na Universidade Estadual

de Campinas (UNICAMP), projetado nacionalmente após a publicação da revista Educação e

Sociedade; a Associação Nacional de Educação (ANDE), formada por professores e

especialistas do ensino superior e da educação básica, em defesa, junto à sociedade, do ensino

público, da democracia e da justiça social. Essas entidades, a partir de 1980, passam a

organizar as Conferências Brasileiras de Educação - CBEs, principal mobilização do mundo

acadêmico em torno dos rumos da educação brasileira, como se verá adiante, nas

manifestações ao tempo da Assembléia Nacional Constituinte, que precedem a promulgação

da Constituição Federal de 1988.

Os grandes empréstimos internacionais que alimentaram o projeto econômico dos

militares, incrementando não apenas o parque industrial, mas grandes obras, atendiam os

interesses do capital internacional, tanto pelos investimentos das empresas transnacionais em

lucrativas indústrias de mão-de-obra barata, como também os credores estrangeiros que

cobravam caro pelos financiamentos. A modernização conservadora deixou de herança a

gigantesca dívida externa que se avoluma até os dias atuais, mantendo e engendrando uma

sociedade com ainda maiores desigualdades e concentração de renda. Crescer para depois

repartir, a máxima da ocasião, na defesa sem trégua que lhe fazia o então Ministro Delfim

Neto produziu, muito ao contrário, não a divisão do “bolo”, mas a extrema concentração e o

cada vez mais acentuado fosso entre as classes dominantes e as classes populares. Moradias

inadequadas e favelas, caos urbano, aglomerados urbanos crescentes sem qualquer

planejamento, degradação ambiental, agravamento da qualidade de vida das populações mais

pobres, insegurança, ausência de saneamento básico são tributos até hoje pagos pelas classes

vitimadas pela ideologia da época, cujos efeitos se espraiam por toda a sociedade, que sofre,

cada um a seu modo, os efeitos deletérios daqueles anos de chumbo “milagrosos”.

A ausência de liberdades políticas, no entanto, fez surgir, em resistência ao regime de

força, cada vez com maior intensidade, a partir de 1970, movimentos sociais, pela via das

associações de moradores ligadas às comunidades eclesiais de base – CEBs, da Igreja

Page 273: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

271

católica, formas de agremiação admitidas pelo poder militar intolerante com reuniões de

qualquer ordem. Também os movimentos populares em luta pela escola pública, pelo acesso a

níveis de ensino negados também são representativos dessa época. O sindicalismo brasileiro

nascente no ABC paulista assume o protagonismo de novas configurações sociais que

organizam os trabalhadores, no curso dos anos 1970, funda o PT em 1980 e incita a estratégia

de greve em todo o país. Nasciam novas formas de luta, de construção de sujeitos coletivos,

de matrizes discursivas que, para Sader (1988, p. 20-21), traziam práticas que alargavam o

espaço da política:

Rechaçando a política tradicionalmente instituída e politizando questões do cotidiano dos lugares de trabalho e de moradia, eles “inventaram” novas formas de política. [...] A “política reinventada” dos movimentos teve de se enfrentar com a “velha política” ainda dominante no sistema estatal.

Os estertores da ditadura militar, em uma conjugação de forças que articularam o

rompimento de apoios e pactos estabelecidos até então, encerrando os tempos negros da

tortura, da censura e da falta de liberdade política, impostos pela força aos direitos civis e

políticos da cidadania; a campanha das Diretas-já levam ao primeiro governo civil depois de

mais de vinte anos, pela eleição indireta de Tancredo Neves cuja morte antes da posse faz

ascender ao poder José Sarney, em 1985. Furtado (1999, p. 27), explicando historicamente a

estratégia de estabilização adotada a partir de 1994, que ignora a inflação crônica

caracterizadora da economia brasileira nas fases de crescimento e de recessão, assim se refere

à situação econômica desse período, com altos índices de inflação, traduzindo o agravamento

da crise do capitalismo dependente, com o fim do milagre econômico e o que advém daí:

[...] a instabilidade vinha reduzindo a governabilidade do país desde os anos 70, quando mudou a conjuntura internacional sob impacto da alta do preço do petróleo e, no fim do decênio, com a elevação abrupta das taxas de juros no mercado internacional. Esse aumento nas taxas de juros operou em detrimento dos países do Terceiro Mundo e em benefício dos Estados Unidos, que passaram a absorver grande parte dos recursos disponíveis para investimento na esfera internacional.

Sarney (1985-1990), com a “Nova República”, construída por forças até mesmo

antagônicas, em torno do PMDB88, baixa planos e medidas que não conseguem atenuar os

88 Desde dezembro de 1980 é criado o Partido do Movimento Democrático Brasileiro - PMDB, sucedâneo do Movimento Democrático Brasileiro – MDB, que constituiu, desde 1966, o núcleo de resistência à ARENA, no modelo bipartidário imposto pela ditadura militar. Nessa reorganização, por força de lei que exigia a identidade de partido na sigla das legendas, as forças reagrupadas, de cores ideológicas muito distintas, fazem frente, no espaço conquistado de eleições indiretas à candidatura da situação, elegendo Tancredo Neves pelo voto indireto.

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272

problemas, pelo contrário, acabam por impor mais sacrifícios aos miseráveis, assalariados e

pequenos empresários.

É dessa mesma época a IV Conferência Brasileira de Educação - CBE, realizada em

Goiânia em 1986, no fragor da discussão da nova Constituição, com efeitos sociopolíticos

relevantes, em relação aos desejos dos educadores e pesquisadores brasileiros. Cunha (1991,

p. 96-97) se pronuncia dizendo que o manifesto elaborado pela comissão organizadora

praticamente não sofreu alterações ao longo do evento89, transformando-se no texto de

política educacional representativo das demandas das entidades da sociedade civil. Essas

demandas reivindicavam, dentre muitos aspectos, o direito de todos à educação —

independente de sexo, cor, idade, confissão religiosa, filiação política ou classe social —

gratuita e laica nos estabelecimentos públicos em todos os níveis de ensino e o dever do

Estado em prover o ensino fundamental público e gratuito para todos os jovens e adultos

excluídos da escola ou que a ela não tiveram acesso na idade própria.

À época, o direito à educação para todos ainda não estava assegurado, e o tempo da

Nova República trazia a discussão que alimentaria os sonhos dos segmentos organizados da

população em defesa de uma escola pública de qualidade para todos, no âmbito da

Assembléia Nacional Constituinte que se instala, no primeiro governo civil, após longo tempo

de ditadura militar. Eleita em 15 de novembro de 1986, animava as lutas populares — no caso

da educação reunidas pelo Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, com papel

preponderante na organização das entidades da sociedade civil e na negociação das propostas

encaminhadas para o texto da nova Constituição.

O retorno do exílio de intelectuais insuflou novas idéias aos tempos ainda tímidos de

abertura política. Paulo Freire retornara ao país e ouvi-lo falar da “educação da saudade” no

retorno do exílio, naquela primeira aparição pública no auditório da PUC-SP marcou a todos

que puderam ouvi-lo. Os debates teóricos disputavam a hegemonia das idéias, tensionando

autores, fontes e idéias até então proibidas, pelos conteúdos supostamente subversivos, e

representativas da educação libertadora — cuja concepção como educação popular, passava a

ter lugar de discussão no país, com a pessoa de Paulo Freire presente —, pondo-os em

oposição aos adeptos da pedagogia crítico-social dos conteúdos, denominada por Saviani,

mais tarde, de pedagogia histórico-crítica.

89 Este é um ponto controverso entre os participantes. Fávero admite que houve mudanças sim durante o evento, e de que não se tratava de manifesto, mas de uma proposta dos educadores para o capítulo da educação, na disputa de concepções a ser feita com a Assembléia Nacional Constituinte.

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273

A pedagogia histórico-crítica em oposição à educação popular, se apresenta com

sutilezas de concepção, envolvendo muitos intelectuais com suas matrizes discursivas. Em

uma primeira visada ambas apresentam caráter emancipatório, mas trazem demarcações que

estabelecem linhas divisórias entre elas. A primeira defende o acesso à escola, provido pelo

Estado à classe trabalhadora, de modo a libertá-la — pelo domínio do conhecimento

elaborado, universal e sistematizado —, da ignorância intelectual, tornando-a consciente de

sua condição social, para que possa lutar contra a opressão a que é submetida. A educação

popular, campo teórico ligado à prática de movimentos sociais que alfabetizaram adultos sob

a concepção herdada de Paulo Freire e de outras idéias experimentadas nos primórdios dos

anos 1960, fundamenta-se no conhecimento como poder de luta dos trabalhadores. Essa forma

de produzir o conhecimento recusa a “educação bancária” (cf. Freire) em que os conteúdos

escolares da educação burguesa são “transmitidos”, para assumir o diálogo como mediação

entre “saberes elaborados”, traduzidos como “saber escolar”, e o saber popular construído nas

relações cotidianas de vida e de trabalho da população. De valor nessa tendência histórico-

crítica, a recusa de um discurso pedagógico técnico, e supostamente neutro, característico do

período militar, assim como a ênfase dada à escola como espaço político para a formação de

sujeitos críticos e conscientes da realidade social.

O Programa de Educação Juvenil foi, então, gestado nesse fértil útero, e chegava

trazendo princípios político-pedagógicos com base na educação popular. O diálogo (no

sentido freireano) mediava a prática pedagógica com a realidade social, forjando-se uma

escola pública cuja tarefa era consolidar a educação escolar vinculada a características

socioculturais, a necessidades e interesses da classe trabalhadora.

Bonamino e Chagas (2002, p. 77-78) confirmam esse vínculo, em pesquisa n’O Livro

dos CIEPs90, escrito pelo próprio Darcy Ribeiro:

De forma explícita, Darcy Ribeiro reconhecia que a proposta curricular e metodológica estava referenciada na experiência desenvolvida no início da década de 1960 por Paulo Freire em Recife. Nessa experiência, o “domínio da leitura e da escrita” não se desvinculava da “aprendizagem de uma leitura de mundo”.

Mas, paradoxalmente, o PEJ nascia sob a marca da exclusão, mantendo à margem

dessa concepção de escola os maiores de 20 anos, punindo-os uma vez mais pelo fato, agora,

de não terem a idade admitida como a que ainda “valia a pena” para o poder público investir,

90 RIBEIRO, Darcy. O Livro dos CIEPs. Rio de Janeiro: Bloch, 1986.

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274

acirrando o estigma dos cidadãos nascidos sem direito, forma perversa de exclusão do direito

na chamada “idade própria”.

Tão grave quanto isso, fecundava-se um projeto de escola popular, em uma rede

paralela à existente, constituída no período pela implantação dos CIEPs91, absorvendo 70%

dos recursos da educação, enquanto quase 3000 escolas estaduais da rede preexistente

tentavam honrar seus compromissos com a população, com restritos 30% dos recursos.

A década de 1980 termina com inflação recorde, e acontecem as primeiras eleições

diretas para presidente. Direita e esquerda se enfrentam, representadas, respectivamente, por

Fernando Collor de Mello — um político obscuro de Alagoas, mas projetado pela mídia, que

o apóia incondicionalmente, com o discurso de “caça aos marajás”92 e bem-sucedido, por isso

mesmo, nos resultados eleitorais — e Luís Inácio Lula da Silva — operário cuja formação

política deu-se nas lutas de resistência do trabalho diante do capital, nos movimentos sindicais

dos metalúrgicos do ABC paulista (SADER, 1988).

Com a mudança do cenário político, no início da década de 1990, declina a

participação popular — tendência chamada por analistas da época, como “crise dos

movimentos sociais”, que perdem visibilidade e poder de pressão, conquistados no período

anterior —, o que não significou, entretanto, o fim desses movimentos, nem tão pouco o

enfraquecimento de sua representação no cenário sociopolítico, mas a reorganização interna e

externa quanto a formas de atuação e de exercer seu papel na sociedade, como aponta Ghon

(2005).

Se para muitos analistas essas duas décadas de 1980 e de 1990 são consideradas

décadas perdidas, do ponto de vista das formas tradicionais organizativas da sociedade, de

outro ponto de vista, emblematizam a possibilidade de assumir níveis de realidade antes não

percebidos, que foram capazes de produzir novas configurações sociais, novas estratégias de

luta, novos sujeitos e identidades coletivas, táticas de resistência cotidianas.

A esperança trazida com o fim da repressão e a restauração formal da democracia

representativa mobilizaram a sociedade em torno de reivindicações de direitos usurpados pela

ditadura, como o fim da censura, e fizeram governos mais à esquerda em alguns estados e

municípios; acionaram movimentos estudantis e sindicatos de professores, congressos e

91 A promessa na ocasião era de construção de 500 CIEPs, mas esse número nunca foi atingido. Nos dois governos Brizola, não seqüentes, esse número talvez tenha alcançado 300 unidades. 92 Desta forma eram designados os funcionários públicos que, supostamente, dilapidavam o Estado com seus altos salários, o que justificava o desmonte do Estado e dos serviços púbicos por ele oferecidos.

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275

encontros reunindo educadores e pesquisadores da educação. Promulgada a nova

Constituição, novos tempos se anunciavam para a educação, propugnada a democracia como

método, como conteúdo o compromisso com as classes populares e — o mais importante —

afirmando o direito subjetivo à educação.

77..22 DDOO ÚÚTTEERROO ÀÀ LLUUZZ DDOO DDIIAA:: NNAASSCCIIMMEENNTTOO DDOO PPDDTT DDEESSFFRRAALLDDAANNDDOO AA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO CCOOMMOO

BBAANNDDEEIIRRAA

Do exílio em Lisboa, Leonel Brizola, com antigos trabalhistas, fundaram em 1979, o

“novo trabalhismo”. De volta ao país, Brizola e companheiros sofrem o duro golpe de ver a

sigla entregue a um grupo oportunista, pelas mãos dos militares no poder. Criam, então, em

maio de 1980, um novo partido para abrigar a reconstrução que faziam do trabalhismo: o PDT

– Partido Democrático Trabalhista, identificado com o socialismo populista.

O gaúcho Leonel Brizola marcava a vitória da oposição ao regime e às forças

conservadoras, nas primeiras eleições diretas para governador, no Rio de Janeiro, em 1982,

com um discurso de renovação, inversão de prioridades e participação popular, com ninguém

menos que Darcy Ribeiro como vice-governador, ambos abrigados no novo partido. Jamil

Haddad é o primeiro prefeito indicado93 por Brizola, em 1983, para o município do Rio de

Janeiro, permanecendo oito meses no cargo. Marcello Alencar é o sucessor (1983-1985),

afinado com ele partidariamente, como todos os mandatos dos prefeitos de capitais indicados

93 Apenas em novembro de 1985 voltaram a ocorrer eleições para as prefeituras de capitais. Antes disso, os prefeitos eram indicados pelos governadores, o que produzia uma certa “promiscuidade política” entre as ações do estado e as do município, este submisso às vontades e desejos do governo estadual. Quando Brizola assume o governo, Júlio de Morais Coutinho (1980–1983) ainda era prefeito, seguindo-se a este Jamil Haddad (1983–1983), defensor da participação popular, e o primeiro indicado por Brizola, mas de curta duração no cargo; depois Marcello Nunes de Alencar (1983–1985) é o indicado, em um contexto de coalização de forças do governo estadual com o PMDB e PTB. Conhecido como o “prefeito das ruas”, pela forma como itinerava com a prefeitura, isso não significava maior escuta às demandas sociais; as primeiras eleições de 1985 indicavam a possibilidade de maior autonomia para o poder local, em relação ao governo estadual, intensificando as relações prefeitura e sociedade organizada. Roberto Saturnino Braga (1986–1988) se elege e assume o cargo. Com a perda do mandato para governador nas eleições de 1986, pela eleição de Moreira Franco, alinhado com o governo federal de José Sarney, o PDT se esvazia de poder e o grupo socialista, do qual fazia parte Saturnino Braga fica isolado, culminando na saída do partido, o que exigiu a reestruturação do secretariado. A falta de apoio político decorrente acirrou a crise financeira do município, decretando falência administrativa em 1988. Embora os nomes de prefeitos colaboradores de Brizola se repitam, como é o caso de Marcello Alencar e César Maia, só nos primeiros mandatos estiveram afinados no mesmo partido, rompendo depois com o governador (às vezes até mesmo durante a vigência do mandato) e inclinando-se para posições ideológicas distantes das iniciais e assumindo fortes disputas políticas com Brizola, principalmente em seu segundo mandato como governador. O caso mais emblemático é o de César Maia, secretário de planejamento no governo Brizola, e hoje, depois de idas e vindas, aterrissado no PFL. A seqüência de prefeitos, durante todo o tempo do PEJ é a seguinte: Marcello Nunes de Alencar (1989–1992, 2º mandato); César Epitácio Maia (1993–1996); Luiz Paulo Fernandez Conde (1997–2000. Eleito sob a mão de César Maia, com quem também rompe, futuramente); César Epitácio Maia (2001–2004, em 2º mandato); César Epitácio Maia (2005 – 2008, 3º mandato, por reeleição).

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276

por governadores. Só em 1985 ocorreriam as primeiras eleições diretas para essas prefeituras.

Com isso, as políticas públicas da capital convergiam em direção às do governo estadual, o

que não foi diferente, no tempo de Marcello Alencar. No âmbito da educação, o Programa

Especial de Educação – PEE implantado, em ação conjunta com a Secretaria de Estado de

Educação – SEE, atendia aos compromissos do programa do governo estadual, de mudanças

estruturais na área.

Darcy Ribeiro, ocupante também do cargo de secretário da cultura, recebeu a

incumbência do governador para presidir a Comissão Coordenadora de Educação e Cultura,

responsável pela formulação da política educacional do estado. A comissão reunia os

secretários estaduais de educação e de ciência e cultura, o secretário municipal de educação e

o reitor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, o que na prática fazia de Darcy

Ribeiro o autêntico secretário de estado de educação, cargo formalmente ocupado por Yara

Vargas. Um importante acontecimento tem lugar nesses tempos, no segundo semestre de

1983: o I Encontro de Professores do Primeiro Grau do Estado do Rio de Janeiro, o Encontro

de Mendes, culminância de um processo representativo de delegações de professores

indicados em diversos níveis: primeiro, na própria escola; depois em pólos de escola

organizados no Rio de Janeiro, cada pólo com cerca de três escolas; depois pólos mais amplos

agregando alguns Distritos de Educação - DECs; até chegar ao evento final, realizado de

forma conjunta pelas redes estadual e municipal, significando a retomada da participação dos

professores na política educacional.

Lia Faria, então presidente do Sindicato de Professores, assumiu a coordenação do

PEE, logo depois do Encontro de Mendes.

Darcy Ribeiro, a figura forte do governo na área da educação, idealiza então o

Programa Especial de Educação, que tem início em 1984. Reinventar a “escola pública,

honesta e eficiente” e “educar a criança brasileira tal qual ela é, a partir da situação concreta

em que se encontra” (RIO DE JANEIRO, 1985, p. 16), eram objetivos do Programa. Como

metas fundamentais destacavam-se: a) extinção do terceiro turno, o que possibilitava um

mínimo de cinco horas diárias a cada aluno, na escola; b) oferta, ao corpo docente, de cursos

de capacitação para atualização pedagógica e, conseqüentemente, melhoria da qualidade de

ensino; c) garantia de, pelo menos, uma refeição completa a cada aluno; d) oferta aos alunos,

na própria escola, de assistência médico-odontológica: cada unidade escolar transformada em

centro de ação preventiva e de defesa da saúde; e) construção de 500 CIEPs, distribuídos em

áreas carentes e de grande concentração demográfica; f) criação, no horário noturno dos

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277

CIEPs, do Programa de Educação Juvenil para atender jovens de 14 a 20 anos que não

houvessem freqüentado a escola ou que dela tivessem se afastado sem o domínio da leitura,

da escrita e do cálculo. (ARANTES, 1998, p. 26). Segundo José Pereira Peixoto Filho,

coordenador da proposta inicial do PEJ, este foi implantado também em muitos CIEPs do

estado, principalmente na região serrana.

Assumindo a missão de implantar os 500 CIEPs projetados por Oscar Niemeyer,

Darcy Ribeiro passou a acumular, ainda, o de Secretário Extraordinário de Educação, e dava

resposta, por meio de um projeto, à constatação de que um enorme contingente de jovens

analfabetos entre 14 e 20 anos integrava, nas camadas mais pobres, a população do estado do

Rio de Janeiro. Nascia o Programa de Educação Juvenil – PEJ, implantado em 23 CIEPs. Na

versão municipal do Programa, Maria Yeda Linhares, secretária de educação do município do

Rio de Janeiro94 inaugura, em maio de 1985, o primeiro desses 23 CIEPs, construídos no

âmbito da SME. Retomam-se, também, no município, as classes de alfabetização – CAs para

atender crianças de 6 a 8 anos que nunca freqüentaram escolas, formando um bloco único, de

até dois anos para o período de alfabetização, com passagem automática da CA para a 1ª

série. São também dessa época iniciativas que levaram, posteriormente, à consolidação do

Conselho Escola-Comunidade – CEC, substituindo as antigas Associações de Pais e

Professores – APP; as eleições diretas para diretores de escolas municipais, só realizadas, pela

primeira vez, em 1987, quando Moacyr de Góes é secretário, pela demora da regulamentação.

O Plano Quadrienal de Educação e Cultura do Estado do Rio de Janeiro (1984-1987)

em resposta à política educacional pretendida pelo Governador, enfatizava a necessidade de

assumir a educação como prioridade, apontando o desequilíbrio entre a demanda populacional

e a rede escolar insuficiente; a necessidade de alfabetização de adolescentes; a pobreza dos

conteúdos curriculares, uniformizadores, a partir da classe média urbana (HENRIQUES,

1988, p. 31).

A derrota do PDT nas eleições seguintes para o governo do estado e a chegada de

Moreira Franco (1987-1991), sucedendo Leonel Brizola, trouxe Carlos Alberto Direito para a

94 Os Secretários Municipais de Educação desde a criação do PEJ, até os dias atuais, são os seguintes: Lucy Serrano Ribeiro Vereza (1979-1983); Maria Yedda Leite Linhares (1983-1986), que substitui Yara Vargas na secretaria estadual de educação quando esta se desincompatibiliza para concorrer a uma vaga de deputada, deixando em seu lugar Maria Lucia Couto Kamache (1986-1987); Moacyr de Góes (1987-1988); Mariléa da Cruz (1989-1992); Maria de Lourdes Tavares Henriques (1992-1992); Regina Alcântara de Assis (1993-1996); Carmem Lima Câmara de Moura (1997-2000); Sonia Maria Corrêa Mograbi (2001-). Regina de Assis, durante seu mandato, funda a MultiRio, uma empresa ligada ao município, com a finalidade de produzir tecnologia em apoio às redes, e passa a presidi-la desde então.

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278

Secretaria de Educação e Zaia Brandão para o Departamento de Educação. Conseqüências

imediatas: o Programa Especial de Educação foi arquivado e os CIEPs, praticamente

abandonados. O processo de desmonte da educação no estado do Rio de Janeiro começava,

recuperando práticas antigas, sem conseguir incorporar as práticas inovadoras.

Com Saturnino à frente do município do Rio de Janeiro, um grupo bastante

representativo de professores, entretanto, na rede municipal, continuava o trabalho do PEJ.

Moacyr de Góes, em sua breve gestão como secretário de educação, além de realizar as

primeiras eleições diretas para diretores de escola, implanta, em 1988, último ano do governo

Saturnino Braga, o ensino regular noturno95 em 26 unidades escolares da rede convencional,

isto é, fora dos CIEPs, inaugurando na rede o atendimento a jovens com idade entre 12 e 20

anos, que exerciam atividades que os impediam de freqüentar o horário diurno. O ensino

regular noturno passou a oferecer o 1º grau, ficando, assim, coberta a oferta de 1ª a 8ª séries

para jovens e adultos, em regime seriado, sem, no entanto, assegurar as premissas

pedagógicas do PEJ; intensifica, também, a elaboração da Proposta Curricular, buscando a

unificação das redes — a rede convencional de escolas e a decorrente do PEE, esta acusada de

açambarcar a maioria dos recursos públicos da educação. A medida aproxima as equipes

pedagógicas de uma e outra, dando curso à formulação de um único documento.

As discussões das equipes pedagógicas, em disputa durante os três governos

municipais, tiveram que conciliar com a iniciativa de Moacyr de Góes. A proposta da

educação popular, de base freireana, que sustentava o PEE e a das escolas convencionais, com

a equipe de supervisão educacional defensora da pedagogia dos conteúdos, encontravam a

seguinte saída, segundo Passos (1998, p. 236 apud SANTOS, 2005, p. 19):

[...] a utilização do referencial teórico baseado nos preceitos de Vygotsky, já que estes consideravam a relação entre os chamados conceitos cotidianos e os conceitos científicos como essencial para o processo ensino-aprendizagem. Para a autora, no entanto, é evidente que a concepção defendida pela educação popular foi vencida em relação à pedagogia histórico-crítica. Este fato se deveu à incongruência entre as idéias subjacentes a essa tendência e as práticas políticas muito mais voltadas aos interesses privatistas e eleitoreiros e com uma concepção burocratizada e hierarquizante que estruturava a relação SME-escolas.

A volta de Marcello Alencar, em 1989, à Prefeitura, dessa vez pelo voto direto,

garante a continuidade da política do PDT e de Brizola, revalorizando os CIEPs e as ações

95 Implantado pela Resolução nº. 314 “N” de 7 de março de 1988. A proposta encerrava contradições em relação ao PEJ, mas oferecia possibilidade de atendimento a alunos que não conseguiam vagas nas classes do PEJ.

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279

previstas no PEE, mas sem aproximar, pela participação popular, o poder público e a

sociedade.

Em 1992, setores da elite carioca, com interesses distantes da classe trabalhadora,

elegem e compõem forças políticas para o governo da cidade do Rio de Janeiro. O economista

César Maia, rompido com o PDT desde seu governo anterior, vence o pleito, em primeiro

turno, suplantando a candidata da situação Cidinha Campos, e, no segundo turno, supera

Benedita da Silva, do PT. Santos (2005, p. 32, citando MAIA, In: JORNAL DO BRASIL,

1995 apud VAINER, 2000, p. 105) assinala que estavam de volta as velhas forças

conservadoras ao poder que, desde então, permaneceram na cidade, impondo o projeto

político “da ordem”: “O eleitorado conservador encampou minha candidatura e entre eles sou

imbatível. Vou mostrar que é possível ser transformador pela direita”.

Ao assumir a Secretaria Municipal de Educação, Regina de Assis introduz mudanças

na estrutura organizacional da Secretaria, atingindo o PEJ, que deixa de ser um programa,

coordenado por uma equipe central, para ser um projeto, no âmbito de um conjunto de

Programas Sociais96. Reduz-se, então, o número de CIEPs com PEJ, passando das 42

unidades escolares de 1992 para apenas 12 em 1995. São os profissionais das escolas que

divulgam e resistem, impedindo que estes também acabem, como informa Gomes em

depoimento. A mesma depoente diz que a tentativa de cessão dos CIEPs para a rede estadual,

que ocupava no turno noturno os prédios das escolas municipais para atender, com o ensino

supletivo, a jovens e adultos, também enfrentou a resistência de muitos professores desses

CIEPs, que procuraram a Secretaria de Estado de Educação e o Conselho Municipal dos

Direitos da Criança e do Adolescente para reverter a iniciativa, impedindo, por fim, sua

realização. Uma das motivações de diretores para aceitar a cessão dizia respeito à redução da

carga horária de trabalho, já que a existência do PEJ à noite implicava funções de direção e

coordenação também presentes nesse turno.

A partir da promulgação da nova Diretrizes e Bases da Educação, Lei nº. 9394 de

1996, a exigência em relação à oferta do ensino fundamental para jovens a adultos por parte

dos municípios forçou a Prefeitura do Rio de Janeiro a investir na modalidade EJA.

Influenciado pelo convênio MEC/FNDE, que destinou verbas à educação de jovens e adultos,

investiram-se recursos significativos no PEJ, assim como se realizou o I Encontro de

Educação de Jovens e Adultos, sinalizador da necessidade de revisão da faixa etária, assim

96 Segundo o depoimento de Benício (2005), mais dois Programas estavam envolvidos, além do PEJ: o Programa de Alunos Residentes (PAR) e o Programa Rio Criança Cidadã (PRCC).

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280

como de regulamentação. Ainda nesse ano, novo convênio com o MEC/FNDE estendeu o

Programa até o final do ensino fundamental, com a criação do PEJ II, estabelecidas as

seguintes faixas etárias: 14 a 22 anos para o PEJ I e 14 a 25 anos para o PEJ II. Desde 1999,

observa-se o fim gradativo do ensino regular noturno na rede e a expansão do PEJ, não mais

restrito aos CIEPs, mas também funcionando em escolas convencionais, a partir do momento

em que o Conselho Municipal de Educação o aprovou, nas etapas I e II97, com caráter de

terminalidade e garantia de documentação retroativa a 1998.

O Programa, nascido em útero tão fértil, tanto do ponto de vista da conjuntura

nacional, quanto das forças políticas reorganizadas no estado e município do Rio de Janeiro,

desde 1993 vive abrigado na política do Partido da Frente Liberal – PFL, representando a

escolha dos cidadãos cariocas. Seu percurso traz as marcas da ideologia partidária, arrastando,

para sobreviver, contradições e opções políticas em nada próximas às vividas quando de sua

gênese, assumindo, vagarosamente, as concepções que tanto a LDBEN quanto o Parecer CNE

nº. 11/2000 trouxeram para a modalidade. Sobreviveu, principalmente, à custa da teimosia e

da resistência de professores-educadores que se recusaram, em um tempo histórico, a negar

sua oferta, e interditar mais uma vez a tantos jovens o direito ao ensino fundamental.

A permanência, no tempo, demonstra o acerto da sua existência, porque a realidade

dos não-escolarizados no município do Rio de Janeiro não consegue ficar encoberta. Mas a

resposta e seu crescimento quantitativo, tímido diante da realidade da população, merecem

reflexão e compreensão dos compromissos que o poder público carioca vem tendo, de fato,

com seus munícipes.

77..33 CCOONNSSTTIITTUUIINNTTEESS EE DDEETTEERRMMIINNAANNTTEESS DDAA CCOONNCCEEPPÇÇÃÃOO DDEE EEJJAA EE DDEE AALLFFAABBEETTIIZZAAÇÇÃÃOO

EEXXPPRREESSSSOOSS EEMM DDIISSCCUURRSSOOSS EE EEMM DDOOCCUUMMEENNTTOOSS DDOO PPEEJJ

A exigência da recuperação da história e das concepções do PEJ foi encontrar, além

das fontes documentais e dos artigos e trabalhos acadêmicos sobre o Programa, personagens

que ainda hoje atuam na educação de jovens e adultos, dispostas a narrar a versão das

experiências vividas. Gomes e Benício98, em março de 2005, escavam suas memórias e os

baús de histórias, os papéis e seus guardados e remontam diante de pesquisadores interessados

97 Parecer CME 03/99. 98 Maria Cândida Caetano Gomes e Maria Luiza Benício, depoentes do estudo de caso já referido (2005) são professoras da rede municipal, que participaram desde os primórdios da implantação do PEJ. Seus depoimentos ajudaram a compreender a trama e as tessituras realizadas pelos professores, para além da decisão dos governantes.

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281

nas escavações, a arqueologia do que significou não apenas o PEJ, mas um tempo de respirar

educação, que talvez tenha sido o último vivido no estado e no município do Rio de Janeiro.

A narrativa de ambas remete à necessidade de observar algumas questões, indispensáveis para

pensar o PEJ como política pública.

Gomes confirma, com suas lembranças e experiência, que o nascimento do PEJ foi

precedido por uma experiência de educação juvenil que propiciava o acesso da população

pobre ao ensino fundamental, experiência essa realizada por Ana Galheigo, no Lins de

Vasconcelos99, o que coincide com as buscas empreendidas de fontes, no resgate da origem

do Programa.

No documento inicial, segundo Gomes o primeiro documento, pode-se ler Programa

de Educação Alternativa, implantado em três escolas: Joaquim Ribeiro em Inhaúma, Mozart

Lago em Oswaldo Cruz e Érico Veríssimo em Fazenda Botafogo. Gomes confirma a escolha

das escolas enunciadas, levando em conta o fato de estas serem áreas de grande evasão de

alunos e haver a aposta na proposta curricular para atraí-los, pelo núcleo comum e de

interesses, com alcance da classe de alfabetização até a 8ª série, completando todo o 1º

grau100. A escolha de Gomes foi o CIEP Joaquim Ribeiro, em Inhaúma, no qual vivenciou

toda a experiência. Conta, ainda, que o Programa de Educação Alternativa fazia crítica ao

ensino supletivo, e sua proposta ambicionava apresentar-se como um modelo transformador

da escola regular. Implantado em 1984, durou até 1987.

Gomes, que em duas matrículas, por duas vezes assumiu o PEJ, desde as origens,

desafiada pelo novo, em escolas de bairros pobres, uma delas adiante retratada, cujas questões

sociais de antemão davam-se a conhecer, conforma o tipo de professor para quem a mudança

parece exercer um fascínio. E ao escolher a mudança de condições de trabalho, à acomodação,

muda a si mesma, porque não pode, com essas novas condições, ser mais a mesma. Inquieta,

segue em busca da aventura, da experiência, do embate previsível, dos obstáculos a enfrentar.

Soares (2005, p. 100), alerta sobre o significado de mudar:

É difícil mudar. Muito difícil. Doloroso e angustiante. Primeiro, porque a ousadia de mudar-se a si mesmo envolve cortejar a morte. Na mudança, uma parte de nós perece; um modo de sermos nós mesmos entra em colapso. Segundo, porque enfrentamos a resistência organizada das instituições e a oposição ferrenha de todo mundo que nos cerca. Unem-se numa brigada

99 Bairro do subúrbio do Rio de Janeiro entre as estações de trem de Méier e Riachuelo. 100 O 1º grau, sob a Lei nº. 5692/71, era a forma como se denominava o atual ensino fundamental, ambos de oito anos de escolaridade.

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282

contra a mudança aqueles que, de uma forma ou de outra, nos conhecem, dão testemunho de nossa biografia e zelam pela imutabilidade.

Aqui me refiro a uma das questões que certamente Gomes também deve ter

enfrentado. Quantos a conheciam, conheciam sua biografia e que lhe devem ter recomendado

não mudar? Apesar de o projeto do Governo estadual à época propor, ele próprio a mudança

de concepção de escola — da arquitetura à concepção pedagógica; de oferta pública, fazendo

a escolha por um projeto popular, em que medida as condições oferecidas ajudavam a

promovê-la? “Equivoca-se o sonhador ingênuo que espera estímulo à mudança por parte das

instituições supostamente destinadas a promovê-la, por paradoxal que pareça”. (SOARES,

2005, p. 100).

Soares (2005, p. 102; 108) construindo a compreensão dos muitos sentidos que atribui

à mudança, ainda alerta para o fato de que:

Há, portanto, um conluio da coletividade, uma espécie de surda conspiração contra a mudança, ainda que esta seja desejada pelas instituições e pela comunidade diretamente envolvida no processo. [...]

Todos os que aceitam o risco da mudança devem pagar por sua ousadia. (p. 102; 108).

Gomes pagou pela ousadia de querer mudar, mas sua narrativa relata os preços, os

ônus, mas também os bônus que a experiência do PEJ pôde lhe oferecer. Não é mais possível

vê-la, pelas narrativas, do modo como era àquele tempo. Transfigurada pela mudança do que

lhe aconteceu — a experiência, no dizer de Larrosa (2002) —, só se pode ver os

acontecimentos os quais diz orgulhosamente ter vivido, por trás das lentes de como ela hoje

vê esses acontecidos, por quem é, conformada pela biografia que lhe configura. Benício, do

mesmo modo, fez-se outra, nesse processo. E o protagonismo dessas personagens trazem para

mim compreensões e mudam as apreensões sobre a história do PEJ.

Vários foram os episódios relatados sobre as mudanças no PEJ. Um deles, em julho de

1986, segundo Gomes, quando os professores da Escola Mozart Lago elaboraram uma Carta

Aberta à População, convocando uma reunião de mobilização para tratar do término do

Projeto. Outro se deu em abril de 1994, durante a primeira exposição de trabalhos do PEJ101,

no hall de entrada da Câmara dos Vereadores. Alunos do CIEP Thomas Jefferson, em

Realengo, sabendo da passagem da secretária de educação Regina de Assis a caminho do

101 Nesta exposição estavam presentes alunos e professores dos CIEPs Thomas Jefferson, em Realengo; Gustavo Capanema, no Complexo da Maré; Samuel Wainer, na Tijuca; Luís Carlos Prestes e João Mangabeira na Ilha do Governador; Patrice Lumumba, em Del Castilho e Zumbi dos Palmares.

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283

Plenário, realizaram breve dramatização retratando o clima de incerteza que os rondava. Em

outra ocasião, relembra Gomes, quando era professora-orientadora do CIEP Samuel Wainer,

na Tijuca, os alunos enviaram cartas ao Prefeito e à secretária de educação. Uma delas,

conservada em seu acervo pessoal, foi lida no momento da entrevista:

Ilustríssima senhora Secretária de Educação Regina de Assis. Meu nome é Jorge Luiz. Eu gostaria de falar um pouco do PEJ porque eu gosto muito daqui. A senhora gostaria que alguém acabasse com a escola de seu filho? Então, não acabe com a escola dos outros. A senhora já viu alguma reportagem do Japão? Lá a maioria da população sabe ler e escrever, então porque a senhora não pára para pensar? A senhora já pensou se a metade da população do Brasil soubesse ler e escrever? O PEJ é importante para mim porque eu não tenho condição de estudar de dia, então eu tenho que estudar à noite. E se não for incomodo nós do PEJ gostaríamos de um certificado porque hoje eu fui arrumar um serviço e o moço pediu o certificado da escola e eu não tinha. Assim a senhora não quer que o Brasil não vai pra frente. Muito obrigado, conto com a sua colaboração. Atenciosamente, Jorge Luiz.

Benício lembra, ainda, que foram os professores que resistiram, aferrados aos

princípios iniciais do Programa, porque os abraçaram desde o início e por eles lutavam,

quando a administração Regina de Assis / César Maia o desmantelava. Também a luta pela

certificação, pela não-inclusão do ensino supletivo estadual nos CIEPs e contra todas as

tentativas de extinção são evidências das forças sociais em disputa com os projetos de

governos, de impedir a educação popular na escola pública. Gomes, por fim, afirma que essa é

“uma parte da história que, quando se conta a história do PEJ, não se conta essa história. A

história da resistência não se conta, como se ela não existisse. [...] as pessoas querem apagar,

é como se fosse um grande rascunho”.

Voltando no tempo, Gomes recupera que, no Encontro de Mendes um jornalzinho — o

Escola Viva, preparador de todas as discussões, divulgava que um dos itens do encontro era o

Programa de Educação Juvenil, constituindo a 14ª meta do governo, e destinado a jovens de

14 a 20 anos que não freqüentaram a escola, ou que dela se afastaram sem o domínio da

leitura, da escrita e do cálculo. Todos que lá estiveram testemunharam o convite da secretária

municipal para trabalhar no PEJ, narra Gomes, devendo para isso, procurar Ana Galheigo,

então na Secretaria Municipal de Educação, e também presente ao evento. Em 1985, o

Programa de Educação Juvenil foi implantado nos CIEPs, esta uma outra proposta, pensada

por Darcy Ribeiro, e que, ao longo do tempo, também sofre mudanças. No PEJ, ao lado das

atividades de ensino, propriamente ditas, uma programação esportiva e sociocultural também

foi prevista, adequada à idade dos jovens.

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284

Elaborado por uma equipe de quinze pessoas, contando com professores da SME, da

SEE e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - FAPERJ102, tinha

como base a experiência em trabalhos de alfabetização de adultos no Movimento de Educação

de Base - MEB e em Associações de Moradores de favelas do Rio de Janeiro e do interior do

país. O PEJ foi, então, lançado como um programa de alfabetização de jovens, na faixa etária

de 14 a 20 anos, tanto com história de exclusão escolar como sem passagem pela escola.

Prevendo, além da alfabetização “que levasse a uma ‘utilização consciente do código

gráfico’ (mas) formar, entre os jovens, uma consciência crítica do mundo e da sociedade”

(RIBEIRO, 1986, p. 77 apud BONAMINO, CHAGAS, 2002, p. 77), o Programa tinha um

currículo voltado para o desenvolvimento de trabalhos na área da Linguagem, Matemática,

Realidade Social e Cidadania, Saúde, Educação Física, Arte e Cultura, sugerindo metodologia

cujo eixo era “o próprio universo de vida dos alunos”.

A orientação pedagógica do PEJ, com duração de dois anos para a etapa da

alfabetização, previa um máximo de 20 turmas por CIEP, com 15 alunos por turma, e carga

horária diária de quatro horas, com a seguinte organização: 18h às 19h — jantar; 19h às 21h

— sala de aula; 21h às 22h — Educação Física ou Artes.

Começando pela alfabetização e pela educação física, o trabalho ligado à cultura

visava a revelar o nível de conhecimento dos alunos. A partir daí, desenvolvia-se o projeto,

organizado em ciclos; aulas e material didático não estavam centrados em disciplinas, mas em

temas, partindo do que os alunos sabiam e procurando atender às suas necessidades. Na

entrevista concedida, Peixoto destaca a forma inovadora de abordagem da educação física,

trabalhando o corpo jovem, e a importância da saúde, com a abordagem da sexualidade, em

especial pelo surgimento da AIDS. Exercícios de leitura e escrita eram realizados sobre esses

e variados temas. A compreensão de cada área, interligadas umas às outras pela concepção

interdisciplinar, tinha a seguinte configuração, conforme estudo de Henriques (1988, p. 45-

52):

Linguagem: opção pela linguagem oral utilizada pelos alunos como fonte geradora do

processo de alfabetização. O nome do aluno é ponto de partida, em processo de resgate da

identidade, para o domínio da leitura e da escrita.

102 José Pereira Peixoto Filho, da FAPERJ, coordenou a equipe inicial que pensou o PEJ, e seu depoimento alimentou a pesquisa Juventude, escolarização e poder local: novos desenhos da educação de jovens e adultos na esfera local, o estudo de caso sobre o PEJ feito no âmbito da investigação sobre políticas públicas para a EJA, nas regiões metropolitanas de nove estados brasileiros. O mesmo depoimento também subsidiou esta pesquisa.

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285

Matemática: a cultura e a vivência do aluno são os fundamentos, desenvolvendo o espírito

crítico para a busca do pensamento autônomo e independente, visando à elaboração de

conceitos. O raciocínio lógico desenvolve-se a partir de situações familiares e da

manipulação de material concreto.

Realidade Social e Cidadania: partindo da localização espacial, chegar às formas como a

interação social acontece nesse espaço de vivência. A localização no tempo estabelece

relação entre as histórias de vida dos sujeitos e a História da sociedade, em que vive e

atua, modificando-a.

Saúde: educação para a saúde é perspectiva central, estabelecendo correlações entre as

condições de vida da comunidade e dos sujeitos, quanto à situação de saúde/doença.

Reconhecimento e descoberta do próprio corpo, relação entre saneamento básico, meio

ambiente e relações sociais, incorporando hábitos e conhecimentos para manter ou

adquirir saúde e melhor qualidade de vida, além da garantia da assistência médico-

odontológica.

Educação Física: orientação por práticas desportivas visando ao desenvolvimento

corporal, psíquico e mental, associado à consolidação do sentimento comunitário. Valor

das atividades físicas diversificadas e prazerosas.

Cultura: resgate das manifestações culturais e artísticas da comunidade, em contribuição

ao processo de alfabetização. O trabalho criativo visa ao reencontro com o prazer em

aprender.

A resposta do Programa evidenciava a questão concreta que o país vivia: jovens, que

por sua idade deveriam ser recém-saídos da escola, em verdade se expressavam como não-

alfabetizados, revelando as fraturas do ensino público para as faixas de 7 a 14 anos, nos

termos da Lei nº. 5692/71.

Voltado para a alfabetização, inicialmente, em 1987 se estendeu até o nível das séries

iniciais do atual ensino fundamental (na ocasião, ensino de 1º. Grau), em dois distintos

blocos, não-seriados: o primeiro, englobando o processo de alfabetização; e o segundo

aprofundando a leitura e a escrita, e conceitos pertinentes a essa fase escolar. No tocante à

avaliação, não usava a reprovação como medida de saber, mas como instrumento de

conhecimento dos processos de conhecimento dos alunos que, reorientados, deveriam seguir,

até a terminalidade dos dois blocos, referente ao primeiro segmento deste nível de ensino.

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286

Embora alguns mecanismos garantissem avanços ao público beneficiário, como por exemplo,

a entrada/matrícula a qualquer momento; o calendário desvinculado do oficial do ensino

regular; o respeito aos avanços progressivos do educando; a focalização nesse segmento etário

seguiu excluindo outras faixas, até mesmo depois que a Constituição de 1988 foi promulgada,

garantindo o direito à educação para todos, independente da idade, até 1996. Ainda na

expansão do Programa para o segundo segmento do ensino fundamental, em 1998, a

postulação que se fazia para jovens de 14 a 20 anos, apenas estendeu de 20 para 25 anos a

idade limite do público atendido.

Na prática, o Programa assumia os sujeitos que vinham buscá-lo, mesmo que com

idades diversas da fixada, e dois fatores concorriam, segundo minha compreensão, para que

isso acontecesse. O primeiro, a exposição a que o poder público ficava, com a exclusão de

outras faixas, contrapondo-se ao preceito constitucional de direito à educação independente da

idade, fato que, por si só, já punha o sistema sob alerta, principalmente depois da aprovação

da LDBEN em 1996, pela condição de direito público subjetivo auferido no texto legal.

Argüido, por qualquer cidadão cujo direito não estivesse assegurado, o poder público deveria

à sociedade uma explicação sempre embaraçosa, diante da Carta de 1988. Segundo, a pressão

que, desde o início o Fórum de EJA/RJ fez, em suas reuniões, à equipe do PEJ, argumentando

contra a exclusão etária que o Programa produzia, diante do direito. Sem dúvida este foi

sempre um fator de grande incômodo para os integrantes da Secretaria que participavam do

Fórum, e grandes embates foram ali travados de cobrança ao poder público e de defesa do

direito de todos à educação.

O fato que minimizava a questão era dado pela prática social: diretores de escolas,

professores, coordenações admitiam a presença de alunos de qualquer faixa, uma espécie de

acordo tácito, que só se formaliza a partir de 2005 quando o Programa amplia sua

formulação, admitindo a entrada de alunos de qualquer idade, acima de 14 anos,

reconhecendo, de direito, o que vinha ocorrendo, de fato, nas práticas das unidades escolares.

O enredamento deste Programa com a trama que o Fórum EJA/RJ foi possibilitando, a partir

de 1996, sem dúvida contribuiu para avanços, se não conceptuais, formais.

Quando o Programa se amplia para o segmento de 5ª a 8ª séries, em 1998, divide-se

também em blocos I e II. Posteriormente, o reconhecimento pelo Conselho Municipal de

Educação e, concomitantemente, a proposta de ampliação cria as unidades de progressão e,

então, o segundo segmento passou a ser PEJ II, bloco I e II. Uma das entrevistadas diz que,

em sua “concepção, as unidades de progressão com aqueles cadernos, acabam sendo um

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287

retrocesso na proposta inicial. Pois é claro que um professor que tem consolidado os

princípios do projeto, ele pode usar aquilo sem se escravizar, mas, como tem a questão do

tempo marcado, acaba que aquilo vira série com outro nome”.

A certificação foi preocupação desde a implantação, e ao final do período inicial, a

proposta curricular estava praticamente pronta, mas não chegou a ser submetida ao Conselho

Estadual de Educação, pela mudança de governo.

Henriques (1988, p. 60), em seu estudo sobre o PEJ, aponta os muitos problemas

administrativos que foram enfrentados, naqueles primeiros anos: da falta de professores,

especialmente nos CIEPs mais distantes dos núcleos urbanos centrais, ao caráter informal do

curso, que passava a ser um transtorno para os modos regulatórios das secretarias, como por

exemplo, em relação a fichas de chamada, à ausência de conceitos para os alunos; também a

falta de funcionários de apoio nos CIEPs, durante o horário de funcionamento, foi uma

questão de difícil solução. Também avalia que os problemas pedagógicos, freqüentes, talvez

indicassem as dificuldades dos professores em lidar com as concepções subjacentes ao

Programa, que implicavam, além de novas compreensões sobre os “conteúdos” do ensino

escolar, o reconhecimento dos sujeitos e de seus saberes como centrais no processo de

desenvolvimento da aprendizagem. Além de tudo, uma outra questão sobressaía: o custo do

Programa, que pela relação aluno/turma, exigia um número maior de docentes, o que

significava mais professores no quadro da secretaria e, portanto, maiores custos, o que, em

tempos de crise financeira do porte da que era vivida interna e internacionalmente, tornava a

opção pelo Programa uma dúvida permanente, somada à dificuldade de muitas direções par

assumirem o PEJ nas unidades que dirigiam. Quanto à faixa etária, a autora relata que, no

terceiro ano do Programa, cerca de 30% dos alunos já eram de diversa da prevista, estando

28% do total acima desta faixa. A situação da matrícula desses alunos, confirmada por

Gomes, embora não garantida oficialmente, era assumida por muitas direções dos CIEPs: os

alunos participavam do projeto como ouvintes, “clandestinos” que não apareciam nas

estatísticas. Ainda até 1992/1993, não era possível aceitar adultos como alunos, acrescenta.

Henriques (1998, p. 83), avaliando os primeiros anos do Programa, verifica também

que a interdisciplinaridade, segundo a visão dos professores-orientadores e diretores

informantes da pesquisa, não chegava a ser praticada por mais da metade dos professores. Os

motivos para isso estavam no não-entendimento da proposta e na resistência dos professores a

uma nova metodologia de ensino. Os professores, ouvidos pela pesquisadora, em larga

maioria corroborava essa percepção, confirmando que a interdisciplinaridade não acontecia e

Page 290: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

288

o mesmo motivo — o não-entendimento da proposta — quase dobrava como justificativa

mais forte, enquanto um terço dos motivos era atribuído à dificuldade do “repasse” feito pela

equipe central.

77..33..11 CCoonncceeppççõõeess ssuubbjjaacceenntteess ddee ffoorrmmaaççããoo ccoonnttiinnuuaaddaa nnoo PPEEJJ

A formação dos professores foi, desde o início, uma preocupação do Programa. Para

isso, dois momentos eram previstos: o treinamento intensivo e o treinamento em serviço. O

primeiro, inicial, feito pela equipe central, sempre que um CIEP era inaugurado e exigia a

formação dos professores para o atendimento. O segundo, em serviço, ocorria em pólos e

tanto podia ser entendido pelos encontros mensais para troca de experiências, quanto por

visitas da equipe central aos CIEPs. Coordenados pelos professores-orientadores, os encontros

mensais visavam ao estudo e maior compromisso dos professores com o Programa.

Benício103 lembra que, no início dos anos 1990, quando Marcello Alencar é prefeito

pela segunda vez, o PEJ sofre considerável expansão, atingindo 42 CIEPs, e que um dos

objetivos da formação, naquela ocasião, dizia respeito à compreensão das teorias de Emília

Ferreiro, com vistas a compreendê-las no universo da alfabetização dos jovens, cujo modelo

explicativo se assentava na visão freireana. Mas recorda, também, que muita coisa já deixava

de acontecer, segundo a conformação do projeto original, pela escassez de recursos cada vez

mais intensa.

Gomes narra vários episódios em que se pode compreender os processos de

autoformação existentes naquela época: a prática cotidiana ensina os professores a

encontrarem saídas para as situações que já começavam a surgir no turno da noite, nas escolas

cujo público vinha das áreas cariocas marginalizadas: a chegada da droga; a presença do

bandido; o envolvimento com o tráfico. Cada situação, desafiadora, exigia um tour de force

de toda a escola, e como se refere Gomes, a intuição prevalecia. Ou seja, é no sabor dos

acontecimentos, que muitos professores vão-se formando para serem profissionais do PEJ,

porque o maior fundamento do que faziam era dedicado a conhecer seus alunos, seus modos

de viver, suas necessidades, com tudo isso lidar, transformando cada descoberta em

possibilidade, rica de aprendizagens e exigente de compreensões, ressignificações, redefinição

103Maria Luísa Benício integrou a equipe central do PEJ em dois períodos: 1990-1992, quando do último governo pedetista na Prefeitura do Rio de Janeiro; 1994-1998, depois de breve período de afastamento, na gestão municipal de César Maia.

Page 291: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

289

de limites. Mais tarde, os centros de estudo vêm ocupar esse lugar de formação, mas nas

narrativas das depoentes, descobre-se o espaço-tempo autoformador que o PEJ constituiu.

77..44 RREEVVEELLAAÇÇÕÕEESS RREECCEENNTTEESS DDOO PPEEJJ:: AARRTTEESS DDEE FFAAZZEERR AA MMUUDDAANNÇÇAA DDEE CCOONNCCEEPPÇÇÕÕEESS

As três unidades escolares pesquisadas no estudo de caso104 Juventude, escolarização

e poder local: novos desenhos da educação de jovens e adultos na esfera local — CIEP

Graciliano Ramos, CIEP Patrice Lumumba e Centro de Referência em Educação de Jovens e

Adultos (CREJA) — oferecem, na contemporaneidade, um viés de compreensão que ajuda a

compor o conjunto de idéias que se vai tecendo, com todos os pontos, arremates, nós, fios que

se entrelaçam nessa trama urdida de 1985 a 2005.

Entretanto, cada CIEP a seu modo, faz e mantém, faz e renova as concepções originais

do Programa, que vão emergindo das incursões que grupos focais, entrevistas e questionário

de perfil foram capazes de fazer aflorar à superfície, nesse tempo recente de pesquisa, pela

voz dos sujeitos que lá estavam vivendo o PEJ, fosse como aluno, como professor, como

gestor, e até mesmo como sujeito que “esteve” lá no início da história do PEJ. A essas

maneiras de ser PEJ, nomeio artes de fazer, à semelhança de Certeau (1994), a quem desde já

peço licença para me apropriar e reconstruir, no cotidiano carioca.

No caso do CREJA, a situação é marcada por algumas diferenças. Nascido para ser um

Centro de Referência em EJA, ou seja, uma escola especialmente pensada para jovens e

adultos, mudando a concepção de atendimento, tem como objetivo inicial da proposta

oferecer aos jovens e adultos, por meio da vivência e da construção de diferentes práticas,

oportunidades variadas de estudo, objetivando o aumento da escolaridade, o compromisso

com a educação permanente e o desenvolvimento de características essenciais ao perfil do

trabalhador do século XXI. A iniciativa, entretanto, não é única no espectro do país (cf.

capítulo 7, com a experiência de EJA na SEC/BA, sobre a pesquisa no Centro de Educação de

Adultos Magalhães Neto). Aberto nos três turnos, o CREJA atende a qualquer disponibilidade

de tempo de jovens e adultos, sejam trabalhadores ou não, com concepção pautada pelas

referências não apenas da escolarização, mas do aprender por toda a vida, como educação

104 A pesquisa, financiada pela FAPERJ, sob a coordenação geral de Osmar Fávero, na 2ª fase foi constituída por um estudo de caso. O relatório de campo, denominado Estudo de caso — Programa de Educação de Jovens e Adultos - PEJA/RJ, relata o trabalho realizado pela coordenadora de campo Graça Helena Souza e Aline Cristina de Lima Dantas e Greice Bolgar integrando a equipe de pesquisa. Contou com a assessoria de Eliane Ribeiro Andrade e Jane Paiva e o apoio de Ana Karina Brenner. O documento final da pesquisa, ainda em versão preliminar, intitula-se Juventude, escolarização e poder local 2ª fase: relatório do estudo de caso.

Page 292: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

290

continuada. Como espaço público, reconstrói alguns parâmetros do atendimento, no que tange

a horários, agrupamentos menores, valendo-se da proposta e da experiência anterior do PEJ

como alternativa pedagógica. Biblioteca, sala de informática, cursos profissionalizantes ainda

dependem de implementação efetiva, embora constantes do projeto. No tocante à seleção dos

professores, foram escolhidos por meio de processo interno especial. Professores da rede, com

experiência e em sintonia com as propostas atuais de educação de jovens e adultos foram

convidados a participar da seleção, realizada por meio de análise curricular e entrevista. O

quadro docente deveria contar com professores de dedicação exclusiva ao CREJA, mas a

dupla regência105 impedia-os de estabelecer somente um vínculo.

Do ponto de vista físico, o CREJA abriga-se em um casarão colonial restaurado, um

belo espaço, no coração do S.A.A.R.A.106, área constituída por comércio varejista de

múltiplos produtos, de preços atraentes e muito público, que envolve uma população, em

maioria, tanto de comerciários, quanto de consumidores de menores níveis de escolaridade.

Em princípio, a proposta do CREJA animaria a luta política na área, mas novamente o

útero em que é criado alimenta-se de perspectivas políticas conservadoras, quanto aos modos

de gestão de um espaço como esse.

Muitas mudanças foram verificadas no PEJ ao longo dessa trajetória. Os 20 anos

passados serviram não apenas para afirmar uma dada concepção de direito, mas também para

atestar o esforço técnico permanente das equipes, em resistência à cultura política da

descontinuidade, da falta de compromisso com a história vivenciada, e com o ímpeto de

mudar, marcando supostamente a administração, com o novo, nem sempre novo, muito menos

necessário. Essa observação pode parecer ajustada para a idéia de que não se deva mudar,

para um modo conservador de assumir a política pública que não ousa experimentar a

mudança. Diferente do sentido que mudar precisa ter para melhor responder às dificuldades

de um projeto/programa; às necessidades do grupo que se deseja atender; às descobertas que o

olhar atento possa fazer sobre a realidade, a mudança no contexto político muitas vezes

carrega concepções pessoais que ignoram os compromissos públicos; põe-se acima das

ideologias e só é regida pelas escolhas individuais. O PEJ vai tecendo um percurso interno de

disputa política, que efetivamente se reflete não apenas no tipo de atenção que é dispensado

ao Programa, mas no tamanho da oferta que consegue assegurar. Destaco, entretanto, que

105 Professores de dupla regência são aqueles que têm mais de uma matrícula na rede pública, seja municipal, seja estadual. 106 SAARA é a sigla que designa a Sociedade de Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega.

Page 293: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

291

mesmo nos melhores momentos, a oferta pública aos jovens sempre foi tímida para a

demanda potencial, no próprio recorte de 14 a 20 anos.

Uma das mudanças significativas por que passou o Projeto107, que desde 1994 era

como tal reconhecido, conforme relatou Benício, foi exatamente a perspectiva de assumir,

novamente, a condição de Programa, em 2005, com parecer do Conselho Municipal de

Educação. Esta não é uma mudança sem maiores significados, se se entender o sentido

atribuído a um e a outro. No primeiro caso, a concepção de um projeto é finita, tem tempo de

início e de fim, estabelece objetivos e metas a serem alcançados com determinadas condições

e metodologias. Não fincando raízes no sistema, sem, portanto, o estatuto legal, é alvo fácil de

desmonte, sempre que um dirigente o considere dispensável. Ademais, se a busca para a

garantia do direito se faz na esfera pública, essa fragilidade de ser e não-ser vulnerabiliza-o

como política, e enfraquece as possibilidades orçamentárias que lhe permitem expandir-se,

cumprindo-se, como direito público subjetivo e dever do Estado. Se programa, não se

assujeita a tempos restritos, mas absorve o estatuto de rubrica orçamentária, incorporando-se

ao sistema de ensino, com todas as prerrogativas dos demais existentes: concurso para

professores, planejamento estratégico — o que assegura a expansão e a oferta às demandas

potenciais, segundo estudos de viabilidade regional —, projetos de formação continuada

integrantes da política orgânica da secretaria de educação, quadros de pessoal em disputa com

os demais programas, enfim, responde pela política da área, qualquer que seja a concepção

que venha a assumir.

Outra mudança percebida, fruto das interações dos professores com a metodologia, diz

respeito à exigência de revisão dos princípios norteadores de aceleração e progressão, nem

sempre sustentados pelas práticas. Pensar o que significa acelerar, em espaços quase únicos

de proximidade com objetos escolares de conhecimento, com fontes (mesmo precárias), com

tecnologias e equipamentos de acesso, bibliotecas e livros, pode significar uma contradição,

porque mesmo admitindo-se a voracidade da vida cotidiana, e do mundo do trabalho,

principalmente exigente de titulações, o envolvimento dos alunos com processos de estudo e

de saber antes não usufruídos, quando bem constituídos, não requer velocidade, mas

aprofundamentos, o que exige tempo. A escassez de tempo que nega a experiência, no dizer

de Larrosa (2002), é perceptível pelos que conquistam tardiamente o direito a estudar, e nem

sempre é desejável sua abreviação, mas sim seu alongamento. No caso da progressão, o risco

107 Devo assinalar que o PEJ é originalmente Programa de Educação Juvenil, passando a Projeto quase dez anos depois de implantado, e voltando, em 2005, a se assumir como Programa.

Page 294: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

292

a correr é quando esta não se faz porque a contingência dos aprendizados do sujeito exige,

mas porque um avaliador externo, instrumentos mecânicos, assim decidem, invalidando o

fundamento dos ritmos de aprendizagem, dos tempos de conhecer e de sedimentar o

conhecimento. Quando então tanto a aceleração, quanto a progressão são frutos de discursos

exteriores, preocupados com os egressos, do ponto de vista numérico, na não retenção apenas

para responder a novas demandas de vagas porque não se ampliam as ofertas, a concepção

passa a ser catastrófica, porque mascara um percurso de aprendizagem, em nome de

resultados breves.

Uma última mudança a ser assinalada diz respeito à abolição integral do vínculo

exclusivo com a idéia original de público jovem, para se ampliar, nos termos constitucionais,

com o atraso de 17 anos, a toda a população jovem e adulta não-escolarizada, para a qual o

Estado é devedor da oferta do serviço referente ao direito à educação. Quando passa a ser

reconhecido como Programa de Educação de Jovens e Adultos – PEJA, e não mais PEJ,

inaugura-se um novo tempo de reconhecimento de direito, sem subterfúgios, à cidadania. Não

se fazem mais “escolhas de Sofia”108, mas garante-se a homens e mulheres, a adolescentes e

jovens, a adultos, a moços e velhos, a trabalhadores e trabalhadoras, a empregados e

desempregados de qualquer idade acima de 15 anos, o mesmo direito, livre da crueldade das

escolhas, das focalizações que envergonham as políticas públicas. Mesmo sabendo-se que

resultante das tensões provocadas ao sistema pela luta de adultos e idosos e pela resistência de

uma equipe técnica pertinaz, e não de uma ideologia política comprometida com a educação

popular, como a que originou o Programa, é preciso comemorar, porque invoca a disposição

e a esperança dos educadores, de que vale a pena lutar.

77..44..11 AArrtteess ddee ffaazzeerr oo ccuurrrrííccuulloo:: rreevviissããoo ddooss pprriinnccííppiiooss ppeeddaaggóóggiiccooss

A discussão sobre o que significava para os professores currículo gerou idéias bastante

diversas, mas necessárias para a compreensão das práticas que vêm sendo realizadas nos

CIEPs. Uma professora destacou ser este traduzido pela forma como o grupo de professoras

da escola o compreende e trabalha, aproximando-se, assim, da concepção de que o currículo

real, acontecido, emerge das práticas, e nenhuma formulação a priori dá conta de revelar o

que é, efetivamente, fora da prática escolar/social. Este modo de pensar coincide com autores

108 Esta a metáfora proveniente do nome de um filme sobre a II Guerra Mundial, quando a uma mãe, no campo de concentração nazista, é dado o direito de “escolher” qual dos seus dois filhos salvaria, o que significaria entregar um deles à morte.

Page 295: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

293

que vêm desenvolvendo estudos e denominando aos currículos praticados no cotidiano de

emergentes, concepção que também orienta meus estudos e minhas práticas de formação

inicial e continuada. Oliveira (2003, p. 147; 2004a, p. 9; 2004b, p. 110), tratando da questão

da criação cotidiana que se faz na prática, afirma que esta criação envolve todos os saberes e

processos interativos do trabalho pedagógico realizado por alunos e professores — os

praticantes, como tática emancipatória, tecida em todos os momentos das escolas/classes e

nos espaços “para fora das práticas escolares, incorporando a idéia de que a vida cotidiana

tem seus próprios currículos, expressos nos processos sociais de aprendizagem que permeiam

todo o nosso estar no mundo e que nos constituem”. Diz a professora:

A gente precisa ressaltar o que seja o currículo, porque quando a gente fala em currículo, currículo às vezes as pessoas entendem como conteúdo programático. Na realidade, currículo é uma série de questões, inclusive aquilo que ele traz como conhecimento. E esse conhecimento é trabalhado no PEJA de diversas maneiras. A gente até alia isso à questão do conteúdo programático. Então toda essa diversidade que ele traz de conhecimento, ele é trabalhado no PEJA com questões da atualidade, questões diversas que eles estão passando, questões de higiene, doenças sexualmente transmissíveis que a gente vem trabalhando com ele.

E outra participante, buscando explicitar sua prática curricular, narra uma atividade

desenvolvida em classe, em que busca compreender os modos como inter-relaciona campos

de conhecimento — os componentes curriculares —, “entrando na área do outro”, como diz,

ao se referir à queda das fronteiras disciplinares para realizar uma ação pedagógica do

interesse de seus alunos, porque debruçada sobre a experiência de cada um deles:

[...] Olha, há pouco tempo mesmo, eu usei o coitado do Papa para falar de tanta coisa, da AIDS, disso, daquilo. E muita coisa não tem nada a ver com a minha área. A gente acaba, um, entrando na área do outro, e dando ao aluno uma vivência. Então, eu acho que quando entra aqui esse diamante, à medida que o tempo vai passando, ele vai entrando em contato com coisas da atualidade, coisas que dizem alguma coisa pra ele, ele vai crescendo. Tem alguns alunos que dizem: “ah, eu entrei aqui, saí e não aprendi nada”. Aí eu perguntei: “mas o que você gostaria de aprender? Quem foi Pedro Álvares Cabral? Eu te dou um livro pra você ler em casa, tá?” Aí eles riem. O que interessa é eles pegarem um jornal e ler o jornal e saberem o que é aquilo. Por exemplo, eu gosto muito de assuntos atuais e eu dou história e geografia109 tudo misturado. Às vezes eles falam: “hoje é aula de quê?” Aí eu digo: “não sei, no final a gente vê”. E aí chega no final da aula eu pergunto: “Vocês acham que hoje a aula foi de quê?” “Ah! De Geografia”. Então coloca aí. Então eu uso muito texto, muito jornal, muita revista, muita atualidade. E escuto, a maior barbaridade que ele tem pra dizer, eu escuto. Eu nunca digo que ele está errado. O interessante é que quando a gente dá

109 No PEJA, História e Geografia são trabalhadas juntas, integradas como componentes curriculares.

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294

determinadas aulas sobre trabalho escravo, trabalho infantil, eles são testemunhas da coisa, eles contam. Então eles trazem a experiência deles e isso é interessantíssimo.

A realidade dos alunos que participam do atual PEJA exige repensar continuamente as

perspectivas de aceleração e progressão, para atender a condições de tempo de estudo para

jovens e adultos trabalhadores, sem, contudo, permitir que estas passem a significar o

comprometimento com a produção de novas negações e desigualdades. Muitas críticas foram

feitas ao regime de aceleração no CIEP Graciliano Ramos, evidenciando contradições entre a

concepção e a forma como vem sendo apreendido. Professores relataram o mal-estar pelo fato

de serem pressionados a não reterem alunos de um bloco para outro, embora admitissem que

dependendo do aluno, se com experiências anteriores de passagem pela escola, ou não, estas

podem ser decisivas para seu seguimento no Programa, assim como no desenvolvimento do

trabalho pedagógico. Os professores adotam, no entanto, atitudes francamente educativas,

quando aconselham a permanência dos alunos por mais um tempo em uma unidade/bloco, o

que não reconhecem como semelhante à lógica da retenção na série, ou da exclusão, pela

reprovação. Nem sempre essa atitude é suficiente, e a tensão pode obrigar a fazê-lo seguir, o

que é lamentado por muitos, pela oportunidade perdida de possibilitar a sedimentação dos

conhecimentos. Um tema, sem dúvida nenhuma, bastante adequado para a formação

continuada.

Neste CIEP, o currículo é assumido de variadas formas, considerando os saberes dos

alunos, experiências e identidades culturais. Desse modo, palestras, feijoadas do trabalhador,

ceia de Natal são integrantes dessa concepção, que tem, na fala de uma participante feminina

ao grupo focal, a seguinte explicação: “[...] a gente está sempre apostando no sucesso do

aluno, porque a gente está sempre trocando e buscando alternativas. A coordenação junto com

a gente [...]. E a gente tenta sempre fazer o melhor e acho que temos conseguido”.

No CIEP Patrice Lumumba os professores assumem, diante dos princípios de

progressão do Programa, que a maior parte dos alunos do PEJA I blocos I e II tem,

efetivamente, maior necessidade de tempo do que os dois anos formalmente previstos, já

imputando esse fato à presença de pessoas de mais idade, muitos migrantes nordestinos, que

nunca passaram pela escola. Ao contrário do que se poderia supor, essa “maior” dificuldade

não faz com que se evadam.

Uma professora, discutindo a organização do PEJA em blocos/unidades de

progressão, atestava os problemas referentes à distância entre concepções e práticas, na

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295

instituição de um modelo superador da lógica da seriação, o que talvez pusesse o modelo no

centro da questão, ofuscando o sujeito e seus saberes, suas totalidades, possíveis interações.

Sua crítica parece estar presa ao fato de verificar, na prática, a convivência de situações que

em nada respeitavam as segmentações feitas por níveis de ensino, blocos/unidades de

progressão, porque seguiam a dinâmica da realidade.

Quando eu estava no nível central se falava que o PEJ era asseriado, que ele não tinha série, você juntava... não tinha terminalidade, não tinha um certificado. Aí quando eu vim trabalhar no PEJ, já tinha mudado isso, hoje você tem o PEJA I bloco I, bloco II, mas quando você pega a turma... eu sou PEJ I, bloco II, você tem um leque de situações ali, então a gente tem que ter... eu acho que a gente tem que trabalhar com o diagnóstico daquela turma, daquele grupo e focar diante daquele grupo o que você faz.

Ainda em relação ao currículo do PEJA, muitas outras questões surgem nos grupos

focais realizados nos CIEPs. Como exemplo, posso citar as diferenças de interesse dos adultos

e dos mais jovens, no aprendizado de língua estrangeira, associando aos mais jovens os gostos

culturais da música e do ritmo do hip hop, enquanto aos adultos era atribuída maior

curiosidade, que estimulava a atuação docente, em busca de outras dimensões de trabalho para

a língua estrangeira:

E dentro desse trabalho eu vou colocando as questões culturais, questionar a presença da língua inglesa, das vestimentas, das marcas. Então tem todo um questionamento, não é só a questão da informação da língua em si, mas questionar a cultura, a influência.

Outro exemplo leva ao significado da educação física no currículo do PEJA, pela não-

obrigatoriedade na escola noturna de jovens e adultos, demonstrando a mudança de

concepção, e conseqüentemente, de oferta em relação à área, em comparação à gênese do

Programa, como lembrou Peixoto. Diz uma professora:

Eu sei que de repente não faz parte da política, mas eu sinto essa necessidade. Até porque a gente tem adolescente em plena energia, a gente tem idoso que também não morreu, está vivo e quer fazer alguma atividade. E talvez a gente não tenha habilidade de trabalhar com essas pessoas, até porque não temos formação acadêmica pra isso. Eu acho que seria muito gratificante pra eles, trabalhar a questão do corpo. É necessário que tenha uma pessoa com essa habilidade pra estar fazendo uma coisa correta. Porque a gente até trabalhou essa questão do corpo, as nossas senhoras dançaram, fizeram... eu acho que deveria ter esse espaço da educação física.

Um aspecto destacado na mudança da organização das áreas de conhecimento do

PEJA diz respeito à organização dos dias/aula, abolindo em definitivo as hora/aula de 45min,

forma tradicional como se distribui a carga horária curricular. Os professores a consideram

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296

uma das mais bem-sucedidas inovações introduzidas no Programa, que diferencia o PEJA de

outras escolas de jovens e adultos, conferindo-lhe um referencial de qualidade no

atendimento:

Em princípio a gente achava que ficava meio cansativo, mas agora a gente acha que esse modelo é o modelo.

[...] o PEJ é uma estrutura que eu acho que a rede deveria pensar em possibilidades de absorver isso, porque eu tenho essa experiência em outra escola, esse esquema de tempos. A dificuldade dos professores se encontrarem, de pensarem enquanto parceiros da mesma área de conhecimento, aqui a noite já é uma experiência superada. Superada no sentido de que, aqui, todos os dias os professores se encontram, trocam informações a respeito de suas turmas, dos seus alunos. E sem dúvida que o aproveitamento é bem melhor, pois os alunos passam a noite toda com aquele professor e discutindo aqueles temas. E dá para os alunos tirarem dúvidas e se posicionarem mais.

De modo geral, muitos são os professores dos CIEPs que concordam com a idéia de

que um dia (4h) com cada turma faz a diferença no Programa, por permitir um tempo para o

desenvolvimento do pensamento que, se amputado, deixa pelo meio a construção lógica que o

sujeito faz, no movimento do pensar.

Quando vai chegando lá pelo meio da noite é que realmente a coisa começa a engrenar, até eles se integrarem com aquele assunto que está sendo discutido, com aquele assunto que ele está estudando, ele precisa desse tempo mais longo. E se fosse menos, esse tempo, ele ia cortar ali e já não ia finalizar o raciocínio. Ele tem necessidade desse tempo.

A observação perspicaz de uma diretora, sobre a organização dos horários com quatro

horas presenciais, indica que outros benefícios são auferidos com esse modelo, como, por

exemplo, o fato de que os mais jovens passam a ter uma convivência maior com os demais

sujeitos da mesma turma e com seus professores, o que contribuía para o desenvolvimento de

um trabalho mais significativo em relação às atitudes dos alunos, não apenas quanto às

diferentes áreas de conhecimento, mas pela possibilidade de aproximar os mais jovens a seus

pares geracionais, como a outros sujeitos de diversas gerações, com quem passam a conviver,

conhecer e respeitar, cultivando valores muitas vezes abandonados.

Contraditoriamente, no CREJA, a organização curricular estabelecida em um

funcionamento de 7h às 22h, atende os alunos em seis turnos, de duas horas cada um. O

modelo reduzido, no entanto, diferentemente da avaliação dos professores nos CIEPs, é

considerado satisfatório pela coordenadora pedagógica. A experiência de trabalho até aqui

desenvolvida por mim faz suspeitar que esta carga horária reduzida para o atendimento não

deva estar favorecendo os processos de aprendizagem, segundo a concepção que motivou a

Page 299: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

297

mudança, ou, nem tampouco, possibilitando a permanência — e a freqüência — dos alunos a

espaços ainda não operantes, como o da sala de leitura, para consultas e empréstimos; para

atividades não-presenciais, incentivando o acesso a bens culturais da cidade. Cada sala possui,

inicialmente, dez alunos, para atendimento às necessidades dos alunos trabalhadores. No PEJ

II, as salas para a realização das aulas são fixas por componente curricular. Existe salas-

ambiente de Língua Portuguesa, de Matemática, de Ciências, de História/Geografia e de

Língua Estrangeira. Para o PEJ I é reservada uma sala especial. Apesar de todos esses

espaços, a alegação é de que os alunos não devem se deter muito tempo no CREJA, sob o

risco de outros não poderem, então, ser atendidos. Com isso, acesso e disponibilidade ficam

comprometidos, se entendidos no sentido como Kalman (2004, p. 73), o faz, distinguindo “a

distribuição dos materiais próprios da língua escrita dos processos sociais subjacentes à sua

apropriação, disseminação e uso”. Diz a autora:

Disponibilidade denota a presença física dos materiais impressos, a infra-estrutura para a sua distribuição (biblioteca, pontos de venda de livros, revistas, jornais, serviços de correios etc.), enquanto que o acesso refere-se às oportunidades de participar de eventos da língua escrita (situações em que o sujeito se posiciona frente a outros leitores e escritores) e às oportunidades para aprender a ler e a escrever.

Se exatamente a questão mais importante a ser enfrentada pelos jovens e adultos não-

escolarizados se põe no domínio (no sentido de Ardoino, cf. capítulo sobre metodologia da

pesquisa) do conhecimento da cultura escrita, manter a parcialização da participação dos

alunos nesse espaço diferenciado de referência para a educação de jovens e adultos pode

comprometer severamente os resultados, e as finalidades as quais deve cumprir.

Kalman (2004, p. 74) ainda assume que:

[...] a presença física de materiais impressos não é suficiente para divulgar a cultura escrita. Da mesma forma, se uma parte da escola é um local privilegiado para acessar a leitura e a escrita, ela não é a única. Por isso recomenda-se o reconhecimento de outros contextos, nos quais se emprega a leitura e a escrita em situações comunicativas como espaços para aprender a ler e a escrever: acessa-se a língua escrita em situações da educação formal, mas também em situações de uso cotidiano.

Considerando-se o fato de que o CREJA é um centro de referência, e não uma escola

regular, e que seus objetivos visam a oferecer uma alternativa educacional adequada a seu

público, a presença da mediação de professores nesses espaços, cujo acesso não se faz apenas

pela sua existência física/disponibilidade é notadamente decisiva para que os objetivos sejam

cumpridos.

Page 300: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

298

Na apreensão do currículo que emerge desses CIEPs, uma característica experiência

no Graciliano Ramos merece destaque: o lugar assumido pelas atividades culturais que

acontecem em vários momentos durante o ano letivo, oferecendo às camadas populares,

vitimizadas por tantas interdições, oportunidades e vivências culturais.

Quando a gente monta a nossa proposta para o ano letivo, nós tentamos oportunizar aos alunos experiências que a gente considera importantes, e pela realidade de vida e de moradia, eles normalmente não têm acesso.

No CIEP Patrice Lumumba a situação é semelhante: como atividade curricular,

passeios e acesso a bens culturais histórica e socialmente negados são propiciados aos alunos.

A riqueza desses momentos, não apenas pelos roteiros escolhidos, mas pelas vivências que

produzem individual e coletivamente, tanto quando professores e alunos se preparam para a

atividade, quanto ao se movimentarem pela cidade é reconhecida por todos, pelos muitos

aprendizados e pelo fortalecimento da auto-estima e da capacidade de exercer a autonomia.

A questão do horário de entrada noturno continua sendo um ponto de conflito na maior

parte das redes de ensino, e não é diferente no PEJA. Nos CIEPs pesquisados não se observou

problemas nesse aspecto. No entanto, as posturas legais adotadas tanto ignoram a inadequação

do horário de 18h, incompatível com as habituais saídas de trabalhos para os que estão

empregados, mantendo-o, independente do dado da realidade; quanto impedem o acesso à

escola, trancando portões e negando aos alunos a possibilidade de participação, em um franco

movimento de exclusão. Ambas as atitudes desrespeitam o esforço dos que, a despeito de suas

condições precarizadas para estar na escola, gastam dinheiro de passagem, deslocam-se,

chegam, para serem tratados como irresponsáveis e como não-cidadãos, pelas autoridades que

deveriam garantir seu direito a aprender, nessa nova volta à escola. A iniciativa do CIEP

Graciliano Ramos, de construir uma saída honrosa para adequar o horário da rede, imutável,

inflexível, à realidade dos alunos deve ser louvada, porque caminha na contramão das práticas

correntes, e legitima, na rede do poder, alternativa considerada, por tantos, como impensável,

ou improvável.

A rigidez de horários no CREJA — e horários curtos — contrapõe-se, ainda, à

preocupação original do Programa, quando se previa o jantar de 18h às 19h, na chegada aos

CIEPs, antes da ida à sala de aula. Em realidade, no Centro só tem sido oferecida a chamada

merenda “seca”. A alternativa do jantar antes da aula é adotada pelo CIEP Graciliano Ramos

— até mesmo como forma de, compreendendo a realidade de jovens trabalhadores, afiançar-

lhes não apenas o direito à alimentação, depois de jornadas desgastantes de trabalho, como

Page 301: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

299

também a certeza de que processos de aprendizagem implicam consideração e respeito às

necessidades fisiológicas, antes de iniciar atividades de satisfação cognitiva e de atendimento

simbólico a necessidades humanizadoras, promovidas pela educação.

77..44..22 AArrtteess ddee ffaazzeerr aa pprreesseennççaa ddooss aalluunnooss nnaa eessccoollaa:: eevvaaddeemm--ssee oouu ssããoo eexxppuullssooss??

A quantidade crescente de alunos nas turmas tem sido identificada como uma questão

a enfrentar, face ao fato que, em sua gênese, o número máximo era estimado em 15. Muitas

turmas contam hoje com 35 alunos, sempre chegantes, pela forte migração do diurno, muitas

vezes patrocinada pela própria escola, quando os alunos são adolescentes, apresentam

comportamentos considerados “rebeldes”, ou em franca “defasagem idade-série”. Assim se

posiciona uma professora: “o PEJA não é para mandar o aluno do diurno para a noite, o aluno

que dá problema no diurno para a noite. Mas ficou assim, o aluno deu problema manda para o

PEJA, porque eles vão ficar...”

Em todos os níveis e modalidades do sistema a situação dos quantitativos nas turmas

aparece, não sendo exclusividade da educação de jovens e adultos. No caso dessa modalidade,

ao contrário, o que freqüentemente se tem é uma matrícula excessiva de alunos por turma,

pela aposta que se faz na evasão, o que, em síntese, “corrigiria” o tamanho da turma. Uma

espécie de correção “natural”, que na verdade “naturaliza” a sistemática expulsão dos alunos

da escola (como ensinou Paulo Freire), que muitas vezes não ficam pela qualidade da oferta a

eles destinada, encoberta pela ausência de avaliação e crítica de que sofre, de modo geral, a

escola brasileira. No caso do PEJA, a existência — e permanência — de 35 alunos em cada

turma deveria ser louvável, porque certamente deve indicar, do ponto de vista da qualidade da

escola, que alguma coisa diferente ocorre com o projeto pedagógico, nas relações entre os

sujeitos, na forma como se organiza a oferta pública de atendimento. O que não significa

aceitar números elevados, mas observar que, se com maior número é possível ter rendimento

satisfatório, com menor número de alunos por turma seguramente deverá garantir resultados

ainda mais satisfatórios, pelo conjunto de práticas que a escola reúne. Inútil pensar que apenas

o número de alunos menor possa mudar a qualidade da escola, sem que outras intervenções

pedagógicas, intencionais e conscientes venham a ocorrer.

No CIEP Patrice Lumumba, o diretor atribui a crescente procura ao Programa, com

freqüência elevada — muito menor em momentos passados quando não havia o

reconhecimento legal — à autorização conquistada no Conselho Municipal de Educação para

expedir certificados. A comprovação da terminalidade de um nível de ensino não é fator

Page 302: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

300

menor para os alunos: é a prova legal e legítima, diante da sociedade, de que a escolaridade

existe, para qualquer circunstância em que devam demonstrá-la.

Segundo o diretor do mesmo CIEP, a freqüência no geral é oscilante, em decorrência

de muitos fatores sociais e locais, o que faz com que os alunos tanto saiam quanto entrem,

incansavelmente.

Muitos casos são relatados sobre a presença de muito jovens, alunos sabidamente da

escola regular, que procuram o PEJA. Alguns, de 14 e 15 anos, vieram acompanhados de um

responsável, que afirmava estar o adolescente com proposta de trabalho, precisando, por isso

mesmo, estudar à noite. Mais tarde, a verdadeira história aflorava: analisado o desempenho e

o comportamento do aluno no histórico escolar, descobria-se não ser o alegado trabalho o

motivo da busca da escola noturna, mas sua atitude, apresentando “características

problemáticas”, com ameaça de expulsão da escola regular.

A presença forte da juventude no PEJA é também reforçada pela demanda que chega

por meio da Coordenadoria Regional de Educação - CRE, que aceita o pedido das escolas sob

sua jurisdição para matrículas de alunos ainda em idade de ensino fundamental obrigatório.

Ainda vivemos essa situação. A gente sinaliza sempre isso para a CRE, a gente pede uma ajuda nesse sentido, que oriente as escolas, pois o PEJA não tem essa finalidade de depósito do aluno do diurno. “Vamos lá botar no PEJ que o PEJ vai dar conta”. Não é essa a proposta.

Alguns jovens, com idade acima dos 17 anos, em maioria, e os adultos, em grupos

focais, reclamaram das dificuldades relacionadas ao trabalho: relações tensas com os patrões

para manter horários de rotina no final do expediente, o que no caso de empregadas

domésticas é ainda mais grave, por conta do serviço do jantar; distâncias entre o trabalho e a

escola; questões relacionadas à família e à comunidade onde moram.

Dificuldades de aprendizagem nas diferentes áreas e no âmbito da leitura e da escrita

também influenciam na freqüência e até mesmo na desistência de alguns alunos, afirmaram

professores.

Outras causas constatadas, no entanto, subjazem à desistência: conflitos familiares

vividos por mulheres junto aos companheiros, que negam a elas o direito de freqüentar a

escola; oferta de trabalhos temporários, em épocas de maior movimento no comércio, como

Natal, quando os alunos trabalhadores fazem horas extras, buscando extrair o máximo do

período. Muitos alunos vêm à escola avisar seus professores, que buscam maneiras de ajudar,

para que não percam o curso por causa de períodos curtos, específicos e pontuais.

Page 303: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

301

À relação com os professores, no entanto, é atribuído um forte grau para a freqüência

ou para a desistência dos alunos, o que significa dizer que subjetividades em jogo atuam para

reforçar o envolvimento com a escola e com a aprendizagem, ou para distanciar, uma vez

mais os alunos dessa renovada oportunidade. Também possuem grau de importância os

interesses despertados por determinadas áreas do conhecimento.

77..44..33 AArrtteess ddee ffaazzeerr aa ccoonnttiinnuuiiddaaddee ddee eessttuuddooss

No CIEP Graciliano Ramos, os professores referem-se aos 19 anos passados, como

tempos de impasses e lutas, em nome do Programa. A ausência de certificação aos alunos

exigia “malabarismos” da direção. Quando concluíam, uma declaração os acompanhava a

escolas estaduais, muitas vezes em conjunto com os próprios professores e coordenadores,

que os acompanhavam. A continuidade de estudos, principalmente tratando-se de jovens, era

desejável pela maioria, diferentemente do que se observa nos programas de alfabetização com

idosos, que querem aprender a ler e a escrever, mas a continuidade na escola regular ou

supletiva passa a ser um peso, que temem, freqüentemente. Como as escolas estaduais da

vizinhança já conheciam os trabalhos do PEJ no Graciliano Ramos, costumavam aceitar os

alunos, o que não ocorria quando estes se mudavam para outros locais, desconhecedores da

atuação do CIEP. Depois de ser implantado o PEJ II, em 1998, nos próprios CIEPs e demais

escolas da rede municipal, não apenas a escolaridade de ensino fundamental passou a ser

garantida, como direito, mas o próprio trabalho verificou melhores resultados, pela

continuidade pedagógica possível, especialmente no que tange à leitura e a escrita, objetivos

imprescindíveis para o trabalho do PEJ. Uma professora participante do grupo focal assim

expressou o que cabe, ainda, ao CIEP fazer pelos alunos:

Então a gente tem ainda muito pra dar. Então a gente não pode colocar a cabeça pra baixo, porque a escola pode fazer muito. E a escola faz isso. Nosso papel hoje, aqui, principalmente na educação de jovens e adultos é... a gente procura ainda fazer o melhor pra eles.

O desafio atual é conseguir garantir a continuidade no ensino médio para jovens e

adultos principalmente, que buscam, mais do que seguir, a possibilidade de fazê-lo em uma

escola na modalidade EJA.

77..44..44 AArrtteess ddee ffaazzeerr aa ffoorrmmaaççããoo ccoonnttiinnuuaaddaa

A formação continuada dos professores do PEJA é realizada nos centros de estudos.

Estes são espaços semanais reservados para que se estreite um maior diálogo entre as áreas,

Page 304: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

302

desafiando-os a trabalhar coletivamente, em nome de um projeto pedagógico comum. No

início, somente professores do PEJ II, ou seja, do segundo segmento do ensino fundamental,

tinha garantido o horário para os centros de estudos. Na atualidade, ambos conquistaram esse

direito, e, quinzenalmente, PEJA I e II se encontram.

Além desses espaços semanais de formação continuada, há outras ofertas com projetos

de maior duração, articulados com recursos do FNDE110 pela coordenação central. Entretanto,

os cursos organizados muitas vezes impõem aos professores o comparecimento fora dos

horários de trabalho, ou até mesmo fora de dias úteis. Há defesa nas escolas de que os

professores possam se afastar temporariamente do trabalho para se especializar, com garantia

de substitutos durante o período de formação continuada. Mas são acordes em afirmar que

houve tempos mais difíceis nessa questão. Embora um pilar de sustentação do PEJ, no

nascedouro, tenha sido posto na formação continuada docente, observei como desde os três

primeiros anos a pesquisa de Henriques (1988) revelava grandes problemas quanto à

exeqüibilidade da estrutura do Programa. Uma professora, jocosamente brinca:

Uns dez anos atrás eu brincava, porque eu dizia que ia pedir uma indenização ao Município por emburrecimento, porque eu vou lhe contar, você ficar... porque eu estou há 27 anos na escola pública sem esse investimento na formação continuada do professor, eu acho isso um absurdo.

No Graciliano, o reconhecimento da formação continuada para o sucesso das

experiências no PEJA é inegável e nenhum professor assumiu poder prescindir de espaços de

formação. Do mesmo modo, no CIEP Patrice Lumumba os centros de estudos são,

fundamentalmente, espaço e tempo de trocas entre os professores, fortalecendo a todos para a

superação de difíceis situações vividas na escola. Gomes mostrava, trazendo a história dos

primórdios do PEJ, a importância da busca de apoio mútuo, marcante nos tempos em que

atuou, fazendo com que descobrissem, intuitivamente, saídas — novamente as táticas de

Certeau (1994) — para fazer frente às questões da vida cotidiana em áreas pobres, noturnas,

freqüentadas por novos sujeitos na escola pública. Observo que essa função do encontro

pedagógico entre professores não mudou, embora se tenham mudado as formas como esses

encontros se fazem: de informais, a formalizados, com horários predeterminados, sob a

coordenação de um professor.

110 Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação, órgão do MEC que financia ações específicas em apoio a estados e municípios, com verbas suplementares e complementares às vinculadas.

Page 305: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

303

A perspectiva de continuidade entre os PEJAs I e II também está fincada na

articulação feita pela formação continuada, entre os segmentos. A recente conquista desse

direito à formação dos professores do PEJA I, participando quinzenalmente dos centros de

estudos, indica a crescente compreensão do valor atribuído à formação, como propiciadora de

diálogo entre professores. Reconhecidos como espaços e tempos de discussão, de troca de

experiências, portanto essenciais à vida docente, sustenta as difíceis problemáticas que

atravessam a escola, como é o caso da violência, ligada ao tráfico de drogas. O movimento

entre os jovens e o tráfico, de mão dupla, tanto incorporou jovens do tráfico à matrícula

escolar, quanto aquele absorveu jovens da escola. A presença de novas lógicas de pensar o

mundo e as práticas como se traduz, mudou as relações na escola, entre alunos, entre

professores, e entre alunos e professores. O movimento de resposta institucional, repensando

o projeto pedagógico, veio imediatamente sob a forma de centros de estudos, espaço

legitimado de PEJA I e II para produzir conhecimentos sobre as questões do cotidiano e

reinventar a vida na escola:

Então a gente começou a pensar, a refletir sobre isso, mas por que a gente teve essa oportunidade? Porque pudemos nos reunir, se não nunca a gente ia poder pensar junto. Os nossos centros de estudos é (sic) às quartas, a direção passou pra sexta pra gente poder sentar com os professores do PEJA II. E aí já começamos a pensar como é que é esta escola agora, o que está acontecendo e o que a gente pode fazer nesse sentido. Então eu acho que isso é uma coisa legal, quando a gente pode sentar juntos, os dois, as nossas fortalezas, todo o nosso conhecimento em determinadas áreas e poder trabalhar com aquele grupo de alunos.

77..44..55 AArrtteess ddee ffaazzeerr aa ppaarrttiicciippaaççããoo ddee oouuttrraass ffaaiixxaass eettáárriiaass

Segundo Gomes, desde o início do Programa havia adultos e pessoas de mais idade no

Programa, todos “clandestinos”, como ela se refere. A juvenilização no PEJ, no entanto, não

apenas era um dado previsível, pelo corte etário que a proposta trazia, mas também um

aspecto preocupante, considerando-se que a tão pouca idade correspondia uma recém-

passagem pela escola regular, sem que se tivessem cumprido seus objetivos: escolarizar em

nível de ensino fundamental.

A produção do fracasso escolar em escala crescente nas escolas da rede pública

municipal, rede composta por 1054 escolas, constituindo a maior de toda a América Latina,

adicionada ao trabalho precoce dos jovens, competindo este com a escola — e trabalho, em

sua maioria, na informalidade; à gravidez na adolescência; e a situações decorrentes da

violência passaram a compor um quadro desafiador para a escola de EJA, pelo fato de a

Page 306: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

304

escola regular de ensino fundamental obnubilar a própria visão que não quer ver a realidade

dentro de si mesma, apontando-a como se estivesse de fora, e não a afetasse. Para não ver a

realidade que produz e com que convive, nega-a, “empurrando” os “desviantes” para o

noturno, como reduto da “marginalidade”. As imagens são fortes, mas provêm de pesquisas

da UNESCO feitas com gestores em muitas escolas no Rio de Janeiro, que se referem dessa

forma à educação de jovens e adultos e a seu público.

Professores no CIEP Patrice Lumumba apontam dificuldades para lidar com os muito

jovens que chegam, não só pela pouca idade, mas pela necessidade de integrá-los com outras

faixas etárias. Percebem que os adultos vêm determinados a estudar, alegando não terem mais

tempo a perder, e que a presença de jovens sem o mesmo compromisso, com comportamentos

que consideram inadequados, tem até ocasionado a desistência de alguns desses de mais

idade, por não suportarem um cotidiano escolar marcado por conflitos, distante do ambiente

que sonhavam encontrar na escola. Também para os jovens a tensão é perceptível, e muitas

vezes não resistem a ela, não somente pela pressão que recebem de parte dos adultos, dos

idosos em relação aos comportamentos adotados, como também porque, tendo introjetado um

modelo de escola de onde vieram faz pouco, resistem e reagem a outros modos de trabalhar.

Apesar de todas essas questões, há uma orientação da coordenação central no sentido

de que as relações geracionais devem ser preservadas, sem construir guetos etários que

apartem os alunos segundo as idades. Muitos professores e gestores concordam com a

orientação, adotando-a não como determinação, mas por concordância, haja vista a

sinalização que fazem quanto à riqueza dessa experiência intergeracional — condição

fortemente educativa no estabelecimento de relações diversas no que tange a valores, ao

exercício da tolerância, a formas de ver o mundo, como passado ou futuro. Entrementes,

equilibram o número de jovens em cada sala de aula, com as demais idades.

Se as relações são tensas entre as diferentes faixas etárias, entretanto, para os

professores há positividades e apostas.

[...] Às vezes é complicada. Mas ao mesmo tempo é enriquecedora, muito enriquecedora, porque às vezes quando os mais velhos ficam impacientes — porque às vezes eles são muito chatos, com essa impaciência e tudo... Mas na medida em que você começa a dar valor à paciência, o exemplo deles para os outros, aí eles começam a se empoderar e então fazem um papel bem interessante.

Mas a presença das problemáticas atuais da juventude não se oculta quando se escava

mais fundo: os riscos pelos quais os jovens vêm passando, principalmente nas comunidades

Page 307: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

305

pobres, em relação ao tráfico e toda a sedução que o ganho fácil, o desejo satisfeito vêm

trazendo para os que não resistem aos seus apelos, que aderem às formas como se impregna

em corações e mentes. A convivência tão próxima com esses jovens não está mais separada

pelos muros da escola, mas se faz diretamente, porque muitos deles são alunos desses

professores, romperam os muros e vieram estudar. Uma naturalização da atividade como

alternativa laboral, ou uma tentativa de manter-se no presente, para poder, com o estudo,

pensar o futuro?

Agora, uma das angústias... pelo menos minha, nossas com as coisas que a gente tem discutido é porque cada dia que morre um ali no tráfico foi um aluno nosso. Isso tem acontecido e isso tem trazido muita angústia, porque que perspectiva tem essa juventude? Por exemplo, o Rodrigo entrou pra minha turma com... ele estava cumprindo uma medida socioeducativa e... e ele é desse jeito. Ele levanta, sai, toda hora ele toma lá uma coisa doce e tal. E tinha que fazer um relatório pro juiz dele. E a minha angústia era assim: o que eu vou escrever nesse relatório que não derrube... mas também eu não podia dizer que ele era um anjo. Então foi muito difícil escrever o relatório. Então eu coloquei uma frase assim: o aluno está se esforçando. Era o que ele estava fazendo realmente.

Mas assim, os alunos que são envolvidos no tráfico, esses alunos que são mais desvalorizados, o fato de estarem... a necessidade de falar sobre isso, de dizer, por exemplo, ele não precisava me dizer que ele estava cumprindo medida. A primeira coisa que ele falou foi isso. E isso traz um status sim, eu sou tão desconhecido e tão não-reconhecido que eu posso ser reconhecido porque eu estou no tráfico, porque eu já fui preso. Hoje é status você ter sido preso. Então isso é uma angústia da gente. Eu não vejo política pra essa juventude e não vejo política de primeiro emprego. Vejo uma escola como a nossa que a gente faz um sacrifício pra levar em alguns lugares, mas é um sacrifício conseguir transporte, é um sacrifício pra eles. Você tem poucos recursos pra poder empoderar mais, pra que ele não precise estar no tráfico dizendo: olhe só, eu existo, eu uso essa arma, eu uso isso, porque eu matei. Eu acho que a escola não pode fazer tudo. Eu acho que o que a gente pode fazer é muito pouco, porque quando você fala em trabalho... Estudo? Tem garantia de trabalho, tem garantia de que quem termina um segundo grau e até um curso superior? Então outras coisas precisam subsidiar o nosso trabalho, outras políticas de outras Secretarias precisavam estar mais presentes pra gente que receber essa juventude...

Soares (2005, p. 229; 262-263) ao discutir os motivos pelos quais o tráfico vem

atraindo tanto os jovens, parece ter ouvido essa professora, mesmo não tratando da instituição

escola. Mas a tentativa de compreensão desses sujeitos alunos, exige pensá-los diante dessa

face que passaram a assumir, cada dia com mais adeptos, envolvidos com a criminalidade,

cumprindo, ou ainda não cumprindo, medidas socioeducativas, o que acontecerá mais cedo ou

mais tarde. Seduzir os jovens para a participação escolar... será essa uma possível saída?

Quanto pode a educação, diante da falta de perspectivas sociais, que passam pelo trabalho,

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306

pelo emprego, pela remuneração digna, pela garantia dos direitos sociais, pela não-

discriminação que marca e maltrata os negros, os pobres, os não-alfabetizados/não-

escolarizados, os jovens, discriminação acentuada, sempre, quando esses atributos coincidem

em uma só pessoa. Mas ainda assim, percebe-se a preocupação coletiva com a questão e a

tentativa de não produzir novas exclusões, ilustrada pela saída da professora ao elaborar o

relatório para o juiz, que encontra no termo “está se esforçando” a possibilidade de, não

negando os problemas, não encobri-los também. Essa preocupação, no entanto, não se

generaliza, seguramente, em todas as escolas/redes. Pelo contrário, a experiência empírica

vem demonstrando como as redes/escolas têm buscado caminhos que abrem mão do papel

pedagógico e educativo, para assumir atitudes policialescas, de alcagüetes, para qualquer

“indisciplina”, tanto promovendo a “expulsão”, de forma sutil, dissimulada, quanto a

transferência de responsabilidade para, por exemplo, os Conselhos Tutelares, em muitos casos

até sob a orientação da própria Secretaria de Educação111.

77..44..66 AArrtteess ddee ffaazzeerr aass pprrááttiiccaass ddee aavvaalliiaaççããoo

As práticas de avaliação do PEJA I e II esbarram na flutuação da freqüência já

apontada. Os depoentes dizem que os alunos, desde o ingresso, são orientados para

compreender o funcionamento do PEJA, a necessidade da freqüência, já que o curso não é a

distância, mas presencial. A freqüência interfere na avaliação dos professores, do mesmo

modo que a auto-avaliação no decorrer do processo, nos diferentes blocos/unidades de

progressão. Mas ainda assim, alguns alunos têm dificuldade de aceitar concepções como esta,

participativas, diante do poder simbólico da prova e do poder de julgamento que o professor

exerça, quando a corrige. Nenhuma evidência é tão forte para que queiram substituí-la. Uma

professora relatou:

Eu tenho observado porque tenho feito trabalhos com produção de texto e eu procuro corrigir junto com eles. Quando eu chego, eles pedem para eu olhar e eu vou lá no lugar deles e a gente corrige juntos. Se eles saírem para fazer alguma coisa, eu digo: “eu só vou corrigir quando estiverem todos aqui”. Aí eu tenho falado para eles: “como você melhorou, você percebeu como você estava no início e agora?” E eles dizem: “Só você, professora, porque eu não

111 Um caso como este foi narrado por uma professora da rede regular, contando a orientação recebida da CRE, em sua escola, para o caso, por exemplo, de crianças cujos pais se atrasam, eventualmente ou sistematicamente para buscar a criança no horário de saída: a ordem é esperar meia hora, depois disso, ligar imediatamente para o Conselho Tutelar, denunciando o responsável, sem dar qualquer chance a ele, mesmo que seja a primeira vez. Telefonema, encaminhamento de mensageiro à casa da criança, quando próxima etc. são atos descartados da responsabilidade do poder público municipal de educação.

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307

estou vendo nada de melhora”. E eu digo: “mas está, menino!” Eles não percebem que estão cada vez melhores, mesmo que a gente diga.

Apesar da convivência com uma dada concepção de avaliação, há alunos que julgam

diferenciadamente as práticas escolares no PEJA, demonstrando o sentimento de valorização

que incentivos lhes davam.

A avaliação aqui é ótima. A gente tem que expor o que aprendeu, aí a questão não é nota, eu falo: “professora fui bem ou não?” Se é razoável, a gente tenta melhorar. E é mais por aí, não é questão de nota, é questão de expor aquele aprendizado. Isso ai é muito bom, porque faz a gente enxergar mais adiante, ou seja, melhorar por si mesmo e por questão também de grupo, um ajuda o outro, na questão que tá mais com dificuldade, e assim a gente vai levando e tá dando resultado.

Os alunos do CIEP Graciliano Ramos tinham intimidade com as práticas avaliativas,

sabiam discutir as diferentes modalidades de avaliação e não parecia haver ocultamentos

sobre seus significados. A avaliação não poderia ser uma nova ameaça de fracasso, e incluía

os alunos como partícipes para pensar e interferir. Identificavam os instrumentos que

possibilitavam a avaliação nas diferentes disciplinas, como leituras, debates, audiência a

filmes, produções de textos, mas também, o quanto a participação, a freqüência, os modos de

relacionamento com os colegas contribuíam para esses processos, como balizamentos de

superação em cada bloco, em cada unidade de progressão, e não como instrumentos de

promoção da exclusão.

Na avaliação, o professor dá até uma injeção de ânimo na gente, porque a gente passa pela avaliação, né, a gente tem aquele medo, aquele fantasma que prova é aquilo, não vai ser aquela coisinha simples, vai amaciando, amaciando a gente, até chegar o dia. Têm uma técnica que funciona muito bem, eles aí. E quando chega o dia, a gente passa por aquilo e nem sente, é muito bom o trabalho. (participante masculino)

No CIEP Patrice Lumumba a situação se revelava um pouco diversa, em relação às

práticas avaliativas e às formas de negociá-las no PEJA I e II:

Quanto à avaliação, ela é feita continuamente [...] nossos alunos vêm com vícios, entre aspas, de uma escola formal. [...] eles vira e mexe pedem uma prova, eles querem ver a maldita da prova. Às vezes a gente até engana eles, dá um papel e diz que é prova: “olha, amanhã tem prova”. [...] eles chegam todos felizes, achando que vão fazer uma prova. Querem sentar separados, como uma escola formal. [...] não querem que um olhe pra prova do outro. [...] principalmente nos idosos. Eles transpiram nas mãos, o lápis cai da mão, porque eles estão nervosos, mas depois que eles acostumam, aí o santo de casa não faz mais milagre. [...] eles não vão suar mais. Porque eles acham que essa escola tem que ter a bendita da prova.

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308

Mas os professores sofrem, além da pressão dos alunos em relação às práticas de

avaliação, também as pressões externas, sobre os tempos que duram os processos de

aprendizagem dos alunos, em cada estrutura formal do Programa, vindas da direção, da CRE,

de outras instâncias do sistema escolar, colocando-os em cheque constante, para o que devem

estar seguros das opções e das concepções com que lidam no PEJ, para assumi-las

integralmente:

[...] a direção fala que a Secretaria reclama porque o menino já está na escola há muito tempo. Mas não tenho o mínimo receio em relação a isso. [...] a gente não tem que ter culpa cristã. Se o aluno não vai e a gente tem consciência de que está trabalhando com o aluno, não tenho o mínimo medo de responder à Secretaria: “meu aluno não tem condições nesse momento”. Se vai me dar uma advertência, se vai fazer alguma coisa, [...] eu tenho como recorrer por essa questão, porque sou eu que estou ali no dia-a-dia e estou vendo das necessidades de meu aluno. A gente tem que ter as responsabilidades, não pode ser hipócrita. [...] às vezes até a diretora fala: [...] “já está há um ano e não aprendeu!” [...] Eu estou pouco me importando com isso, eu quero ver o meu aluno aprendendo. [...] se ele diz pra mim: “eu não estou ‘seguro’ pra ainda chegar na turma da Dona Dilma, eu não passo”. Dona Maria está comigo há quatro anos e agora que ela aprendeu a ler. [...] imagina se eu tivesse passado ela [...], talvez ela tivesse desistido [...].

Modelos formalizados versus currículos praticados são, em síntese, o que fundamenta

as argumentações dos alunos, quando reagem aos posicionamentos adotados pelos

professores. Compreender que um tempo maior para consolidar aprendizagens não os

desqualifica, quando se trata do PEJA, pelo fato de o Programa não estar trabalhando com a

lógica da retenção, nem da reprovação, mas de um continuum organizativo que prevê tempos,

nem sempre adequados para todos, e que o significativo nesse modos de avaliar reside

justamente na oportunidade de fortalecimento garantida, pela vivência de continuados

processos de aprendizagem. O que exige, sem dúvida, negociações que ponderem outros

aspectos além dos conhecimentos evidenciados, o que muitas vezes implica demonstrar como

a regularidade da freqüência, a participação descontínua, podem interferir para que os

processos não sejam rapidamente exitosos.

77..44..77 AArrtteess ddee ffaazzeerr aa rreellaaççããoo eennttrree ssuujjeeiittooss qquuee aapprreennddeemm

A relação dos alunos com seus professores demonstrou ser uma constante necessária

nos processos de aprendizagem. Marcada, quase sempre, pelo sentimento de admiração, tem

os professores como uma espécie de modelos a serem seguidos:

[...] os meus professores assim, só nota dez, pra lá de dez, são todos maravilhosos. E eu acho que essa coisa faz enriquecer não só nós como

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309

alunos, mas até eles próprios por saber da nossa dificuldade ou às vezes chegar e conversar: “poxa por que estão assim?” [...] isso também me traz mais vontade de não querer parar, e dar continuidade, e chegar a ser alguém. [...] tem um professor... [...] que eu gosto muito, de história, sempre conversamos e falamos. [...] futuramente, com certeza, eu serei um professor de história e ele me dá a maior força. É isso que eu acho o máximo.

A relação entre os sujeitos alunos, diante das questões geracionais, não apresenta

problemas, pelo clima cultivado na escola, apesar de tensões geradas pelo comportamento dos

mais jovens. Convivendo respeitosamente jovens e idosos, estes muitas vezes assumem a

liderança da turma, por exemplo, como representante de turma, o que faz sentirem-se

extremamente valorizados pela experiência, diante dos jovens. A sabedoria aprendida com a

própria experiência é compartilhada, da seguinte forma:

Eu sempre tô orientando os mais novos, eu digo: “estuda, porque... porque o estudo é importante, vai fazer falta amanhã ou depois pra vocês”. E eles até me agradece, entendeu? Porque isso é uma coisa que a gente, como mais idoso, tem que sempre incentivar aqueles mais novos, sempre dar um incentivo.

Entre os professores, as relações com o Programa vão desde o movimento para

encaixar o horário noturno nas muitas atividades do magistério112, como mais uma fonte de

renda, até busca de um campo diferente para atuação, como possibilidade de renovação,

provocada pelo desapego à escola regular, com os problemas que passaram a enfrentar ao

longo dos anos. Outros vêm em busca de um sonho, e outros encontram no Programa, depois

que passam a vivenciá-lo, esse sonho, que não sabiam ser possível realizar, na relação travada

com os diferentes, alunos jovens e idosos, professores com motivações várias, e com modos

renovados de ser professor:

Estava sentada lá (escola em que trabalhava) dizendo assim... Não estou gostando mais não, acho que já está na hora de me aposentar. Eu já estava com 28 anos de magistério e já estava até pra me aposentar. Aí eu estava sentada lá como sempre brincando com papel, aí tinha um jornalzinho sobre a mesa, aí eu já estava puxando o papel pra fazer barquinho... aí quando eu puxei estava escrito lá: professor, um desafio para você... aí falava sobre o PEJ.

112 Com freqüência os professores acumulam mais do que uma matrícula nas redes públicas, e sempre insuficiente, diante da perda aquisitiva historicamente acumulada, exigindo compensações com novos horários de trabalho, no setor privado. Para conseguirem conciliar todas as atividades, procuram o espaço da escola noturna em uma dessas matrículas, “acomodando”, assim, o horário e abrindo espaço no diurno para mais uma ou duas escolas em que vão dar aulas, na escola privada. O somatório de atividades faz com que o professor seja um profissional eternamente assoberbado, sem tempo para viver, muitas vezes, projetos fora da escola, e às vezes, até mesmo na escola. No caso do PEJA, a existência dos centros de estudos para a formação compensa, parcialmente, o aprisionamento do tempo em que vivem os professores.

Page 312: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

310

77..55 ““DDEEIIXXEEMM OOSS VVEELLHHIINNHHOOSS MMOORRRREERREEMM EEMM PPAAZZ!! DDEEIIXXEEMM OOSS VVEELLHHIINNHHOOSS MMOORRRREERREEMM EEMM

PPAAZZ!!”” RREESSIISSTTIIRR ÉÉ PPRREECCIISSOO

Algumas questões que compõem esse final de capítulo, não são novas, tendo surgido

em pesquisas anteriores como a de Henriques (1988, p. 94), já naquele longínquo começar.

Uma delas, a “necessária ampliação da faixa etária atendida no CIEP para a alfabetização no

horário noturno”, que justifica “considerando os enormes gastos na Educação Juvenil, o

desperdício das salas vazias [...], a ociosidade do corpo docente [...] e a própria realidade do

estado do Rio de Janeiro em relação ao número total de analfabetos (fora desta faixa etária)”.

Para isso, fazia propostas de agrupamentos, considerando os supostos interesses geracionais, o

que não aconteceu, entretanto, ao longo dos anos, fosse pela clandestinidade obrigatória na

qual viviam os “fora de faixa”, pelo fato de o modelo ter-se mantido durante tantos anos,

fosse porque foi sendo assumido, nas táticas cotidianas, como descoberta de professores, em

busca de artes de fazer o atendimento, compreendendo as questões geracionais, porém

retirando delas as positividades que cada idade, e cada encontro, poderiam conferir à prática

pedagógica.

Mais do que uma decisão focalizada por limitação orçamentária, como poderia

parecer, no primeiro momento, em alguns anos foi-se descortinando a motivação que levou

seu propositor, Darcy Ribeiro, a assumi-la como política de Estado. Remeto-me ao título

desse item, quando a célebre frase de Darcy, no Congresso Brasileiro de Alfabetização, em

1989, em São Paulo, ecoou no auditório, quando provocado a explicar por que não todos, mas

somente alguns atendidos. Darcy Ribeiro passou, então, a explicitar sua verdade sobre a

concepção de EJA, não muito diferente de outras tantas que foram sendo produzidas ao longo

da história e que ainda hoje são a tentação de muitos gestores, e de programas públicos113.

Não valia a pena, para ele, investir nos mais velhos — deixem os velhinhos morrerem em paz

—, dizia. O antropólogo brilhante não conseguia pensar política educacional ampla, talvez até

mesmo por vício de formação. Eram os jovens a quem “compensava” pelas perdas recentes,

para que não reproduzissem os modelos anteriores, assim como as crianças das camadas

populares, em atendimento integral — grupo também focalizado e priorizado com uma

proposta pedagógica inovadora, mas pela arquitetura que as abrigava nos 500 CIEPs

113 De outra maneira o ministro da educação José Goldemberg referiu-se aos analfabetos, justificando, na primeira metade dos anos 1990, a não existência de atendimento de EJA como política pública. “O analfabeto já conseguiu o seu lugar... não é um bom lugar, mas é o que lhe cabe...”, sintetizava suas palavras, acusando o determinismo social com que operava no pensar a educação.

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311

previstos, e não só pela idade —, o que jamais significou ter a mesma concepção para todas as

crianças das camadas populares, mas de novo reeditar “a escolha de Sofia” e fazer política

com ela.

A exclusão dos “mais que jovens” — adultos e idosos — foi por muitos anos mantida,

mesmo desafiando a Constituição Federal de 1988, que preceituava a educação para todos,

independente da idade. Mas o poder regulatório jamais conseguiu impedir que esses

estivessem lá, e que com eles a história do PEJ pudesse ser contada de outra maneira, na

versão não-oficial, que o poder público ou não conhece, ou faz questão de desconhecer, ao

contar a sua versão. A presença desses muitos, seguramente, ensinou lições importantes a

todos — professores e alunos —, sobre o que é estudar em tempos diferentes da infância, e

sobre como ser professor, para além dos cânones dos cursos de formação inicial, porque

formados na prática, com a experiência cotidiana, reinventando a própria formação. Ensinou

também concepções de EJA, embora estas muitas vezes fiquem aprisionadas nas escolas,

guardadas como segredos que não se compartilham, até porque sobre elas, produzidas no

recôndito escolar que pouco dialoga com a sociedade mais ampla, com outros espaços

formadores e acadêmicos, não se tem segurança, quanto à fidedignidade.

Outra compreensão que deve ser problematizada, e intimamente ligada à anterior, diz

respeito ao quantitativo de alunos atendidos anualmente e o quanto somam, nesses 20 anos.

A rede de escolas públicas, no município do Rio de Janeiro, pelo tamanho —1054

escolas, não se discutindo aqui a origem que a constituiu, o porquê de já ter nascido grande,

seguramente não por decisões políticas de prioridade à educação no município — só dispensa

117 unidades para o PEJ, em 2005, com 32.482 alunos. O crescimento populacional do

município, em 2000114 atingiu 5.857.904 pessoas, sendo 4.534.322 de 15 anos e mais, com

uma taxa de analfabetismo entre esses de 4.4%; 581.821 pessoas se encontravam em situação

de analfabetismo funcional, o que corresponde a uma taxa de 12,8%. De 15 a 17 anos, 85,33%

dos jovens freqüentavam a escola, e de 18 a 22 anos, 44,94%. Os estabelecimentos de EJA

eram 325 e a matrícula de jovens e adultos na alfabetização atendia a 2.345 alunos; da 1ª a 4ª

séries, 20.905; de 5ª a 8ª séries, 61.655; e no ensino médio 27.503. Diante do crescimento

populacional do município, da produção do fracasso escolar e do empobrecimento da

população, obrigando a todos os membros da família à informalidade, desde muito cedo,

pode-se imaginar o que acresceu a esse quadro, para o qual o poder público tem respondido

114 Indicadores do Censo Demográfico de 2000 e do Censo Escolar de 2000. BRASIL: IBGE, INEP; UNDP, 2000.

Page 314: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

312

residualmente, com atendimento não mais para jovens, somente, mas para todos, já há algum

tempo, sem que a essa abertura a faixas etárias de acesso correspondesse um planejamento

educacional compatível na rede municipal, que se orgulha de ser a única no país inteiramente

municipalizada para o nível do ensino fundamental, e a maior da América Latina.

Considerados os dados de analfabetismo funcional entre a população, da ordem de cerca de

500.000 pessoas, admite-se que o atendimento total do PEJ I e II (e que responde pelo

atendimento maior no II, que não se inclui como segmento considerado para efeito do

analfabetismo funcional), é irrelevante, face à gravidade do quadro no município. Adrede, a

revelação mais sombria desse dado se dá pelo fato de se saber que a imensa rede municipal de

escolas básicas responsável pelo atendimento das crianças está falhando no que diz respeito

ao sucesso, ainda que ofereça a disponibilidade de vagas e o acesso à instituição pública. O

diálogo entre os dois atendimentos, na mesma rede, inexiste, atestado publicamente em

apresentação da coordenação de EJA no Fórum do Rio de Janeiro, quando esta questão foi

problematizada. Se há o atendimento, mas os adolescentes de 15 anos saem em busca do

ensino fundamental para jovens e adultos, assevera-se que a escola pública regular falhou nos

objetivos de cumprir o direito à educação e fazer ler e escrever aos sujeitos da chamada

“idade própria” exigindo, por isso, um olhar para dentro, inquisidor e reflexivo sobre a

responsabilidade de um sistema nesse quadro final.

Somado a isso, lições aprendidas nas muitas tentativas de “acabar” com o Programa,

gerando lutas de resistência, de cuja memória Gomes e Benício, dentre outros não-

nominados, são guardiãs. Considerada, por elas, como uma das marcas mais fortes do PEJ, a

capacidade — de atores e protagonistas, professores e alunos — de resistir, de encontrar

meios e modos para surpreender o poder, revelaram táticas que, aproveitando as ocasiões,

criaram impasses, reverteram o instituído, causaram surpresas (CERTEAU, 1994), mantendo

o Programa já por 20 anos. As surpresas são bem-vindas, porque agregam novas

possibilidades de construção do direito à educação para jovens e adultos, mas exigem também

aprofundamento da ação pública e cobranças sistemáticas aos gestores, por meio da crítica

organizada, quanto aos resultados das iniciativas.

Page 315: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

313

88.. PPRROOGGRRAAMMAA SSEESSII EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDOO TTRRAABBAALLHHAADDOORR —— TTRRAAVVEESSSSIIAASS

A história [...] força a diferenciar e qualificar, ao longo dos séculos, as diferentes formas e concepções de trabalho humano. (NOSELLA, 1989, p. 30).

O Serviço Social da Indústria (SESI) tem suas origens na década de 1940, quando os

problemas decorrentes da II Guerra Mundial se avolumaram e obrigaram a reordenamentos na

economia. Por iniciativa de vários setores do comércio, indústria e agricultura, o empresariado

reuniu-se na primeira semana de maio de 1945 na I Conferência Nacional das Classes

Produtoras e elaborou um documento, conhecido como Carta Econômica de Teresópolis, com

o pensamento dos empresários sobre os problemas da época, que propunha o combate ao

pauperismo, o aumento da renda nacional, o desenvolvimento das forças econômicas, a

democracia econômica e a justiça social e a necessidade de um plano de ação social para o

país, dando forma à filosofia e ao conceito de serviço social custeado pelo empresariado.

A primeira conseqüência da Carta de Teresópolis foi a criação da Fundação de

Assistência ao Trabalhador - FAT115, pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo

(www.sesisp.org.br/home/institucional/institucional.asp. Acesso em 5 agosto 2005).

Na seqüência de eventos, e inspirados nos princípios sociais da Carta de Teresópolis,

a Federação das Indústrias de São Paulo junto a sindicatos patronais e de empregados, em

Minas Gerais, lançou em 1946 a Carta da Paz Social, expressando o desejo de estabelecer

solidariedade e harmonia entre capital e trabalho, e reforçando princípios da solidariedade

social.

A proposta dessa Carta foi submetida ao Governo Federal de Eurico Gaspar Dutra, em

1946, e norteou a criação do SESI, em 25 de junho, pelo Decreto-Lei n. 9 403, assinado pelo

presidente Dutra. Surgiam daí, em diferentes momentos, as entidades hoje conhecidas como

integrantes do Sistema S:

A Constituição Federal prevê, no Art. 149, três tipos de contribuições que podem ser instituídas exclusivamente pela União: (i) contribuições sociais; (ii) contribuição de intervenção no domínio econômico; e (iii) contribuição de interesse das categorias profissionais ou econômicas. Essa última hipótese de incidência é que fornece o fulcro legal para a exigência de um conjunto de onze contribuições que, por motivos óbvios, convencionou-se chamar de Sistema S. As receitas arrecadadas são repassadas a entidades, na maior parte de direito privado, que devem aplicá-las conforme previsto na

115 A FAT prestava serviços assistenciais aos operários da indústria, e foi o embrião do SESI. Durou pouco, mantida pela contribuição espontânea dos empresários.

Page 316: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

314

respectiva lei de instituição. (http://www.receita.fazenda.gov.br/Historico/Arrecadacao/Carga_Fiscal/1999/SistemaS.htm).

Sobre o Sistema S — cuja forma de financiamento criou situação ímpar no Estado

brasileiro — cabe informar que as receitas resultam de contribuições que incidem, em geral,

sobre a folha de salários das empresas pertencentes à categoria correspondente. Estas

contribuições são cobradas e arrecadadas por órgão do serviço público federal (no caso, o

INSS), mas a arrecadação obtida é integralmente repassada a entidades cuja administração

não é diretamente vinculada ao governo, destinando-se a financiar atividades que visem ao

aperfeiçoamento profissional e à melhoria do bem-estar social dos trabalhadores. Embora as

contribuições decorram de legislação federal e sejam coletadas pela União, os recursos

arrecadados não atendem à programação financeira do Estado.

As entidades beneficiadas são: INCRA, SENAI, SESI, SENAC, SESC, DPC,

SEBRAE, Fundo Aeroviário, SENAR, SEST, SENAT. A criação desses organismos e

respectivas fontes de receita remontam à década de 1940, e apenas quatro delas (SEBRAE,

SENAR, SEST e SENAT) foram instituídas após a Constituição de 1988. No ano de 1998

(último dado disponível), a distribuição relativa das receitas do Sistema S entre as diversas

entidades participantes, estava assim constituída:

Gráfico 1

Participação Relativa das Contribuições do Sistema S – 1998

O regulamento do Serviço Social da Indústria (SESI)

(http://www.sesi.org.br/conselhonacional/secretaria/regul_serv.pdf. Acesso em 5 agosto

2005), especificamente no art. 7º, estabelece como princípio que: “a obra educativa e serviços

do SESI se orientarão no sentido de que a vida em sociedade se realize de forma

comunitária”; e prevê como objetivos, no art. 5º: “a) alfabetização do trabalhador e seus

Page 317: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

315

dependentes; b) educação de base; c) educação para economia; d) educação para a saúde

(física, mental e emocional); e) educação familiar; f) educação moral e cívica; g) educação

comunitária”.

Ana Maria de Araújo Freire (1992, p. 211), em nota explicativa ao texto de Paulo

Freire em Pedagogia da Esperança, assinala algumas relevantes questões quanto às

justificativas para a medida de criação do SESI, por decreto-lei. Alerta que a “letra da lei”

muitas vezes não diz, mas estaria implícito no decreto-lei a arrogância de um presidente em

usar, com força de lei, uma medida de função própria do legislativo, ao qual não é submetido

o ato, pelo caráter autoritário do instrumento de que lança mão. Esta prática, persistente na

República, perpetuou-se sofisticadamente com a instituição de medidas provisórias pela

Constituição de 1988, cuja tentação de uso arrebatou todos os dirigentes eleitos a posteriori.

Outra questão relevante, em relação à tutela que as justificativas conferem ao SESI em relação

ao trabalhador, destaca o estímulo ao “espírito de justiça social entre as classes”, tentando

“apagar”, segundo a autora, a consciência da luta de classes, e promover “a aceitação calma e

passiva das discrepantes diferenças das condições materiais entre patrões e empregados”, um

mecanismo a que denomina de “assistir para não enfrentar”.

A política de importações assumida pelo então presidente Dutra acabou por constituir

o impulso definitivo ao empresariado, patrocinando, de 1946 a 1950, um surto de

industrialização na vida brasileira. De equipamentos novos para fábricas, renovação de frota

de veículos, siderurgia, indústria de transformação, refinarias, eletrodomésticos até a nascente

indústria cultural, com o cinema, mudava-se uma característica da industrialização brasileira:

produzir para deixar de ser apenas consumidor, mas para alimentar suas próprias fábricas. Em

setembro de 1947, o Conselho Nacional do SESI editou a Resolução nº. 8 que recomendava

aos Departamentos Regionais (DRs) a implantação de cursos populares para os operários e

suas famílias, de caráter instrutivo, para formar e aperfeiçoar os trabalhadores nos espaços das

fábricas, dando atendimento preferencial a alunos de 12 anos de idade, em conformidade com

a legislação vigente.

Em 1949, iniciou-se a estruturação de Departamentos Regionais do SESI em todos os

estados onde há Federação das Indústrias e, a partir daí, foram muitos os movimentos vividos

até a compreensão da educação do trabalhador nos termos em que tem sido assumida, na

contemporaneidade. Em novembro de 1955, por meio de um seminário técnico nacional, um

documento é formulado, estabelecendo diretrizes e redirecionando as ações para a área da

educação.

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316

Da política compensatória e assistencialista à busca da educação como direito do

trabalhador — e certamente condição propícia à produção e à qualidade da atuação na

indústria —, o SESI fez relevantes mudanças, em compasso com os rumos que a educação de

jovens e adultos foi assumindo no mundo. Efetivamente essas mudanças foram provocadas

não apenas pelo contexto interno da entidade, com porte financeiro capaz de patrocinar e

promover qualidade técnica para tal, mas principalmente ditadas pelos movimentos de

organização dos trabalhadores no país, ainda na década de 1970, nas lutas do ABC paulista

que refundaram os movimentos sociais e sindicais pela senda aberta pelos metalúrgicos. Sader

(1988, p. 26) é o melhor intérprete do momento histórico ali representado, e sua contribuição

a esse capítulo sinaliza o horizonte de compreensão que desejo enfocar, ao puxar os fios que

foram sendo tecidos, para compreender a educação de jovens e adultos e as concepções que a

fundamentaram em diferentes momentos, na história da entidade.

É muito provável que na história política do país o período entre 1978 e 1985 (portanto entre as greves do ABC e a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral) fique marcado como momento decisivo na transição para uma nova forma de sistema político. Mas, por sua vez, este novo sistema político está condicionado por significativas alterações no conjunto da sociedade civil. Entre as rupturas, que marcam todas as transições, uma das mais impressionantes nesta que estamos tratando é certamente a que cruza a história do movimento operário, ou das “classes populares”, ou dos “setores dominados” (e esta própria hesitação na nomenclatura, presente nas interpretações sobre esses fatos, já indica uma novidade na forma como eles apareceram que se acomodava mal às denominações já feitas). Atores sociais e intérpretes, no próprio calor da hora, se aperceberam de que havia algo de novo emergindo na história social do país, cujo significado, no entanto, era difícil de ser imediatamente captado.

Em 1989, foi criado o Programa Nacional de Ensino Fundamental de Adultos, com o

objetivo de “desenvolver projetos de ensino fundamental de adultos, no tocante à elevação

dos níveis de bem-estar do trabalhador e seus dependentes, do aumento da produtividade

industrial, seguindo um enfoque pedagógico que possibilitasse ao aluno intervir criticamente

na realidade social”. (SESI, 2003a, p. 12). Esse Programa adotava variadas metodologias de

atendimento, a saber: a) uma proposta curricular de 1ª e 2ª etapas; b) uma proposta curricular

de 3ª e 4ª etapas; c) Telecurso 2000; d) Alfabetizar é Construir; e) Ensino Supletivo de 1ª a 4ª

séries; f) Ensino Supletivo de 5ª a 8ª séries; g) Pró-cidadão; h) outras modalidades especiais.

Suas ações encerraram-se em 1997, quando o SESI alcançava 155.777 matrículas em todo o

país, e em 1998 foi criado o Programa SESIeducação do Trabalhador, em vigor até o

momento.

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317

Para compreender as concepções assumidas pelo SESI, resgatei basicamente

documentos institucionais, cujas leituras possibilitaram-me apreender os sentidos e as opções

políticas da EJA. Contei ainda com a contribuição de uma técnica do Departamento Nacional

- DN, que me concedeu entrevista em março de 2004, e o depoimento de uma gestora do SESI

do Programa Por um Brasil Alfabetizado, em parceria com o MEC, na Comissão Nacional de

Alfabetização, em março de 2005.

O envolvimento que mantive com a entidade, no entanto, aconteceu pela primeira vez

em 1991, quando fui convidada para prestar consultoria ao DN, com vista a consolidar uma

proposta referencial curricular para a educação de jovens e adultos, tomando como base as

muitas ações desenvolvidas no país. Não sem receio, em função da natureza da instituição que

me convidava, e dos vínculos públicos pelos quais sempre pautei minha atuação, fui desafiada

pela proposta e assumi a tarefa, com a disposição crítica, mas também investigativa sobre a

realidade de atuação do SESI no campo da EJA. Essa proposta de trabalho contava com uma

equipe técnica, do SESI Nacional, com quem mantive diálogo permanente, somado a alguns

momentos em que se contava com a participação de coordenadoras pedagógicas de alguns

Departamentos Regionais, cuja prática na EJA ou expressão política, foram consideradas

relevantes para a incorporação à equipe. Na ocasião, realizou-se um extenso levantamento de

todas as ações, em todos os DRs, assim como de pareceres sobre avaliação no processo

exarados por Conselhos Estaduais de Educação, formulando-se, a partir daí, uma proposta que

sistematizasse, com sinalizações novas, o que se entendia por proposta curricular do SESI.

Essa proposta, sob forma de consulta, foi submetida ao então Conselho Federal de Educação,

que a aprovou em 12 de março de 1992, ganhando dessa forma, a entidade, aval para buscar

apoios legais em todos os estados, junto aos Conselhos de Educação. Um mergulho nas ações

estratégicas do SESI me fez compreender razoavelmente a entidade, suas escolhas políticas e

o espaço para questionar/propor sobre o que era oferecido.

Algumas importantes aprendizagens resultaram desse primeiro relacionamento

profissional: a) a constatação de que havia espaço dialógico de trabalho, para divergências e

proposições adiante do que estava, até então, posto; b) o profissionalismo como era assumida

a questão da EJA, buscando qualidade técnica e acadêmica em subsídio às formulações

teóricas; c) a abrangência nacional de atuação, mas com atendimento restrito, diante das

necessidades dos trabalhadores da indústria (e dependentes), com propostas autonomizadas,

de perfis e direções teórico-metodológicas muito díspares; d) a concepção dos Conselhos

Estaduais de Educação sobre avaliação na EJA, os rigores dessa avaliação e as sutis formas de

Page 320: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

318

reiterar as exclusões anteriormente praticadas pelo sistema, legalmente agora, pelos sistemas

de avaliação autorizados; e) a certeza de que é possível pensar currículo para além das

concepções escolares.

Duas dessas aprendizagens — sobre a questão curricular e sobre avaliação —

parecem-me indispensáveis resgatar no desenvolvimento desse capítulo, alertando que não

estarei recuperando o documento produzido à ocasião, já que há documentos necessariamente

de formulação mais recente, exigidos pela aprovação da LDBEN em 1996. O marco legal,

portanto, daquele momento, embora pautado pelo dispositivo constitucional do Art. 208,

careceria de atualização. Essas aprendizagens, no entanto, serão retrabalhadas durante a

discussão das concepções apreendidas, o que enriquecerá minha reflexão, imbricando-a com

os fundamentos atuais.

Quero com isso demarcar que, também no caso do SESI, minha relativa interação em

certos momentos coloca-me como sujeito implicado, seja por esse primeiro espaço de

construção coletiva seja pelos diversos outros em que tive possibilidade de interagir. Depois

desse momento, algumas ações de formação de equipes foram a mim propostas, não apenas

para pôr em diálogo a proposta curricular, mas para avançar no desdobramento de como ela

alterava as práticas instituídas. Essa possibilidade ocorreu no Paraná, em Pernambuco, no

Maranhão e em Rondônia, além de um momento nacional no Rio de Janeiro, com

representações de todos os DRs. Depois desses, novas interações ocorreram quando da

proposição do curso de especialização a distância em EJA, em seminários de discussão e de

avaliação de módulos, além da organização de um dos módulos componentes do curso.

Consultorias quanto à formulação de documentos e participação no III Telecongresso também

foram momentos de compartilhar idéias com o SESI/DN, além de um outro com o

SESI/DR/RJ, quando da sistematização, em documento único, do Programa SESIeduca, para

o qual minha contribuição foi solicitada, consolidando as duas formulações já elaboradas, mas

em documentos seqüentes, como resposta à demanda de concluintes do primeiro segmento.

Do mesmo modo, contribuí na discussão de avaliação com a equipe técnica do DR/RJ.

Outro destaque a fazer tem relação com o movimento dos fóruns, em todo o país, pelo

fato de ser o SESI um parceiro desde o início, tanto nas iniciativas estaduais que vêm

ocorrendo desde 1996, a partir do Rio de Janeiro, em todo o país, como quando, em 1999 se

organizou o I ENEJA, em que a entidade foi colaboradora significativa. Desse momento em

diante, o SESI concorreu com recursos e participação não apenas no evento, mas em todas as

etapas preparatórias. Também nos estados, com variações em um e outros derivadas do

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319

volume de trabalho de cada DR, a instituição tem participado ativamente para a manutenção

do movimento, partilhando as concepções e críticas a todos os programas e projetos em

execução, realizados por qualquer entidade, em diálogo, com os demais atores, no espírito

público e democrático que os fóruns buscam consolidar.

O lugar, portanto, de onde busco compreender as formulações do SESI, não incluem

as práticas, diretamente, mas alguns processos que, em sendo recuperados, trazem uma visão

mais complexa do que tem representado o SESI no panorama nacional, no tocante à educação

de jovens e adultos trabalhadores, nessa rede complexa de significações com as quais dialoga,

em diferentes espaços de ação pública.

Por fim, nunca é demais lembrar a passagem de Paulo Freire (1992, p. 19-20) pelo

SESI, em Pernambuco, por sete anos, dos 22 aos 29 anos, episódio retratado por ele em

Pedagogia da esperança, quando indica ter sido o “tempo fundante do SESI, cheio de

‘soldaduras’ e ‘ligaduras’ de velhas e puras ‘adivinhações’ a que meu novo saber emergindo

de forma crítica deu sentido [...]” e “me levaram ao exílio, uma espécie de ‘ancoradouro’ que

tornou possível religar lembranças, reconhecer fatos, feitos, gestos, unir conhecimentos,

soldar momentos, re-conhecer para conhecer melhor”.

88..11 PPRROOGGRRAAMMAA SSEESSII EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDOO TTRRAABBAALLHHAADDOORR —— CCOONNCCEEPPÇÇÕÕEESS EE DDIIRREEIITTOO PPAARRAA AA

CCLLAASSSSEE--QQUUEE--VVIIVVEE--DDOO--TTRRAABBAALLHHOO116

A preocupação com quem são os trabalhadores da indústria surge com muita

visibilidade nas propostas do SESI, como centro mesmo das formulações.

O documento Perfil do trabalhador formal brasileiro (SESI, 2003b, p. 21-22) retrata a

realidade a partir da classificação econômica do IBGE, revelando que, em 2001, o setor mais

intensivo em mão-de-obra foi o setor de serviços, com quase nove milhões de trabalhadores,

contra 6,5 milhões da indústria117, todos com carteira assinada. Somando-se a esses os do

setor comércio, da ordem de 4,5 milhões e de outros118, chega-se a um total de 27 milhões de

trabalhadores formais. Deste total, 53% localiza-se na Região Sudeste, ou seja, mais da

metade, o que assegura cerca de 14,5 milhões de trabalhadores, seguido da Região Sul com

18% e da Região Nordeste com 17% dos trabalhadores formais. A Região Centro-Oeste

116 Esta é a expressão usada por Antunes (2000, p. 101) para conferir validade contemporânea ao conceito marxiano de classe trabalhadora. 117 O setor indústria agrupa trabalhadores da indústria extrativa mineral, da indústria de transformação, de serviços industriais de utilidade pública, da construção civil. 118 Outros agrupa os setores de agropecuária, extrativa vegetal, caça, pesca, e administração pública.

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320

registra 8% e a Região Norte 4%. (MTE, RAIS/2001 –). Por grau de instrução, observa-se que

o total Brasil de trabalhadores formais incorpora quase 500 mil pessoas analfabetas, e 8

milhões com ensino fundamental incompleto, o que dá a dimensão da demanda para as

entidades do Sistema S, voltadas para a oferta da educação de jovens e adultos, trabalhadores

por excelência. A Região Nordeste concentra a maior parte dos analfabetos — 194.734, ou

seja, 4,3% do total de trabalhadores da Região, seguida da Sudeste, com 163.727, com taxa de

1,1% do total (MTE, RAIS/2001). Embora os números absolutos sejam muito próximos, as

taxas sofrem grande variação, o que exige pensar como se organizam estrategicamente as

ações, haja vista que a intervenção pedagógica precisa ser pensada em relação a sujeitos, e

não a taxas de analfabetismo, simplesmente.

Do ponto de vista da escolaridade incompleta no ensino fundamental, a taxa Brasil

alcança 29,7%, com a seguinte distribuição pelas regiões: N – 26,1%; NE – 29,1%; SE –

30,2%; S – 30,9%; CO – 28,1% (SESI, 2003b, p. 34-35), denotando uma problemática de

não-conclusão do ensino fundamental equilibrada em todo o país, independente da região, o

que pode estar afetado não apenas por uma concepção de escola regular, mais ou menos

homogênea na sua expressão de produzir o ensino fundamental — incluídos currículo e

avaliação — e de expulsar os alunos dos processos de aprendizagem, não garantindo a eles a

permanência, só o acesso, mas também as trágicas condições sociais e econômicas da maioria

dos que abandonam a escola para ingressar no mundo do trabalho sem havê-la concluído.

Destacando-se desse conjunto a escolaridade dos trabalhadores nos setores

econômicos contribuintes do SESI, apresenta-se a seguinte configuração (SESI, 2003b, p. 79):

Tabela 1 Número de trabalhadores formais por grau de instrução, segundo os

setores econômicos contribuintes do SESI, Brasil – 2001 (%)Número de trabalhadores formais por grau de instrução

Grau de InstruçãoFundamental Ensino Médio Superior

Setores econômicos contribuintesdo SESI Analfabet

oIncomplet Completo Incomplet Completo Incomplet Completo Total

Ind. Extr. Min. 2.833 48.295 18.246 7.076 29.564 2.263 9.382 117.659 Ind. Transf. 45.633 1.572.075 932.140 479.461 922.031 126.864 216.119 4.294.323 Serv. Ind. UP 6.527 102.990 35.321 18.495 77.832 11.197 44.428 296.790 Constr. Civil 27.323 636.471 198.048 65.148 137.593 15.684 40.709 1.120.976 Corr. e Telecom. 283 10.737 20.163 10.312 114.286 19.714 42.134 217.629 Outros 1 2.596 61.320 48.485 28.661 65.482 15.627 33.392 255.563 Total 85.195 2.431.888 1.252.403 609.153 1.346.788 191.349 386.164 6.302.940 Fonte: RAIS/2001 – M.T.E. 1 Estão agrupadas as atividades econômicas: Recuperação de Veículos Automotores; Reparação de Objetos Pessoais e Domésticos, Transporte Terrestre e Serviços Prestados Principalmente às Empresas.

Observando-se a tabela 1 com os percentuais a que tais números correspondem,

visualiza-se o seguinte quadro na tabela 2 (SESI, 2003b, p. 80):

Page 323: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

321

Tabela 2 Proporção de trabalhadores formais, por grau de instrução, segundo os

setores econômicos contribuintes do SESI, Brasil – 2001 (%) Proporção de trabalhadores formais dos setores econômicos

contribuintes do SESI por grau de instrução (%) Grau de Instrução

Fundamental Médio Superior

Setores econômicos contribuintes

do SESI Analfabeto Incompleto Completo Incompleto Completo Incompleto Completo

Ind. Extr. Min. 3,3 2,0 1,5 1,2 2,2 1,2 2,4 Ind. Transf. 53,6 64,6 74,4 78,7 68,5 66,3 56,9 Serv. Ind. UP 7,7 4,2 2,8 3,0 5,8 5,9 1,5 Constr. Civil 32,1 26,2 15,8 10,7 10,2 8,2 10,5 Corr. e Telecom. 0,3 0,4 1,6 1,7 8,5 10,3 10,9 Outros 1 3,0 2,6 3,9 4,7 4,8 8,1 8,7 Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 1 Estão agrupadas as atividades econômicas: Recuperação de Veículos Automotores; Reparação de Objetos Pessoais e Domésticos, Transporte Terrestre e Serviços Prestados Principalmente às Empresas.

Pelos dados constantes nessas tabelas, que incluem os trabalhadores dos setores

econômicos que recolhem a contribuição compulsória, a RAIS em 2001 apresenta um total de

85.195 trabalhadores formais não-alfabetizados e 2.431.888 que não completaram o nível de

ensino fundamental. Isso implica dizer que a necessidade de atendimento da demanda

potencial parece estar sendo satisfeita, face aos números envolvidos.

Observem-se as estatísticas apresentadas no documento Minha empresa faz escola

(SESI, 2003c, s.p.). Depois de implantado o Programa SESI Educação do Trabalhador em

1998 até o final de 2002, em cinco anos, portanto, o atendimento passou de 347.880 alunos

para 922.331. No primeiro ano a meta de 300 mil foi superada pelo atendimento, enquanto

que, no quinto ano o atendimento esteve um pouco aquém da meta de um milhão. O total de

trabalhadores atendidos em cinco anos foi de 3,894 milhões, em 14.000 salas de aula, com

16.521 turmas, nos 27 estados, atuação em 1.500 municípios e 665.804 alunos concluintes do

ensino fundamental e médio, desde a alfabetização. Um aspecto a destacar, nesse conjunto de

dados, diz respeito aos alunos que conseguem a terminalidade nas etapas, o que se verá

adiante, quanto às formas como tem sido objeto de avaliação e estudo pela entidade.

Diferentemente de programas que tratam apenas do atendimento, ou seja, dos dados de

entrada, há uma franca preocupação da entidade em relação à avaliação e às condições de

saída.

O Programa SESI Educação do Trabalhador, com o subtítulo de Elevação da

escolaridade básica tem, por objetivo, “contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos

trabalhadores e conseqüentemente para o desenvolvimento da indústria nacional, mediante a

elevação da escolaridade básica de jovens e adultos nos níveis fundamental e médio” (SESI,

s.d., s.p.; SESI, 2003b, p. 13), com o foco prioritário no “trabalhador da indústria analfabeto e

Page 324: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

322

subescolarizado”, entendendo que a baixa escolaridade constatada pelas empresas “representa

sério obstáculo à aprendizagem e ao seu aperfeiçoamento profissional, reduzindo sua

possibilidade de empregabilidade”, e reafirmando “o seu relevante sentido social, pois a baixa

escolaridade do trabalhador impede a sua ascensão social, restringindo o pleno exercício da

cidadania”. (SESI, s.d., s.p.).

Nascido no bojo das velas enfunadas pela V CONFINTEA, no ano anterior,

equilibrava-se no tênue fio que demarcava a política para a área na época: um MEC avesso à

educação de jovens e adultos, à qual dedicava um programa de solidariedade – o PAS, e

nenhuma perspectiva de direito; e acordos internacionais a que assistira, relevando a

importância dos países em responder às novas concepções que o mundo pactuava.

Com o MEC havia de entabular diálogos divergentes, mas dificilmente de rebeldia,

pelos muitos e necessários acordos que passavam, inclusive, pelas dependências financeiras

que as formas regulamentares da origem e outros textos legais119 imprimiam às relações. Com

a UNESCO, fiadora da CONFINTEA, os pactos iam além dos recursos, que envolviam

intermediações de organismos multilaterais para a composição dos recursos frente às metas,

mas também os prêmios que conferiam legitimidade aos programas e à ação do SESI, em todo

o Sistema S. Assim, havia que ampliar e realizar a EJA, sem confrontar com o MEC, mas

seguramente sem ter nele o parceiro e aliado para a assunção de expansão de tal monta.

No leque das justificativas do Programa SESI Educação do Trabalhador, deve-se

destacar a que imputa o agravamento do quadro à incapacidade dos sistemas de ensino, que

continuam a “produzir, em razão da repetência e evasão, novos contingentes de analfabetos

funcionais e subescolarizados”, assim como o insucesso de campanhas de alfabetização e de

educação de jovens e adultos, no mais das vezes desvinculados do trabalho, razão imperativa

para o fracasso, atribuído ainda à concepção pedagógica, cujo sentido é tomado pelo conceito

estrito de paidós (criança), em detrimento do que seria o nível específico da andragogia,

entendida como prática educacional para o adulto, que não imporia a ele uma constrangedora

infantilização (SESI, s.d.b, s.p.).

Entendendo-se a atuação do SESI, como ele próprio enuncia, no campo da educação

continuada de jovens e adultos, afirma ainda trabalhar com diferentes metodologias,

sustentadas pelos princípios de: “construção da cidadania; relação educação-trabalho;

desenvolvimento do espírito crítico e de argumentação; ensino contextualizado; além de ações 119 Um desses textos refere-se ao repasse do salário-educação, que imputou ao Sistema S uma perda financeira bastante significativa.

Page 325: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

323

complementares de saúde, alimentação e lazer”, assinalando ser a “característica básica da

proposta conceitual do Programa SESI Educação do Trabalhador – Elevação da Escolaridade

Básica [...] a possibilidade da utilização das diferentes propostas metodológicas já testadas no

Sistema, adequadas às diversidades regionais e da clientela”. (SESI, s.d., s.p.). Indica serem

seis, na ocasião da formulação do Programa, as principais propostas operacionalizadas pela

entidade.

Algumas discussões cabem sobre essas enunciações, buscando compreender as

conexões que o Programa realiza, e os modos como tece a rede no Sistema, mais tarde

sistematizada em documento, visando a visibilizá-la, segundo essas novas concepções de

parceira da EJA, em um esforço coletivo.

A primeira questão diz respeito à assunção da concepção de andragogia, em

substituição aos sentidos que pedagogia tem assumido de há muito no campo. Como discutido

no capítulo sobre as conferências internacionais, e em nota explicativa, pelo fato de o termo

surgir no âmbito da IV Conferência, em 1985, em Paris, há uma falsa questão que não pode

ser esquecida: o prefixo andros refere-se a masculino, e não a homem, no sentido de ser

humano (aí, anthropos), o que anula a preocupação de precisar um termo. Ademais, note-se

que a mudança de terminologia não garante, por si só, a transformação das concepções, muito

menos das práticas infantilizadas, o que estava fortemente em jogo quando a alteração é

proposta. Em verdade, essa busca para cunhar um termo que caracterizasse o fazer do SESI na

área sempre foi a constante de um ex-dirigente que jamais se convenceu da inoportuna

proposta, pelo que carreia de imprecisão. O termo foi de tal forma rejeitado, que ele não só

aparece como desaparece no mesmo momento, não subsistindo ao intervalo de tempo até a

Conferência seguinte, em 1997.

Uma segunda questão, ainda terminológica, refere-se à forma de denominar os sujeitos

da EJA: clientela. Embora esse termo continue em uso e esteja presente em muitos

documentos, não só do SESI mas até mesmo de estudiosos, a linguagem que o constitui,

atribuindo-lhe sentido, como em todos os demais termos, não é inocente. Merleau-Ponty, na

coleção Os pensadores (apud SADER, 1988, p. 57), em seus estudos sobre a fenomenologia

da linguagem, e discorrendo sobre uma possível significação desta, assim se refere a uma de

suas funções: “Executa a mediação entre minha intenção ainda muda e as palavras, de tal

sorte que minhas palavras surpreendem a mim mesmo e me ensinam meu pensamento”. Por

isso, surpresa com minhas palavras, aprendo que a denominação de clientela, tomada para

designar alunos, trabalhadores estudantes, alunos trabalhadores encobre, arrisco a dizer,

Page 326: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

324

uma dimensão implícita não de sujeitos, mas de consumidores de serviços, portanto clientes.

Reforçam-se, desse modo, as concepções da prática mercantil da educação, que trata a relação

entre o conhecimento e os que com ele interagem, com a mesma lógica capitalista, em que o

conhecimento é mercadoria, oferecida aos consumidores desse bem. De alguém que ensina,

para alguém que, então, por conta desse ato, aprende, na dimensão de “oferta de serviço”,

implica passividade, quietude, mansidão, porque os que buscam o serviço não têm qualquer

injunção com ele. Ao gosto da “educação bancária” de que trata Paulo Freire, e tão

aprisionadora dos sujeitos professores e mesmo dos sujeitos alunos, que, conhecendo os ritos

dos processos escolares, submetem-se a eles, sem questionamentos. A diferença que este

modo de observação impõe a programas educativos, portanto, é de, desafiados pela

consciência da ideologia capitalista que move as enunciações, apagá-las desses textos, porém

conscientes também que, mais do que isso, é preciso revirar as práticas, alterando esse lugar

de poder central do professor, para redizer a igualdade nos processos de aprendizagem, e

entabular coletivos de aprendizagem em que todos são sujeitos... que aprendem.

A entrevistada do SESI, Pereira120, destaca o que considera tenha sido relevante na

mudança de orientação adotada pelo Programa: “formulação de políticas, diretrizes, muito

voltadas para essa clientela jovem e adulta, para suas características, para suas possibilidades,

inclusive de oferta da educação básica, do nível da alfabetização até o ensino médio [...]”. E

segue ainda, detalhando:

[...] a educação do trabalhador seria fundamental, seria efetiva se mudasse a sua prática, no sentido de levar o atendimento a esse jovem e adulto. Significava mudar toda a dinâmica de atuação. Deixar de atuar nos centros de atividades, com salas de aula lá longe dessa clientela, salas de aula tradicionais, salas de aula a exemplo do que se faz no ensino regular [...] para um modelo diferenciado. Então, criou-se e a principal estratégia do Programa foi levar a sala de aula, o ambiente escolar até o aluno. Foi quando a gente priorizou o atendimento no local de trabalho como principal estratégia, e como principal inovação (grifo meu) até nas possibilidades de esse aluno não se deslocar, de ele lá poder acessar essa sala, ter o professor ali, de ele interagir com o... com o posto produtivo.

O valor dessa inflexão política nas prioridades do SESI está, em primeiro lugar, pelo

fato de o Programa consolidar o que a história vinha demonstrando, mas passando a conferir

visibilidade ao atendimento, assumindo ser este o carro-chefe da entidade, pela natureza do

público a quem devia servir. A inovação de levar a instituição aos locais de trabalho, não

apenas ajuda a fugir dos modelos formais de escola, como estanca muitos problemas que

120 Nome fictício.

Page 327: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

325

advêm da distância dos pólos de trabalho e dos locais de atendimento — Centros de

Atividades (CATs) —, que embora equipados e com condições adequadas, tanto engessavam

as propostas organizativas e curriculares, pela semelhança buscada com a escola, quanto se

tornavam locais de desenvolvimento do Programa, mas não necessariamente voltados a

trabalhadores do SESI, porque sua localização nem sempre se prestava a favorecer a presença

desse público.

A metodologia utilizada — pautada no contexto produtivo — integrava os

trabalhadores estudantes da empresa, da alfabetização ao final do ensino fundamental, de

quaisquer faixas etárias. O largo alcance e a aproximação com o chão de fábrica, possibilitou,

ainda, a proximidade com pessoas da comunidade, beneficiadas por essa estratégia, que em

2003 chegava a representar 60% dos alunos atendidos. Essa outra estratégia amplia-se no

sentido de redesenhar parcerias com os governos municipais, estaduais e depois federal, no

esforço de contribuir com o atendimento, na consolidação de políticas integradas entre

executores, não apenas pela meta elevada, como pela necessidade de integrar-se aos sistemas,

compondo com eles a continuidade, face à diversidade de organizações em cada local e aos

recursos disponíveis, fossem físicos, humanos ou financeiros.

As propostas metodológicas admitidas no interior do Programa SESI Educação do

Trabalhador pautam-se na compreensão de que a diversidade dos alunos jovens e adultos

exige programas educativos “flexíveis e adaptáveis às diferentes formas de atendimento”,

incluindo ensino presencial, semi-presencial e a distância, com a utilização de multimeios, de

modo a melhor responder às necessidades do aluno trabalhador.

No mesmo documento, relacionam-se as metodologias testadas no Sistema, assim

enunciadas: a) proposta curricular do SESI para o ensino fundamental de adultos; b)

Telecurso 2000; c) Alfabetizar é construir; d) curso de suplência de jovens e adultos; e)

alfabetização a distância; f) curso de suplência para jovens e adultos Projeto Jamil. Cada um

deles tem origem diversa no SESI, em épocas diferenciadas, ditadas tanto pela autonomia dos

DRs, para seguirem seus caminhos — o caso do Alfabetizar é construir, por exemplo, nascido

em 1990 no Rio de Janeiro, por negociação política do Sindicato da Indústria de Construção

Civil no Estado do Rio de Janeiro (SINDUSCON-RIO) com a Federação das Indústrias do

Estado do Rio de Janeiro (FIRJAN) — quanto pelas concepções norteadoras das

coordenações pedagógicas do momento, no que consideram ser a resposta adequada aos

públicos com os quais se envolvem. No curso do Programa, outras propostas vieram a

ocorrer, integrando, na atualidade, as ofertas do SESI.

Page 328: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

326

A maior procura, no Programa, já não é pelas séries iniciais, provavelmente fruto das

ações sistemáticas de atendimento que o SESI tem desenvolvido, mas pelo segundo segmento

do ensino fundamental, e impondo-se, também, uma crescente demanda de ensino médio. A

evasão, no caso brasileiro, da ordem de 12%, converge para os indicadores que demonstram a

permanência dos alunos, seu sucesso e conclusão.

Mas apesar dessa nova concepção, o documento do Programa mantém, no objetivo

geral e em um dos objetivos específicos a nomenclatura supletivo para caracterizar cursos e o

nível educacional atingido — termo designativo para a modalidade já abolido desde 1996,

com a LDBEN, que passou a intitulá-la educação de jovens e adultos121.

A meta estabelecida, de um milhão de jovens e adultos em três anos, mediante a

expansão da oferta de 570% do atendimento até 1998, passava a refletir o contingente de

trabalhadores da indústria, porque se pautava pela Relação Anual de Informações Sociais -

RAIS/95, o que, segundo os dados de atendimento até 2002, vinha sendo cumprida.

88..22 AA RREEDDEE SSEESSII DDEE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO EE OO PPRROOJJEETTOO PPEEDDAAGGÓÓGGIICCOO

A compreensão do que o SESI significa no cenário nacional para a EJA, no contexto

dessa pesquisa, vai ganhando corpo à medida que consigo entrelaçar os muitos materiais que

me foram ofertados, nos quais vou percebendo os movimentos que o SESI faz em busca de

sempre maior competência profissional. Pouco se improvisa, pelo que se observa, no âmbito

técnico da área de jovens e adultos e até mesmo uma relativa autonomia parece coexistir com

as práticas burocratizadas e hierárquicas da entidade. Mas o documento de que me ocupo

nesse item, inaugura algumas concepções antes não verificadas no conjunto de enunciações.

Trata-se do Rede SESI de Educação, formulado pelo Departamento Nacional, com

consultoria de Genuíno Bordignon, da UnB, com o objetivo de explicitar a identidade

educacional e o perfil das ações pedagógicas da entidade. Por meio dele observa-se o esforço

de consolidar o sentido de rede para religar a complexa estrutura sesiana, não somente para

dentro, entre suas partes constitutivas, mas também aos sistemas estaduais de ensino,

justificada pela ampliação e diversificação das atividades educacionais. Por um lado, a

necessidade nasce da visão de totalidade e integração no âmbito nacional que cabe ao SESI

manter, entre o DN e os DRs, ao mesmo tempo em que garante a autonomia e especificidades

regionais destes últimos. Por outro, na dimensão externa, se amplia a função colaborativa,

121 Quanto às formas de organizar a oferta, a ambigüidade existente na atribuição de sentido, pela adjetivação a cursos e exames, no Art. 38, foi mais tarde dirimida pelo Parecer CEB/CNE nº. 11/2000.

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327

além das questões relativas ao credenciamento e certificação de alunos, nos diversos

programas de escolarização.

Destacando desse texto o que sobressai como pertinente ao recorte da pesquisa,

inicialmente ressalto a discussão feita sobre sistemas e redes de ensino, buscando conceituar o

que cada termo constituiu com o uso, no campo educacional. Para sistema, o uso amplo,

alheio às divergências com as ciências sociais, se reflete na administração da educação, e o

documento discorre sobre sentidos e permanências, inclusive, ao longo da história da

educação, nas legislações e no pensamento de Lourenço Filho. Abstraindo os usos

consagrados nas enunciações do texto legal — LDBEN, na qual o princípio da estrutura em

rede não é encontrado, nem de sistema educacional (este um dos pontos fortes do substitutivo

Jorge Hage), propõe a imperiosa assunção do termo rede da moderna administração, pelo fato

de esta concepção superar a estrutura clássica, piramidal, da verticalidade das relações de

poder, em busca da identidade dos corpos coletivos, como faz Castells (1999). Relacionando-

a a um novo paradigma de gestão, afirma que organizações em rede são organizações que

aprendem, porque constitutivas de comunidades de aprendizagem.

Para localizar o SESI como organização em rede, aponta duas características da ação

educacional que assim o permitem: a primeira, sua tipificação como instituição jurídica de

direito privado, enquadrada na categoria instituições educacionais privadas “comunitárias”,

de acordo com a LDBEN, por incluir na entidade mantenedora representantes da comunidade;

a segunda, a manutenção de “atividades educacionais, por meio de escolas, centros de

atividades e programas de educação de jovens e adultos trabalhadores, que ultrapassam o

estrito limite legal de ação escolar, tornando pertinente a referência à rede de educação, ao

invés de rede de ensino”. (SESI, 2003a, p. 19-20). Por fim, para que essa rede assim

constituída e identificada, como o documento alerta, não se resuma a uma “mera fotografia,

mero registro estático de escolas e programas que compõem o conjunto SESI” (SESI, 2003a,

p. 22-23), discorre sobre aspectos fundamentais que lhe podem conferir a estatura de rede,

quanto à estrutura e gestão.

Em seguida, o documento apresenta a concepção adotada para o projeto pedagógico

(pelo qual opta, fazendo distinção entre este e proposta pedagógica, por entender ser esta uma

sugestão, ao passo que o projeto resume uma concepção de ação, de compromisso instituído).

Nesse item, destaca os pressupostos pelos quais orienta a formulação do projeto, assim

como sua especificidade e identidade. Mais do que um documento, afirma, o projeto

pedagógico constitui a “matriz teórica que define os pressupostos epistemológicos, filosófico-

Page 330: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

328

sociológicos e didático-metodológicos das escolas e da rede” (SESI, 2003a, p. 27). E releva,

adiante, os princípios que guiam a elaboração do projeto pedagógico: participação dos atores

envolvidos, em construção coletiva, em busca do compromisso; flexibilidade, porque a

realidade não obedece a trajetórias predeterminadas, admitindo, portanto, incertezas, o que

confere ao projeto a perspectiva de inacabamento, em permanente reconstrução; sintonia com

o ambiente, captando aspirações, demandas e expectativas do ambiente a que serve; mediação

entre o conhecimento e ação, definindo um sistema de condução estratégica das ações em

sintonia com os fundamentos filosóficos, sociológicos e didático-pedagógicos da ação

educacional.

Chama a atenção a forma como esse documento passa a assumir o projeto pedagógico

para a instituição que, como construção coletiva e sem trajetórias predeterminadas, sofre o

influxo das incertezas e é sempre inacabado, face à sintonia com o ambiente e com os sujeitos

a que serve, o que parece trazer uma forma enunciativa reveladora de novas disposições

institucionais, cuja prática, no bojo do setor indústria, locus do pensamento capitalista, tem

sido marcada por rigor no controle e nas formas de garantir certezas aos investimentos

realizados.

88..33 CCOONNSSTTIITTUUIINNTTEESS EE DDEETTEERRMMIINNAANNTTEESS DDAA CCOONNCCEEPPÇÇÃÃOO DDEE EEJJAA EE DDEE AALLFFAABBEETTIIZZAAÇÇÃÃOO

EEXXPPRREESSSSOOSS NNOO PPRROOGGRRAAMMAA SSEESSII EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDOO TTRRAABBAALLHHAADDOORR

Para compreender as concepções de EJA e as formas de gestão que essas concepções

vão produzindo no âmbito formulador do SESI — o Departamento Nacional —, a entrevista

com Pereira, gestora da EJA no Sistema, traz significativos esclarecimentos. De posse de suas

falas, vou tecendo o modo pelo qual interpreta o Programa em diversos aspectos, e com elas

tranço certas compreensões que meu olhar vai produzindo, em diálogo com o texto enunciado.

A atribuição da importância creditada ao Programa não se restringe aos níveis

técnicos, mas às formas como repercutiu, nacionalmente, entre os presidentes de federações

de indústrias, nos estados, e demais executivos, no sentido de que, assumindo como prioritário

o Programa, investissem na educação do trabalhador e, por meio de parcerias, também

atendessem à comunidade e ao maior número de alunos. Priorizado o atendimento para a

indústria, destacava-se a formação de profissionais, com atenção diferenciada.

Assumida a opção de 1998 até 2003, essa implicou, também a melhoria da gestão da

educação de jovens e adultos, compreendendo este a rede nacional formada, já discutida no

item anterior, e a qualidade que poderia daí advir, inclusive do ensino/aprendizagem nas salas

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329

de aula. Os modos de gestão deveriam favorecer a melhoria dos processos nas salas de aula, e

a inclusão dos professores nesses processos também foi prevista, mudando-se concepções de

formação, condições de trabalho, de acesso a materiais etc.

Os resultados da aprendizagem poderiam ser, então, explorados tanto pelas empresas,

nas quais estavam empregados os trabalhadores atendidos, porque esses resultados interferiam

na empregabilidade, como pelas instituições patrocinadoras do Programa.

A idéia de empregabilidade, recorrente nos discursos do SESI e da indústria em geral,

de modo geral, tende a encobrir o desemprego estrutural, resultado das transformações por

que passou o mundo do trabalho, sem precedentes na era moderna, e que atinge o mundo em

escala global. Antunes (1995, p. 47), discutindo essas transformações, além das

conseqüências diretamente vinculadas à classe trabalhadora, do ponto de vista da sua

composição e subjetividade forjada, aponta outra conseqüência, de dupla direção:

“paralelamente à redução quantitativa do operariado industrial tradicional dá-se uma alteração

qualitativa na forma de ser do trabalho, que de um lado impulsiona para uma maior

qualificação do trabalho e, de outro, para uma maior desqualificação”. Ao elucidar esses dois

termos apresenta, junto à redução quantitativa originária, por exemplo pela automatização e

introdução da robótica, não mais a eliminação do trabalho, mas um processo de

intelectualização de uma parcela da classe trabalhadora, em processos atípicos, em que o

trabalhador não mais transforma objetos materiais diretamente, mas programa, supervisiona e

repara robôs em caso de necessidade. Outra tese defende a conversão do trabalhador em

ramos mais qualificados, em que as antigas clivagens na divisão do trabalho estariam sendo

questionadas pela necessária cooperação entre os trabalhadores. Segundo o autor,

“Desqualificou-se em vários ramos, diminuiu em outros [...] praticamente desapareceu em

setores que foram completamente informatizados, [...] e requalificou-se em outros”.

(ANTUNES, 1995, p. 52).

Quanto à desqualificação Antunes refere-se a inúmeros setores operários, atingidos

pela gama de transformações que levaram à desespecialização dos operários oriundos do

fordismo e à massa de trabalhadores que oscila entre os temporários, parciais, subcontratados,

terceirizados, de economia informal.

No caso brasileiro, as questões relativas à especialização e à desespecialização,

qualificação e desqualificação têm, de fundo, uma condição mais adversa: a desescolarização

e a baixa escolarização da classe-que-vive-do-trabalho, o que acaba por fazer incorporar, no

próprio trabalhador, a responsabilidade por sua não empregabilidade, que atinge os mais

Page 332: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

330

velhos, diante das ultra-especializações, mas principalmente os mais jovens, aos quais se

soma a falta de experiência profissional, demarcando o círculo vicioso e contraditório do

modo de produção capitalista.

Pereira detém-se na definição do perfil das pessoas que participam do Programa,

dizendo que as idades são muito diferentes: há analfabetos e outros que já haviam freqüentado

a escola; os que precisavam começar pela alfabetização ou pelas primeiras séries do ensino

fundamental ou mesmo pessoas que concluíram o ensino fundamental e queriam fazer o

ensino médio, e como não tinham oportunidade de freqüentar escola própria para o nível

pretendido, permaneciam ali, aguardando que outra oportunidade chegasse.

Ressalta que a metodologia de trabalho tem adotado as referências de SESIeduca, cuja

gênese foi no DR Rio de Janeiro, ao lado do Telecurso 2000, utilizado em Minas Gerais,

como alternativas bem-sucedidas. Mas reitera ser possível trabalhar com esses projetos desde

que princípios e características, cujo centro é o trabalhador, estejam preservados. Ver as fitas

de vídeo do Telecurso, usar o computador, o televisor, o módulo, todas são atividades

pedagógicas admitidas, desde que trabalhando as histórias de vida dos alunos; a promoção e

não a exclusão, como nas práticas anteriores; o acolhimento dos alunos em todas as

necessidades; uma educação mais integral e integrada com as demais áreas, inclusive com os

conteúdos necessários à formação do aluno como trabalhador e cidadão, o que fugiria,

portanto, de uma escolarização restrita ao aprender a ler e escrever e contar, somar. Confirma,

então, que o Programa tem como fundamento a educação do trabalhador, e tanto carga

horária e o tempo no processo são reconhecidos e conferem aos alunos o direito à avaliação

no processo, e certificação final.

88..33..11.. FFeerrrraammeennttaass qquuee oorrggaanniizzaamm aass ssiittuuaaççõõeess ddee aapprreennddiizzaaggeemm:: ccoonncceeppççõõeess ddee

ccuurrrrííccuulloo

A metodologia SESIeduca surge, segundo o documento que a apresenta, no esforço do

SESI advindo da aprovação do Plano Nacional de Educação, em janeiro de 2001, a que a

entidade responde no âmbito do Plano Estratégico 2000-2001, que fixa na educação uma de

suas prioridades. Da experiência no Rio de Janeiro, expandiu-se para todo o país, mediante a

publicação desse único documento de estrutura e funcionamento, que absorveu as propostas

construídas isoladamente, do primeiro e do segundo segmento do ensino fundamental.

Fundamenta a proposta em princípios educacionais embasados nas ciências da

educação, enunciando autores com os quais trabalha: Piaget, Vygotsky, Wallon, Freinet,

Page 333: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

331

Paulo Freire, Emília Ferreiro e Cherryholmes, dos quais afirma ter tomado “achados

importantes que elucidam como a pessoa se torna inteligente, como aprende, como faz de um

novo conhecimento um instrumento de transformação da vida prática”, a que denominam de

“construtivismo sociointeracionista, para sintetizar a compreensão do processo de

aprendizagem proposto pela Metodologia SESIeduca”. (SESI/RJ, 2001, p. 6-7).

Indicam, em seguida, as idéias-chave do conceito: a) o aluno como construtor do

conhecimento; b) conhecimento como construção social; c) a aprendizagem é mediada; d) o

professor é o mediador da aprendizagem; e) o professor aprende, quando ensina; f) trabalho

cooperativo e comunicação entre os alunos; g) formação adequada do professor; h) formação

integral da pessoa pela educação; i) concepção epistemológica de currículo, como ambiente

de aprendizagem. (SESI/RJ, 2001, p. 7-9).

A metodologia abrange o atendimento da alfabetização até o ensino médio, formulado

posteriormente, e a incorpora como um único bloco de educação básica, admitindo o ingresso

do aluno a qualquer momento, em qualquer segmento do conjunto, podendo seguir adiante,

sempre que indicativos da avaliação o recomendem, além dos de idade, nos termos da lei. O

ensino fundamental sustenta três etapas de trabalho: a) alfabetização, para a qual não há

fixação nem de tempo, nem de carga horária como referência; b) primeiro segmento, com

quatro fases totalizando 600h, de 300h as duas primeiras, e outras 300h as duas últimas, com

atendimento de cada disciplina em um dia da semana, em “aulas não expositivas” e com três

campos de conhecimento originando os módulos de ensino — sociedade, meio ambiente e

contexto cultural; c) segundo segmento também com quatro fases, enumeradas em seqüência

às anteriores, com um total de 1200h, com subtotais de 300h por fase. Algumas observações

informam que o conteúdo do primeiro segmento é trabalhado de forma interdisciplinar, por

meio de temas propostos em módulos instrucionais, elaborados pela equipe de professores do

DR-RJ, sob a orientação de professores de universidades estaduais e federais, como

consultores, havendo um módulo inicial em cada segmento que familiariza o aluno com a

metodologia. Outra observação informa que a prática da educação física é realizada em

horário especial, para os casos previstos por lei, e que Orientação para o Trabalho, Educação

Ambiental e Artes estão incluídas no conjunto de disciplinas, desenvolvidas por meio de

projetos. Tanto os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental (elaborados

para a escola regular de crianças), quanto os temas transversais são apropriados na

metodologia e incorporados à proposta.

Page 334: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

332

Pereira destaca ainda que, no Programa SESI Educação do Trabalhador, a

alfabetização é o menor segmento, em número de atendimentos, informando, no entanto, que

há, por ora, uma “faixa diferenciada”, compreendida pela parceria com o Programa Brasil

Alfabetizado, logo seguido das propostas para 1ª a 4ª séries, e que a maior procura está de 5ª a

8ª séries — o segundo segmento do ensino fundamental, crescendo bastante, ainda, a

demanda pelo ensino médio na EJA.

Quanto ao Programa Alfabetizar é Construir, que acompanhou a implantação do

Programa de Ensino Fundamental de Adultos, no início da década de 1990, no SESI, Pereira

informa que:

[...] não é mais uma proposta de vanguarda para o setor da construção civil, até porque a gente entendeu e decidiu... a gente começou a entender que pra construção civil não bastava levar material com aquela cara ali e tudo. O que se precisava fazer, além do material pedagógico e tudo era a dinâmica de atuação dentro da construção civil.

Um dos aspectos destacados por Pereira para a atuação em EJA na construção civil

encontra-se na formação do professor. Diz:

[...] o professor, se fosse da alfabetização, ele teria uma forma de trabalho, que variava de estado pra estado, porque alguns precisavam de material didático, outros construíam esse material com o aluno, mas deixou de se dizer assim: “Não, para o setor da construção é esse”. Ele (o material) ficou também obsoleto.

Desse modo, Pereira assinala que o caminho encontrado para o atendimento com mais

qualidade na construção civil foi obtido pela formação dos profissionais para atender a

segmentos diversos, temas diferentes em espaços diferentes, públicos de faixa etária variada.

Destaca, por fim, que o material tem muito a ver com essas condições todas. Prossegue

demonstrando com que concepção se dá a formação do professor, não mais assumido como a

daquele “que ensina e o aluno que aprende, mas ele na posição de mediador da aprendizagem,

com uma dinâmica diferenciada”, o que fez do Programa “o nosso carro-chefe aqui da

educação de jovens e adultos no sistema”. Destaca a condição profissional do professor,

dizendo que não há trabalho voluntário na instituição, só remunerado, e porque se se paga mal

ao professor, apenas com 2h de carga horária diária, não há tempo para o planejamento, o que

compromete as atividades.

Page 335: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

333

88..33..22 FFeerrrraammeennttaass qquuee oorrggaanniizzaamm aass ssiittuuaaççõõeess ddee aapprreennddiizzaaggeemm:: ccoonncceeppççõõeess ddee

ppaarrcceerriiaa nnoo PPrrooggrraammaa SSEESSII EEdduuccaaççããoo ddoo TTrraabbaallhhaaddoorr

O Programa foi desenvolvido, em princípio, nas salas de aula, ambientes e empresas,

estas parceiras regulamentares da instituição. Mas também se dispôs a contribuir com outros

parceiros, como governos estaduais e municipais, em apoio às comunidades que não tinham

acesso à educação de jovens e adultos, o que possibilitou atingir à meta elevada, chegando a

quase quatro milhões de matrículas.

Pereira afirmou que esta forma de incentivo aos governos deu-se de variadas maneiras:

em muitos apoiando com a remuneração aos professores, porque têm as salas de aula; em

outros, ao contrário, não têm as salas, ou ainda não têm a estrutura metodológica, ou material

para o desenvolvimento das atividades etc. Em alguns casos, o SESI já tem professores do

próprio quadro, ou contratados. Mas em muitos casos de parcerias, há contratos temporários,

uma prática não muito utilizada pelo SESI, pelas questões legais e trabalhistas. Se

contratados, os professores passam a ser funcionários, o que implica despesas à entidade. Os

do SESI, quando participantes do Programa, são todos funcionários, com contratos de

trabalho. De modo geral, não é feito contrato temporário porque a educação de jovens e

adultos não se desenvolve por tempos anuais, descontínuos. Quando há uma terceira entidade

na proposta de atendimento, como por exemplo, a Fundação Roberto Marinho, com o

Telecurso 2000122, e a entidade conveniada não pode pagar o professor, o SESI também paga,

embora seja um contrato eventual. Nesse caso, o SESI faz a contratação do professor pelo

tempo de vigência do Programa na empresa. E a experiência que se tem é que as empresas

iniciam, por exemplo, com o ensino fundamental e seguem até a conclusão do ensino médio.

Do mesmo modo, quando é o estado que não pode contratar, a duração do contrato está

definida pela duração do Programa, mas na maioria dos casos, quando o parceiro é o estado,

os professores são contratados pelo estado.

122 O Telecurso 2000, desde que foi assumido pela CNI, como alternativa do Sistema S, teve algumas características especiais. Uma delas, a de só trabalhar com a mediação de um professor formado, jamais um orientador de aprendizagem como previsto pelo Programa original, que admitia qualquer pessoa, pois a responsabilidade desse orientador estava em seguir determinados passos da metodologia, que se sustentava no uso dos vídeos e dos materiais impressos. Tanto vídeos, quanto materiais impressos são adquiridos à Fundação Roberto Marinho, que durante muito tempo também os comercializou em bancas de jornal.

Page 336: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

334

A necessidade de compreensão nesses modos de realizar as parcerias com o público,

talvez se faça pela condição jurídica do SESI, cujos recursos são provenientes de contribuição

recolhida nas folhas de pagamento, pelo Estado, e repassada, novamente, para o setor privado.

Quando o Programa assume estabelecer a parceria, entende-se que contribui para formar a

rede de atendimento de que a esfera pública muitas vezes fica privada. No modelo

constitutivo da federação, entidades privadas existem e funcionam com benesses e isenções de

impostos, sem que dirijam sua atuação para o que é definido como prioridade pelo Estado,

agindo com total autonomia. Mas ainda assim, essa “devolução” em serviços, não satisfaz, à

medida que segue uma lógica própria de uma entidade representativa dos interesses do

capital, com propostas e objetivos que atendem à concepção de trabalhador dependente, mão-

de-obra para a indústria. Essa compreensão exige a assunção das ações do SESI, no espectro

em que a EJA se faz, mas também é imperioso que essa aceitação não perca o benefício da

dúvida e da crítica, às intenções e aos modos de fazer.

Outra concepção de parceria se destaca, na entrevista: a participação nos fóruns de

educação de jovens e adultos estaduais e nacional. Pereira aponta o quanto o SESI tem se

colocado aberto a este diálogo, inclusive tendo estimulado, em muitos estados em que não

havia fórum, a sua fundação. Reconhecidamente, tem sido o SESI um parceiro freqüente e

constante do movimento em defesa das políticas públicas e de fortalecimento de ações para a

educação de jovens e adultos, embora ocupe e tenha ocupado, muitas vezes, alguns lugares

privilegiados de interlocução — adiante das representações formais dos fóruns — junto ao

Ministério da Educação.

88..33..33 EEvvaassããoo ee ccoonncclluussããoo ddee eessttuuddooss nnoo PPrrooggrraammaa SSEESSII EEdduuccaaççããoo ddoo TTrraabbaallhhaaddoorr

Pereira alerta para o fato de que há, em curso, uma avaliação de competências,

demonstrando que a evasão no Programa, em todo o país, se situa em torno de 12%, o que é

considerado um índice baixo, em se tratando de EJA. Ressalta a necessidade de que o tema —

e o problema, acrescento — deva ser estudado de formas diferenciadas das que até hoje têm

se lançado mão, exigindo releituras e novas significações. Tratar a evasão na EJA como

“desistência”, pura e simples do jovem e adulto, não dá conta da complexidade que se encobre

nos muitos motivos/carecimentos, ilusões/desilusões que impregnam a vida difícil dos

trabalhadores que estudam enquanto trabalham.

Sobre os índices de conclusão de cada segmento, de promoção e de

conclusão/terminalidade, Pereira também afirma ter crescido bastante, atribuindo aos

Page 337: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

335

resultados o adjetivo “satisfatório”, assim como à formação dos professores de jovens e

adultos, que segundo ela, apresenta, de 1998 em diante, um quadro bem diferente.

O primeiro momento da validação de um programa institucional, no SESI, foi em 12

de março de 1992, quando o Conselho Federal de Educação aprovou a proposta curricular

encaminhada. Essa proposta, seguindo um percurso de fusão das muitas do SESI, já buscava,

tendo o trabalho como princípio educativo, organizar um currículo diferenciado das

abordagens convencionais, adequado à dinâmica do significado de ser trabalhador estudante.

Entendia que o lugar da educação, no SESI, fazia-se em relação às demais áreas de

assistência, às quais atribuía valor pedagógico e curricular, responsabilizando a instituição,

em todas as suas ofertas, pelo trabalho educativo que a cada uma delas importava.

No que tange à avaliação, a observação curiosa daquele momento foi obtida com o

levantamento realizado pelo DN, a pedido da consultora, em todos os Conselhos Estaduais de

Educação, sobre as concepções que assumiam para a educação de jovens e adultos. O rigor

dos obstáculos impostos à certificação do aprendizado ia desde o controle de notas e

freqüência, até os valores mínimos para aprovação, esses nunca menores do que sete (em

escala de zero a dez). Houve caso, inclusive, em que a nota mínima era oito, o que

demonstrava o forte poder discriminatório de que os Conselhos se valem, para perpetuar, sob

o discurso da qualidade, a exclusão de jovens e adultos dos sistemas de ensino. A certificação,

naquele momento, foi conferida à entidade, que passou a recomendar aos DRs a consulta local

aos CEEs, para revalidação no âmbito dos estados, já com o primeiro aval do CFE, o que em

muito contribuiria para a autorização estadual.

88..33..44 CCoonncceeppççõõeess ddee ffoorrmmaaççããoo ccoonnttiinnuuaaddaa ssuubbjjaazzeemm ààss ccoonncceeppççõõeess ddee EEJJAA nnoo

PPrrooggrraammaa SSEESSII EEdduuccaaççããoo ddoo TTrraabbaallhhaaddoorr

Pereira traz informações relevantes sobre as formas como o SESI tem assumido a

questão da formação:

[...] não basta formar especialistas que vão ficar nos cargos de coordenação, supervisão, tem que chegar essa pessoa ao aluno até na sala de aula. Seja na construção civil, seja na indústria têxtil, seja numa indústria de grande porte que tenha uma sala com ar condicionado, a relação do conhecimento entre aluno e professor tem que ser a mesma. [...] a gente precisa que o professor tenha condições de ser esse mediador e que esses ambientes ofereçam também atrativos adequados.

Page 338: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

336

Afirma que, na atualidade, os professores de educação de jovens e adultos não são

mais aqueles que, na grande maioria dos que atuavam no Programa, migraram da educação

infantil. Confirma a formação na área feita por meio de cursos de extensão ou em cursos de

graduação ou especialização para a educação de jovens e adultos, o que significa,

efetivamente, um avanço. Destaca que o SESI constituiu uma estrutura básica para a

formação de formadores — um curso semipresencial que vem sendo desenvolvido com a

UnB, em parceria com a UNESCO, visando primeiramente à qualificação de seus quadros

internos e com oferta para vagas de público pagante externo, a cada módulo. Os materiais

disponíveis constituem módulos de aprendizagem, temáticos, escritos por diferenciados

autores, segundo as áreas de atuação e de pesquisa.

Reafirma que a intenção do SESI em todo o trabalho de formação é a de oferecer

subsídios aos profissionais para que, conhecendo o público com quem trabalham, possam

identificar conteúdos e os sentidos da própria formação e de como esta pode ser realizada

processualmente, pelo fato de serem participantes, colaboradores intensivos, o que poderia

gerar condições para melhorar as práticas pedagógicas.

O curso de especialização, em módulos, tem-se perpetuado ao longo dos anos, sem

interrupções, e qualificado aos técnicos e funcionários do SESI, precipuamente. A constância

da oferta indica o acerto da iniciativa e a concepção que subjaz à formação: continuidade,

como garantia de que os processos de aprender não têm época própria, nem momento certo,

mas são permanentes.

88..44 AAPPRREEEENNSSÕÕEESS EE SSIIGGNNIIFFIICCAADDOOSS PPAARRAA OO PPRROOGGRRAAMMAA BBRRAASSIILL AALLFFAABBEETTIIZZAADDOO:: NNOOVVAASS

FFOORRMMAASS DDEE PPAARRCCEERRIIAA??

Pereira inicia o depoimento sobre a participação do SESI no Programa Brasil

Alfabetizado, em parceria com o governo federal, pela questão do cadastramento, incidindo

sobre as reclamações que colegas fazem sobre o tempo gasto na gestão do Programa, com

esse controle. Alega que há preocupação muito grande do SESI sobre estas críticas porque,

internamente, os que atuam com educação de jovens e adultos estão também habituados a

formas de controle de alunos nas classes e nos programas. Diz que, em verdade, a diferença

para o cadastro que usavam, é que há regras que atrelam os dados inclusive ao pagamento do

professor, e que estes vínculos produzem questões graves quando há atraso no repasse.

Contrariamente à centralização do cadastro e de recursos, as salas e todo o movimento do

Brasil Alfabetizado é muito descentralizado, fugindo da rede SESI e dificultando o

Page 339: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

337

acompanhamento e a supervisão. Informa que há relatório feito com os parceiros do

Programa, em que apresentam os dados levantados aos demais parceiros — empresa, estados,

consultores, instituições. Acrescenta que há outros relatórios internos de prestação de contas

dos recursos, além de um outro sobre a avaliação de competências, com dados tanto do

desempenho da instituição, quanto dos alunos.

Interrogada sobre a concepção de alfabetização adotada ao assumir o Programa Brasil

Alfabetizado, pela redução feita dos dez meses de atendimento até então adotados para seis

meses — o tempo do financiamento do programa pelo governo federal123 —, Pereira responde

que as diretrizes e princípios da educação de jovens e adultos se mantiveram, porém

desenvolvidos em seis meses. Argumenta que a análise dos níveis de aprovação, de

promoção, de conclusão na educação de jovens e adultos, por faixa etária, como referido

anteriormente, não diferenciava do que ocorria agora no Brasil Alfabetizado, porque os jovens

e adultos participam, neste Programa, diariamente, o que difere de muitos modelos em que a

organização do trabalho exige mais tempo, por não ser diário o atendimento em sala de aula.

Afirma, inclusive, que essa correlação mostra até que os alunos concluem em um tempo

menor.

Deve-se ressalvar que no primeiro ano, 2003, as metas do SESI para o Brasil

Alfabetizado previam um número muito elevado, que somado ao de outras instituições não-

governamentais, compunham a maior parcela de atendimento, carreando praticamente 70%

dos recursos públicos para a esfera privada. No ano de 2004, foi proposta uma inversão dessa

lógica, sustentada pela Comissão Nacional de Alfabetização, instância consultiva de que o

Programa dispõe, no MEC. Mas o SESI, insatisfeito com a medida, tratou politicamente a

questão, conseguindo garantir mais recursos, mantendo as metas inicialmente previstas, e

comprovando, uma vez mais, a pouca firmeza do Estado para assumir decisões de ordem

técnico-político, diante da classe empresarial. O argumento da Comissão, posto no fato de os

recursos migrarem do público para o privado, defendia as instituições públicas que vivem,

permanentemente, esvaziamentos orçamentários. Além desse argumento, muitos estudos têm

comprovado — e ultimamente a Avaliação Diagnóstica dos Programas Brasil Alfabetizado e

Fazendo Escola reforçou a compreensão — que os recursos investidos nas redes públicas

nelas permanecem, beneficiando a continuidade do Programa e os alunos de etapas seguintes

também. Os recursos que são repassados à esfera privada, entretanto, esgotam-se na

123 Depois do primeiro ano do Programa, o tempo passou a se estender a até oito meses, mas o conveniamento feito pelo SESI manteve o período de tempo, sem aditar mudanças ao contrato.

Page 340: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

338

finalização dos programas, a cada etapa, exigindo investimento completo, para poderem

recomeçar nova turma. No caso do SESI, cabe destacar que a entidade acessou, mediante

convênio, recursos adicionais para fazer a alfabetização, no esforço do Programa Brasil

Alfabetizado, sem vinculá-lo com a alfabetização — e suas modalidades — internamente

desenvolvida, mas assumiu o processo de acompanhamento e supervisão dispensado aos

demais programas, com recursos orçamentários próprios. O que a Avaliação Diagnóstica,

entretanto, revelou, é que as parcerias — formas terceirizadas de abrir e manter classes — têm

estado fora do controle da entidade, e tanto a supervisão acaba deixando a desejar, porque

também integra uma rede muito ampla e complexa de parceiros, locais e entidades, como

também a seleção desses parceiros indica fragilidades, que beneficiam, talvez, a entidades,

mais do que a alunos e a professores.

As metas acordadas entre o SESI e o MEC foram distribuídas do seguinte modo:

300.000 alfabetizandos em 2003; 300.000 em 2004; 300.000 em 2005 e 1.100.000 em 2006, a

isso correspondendo, no primeiro ano, 12.000 alfabetizadores e 600 supervisores; 15.000

alfabetizadores e 750 supervisores no segundo e terceiro anos e 55.000 alfabetizadores e

2.750 supervisores no ano de 2006, totalizando 2 milhões de alunos, 97.000 alfabetizadores e

4.850 supervisores. Com essas metas, a necessidade de parcerias se põe imperiosamente.

Ainda sobre a parceria mantida com o governo federal, e as formas como vem

desmembrando essas parcerias na esfera local, cabe ressaltar que uma gestora do SESI,

quando convidada a participar como interlocutora, de reunião na Comissão Nacional de

Alfabetização124, em março 2005, representando o maior parceiro do Programa Brasil

Alfabetizado, possibilitou maior compreensão sobre o cotidiano das classes no âmbito

institucional do SESI. Trouxe uma visão não coincidente com a apresentada por Pereira, em

2004, atribuindo às ações de alfabetização o caráter de “campanha”, forma designativa usada

todo o tempo e defendida com convicção, quando inquirida a respeito, alegando não

reconhecer continuidade na ação. Esse ponto foi objetado pelos integrantes da Comissão, por

ser o de maior ênfase na contribuição consultiva até então prestada, a que o governo vem

respondendo com disposição e empenho. Ademais das críticas encetadas às exigências de

cadastramento e controle, a alegação mais forte para o procedimento residia no fato de que o

tempo era curto, e não possibilitava o desenvolvimento da concepção então adotada. Ainda

segundo a interlocutora, o caráter atribuído de “campanha” ao Programa devia-se ao fato de

124 A informação consta de relatório-síntese feito por mim, depois da reunião da Comissão Nacional, onde represento os Fóruns de EJA de todo o país, no dia 8 de março de 2005.

Page 341: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

339

este não interagir com o próprio Sistema S, mas ter existência à parte. Isto se reforçava por

não estar acontecendo, ao término dos seis meses de atividades de alfabetização, qualquer

encaminhamento dos alunos na própria rede SESI de um milhão de alunos, como também

para os sistemas públicos estaduais e municipais porventura com atendimento de EJA. Apesar

de haver estrutura e recursos humanos em uma Coordenação Nacional de Alfabetização no

SESI/DN, com vista a dirimir e enfrentar todas as questões relacionadas ao Programa, em

nível nacional, a gestora dizia não haver política interna que encaminhasse diferentemente a

questão, o que impunha a ela submissão hierárquica para não tomar qualquer providência no

sentido de garantir a continuidade de estudos, tal como desejado. A idade dos alunos no

convênio com o SESI varia de 45 a 103 anos (uma pessoa no Ceará), tal como confirmado na

Avaliação Diagnóstica, e muitos destes com várias inserções em projetos anteriores, e que

têm respondido ao chamado publicitário para a alfabetização, no qual investem também,

configurando um sucesso de atendimento — surpresa, inclusive, para a própria equipe.

Os dados disponibilizados na ocasião sobre resultados do Programa em 2003

apontavam para: 300.000 matrículas, 63.940 evadidos (21%); 236.760 concluintes (79%).

Desses, não se alfabetizaram 37.289 pessoas (16%), e se alfabetizaram 199.471 (84%). A

avaliação foi feita pelo SESI, em parceria com a UNESCO, verificando competências. No ano

de 2003 a pré-testagem ocorreu em Goiás, Pará, Pernambuco, Rondônia e Distrito Federal

para a definição de metodologia de aplicação por técnicos da UNESCO. No ano de 2004, uma

videoconferência orientou os DRs sobre a aplicação de testes por colaboradores do SESI. A

aplicação da avaliação final ocorreu nos DRs do Rio Grande do Sul, Distrito Federal, Paraíba,

Ceará, Rio de Janeiro e Amazonas, com 770 alfabetizandos por estado, totalizando 4.620

jovens e adultos. Os testes foram corrigidos por uma banca formalmente constituída. No ano

de 2005 realizaram o tratamento dos dados e à época do depoimento da gestora na Comissão

Nacional de Alfabetização encontravam-se em fase de consolidação do relatório, assim como

de definição de estratégias para avaliação inicial, processual e final em 13 DRs, abrangendo

2.840 alfabetizandos das cinco regiões geográficas. A avaliação final nesses 13 DRs previa o

envolvimento de 17.160 jovens e adultos. Quanto à evasão, detectaram que as principais

causas referem-se a questões sazonais, mudança de domicílio, problemas de visão e falta de

óculos, à falta de merenda, de apoio familiar e de transporte, de perspectivas para a

continuidade, a cansaço e a doenças, a limitações pedagógicas em função da formação do

alfabetizador, à incompatibilidade de horários de trabalho com o da escola, ao desemprego-

migração, ao alcoolismo, à insegurança, à identificação de alunos já alfabetizados, à

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340

duplicidade de alunos em mais de uma instituição, a alfabetizadores com experiência em

alfabetização de crianças e com resistência a mudanças em suas concepções sobre o que é

alfabetizar jovens e adultos; a longos períodos de afastamento da escola; a fatores climáticos;

à demora para o início das aulas. Todas essas questões coincidem com as sistematizações do

relatório final da Avaliação Diagnóstica.

As informações sobre a diversidade metodológica com a qual vêm atuando, referem-se

às diferentes parcerias, mas todas as metodologias, segundo a depoente à Comissão, estão

pautadas por metodologias de ensino e por propostas curriculares fundamentadas em

diretrizes nacionais do SESI. Destacou que a proposta respeita o conhecimento dos

alfabetizandos e o contexto social, pressupondo formação básica em habilidades em nível de

alfabetização e desenvolvimento pessoal do aluno, preparando-o para ampliar suas fronteiras

como cidadãos conscientes e capazes de se integrarem a novas situações. Informou, ainda,

que, para isso, desenvolveram com a UnB uma matriz de competências para o alfabetizador.

Inegavelmente, a parceria do SESI com o Brasil Alfabetizado apresenta, do ponto de

vista da ação gestora nacional do Programa, relevâncias quanto à tarefa assumida,

principalmente no que tange aos investimentos em estudos, assessoramentos e subsídios que

possam contribuir para a qualidade das ações. Entrementes, o que se põe em jogo está distante

da esfera central, e diz respeito ao nível micro em que se operam as questões da realidade.

Para essa compreensão, os dados do relatório final da Avaliação Diagnóstica são

contundentes, verificando pouquíssima, ou praticamente nenhuma, diferença nas práticas

alfabetizadoras das entidades, reafirmando novos-velhos dilemas que a história da educação

de jovens e adultos no Brasil conhece muito bem.

88..55 AALLGGUUMMAASS RREEFFLLEEXXÕÕEESS SSOOBBRREE OO CCEENNÁÁRRIIOO DDEE EEJJAA EE AA AAÇÇÃÃOO DDOO SSEESSII NNAA EESSFFEERRAA

PPÚÚBBLLIICCAA

Pereira diz perceber um movimento maior das universidades tanto na formação para a

educação de jovens e adultos, como para o incentivo à pesquisa, diferente de quando o

trabalho de implantação do Programa SESI Educação do Trabalhador começou. Observa,

entretanto, a existência de um cenário de muitas mudanças, nesse momento não tanto no

cenário interno, mas no cenário externo — partindo do próprio governo — sinalizando

positivamente em relação às intenções comprometidas. Nesse espectro de mudanças, Pereira

entende que as instituições SESI, SENAI, SESC, SENAC terão de se movimentar e se aliar ao

governo, em resposta às áreas sociais e naquelas em que as demandas são maiores, como

Page 343: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

341

educação, saúde etc., o que também é indicativo feito no relatório final da Avaliação

Diagnóstica dos Programas Brasil Alfabetizado e Fazendo Escola.

A despeito da iniciativa e produção de uma “nova” concepção para o ensino

fundamental de jovens e adultos, como tem sido apontada a Metodologia SESIeduca, não se

observam nem na estrutura proposta, nem no funcionamento, traços inovadores em relação

aos demais projetos abordados nesse estudo, com exceção da proposta baiana. A reflexão que

se deve fazer é de constatação de como tem sido difícil organizar propostas curriculares na

EJA, que pensem currículo para além dos modelos formalistas das escolas regulares, mesmo

quando se refundam novos sentidos para a educação de jovens e adultos, cujos sujeitos, nesse

caso, são trabalhadores. Tampouco a dimensão do trabalho, causa eficiente da existência de

um Programa como este, voltado a trabalhadores, emerge em qualquer campo disciplinar, o

que uma breve visada confirma não diferir dos conteúdos universais e das formas

estruturantes como têm sido apreendidos pela escola.

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342

99.. PPRROOGGRRAAMMAA DDEE EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE JJOOVVEENNSS EE AADDUULLTTOOSS DDOO SSEESSCC:: AA

PPRROOPPOOSSTTAA PPEEDDAAGGÓÓGGIICCAA EE OO PPRROOGGRRAAMMAA SSEESSCC LLEERR —— AA EEXXPPEERRIIÊÊNNCCIIAA

““QQUUEE NNOOSS PPAASSSSAA””

[...] fazer uma experiência com algo significa que algo nos acontece, nos alcança; que se apodera de nós, que nos tomba e nos transforma. Quando falamos em “fazer” uma experiência, isso não significa precisamente que nós a façamos acontecer, “fazer” significa aqui: sofrer, padecer, tomar o que nos alcança receptivamente, aceitar, à medida que nos submetemos a algo. Fazer uma experiência quer dizer, portanto, deixar-nos abordar em nós próprios pelo que nos interpela, entrando e submetendo-nos a isso. Podemos ser assim transformados por tais experiências, de um dia para o outro ou no transcurso do tempo. (HEIDEGGER, 1987, p. 143 apud LARROSA, 2002, p. 25).

A discussão do trabalho que o Serviço Social do Comércio (SESC) vem realizando na

área da educação de jovens e adultos toma três conjuntos de fontes: o primeiro, representado

pelos documentos Proposta Pedagógica — Educação de Jovens e Adultos do SESC (SESC,

2000a), formulada pelo Departamento Nacional com assessoria externa, e Proposta

Pedagógica do SESC Ler (SESC, 2000b), também formulada pelo Departamento Nacional do

SESC com a assessoria de Ação Educativa – Assessoria, Pesquisa, Informação, de São Paulo.

O segundo, pelo depoimento escrito em resposta a um questionário submetido a duas técnicas

do Programa, sob os nomes fictícios de Maria e Regina (informando que a primeira com

quatro anos de atividades no SESC Ler, e a segunda, dois anos e meio), questionário este

especificamente organizado para esse fim (ver Anexo 1). No caso do SESC Ler não foi

possível o contato direto com os locais em que se desenvolvem as ações, cabendo ao meu

exercício de compreensão a atribuição de sentido às formulações e às concepções expressas,

nas respostas emitidas pelas técnicas. Ambas, experientes na metodologia do Programa e com

considerável trajetória no acompanhamento e monitoramento de todas as ações que envolvem

desde a gestão, passando pelas negociações políticas locais, formação continuada de

professores, avaliação dos resultados, seguramente enunciam concepções forjadas na prática

— e na experiência — vivenciada em muitos locais em que o Programa já foi implantado. O

terceiro, representado pela minha própria experiência em um projeto de formação de

alfabetizadores, supervisores e equipe técnica da Secretaria Estadual de Educação do Piauí,

em apoio ao Programa Brasil Alfabetizado, no marco de referência do Projeto SESC Ler, do

qual participei como coordenadora pedagógica do projeto de formação, o que me permitiu,

por uma única vez, a imersão no campo, em dois municípios do sul do estado, em classes de

alfabetizadores formados nessa parceria. Essa experiência possibilitou observações referentes

não somente à ação política da equipe técnica, representando o SESC, quando da negociação

Page 345: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

343

com o Governo do Estado do Piauí, para a formação desses educadores, como também sobre a

atuação pedagógica da técnica pedagógica uma experiência vivenciada coletivamente, e

enredada nessa discussão, com vistas a melhor interpretar125 o papel dos projetos do SESC no

cenário da EJA.

A importância desta entidade do Sistema S, como são chamadas as entidades com

função social e de formação que compõem o setor produtivo da indústria, comércio,

transportes, agricultura, faz-se exatamente porque, sendo ela uma instituição cujos sujeitos

envolvidos são jovens ou adultos trabalhadores, toma a si a função de formação desses

sujeitos para o trabalho de cada setor, esbarrando muitas vezes em necessidades da formação

geral, não garantida pelos processos interrompidos, descontínuos, inconclusos, fracassados de

escolarização, na chamada “idade própria”.

Iniciando pela oferta de serviços, então, na área de alfabetização para os trabalhadores

do setor, essas instituições têm, no tempo, modificado e ampliado sua atuação, tendo em vista

as imensas demandas populacionais que envolvem não apenas os sujeitos do trabalho, mas

suas famílias, seu entorno, suas comunidades.

Desde 1945, quando forças políticas e sociais emergentes procuravam ocupar o espaço

que a democratização do Estado brasileiro oferecia, enfrentando um cenário revelador de um

país empobrecido e com grandes questões sociais a resolver, um movimento do empresariado

do setor comércio, indústria e agricultura na I Conferência Nacional das Classes Produtoras –

I Conclap, lança a Carta Econômica de Teresópolis. Nos desdobramentos históricos, além do

SESI, criado em junho de 1946, nasce o SESC126 em 13 de setembro de 1946, por decreto-lei

do presidente Eurico Gaspar Dutra, autorizando a Confederação Nacional do Comércio a criar

o Serviço Social do Comércio – SESC.

Presente em todas as capitais do país e em cidades de pequeno e médio porte, o SESC

representa uma alternativa importante para a população, em serviços de educação, saúde,

cultura, lazer e assistência.

125 Aproximo minha interpretação ao sentido desafiador com que Geertz (1989, p. 28) alerta pesquisadores. Mesmo não se tratando de um trabalho etnográfico deparo-me, diante das multirreferências qualitativas da pesquisa, com a necessidade de me nortear segundo as recomendações, também, do autor. “Uma boa interpretação de qualquer coisa – um poema, uma pessoa, uma estória, um ritual, uma instituição, uma sociedade – leva-nos ao cerne do que nos propomos interpretar. Quando isso não ocorre e nos conduz, ao contrário, a outra coisa – a uma admiração da sua própria elegância, da inteligência do seu autor ou das belezas da ordem euclidiana —, isso pode ter encantos, mas é algo muito diferente do que a tarefa que temos – exige descobrir o que significa toda a trama com os carneiros” (A trama com os carneiros refere-se a uma história contada pelo autor, recolhida de seu diário de campo, como exemplificação do que é fazer etnografia). 126 In: www.sesc.com.br. Acesso 21 julho 2005.

Page 346: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

344

Um ano depois de sua criação, em 1947, o SESC já participava da Campanha de

Educação de Adolescentes e Adultos, que visava à alfabetização, mas também a capacitação

profissional e o desenvolvimento comunitário; em 1967 implementa o Programa de

Alfabetização e de Educação de Base, voltado para a faixa etária de 14 a 30 anos; em alguns

Departamentos do SESC nos estados surgem nesse mesmo ano e 1968 cursos supletivos, em

preparação aos exames de madureza; em 1973 institucionaliza o Programa de Ensino

Supletivo, suprindo a escolarização regular (função suplência) e promovendo a oferta

crescente de educação continuada (função suprimento).

Desde essa época o SESC afirma envidar esforços na perspectiva de contribuir para a

efetivação do direito à educação e para a melhoria da qualidade de vida, centrando sua ação

socioeducativa junto aos jovens e adultos trabalhadores, maiores de 15 anos, da alfabetização

até o ensino médio.

Apenas nos anos 1980 os programas de ação supletiva perdem para a saúde e a cultura

o lugar de prioridade no conjunto de atividades do SESC, retornando nos anos 1990, sob a

pressão das exigências de formação e qualificação profissional, decorrentes da lógica da

globalização que assolava as economias, o que torna a colocar em relevo as ações no campo

da educação de jovens e adultos.

99..11 AA PPRROOPPOOSSTTAA PPEEDDAAGGÓÓGGIICCAA DDAA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE JJOOVVEENNSS EE AADDUULLTTOOSS —— CCOONNCCEEPPÇÇÕÕEESS EE

DDIIRREEIITTOO PPAARRAA AA CCLLAASSSSEE--QQUUEE--VVIIVVEE--DDOO--TTRRAABBAALLHHOO127127

A proposta pedagógica do SESC foi organizada pela equipe técnica do Departamento

Nacional (SESC/DN), com assessoria externa. Portanto, estabelece referências para todos os

órgãos da estrutura SESC nos estados. Está datado, na página de créditos autorais, de

dezembro de 1999, embora a publicação tenha na folha de rosto a data de setembro de 2000.

Esse dado é importante para que se perceba, na rede de significações que se irá construir,

nesse capítulo, em busca de compreensão das concepções de EJA que se pautam pelo

princípio do direito à educação e que sustentam a prática política do SESC, as implicações, ou

não, de eventos que marcaram a EJA nesse ano de 2000, diante do material que era

formulado/preparado para publicação.

Devo destacar o limite da discussão aqui realizada — o que afasta as proposições de

suas práticas — reiterando que não me foi possível observar como as formulações expressas

127 Cf. Antunes (2000, p. 101) nota no capítulo 8.

Page 347: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

345

nesse documento se realizam nos projetos, em distintos pontos do país, para além da

alfabetização.

Por acreditar que prática e proposta necessariamente não se confirmam, exigindo uma

visada complementar de uma à outra para melhor compreendê-las, ressalto o limite do

trabalho efetuado com essa entidade, apesar de ter, sobre o material, um olhar marcado por

numersas outras experiências vivenciadas em larga diversidade de propostas e de projetos,

todas submetidas com freqüência à rigorosidade dos estudos e da tentativa de compreensão,

para futura apreensão crítica dos sentidos que encerram.

Considerando que esse documento orientador assinala a presença de ações de EJA em

17 estados — da alfabetização ao ensino médio para jovens e adultos trabalhadores — nas

cinco regiões do país, atendendo a 5.849 alunos, percebo que sua abrangência, do ponto de

vista do território é ampla, mas a expressão numérica do atendimento é restrita, face às

demandas potenciais verificáveis nos dados do Censo IBGE 2000.

O SESC/DN tem sido interlocutor desde a primeira hora no movimento instituinte do

Fórum de EJA/RJ, cujo conhecimento dos integrantes da equipe de EJA sempre se pôs em

diálogo com os demais parceiros do Fórum, participando da rede de formação coletiva e

política que esse Fórum tem assegurado. Isto significa dizer que, de há muito, o SESC, como

outras entidades, por meio de sua equipe técnica, tem se exposto à discussão com outros

pares, assim como tem contribuído em múltiplos espaços de construção coletiva na área,

mobilizados pelo Fórum EJA/RJ.

99..11..11 DDaa ppoollííttiiccaa ddee EEJJAA nnoo ââmmbbiittoo ddoo SSEESSCC

A Proposta Pedagógica (SESC, 2000a) afirma que a ação política do SESC, na

atualidade, mantém-se em sintonia com o momento brasileiro exigente de amplas ações na

área. No ano em que foi publicado, compromissos internacionais de que o Brasil se fez

signatário disseminavam-se pelo país, com o concurso mais das entidades da sociedade do

que do próprio MEC, que se mantinha fiel às suas prioridades com a “universalização do

ensino fundamental”. Se por um lado a afirmação do SESC pode ser constatada pelas

formulações, e certamente pela enunciação em planejamentos estratégicos, se se quiser buscar

informações dessa monta, por outro lado, falta consistência de dados que confirmem essa

enunciação. Sendo o SESC uma entidade do setor serviços, a perspectiva de demanda de

jovens e adultos é, de pronto, esperada por quem se debruce sobre a oferta de trabalho e

emprego na área.

Page 348: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

346

Sobre este ponto cabe discutir, brevemente, com Antunes (2000), a forma de ser classe

trabalhadora na nova configuração do mundo, transformado pelas fortes mudanças que afetam

não apenas a organização do mundo do trabalho, mas principalmente a classe trabalhadora, ou

melhor dizendo com o autor, a classe-que-vive-do-trabalho.

O setor do âmbito do SESC, considerado por Marx como de trabalho improdutivo, ou

seja, cujas formas de trabalho são utilizadas como serviço, seja para uso público ou

capitalista, não constitui elemento diretamente produtivo, porque o trabalho é consumido

como valor de uso e não como trabalho que cria valor de troca. Esse trabalho improdutivo

abrange um enorme contingente de trabalhadores assalariados, desde os incluídos no setor de

serviços, bancos, comércio, turismo, serviços públicos etc., até aqueles que realizam

atividades nas fábricas, mas não criam diretamente valor. São um segmento assalariado em

expansão no capitalismo contemporâneo — os trabalhadores em serviços —, e embora sejam

considerados agentes não-produtivos, são “absolutamente vitais para a sobrevivência do

sistema”, segundo Mészáros (1995, p. 533 apud ANTUNES, 2000, p. 102). Para Antunes

(2000, p. 102), também, a classe trabalhadora, na atualidade, deve incorporar a totalidade

dos trabalhadores assalariados, que vendem sua força de trabalho, pela forma como se

imbricam trabalho produtivo e improdutivo no capitalismo contemporâneo e como a classe

trabalhadora incorpora essas duas dimensões básicas do trabalho no capitalismo, vendendo

sua força de trabalho em troca de salário. A classe-que-vive-do-trabalho, portanto, incorpora,

além do proletariado industrial e dos assalariados do setor de serviços, também o proletariado

rural, todos vendedores de sua força de trabalho para o capital.

De posse dessa compreensão, por ser o SESC uma entidade de assistência social a uma

enorme parcela da classe-que-vive-do-trabalho, no comércio, estima-se que essa condição de

classe trabalhadora devesse ser central na proposta em questão. No entanto, tratada como

clientela, a classe trabalhadora não apresenta qualquer identidade que constitua diferencial ao

propor uma ação pedagógica para a educação de jovens e adultos. Pensados apenas pela

condição etária, e pela ótica da escola a que não tiveram acesso, demarca-se a

desterritorialização do sujeito do seu campo de trabalho, no qual constitui seu modo de ser

sujeito pelas experiências vividas, ao mesmo tempo em que trabalhador.

Também a tradição, nesse setor, pela conformação da vida social e pela organização da

oferta de empregos formais, esteve, no mais das vezes, voltada para trabalhadores de baixa

qualificação e, complementarmente, de pequena escolaridade. Tomada como atividade laboral

que exige pouca especialização (a idéia de que qualquer um sabe vender) tem sido a saída

Page 349: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

347

mais fácil para a ocupação, pelo trabalho, para a população economicamente ativa – PEA,

sem muita exigência de escolarização. Diante da crise de empregos, e do desemprego

estrutural, a exigência de escolarização serve mais para justificar a falta de postos de trabalho

do que, efetivamente, de subsídio real para o desempenho de atividades no comércio. Não se

trata de pensar, apenas, as atividades comerciais mais organizadas segundo lógicas de grandes

empresas, grandes departamentos, cujo perfil do trabalhador seguramente se sustenta na

escolaridade, pela falsa concepção de que neste posto um trabalhador escolarizado dispensa

investimentos na formação em serviço, ou nas especificidades da função que exerce. Mas se

trata de pensar nas inúmeras atividades que se oferecem por “detrás do balcão”, como

pequenos postos de trabalho, com atividade laboral exigente de pouquíssima ou nenhuma

qualificação, dependente, apenas, da prática e da experiência. Desse ponto de vista, como

desprezar o número de trabalhadores do setor demandantes potenciais de escolarização? No

setor serviços, a exigência da prática e da experiência, por áreas específicas, é ainda maior,

considerando-se a pouca oferta de cursos de aprendizagem no setor e da possibilidade de fazê-

los, de grande parte da população. A vida ensina, a experiência conforma saberes e, nesse

fazer-refazer-fazer formam-se os trabalhadores de serviços, para os quais, provavelmente,

algum conhecimento de cálculo (mesmo que seja de cabeça) “resolve” sua necessidade de

aprendizado “escolar”.

No entanto, nessa multiplicidade de perfis profissionais que surgem no setor, nenhuma

quantificação se apresenta, possibilitando aquilatar o tamanho da classe-que-vive-do-trabalho

desescolarizada/não-alfabetizada ou subescolarizada, nem oferecendo dados de diagnóstico

que permitam visualizar potenciais demandas, tanto de comerciários, quanto de prestadores de

serviços, quanto de dependentes, ou ainda alguma projeção dos usuários externos que, pela

atuação histórica, acabam envolvidos com programas da entidade. As intenções declaradas de

compromisso com os comerciários de mais baixa renda deveriam coincidir com as maiores

demandas de escolarização, mas não se apóiam em quaisquer dados que justifiquem uma

proposta de assistência social na área, nem tampouco que permitam verificar o equilíbrio

entre a oferta e a demanda potencial.

Ainda quanto à política de EJA do SESC, a compreensão explicitada na Proposta

Pedagógica restringe-se à idéia de escolarização, parte do campo que conforma a área. Os

órgãos públicos de educação também fazem este recorte, regra geral por assumirem, ao pé da

letra, o texto constitucional de direito ao ensino fundamental para todos, independente da

idade — o que na modalidade de EJA acaba por definir apenas a vertente da escolarização

Page 350: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

348

como constituinte do dever de oferta do Estado — deixando de lado a vertente da educação

continuada, indispensável à contemporaneidade. Como entidade de prestação de assistência

social, no entanto, o SESC não alarga em amplitude a formulação do campo, principalmente

se apoiada em diagnósticos que talvez revelassem não apenas as exigências de escolarização

dos trabalhadores do comércio, mas também as de educação continuada, pela diversidade e

rotatividade dos/nos postos de trabalho; pela variedade e complexidade das atividades ligadas

ao comércio, exigindo permanente atualização e ampliação de conhecimentos, para

acompanhar os largos passos que a chamada sociedade do conhecimento, da informação e de

consumo dá, no tocante às estratégias, técnicas, tecnologias, que sustentam os serviços desse

setor.

Apontando para uma concepção atualizada, mantém, entretanto, nas atividades

desenvolvidas pelos Departamentos Regionais, a terminologia de Cursos Supletivos de

Alfabetização, conceito abolido do texto legal em referência a cursos, como também

amplamente discutido pelo Parecer CNE nº. 11/2000. Manter a designação supletivo é assumir

a concepção compensatória que cabia no âmbito da Lei nº. 5692/71, de que à ação com jovens

e adultos cabe a função de repor o tempo perdido, resgatar a escolaridade não obtida na época

própria. Também ao admitir que o entendimento da possível aceleração de estudos para

alunos com atraso escolar (cf. Art. 24, LDBEN nº. 9394/96) constitui um princípio, que leva à

adoção de organizações modulares e não-seriadas, pensa-se de modo restrito a intenção do

legislador, explicitada no Parecer CNE nº. 11/2000.

Este Parecer recoloca novas funções, adequadas ao sentido do direito de todos à

educação e aos tempos hodiernos em que se oferta a EJA, abandonando as anteriores vigentes

pela Lei nº. 5692/1971 e enunciadas pelo Parecer CFE nº. 699/72. O Conselheiro Jamil Cury,

autor do Parecer CNE nº. 11/2000 não deixa dúvidas quando rejeita o sentido de supletivo,

por compreendê-lo inadequado para possibilitar o resgate do direito a que fazem jus todos os

cidadãos não-escolarizados quando crianças.

Uma segunda questão a considerar, no âmbito das políticas da entidade, diz respeito à

pertinência de manter ofertas isoladas de cursos de alfabetização, etapa primeira da

escolarização, é fato, mas insuficiente para dar conta do direito ao ensino fundamental.

99..11..22 CCoonncceeppççõõeess ddee EEJJAA eemmeerrggeenntteess nnaa pprrooppoossttaa ppeeddaaggóóggiiccaa

Mesmo sem a centralidade da proposta colocada na condição de sujeito trabalhador,

busco compreender, neste tópico, as concepções de educação, de EJA, de ensino fundamental,

Page 351: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

349

de currículo, de formação continuada enunciadas, com base principalmente nos princípios que

fundamentam a Proposta Pedagógica, apreendendo os modos como a EJA vai-se constituindo

na instituição, em relação aos demais programas/projetos da mesma área.

Cinco princípios são enunciados como sustentáculos da Proposta de atuação no campo

da EJA: o diálogo como base para a construção do conhecimento; a participação e a

construção da cidadania; a diversidade cultural e a compreensão da unidade na pluralidade; a

abordagem interdisciplinar; os saberes e a construção de seus processos.

Alicerçando alguns desses princípios nas elaborações teóricas de Paulo Freire, o

documento traz, no entanto, alguns “conceitos” que me despertam curiosidade, por

constituírem, para mim, novas enunciações. Como não há referência a autores, pressuponho

serem eles de formulação da equipe envolvida com a produção do documento. Por exemplo, o

que significa uma diversificação de compreensões sobre participação (resignada, ativa,

provocada, plena) (SESC, 2000a, p. 17-18), se estes “conceitos” não são suficientemente

explorados, nem trazem as bases por meio das quais as constatações que lhes conformam

passam a assumir “caráter de verdade”?

Quando se explicita o princípio de construção de saberes (SESC, 2000a, p. 21),

invoca-se a idéia de que “há duas maneiras de reprodução dos processos de trabalho” onde os

saberes se produzem, baseadas em “duas formas distintas de saber-fazer: os incorporados” e

algoritmos. Para incorporados, diz-se que são o resultado da aprendizagem pessoal, realizada

pela experiência, indissociáveis de indivíduos e de grupos, que sabem realizar as tarefas

inerentes ao trabalho, mas não sabem como chegaram a sabê-las. Segundo o texto, é pela

aprendizagem que se dá o saber-fazer incorporado. “A grande maioria dos saberes-fazer dos

alunos jovens e adultos é construída por esses processos, que se referem à incorporação de

habilidade técnica adquirida pela experiência, onde método e conteúdo são inteiramente

indissociáveis” (SESC, 2000a, p. 21), em oposição ao modelo escolar — o algoritmo —

forma de conduzir o processo de ensino-aprendizagem com que se confrontam na escola. Não

me basta a idéia de oposição para discutir o que consigo ler para além dessa enunciação. Em

jogo, percebo a fragilidade de assumir o saber de experiência como um saber possível, a partir

do qual se consolidam processos de ampliação de novas aprendizagens. Não se estaria,

portanto, restringindo a experiência a um lugar menor, já que se afirma que esta apenas

oferece possibilidade de produzir saber por meio da habilidade técnica? Busco em Larrosa

(2002, p. 21) o auxílio para essa compreensão, quando retoma a noção de experiência de

forma magistral. Bebo da fonte, na mão em concha, na qual recolho, como água, idéias

Page 352: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

350

indispensáveis para pensar o “saber de experiência feito”, no dizer de Paulo Freire, que

precisa ter lugar central na educação de jovens e adultos. No caso do SESC, cujo público de

EJA é o trabalhador essencialmente formado no trabalho, lugar onde aprende a ser

trabalhador, onde professa seus sentidos de mundo e produz os conhecimentos que lhe

permitem viver essa condição, que sentido tem a palavra trabalhar, como experiência, essa

acontecência que não recolhe de outrem, mas que lhe passa, mudando a si mesmo e o próprio

trabalho, e, por ela arrogando-se a interferir no projeto pedagógico? Compreender o sentido

da experiência parece fundamento indispensável à busca que empreendo:

A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça. [...] Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara. (LARROSA, 2002, p. 21).

E o autor segue, explicando como pensa a educação a partir do par experiência/sentido

e, para isso, busca certo significado para estas duas palavras em distintos contextos,

mostrando como a experiência é cada vez mais rara, apesar de nos passarem tantas coisas.

Afirma Larrosa (2002, p. 22) que um dos óbices à experiência é o excesso de informação, o

que considera quase uma antiexperiência: “[...] está melhor informado, porém com essa

obsessão pela informação e pelo saber (mas saber não no sentido de ‘sabedoria’, mas no

sentido de ‘estar informado’) o que consegue é que nada lhe aconteça”, alertando ainda para o

risco de tomar sociedade da informação como sinônimo de sociedade do conhecimento. Um

segundo óbice à experiência, para o autor, é o excesso de opinião: “[...] a opinião, como a

informação, se converteu em um imperativo. Em nossa arrogância, passamos a vida opinando

sobre qualquer coisa sobre que nos sentimos informados”, e essa obsessão também anularia as

possibilidades de experiência. A terceira grande adversária da experiência é a falta de tempo

(LARROSA, 2002, p. 23):

Tudo o que se passa, passa demasiadamente depressa, cada vez mais depressa. [...] se reduz o estímulo fugaz e instantâneo, imediatamente substituído por outro estímulo ou por outra excitação igualmente fugaz e efêmera. [...] a velocidade e o que ela provoca [...] são também inimigas mortais da experiência.

Chegando à relação de suas reflexões sobre a experiência com a questão educacional,

nesse contexto de tudo “que não nos acontece”, Larrosa (2002, p. 23) afirma estar convencido

de que “os aparatos educacionais também funcionam cada vez mais no sentido de tornar

impossível que alguma coisa nos aconteça”, tanto pelo tempo maior que estamos na escola,

Page 353: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

351

mas cada vez com menos tempo; quanto porque os pacotes curriculares são numerosos e cada

vez demandam mais tempo, fazendo com que nada nos aconteça, pela aceleração e quantidade

de conteúdos a que somos submetidos.

Por fim, relaciona a perda da experiência ao excesso de trabalho, alertando que se

confunde experiência com trabalho, opondo falsamente o saber dos livros, como teoria, ao

saber da prática, do fazer, esse sim, experiência, obtida pelo trabalho. (LARROSA, 2002, p.

23-24). Paradoxalmente, o autor ao concluir que o trabalho é também inimigo mortal da

experiência, traz de volta a necessidade de repensar a possibilidade de que algo nos aconteça.

Quando se propõe a valorização dos saberes produzidos pelos alunos de EJA (a célebre

questão “partir da realidade do aluno”), não se acaba admitindo que há duas (ou pelo menos

duas) “qualidades” de saber em jogo: uma que é fruto da experiência — como “coisa” menor

que não é possível negar, mas esvaziada de sentido; outra, acadêmica, constituída pelo saber

dos que sabem, porque aprenderam escolarmente o que pensam ser a “verdade” do saber.

Alerto para o risco de, ao tentar negar a oposição entre esses dois “tipos” de saber,

acabar-se negando a negação, oferecendo reforço, em vez de questionar, à visão da ciência

moderna que trabalha ainda hoje com essas falsas oposições. A possibilidade de fazer dialogar

esses saberes, sem o que a experiência não acontece, talvez exija a busca de novos

paradigmas, como o de noção de conhecimento em rede (ALVES, 2000; OLIVEIRA, 2001;

PAIVA, 2002), que ajuda a pensar os conteúdos e os modos de ensinaraprender que desafiam

a intervenção pedagógica dos educadores, para além do saber de um sujeito, porque mediado

e produzido, coletivamente, na relação de poder que esse saber/saberes estabelece(m) nos

diferentes grupos sociais. Cuidar, portanto, para que o conhecimento não seja mediado por um

discurso pedagógico (CHAUÍ, 1990) encobridor da real experiência pedagógica, ou seja,

deixando de fora, a verdadeira experiência, que não é só, como afirma Larrosa (2002, p. 21),

uma questão terminológica, mas práxis reflexiva ou experiência dotada de sentido, mais do

que simplesmente palavra. O saber da experiência se dá na relação entre o conhecimento e a

vida humana, a experiência é uma espécie de mediação entre ambos, e esse saber (de

experiência feito, diria Paulo Freire), não pode se divorciar, nem existir isolado do sujeito que

o encarna.

Regina, integrante da equipe do SESC/DN, respondendo ao questionário assim se

refere à concepção de EJA da entidade, assentando-a justamente no respeito e valorização da

experiência: “educação voltada para a formação de sujeitos, respeitando e valorizando suas

experiências (grifo meu) de vida, através do diálogo constante, com a preocupação de

Page 354: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

352

trabalhar os conteúdos de forma significativa, em que possam fazer uso desses conhecimentos

em suas vidas cotidianas”. A valorização da experiência está posta, embora pareça que, apesar

de valorizá-la, a Proposta Pedagógica está fora da experiência dos sujeitos, dada pelos

conteúdos a serem trabalhados.

Tomar alguns princípios como fundamentos de uma proposta pedagógica requer não

apenas coerência entre eles, o que expressam, como se expressam, em si mesmos, mas

também de que modo servem para manter inalterados os modelos de percurso — travessia e

perigo, portanto, pela exigência da experiência — que de há muito são oferecidos aos jovens e

adultos, e que não rompem, efetivamente, com as exclusões, as evasões/expulsões (como

preferia Paulo Freire), nem com padrões curriculares produzidos a priori, em que os sujeitos

da experiência — alunos e professores — não estão com eles envolvidos. As concepções

impregnadas, subjacentemente, dos modelos formais de escola, com pequenas alterações

(ciclos, etapas, fases), mantêm a fragmentação, a compartimentalização disciplinar que, se

pondo como algo inquestionável, não possibilita transformar o modo de “ver/compreender” o

fenômeno, mas tenta agora, pela chamada interdisciplinaridade, juntar o que se mantém

separado pelo modelo disciplinar.

O uso da expressão ensino supletivo (mais uma vez as palavras...) e o sentido a ela

atribuído, remetem-me à reflexão de que seu uso, durante muito tempo, ainda justifica e

deflagra alguns equívocos impensados, que surgem quase espontaneamente na escrita/fala,

sem me possibilitar perceber em que medida o equívoco aparece na escrita apenas pelo

assumir de uma concepção não-internalizada, ou se aparece também confirmando modos de

pensar e de definir política e pedagogicamente as ações na área.

Por sua vez, o modo de conceber a formação de professores traz positivas surpresas,

pelo resgate do valor da formação continuada, apoiado em discussões e entendimentos de

como esse professor tem sido formado e no para que se forma o educador que atua na EJA. O

professor visto como jovem e adulto em processo de aprendizagem, no que Hamburgo

considerou uma segunda vertente da EJA, a educação continuada, não se desoculta,

entretanto, mantendo encoberta a possível participação desses profissionais como sujeitos da

experiência, portanto, necessariamente co-autores dos processos de produção das propostas

que os formam. Pelo fato de serem eles profissionais de carga horária de trabalho

integralmente dedicada ao SESC, parcialmente apreendida por processos de formação, essa

concepção, soterrada, precisaria aflorar, consolidando um compromisso com os trabalhadores

professores na vertente da educação continuada, como processo de formação profissional.

Page 355: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

353

Do mesmo modo que a ausência da demanda potencial de trabalhadores do comércio é

sentida, também não se dispõem de informações sobre o tamanho da rede SESC e de quantos

profissionais atuam na EJA, em que áreas, com que formação inicial etc. O papel de destaque

para eles reservado, de professor pesquisador, implica ser pensado não apenas para um mais

aprofundado conhecimento sobre suas práticas, mas também como formulador, por meio de

processos investigativos, de novas propostas, novos projetos, novas indicações políticas.

Um ponto que tem sido bastante questionado na EJA, e de muita divergência,

principalmente nas secretarias municipais de educação, pelos múltiplos entendimentos que

gera, diz respeito à carga horária destinada aos projetos. Aqui há sempre uma complexa rede

de sentidos, que associam carga horária diária contratada para o professor e número de dias

letivos anuais à exigência de carga horária cumprida pelos alunos nos projetos de EJA,

abortando as definições legais; as possibilidades reais de tempo dos alunos trabalhadores; a

condição de retorno aos estudos e exigência de disciplina intelectual para seguir estudando; a

flexibilidade do currículo da EJA; à entrada e saída a qualquer tempo, ditada pelo ritmo das

aprendizagens. Ou seja, o tempo previsto para o projeto passa a ser o tempo do aluno,

ignorando-se ser este uma referência, um indicativo, que só funciona como tal, consideradas

todas essas questões, de suma importância quando se trata de alunos trabalhadores na EJA. O

argumento do tempo legal, de dias letivos, de carga horária anual diz, pois, respeito à

organização dos cursos, mas nunca à experiência do educando, esta sim, a referência para o

que lhe acontece, o que lhe passa, durante o tempo de sua volta à escola. No caso do SESC

não parece ser muito diferente, estabelecidos que estão os prazos de cada etapa/ciclo, embora

se admita a entrada e saída a qualquer tempo, mas com metas e marcos de chegada definidos

para garantir a continuidade, necessariamente em outro nível de atendimento.

99..22 AA PPRROOPPOOSSTTAA PPEEDDAAGGÓÓGGIICCAA DDOO PPRROOJJEETTOO SSEESSCC LLEERR —— AAÇÇÃÃOO//CCOONNCCEEPPÇÇÃÃOO DDEE

AALLFFAABBEETTIIZZAAÇÇÃÃOO

A Proposta Pedagógica do Projeto SESC LER (SESC, 2000b), formulada pelo

Departamento Nacional com a assessoria de Ação Educativa – Assessoria, Pesquisa,

Informação, do mesmo modo que o documento anterior datado de 1999, só é publicada em

setembro de 2000. Em maio desse mesmo ano era aprovado o Parecer CNE nº. 11/2000, que

estabelece as Diretrizes Curriculares para a EJA. Essas Diretrizes, como referência para

projetos de escolarização — que a Proposta Pedagógica configura —, não foram, no entanto,

incorporadas como tal nessa Proposta, mesmo com um intervalo de tempo que teria

Page 356: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

354

possibilitado uma revisão última, para ajustá-la e atualizá-la no tempo presente de sua

formulação. O mérito do referido parecer está, justamente, em não criar parâmetros, que na

prática constituem “o currículo” da escola de ensino fundamental e de ensino médio; mas em

apontar discussões de fundo da área da EJA que não podem ser minimizadas, por constituírem

a essência que contribuirá para estabelecer, em definitivo, a ação político-pedagógica do

direito, indo buscar conceitualmente compreensões que alteram campos semânticos na área,

como por exemplo a idéia de supletivo. Anexo a este documento, o folheto SESC LER:

educação por inteiro (SESC, 2000c) apresenta outras informações não constantes, em muitos

casos, da Proposta Pedagógica. Assim, tomarei como subsídio o documento principal em

diálogo com este folheto, pelo fato de me oferecer, por vezes, reforço e/ou informações a

questões não esclarecidas pelo primeiro.

A primeira consideração a fazer neste item diz respeito ao nome de Projeto

Pedagógico SESC Ler, que induz à compreensão de que se trata de um programa de leitura, o

que consiste em equívoco e frustra expectativas que não se confirmam durante a leitura do

documento. Como segunda consideração, destaco o risco de o projeto SESC Ler constituir

uma oferta descolada da Proposta Pedagógica que pensa o ensino fundamental em cinco

ciclos. Em sendo o direito constitucional preceituado para este nível de ensino, e tendo o

SESC assumido sua disposição de não apenas contribuir, mas fazer o chamamento de outras

instituições para o esforço de atuar na área (SESC, 2000a, p. 7), espera-se coerência quanto

aos projetos que vão sendo implantados.

Atuar apenas em nível de alfabetização e fazê-lo em nível de todo o ensino

fundamental são desafios imensos, tanto pela abrangência de cada um deles, diante da

demanda potencial, quanto pela complexidade que cada etapa/nível implica, no horizonte da

alfabetização e de uma proposta adequada a jovens e adultos, com equivalência ao ensino

fundamental. Diante da arrojada idéia de pensar centros educacionais voltados ao atendimento

integral dos educandos, ousaria pensar que o tamanho do desafio precisa ser ampliado.

Explico: também no projeto de alfabetização, não há dados referentes ao público do SESC na

região, nem tampouco dados de escolarização, relativos ao Censo Educacional do INEP. Há

apenas dados Brasil de escolarização (IBGE 1996), sem referências diretas aos trabalhadores

que integram o conjunto dos setores vinculados ao comércio e serviços, que possibilitem

aquilatar o tamanho do problema na região, estado por estado, exigência essa para assumir e

dar visibilidade ao compromisso social da instituição de contribuir para a redução do

analfabetismo entre os trabalhadores.

Page 357: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

355

Devo destacar aqui também, do ponto de vista metodológico, o limite já apontado

quando da discussão do documento Proposta Pedagógica da EJA — se se afastam as

proposições de suas práticas, por não ter sido possível observar como as formulações

expressas nesse documento se realizam nos centros educacionais, em distintos pontos do país.

Mas, nesse caso, especialmente, minha experiência aconteceu, segundo Larrosa, de uma

forma diferente da habitual nos espaços próprios do SESC, porém em boa conta para auxiliar

na compreensão que estive buscando.

Buscando as origens desse projeto, Maria, a segunda respondente ao questionário, me

informa que o SESC tinha o objetivo original de “oferecer um projeto de alfabetização de

jovens e adultos no interior da Região Norte que depois se expandiu para outras regiões, como

uma opção da direção do SESC [...] por trás das nossas ações está a idéia de educação para

todos como um direito. [...] Direito à educação de qualidade com garantia das aprendizagens

básicas, necessárias à atuação social”. Diante dos “mais baixos índices de alfabetização do

país, a Região Amazônica foi escolhida para o lançamento do SESC LER, um projeto criado

em 1999 para transformar a escola em pólo irradiador de educação e cultura para a sua

comunidade e região”. Esta escolha pode estar situada nas dificuldades locais de acesso, e

talvez no desejo de experimentar um modelo de atendimento em centros próprios, como se

verá adiante, mas que não pode ser creditada, sem dúvida, à concentração de comerciários,

nem de empresários do setor que tenham interesse específico em negócios na região. Ao

escolher o Norte do país como área prioritária (e aí não se tem claro o porquê da escolha),

com imediata ampliação para o Nordeste, confirma-se a atenção multicultural destacada no

texto aos grupos negros, brancos, indígenas, mulheres e dos efeitos que ações educativas com

mulheres determinam na vida dos filhos, por exemplo. A informação sobre a escolha não foi

possível obter, e ela ora se confirma, como uma disposição política com alcance para além

dos interesses estratégicos da entidade, ora se afasta, pelos desdobramentos que apresentarei

sobre a parceria com o Brasil Alfabetizado.

A informação de Maria é complementada por Regina, sem que nenhuma das duas

esclareça este ponto. Regina diz estar o projeto:

[...] voltado especificamente para o oferecimento da alfabetização de jovens e adultos em municípios dos interiores do Brasil com os maiores índices de analfabetismo, mas foi analisado que não era suficiente oferecer somente a alfabetização, pois a necessidade da continuidade é bastante relevante para a elevação dos níveis de conhecimento dos alunos. Segundo dados estatísticos, foi verificado que quando não há essa continuidade os alunos acabam abandonando seus estudos e voltando a condição de analfabetos.

Page 358: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

356

Essa respondente informa, ainda, que o “direito à EJA passa pela possibilidade de

acesso e permanência dos alunos, através do oferecimento por escolas com essa modalidade

de ensino da educação básica, respeitando suas características e especificidades”.

De toda forma, discutir, para melhor compreender, o SESC Ler, exige levar em conta a

Proposta Pedagógica de EJA, no entendimento de que, sendo o SESC Ler a expressão do

primeiro ciclo do ensino fundamental para jovens e adultos, deva estar referenciado no marco

daquela Proposta. Como parte integrante desta, observo que:

A proposta para o Ensino Fundamental estrutura-se em cinco ciclos contínuos:

o primeiro, necessariamente correspondente à alfabetização, voltada para alunos que não dominam a leitura e a escrita ou, ainda, que tenham insegurança e dificuldade na leitura e compreensão de textos, símbolos e operações matemáticas básicas. Neste ciclo caberá implantar a Proposta Pedagógica do Projeto SESC Ler. A duração prevista é de até um ano, sendo que a permanência ou aceleração dependerá do ritmo de cada aluno.

No folheto, encontro a informação de que há “Centros Educacionais SESC Ler, um

novo conceito de educação e cidadania”, como informação sobre a expansão do projeto para

além da Região Norte, e outras informações genéricas sobre as ofertas contidas na proposta:

Ampliando sua ação para o Nordeste [...] através de arquitetura e projeto pedagógico inovadores [...].

[...] Sua motivação inicial, a alfabetização de jovens e adultos, é apenas o primeiro passo para uma educação integral com a construção da cidadania, utilizando salas de aula, sala de leitura e telessala para atender às necessidades de educação e cultura de cada comunidade.

[...] Desde 1998, o SESC LER contribui para a formação de educadores das redes pública e privada das comunidades onde atua. Utilizando o suporte do acervo da sala de leitura e de vídeos, realiza seminários e cursos para professores e supervisores.

[...] À medida que estende sua atuação, o SESC Ler beneficia mais crianças com o Projeto “Habilidades de Estudo” em que alunos de 7 a 14 anos das escolas da região freqüentam o Centro Educacional no horário inverso ao seu curso.

A ação alfabetizadora pode-se dizer, desencadeia um processo maior do que ela,

chamado de projeto SESC Ler, mas que inclui a instalação de centros educacionais, com

dispositivos e equipamentos para o desenvolvimento de ações que o SESC já oferece nas

áreas de cultura, lazer e saúde. Entre elas, de leitura, de formação de professores, de educação

artística, esportes, atendendo, além de jovens e adultos, também a crianças e adolescentes, em

atividades que se associam à ação formal da escola. Para oferecer essas atividades, os centros

educacionais têm três salas de aula; uma sala de leitura equipada com cerca de 300 títulos

Page 359: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

357

técnicos e literários, televisão, aparelhos de som e videocassete; oferece lanche; um campo de

futebol; em alguns há uma sala polivalente. Para jovens e adultos, o projeto SESC Ler não tem

a pretensão de solucionar “isoladamente o problema do analfabetismo e do déficit educacional

da sociedade brasileira; entretanto, contribuirá diretamente para minimizá-la, podendo ainda

servir como referência nacional, um exemplo que anime outras instituições a atuar no mesmo

sentido” SESC, 2000b, p. 7). Funcionando em horário integral, os centros educacionais dão

acesso a um público variado de diversas faixas etárias, a salas de aula, como também a salas

de leitura, com acervo diverso, além de outros espaços próprios para atividades esportivas,

culturais e de atendimento à saúde.

Figura 1: Centro Educacional In: Proposta Pedagógica do SESC Ler, 2000, p. 9.

Page 360: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

358

Pólos irradiadores de cultura e ponto de encontro das comunidades, os Centros Educacionais do SESC LER

estão em 69 municípios de 17 estados. Criado em 1999, o projeto parte da alfabetização de jovens e adultos para

assumir um novo conceito em educação e cidadania. Educação Integral

Os Centros Educacionais funcionam em construções adaptadas às características de cada região. Cada Centro tem três salas de aula, campo de esporte e sala de leitura

contendo um acervo diversificado com obras literárias e livros técnicos necessários à formação continuada dos

professores, e equipada com televisão, antena parabólica e videocassete.

O projeto escolariza maiores de 15 anos e abriga a atividade HABILIDADES DE ESTUDO, que atende

crianças matriculadas no Ensino Fundamental. Por meio de seminários e cursos de atualização contribui também

para a formação continuada dos professores da rede pública e privada.

Na área da Saúde, o SESC LER conta com o apoio do projeto OdontoSESC que promove tratamento

odontológico e ações educativas para prevenção. As deficiências visuais que afetam freqüentemente o

desempenho escolar são acompanhadas pelo projeto VER PARA APRENDER. Todos passam por exames de

vista e, quando necessário, recebem óculos para correção da deficiência visual. Os Centros Educacionais

difundem a cultura e integração da comunidade, realizando torneios e gincanas, festivais de música,

mostras de filmes e artes plásticas, em parceria com o projeto ArteSESC.

O SESC LER representa por isto, um novo conceito de educação por inteiro!

Figura 2: Arquitetura do SESC Ler e texto página www.sesc.com.br . Acesso em 31 maio 2005.

Nas figuras anteriores, pode-se observar o projeto arquitetônico do SESC Ler, e o

texto que expressa a finalidade de sua concepção. Posso inferir o extremo cuidado dessa

oferta para as regiões mais desfavorecidas do país, o que leva a executar uma obra com um

local adequado — os centros educacionais — para que o atendimento educativo e

sociocultural seja feito com respeito, em espaço dignamente acolhedor do usuário.

Há, entretanto, ambigüidade na nomeação (novamente as palavras...) entre o projeto

arquitetônico — físico — e o projeto, ambos com o mesmo nome, o que implica uma visão

restrita do espaço educativo — e dos ambientes de aprendizagem —, possibilitados pelas

condições físicas para as quais a arquitetura e suas funções foram projetadas.

Maria informa que o projeto “sempre inicia nos municípios com uma turma (de

jovens e adultos) utilizando um espaço cedido pela prefeitura ou outra instituição

(associação profissional, de moradores, igrejas), enquanto o centro educacional é

construído. Regina alerta: presente na atualidade “em 18 Estados e no Distrito Federal,

totalizando 71 municípios dos interiores do Brasil (informação de jun. 2005), seu (SESC)

principal objetivo é de transformar os centros educacionais em pólos irradiadores e

catalisadores de educação e cultura para a comunidade onde está inserido e região”. Diz,

ainda, que em alguns municípios é possível realizar essa integração, mas que tudo depende

da política educacional promovida pela prefeitura, havendo, inclusive, em determinados

municípios, parceria com as secretarias municipais de educação. Nesses municípios, há

encaminhamento de alunos das escolas da rede, quando não há vagas suficientes, para o

Page 361: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

359

centro educacional, além de este encaminhar alunos concluintes do 2º ciclo do ensino

fundamental para outros níveis mais avançados nas escolas da rede. Também quando

promovem encontros de formação continuada, costumam convidar os profissionais da rede

para participarem e vice-versa. A importância dessa estratégia demonstra como no campo

as redes de ação e de ofertas de atendimento vão-se fazendo, mesmo quando não há

enunciações claras quanto a esse propósito, nem de uma nem de outra parte. No caso do

SESC, a informação que obtenho é a de que a negociação com o poder público implica,

inclusive, a cessão do terreno onde o centro educacional será construído. A exigência é de

que este seja em localidades afastadas da sede dos municípios — muitas vezes, áreas de

ribeirinhos —, nas quais haja carência de escolas e de atividades de cultura e lazer, o que o

centro objetiva responder. No entanto, a questão em jogo é de que forma o poder público

municipal inclui o centro e seus projetos no conjunto das ações educacionais, coordenando,

assim, de forma integrada e com o concurso das entidades, a política mais ampla.

Informam-me as duas respondentes que nesses centros há apoio de supervisão

pedagógica, realizada por uma orientadora pedagógica com carga horária semanal de 40h;

que a supervisão é feita também pela coordenadora estadual, em visitas mensais e pelas

coordenadoras nacionais que realizam visitas anuais. Também os registros diários escritos

pelas professoras — parte integrante da metodologia de trabalho do projeto — são

acompanhados, servindo de base para a formação continuada.

Apesar de um elemento inovador no projeto estar posto na existência de salas de

leitura, em apoio às atividades pedagógicas, do mesmo modo que esporte, lazer, atividades

culturais, a Proposta pedagógica do projeto não faz alusão a como se integram ao

currículo da modalidade EJA. Por exemplo, as salas de leitura, em nenhum momento

ocupam o centro da cena em que se pretende alfabetizar e fazer ler, o que parecia ser a

origem do próprio nome do projeto.

Entendo que às vezes essas ocorrências acontecem pelo fato de as práticas

precederem as propostas, o que, se por um lado confere a elas um senso de realidade

maior, porque ancorado nas vivências, por outro pode acabar falhando no aspecto da

clareza conceitual quanto ao que cada um significa. Assim, tanto se nomeia por SESC Ler

um projeto de ação, quanto a estrutura física em que é abrigado (Centro Educacional do

SESC Ler); tanto se trata no âmbito da EJA um projeto que se define por ter estrutura física

para um público determinado, mas já acolhendo nesse mesmo espaço públicos

Page 362: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

360

adolescentes e infantis, agregados por outros projetos que ocorrem, por direito, na mesma

ambiência, produzida para aprendizagens as mais variadas, intergeracionais.

Indagadas sobre como o projeto é negociado com os Departamentos Regionais do

SESC, Regina informa que a “proposta pedagógica norteia todo o trabalho pedagógico das

equipes. Essa proposta serve de referência para que as equipes locais possam elaborar suas

próprias propostas, com base nas suas realidades locais e necessidades”.

Diante de uma proposta pedagógica de alfabetização que integra um ciclo da

Proposta Pedagógica de EJA para o ensino fundamental, de modo a fazer cumprir o direito

constitucional, assegurando o percurso desde a alfabetização até sua terminalidade no nível

de ensino fundamental, nem sempre esse aspecto fica suficientemente visível, tal é sua

força como ação alfabetizadora, cuja existência determina a implantação de um centro

educacional próprio para abrigá-la. Isto acaba por lhe conferir vida própria, como um ciclo

quase desvinculado do todo (o ensino fundamental), e concebido isoladamente (e isso

também se confirma quando o item “certificação” anuncia uma certa terminalidade,

impossível de ser oferecida só para a alfabetização, por esta não constituir nível de ensino a

que a legislação confira reconhecimento para fins de certificação).

Quanto aos princípios que norteiam a proposta e às relações entre eles e princípios

da educação popular, a mesma respondente diz: “Os princípios postos como base são o

diálogo e a participação, entendidos como base para a construção do conhecimento,

respeito aos saberes dos educandos e à diversidade cultural”. E segue, afirmando existir

evidências de

[...] algumas concepções da Educação Popular, quando a entendemos enquanto uma educação derivada da pedagogia proposta por Paulo Freire, na qual um de seus preceitos está na valorização dos conhecimentos que os alunos trazem de suas vivências e experiências. A concepção pedagógica que o Projeto adota tem como pressuposto a relação entre esses saberes dos alunos, considerados informais, com o conhecimento científico.

Maria afirma que esse vínculo, para ela, entre aspectos da educação popular e os

princípios do projeto se estabelecem pela assunção e “valorização dos saberes dos alunos;

o trabalho pedagógico voltado para as questões que afetam a vida dos alunos trabalhadores

e a vida no seu espaço de vivência; o desenvolvimento de metodologias mais adequadas a

esse público; a participação na vida da comunidade e vice versa”. Seguindo a busca

empreendida, surge, nesse escrito, o aluno trabalhador como referência para o projeto,

Page 363: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

361

atentando para a necessidade de metodologias que contemplem a condição de classe-que-

vive-do-trabalho.

99..22..11 FFeerrrraammeennttaass qquuee oorrggaanniizzaamm aass ssiittuuaaççõõeess ddee aapprreennddiizzaaggeemm:: ccoonncceeppççõõeess ddee

aallffaabbeettiizzaaççããoo

Quanto às concepções de alfabetização que fundamentam a Proposta, condizentes

com os estudos e pesquisas atuais sobre os processos de aprendizagem da língua escrita e

da leitura, tenho divergências conceituais com o sentido atribuído ao letramento na

perspectiva adotada por Soares (1998), o que me faz optar pelo sentido que Tfouni (1992)

lhe tem conferido. Assim, entendo que o letramento é produção social, enquanto a

alfabetização é individual, mas produzida a partir da condição de sujeito letrado, porque

vivente em sociedades grafocêntricas, em que tudo se organiza pelo escrito. Esse escrito

organizador atravessa a vida dos sujeitos, tanto leitores quanto não-leitores e não lhes deixa

alternativas à condição de não-leitores para viver em sociedade. Esta, no entanto, é uma

perspectiva teórica que, assumida, não me permite invalidar o outro aporte adotado na

formulação da Proposta. De posse do suporte teórico atribuído ao projeto, busco

compreender como se dá a apropriação dessa concepção teórica, possibilitando enunciar o

que é alfabetização; o significado conferido à participação dos alunos e de seus saberes;

seus perfis, e o lugar da condição de classe-que-vive-do-trabalho no desenvolvimento do

projeto, tanto no documento, quanto nas respostas das duas técnicas ao questionário

proposto.

Regina informa que os alunos que estudam no Projeto SESC Ler são, em sua

maioria, pobres, com renda variando de meio a um salário mínimo; outros sobrevivem com

os projetos assistencialistas do governo federal; predominam mulheres e a faixa etária de

30 a 65 anos prevalece. “São trabalhadores, na maioria homens, à noite, e nas turmas da

tarde temos uma maioria de mulheres e idosos”, escreve Maria.

Para Regina, a metodologia está baseada na “concepção de formação de usuários da

linguagem escrita capazes de utilizá-la para diversos fins”, e pensa que, para que isso

ocorra, é “essencial que os alunos possam entrar em contato com textos reais e com

práticas que demandem a leitura e a escrita significativa desde o início do processo de

aprendizagem”. Destaca a necessidade de “valorização dos conhecimentos dos educandos,

propiciando, desde o início do processo, oportunidades para que mostrem o que já sabem e

Page 364: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

362

aquilo de que precisam ou que desejam saber”. Maria diz: “trabalhamos com textos,

utilizando-os como unidade comunicativa da língua e a partir deles trabalhamos a

decodificação e os usos sociais da escrita”, acrescentando que o projeto, por isso, “tem a

duração de três anos, numa tentativa de consolidar a alfabetização. Utilizamos a coleção

Viver Aprender como subsídio para o planejamento das professoras e todo o acervo da sala

de leitura para oferecer aos alunos, ex-alunos e à comunidade em geral acesso permanente

à leitura”. Do mesmo modo, Regina informa que:

A alfabetização é entendida como um processo amplo e complexo, pois vai além do saber ler e escrever, visto que é entendida como o fazer uso da leitura e da escrita em contextos sociais. [...] a alfabetização não se limita à simples decodificação das letras, mas no ato de ensinar para que serve a linguagem escrita e como podemos usá-la. [...] (para) formar leitores e usuários da escrita e da leitura é necessário que os alfabetizandos tenham a oportunidade de entrar em contato com textos reais e com práticas que demandem a leitura e a escrita significativa desde o início do processo de aprendizagem, por isso nas práticas de sala de aula (acontece) o trabalho com a diversidade textual.

As enunciações dão conta de um processo de alfabetização baseado em textos, para

além da lógica dos chamados “métodos”, embora não se tenha nenhuma evidência de como

operam os professores nos centros educacionais, e com a perspectiva — mais do que

ensinar a ler e a escrever —, de que se formem leitores e usuários da escrita. Mas observa-

se que, mesmo sendo o projeto SESC Ler um primeiro ciclo, parece não estar desvinculado

da continuidade, aposta presente na fala das duas respondentes, cuja origem Maria

esclarece:

[...] inicialmente pensado para durar um ano com a alfabetização inicial. Logo no final deste primeiro ano percebemos que a continuidade era necessária, não havia para onde encaminhar os alunos alfabetizados e a administração do SESC acatou a sugestão de ampliar o projeto para três anos.

Eis, portanto, como a construção do projeto vai-se fazendo na prática, enredando os

saberes ali produzidos para alterar o curso da ação alfabetizadora, dando a ela

conseqüência, o que visa a garantir o processo de formação de leitores. Regina ainda

enfatiza:

[...] combinação de atividades de alfabetização e escolarização (1ª a 4ª série) de jovens e adultos com ações que o SESC já desenvolve nas áreas de cultura, lazer e saúde. A aquisição da leitura e da escrita, na perspectiva do letramento, é um dos principais objetivos do Projeto, por isso a preocupação em possibilitar o acesso a um acervo variado, através

Page 365: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

363

das salas de leitura, integrando-se às atividades promovidas em sala de aula, na perspectiva de promover a relação entre ensino e aprendizagem.

99..22..22 FFeerrrraammeennttaass qquuee oorrggaanniizzaamm aass ssiittuuaaççõõeess ddee aapprreennddiizzaaggeemm:: ccoonncceeppççõõeess ddee

ccuurrrrííccuulloo nnaa aallffaabbeettiizzaaççããoo

Inicio com a fala de Maria: “Currículo é compreendido por nós como o conjunto de

todas as atividades educativas que acontecem nos centros educacionais. Para além da sala

de aula, com os conteúdos, atividades e valores, também as realizações de cultura, saúde

lazer”. Segue informando que “a concepção de currículo está sendo trabalhada junto com a

elaboração e organização dos projetos político-pedagógicos dos centros educacionais que

deverão ser a sistematização do trabalho que já vem sendo realizado, acrescido das

contribuições da comunidade escolar”. Para Regina, o currículo “é compreendido como um

conjunto de valores, conhecimentos, vivências, experiências, ações desenvolvidas pela e na

escola, por isso vai além da listagem de conteúdos programáticos fragmentados”. E afirma,

como a primeira, que é organizado pelo centro educacional com suas respectivas equipes,

mas destaca que tem a referência da Proposta Pedagógica do projeto, além da Proposta

Curricular para o 1º Segmento do Ministério da Educação – MEC. Complementa, dizendo

que “o currículo é organizado a partir das necessidades e interesses dos alunos, através de

temas que serão desenvolvidos e abordados em suas várias dimensões, numa perspectiva

interdisciplinar, buscando-se integrar as áreas de conhecimento”.

A Proposta Pedagógica (SESC, 2000b), no entanto — e diferentemente do que

expressam as técnicas —, não se afastando dos modelos disciplinares de organização da

ciência e dos “conteúdos escolares”, traz ao texto, inclusive, os Parâmetros Curriculares

Nacionais formulados para crianças do mesmo nível de ensino, valendo-se das três

categorias de conteúdos que aquele documento apresenta: conceituais, procedimentais e

atitudinais, todos eles pensados para sujeitos crianças.

As formas organizativas definidas a partir de uma concepção teórica do que deve

ser oferecido ao jovem e adulto, tendo em vista sua experiência, suas necessidades, assim

como os objetivos do curso, são alternativas metodológicas intimamente imbricadas com a

teoria que sustenta a concepção de atendimento para jovens e adultos, de conhecimento, de

homem, de mundo com as quais se trabalha. Não são, simplesmente, estratégias

organizativas, que tomam em conta elementos práticos da realidade, mas devem se

apresentar validando e confirmando as escolhas teóricas. O que a prática do projeto,

Page 366: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

364

entretanto, parece revelar, pela experiência das respondentes, é que esta, em verdade,

assume o comando da concepção curricular, para além da enunciação do documento

orientador, valorizando os conhecimentos, as experiências e a cultura dos alunos e da

comunidade como um todo, e adaptando, também, os horários às necessidades dos alunos

trabalhadores.

Discutindo a questão metodológica, Maria diz:

Não vejo que tenhamos uma metodologia, porque isto me soa como algo mais fechado e obrigatório. Para a organização do trabalho didático defendemos o trabalho com projetos didáticos ou projetos de trabalho, de acordo com alguns autores, ou unidades didáticas. De qualquer forma o que pretendemos é trabalhar as áreas de conhecimento a partir da realidade e da cultura do aluno e de maneira integrada.

Um bom exemplo dessa afirmação, talvez seja a definição dos tempos de cada

ciclo, e que estabeleceu para o de alfabetização um ano (na Proposta Pedagógica

encontramos a expressão “até um ano”, o que certamente admite o movimento de saída de

alunos antes do tempo se esgotar). Este ano está traduzido por 450h, com aulas diárias em

cinco dias por semana de 2h30min, durante 180 dias letivos (p. 19). Indico um

estranhamento: por que 180 dias, se a LDBEN define 200 dias letivos?

Esta idéia é complementada por Maria, que informa ser o calendário letivo variável,

de acordo com a realidade de cada município, levando em conta o clima, colheitas, festas

populares etc. “É certo que temos por ano onze meses de aula e quinze dias de recesso

entre o Natal e o Ano Novo, portanto as férias podem acontecer em qualquer mês do ano

de acordo com a realidade local”. Durante o período letivo os alunos são matriculados a

qualquer momento, sendo avaliado para verificar seu ponto de inserção, segundo os

conhecimentos prévios que domina. Não há, portanto, um período definido para a entrada e

saída dos alunos no processo, o que atende às recomendações legais em relação à

modalidade. Alerta-me, ainda, que “se o aluno precisa ir para a zona rural para trabalhar e

depois volta, a sua vaga está garantida”.

Ainda que haja uma referência formal posta nas habituais concepções de currículo

da escola regular, percebem-se significativos indícios de como a prática vem rompendo

com essas concepções e pondo, no lugar, outros modos de operar as situações de

aprendizagem, fazendo emergir, este sim, o currículo — o currículo praticado

Page 367: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

365

(OLIVEIRA, 2003), repleto de subjetividades, porque feito-refeito pelos que dele

participam.

A avaliação, no interior desse currículo, é realizada por meio de três instrumentos

básicos: ficha com os objetivos do ciclo, portfólio128, e registros escritos pelas professoras.

Destaco o cuidado de valorizar, no tocante ao trabalho do educador, o papel do registro

escrito, como fundamental para a atuação no projeto e para seguir o percurso dos alunos,

em cada ciclo de aprendizagens. Segundo Regina, “Os alunos se convertem em

protagonistas: decidem e comprometem-se com suas escolhas; assumem responsabilidades

e exercem o direito de eleger, organizar, corrigir e avaliar cada uma de suas ações”, o que

sem dúvida implica uma concepção de avaliação para além da enunciada no texto do

projeto.

O que se assegura aos alunos — “certificado” atestando freqüência e

aproveitamento — nesta etapa, é um instrumento poderoso para a auto-estima, porque

apesar de não ter valor legal conclusivo (nesta etapa de ensino não há terminalidade), tem

valor afetivo e subjetivo, não assegurando, porque não tem poder para isso, mas certamente

produzindo um forte estímulo à continuidade de estudos.

99..22..33 CCoonncceeppççõõeess ddee ffoorrmmaaççããoo ccoonnttiinnuuaaddaa ssuubbjjaazzeemm ààss ccoonncceeppççõõeess ddee EEJJAA ee ddee

aallffaabbeettiizzaaççããoo

O projeto concebe a formação continuada de professores como um princípio

fundamental para a qualidade do trabalho pedagógico, entendendo-a como um processo

que deve ser constante e permanente. Para isso, Regina informa que “há, portanto, a

necessidade de municiar o educador de jovens e adultos de instrumentos teóricos e

metodológicos que permitam uma maior compreensão das especificidades do público”, e

possibilitem mais “condições de enfrentar os desafios que se apresentam cotidianamente,

na sua prática pedagógica”. Conclui essa afirmação dizendo: “Percebemos que esse

investimento na formação tem trazido resultados bastante positivos no contexto de sala de

aula, principalmente em relação à concepção do ensinar e do aprender”. Maria destaca que

a “educação popular não tem sido muito trabalhada por nós, no aspecto teórico nas ações

128 Portfólio tem sido usado como designativo de uma pasta-arquivo com trabalhos de cada aluno, que oferecem uma visão, ao longo do tempo do curso, do desempenho e das aprendizagens realizadas. Seu uso tem fundamentado a avaliação dos alfabetizandos em muitos projetos, mesmo quando esses acervos não são dessa forma denominados.

Page 368: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

366

de formação. Não há discussão sobre esse conceito e apenas nas discussões na formação

inicial com as professoras quando estudamos um pouco a história da EJA”.

Informam também que a exigência mínima de formação inicial para a contratação

de professores é o ensino médio (antigo normal), havendo, na maioria dos municípios,

professores com formação superior. O processo seletivo das candidatas — pois

predominantemente o conjunto é formado por mulheres — com vista à contratação é feito

por meio de um primeiro momento de formação envolvendo a apresentação da Proposta

Pedagógica, a concepção pedagógica do trabalho de alfabetização, os referenciais teórico-

metodológicos da EJA que norteiam o desenvolvimento do trabalho de sala de aula, as

áreas de conhecimento, com carga horária de, no mínimo, 24 horas, distribuídas em três

dias.

Os professores possuem uma carga horária de trabalho de 20 horas semanais, sendo

15 horas em sala de aula com os alunos e cinco horas para os momentos de planejamento

coletivo e individual, coordenados pela orientadora pedagógica; a participação em grupos

de estudo que possibilitam a troca/socialização de experiências e a elaboração dos registros

diários. Há ainda ações de formação sob a orientação das coordenadoras estaduais e

nacional. Um dos indicadores do acerto desse processo de formação, segundo Maria, é

observado por meio da “prática e dos relatos das professoras que são mais antigas no

projeto e do sucesso que todas fazem fora do SESC passando em concursos, sendo

convidadas para ministrarem cursos”. Complementarmente, Regina diz que o processo de

formação tem um fundamento essencial: “Ter em mente que sujeitos queremos formar, em

que tipo de educação acreditamos e quais os objetivos que pretendemos alcançar quando

trabalhamos com os conteúdos. O processo de formação deve incentivar a criatividade, o

raciocínio, o desejo de aprender e a responsabilidade com o auto-desenvolvimento e com o

desenvolvimento social”.

99..33 AA EEXXPPEERRIIÊÊNNCCIIAA QQUUEE MMEE AACCOONNTTEECCEE:: SSEESSCC LLEERR EEMM PPAARRCCEERRIIAA CCOOMM OO PPRROOGGRRAAMMAA

BBRRAASSIILL AALLFFAABBEETTIIZZAADDOO NNOO IINNTTEERRIIOORR DDOO PPIIAAUUÍÍ

Minha última discussão nesse capítulo, visando a compreender as formas como a

educação de jovens e adultos — e nela a alfabetização — se concebem como modalidade

de ação político-pedagógica para homens e mulheres interditados ao conhecimento que a

instituição escola tem como atribuição legal, segue, nesse momento, pelo percurso da

Page 369: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

367

minha própria experiência vivenciada com o Projeto de formação de alfabetizadores,

técnicos e supervisores no âmbito do Programa Brasil Alfabetizado, como resposta do

SESC Ler ao chamamento do governo federal às entidades da sociedade civil.

Mobilizados pela invocação, a equipe do SESC decidiu atuar no campo do que

entendiam saber fazer melhor: a formação continuada de alfabetizadores. De posse da

vivência nas regiões pobres e afastadas do Norte e do Nordeste do país, e cientes das

questões que afligiam aquelas regiões, conceberam um modo de apoiar o programa

governamental, executando uma parceria diversa da dos demais parceiros. Em vez de se

aventurarem como executores de grandes metas, com recursos governamentais, definiram

fazer, com recursos próprios, formação de alfabetizadores vinculados a parceiros do

programa federal, para o que buscaram parceria do Laboratório de Políticas Públicas da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro – LPP/UERJ129, que vem desenvolvendo ações e

estudos nesse campo, desde 2002. O parceiro do Programa Brasil Alfabetizado

contemplado com a formação de alfabetizadores oferecida pelo SESC foi a Secretaria de

Educação do Estado do Piauí, que já se vinculara ao MEC/SECAD — coordenador do

Programa em âmbito nacional.

Três etapas conformaram o Projeto:

a) uma primeira de formação dos formadores, todos sedentos de pôr em relação

suas próprias concepções de alfabetização, demandando um pôr-se de acordo

sobre os modos de enfocar a alfabetização e sua continuidade, com base em

teorias de conhecimento mais afinadas com os processos cognitivos dos jovens

e dos adultos, dialogando com um especialista externo; demandando conhecer a

realidade produtora da desigualdade e do analfabetismo no nordeste do país,

assim como as oportunidades produzidas no seio de uma forte cultura regional

que os projetos de intervenção na região do semi-árido, da seca etc., vêm

desencadeando, para além dos clichês; estabelecer relações entre os dados de 129 O Laboratório de Políticas Públicas – LPP acolhe um coletivo interinstitucional formado por profissionais de longa experiência na EJA, em sua maioria, dispersos anteriormente em variadas instituições, como ONGs, universidades, secretarias municipais. A idéia de juntar essas pessoas e passar a compor, com elas, um coletivo de formação, com vistas a responder às demandas na área, oriundas, principalmente, das prefeituras, definiu um modo de atuar, que exige o exercício cotidiano do diálogo, da tolerância para as divergências teóricas, da democracia, pelo fato de se incorporarem, como elementos vivos, as compreensões que cada formador traz dos processos formadores, revendo-os e fazendo-os interagirem a cada projeto, a partir das múltiplas experiências e conhecimentos produzidos pelas práticas. Nesse coletivo, a experiência, no dizer de Larrosa (2002, p. 28), tem mostrado que a prática é sempre singular, o que obriga, portanto, a novas experiências, que produzem diferença, heterogeneidade e pluralidade.

Page 370: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

368

realidade e as condições de trabalho na região no que diz respeito às

possibilidades e limites de um processo alfabetizador; compreender os limites

de atuação de entidades/formadores externos e as dificuldades e esforços das

entidades e poderes locais; imiscuir-se na problemática da exclusão, para além

dos fenômenos educacionais, mas produtora das desigualdades gigantescas que

avançam a cada dia, mais vorazes de pessoas, sob os nossos olhos de não-ver;

b) uma segunda etapa, a da formação propriamente dita de 420 alfabetizadores,

nas regiões — São Raimundo Nonato, São João do Piauí, Uruçuí, Fronteiras —

em que o estado não conseguira ainda atuar, nem com o concurso de outros

parceiros, para atender os sujeitos alfabetizandos cadastrados pelo Programa;

c) a terceira etapa, um trabalho sistemático de formação de um grupo de 60

pessoas, composto pelos técnicos da equipe central da Secretaria de Educação,

pelos supervisores das Gerências Regionais de Educação - GRE (além de

alguns supervisores de campo convidados), e com representantes das entidades

parceiras do governo do estado, na capital Teresina, com carga horária de

120h, sendo 88 presenciais e 32 não-presenciais, justificado por não serem os

profissionais formados — tanto em nível médio, quanto em nível superior —

para a área, desconhecendo e carecendo de princípios, marcos teóricos e

referenciais exigidos para a alfabetização e educação de jovens e adultos. Nessa

etapa, incluíam-se três momentos de seminários, com intervalos entre cada um

deles, em que os supervisores e técnicos desenvolviam seus trabalhos no

campo, com recortes específicos (atividades não-presenciais), postos em

discussão no momento presencial seguinte. Do segundo momento em diante

contou-se com a supervisão a classes, em duas regiões: São Raimundo Nonato e

São João do Piauí, quando se pode ter contato direto com a realidade dos

alfabetizadores e dos alunos na sede das cidades e em distritos fora da sede.

Os relatos dos supervisores, ao longo desse trabalho, demonstraram que, por

exemplo, no que tange às estratégias utilizadas para alfabetizar, alguns alfabetizadores

conseguiram incorporar as orientações dadas no processo de formação e outros não, talvez

pela própria formação que eles tinham, isso não foi possível: continuaram com o “antigo”

método, usando cartilhas, letras recortadas de jornais e revistas, ditados de frase etc.

Alguns resistiam em trabalhar com textos, mas nos últimos meses já estavam mostrando

Page 371: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

369

uma aceitação maior. Apesar dos fundamentos da formação, não se desconstrói a

experiência escolar de cada sujeito em 40h de formação, porque essa experiência está

garantida pelas histórias de passagens pela escola, por muito ou pouco tempo e porque o

imaginário social evoca em cada um o modelo fortemente regulador dessa instituição,

impossibilitando substituí-la por outra, por um estalar de dedos.

Outro aspecto, que trouxe diferencial à ação alfabetizadora, deveu-se ao fato de o

SESC, sob pressão do Secretário de Educação, ter fornecido recursos básicos para que as

classes pudessem funcionar. Como a parceria com o MEC/SECAD não previa recursos

para lampiões, botijões de gás como energia e camisas para os lampiões, material didático

para professores e para alunos, além de livros de literatura adequados a neoleitores, foram

feitas doações pelo SESC, embora problemas de atraso na entrega e de impossibilidade de

transporte para os alfabetizadores impediram, em muitos casos, que chegassem às

localidades de destino. Este item tem sido demarcado como positivo na parceria

estabelecida, em relação ao que foi oferecido pelos demais parceiros da Secretaria Estadual

para desenvolver o Programa Brasil Alfabetizado. Seguramente, este “modelo” definiu

resultados mais favoráveis, tanto processuais, quanto finais. Exigiria ainda uma

compreensão mais ampla, tomando em consideração os resultados das demais regiões

cujos recursos foram diversos destes, para estabelecer comparações.

Muitas instituições locais e nacionais já estavam no Piauí, atuando e desenvolvendo

ações importantes, o que exigia a tomada de decisão, por parte do governo estadual, sobre

como assumir a coordenação política dessa iniciativa tecida com a participação de tantos

parceiros e atores sociais, para dar conseqüência a políticas públicas na área, sem que

perdesse o norte estabelecido — nesse caso, abolir o analfabetismo no estado, em

orquestração gerida pelo poder público.

Diretamente ligado ao papel do parceiro local universidades, outro aspecto a ser

enfrentado dizia respeito ao nível de leitura e escrita dos alfabetizadores, não apenas

necessariamente ligado ao baixo nível de escolaridade. Soluções locais exigem ser

encontradas para definir outra ordem de leitores entre aqueles que alfabetizam. Como

ensinar a ler e a escrever se não se exercitam essas práticas como leitores e como

escritores, usuários competentes da língua? É possível constituir estratégias de trabalho

conjunto com as universidades públicas piauienses?

Page 372: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

370

O relato das supervisoras também atestou que, mesmo tendo sido estruturado um

plano de acompanhamento às salas de aula, muitos fatores interferiram para que o

propósito fosse alcançado: grandes deficiências estruturais, localidades muito distantes,

falta de recursos financeiros para o transporte. Apesar de assumidos pela Secretaria os

limites ao trabalho de acompanhamento pedagógico, não exigindo, em momento nenhum,

respostas dos supervisores além das que fossem capazes de oferecer com as condições

existentes, sabe-se que para qualquer programa de alfabetização o acompanhamento

pedagógico demonstra ser substantivo para a qualidade do processo desenvolvido. Mas,

ainda assim, entram em cena as táticas adotadas para que minimamente se tivessem

informações sobre as classes não visitadas: colhidas nos encontros pedagógicos de

formação continuada, no dia da feira na sede do município, quando as alfabetizadoras

vinham praticar o escambo e vender/comprar o que fosse possível. Mas ainda assim, as que

chegaram às salas de aula, sentiram-se contempladas por poder vivenciar caminhos novos

na prática de supervisão, porque conseguiam perceber a metodologia subjacente às ações

dos alfabetizadores; seu desempenho e dificuldades em sala de aula tentando, junto com

eles, encontrar soluções, planejando atividades que se relacionassem com o nível e a

realidade dos alfabetizandos.

O empenho dos formadores e da equipe local parece ter determinado um diferencial

importante no trabalho, pelo envolvimento e compromisso político assumido por todas as

equipes, em forte cumplicidade na execução do Programa.

Mas, para os que trabalharam — o caso dos supervisores e da equipe da Secretaria

— com diversos parceiros, a proximidade e a identificação com uma proposta mais

conseqüente, fundamentada e adequada, estabeleceu um conflito de ação, pelo fato de cada

entidade parceira trabalhar com uma lógica e atrelar o desenvolvimento das ações a

procedimentos justificadores dessa lógica, quando os profissionais não mais conseguem

compreender, nem atuar na realidade, segundo a ótica com a qual são “cobrados” pelos

parceiros. Nem todos, pelo que se observou, estão convencidos de que outros caminhos são

mais eficientes, mesmo quando os fundamentos teóricos e o avanço do conhecimento

ajudam a essa compreensão. Assim, os que assumem outras explicações sobre os modos de

intervir na realidade, nem sempre conseguem/sentem-se seguros para argumentar e

construir caminhos autônomos e diferenciados, o que exige, para isso, maior investimento

Page 373: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

371

na formação continuada, em subsídio à produção de autorias e de atores sociais

transformadores.

99..33..11 CCoomm oollhhooss ddee aapprreennddiizz eennccoonnttrroo DDiivviinnaa ee ffaaççoo nnoovvaass lleeiittuurraass

Pode-se destacar que o trabalho realizado sob o patrocínio do SESC, por um lado,

apontou numerosas questões referentes aos necessários encaminhamentos do Programa

Brasil Alfabetizado, assim como indicou possibilidades estratégicas de parceria do

Governo Federal com entidades da sociedade civil, para potencializar não apenas a ação

alfabetizadora que estimula e toma como prioridade de governo, como também para

ressignificar a noção de parceria, ainda exigente de novas práticas. Por outro lado, teve um

sabor de aventura, de mergulho na realidade brasileira pelas condições vivenciadas, de

inexperiência de alguns diante de determinadas situações, de inusitadas (re)descobertas

feitas ao longo da viagem. Assim, o espírito de aventura impregnou-se necessariamente ao

trabalho, associando a ele ainda mais fortemente alguns elementos que se têm buscado

junto aos profissionais da educação: a capacidade de demonstrar autonomia e de resolver

situações-problema; de (re)criar planos e planejamentos, sempre que a realidade exigir; de

assumir a condição de cidadão em processo de intervenção na realidade, com escuta atenta,

olhos de aprendiz, e capacidade de sistematização e de produção de novos conhecimentos.

E, também, a indignação provocada à cidadania, pelas fortes e históricas condições

desiguais que tornam muitos de nós com mais direitos do que tantos outros, arrastando

com esta constatação a necessidade de repensar concepções e práticas de democracia,

incansáveis e incontestes defesas ao saber ler e escrever.

Nessa aventura, encontrei Divina, sua maravilhosa figura emblemática de

professora do interior desse país, no Distrito de Saquarema, em Nova Santa Rita.

Page 374: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

372

Mansamente aproximava-se de nós, no trote lento do jegue indiferente à aridez da

paisagem poeira-areia de um tom igual que em nada diferencia o animal da cor-de-tudo.

De longe, o pano listado à cabeça feito de tear e arte, a imagem parecia miragem no

deserto. Meio dama do alto da pose em que vinha, só revelava quem era pelas sandálias de

borracha nos pés empoeirados como os nossos, afundados desde então na terra fofa, pó-de-

arroz inusitado. Sorriso largo, de dentes sem trato, tez e cara bonitas, negra de cor e de sol,

cabelos invernando pelo tempo em mechas brancas. Fizemos festa, cumprimentos, sem que

ela descesse do animal, ali parado, emudecido diante de nossos tantos sorrisos, conversas...

pacientemente. Disse: “Divina”! Não podia ser outra. Era ela mesma assim chegada,

negando o pano da cabeça, vaidosa, para a foto. Professora de todas as crianças do mundão

distante em que Saquarema se afundava, longe, longe, do outro mundo em que vivemos.

Pasta na mão, cadernos das crianças... “Posso ver”? Tudo igual: sílabas, palavras, cópias,

caderno de anotações cuidadoso, cumprindo os ritos das escolas. Materializava-se a

Divina. Magra, ida no tempo duro da vida da gente do semi-árido, cumpria sua sina com

gosto, tal a alegria com que as crianças e adolescentes a pronunciavam. A escola adiante,

despedia-se de mais um dia em que ela vinha, atenta, cuidar dos meninos, ensinar a ler,

fazer escrever. A escola acolá, as casas... onde estão as demais? Poucas ao alcance da vista.

Perdidas na amplidão do espaço beige, da cor do adobe que monta a casa, a escola, o chão,

Page 375: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

373

o jegue. Só Divina sabe que existem, só Divina sabe que querem ler e aprender. Por isso

ensina. Menino, menina, pequeno, grande. E segue, divinamente, em passo e compasso do

trote sem jeito, no lombo duro do jegue que sabe como ninguém o caminho da escola.

Talvez, buscando, como professora de uma classe multisseriada, responder aos desejos

daqueles que nós, que a encontrávamos, intentávamos compreender a sentida ausência: nas

classes de alfabetização destinadas a jovens e a adultos, os primeiros não eram

encontrados, porque optavam por permanecer junto aos pequenos, na classe diurna, uma

vez, mais outra, outra mais... pela absoluta falta de qualquer outra oferta a muitos e muitos

quilômetros dali, ou porque ela, a Divina, acolhedoramente os aproximava?

Os alunos da classe de Marlene, que ocupava o mesmo espaço de Divina, só

apareceram para cumprimentar as visitas: era dia de feira na sede do município e a

professora fora até lá, e aproveitara para uma reunião de formação da qual também

participáramos. Os lugares de viver, as histórias que narraram se reeditavam como um

filme já visto por mim, inúmeras vezes, na longa trajetória — risco e perigo — a que

sempre me aventurara pela educação de jovens e adultos.

Marlene, como tantas outras alfabetizadoras, continuava a luta heróica de cada dia,

no trabalho de alfabetização que fazia em Saquarema, como em tantos outros lugares, a

alegria de todos os alunos que haviam conseguido votar naquele recente 3 de outubro, sem

sujar as mãos. Ler pra quê? Poderia ser a nossa pergunta, diante da ausência, olhando-se

no entorno, de um mundo de escrita, apenas simbolizado pelo desejo dos não-alfabetizados

em colocar o nome, e não mais marcar com o polegar a condição de oprimidos. No

contexto histórico vivenciado, “Colocar o nome na ficha de eleitor, com muita honra, sim

senhor!”

Uma parada para banheiro na estrada, de São João do Piauí a Teresina, surpreende-

me novamente com uma inscrição, marcada no adobe primitivo das casas da região,

exatamente na porta do banheiro masculino — impossível não considerar —

anunciando/confirmando/resumindo o nível de escrita dos que podiam ler e escrever, na

região.

Page 376: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

374

Eis os indícios buscados nas produções textuais dos alfabetizandos, denotando suas

apreensões do código, dos caminhos e processos em curso, e do quanto precisa ainda ser

feito para que dominem, com autonomia, a norma culta. O sentido, claramente enunciado,

fazia a mensagem evidente e compreensível, mas indicava a necessidade de continuidade

para que o processo de aprendizado da leitura e da escrita se consolidasse. Impossível não

fotografar e tomar como exemplo do uso social da escrita, das práticas cotidianas.

Na incursão que o SESC faz por meio dessa parceria, alargando os procedimentos

do fazer do SESC Ler, Regina refere-se ao encaminhamento dos alunos que participaram

das turmas do Programa Brasil Alfabetizado, para os centros educacionais recentemente

construídos nos municípios de São João do Piauí, São Raimundo Nonato, Guaribas e

Acauã, com vistas à continuidade de estudos, pós-alfabetização.

Os resultados desse projeto desde que foi implantado, me diz Maria, “não estão

sistematicamente registrados, mas contamos cerca de 24 mil pessoas escolarizadas pelo

projeto até hoje”, e Regina fala dos “vários depoimentos das pessoas envolvidas com o

projeto que evidenciam resultados bastante promissores”. Quando a primeira, Maria,

afirma que vê “mudanças nas concepções, pelo que a prática vem nos ensinando”, porque

“a prática tem entrado em diálogo com teorias inicialmente usadas como subsídios e num

movimento dinâmico de ampliação e aprofundamento das concepções como, por exemplo,

Page 377: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

375

o aperfeiçoamento do trabalho com projetos e a necessidade de elaboração dos projetos-

político-pedagógicos”, capta-se o jogo, a arte, a conquista, o enredamento necessário entre

sujeitos, saberes, culturas, para que a alfabetização possa acontecer.

A Proposta Pedagógica do SESC Ler, pelo que a entidade significa no cenário em

que se desenham os múltiplos atendimentos à EJA, e participando do conjunto de atores

que têm contribuído para a institucionalização da educação de jovens e adultos no país, é

merecedora de atenção. Considera-se que, seguramente, sua equipe técnica central vem

atuando segundo incorporações que a prática já revelou — impossíveis de serem

conhecidas pela leitura de uma Proposta; ao mesmo tempo em que refletindo sobre pontos

aqui discutidos, e assumindo críticas que a própria equipe técnica e os professores também

produzem cotidianamente, na interação que estabelecem, pelos diálogos possíveis durante

as atividades de acompanhamento e desenvolvimento dos projetos, e das práticas com os

sujeitos jovens e adultos — professores e alunos de todo o país.

Embora as políticas atuais de EJA busquem o concurso da sociedade e de parceiros

da iniciativa privada, o SESC, atuando nesse campo, assume um papel consistente no

cenário do país, pela objetivação de ofertas inovadoras no conjunto das parcerias, com

vistas a colaborar, formando alfabetizadores — a versão dos trabalhadores precarizados da

educação — de formação de alfabetizadores, para o esforço de uma política integrada.

Essa integração, no caso da experiência no Piauí, confirma a construção dessa

política, pela ação de formação continuada para professores ligados a iniciativas das redes

públicas, o que sugere estar o SESC disposto a estabelecer parcerias com administrações

públicas municipais, para além do atendimento aos usuários jovens e adultos, atuando

também como instituição de formação para professores, esses também jovens e adultos em

processos de aprender continuadamente. Este parece ser o diferencial do investimento feito

pelo SESC na formação de alfabetizadores.

A educação de jovens e adultos, nesse corte dos processos alfabetizadores, não tem

a pretensão de dar, sozinha, respostas, ou as ter melhor do que quaisquer gestores de

políticas públicas. Mas não se vê descomprometida com a melhoria da vida, da ética e da

qualidade educacional da população brasileira, cabendo-lhe denunciar a desigualdade e a

injustiça, e anunciar, como Paulo Freire, a possibilidade de transformar, pelo domínio da

palavra e da leitura de mundo por parte de todos os sujeitos de direito, a vida cotidiana de

tanta gente oprimida.

Page 378: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

376

1100.. ““OO LLAATTIIFFÚÚNNDDIIOO DDOO CCOONNHHEECCIIMMEENNTTOO SSEE TTOORRNNOOUU RROOÇÇAA CCOOLLEETTIIVVAA130130””

–– EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE JJOOVVEENNSS EE AADDUULLTTOOSS EE AALLFFAABBEETTIIZZAAÇÇÃÃOO NNOO MMSSTT

Diga-se agora que estas palavras não são novas, já foram ditas na página de trás, ditas em todo o livro do latifúndio, como se haveria de esperar que a resposta fosse diferente, [...] Que os trabalhos de homem são muitos. Já ficaram ditos alguns e outros agora se acrescentam para ilustração geral, que as pessoas da cidade cuidam, em sua ignorância, que tudo é semear e colher, pois muito enganadas vivem se não aprenderem a dizer as palavras todas e a entender o que elas são, ceifar, carregar molhos, gadanhar, debulhar à máquina ou a sangue, malhar o centeio, tapar palheiro, enfardar a palha ou o feno, [...] terrear, empoar e ensacar, o que aqui vai, santo Deus, de palavras, tão bonitas, tão de enriquecer os léxicos, bem-aventurados os que trabalham, [...] (SARAMAGO, 2003, p. 83, 90).

É verdade que depois de derrubadas as cercas do latifúndio, outras se levantarão: as cercas do judiciário, as cercas da polícia (ou das milícias privadas), as cercas dos meios de comunicação de massa... Mas é verdade também que cada vez mais caem cercas e a sociedade é obrigada a olhar e discutir o tamanho das desigualdades, o tamanho da opulência e da miséria, o tamanho da fartura e da fome. (TIERRA, 1995).

O ano de 2004 marcou 20 anos de luta e aprendizado no Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra, acompanhado do setor de educação durante todos esses

anos. Muitas conquistas foram se fazendo, não apenas no atendimento específico aos filhos

dos trabalhadores rurais, como a eles próprios, trabalhadores, mas também em relação à

formação de educadores para as escolas dos acampamentos e assentamentos. O curso superior

Pedagogia da Terra inaugurou uma nova concepção para a formação de pedagogos-

professores e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) foi

arrancado do governo federal de Fernando Henrique Cardoso ao tempo em que os conflitos de

terra e a ausência de agendas para a desapropriação de latifúndios improdutivos causaram

inúmeros embates entre militantes do Movimento, milícias de latifundiários e militares

armados, representando o poder do Estado. Tempos em que a mídia manchou a imagem de

pessoas pobres considerando-as “baderneiras” do campo; tratou enxadas e foices como armas,

destituindo de importância as verdadeiras armas de fogo dos capatazes e dos policiais

armados; criou o medo coletivo e o pânico da “invasão” de cidades, de prédios públicos e de

ameaça à ordem, com a “invasão” (novamente) da propriedade privada, às tentativas do

Movimento de “acuar” as autoridades para auferir o benefício das desapropriações das terras

improdutivas. Enfrentamentos e mortes de uns, de alguns, de massacres coletivos, de

resistência heróica sob a lona preta calorenta, esticada pelos elásticos que distenderam, até

mais não poder, a paciência e a disposição de diálogo dos que passaram a se saber excluídos

de direitos sociais, da justiça, do direito à terra...

130 MST. Caderno de Educação n. 11, 2003, p. 12.

Page 379: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

377

A terra pra mim é uma paixão. Eu não nasci propriamente no campo. Mas aos quatro anos eu cheguei ao campo e me adaptei tão rápido que hoje eu não consigo me adaptar na cidade. Para quem é da cidade, parece que no campo a gente tá isolado. Mas a gente num tá isolado. Qualquer informação chega lá. A terra pra mim é uma paixão... (Welson).

Tempos de educação incansável, em qualquer espaço, na “escola” de lona ou debaixo

de árvores, porque referenciada intencionalmente a um projeto educativo de transformação,

mas nada assemelhado aos prédios com os quais associamos a imagem de escola. Tempos de

educação de jovens e adultos, de alfabetização, em que “a principal lição é que tão importante

quanto conquistar e distribuir terra é democratizar o direito à educação”. (MST, 2004, p. 5).

Desde Ciço, entrevistado por Brandão (1980, p. 7) a idéia de que há um projeto de

educação que o povo bem sabe que lhe pertence, que precisa ser seu, está visível, embora

tantos anos depois os sistemas continuem em busca da uniformidade das propostas, como se

por elas conseguissem chegar à unidade filosófico-epistemológica que deve orientar o

trabalho na educação. Simbolizando a concepção dos desfavorecidos do campo, Ciço assim se

refere à educação que não lhe convém, que não atende aos anseios de seu mundo:

Educação... quando o senhor chega e diz “educação”, vem do seu mundo, o mesmo, um outro. Quando eu sou quem fala vem dum outro lugar, de um outro mundo. Vem dum fundo de oco que é o lugar da vida dum pobre, como tem gente que diz. Comparação, no seu essa palavra vem junto com quê? Com escola, não vem? Com aquele professor fino, de roupa boa, estudado; livro novo, bom, caderno, caneta, tudo muito separado, cada coisa do seu jeito, como deve ser. Um estudo que cresce e que vai muito longe de um saberzinho só de alfabeto, uma conta aqui e outra ali. Do seu mundo vem um estudo de escola que muda gente em doutor. É fato? Penso que é, mas eu penso de longe, porque eu nunca vi isso por aqui.

1100..11 AA PPEESSQQUUIISSAA NNAACCIIOONNAALL DDAA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO NNAA RREEFFOORRMMAA AAGGRRÁÁRRIIAA –– PPNNEERRAA:: DDAADDOOSS QQUUEE

SSEE SSOOMMAAMM ÀÀ CCOOMMPPRREEEENNSSÃÃOO DDAA EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDOO CCAAMMPPOO

Os dados do campo, finalmente, foram recolhidos entre final de outubro e dezembro

2004, em uma iniciativa do MEC/INEP e Ministério do Desenvolvimento Agrário -

MDA/INCRA/PRONERA, com vistas a subsidiar políticas públicas e ações articuladas para o

desenvolvimento do campo e da melhoria das condições educacionais, em especial nos

assentamentos. Em versão preliminar de abril 2005, intitulada Pesquisa Nacional da

Educação na Reforma Agrária (PNERA), há alguns elementos esclarecedores para a

compreensão da dinâmica do campo no aspecto educacional, foco de meu interesse.

A pesquisa recenseou 5.595 assentamentos de 1.651 municípios, totalizando os

assentamentos da reforma agrária promovidos pelo Instituto Nacional de Colonização e

Page 380: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

378

Reforma Agrária (INCRA) desde 1985. Coletando dados junto a três públicos — professores

ou dirigentes de escolas localizadas nos assentamentos, presidentes de associação de

produtores rurais e famílias assentadas — teve caráter censitário, adotando a escola como

unidade de coleta, e cobrindo todas as unidades de ensino que atendiam alunos residentes nos

assentamentos, localizadas neste espaço ou no seu entorno, num total de 8.679 escolas. Na

coleta de dados junto aos presidentes de associações de produtores, todos os 5.595

assentamentos foram pesquisados. Quanto às famílias assentadas, a pesquisa foi amostral,

garantindo a representatividade de todas as unidades da federação – UFs, coletando

informações de todos os moradores de cada domicílio sorteado, num total de 524.868 famílias

assentadas, perfazendo uma população de 2,5 milhões de pessoas. (PNERA, 2005, p. 6-7).

Para melhor visualização da composição etária dos sujeitos do campo, observe-se sua

distribuição, por faixas, na Tabela 1 (PNERA, 2005, p. 77):

Tabela 1

DISTRIBUIÇÃO DE ASSENTADOS POR FAIXA ETÁRIA (%) - BRASIL E GRANDES REGIÕES - 2004

REGIÃO FAIXA ETÁRIA GERAL

(Ne=2.542.428) (PESSOAS)

NORTE (Ne=839.241)

NORDESTE (Ne=1.064.521)

CENTRO-OESTE

(Ne=361.585)

SUL (Ne=135.951)

SUDESTE (Ne=141.131)

- Até 15 anos 38,4 38,9 40,5 33,1 37,6 33,6

- Até 16 a 30 anos 26,0 26,3 26,7 24,4 24,6 24,7

- Até 31 a 40 anos 12,0 11,9 10,6 14,7 15,1 12,8

- Até 41 a 50 anos 10,7 10,8 9,6 12,5 12,0 12,4

- Mais de 50 anos 13,0 12,1 12,7 15,3 10,8 16,4 FONTE: MEC/INEP e MDA/INCRA/PRONERA - PNERA

Há, como demonstrado pelos números, e coincidentemente com os demais dados de

população, a mesma inflexão da juventude, de 16 a 30 anos, representando, junto com a

população de até 15 anos (que inclui adolescentes), cerca de 64% da população assentada. A

faixa denominada adulta inclui mais do que 22%, pelo fato de não se ter desagregado o

percentual de maiores de 60 anos, faixa considerada de terceira idade.

Quando se observa a Tabela 2, de estudantes segundo níveis e modalidades de ensino,

verificam-se grandes defasagens entre a população anteriormente apontada e os estudantes,

indicando a dimensão do problema com o qual o Movimento lida. Menos de 5% dos

assentados é estudante da EJA, seja na alfabetização (2%), seja na sua continuidade até a 4ª

série (2,7%). (PNERA, 2005, p. 78).

Page 381: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

379

Tabela 2

DISTRIBUIÇÃO DE ASSENTADOS ESTUDANTES SEGUNDO O NÍVEL E MODALIDADE DE ENSINO (%) - BRASIL E GRANDES REGIÕES - 2004

REGIÃO FREQÜENTA ESCOLA GERAL

(Ne=2.546.069) NORTE (Ne=840.472)

NORDESTE (Ne=1.066.159)

CENTRO-OESTE

(Ne=362.293)

SUL (Ne=135.934)

SUDESTE (Ne=141.211)

Assentado que freqüenta escola 38,8 (Ne=987.890)

37,3 (Ne=313.124)

42,9 (Ne=457.810)

34,1 (Ne=123.712)

33,3 (Ne=45.271)

34,0 (Ne=47.973)

- Creche familiar / informal 0,1 - 0,1 - 0,4 0,5

- Creche organizada como escola 0,8 0,4 1,3 0,1 0,5 0,7

- Pré-escola 5,1 3,9 6,1 3,6 5,7 7,3

- Classe de alfabetização 2,3 2,8 2,6 0,9 0,3 1,1

- Ensino Fundamental - 1ª a 4ª série 48,4 54,8 48,0 41,1 40,0 36,7

- Ensino Fundamental - 5ª a 8ª série 28,3 24,5 28,0 35,9 34,6 29,9

- Ensino Médio 7,5 6,7 6,5 10,1 10,5 11,7

- Educação Profissional de nível básico 0,1 0,1 0,1 0,1 0,4 0,2

- Educação Profissional de nível técnico 0,3 0,1 0,1 0,6 1,4 1,0

- EJA: alfabetização 2,0 1,5 2,4 2,3 0,7 2,3

- EJA: 1ª a 4ª série 2,7 2,9 3,0 1,7 1,6 1,8 FONTE: MEC/INEP e MDA/INCRA/PRONERA - PNERA

Na Tabela 3 (PNERA, 2005, p. 79), confirma-se a preocupação com a alfabetização,

demonstrada pelo percentual de analfabetos absolutos da ordem de 32,1% — somatório de

percentuais dos que freqüentaram e dos que não freqüentaram escola —, embora se possa

discutir o de que são capazes os que declaram nunca ter freqüentado escola mas saber ler e

escrever (4,9%), além dos quase 40% que só completaram o ensino fundamental até a 4ª série.

Tabela 3

DISTRIBUIÇÃO DE ASSENTADOS NÃO ESTUDANTES SEGUNDO SUA ESCOLARIDADE (%) - BRASIL E GRANDES REGIÕES - 2004

REGIÃO FREQÜENTA ESCOLA GERAL

(Ne=2.546.069) (PESSOAS)

NORTE (Ne=840.472)

NORDESTE (Ne=1.066.159)

CENTRO-OESTE

(Ne=362.293)

SUL (Ne=135.934)

SUDESTE (Ne=141.211)

Assentado que não freqüenta escola 61.2 (Ne=1.558.179)

62,7 (Ne=527.347)

57,1 (Ne=008.350)

65,9 (Ne=238.582)

66,7 (Ne=90.002)

66,0 (Ne=93.238)

Nunca freqüentou escola e não lê e não escreve

27,1 26,6 31,4 20,1 23,4 23,5

Nunca freqüentou escola, mas lê e escreve

4,9 4,7 5,3 6,2 1,7 3,7

Freqüentou escola, mas não lê e não escreve

5,0 2,5 9,2 1,9 2,1 3,1

Creche familiar / informal 0,1 0,2 0,1 - - 0,2 Creche organizada como escola - - 0,1 - 0,1 - Pré-escola 0,1 0,1 0,2 0,1 - - Classe de alfabetização 1,8 1,6 2,4 1,3 1,6 0,6 Freqüentou até EF - 1ª a 4ª série 38,5 43,3 32,6 42,2 41,7 37,8 Freqüentou até EF - 5ª a 8ª série 14,7 14,0 11,8 19,0 21,8 19,6 Ensino Médio 5,6 5,5 4,4 7,1 6,4 8,9 Educação Profissional de nível básico 0,1 - 0,1 0,1 0,1 0,2 FONTE: MEC/INEP e MDA/INCRA/PRONERA - PNERA

Page 382: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

380

Quanto às ofertas de educação chamada de “informal” nos assentamentos, o quadro é

perverso também: somente cerca de 50% deles declaram haver cursos de alfabetização de

jovens e adultos, considerada, portanto, como educação informal. (PNERA, 2005, p. 87).

Tabela 4

EDUCAÇÃO INFORMAL NO ASSENTAMENTO FORA DO AMBIENTE DA ESCOLA (%) - BRASIL

E GRANDES REGIÕES - 2004

REGIÃO

DISCRIMINAÇÃO

GERAL (Ne=514.621) NORTE

(Ne=164.838)NORDESTE (Ne=205.130)

CENTRO-OESTE

(Ne=84.940)

SUL (Ne=29.782)

SUDESTE (Ne=29.931)

Não existe iniciativa de educação informal 76,8 81,2 79,7 69,3 68,1 63,1 Não sabe se existe 7,8 10,9 6,4 5,1 7,2 8,8 Existe iniciativa de educação informal: 15,4 7,9 13,9 25,6 24,7 28,1 Alfabetização de jovens e adultos 50,9 71,7 49,6 35,4 52,1 62,2 Ensino religioso 29,8 12,7 20,9 50,1 37,2 27,5 Cursos de capacitação técnica em agricultura, pecuária etc.

21,6 17,4 22,3 17,5 38,7 21,3

14,9 16,5 7,3 13,2 34,6 24,9 Cursos livres (oficinas de artesanato, marcenaria, música etc. Ciranda infantil 4,7 0,6 8,1 0,2 17,5 0,1 Formação política 4,0 0,4 5,9 0,8 13,4 3,1 Outros 7,0 1,6 6,2 13,8 3,3 4,0 FONTE: MEC/INEP e MDA/INCRA/PRONERA - PNERA

Recortando a Tabela 5 que demonstra as atitudes relacionadas à educação e ao

desenvolvimento rural, para destacar as relacionadas à educação, pode-se verificar que há

mais concordância em valores práticos atribuídos ao estudo — negociar com bancos (88,5%),

consciência dos direitos (82,6%), o que mais precisa saber: ler, escrever, contar (69,1%) — do

que em relação ao que se aprende efetivamente na escola (75,8%). A existência da escola,

para 73% de concordantes, foi conquista dos assentados, expondo o poder público, ao qual

não é atribuída nenhuma atitude. Esse talvez possa ser um ponto de crítica ao questionário,

como instrumento da pesquisa, pelo fato de não oferecer a possibilidade aos informantes de

concordância, ou não, com a atitude. Há ainda atitudes denunciadoras das dificuldades que

cercam as populações pobres para manter os filhos na escola (material caro, por exemplo), e

uma expectativa para cerca de 56% dos informantes de que o estudo possa ser, para a

juventude, a possibilidade de conseguir emprego na cidade, em troca da vida dura do campo.

Também se revela a correlação entre consciência ambiental e estudo em 63% dos assentados,

atribuindo a esse a possibilidade de preservação. (PNERA, 2005, p. 123).

Page 383: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

381

Tabela 5

ATITUDES RELACIONADAS À EDUCAÇÃO E AO DESENVOLVIMENTO RURAL (% CONCORDA MUITO) - BRASIL E GRANDES REGIÕES - 2004

REGIÃO

ATITUDES GERAL

(Ne=524.868) NORTE (Ne=167.932)

NORDESTE (Ne=208.071)

CENTRO-OESTE

(Ne=88.440)

SUL (Ne=30.238)

SUDESTE (Ne=30.187)

O trabalhador do campo que estudou está melhor preparado para negociar com os bancos

88,5 87,6 88,9 90,6 85,6 87,9

As pessoas que têm estudo têm mais consciência dos seus direitos que aquelas que não têm estudo

82,6 82,9 82,3 84,4 79,3 81,3

Vale a pena os alunos irem à escola porque eles têm aprendido muita coisa importante lá

75,8 73,5 78,2 76,1 70,1 76,8

A escola foi uma conquista da comunidade, se não fosse a gente ela não existiria

73,0 75,8 72,4 70,6 74,2 68,4

O campo só vai se desenvolver se as pessoas que aqui vivem tiverem acesso a todos os níveis de ensino

72,4 72,4 75,7 65,9 68,5 72,6

O que a população do campo mais precisa saber é ler, escrever e contar

69,1 67,4 74,3 59,4 65,1 74,8

O material escolar é caro demais para as famílias assentadas

64,1 59,7 69,2 62,1 54,7 68,7

Quanto menos estudo tiverem as pessoas do campo, maior a destruição do meio ambiente

63,8 63,4 64,9 68,6 49,4 59,8

A juventude precisa estudo para ter oportunidade de trabalho na cidade para se livrar da lida pesada do campo

56,9 58,6 60,8 55,7 37,8 43,2

FONTE: MEC/INEP e MDA/INCRA/PRONERA - PNERA

O relatório da pesquisa, ainda em versão preliminar, certamente poderá, feitos os

necessários cruzamentos de dados, revelar ainda muitos aspectos indispensáveis para os

objetivos a que se propôs. De todo modo, as respostas recolhidas já trazem poderosas

informações que falam por si, se o poder público se dispuser a ouvi-las.

1100..22 OO MMOOVVIIMMEENNTTOO SSOOCCIIAALL FFEEZZ 2200 AANNOOSS EE AATTIINNGGEE AA MMAAIIOORRIIDDAADDEE EEMM 22000055

Nesses 20 anos, o Movimento, e especialmente o setor de educação, passou por várias

fases, sistematizadas no documento Educação no MST Balanço 20 anos (MST, 2004), e tem

sua origem no que é chamado de “força material”, a “necessidade real e objetiva das famílias

sem-terra: escola para as crianças, professores capazes de trabalhar desde nossa realidade

específica, comunidades envolvidas com a escola também depois de sua conquista como

espaço físico” (MST, 2004, p. 19). Apesar disso, a crítica produzida no interior do próprio

Movimento, ao que considera uma “fragilidade”, diz que:

[...] o trabalho de educação, diferente de outras dimensões do Movimento, embora tenha virado setor, não começou como intencionalidade das instâncias da organização e o debate sobre o papel da educação no projeto de reforma agrária do MST ainda hoje não envolveu com mais profundidade o conjunto de nossa militância e de nossa base.

Page 384: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

382

Esta questão é percebida e reforçada pelo educador Murilo e a educadora Dalva,

entrevistados em Encontro Regional no Espírito Santo, apontando que, pelo fato de a proposta

não estar apreendida pelo conjunto da base, da militância, as ações ficam mais difíceis:

Uma coisa que nós percebemos que não deu certo é que, enquanto todos os líderes, principalmente os dirigentes estaduais e nacionais do MST, não tiverem claro qual a proposta de educação do Movimento em si, vai ficar mais difícil pra nós. Qual é a missão do coordenador, por que o coordenador não estuda? A gente sabe que onde tem coordenador que estuda, facilita.

Mesmo assim, o documento Balanço 20 anos afirma que se passa “da visão da

educação como serviço à visão da educação como parte do projeto do MST”, apontando que

talvez a maior contribuição do setor ao conjunto tenha sido “a construção do valor da

escolaridade, como um dos fundamentos do valor do estudo, este já muito forte na

compreensão das lideranças do MST, desde o seu começo”, entendendo que o que é feito

pode ser resumido por “mexer” no “imaginário camponês”, e indagando: “o que pode

significar historicamente esta nova visão do direito à educação e do dever de estudar?” (MST,

2004, p. 19).

Buscando ainda explicitar o sentido da educação na agenda política do MST, o mesmo

documento invoca a necessidade de retomar a tarefa de origem, sem considerá-la, no entanto,

nem maior, nem menor, mas como “uma das dimensões da construção do projeto de reforma

agrária”, entendido hoje por lutar “por escolas para os sem-terra de todas as faixas etárias”, o

que incluiria “a disputa de uma concepção de escola” — com o desafio de ser mais ousado e

mais aberto ao diálogo com outras lutas e movimentos —; a garantia de um processo de

aprendizagem-ensino coerente com os objetivos de transformação social, o que implica “a

visão de totalidade e de historicidade”. (MST, 2004, p. 20).

Em disputa pelo direito à educação, dentre os muitos direitos negados, o Movimento

lutou por escolas públicas nas áreas de reforma agrária; passou a contar com cerca de 1.500

escolas públicas, sendo em torno de 200 as com educação fundamental completa, e pouco

mais de 20 com ensino médio em acampamentos e assentamentos; teve 160.000 crianças e

adolescentes matriculados nessas escolas, não aceitando a lógica do transporte escolar, para

não desenraizar, de seu próprio lugar, crianças e adolescentes do assentamento, que ainda

tivessem que estar mais de uma hora nesse transporte; formou mais de 4.000 educadores;

envolveu em 2003 cerca de 28.000 educandos e 2.000 educadores na alfabetização de jovens

e adultos; desenvolveu práticas de educação infantil em cursos, encontros, acampamentos e

assentamentos, formando pelo menos 500 educadores para essa frente; conquistou algumas

Page 385: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

383

escolas de ensino médio nos assentamentos e cursos superiores em universidades; interferiu

nas políticas públicas e alterou as agendas políticas de secretarias municipais e de estado, de

conselhos de educação municipais e estaduais.

No entanto, no balanço de 20 anos do Movimento, a “panha”131 de sucessos não é

assim tão evidente. Um problema a enfrentar, ainda, é o que aproxima as questões da

educação nos assentamentos às questões do sistema escolar, não conseguindo “estourar o

gargalo”132 da escolaridade, que se conforma em manter o funil, desprezando crianças e

jovens pelo caminho, à medida que alcançam maior escolaridade, como se fosse suficiente

chegar até a 4ª série. Outro o de que o diagnóstico da situação do campo, tão valorizado como

princípio metodológico da educação, não responde significativamente às necessidades do

Movimento, que não conseguiu, ainda, dados quantitativos sobre a realidade educacional no

campo, e nos assentamentos da reforma agrária. Mais recentemente, um censo promovido

pelo INEP deve chegar a esse diagnóstico, imprescindível para pensar políticas sérias, de

qualidade para todos. Por fim, o MST concluiu que despendeu mais energia para impedir que

fossem fechadas escolas, do que para abrir novas ou ampliar as existentes, evidenciando que a

educação tem ainda fortes cercas a guardá-la, protegidas pelo poder do Estado e dos interesses

que representa na sociedade capitalista. O que motiva, no entanto, a continuidade da luta, é

que “os camponeses têm direito à escola e este direito não pode ter limites, nem de lugar nem

de nível de ensino” (MST, 2004, p. 13).

A riqueza da construção que um movimento social consegue realizar em 20 anos tem

sido objeto de estudo e de atentos olhares sobre as formas como se faz política em movimento

nessas duas décadas e sobre os significados que esses fazeres têm assumido na construção

democrática e na mudança das agendas públicas, cujas cartas marcadas pelo jogo

internacional da globalização econômica não previu “cartas na manga”. Lidar com essas

novas agendas, com as táticas de resistência, com as formas de luta, tem sido um campo de

incertezas inimaginável pelos controladores das políticas no mundo, especialmente quando

este mundo diz respeito aos países pobres, em via de desenvolvimento, atrelados a sistemas

mundiais de crescimento e de lucro.

Mas é verdade que o Movimento encerra fortes contradições, no interior mesmo da

luta e da organização, em defesa da terra. A entrevistada Joelma, em depoimento sobre sua

131 Panha é o termo usado pelos integrantes do Movimento quando se referem à colheita. 132 Esta a expressão usada no Caderno de Educação n. 11, MST, dez. 2004, p. 13.

Page 386: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

384

atuação como coordenadora pedagógica de EJA do MST no Espírito Santo, traz a medida de

algumas dessas contradições:

[...] tem pessoas que tão ali porque só quer a terra pra depois vender. Porque você sabe que mexer com ser humano, ou ele é uma coisa ou ele é outra. Quando tá lá no acampamento133 as pessoas são uma coisa, depois que está assentado134 muita gente muda. É porque tá no acampamento, porque precisa do MST pra poder conseguir a terra, depois que vai pro assentamento aí muda isso tudo. Então, você vai encontrar tudo quanto é tipo de gente. Tem diferença? Tem. Mas tem muitas pessoas que aprendeu com a luta. Eu digo que mesmo esses que são contra aprendeu, porque quando eles forem pra rua eles vão ver o valor que tem a questão da moradia deles mesmo. Porque aí eles vão passar fome, se eles não tirar o alimento dele e da família.

Gohn (2002, p. 311-312) estudando as novas práticas civis associadas aos movimentos

sociais nos anos 1990, destaca que:

[...] as políticas são formuladas para segmentos sociais, numa perspectiva que privilegia áreas-temáticas-problema e não mais os atores sociais organizados em movimentos. [...] o MST, por exemplo, passa a ser considerado um interlocutor para a formulação de uma reforma agrária para o país e não um simples movimento organizado por forças de oposição ao governo, com propostas radicais e socializantes, como era a visão que permeava o tratamento que o poder público dispensava anteriormente àquele movimento. [...] foram eles que forçaram a redefinição de tal tratamento. A conjuntura política também foi favorável a esta redefinição, pois no plano internacional cresceu a pressão para a busca de soluções para o homem do campo na realidade brasileira. [...]

O MST e seu projeto, além de outros movimentos sociais da década de 1990, passaram

a lidar com a escassez de recursos financeiros, advindos da solidariedade internacional, e

aprenderam que fora das políticas públicas não havia recursos para desenvolver projetos com

a comunidade organizada. Apesar de todos os movimentos apregoarem e reivindicarem

independência e autonomia diante do Estado, esta é mais uma das complexas questões na

relação dos movimentos com o Estado. É Gohn (2002, p. 313), ainda, quem explicita:

O Estado tem definido linhas de atuação para os movimentos à medida que cria programas sociais, com subvenções e financiamentos. A questão está na postura que o movimento adota diante de tal realidade. [...] Nos anos 90,

133 O acampamento é a fase do Movimento da ocupação da terra improdutiva, quando os acampados vivem sob a lona, às vezes por muitos meses, até que o conflito se resolva. É ocasião de muitos enfrentamentos, também, em que a história registra muitas mortes, tanto promovidas por capatazes quanto pelas forças policiais do Estado, em defesa de interesses privados. Enquanto a disputa se trava no poder judiciário, outras fortíssimas disputas são vividas no cotidiano, ainda marcado por todo tipo de privação e indignidade do ponto de vista de condições humanas de vida. Delas não escapam crianças, adolescentes, jovens, mulheres, todos indispensáveis para a constituir a resistência. 134 Assentados são os que já obtiveram êxito na ocupação da terra e conquistaram o direito a um lote em assentamentos.

Page 387: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

385

aquele cenário se alterou: da parte do estado — ele não “precisa” mais dos movimentos para se legitimar como não-repressor ou aparentar ser democrático. Da parte dos movimentos progressistas — os que sobreviveram às crises internas querem participar das políticas públicas criando uma nova forma democrática, a pública não-estatal. [...] Essa ala passou a ter lugar privilegiado enquanto interlocutora nas políticas sociais em que os governos constituídos não advêm de partidos ou composições democrático-populares.

Desta forma, a autora auxilia a compreensão, por exemplo, da participação do MST,

junto à Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), na proposição

do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA, constituído durante a

política neoliberal de Fernando Henrique Cardoso, ao mesmo tempo em que o Movimento era

duramente atingido em violentos assassinatos que ocorreram no campo, em sua maioria “sem

culpados”, a serviço da impunidade. No âmbito desse Programa, para o qual as formulações e

concepções do MST em muito contribuíram, por já serem prática no Movimento e resultantes

de acúmulos produzidos havia mais de dez anos, a educação de jovens e adultos passou a

abrigar projetos de atendimento, como forma de “arrancar” recursos públicos para a

constituição do direito à educação, nos termos defendidos pela proposta de educação

integrante do projeto de sociedade pelo qual vinha lutando.

Maria Cristina Vargas, dirigente nacional do MST, respondendo ao questionário a ela

proposto (Anexo 2), reafirma a influência do Movimento no Programa, dizendo que “o

PRONERA dá um referencial, mas as universidades e movimentos têm plena autonomia para

determinar princípios e plano de trabalho de acordo com a realidade de cada local”. Diz ainda

que o “MST é parceiro do PRONERA desde seu surgimento, o PRONERA é resultado de

uma luta do movimento, sabemos que é um programa, mas entendemos a importância que tem

para a construção de um olhar para o campo também no processo educacional dos

camponeses”. Complementa, informando que o Programa não significa uma possibilidade de

atuação somente na alfabetização, mas é também a possibilidade de “capacitação de nossos

educadores, ou seja, os convênios que desenvolvemos para a graduação, exemplo: pedagogia,

história, ciências agrárias, agronomia, e outros em nível médio como técnicos em

agroecologia, administração de cooperativas, saúde comunitária, magistério”. Sobre as

concepções que o Programa assume, defende que “a nossa luta é manter a possibilidade de

construção de uma pedagogia a qual respeite um povo que está envolvido em um movimento

social, que este movimento social está no campo, e que estas especificidades possam ser

levadas em conta em nossa relação com as universidades que estão em parceria no

Programa”.

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386

De posse dessas primeiras anotações, inicio informando como me lancei à

compreensão das concepções de EJA subjacentes ao projeto de educação de jovens e adultos

do MST. Tomei, em princípio, variadas fontes: a) documentos do próprio Movimento, e desde

já vale a pena acrescentar que é pródigo na sistematização de suas idéias e publicação de

materiais orientadores da formação de educadores, de militantes, de sujeitos participantes,

com qualidade, simplicidade e preocupação inequívoca em se fazer entender na leitura de

qualquer pessoa, principalmente os que participam do Movimento; b) questionário escrito

com perguntas encaminhadas a uma dirigente nacional do setor de educação e integrante da

Comissão Nacional de Alfabetização (CNA/SECAD/MEC); c) entrevista gravada com a

coordenadora responsável pelo setor de educação do estado do Espírito Santo; d) entrevistas

gravadas com educadores do MST/ES; e) documentos do PRONERA: subsídios, projeto,

avaliação do programa, realizada sob a coordenação de Ação Educativa; f) documento do

MEC de referências para uma política nacional de educação do campo; e, ainda, g) diretrizes

do Conselho Nacional de Educação (CNE). Meu diálogo com essas fontes fez-se, também, a

partir da pequena experiência que vivi com pessoas da FETAG e do MST, nos anos 1999,

quando discutimos e elaboramos um projeto para o PRONERA em assentamentos no estado

do Rio de Janeiro, nos primórdios do Programa, sofrendo as muitas mudanças de regras no

decorrer do jogo, principalmente quando o INCRA passou a intermediar as negociações.

A riqueza dos documentos, certamente, não estará toda capturada no curso dessa

pesquisa, porque tanto quanto me foi possível, fiz a leitura desses materiais não apenas em

busca dos indícios atinentes a meu objeto, mas com olhos de aprendiz, pelos múltiplos e

multirreferenciados aprendizados que saltaram à minha frente. Desde já, deixo esse débito

com o Movimento, pelo tanto que não considerei/não fui capaz de fazê-lo para produzir a

compreensão de EJA no âmbito desse trabalho.

Outra anotação a fazer gira em torno da idéia no campo/do campo. A tendência usual

incorporada nas discussões teóricas tem sido a de nomear a defesa da educação dos chamados

sujeitos do campo como educação do campo, porque não se quer que seja feita nem no

campo, nem para os sujeitos, por entender-se que a primeira não se distingue da educação da

cidade, apenas se desloca no tempo/espaço, sem guardar as marcas culturais de quem vive no

campo; a segunda, por não se admitir a possibilidade de que seja feita sem a participação dos

sujeitos que vivem a realidade do campo, não beneficiários, portanto, da educação, mas

partícipes de todas as etapas do processo, por entender o ato educativo de forma mais ampla,

para além da sala de aula e da escola regular. Assim, a educação do campo tem sido a

Page 389: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

387

nomeação considerada, cujos sentidos implícitos voltam-se para retratar um projeto educativo

não segmentado em níveis ou modalidades, mas inteiro, totalizante, produzido na cultura do

campo, e que tenha com ela íntimas relações e a expresse como diversidade, e não

desigualmente, na lógica etnocêntrica e hegemônica que orienta os sistemas de ensino.

Em busca de uma educação do campo, o MST, entretanto, não está sozinho. Muitos

são os grupos populacionais envolvidos e atravessados pela mesma problemática, tratada na

legislação brasileira como educação rural, até então:

[...] tem um significado que incorpora os espaços da floresta, da pecuária, das minas e da agricultura, mas os ultrapassa ao acolher em si os espaços pesqueiros, caiçaras, ribeirinhos e extrativistas. O campo, nesse sentido, mais do que um perímetro não-urbano, é um campo de possibilidades que dinamizam a ligação dos seres humanos com a própria produção das condições da existência social e com as realizações da sociedade humana. (BRASIL, 2002, p. 4).

Para alguns autores, no entanto, esse sentido de ruralidade, ou de “nova ruralidade” se

ressignifica, sendo definida como a incorporação de atividades de setores distintos da

economia na reprodução social das unidades familiares agrícolas (CARNEIRO, 1998 apud

OLIVEIRA et. al., 2004, p. 139), pelo fato de se entender o campo não mais como “um

espaço relativamente autárquico, com seu próprio mercado de trabalho e equilíbrio interno”

[...] mas com um setor de serviços que desponta no conjunto do meio rural, com profissões

tipicamente urbanas, na dinâmica de funcionamento da economia do campo. “Isso somado à

insuficiência da renda na reprodução das unidades familiares agrícolas, faz com que o rural

recorra a atividades não-agrícolas como estratégia de manutenção do patrimônio familiar”, em

que núcleos rurais interagem com a urbanidade, “numa espécie de mercado de bens tanto

material como simbólico, o que faz com que o urbano e o rural se ressemantizem

mutuamente”. (OLIVEIRA et al., 2004, p. 139). Nessa complexidade, “se o campo não é mais

um espaço relativamente autárquico, a escola do campo tem que se repensada e situada nesse

contexto de ressignificação do rural”. (OLIVEIRA et al., 2004, p. 140-141).

A ruralidade, ressignificada, é percebida, e se expressa na explicação do educador

Welson, quando entrevistado:

Nossa vida de camponês é uma vida muito simples, ou era muito simples. Mas, com o passar do tempo essa vida... Como eu sempre falo da urbanização – foi chegando e talvez tirando essa simplicidade que a gente tinha né! Essa simplicidade que a gente tinha de ser livre de qualquer vício que a sociedade urbana tivesse, entendeu? Mas, aí houve essa aproximação campo-cidade. [...] quando você vê a tecnologia entrando no campo num

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388

primeiro olhar parece bom, tem alguns pontos bons. Mas, num segundo olhar, você percebe que a gente acaba perdendo a nossa cultura, acaba perdendo. [...] acaba perdendo aquela coisa da simplicidade da subsistência. [...] entra na sua cabeça a ideologia do lucro, do lucro, do lucro. Você vai se distanciando da própria terra. É igual como no casamento. Há um esfriamento, num certo tempo: o camponês com a terra, depois disso aí houve um esfriamento. [...] eu sofri essa de que o campo não era um bom lugar. [...] eu tive a oportunidade ou o privilégio de olhar o campo lá de cima. [...] quando adolescente, pensava que o campo não era o lugar ideal. Meu pai na sua consciência ingênua dizia que não queria que eu fosse igual a ele. Queria que eu fosse alguém na vida. Antes o camponês não achava, não se sentia ninguém, hoje ele se sente.

Esse “se sentir alguém”, na fala do educador, certamente está vinculado à concepção

de educação do MST. Na proposta para a educação (MST, 2002, p. 6), o Movimento enuncia

seus princípios filosóficos: a) educação para a transformação social; b) educação para o

trabalho e a cooperação; c) educação voltada para as várias dimensões da pessoa humana; d)

educação com/para valores humanistas e socialistas; e) educação como um processo

permanente de formação/transformação humana. Tem, ainda, como princípios pedagógicos

(MST, 2002, p. 11): a) relação entre prática e teoria; b) combinação metodológica entre

processos de ensino e de capacitação; c) a realidade como base da produção do conhecimento;

d) conteúdos formativos socialmente úteis; e) educação para o trabalho e pelo trabalho;

f)vínculo orgânico entre processos educativos e processos políticos; g) vínculo orgânico entre

processos educativos e processos econômicos; h) vínculo orgânico entre educação e cultura; i)

gestão democrática; j) auto-organização dos/das estudantes; l) criação de coletivos

pedagógicos e formação permanente dos educadores/das educadoras; m) atitude e habilidades

de pesquisa; n) combinação entre processos pedagógicos coletivos e individuais.

São esses princípios — filosóficos e pedagógicos — que estarão como guia das

concepções de EJA que me ponho a escavar nessa terra fértil que o Movimento tanto tem

cultivado.

1100..33 CCOONNSSTTIITTUUIINNTTEESS EE DDEETTEERRMMIINNAANNTTEESS DDAA CCOONNCCEEPPÇÇÃÃOO DDEE EEJJAA EE DDEE AALLFFAABBEETTIIZZAAÇÇÃÃOO

EEXXPPRREESSSSOOSS NNAA PPRROOPPOOSSTTAA PPEEDDAAGGÓÓGGIICCAA DDOO MMSSTT PPAARRAA OO TTRRAABBAALLHHAADDOORR DDOO CCAAMMPPOO

A proposta pedagógica da EJA, como expressa nos documentos do Movimento

apresenta relações bastante intensas não apenas com os clássicos pensadores da área, como

têm tido a contribuição de muitos pesquisadores e acadêmicos, de diversas universidades

brasileiras. Desde o início do Movimento a EJA se faz presente, passando por variadas fases,

acompanhando a luta mais geral. Caldart (1997, p. 36-37), referindo-se aos períodos da

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389

história da educação no Movimento reporta-se ao momento em que, segundo ela, se inicia o

quarto período, sob a marca do III Congresso Nacional do MST, realizado em julho de 1995,

quando o lema Reforma agrária uma luta de todos leva com ele os desafios de seu conteúdo e

de novas formas de luta, criando a tendência de um movimento para fora; a busca de aliados;

o conhecimento e o reconhecimento, pelo conjunto da sociedade, aos diversos trabalhos que o

Movimento realiza, dentre eles a educação. Referindo-se à EJA, indica que o trabalho tomou

maior impulso a partir de 1996, quando convênios e parcerias nacionais e estaduais

permitiram maior abrangência, atingindo 19 estados, inclusive adotando a nomeação de EJA,

por entender que a alfabetização era indispensável nos assentamentos, mas que a concepção

pela qual lutavam, de direito à educação para todos, da creche à universidade, precisava

incluir as legiões de jovens e adultos, para além da alfabetização. Então, de modo a se pôr em

conformidade com as nomeações nacionais e internacionais, passa a adotar educação de

jovens e adultos.

A indicação de Caldart se corrobora no Caderno de Educação n. 11 (MST, 2003, p.

16), quando o texto, também buscando mostrar as dificuldades do quarto período, de 1995 a

2002, condiciona o avanço da EJA à dependência de quatro pilares, a saber: “a formação da

equipe interna (monitores e coordenadores); o envolvimento do conjunto do MST; apoios

externos (ter convênios e parcerias); e exigência dos direitos (frente ao Estado)”. Se por um

lado essa consciência demonstra uma disposição de luta para fazer o Estado assumir o dever

constitucional com a educação para todos, por outro condiciona a oferta, ou a resposta do

Movimento a jovens e adultos não-escolarizados, à existência de parceiros, de recursos, de

convênios, atitude semelhante e reiterada das práticas políticas e públicas em relação à

educação de jovens e adultos. Ao longo desse trabalho, por meio do relato da coordenadora

Joelma, poder-se-á verificar como as artes de fazer do Movimento respondem a essa questão,

embora seja o relato insuficiente para ser tomado como verdade para todo o país, de Norte a

Sul, nos tantos assentamentos, cuja situação educacional foi constatada pelo PNERA.

A interlocução dos sujeitos pesquisadores, com os que fazem a EJA no Movimento

comprometidos com o pensar sobre suas próprias práticas, nos diferentes espaços de formação

vivenciados, com longevidade, permanência e constância na oferta, revela questões

consolidadas na proposição do MST e uma certa coerência na busca de qualidade dos fazeres.

A coordenadora Joelma assim se refere ao que ocorre no Movimento: [...] “e essa troca que eu

acho que tem nos assentamentos é que enriquece a questão da educação, a educação do MST,

essa educação que a gente tanto diz que foi com Paulo Freire e outros pensadores”.

Page 392: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

390

O educador Murilo e a educadora Dalva, já citados, revelam a diferença de

mobilização quando há educação de jovens e adultos funcionando no acampamento ou

assentamento e a necessidade da discussão campo-cidade, do ponto de vista metodológico. A

fala escolhida ajuda-me a trançar os fios entre as profusas enunciações e as práticas:

As pessoas que estão nos jovens e adultos descobre que o MST hoje tem que se preparar para repensar a nossa metodologia de como trabalhar o campo-cidade, escola de um modo geral, na unificação da educação de base nos assentamento e acampamento. [...] A gente nota a diferença onde existe educação de jovens e adultos funcionando e onde não existe. A diferença que há é que as pessoas se mobilizam mais.[...]

Outro educador, Juliano, demonstra a partir da própria experiência, por chegar como

jovem-adulto ao Movimento, o acolhimento recebido, especialmente por conta da atuação na

EJA. Com cinco anos de assentamento, chegado por intermédio de seu irmão, este sim

assentado, e do qual é dependente, cresceu e estudou na zona urbana, sem nunca ter estudado

na zona rural, embora com família toda com raízes na zona rural. Ao voltar, diz que criou “um

vínculo de amizade com todo mundo, que as pessoas passam a te respeitar, a te valorizar,

principalmente nesse âmbito aí da questão da EJA... quando eu comecei foi muito gratificante,

porque foi o meu primeiro serviço, foi minha primeira experiência”.

Voltando ao PNERA (2005, p. 78), observa-se que, de modo geral, a origem do campo

(81,7%) é fator decisivo para manter os sujeitos no próprio campo, e que o caso do educador

Juliano situa-se entre 18,3% dos sujeitos.

Tabela 6

O fascículo Sempre é tempo de aprender, na parte 2, sobre Nossa concepção de EJA

(MST, 2003, p. 30-39) sintetiza-a, afirmando que esta “faz parte da Educação Popular”,

“alimentada por uma ‘mina d’água’ especial: a Pedagogia do Oprimido”, de Paulo Freire. E

que mais do que alfabetização — que inclui —, é “formação humana de pessoas concretas e

situadas”. É também “formação política, ideológica, cultural, organização na base e avanço da

escolarização dos Sem Terra”. Afirma, ainda, que o “desafio é ir produzindo e maturando a

Page 393: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

391

pedagogia do MST na EJA”, embora saiba que “o que produzimos como educadores e

educandos não é só nosso e nem é para nós: faz parte do movimento da Pedagogia do

Movimento”.

Esta uma compreensão bastante relevante no entendimento da concepção de EJA, por

reafirmar que os espaços de produção de conhecimento não se limitam às atividades

escolarizadas, mas tomam como amplitude as dimensões da luta pela terra, porque a luta

educa, e todos os sem-terra são, desse modo, nela e por ela educados. Referir-se, portanto, a

uma pedagogia do movimento implica dizer que a luta contém uma importante dimensão

educativa, e que é, para isso, pedagógica. Ou seja, adotar a educação de jovens e adultos no

MST não significa restringir-se a objetivos do interior da modalidade, encerrados no ato

educativo escolar, mas fazê-lo porque o ato educativo escolar contribui e acentua o

aprendizado da luta, qualificando-a para o objetivo de transformação social, que visa ao

direito à terra e à reforma agrária.

Essa complexa concepção possui, como expresso no mesmo documento, algumas

“convicções fundamentais”, que assoalham filosoficamente o piso no qual se desenvolve a

proposta de EJA, e que sintetizo:

a) todas as pessoas têm direito a aprender: o analfabeto é um cidadão;

b) todas as pessoas têm direito à escolarização — continuidade do processo educativo (a necessidade da certificação);

c) Sem-terra tem o dever de se alfabetizar — cultura da alfabetização: indignação porque há no assentamento algum analfabeto;

d) sempre é tempo de aprender: todas as pessoas, de todas as idades, têm condições de aprender;

e) todas as pessoas têm saberes e saberes diferentes — todo o conhecimento é gestado, produzido, não é dado;

f) a alfabetização faz parte da educação popular do campo e está vinculada a um projeto de transformação da sociedade e de construção de um projeto popular para o campo: f.1 dimensão do cuidado da terra: alfabetizar-se nas linguagens da terra, das águas, das

plantas, dos animais, da cultura camponesa, das histórias do campo, das relações com o conjunto da natureza, das lutas dos seres de todo o planeta;

f.2 dimensão do trabalho: educação ligada ao processo produtivo e de organização do trabalho (postura de cuidado em relação à natureza);

f.3 dimensão da saúde: qualidade da vida e educação alimentar, iniciativas pessoais e coletivas o que estraga a vida;

f.4 dimensão dos códigos: movimento de codificação e de decodificação de textos e contextos (inclui o código das tecnologias);

f.5 dimensão dos documentos: compreender a necessidade e a finalidade da documentação;

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392

f.6 dimensão da identidade: sua identidade; identidade sem-terra (para mantê-la ou transformá-la, segundo sua decisão);

f.7 dimensão dos vínculos com o MST e com a classe trabalhadora;

g) a educação está vinculada à formação: alfabetizar é mais que alfabetizar; é educar: é fazer formação humana. O MST tem consciência de ser um “movimento formador” onde também é possível aprender a liberdade na cartilha do ABC;

h) EJA é maior que alfabetização e não precisa acontecer só na escola (matriz pedagógica da cultura);

i) cada sociedade tem as suas linguagens de sociabilidade (dominar os códigos nela hegemônicos e assumir que o conceito de analfabeto é histórico). O MST quer com a alfabetização que jovens e adultos: i.1 aprendam a ler, escrever e calcular no papel a realidade; i.2 aprendam fazendo, isto é, pela prática ou a partir da necessidades reais dos

alfabetizandos e do Movimento; i.3 construam o novo que começa nas novas relações e termina em uma sociedade sem

explorados e exploradores; i.4 compreendam a realidade, numa concepção histórica, e tendo como referência a

realidade local e geral; i.5 ajudem a gerar sujeitos da história a partir de sujeitos do processo de

educação/formação/capacitação; i.6 preocupem-se com a pessoa integral e com o coletivo (coletividade);

j) somos educadoras e educadores do povo.

De posse dessas convicções, que assumo como fundamentos filosóficos da concepção,

os principais objetivos (MST, 2003, p. 40) do trabalho de EJA são assim expressos:

a) superar a exclusão de ser analfabeto, tornando os assentamentos e acampamentos territórios livres do analfabetismo;

b) lutar por políticas públicas de EJA;

c) superar o analfabetismo como uma forma de criar condições para enfrentar os desafios políticos e organizativos do MST;

d) implementar em EJA a Pedagogia do MST, como uma referência para o campo;

e) fortalecer a organicidade do MST através da EJA, e em especial através da alfabetização.

Os princípios metodológicos (MST, 2003, p. 41-47), guia para o fazer na EJA,

enunciam-se da seguinte forma:

a) respeitar o jeito de aprender de cada tempo da vida;

b) partir da necessidade: a pessoa se interessa em aprender quando necessita;

c) educar as pessoas para se apropriar da história e se tornar sujeitos;

d) relacionar os processos de EJA com os processos de formação no MST;

e) conhecer os sujeitos em sua realidade e a realidade social onde os sujeitos estão inseridos;

f) trabalhar com vivências geradoras;

g) consolidar condutas e posturas e diversificar as didáticas;

h) organizar o ambiente alfabetizador;

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393

i) produzir um ambiente educativo (intencionalidade).

Ainda enunciam-se os elementos gerais de pedagogia (MST, 2003, p. 47-51),

revelando a busca concreta de uma pedagogia própria do fazer do Movimento, não apenas

pela autonomia e independência dos sujeitos educandos, mas pela compreensão da dimensão

humana, transcendente, afetiva desses sujeitos no mundo, no qual agem, com o qual

interagem, amam, sofrem, são. Ei-los:

a) educação do movimento popular e não para o movimento popular;

b) a mística como elemento da formação humana: é a “energia que perpassa o cotidiano”, “ajuda a vivenciar os valores” e “desafia a ir concretizando [...] o projeto popular”; [...] “um dos mais densos momentos de formação humana: ela cola o conhecimento à emoção, através da cultura”; [...] “irriga, pela paixão, a razão, nos ajudando a ser mais humanos, dispostos a desafiar pessoal e coletivamente os nossos limites; nos impulsiona a ir além do esperado, alimenta os valores humanistas e socialistas e nos faz sentir membros de uma grande família: somos Sem Terra”;

c) sem emoção não há aprendizado;

d) não se aprende fora da cultura;

e) conhecimento novo não se constrói sem um engate num conhecimento anterior.

Por último, destaco os chamados “elementos operacionais” (MST, 2003, p. 52-55),

que favorecem o desenvolvimento pedagógico do trabalho, tomando por base elementos

organizadores do projeto, e com ele afinados:

a) organizar as turmas levando em conta a socialização e a heterogeneidade entre os educandos;

b) organizar internamente as turmas;

c) fazer diagnóstico permanente;

d) garantir o planejamento das atividades;

e) registrar o processo educativo;

f) garantir a formação permanente das educadoras, dos educadores;

g) ter método de acompanhamento do processo educativo.

Como se observa, há um cuidado intenso na organização e funcionamento dos

projetos, ressaltando o sentido dos registros, do planejamento, reveladores da intencionalidade

em que se assenta a concepção de EJA, processualmente, seja pela previsão metódica do

acompanhamento, seja pela formação continuada dos educadores.

A coordenadora Joelma complementa a concepção de EJA, dizendo ser necessário

“vincular essa questão do educador permanecer educando”, o que nem sempre pode ser

pensado, segundo ela, para que o educador permaneça na sala de aula, e sim contemplando

outros processo formativos, indispensáveis “devido às condições de infra-estrutura, condições

Page 396: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

394

humanas de trabalho, ainda mais quem estuda à noite”. Diz, também, que independente de

haver ou não projeto de EJA com convênio firmado (referia-se ao caso do PRONERA) para

fazer acontecer as turmas, há continuidade nas ações, elas não se interrompem. Enquanto o

Movimento aguarda a liberação de um projeto, não fica parado, as aulas começam, não há

espera, o trabalho tem início. Considera esse aspecto um diferencial no projeto, que não

começa com ele e se finda quando o tempo de projeto acaba, o que define o tempo do projeto

é a necessidade de aprender dos sujeitos.

Informa, ainda, que os professores que atuam na educação de jovens e adultos não são

pessoas novas no Movimento, participam dos encontros, têm de cinco a sete anos de MST. A

dificuldade está em lidar com as pessoas novas que entram, porque até compreender a

metodologia, o método, o jeito, é um processo muito longo. De modo geral, as pessoas que

trabalham na EJA são pessoas assentadas, normalmente não há acampadas.

Joelma continua oferecendo ricos e variados sentidos para que seja possível

compreender o que tem sido a educação de jovens e adultos para o Movimento:

[...] não é só ensinar a ler e escrever. Ou codificar e decodificar a letra. Mas também está relacionada à produção do assentamento. [...] nosso objetivo é bem maior do que saber ler e escrever. Mas eu vejo assim que essa questão da EJA é uma das maneiras de vida que o Movimento Sem-Terra tem... vem tentando assim lutar pra que tenha nos assentamentos e luta também pra que a perspectiva seja não só saber ler e escrever. Acho que tem assim uns momentos que é bem importante essa questão do EJA, é os nossos encontros. Tem alguns assentados, que você vê no relato das pessoas que tem vontade de estudar e ali ele tem a condição de estudar. Acho assim que não tem dinheiro que pague essa questão do valor que a pessoa tem em relação a você quando vê que você tá ali, não por interesse econômico, mas por interesse de organização. Com interesse de eu querer te ajudar e você me ajudar. É o interesse de formar o que a gente tanto sonha, que é a questão da coletividade.

E vai além, demonstrando a forma como imbrica a educação de jovens e adultos com

uma perspectiva mais ampla, não restrita à sala de aula, mas de responsabilidade de toda a

sociedade, de todos que se relacionam, pela condição humana, na vida, de conteúdos diversos,

que liga o aprendizado da leitura e da escrita às necessidades políticas da formação humana:

[...] educação pra gente é um momento de relacionamento entre educador e educando, que vão trocar as experiências: o que você sabe você pode trocar comigo e assim a gente vai aprendendo a ler, aprendendo a escrever... e a gente também trabalha com essa questão da formação política na educação de jovens e adultos. [...] a educação no Movimento Sem Terra ela vai além das quatro paredes. Por que? Porque a gente vê que o processo de educação e o processo de formação são coisas que andam juntas e pra nós educação... o ato de educar não é só dentro da sala de aula. Pra nós essa questão —

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395

ultimamente a gente tem debatido muito essa questão — o ato de educar, ele também é na reunião. Ele também é na comunidade, ele também é na conversa que eu tenho com o meu vizinho. Quer nos nossos encontros ou não.

1100..33..11 FFeerrrraammeennttaass qquuee oorrggaanniizzaamm aass ssiittuuaaççõõeess ddee aapprreennddiizzaaggeemm:: ccoonncceeppççõõeess ddee

aallffaabbeettiizzaaççããoo ppaarraa oo MMoovviimmeennttoo

O Movimento faz um destaque bastante evidente para a alfabetização, como de fato

esperado. Os sujeitos rurais, por um imenso déficit histórico, têm apresentado os mais baixos

índices de escolarização, observáveis tanto nos censos demográficos, como nos censos

educacionais. A questão da alfabetização, detectada no PNERA, reafirma o descaso das

autoridades públicas na oferta de escolas para as populações rurais, que chegam à idade adulta

analfabetas, com vestígios de apreensão da cultura escrita. As distâncias entre os locais de

moradia nos assentamentos e as escolas, a ausência (ou quase) de transporte, exigindo da

maioria a marcha a pé, a falta de infra-estrutura básica, entre muitos outros fatores, tem

determinado essa situação, agravada pelo desejo de uma educação voltada para a realidade do

campo, da qual as escolas também não se ocupam. A mesma pesquisa revela o quanto de

desconhecimento por parte dos professores em relação à situação dos assentados existe,

quando há escolas, e o quanto a cultura camponesa é desprezada nas concepções curriculares.

Joelma diz que a concepção de alfabetização para o Movimento inclui fazer o sujeito

tomar consciência de que o fato de ser analfabeto, não o diminui na condição de cidadão, com

direitos iguais, que também pode intervir na realidade. “Mas por que você não aprende ler e

escrever?”, indaga. A compreensão da coordenadora, de estímulo ao não-alfabetizado, no

entanto, deixa encoberta a idéia de que o direito desse sujeito não é igual ao dos que sabem ler

e escrever, do ponto de vista dos direitos políticos, porque segundo a Constituição brasileira,

ele vota, mas não pode ser votado. Um limite de direito que, talvez, na prática, não afete

grande parte dos assentados, que não se candidatariam mesmo a cargos eletivos, mas limite

sério quanto ao princípio do direito e ao exercício da democracia. A coordenadora segue,

aprofundando a concepção do aprender a ler e a escrever:

A gente procura colocar essa visão do porquê você tem que aprender ler e escrever. Porque a gente acha assim: muita gente vê que a educação de jovens e adultos é ensinar a ler e a escrever, tá pronto. E pro MST não. Aprender a ler e escrever vai além de você aprender, conhecer o alfabeto e saber escrever em forma de palavras. Então, pra nós, alfabetizar é mais do que isso, ou seja, é tentar vincular o que o indivíduo já sabe, o sujeito já sabe, colocar aqui no papel e explicar o porquê. Seria assim: ao ensinar a ler e a escrever, o porquê que eu tenho de aprender a ler e a escrever. Qual é a

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396

função realmente da escrita, a função da leitura, o que isso pode influenciar no processo de construção de uma nova sociedade ou de um melhoramento no assentamento, que seja da minha família e da comunidade.

No Caderno de Educação n. 3 (MST, 1994, p. 2 apud MST, 2003, p. 11) encontra-se a

referência do que é ser sem-terra alfabetizado, muito além, como se observa, das concepções

restritas com que muitos programas se satisfazem:

Sem Terra alfabetizado é alguém que escreve bilhete, que lê o jornal e os documentos do MST, que decifra e preenche questionário, que conhece a história da terra e da luta pela terra, que tem gosto de ler livros e busca o conhecimento técnico, sabe falar em público e, além disso, que sente o coração bater forte por causa da mística e continua a sonhar e a construir uma sociedade sem explorados e exploradores.

A concepção é eivada de claro sentido político, que não deixa dúvidas sobre o porquê

se alfabetiza — e se luta por esse direito — no interior do Movimento.

Sobre como realizam os processos de alfabetização, Joelma inicia dizendo que há

formas mais ou menos convencionais — por exemplo, o uso do alfabeto móvel, “aquele que

vem uma letra e cada um numa folhinha” e sobre o qual explica que [...] “fala alfabeto móvel

porque você pode mexer com ele pra qualquer lugar e você pode formar o que você quiser”, e

que a produção desse material é feita em aula de educação artística, junto com os educandos.

Mas diz ainda que em muitos casos parte-se da necessidade de escrita do nome, “e

você vê que o olho brilha quando consegue. Por que não ensinar então a escrever o nome?”,

justifica, para que não dificulte a questão do ensino/aprendizagem. Em outros casos, diz que

quando fala escrever, ensinar a ler e escrever, não significa ensinar palavras soltas ou “ensinar

em carreirinha”. Refere-se a ensinar “dentro de um contexto, de uma leitura, de uma

realidade”. Com isso, entende que “já vai pegando esse que a pessoa sabe”. Pergunta-se:

[...] por que não formar um texto e ler o que a pessoa escreveu? Às vezes, a pessoa escreve uma coisa — a gente fala que a criança escreve garatuja, mas ele consegue falar o que é aquilo, nem que ele conte história. O adulto também faz, que não sabe escrever corretamente, mas ele conhece uma letra. Ele sabe, conta aquilo que escreveu. Então, por que não pegar aquilo que contou, que ele escreveu e leu pra você e você botar no quadro? Você não vai falar pra ele que tá errado, que tá certo, mas ele vai ver diferença e ele vai perguntar. “Mas por que tá diferente a forma como eu escrevi e li pra você e a forma como você registrou aí no quadro?”

Quanto às dificuldades que os alunos sentem, relata que eles dizem que “é melhor

pegar na enxada do que pegar na caneta. A caneta é mais pesada do que a enxada”. E chama a

atenção, mostrando o Caderno de Educação Sempre é tempo de aprender, que “isso aqui

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397

tudinho não acontece na prática, mas eu acredito que alguma coisa que você ler, você vai ver

lá. Então, o todo não consegue, mas parte, e nunca deixar de ter essa nossa perspectiva, isso

acontece”.

Sobre o tempo despendido para a alfabetização, principalmente por que os projetos de

convênios prevêem um término, diz que:

[...] com coisa de um ano, assim, a gente tem conseguido a ler e escrever. [...] creio que dentro de um ano as pessoas já conseguem geralmente conhecer a letra, ler e escrever. Mas na nossa perspectiva de educação... nossa educação não acaba de 1ª a 8ª série, ela é um processo contínuo de formação. Por que? Porque essa questão da formação é uma questão muito lenta, esse processo de formação. É lento, lento como se fosse uma tartaruga...

Joelma intensifica a concepção de alfabetização: “eu digo que aprender a ler e escrever

é mais fácil, é mais rápido, é com ânimo. Mas pra pessoa aprender a interpretar, a entender,

ter aquele... aquela questão da formação que o Movimento Sem Terra... é tanto que essas

pessoas que estão na sala de aula, elas vão pros nossos cursos de formação”. Observa-se que a

compreensão de leitura e escrita de Joelma não se resume ao código suficientemente

dominado, mas a um domínio que implica assenhorear-se da cultura escrita com os ritos de

poder que se constroem com ela, implicando as muitas formas de participação na sociedade

que agem interferem, alteram a realidade.

Por fim, sobre o que significa ser analfabeto, Joelma diz que “é aquele que não sabe

ler e escrever porque o nosso povo não sabe ler e escrever, mas eles sabem discutir esses

assuntos”, sem o que, digo eu, não se justifica o aprendizado, cabendo retomar a questão

principal do por quê ensinar a ler e a escrever.

1100..33..22 FFeerrrraammeennttaass qquuee oorrggaanniizzaamm aass ssiittuuaaççõõeess ddee aapprreennddiizzaaggeemm:: ccllaasssseess,, mmeettooddoollooggiiaass,,

ccoonnssttrruuççããoo ccoolleettiivvaa,, ccoonncceeppççõõeess ddee ccuurrrrííccuulloo

Uma das primeiras questões que cabe apontar para a compreensão do como se

organizam as classes no Movimento, diz respeito à complexidade da vida dos pobres, que

além do trabalho duro diurno, passa a ter de se estender por uma jornada noturna, de corpo

cansado das lides no campo, ao sol inclemente ou à chuva, que não podem impedir o cuidado

com a terra, exigente sem trégua da atenção humana.

A jovem coordenadora Joelma reforça a idéia de que a realidade não permite, se for

tomada pela racionalidade das condições materiais. Mas diz que a ida aos assentamentos

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mostra como é possível vencer as dificuldades para organizar as classes, de tal sorte que

“você vai falar assim, esse povo aqui é mágico pra poder trabalhar, ao ponto de faltar até giz.

[...] Você olhar pra aquela turma, todo mundo cansado porque pegou um sol de 40 graus. É

difícil demais, muito difícil”.

Nas noites, em muitos assentamentos sem luz, o deslocamento às classes não pode ser

feito só pelo homem, ou mulher, em busca da escola, porque há os filhos pequenos, que não

ficam sozinhos. Então, coloca-se um impasse, a classe só pode ser à noite, porque o dia é do

trabalho, e não pode ser à noite, porque assentados não têm onde deixar as crianças. A

solução, então, é acolhê-las para que seus pais possam estar lá: “se vem a mulher ou vem o

marido tem que trazer os filhos, até porque à noite não vai ter coragem de deixar sozinho,

porque menino, piscou o olho, já aprontou”. (Coordenadora Joelma). Essa situação se repete

em muitas classes de EJA fora de assentamentos, verificáveis tanto pela Avaliação

Diagnóstica dos Programas Brasil Alfabetizado e Fazendo Escola, quanto por observações de

classes por mim vivenciadas no interior do Piauí, nos municípios de Nova Santa Rita e São

João do Piauí, nos quais as crianças não apenas acompanham pais e avós com quem muitas

vezes são criados, como até mesmo se valem das aulas como reforço escolar ou atuam como

professores-mirins, que ajudam seus ascendentes a vencer as dificuldades do aprendizado da

leitura e da escrita, de forma afetiva, próxima, acolhedora.

Joelma refere-se às relações entre sujeitos adultos e crianças, dizendo que não há

impasse de a criança tentar ensinar o outro, por ser mais nova. Ela diz: “Muito pelo contrário,

ficavam divertindo, as meninas que tavam estudando acabavam rindo e acabava aprendendo,

porque falava: ‘Meu filho sabe mais do que eu, agora eu vou aprender’. Aí falava: ‘Assim vou

aprender mais que você, e amanhã eu vou te ensinar’”. Corrobora, ainda, essa observação,

dizendo que “a gente tenta trabalhar assim, aquele que sabe pode ajudar aquele que não sabe”,

e que “no MST tem um negócio que não precisa falar, já faz parte da organização, que é essa

questão de ajudar o outro que tá em dificuldade. [...] você não precisa falar: ‘Ah! Ajuda

fulano ali que não sabe’. O outro, rapidinho, levanta ali vai lá e ‘Deixa eu te ajudar aqui o que

eu aprendi’”.

O educador Enilson fala da dificuldade de organizar os encontros, da periodicidade, de

outros estímulos com os quais devem conviver — e superar —, para que os alunos

mantenham-se interessados nas aulas, e venham à classe:

Porque quando você faz uma discussão hoje, daqui um domingo ou outro você vai fazer [de novo], até que eles entende, agora, fazer eles entenderem

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que era preciso tá abrindo ali aquela sala de aula pra eles trabalhar ali, é... estudar ali todos os dias, ou duas, ou três vezes por semana, ficou bem difícil. [...] a competição com a televisão, porque o horário de aula era o mesmo horário de novela. Então, foi um impasse tão grande que eu tive que tá começando um pouco mais tarde e terminando um pouquinho mais tarde, porque uns queria uma coisa, outros queria outra, então a gente teve que negociar.

A negociação continua sendo a chave do trabalho de Enilson, que não se resume a esse

início de narrativa. Criativamente vai atraindo os alunos para a sala de aula, denotando um

grande esforço para fazê-lo, mas também o enorme compromisso com o lugar de educador

encontrado no Movimento, à custa do PRONERA, em que o exercício da democracia é

prática cotidiana. Propõe, negocia, vai junto, faz, reinventa, recria:

[...] o que seria esse (pausa) PRONERA? [...] logo nos primeiros dias até eu mesmo desanimei, porque aparecia pouco aluno em sala de aula, aparecia dois, três, dois, três, na primeira semana. [...] eu tentei fazer com que eles chamassem os outros também pra sala de aula, convidar pra ir na sala de aula, pelo menos uma vez, “Vamos lá!” [...] na hora de dá o nome muita gente dá, mas na hora de ir para sala... “Ah! hoje eu não posso que eu estou doente...” “Ah! hoje eu não posso...” Eu saía casa por casa: “Vumbora, vumbora”, porque lá é agrovila, aí eu chamava casa por casa: “Vumbora, vumbora, pra sala de aula”. [...] sentamos e falamos: “Como é que nós vamos poder trazer os outros que não estão aqui, que também estão precisando desse conhecimento?” [...] “Vamos convidar eles pra vim pelo menos uma vez. Se eles vim uma vez aqui e se eles interessar pela aula bem, se não interessar tudo bem”. [...] a gente saiu casa por casa, [...] a gente fez uma coisa bem criativa. Eu tentei, falei: “Vamos fazer também, vamos ajudar, vamos ajudar, porque eu não tenho experiência. [...] nós leva chá, nós leva alguma coisa”. “Então, vamos fazer uma confraternização logo no primeiro dia, na hora que eles vim pra sala de aula. [...] vamos fazer uma confraternização, vamos fazer tipo uma conversa em grupo”. [...] a gente conversamos bastante, eles puseram suas idéias: “Essa condição dava, essa não dava...” Eu disse: “Tudo bem!” “Vamos adaptar um horário que seja útil pra vocês e que não atrapalhe seu cotidiano. [...] a hora que terminar [a nova safra] aí a gente volta pra sala de aula”. [...] consegui trazer 16 alunos pra sala de aula. [...] “Vamos tratar de fazer o chá, o café”. Tinha um menino que passa vendendo pão, eu comprava cinco reais de pão, era pra manter esse pessoal na escola. Eu fazia as torradas e levava pra sala de aula.

Às condições materiais de organização da classe, no entanto, aparentemente

desprovidas de tudo, colocam-se achados que a arqueologia de algumas pesquisas, e a

disposição de pesquisadores escava e faz surgir, brotando como fruto da terra, inicialmente

inóspita. Furtado (2001, p. 10) é uma dessas estudiosas do Movimento, cuja contribuição tem

ressignificado as produções educativas do campo. Na pesquisa intervenção realizada com

assentados no Ceará, identifica, por exemplo, alguns elementos indispensáveis à organização

do ambiente alfabetizador, distintos suportes textuais, quase sempre concebidos como

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inexistentes em áreas em que as pessoas são, em grande parte analfabetas e onde, portanto,

circulariam poucos materiais escritos. Agrupa-os em ambiente de produção agrícola,

encontrando: folhetins explicativos, folders, manuais de operação de máquinas e de usos de

defensivos; ambiente da organização político-administrativa: atas das reuniões, ofícios-

circulares, abaixo-assinados, cartazes, fichas cadastrais, projetos, financiamentos/créditos,

relatórios de custeios, panfletos de eventos políticos, materiais de apoio e divulgação do MST

tais como cartilhas, cadernos, calendários, livro de canções e da Comissão Pastoral da Terra

(CPT), jornais locais e nacionais, revistas e outras publicações do MST; no ambiente

doméstico: rótulos de produtos alimentícios e de higiene pessoal e coletiva: dados sobre

quantidade, validade e tipo do produto, tipos de componentes, valor alimentício, modos de

uso, cuidados a serem tomados, endereços de contato com a empresa produtora, entre outros,

manuais de eletrodomésticos, invólucros e bulas de remédios; anúncios, telejornais,

telenovelas, filmes, documentários, programas de entrevistas na televisão e rádios, conta de

luz, bilhetes, cartas; e no ambiente escolar: dicionários, livros didáticos, cadernos, tarefas

escolares, produção dos alunos tais como poesias, músicas, narrativas orais, contos, cartazes,

desenhos, colagens, canções.

Assinala, também, que os processos desse fazer exigem construção coletiva, porque

metodologicamente:

Nenhuma intervenção torna-se possível, nos assentamentos do MST, se tomada de fora para dentro ou de cima para baixo. A relação deve ser horizontal, com as cartas postas na mesa: o diálogo é a trilha sobre a qual deve caminhar a experiência e os sujeitos envolvidos nela. (FURTADO, 2001, p. 5).

Nesse sentido, Joelma relata algumas situações que revelam as formas como os

educadores vão reinventando, no cotidiano a didática, e esta se vai legitimando pelas maneiras

como a formação continuada possibilita, pelo estímulo aos registros, às sistematizações, fazer

emergir e expressar o que é produzido pelos educadores, que então, o ressignificam:

[...] então, ela ensina através do crochê. Aí, como é que é isso? Os colegas têm que contar os pontos. Então, ela começou a ensinar matemática e português através daquele material. Até os homens que... encarou essa questão do preconceito que tem do homem em relação à casa . Então, assim, no início, teve algumas resistências porque os que eram homens não queriam fazer o crochê, porque era de mulher. Aí, no final as mulheres tavam aprendendo mais do que eles, então eles falaram: “Quero aprender esse negócio aí também” e a Cida começou a ensinar também pros homens. Ele aprendeu a passar o que ele sabia já de cabeça pro papel, mas ele aprendeu uma tarefa que, acho, foi o mais importante ainda, foi essa questão do valor que ele começou a dar à mulher dele em relação ao serviço de casa. Quando

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ele fez aquele crochê, parece que ele mudou o ser dele, assim, mas lá dentro mesmo. Assim, essa concepção que coisa de casa não é só de mulher.

Embora Joelma não explicite, a questão do gênero e dos papéis sociais assumidos

culturalmente estão implícitos na prática pedagógica, que continua a narrar:

[...] essa questão do EJA, de contar a história de vida. Cada um conta a sua história. Primeiro, conta falado, depois conta escrito, o que a pessoa acha que é melhor de representar sua vida. Então, essa parte pra mim é a mais interessante, é de escutar cada um ali contar sua história, principalmente assim da gente conhecer, você me conhecer e saber um pouco mais da vida de cada um.

Na mesma direção, narra uma experiência vivida por ela mesma quando educadora,

com turma:

Nós pegamos a cartilhinha do Paulo Freire135 e botamos nos envelopes e mandamos por correio pra cada um. E isso foi tão interessante essa experiência... que tem lugar que é muito difícil receber uma carta pelo correio. Então, quando eu recebi aquilo, eu chorei, quando ele veio me contar. Tipo assim, que ele... “Nunca pensei em receber alguma coisa”. Então, quando ele abriu, viu que era um livro. “E agora, sem ler? Como é que vou fazer?” Então, só pra ver a importância, só pra começar mesmo a experiência com essa cartilha, História do menino que lia o mundo, e tinha ainda assim, e tinha umas figuras, que era Paulo Freire aprendendo ler, debaixo da árvore, tinha algumas figuras, e a gente foi e contou aquela realidade de Paulo Freire pra ele aprender a ler. E aí a gente falou: “Tá vendo como é que ele também não aprendeu a ler no...” a gente ficava relacionando com essa questão do professor dizer a ele: escreveu? Ele é rico. A gente tem essa visão. Então a gente diz: “Tá vendo, ele não aprendeu como a gente tá pensando que foi...”

Ao trazer Paulo Freire como exemplo, Joelma ainda me diz de que forma o educador e

seu pensamento estão presentes como fundamentos vivos das formulações e das práticas do

Movimento, constituindo material de estudo e leitura nos cursos. Ao afirmar essa presença,

interroga-se, me respondendo, sobre por que motivo Paulo Freire é tão estudado pelo MST:

[...] porque a gente acha assim que o que Paulo Freire escreve é como se fosse pra nós, sinceramente. Porque o que ele diz ali com relação à educação é o que a gente tem que buscar, e o que ele diz em relação aos excluídos é o que a gente é. [...] Ele escreveu pro pessoal do MST... porque é o que a gente vê. Então, é igual à nossa concepção de educação.

Os procedimentos didáticos que Joelma diz recomendar para o trabalho docente

incluem a “leitura em voz alta”, quando “quem quer ler, lê”, tipificando uma prática de roda

135 A cartilhinha a que se refere Joelma é um livro infantil denominado História do menino que lia o mundo, texto de Carlos Rodrigues Brandão retratando a biografia de Paulo Freire, ilustrado e editado pelo MST em 2001.

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de leitura, pela qual é possível incluir a todos: os que sabem, e os que, ainda, não sabem ler.

Observe-se: “Depois todo mundo faz uma rodada de discussão do que entendeu daquele texto.

Então isso possibilita com que a pessoa, mesmo que não leia ou escreva, ela entende,

compreende e muita coisa sabe discutir”.

O educador Enilson é pródigo ao narrar suas práticas pedagógicas, das quais podemos

extrair inúmeros aspectos, tanto no que tange às concepções de ensinar-aprender, quanto no

como estabelece relações entre sujeitos aprendizes, no qual se inclui, como constrói seu

sentido de ser educador, segundo as necessidades dos alunos no assentamento, exercitando,

inovando, recriando modos de fazer:

[...] alguém tinha falado na história de vida e eu falei: “Então... vamos começar contando as histórias de vida de cada um pra depois passar pro papel”. [...] A outra estratégia foi usar também os conhecimentos que eles viam na televisão. Eu mandava anotar “algumas coisas que vocês não entendem lá. Vamos trazer pra sala de aula”. [...] surgiu a questão dos transgênicos, surgiu a questão de bolsa de valores. [...] Se eu não tinha conhecimento, eu procurava me aprofundar em livros. Às vezes — minha irmã tem Internet — eu fazia ela ficar doida. “Procura isso aí pra mim porque eu preciso desse material pra trabalhar à noite”. Outra questão foi a das plantas medicinais. [...] “Vamos criar uma horta medicinal. [...] Vamos criar”. Trabalhava uma hora no lote de cada um. Incentivava eles a fazer os canteiros. Se eu estava mais desapertado eu ia lá, na casa de fulano, incentivava eles a fazerem os canteiros, cultivar a horta, colocar as plaquetas, pra que serve. [...] Porque às vezes [se] fala assim: “São tantas horas em sala de aula...” Não, eu procurava... se eu tinha espaço pra ensinar no meio-dia, ali, terminava meu almoço, eu falava: “Vou na casa de fulano ali, pra ver como tá a horta dele”.

Quanto à questão do currículo, Joelma diz que há uma constante preocupação com o

relato do que vai sendo experienciado pelos educadores. “O que se faz hoje, amanhã se relata.

Tem que ter um caderno pra gente relatar o que a gente planeja pra fazer, aquilo que a gente

fez e o que nós fez que precisa de mudar. Então, a gente tem esse hábito de relatar as coisas.

Não só na questão das escolas, mas nos encontros também”. Dessa forma, a emergência do

currículo, no dizer de Oliveira (2004b), vai-se fazendo, porque, segundo Joelma, “tem

dificuldade muito grande de se vincular teoria e prática”:

Eu falo que o currículo não necessariamente tem que ser fechado e nem que tem que ser largado o objetivo de lado. Mas ele pode ser flexível. Ele pode ser tirado, pode acrescentar ou ensino, de acordo assim como as coisas vão acontecendo. Não é a gente também não planejar, não tem um... tem sim, porque as coisas têm que ser planejadas, tem que ter uma linha.

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E segue ainda, dizendo que, nesse processo de compreensão da prática pedagógica,

não basta ao educador a tomada de consciência, se os alunos também não conseguem

apreender, segundo as mesmas formas pelas quais o educador o fez:

Porque uma coisa é o professor entender, outra coisa é toda a turma entender o porquê daquilo. É justificar e você tentar assimilar aquilo como seu. Então, essa que é uma das dificuldades pra você entender, não significa que você assimilou, você interiorizou como seu. Você é parte daquilo e vai construir e vai mudar.

Quanto às concepções metodológicas na EJA, Joelma demonstra de que forma vem

sendo concebido o ambiente educativo — as intencionalidades pedagógicas que educam ou

deseducam, dentro ou fora das classes, segundo o documento do MST Sempre é tempo de

aprender (2003, p. 47) — nas práticas do Movimento:

[...] educação não é só nessa questão das quatro paredes, educação vai mais além disso. A gente fala assim que a gente tem uma prática, um ensinamento, que é de visitar as roças dos assentados. Leva as crianças ou os adultos pra visitas às roças do outro e quem tá na roça vai explicar aquele processo da roça ali pra quem for visitar. E nesse momento, a gente fala que é um momento tão grande de aprendizado porque aquela pessoa que não sabe ler e escrever se sente tão valorizado que ele fala: virei professor. [...] é totalmente diferente porque ele se sente naquela hora professor e tá ensinando aquilo que ele mais sabe fazer, que é mexer com a roça.

O educador Welson corrobora essa observação de Joelma, mostrando como novos

saberes podem ir sendo produzidos por meio da intervenção pedagógica, embora saiba, como

ela diz, que “é muito complicado você viver num sistema e tá construindo uma outra coisa

dentro do sistema”:

Porque juntando o seu saber com o saber deles, a gente vai formar vários saberes. Então é muito por aí. Educação de jovens e adultos é muito por aí. É você se integrar mesmo na sala de aula, fazer da sala de aula um ambiente ali que todos possam aprender, aprender e transmitir o que você chama de saber. Eu acho que é muito por aí.

Indagada sobre a existência de bibliotecas, de práticas de leitura mais sistemáticas nos

assentamentos, Joelma responde que praticamente elas inexistem, dizendo que até pode haver

bibliotecas, mas que “ninguém tem condições de comprar livro pras bibliotecas”. Acrescenta

com a informação de que as bibliotecas do município são pobres e o que faz para superar essa

dificuldade:

A gente faz um conjunto com os livros repetidos e a gente vai doando pras escolas, porque é uma situação muito precária essa questão da leitura em relação a livros. Você vai chegar em todas as escolas, na maioria você não

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vai ver biblioteca. Agora, se você for na casa do professor você vai encontrar. Na casa do professor e dos alunos, aí você vai encontrar livro. Na escola, não.

Joelma conclui dizendo o que pensa estar ainda faltando, para a transformação do que

fazem, na prática pedagógica, os educadores nos assentamentos, que confirme e reafirme as

formulações organizadas pelo MST: “vincular teoria e prática, tão importante uma como a

outra, nenhuma importante mais que a outra. Então, assim, tem dificuldade e muita [...] essa

questão da teoria e da prática, do que a gente discute e do que a gente faz no assentamento”.

1100..33..33 FFeerrrraammeennttaass qquuee oorrggaanniizzaamm aa ffoorrmmaaççããoo ccoonnttiinnuuaaddaa:: iimmbbrriiccaaççõõeess ddee ffoorrmmaaççããoo àà

eedduuccaaççããoo ddee jjoovveennss ee aadduullttooss

Da convicção de que “somos educadoras e educadores do povo”, aos princípios

metodológicos que implicam consistente formação, até os elementos operacionais que

confirmam a garantia “de formação permanente das educadoras, dos educadores”, a

concepção de educação de jovens e adultos se apresenta fortemente imbricada com os

processos formadores de docentes, tratados pelo Movimento como educadores. Essa

perspectiva de formação136 se estende para sentidos amplos, não restritos aos conteúdos

técnicos, mas vinculados aos modos de ser sem-terra e de fazer a luta, verificáveis nos

tempos de formação da proposta do PRONERA. Por exemplo, quando se atribui parte do

tempo físico da formação à participação dos educadores na vida dos assentamentos — o

tempo comunidade —, quanto na forma como se procede à continuidade da formação escolar

dos educadores, fundamento da formação para si, e consolidação do conceito de que aprender

por toda a vida inclui os próprios sujeitos educadores como jovens e adultos em processo

educativo. As evidências da assunção da formação não param aí, considerando-se, ainda, o

esforço definitivo do MST ao conseguir romper as cercas da universidade — esse latifúndio

do conhecimento — e produzir uma alternativa aos cursos de pedagogia, alternativa

interessada nas lutas, concepções, visões de mundo e de transformação social dos sem-terra,

cujo projeto pedagógico se volte aos interesses das classes trabalhadoras do campo, e aos

desejos de estudo e de educação de homens e mulheres que vivem da terra.

136 Sobre o problema da formação no MST, Oliveira (2005) faz preciosa discussão explorando-o como um conceito que envolve múltiplos elementos: a experiência, a experiência de formação e os saberes de experiência. As indicações e reflexões feitas ao longo de sua ética e rigorosa pesquisa foram em parte por mim compartilhadas no sabor do acontecido, podendo eu ter ainda bebido da rica fonte de seus depoentes, aos quais também sou grata, por matarem minha sede e alimentarem o fazer de minha própria pesquisa.

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Nas falas dos educadores entrevistados em encontro de formação, vão-se esboçando os

sentidos do ser educador no Movimento, desde a idéia inicial de que “todo mundo é

educador”, talvez revelando uma visão de que a profissão é inata, meio aparente na fala de

Welson, educador que chega ao Movimento para assumir exatamente este lugar:

[...] logo depois dessa experiência [de trabalho na cidade] é que eu cheguei no assentamento com esse propósito, até porque não tinha nem como escapar. Porque eu era o único lá que poderia entrar nessa linha aí. Tinha que ter pelo menos o 2º grau e eu tinha. [...] Nem formação política eu não tinha de fato.[...]. “Como é que eu vou tá no meio deles sem saber o que eles pensa e o que eles quer...” [...] É uma coisa muito difícil, mas a gente pode se adaptar a ela. Acho que na verdade, todo mundo é educador.

Uma outra apreensão que faço diz respeito ao papel militante do educador. Desde a

militância identificada com a não interrupção do trabalho de educação porque não há recursos

para o projeto (ainda, ou não mais), até concepção mais complexa, que envolve um olhar

amplo sobre o que é ser educador, sintonizado com a militância dos demais assentados,

conformando uma rede horizontal de relações e de poder, simétrica e, insistentemente, igual.

[...] não dá pra separar o educador do militante e do agricultor. Quem mora na roça é agricultor e eu me considero um militante do movimento. De uma forma ou de outra, nos assentamentos temos os setores e quem assume são os militantes e agricultores. Quem está no trabalho de massa é um educador, porque não educa só na sala de aula. Nas formações eu tenho um aluno que trabalha na frente de massa direto com o povo na liderança. (Educador Juliano).

Sobre os espaços de formação desse educador militante, formado em diferentes

instâncias do Movimento, há diversos depoimentos esclarecedores, desde o do educador

Enilson — que diz que “ensinava a ler e a escrever. Quando participei do Regional eu vi que

tinha que ir mais além. Tinha que ter mais formação política” —, até a educadora Maria

Margarida que traz a perspectiva da experiência da lona — o tempo de acampados —, como

indispensável na conformação de vínculos e de enraizamento com o compromisso educador

no Movimento.

[...] acho assim fundamental a pessoa ter o acesso da lona... Eu acho que se eu tivesse passado pelo processo de acampamento a minha formação teria sido bem... (pausa). Isso é muito importante pra formação da gente. É o momento mais em que a gente se forma, é quando a gente tá embaixo da lona. A formação ali é contínua, é todos os dias. Quando a gente vai pro assentamento, a gente perde um pouco esse vínculo. A gente se forma mais pra fora. [...] Porque antes de eu vim pro Movimento, meu mundo era pequenininho e hoje é bem amplo, bem grande, porque você tem vários conhecimentos, você aprende muito, trabalhar a teoria e a prática me ajudou muito.

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Joelma chama atenção para as realidades muito diferentes, onde “as coisas acontecem

diferentes, mas na mesma perspectiva”. Desse modo, justifica que as formas de fazer são

diferentes, devido à realidade, mas depois as experiências são relatadas, com os todos os

grupos juntos.

A educadora Nelci, do assentamento Bela Vista, diz que “a concepção política de fazer

entender as pessoas ter uma visão maior do mundo é muito difícil. Mudar a cabeça deles não é

fácil”, já apontando para o compromisso do educador de não vivenciar, apenas ele, os

processos de transformação propiciados pelas inúmeras atividades de encontros de formação,

mas de organizar, do mesmo modo, ambientes educativos com a mesma finalidade.

Joelma relata como acontecem os momentos de formação no Movimento, precedendo

a informação sobre o curso Pedagogia da Terra:

[...] o Movimento dos Sem Terra, além da questão do curso de pedagogia, ele faz formação dos professores. Tem planejamento, avaliação, estuda métodos de educação no MST, então isso melhora muito essa questão da formação do professor. Porque a formação do professor só não tá naqueles cursos que a prefeitura ou o estado oferece, mas a gente também oferece que é esses nossos encontros que a gente tem com os educadores, aí vai e junta Sul e Norte lá no Centro, que é um centro de formação, que a gente fica preocupado porque São Mateus não oferece.

Ainda sobre essas atividades, informa que há cursos chamados de “prolongado”;

cursos da “escola nacional”, que se compõem de um período de 90 dias num ambiente

próprio, estudando de manhã, à tarde e à noite. Afirma que esses momentos ajudam na

formação, porque a sala de aula sozinha nem sempre dá conta. Complementa, dizendo que a

sala de aula consegue fazer com que “o indivíduo leia e escreva, e consiga entender o porquê

disso e o porquê daquilo, mas ela não consegue atingir a questão da formação do indivíduo”.

E continua: “Por isso, que a nossa idéia é os formais e os informais, que é pra poder contribuir

com essa questão da formação. Porque nossos cursos que são fora da sala de aula são pra

contribuir no processo de formação”.

O depoimento de Joelma demonstra a percepção da complexidade da formação do

educador, e da necessidade de oferta de múltiplos e variados espaços/dimensões para que a

formação não seja só para o trabalho educativo, mas também contemple a dimensão para si,

como componente da formação humana.

Explica que, durante esses momentos, todos os assuntos são permitidos, da EJA à

política; da questão de gênero e suas relações no assentamento. Diz que o coordenador dos

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eventos tem autonomia para chamar outras pessoas para fazer palestras, para propor que,

depois de terminar a aula, todos permaneçam 30 minutos para ler o jornal, e um dos

educadores explicar o que foi lido. Conclui: “Então, não é só o professor que faz esse

processo de formação. Ele convida, desde que faça um planejamento e um agendamento”.

Todas as reuniões são rigorosamente organizadas: em cada grupo há um relator, um

coordenador, todos participam, nenhum fica de fora. Essas práticas vivenciadas, não só

exercitam a leitura e a escrita dos educadores, mas fazem com que apreendam os modos de

organizar o trabalho na sala de aula, envolvendo todos os alunos, por mais diversos que sejam

os saberes e os interesses e experiências. A experiência da coletividade e da luta está sempre

presente, e todos que acompanham os processos formadores, estando na posição de

coordenadores estaduais ou nacionais, têm o compromisso posterior de ir às salas de aula,

acompanhar as práticas pedagógicas dos educadores.

Juliano relata o significado das formações no Movimento, na certeza, como Paulo

Freire, de que nenhum educador nasce feito, de que ninguém se prepara antes para ser depois.

Identifica na EJA a importância do que passou a ser, no MST, quando desafiado a assumir

uma sala de aula. Por esse veio chegou, finalmente, ao curso de Pedagogia da Terra.

[...] Por isso que é que eu nunca sonhava, eu não tinha essa vontade de um dia aí assumir uma sala de aula. [...] Eu não tinha vontade de ser professor, mas a partir do momento em que comecei a turma com a EJA, pra mim eu já me senti um professor, me sentia um educador. [...] eu não tinha algo de que já tava preparado, até hoje eu não me sinto preparado, porque ninguém tá preparado. Se eu não tivesse começado pela EJA, eu não estaria hoje no Pedagogia da Terra. [...] No meu ponto de vista, aprender a escrever o nome é essencial, mas a gente quer muito mais. É uma coisa indeterminada, você quer dá tempo ao tempo para ver onde cada pessoa que tá ali vai chegar.

Reportando-se aos momentos de formação de educadores, Welson narra sua própria

experiência, dizendo que “nos primeiros dias eu estava perdido. Não sabia me comportar nem

conduzir a sala”. Os encontros, então, vieram em seu socorro, pois pôde usar as experiências

que trocou com seus pares. “Sem aquelas experiências novas que eu trazia acho que não tinha

conseguido”. Em seguimento, aborda o quanto a leitura foi elemento determinante no seu

processo formativo, o que reconhece na atualidade, embora tenha passado por inúmeras

dificuldades. Atribui à leitura uma condição ligada a hábito, reproduzindo a forma como a

própria escola tem pensado uma atividade complexa, de trabalho intenso, associada muito

mais a práticas culturais de uso cotidiano, do que à questão do hábito, quase sempre associado

a outra falsa noção, a de que ler é, por princípio, prazer:

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Agora, falar que eu fui criativo, falar que eu pesquisei... Acho que nessa parte fico a desejar um pouco, até porque eu não tinha o hábito da leitura. Pra você ser um pesquisador você tem que ler bastante e é uma coisa que eu estou começando ainda, e pra mim fica muito difícil. Até porque o agricultor ele não tem essa coisa de muita leitura, ele é muito dedicado ao campo. E aí a gente esquece da leitura, até porque o camponês pensa que não precisa da leitura, e é o que aconteceu comigo. Eu não tinha esse hábito. [...] Porque eu, como todo camponês, tinha aquela ideologia de que eu não precisava ter esse hábito de leitura. E aí quando me dei de frente com esse princípio aí que é a leitura, eu tive... eu tive não, tenho ainda um pouco de dificuldade, que eu não sei, eu não sei ainda dedicar um tempo pra leitura. [...] Não a leitura como aquele processo contínuo que você tá lendo, tá lendo, sente gosto pela leitura. Talvez aí seja a minha maior fraqueza.

Finalizando o conjunto de concepções embutidas na idéia-força formação continuada,

cabe destacar um excerto de uma poesia feita por três educadoras — Nelci, Dalva e Jadma —

no encontro regional de formação, sintetizando o trabalho do educador, o movimento mesmo

que faz e as exigências imbricadas nesse fazer.

Nosso caminhar

[...] O educador tem se empenhado Com ousadia, criatividade, persistência, inovações. Busca a cada instante trabalhar Fatos da vida dos educandos, se envolver nas mobilizações, palestras, cursos e assim prossegue o seu caminhar. Trocando experiências com bravos guerreiros que vence o cansaço, o preconceito, e persiste na busca insaciável de novos conhecimentos.

1100..33..44 FFeerrrraammeennttaass qquuee oorrggaanniizzaamm aass rreellaaççõõeess ddoo MMSSTT ccoomm aass rreeddeess ee ccoomm aass ppoollííttiiccaass

ppúúbblliiccaass

A coordenadora Joelma relata as interações que vão sendo produzidas entre a ação

educativa militante nos assentamentos, em que as escolas, mesmo sendo do estado,

possibilitam a intervenção dos sem-terra, e as escolas do Sul, que são do município, em

maioria, o que, segundo ela, implica muitas diferenças, pelas dificuldades de trabalhar com os

professores “da rua”137, indicados pelo prefeito, geralmente, o que exige do Movimento

acompanhamento constante, para “ver como é que tá andando”. Nas escolas do estado quem

dá aula são assentados, portanto, integram o Movimento Sem Terra. Para Joelma, há

diferença, e destaca que no Sul apenas em uma escola estadual há uma assentada com curso

concluído de magistério, que leciona de 1ª a 4ª séries. Explica que as pessoas “da rua”,

professores não-assentados, vão às escolas dos assentamentos todos os dias, e voltam. No

137 “Da rua” é como a coordenadora denomina os professores que não são assentados, que atuam em escolas nos assentamentos, mas não vivem a cultura dos assentados.

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norte do estado as escolas são todas estaduais, e a perspectiva, portanto, é outra. “Quem dá

aula são os próprios filhos de assentados, são assentados que fez Pedagogia da Terra, que tá

fazendo, que tem curso para formar os professores”, referindo-se aos cursos de formação que

o próprio Movimento tem desenvolvido, em convênio com universidades138.

Mas apesar dessa forma de acolher o educador, quando este não tem origem no

assentamento, o MST tem travado uma forte interlocução com poderes públicos instituídos,

em busca de escuta e de recursos financeiros para a consecução do projeto de educação nos

moldes e concepções produzidos para homens e mulheres, crianças e adolescentes, jovens do

campo. Para isso, tem ocupado muitos espaços em conselhos, comissões, como um dos

representantes das muitas vozes do campo, no que tem obtido relativo sucesso, dada a

formulação e amadurecimento que demonstra das questões, tanto do ponto de vista estrutural,

quanto conjuntural. No tocante à educação de jovens e adultos, a primeira investida deu-se

pelo PRONERA, cuja formulação guarda estreito comprometimento com as concepções que

tem adotado, possibilitando, mesmo indiretamente, alcançar recursos que, especialmente nos

anos Fernando Henrique Cardoso, estiveram quase impedidos a qualquer ação que

beneficiasse os trabalhadores do campo organizado sob o Movimento Sem Terra. Com um

caminho menos direto, cercado de atalhos e riscos, conseguiram fazer acontecer um programa

cuja concepção, de caráter inovador, teve abrigo no Ministério do Desenvolvimento Agrário,

e nenhum apoio no MEC, a não ser pela via das universidades públicas, que, em muitos casos,

se aproximaram da temática, da luta, e ajudaram a construir sua compreensão. Uma outra

relação tem sido construída a partir da Comissão Nacional de Alfabetização, em que várias

representações da sociedade civil organizada têm lugar. Naquele espaço, uma dirigente do

MST baliza e pontua as questões do campo, concorrendo para a expressão de uma política de

alfabetização e de EJA que atendam às necessidades de jovens e adultos, cuja história deixou

de ser invisibilizada na sociedade brasileira. Do mesmo modo, a presença do Movimento

nessa Comissão coordenada pela Secretaria de Educação Continuada Alfabetização e

Diversidade (SECAD) pontua para as políticas da diversidade as temáticas e problemas

inerentes a esses sujeitos, tornando-as especificidades para a expressão de ações, currículos,

políticas de atendimento e de formação.

138 A Universidade Federal do Espírito Santo desenvolve o curso de Pedagogia da Terra no âmbito do PRONERA, realizando, em 2005, o curso para a segunda turma.

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1100..33..55 NNããoo nnooss ppooddeerreemmooss ddoobbrraarr ppeelloo sseeuu ppeessoo......139139

O Movimento, nas iniciativas da educação de jovens e adultos, da fase de negociação

do projeto, planejamento, conveniamento, formação de educadores, acompanhamento passa

por muitas dificuldades. A coordenadora Joelma relata várias dessas dificuldades, com as

quais tem lidado cotidianamente, algumas das quais experienciada por Oliveira140, que

acompanhou e pesquisou as ações de formação de educadores no Movimento no estado do

Espírito Santo. Das longas caminhadas, à garupa da moto, a pesquisadora vivenciou o que eu

mesma, quando envolvida com a formulação do projeto PRONERA no estado do Rio de

Janeiro, não precisei fazer, porque a trilha que levava ao assentamento estava aplainada, e as

condições de acesso, em um assentamento mais consolidado, eram menos agressivas.

Joelma me informa que no Sul do estado os assentamentos “são morrados”, ou seja,

não estão em terras planas, mas em montanhas, e “quando chove ninguém entra nem ninguém

sai”. Não há ônibus, o único assentamento em que se consegue chegar de ônibus é o Safra, na

beira da pista. Nos demais é preciso ir de moto, e Joelma diz que, “como eu não ando de moto

em barro, então alguém tem que me levar”. Essa dificuldade transforma-se em facilidade, na

perspectiva da narrativa de Joelma, com um revezamento entre os que acompanham as ações:

“Fazia um rodízio entre os 12 pra poder prosseguir as atividades porque não tem como andar

de ônibus e de carro [...] na regional a gente não tem carro. Só de moto, a gente vai só de

moto. Então tem essa facilidade assim”. Outra facilidade, segundo Joelma, é porque há

assentamentos em que acontece, voluntariamente, aulas para jovens e adultos, “porque mesmo

sem o projeto já tem a relação acontecendo”:

[...] num Movimento Sem Terra, independentemente do dinheiro, as coisas têm que continuar. Se o projeto acabou, as pessoas vão mover, as pessoas continuam, a vida continua e nós temos um sonho, então queremos alcançar. Então, essa que eu acho que é a diferença. Quando você vai no encontro vê aquele monte de gente que quer fazer as coisas e não tem condições, você acaba animando por aquilo.

139 O título refere-se à citação de Marx “Se escolhermos uma profissão em que possamos trabalhar ao máximo pela humanidade, não nos poderemos dobrar sob o seu peso...” (Karl Marx Biografia, 1983, p. 14, apud CALDART, 1997, p. 49). 140 Edna Castro de Oliveira, professora da UFES, parceira e companheira do curso de Doutoramento na UFF, pesquisadora dos processos de formação de educadores no MST.

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411

Joelma, demonstrando assumir na íntegra a idéia marxiana de não se dobrar ao peso da

dificuldade, mais uma vez narra a seguinte história, que ilustra o sentimento de pertencimento

ao Movimento e à EJA:

Tem um senhor que fala assim: “É melhor se tornar aluno, que a gente tem história pra contar depois. Quando chove tem que tirar água da lona, tem que segurar pro vento não carregar e naquela escola lá de concreto não acontece é nada de engraçado”. Então, é uma coisa que tem dificuldade, mas vê assim o prazer que as pessoas têm é gratificante só de você tá vendo. Quando está ventando tem que segurar o barraco pro vento não levar.

Por fim, a própria Joelma conta como não se dobra ao peso da dificuldade, usando a

linda imagem da marcha, do caminhar sempre para a frente, do não se deixar vencer pelo

cansaço, do papel inquebrantável das crianças — símbolos e sentidos da luta —, pela crença

no possível mundo novo, com o qual os assentados sonham, e pelo qual não desistem de lutar:

[...] eu tiro pelas nossas marchas. Por que alguns adultos não desistem de andar? Porque as crianças tão andando e as crianças gritam nos carros de som: “bora?”. Então quem é grande fica até com vergonha de cansar. Acho que é assim na hora que você quer tomar a educação. Então, assim, essa é a diferença. Você não é professor, você é um militante. Independente do recurso, você tem que continuar na sala de aula fazendo o seu trabalho. Então acho que é essa a diferença.

1100..44 ““TTIIRRAANNDDOO AA VVIISSEEIIRRAA””

A educação de jovens e adultos do campo não pode ser pensada em separado das

demais lutas que trava o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Como as demais, é

um campo de conquistas, no qual quanto mais se caminha, mais os sonhos são postos adiante,

convivendo todos com o rol infindável de outras lutas — todas em busca de direitos até então

negados. A classe social representada por esses sujeitos não difere, no aspecto das múltiplas

exclusões, de muitas outras desse país, interditadas também, mas ainda, em sua maioria, sem a

organização que conferiu, efetivamente, o diferencial ao MST.

Caldart (2004, p. 107) alerta para o fato de que:

Não há escolas do campo num campo sem perspectivas, com o povo sem horizontes e buscando sair dele. Por outro lado, também não há como implementar um projeto popular de desenvolvimento do campo sem um projeto de educação e sem expandir radicalmente a escolarização para todos os povos do campo.

Para a coordenadora Joelma, essa mesma idéia ganha um sentido metafórico, mas

rigorosamente coincidente com a questão de Caldart e com tantas outras que surgiram no

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412

desenvolvimento desse texto, do ponto de vista de pensar a educação de jovens e adultos pelo

sentido do aprender por toda a vida, próprio de sujeitos inacabados. Como o Movimento é

feito de homens e mulheres inacabados, nessa mesma perspectiva Joelma compreende o

momento do MST, e a necessidade de continuar a fazer a luta:

[...] eu digo que é tirar a viseira, porque você só anda assim [faz o gesto], só pra você. O MST tenta abrir isso aqui [de novo, faz o gesto] até o momento em que não tenha mais, você consiga enxergar o mundo ao seu redor e ver além do seu umbigo. Eu acho que isso o MST possibilita.

[...] Então, assim, o MST o que ele tem é uma construção pra definir ainda. Ainda não ficou adulto.

Voltando ao Ciço, no Posfácio (In: BRANDÃO, 1988, p. 198), emblematicamente,

cabe acrescentar:

Eu entendo pouco de tudo isso, não aprendi, mas ponho fé e vou lhe dizer mais, professor – como é que eu devo chamar o senhor? – eu penso que muita gente vinha ajudar, desde que a gente tivesse como acreditar que era uma coisa que tivesse valia mesmo. Uma que a gente junto pudesse fazer e tirar todo o proveito. Pra toda gente saber de novo o que já sabe, mas pensa que não. Parece que nisso tem segredo que a escola não conhece.

Como o senhor mesmo disse o nome: “educação popular”, quer dizer, dum jeito que pudesse juntar o saberzinho da gente, que é pouco, mas não é, eu lhe garanto, e ensinar o nome das coisas que é preciso pronunciar pra mudar os poderes. Então era bom. Então era. O povo vinha. Vinha mesmo e havia de aprender. E esse, quem sabe? É o saber que tá faltando pro povo saber?

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413

1111.. PPRROOGGRRAAMMAA AALLFFAABBEETTIIZZAAÇÇÃÃOO SSOOLLIIDDÁÁRRIIAA:: BBEENNEEVVOOLLÊÊNNCCIIAA DDOO EESSTTAADDOO

EEMMEERRGGIINNDDOO NNAA EESSFFEERRAA PPÚÚBBLLIICCAA??

Mas esse mundo comum só pode sobreviver ao advento e à partida das gerações na medida em que tem uma presença pública. É o caráter público da esfera pública que é capaz de absorver e dar brilho através dos séculos a tudo o que os homens venham a preservar da ruína natural do tempo. (ARENDT, 2001, p. 65).

A primeira discussão que merece ser travada neste texto não se refere ao contexto em

que surge o Programa Alfabetização Solidária – PAS, porque sobre isto já foi abordado em

outros momentos dessa pesquisa, tanto quando abordei o cenário histórico-nacional que

precedeu a V Conferência de Educação de Adultos, quanto o que compôs o Programa como

política pública face à perspectiva do direito de todos à educação. O objetivo desse capítulo é

buscar compreender as concepções de EJA, de alfabetização, de formação de alfabetizadores

que subjazem ao direito à educação nesse Programa, supondo ser este direito um dos pilares

de uma sociedade democrática.

A ALFASOL é uma organização não-governamental, sem fins lucrativos e de

utilidade pública, que “adota um modelo de alfabetização simples, inovador e de baixo custo,

baseado em parcerias141”. Discutir os significados e sentidos que sua própria nomeação

assume, nessa rede de compreensões e nas circunstâncias em que é produzido, segundo a

ideologia prevalente no país, em acórdão ao mundo globalizado é, pois, a minha intenção

primeira.

Dois conceitos estão imbricados na denominação do Programa: o primeiro, de

alfabetização; o segundo de solidariedade. Se quiser ser precisa, um terceiro, o de programa,

que ajuda a compor o entendimento que desenvolvo.

A ordem pela qual os abordo não tem outro critério se não o da escolha da

pesquisadora para expor a idéia implicada, no fio pelo qual conduzo a discussão. González

(2002, p. 27) discutindo a relação entre solidariedade e sociedade civil, recorda:

[...] dos ideas fundamentales, que acaso habíamos dejado caer en el olvido: en primer lugar, que el Estado no tiene el monopolio de la benevolencia, y en segundo lugar, que la iniciativa privada no puede identificarse a priori con el interés egoísta.

141 In: www.alfabetizacaosolidaria.org.br. Acesso em 17 julho 2005.

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414

A autora destaca, com isto, a necessidade de não se antepor Estado e sociedade,

mesmo quando se trata do tema da solidariedade, porque a forma de desenvolvimento desta,

nos processos históricos, indica uma interação constante com as forças do Estado, e jamais

como forças opostas. O espaço público moderno requer o compromisso ético da cidadania e a

discussão em pauta do tamanho do Estado, segundo as diversas concepções em jogo, não

prescinde dele nem para custear, em muitos casos, as atitudes solidárias da sociedade civil.

Estas, não respondendo a nenhum contrato social prévio e transcendendo fronteiras, ativa

outras energias humanas que nem o discurso dos direitos humanos dá conta, em ordem de

grandeza suficiente, ao lidar com a realidade e com o dever da solidariedade. A solidariedade,

por sua vez, não responde a princípios abstratos e formais, mas a percepções concretas e

substantivas das necessidades humanas e, sendo uma atitude fundamentalmente ética, se

encontra antes de qualquer discurso jurídico. Na medida em que é universal, significa que

existe uma ética universal anterior à convenção dos direitos humanos.

Muitos movimentos de solidariedade, nos últimos tempos, expressam a insuficiência

dos sistemas vigentes — presas do neoliberalismo —, fazendo frente às novas formas de

pobreza e marginalização social, dentro e fora de sociedades desenvolvidas e

subdesenvolvidas, pela certeza de que essas novas formas de marginalização não se resolvem

unicamente com decisões políticas ou medidas legais. Exatamente porque expressam a

insuficiência do Estado, no atendimento às necessidades sociais, os movimentos não podem

ser estatizados, mas também não podem furtar-se de interferir nas políticas de

desenvolvimento de governos locais, nacionais e regionais. Porque não conhecem fronteiras,

arvoram-se no tempo presente a um trânsito mais amplo e abrangente nas unidades políticas e

legislativas que o do Estado moderno.

González (2002, p. 46) ainda afirma:

[...] me parece, en primer lugar, que no se debe aspirar a institucionalizar toda iniciativa de solidaridad. Cuando hablo de “institucionalizar” no me refiero únicamente a legalizar, sino también a mercantilizar las aspiraciones solidarias, como cuando se asocia la compra de un producto a un acto de beneficencia: [...].

Assim, de posse dessa compreensão, a leitura da palavra solidária, no nome desse

Programa, soa diferente, quando este foi posto justamente como um programa de governo, de

traço fortemente neoliberal, cuja ideologia em relação ao trato dos direitos sociais e do

trabalho marcaram — e ainda hoje marcam — as políticas públicas do país.

Page 417: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

415

A contradição explícita entre ser estatizado e se dizer solidário, evoca o equívoco de

assumir um conceito próprio da sociedade civil, a partir do Estado, recriando, no conjunto dos

acordos neoliberais, os pressupostos que lhe dão sustentação. O lugar da insuficiência do

Estado não deixa dúvidas, quando o Programa é oferecido como alternativa, mas se vale de

um lugar, de todo modo de beneplácitos, porque favorecido dos recursos do Estado e do

empresariado, cuja “solidariedade” é quase arrancada à força, no papel que o mercado, “livre

e auto-regulador”, faz de si próprio, desde que escorado, nos riscos que corre, na confiança

que o Estado representa, para que se lancem nos muitos “vôos” que fazem, entre eles o “vôo

solidário”. Mas esse lugar da insuficiência, no entanto, é um lugar de escolha, de opção

política, que a história da educação de adultos no país sabe demonstrar bastante bem, como

vem sendo definido, ao longo dos tempos e das ideologias mais ou menos autoritárias e

segundo interesses do capital. Já se escolheu ser a educação de adultos um veio para a teoria

do capital humano; já se escolheu ser a ferramenta que fortaleceria a cultura e as

manifestações e expressões populares.

A mercantilização das aspirações solidárias, no dizer de González, parece acompanhar

o Programa, que se vale de duas premissas fundamentais para o seu acontecer. Em primeiro

lugar, a de que o ato solidário de oferecer aos não-alfabetizados a alfabetização é feita pela

“adoção” de analfabetos e de municípios pela ação do empresariado porque este setor, como

forma de participação solidária, é convocado a contribuir com a metade do custo-aluno de

cada Programa e com conseqüente espaço na mídia e nos materiais impressos de divulgação

do PAS. Ainda do mesmo lado, o ato solidário, em detrimento de políticas públicas, é

complementado com recursos da União, mais exatamente do FNDE, gravados no orçamento,

o que lhe dá caráter público, portanto, passível de fiscalização e controle pelas instâncias

instituídas para tal fim. A segunda premissa é a de que, posteriormente, a “adoção” também

pode ser feita por pessoas físicas, quando essa solidariedade se estende à sociedade,

sensibilizada para a ação doadora, por artistas em diversas campanhas midiáticas. Oferece-se

o produto — alfabetização — diretamente associado aos bens de mercado que ajudam a

vendê-lo: os empresários (segmento considerado de sucesso e de valor intrínseco) e a classe

artística, todos embalados em bem produzidas campanhas publicitárias que consomem, ao

mesmo tempo em que recolhem, muitos recursos para a manutenção da ação “solidária”. A

ação de beneficência, na mídia impressa, também atingiu contas de luz e de outras tarifas,

“facilitando” a solidariedade no ato de quitação do débito, pelo consumidor. A associação

dessa ação — e das concepções que embute — com a ideologia neoliberal demonstram como

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416

foi sendo urdido um processo cativante de substituição da assunção e do cumprimento de

direitos devidos à sociedade pelo poder público. Em seu lugar, foi sendo armada uma bem

montada estratégia, fortemente sustentada pelo marketing, de transferência de

responsabilidade para a sociedade “solidária”, com a mediação de um Programa que, de

início nascido no âmbito das ações governamentais coordenadas pela primeira-dama Ruth

Cardoso e, portanto, de caráter governamental (por isso a rubrica de recursos gravada em

orçamento), passa a constituir a ação-fim de uma organização não-governamental, criada para

mantê-lo, o que corrobora, ainda mais, a referida transferência de responsabilidade do direito

à educação, como dever do Estado, para a sociedade, sem lhe tirar, no entanto, o caráter

público, mantendo a ação no âmbito da esfera pública, porque nesse caso, também a referida

organização, como apontado por González, tem suas ações custeadas pelo Estado, ainda que

não in totum. Reforçando esse custeio das ações, cabe dizer que essa organização mantinha,

desde o início — e ainda mantém —, o concurso de universidades públicas e privadas, que

convocadas a participar do esforço solidário que o governo fazia, recebiam a indicação do(s)

município(s) em que atuariam; coordenavam a ação alfabetizadora, inclusive selecionando os

alfabetizadores; faziam a formação desses alfabetizadores; acompanhavam a execução

pedagógica e técnica do Programa; prestavam contas das ações de formação etc.,

subvencionadas, praticamente, com os próprios e escassos recursos, pois no mais das vezes o

único apoio recebido dizia respeito a uma bolsa-auxílio de R$300,00 para o coordenador e a

garantia da vinda dos alfabetizadores até a cidade onde estava o campus da universidade,

devendo esta ainda buscar hospedagem, transporte local e providenciar alimentação (muitas

vezes complementados esses itens pela própria universidade); prover formas, meios e recursos

para a formação; e participar dos chamados da entidade nas reuniões, tanto regionais, com os

parceiros estaduais, quanto nacionais. Pode-se, assim, garantir que a forte inflexão do

Programa se faz pela ação pública, porque além dos recursos do Fundo Nacional do

Desenvolvimento da Educação (FNDE), muitos outros, oriundos das instituições de ensino

superior públicas, também concorrem para sua implementação.

Revendo a natureza desse caráter público, de que se vale o PAS, cabe ainda ressaltar

que outras tantas organizações não-governamentais, também com ação precipuamente

alfabetizadora, não gozavam desse privilégio, tanto de destinação fechada de recursos — para

os quais deveriam concorrer com projetos, anualmente, em épocas apropriadas, podendo, ou

não, tê-los aprovados — quanto de poderem contar com o trabalho gratuito — ou quase —,

das universidades, não apenas para a pesquisa, mas para a execução propriamente dita das

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417

ações envolvidas nos processos de alfabetização. Pergunto-me, ainda hoje, onde a ação era

mais solidária, se em relação ao público jovem e adulto, como definiam as finalidades do

Programa, ou na ação das universidades parceiras, que solidariamente davam suporte a essa

ação.

Um aspecto ainda a destacar, no tocante à forma como se constitui a esfera pública e

quanto ao caráter público das ações, diz respeito ao conceito de parceria, um conceito caro

para o modelo neoliberal, apreendido pelos modos como o Estado se desresponsabiliza de

seus deveres e de como se apropria fragilmente da res publica, que distribui e partilha com

parceiros, assim chamados todos os que buscam não apenas o custeio do Estado para as ações

que se transferem para a sociedade, mas que ainda o repartem, beneficiando indiretamente

outros “parceiros”, ao mesmo tempo que, contraditoriamente, também exigem o concurso de

recursos oriundos desses mesmos parceiros. A sutileza da construção põe-se no fato de que,

apesar de parceiros, esses devem seguir um conjunto de orientações definidas, segundo um

modelo prévio, sem margem para “negociar”142 qualquer mudança no que está posto.

Observar esta questão no PAS, em que o conceito é pedra fundante e sustentáculo de toda a

ação, demonstra o uso particular que é feito, na enunciação que se acessa na página

www.alfabetizacaosolidaria.org.br (Acesso em 17 julho 2005).

Um dos aspectos inovadores da Alfabetização Solidária é a articulação de um conjunto inédito de parcerias no Brasil. Ao inaugurar esse amplo processo de mobilização pela diminuição do analfabetismo, a Alfasol indicou um novo caminho para a organização de ações sociais, que se opõe a antigas fórmulas adotadas no país, caracterizadas pelo mero assistencialismo e pela ineficiência e obsolescência de políticas centralizadoras. Nesse esforço, a Alfabetização Solidária consolidou resultados significativos: mantém parcerias com inúmeras empresas, universidades, cidadãos, prefeituras e governos. O trabalho conjunto com empresas, que tem sido essencial para a evolução da Alfasol, já foi desenvolvido em diversos municípios com os mais altos índices de analfabetismo do Brasil.

Criticando políticas centralizadoras, mas delas se valendo como suporte à própria

existência, por pelo menos seis anos, pode-se ainda perceber como o Programa se auto-

referencia, na imagem que faz do seu papel social junto a demais iniciativas de alfabetização,

no que está enunciado na página web citada:

142 Negociar é princípio básico de relações democráticas e, como tal, em modelos pseudodemocráticos, marcados pelo centralismo e pelo autoritarismo, mesmo quando de concepções e modos de ver a realidade, não se admite a possibilidade de negociação, o que seria, no caso, contraditório, pois. Repare-se que, ao definir seu sistema de parcerias, que considera “inovador”, a ALFASOL faz a crítica a modelos assistencialistas e ineficientes de alfabetização, de políticas centralizadoras, negando seu próprio caráter rígido e centralizador que comanda, por tantos anos, um único modelo de atendimento. Outras questões serão ainda apontadas ao longo do capítulo.

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418

O Ministério da Educação (MEC) é parceiro da Alfabetização Solidária. Até o fim de 2002, o MEC fornecia o material didático e de apoio para a formação de bibliotecas e bolsa de apoio ao trabalho dos professores das Instituições de Ensino Superior parceiras. O MEC ainda atua adotando integralmente municípios em vários Estados do país.

Alguns aspectos a destacar: o primeiro, que a garantia, pelo MEC, de recursos

orçamentários para o Programa existiu até 2003, porque, mesmo com a mudança de governo

e das formas de encaminhar as políticas de EJA, havia recursos rubricados a ele destinados,

com ações a serem executadas. O relatório do TCU confirma que, em 2001, o PAS auferiu

R$79,33 milhões de dotação orçamentária, tendo executado 99,8% desse valor, e que em 2002

essa dotação chega a R$102,60 milhões.

No PPA [Plano Plurianual] e na LOA [Lei Orçamentária Anual], Alfabetização Solidária de Jovens e Adultos se constitui em Ação do Programa Educação de Jovens e Adultos – EJA. No entanto, no âmbito de sua execução pela AAPAS143 é denominada Programa de Alfabetização Solidária. (TCU, 2003, p. 9).

Em 2003, o MEC lança o Programa Brasil Alfabetizado, cujas regras de

financiamento possibilitavam o acesso, aos recursos, de sistemas públicos e de organizações

não-governamentais, em igualdade de condições e exigências144. O PAS inicia sua experiência

de se adequar aos novos ritos, mas não consegue cumpri-los todos para auferir os recursos

orçamentariamente gravados. Esses ritos se colocam, basicamente, no que diz respeito à

inscrição de alunos nas turmas atendidas. O Tribunal de Contas da União apontava, desde

fevereiro de 2003, como ponto frágil do Programa, o não controle dos sujeitos matriculados,

o que não apenas fazia com que se desconhecesse sua origem, sua continuidade ou não de

143 Associação de Apoio ao Programa Alfabetização Solidária, instituição formalmente credenciada para o recebimento dos recursos das ações de doação para pessoas físicas e jurídicas, por meio da Campanha Adote um Aluno. 144 Essa igualdade de condições, inclusive, dificultou o acesso aos recursos por parte de inúmeros municípios brasileiros, pela exigência de adimplência com impostos com os quais, historicamente, as entidades públicas têm sido contumazes devedoras, pelos processos de tributação, centralismo dos recursos e empobrecimento que a Nação tem sofrido, causada pelo endividamento externo e interno. A partir de 2004, criaram-se dois conjuntos de resoluções diferentes, uma para órgãos públicos e outra para organizações não-governamentais, o que possibilitou, nesse caso, melhor distribuição na aplicação dos recursos, favorecendo os sistemas públicos. Em 2003, a captação dos recursos por instituições da sociedade civil chegou a cerca de 70%, enquanto em 2004, o equilíbrio entre um setor e outro ficou em torno de 50%. Dados da pesquisa Avaliação diagnóstica dos Programas Brasil Alfabetizado e Fazendo Escola apontam para o acerto dessa medida, pelo fato de que, quando os recursos destinam-se aos entes públicos, tendem a permanecer e melhorar os sistemas para além de um único projeto, favorecendo o atendimento dos sucessivos grupos demandantes. Ou seja, comportam-se como bens públicos. No caso das entidades privadas, os recursos se esgotam nos projetos, o que significa que sem novos aportes, nada mais acontece, o que do ponto de vista do erário pode ser questionado, pelo que significa de investimento público com baixo retorno. A respeito dessa questão, consultar o Sumário Executivo do TCU sobre a auditoria realizada no Programa Alfabetização Solidária, cujo relatório data de fevereiro de 2003. Acessível em www.tcu.gov.br/avaliacaodeprogramasdegoverno.

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estudos quando egressos e sua rematrícula quando não conseguiam êxito nos primeiros cinco

meses de experiência com a alfabetização. Esse aspecto, com a adesão do PAS ao Programa

Brasil Alfabetizado, passa a ser solucionado, pela introdução de um rigoroso cadastro de

alunos145, não sem um grande esforço da instituição, como aliás de todas as que concorreram

aos recursos, pela primeira vez habituadas que estavam pelas práticas históricas de quantificar

analfabetos, sem lhes conhecer nome, identidade, local de residência, sua existência civil

inclusive. Recomendava a auditoria maior controle, por parte do Programa, face à dificuldade

de avaliar o desempenho dos recursos públicos que recebia, numa leitura acurada do que

ocorria na realidade dos municípios, módulo a módulo.

Não há uma identificação precisa dos alunos (alfabetizandos) que participam do Programa. Isso ocorre porque o Programa não exige, para inscrição no módulo, que o aluno apresente, obrigatoriamente, algum documento de identificação, o que impossibilita a identificação de modo inequívoco dos alfabetizandos.

Uma das conseqüências negativas da falta de registro sobre alunos rematriculados é o desperdício de recursos com a distribuição de material didático e de apoio do programa para os alunos que refazem o módulo e que, portanto, já haviam recebido o mesmo material em módulo anterior.

Além do desperdício de recursos financeiros, essa situação acarreta uma distorção nas estatísticas sobre o número de alunos atendidos, pois um mesmo aluno pode ser contado mais de uma vez (em módulos distintos) nas coletas de dados sobre alunos matriculados e alunos que concluíram o módulo. (TCU, 2003, p. 21).

Também Machado (2002, p. 11-12), analisando o histórico da implantação do

Programa em Goiás, em duas fazendas da região, por uma universidade privada, por meio de

relatórios e dos embates travados com a coordenação do próprio Programa para que a

Universidade Federal de Goiás assumisse o trabalho em seu território, e não no Amazonas146,

pelas dificuldades implícitas à distância, no que diz respeito ao acompanhamento e à

formação continuada dos alfabetizadores, assim se expressa:

Não se leva muito a sério a questão de que cinco meses não é tempo suficiente para todos? Como tratar a realidade concreta dos alunos de EJA

145 O cadastro existe, também, para alfabetizadores, e a coleta de informações forma, hoje, um rico banco de dados capaz de possibilitar construir densos perfis desses sujeitos que aprendem, em interação, nos processos de educação de jovens e adultos. 146 A lógica do Programa, desde seus primórdios foi a de que as universidades deveriam assumir municípios escolhidos pela coordenação do PAS, dentre os que apresentavam maiores índices de analfabetismo, mas em regiões diversas dos estados em que se situavam. Isso tanto significava que estas passariam a mergulhar num universo supostamente desconhecido por elas, quanto significava que, trazendo os alfabetizadores para uma outra capital, imaginava-se imergi-los na cultura, impossível de ser pensado nos limites da própria realidade em que viviam.

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que não podem freqüentar todas as aulas [...], que passam por períodos de desânimo e quase desistem? Estes, com certeza enfrentam dificuldades em relação ao desempenho da aprendizagem. [...] E como são eles registrados no PAS, na condição de alunos novos? Essa informação parece não ter importância, pois não se encontra uma sistematização dos dados. Observa-se, porém, que o programa cuida de estampar a cifra de 1.500.000 alunos atendidos. [Referindo-se a relatórios de 1997 e 1998].

A partir de 2004, com a redefinição dos procedimentos do Programa Brasil

Alfabetizado no que diz respeito às parcerias, este beneplácito deixou de ocorrer, fazendo com

que a organização não-governamental que a sustentava, como todas as demais envolvidas com

a alfabetização (além de estados e municípios), se submetessem às mesmas regras e

procedimentos para auferi-los147, mediante projeto, cadastramento prévio de alfabetizadores e

de alfabetizandos, proposta de formação.

Se por um lado o MEC não impunha, para efetivar a parceria, um modo único de

conceber a alfabetização, apenas definindo princípios e concepções de alfabetização e de

continuidade, por outro, de certa forma, estabelecia limites a essas diversas concepções, ao

restringir o financiamento a seis meses. Embora isto, na prática, não necessariamente devesse

produzir alterações nas propostas e nos tempos que já vinham sendo desenvolvidos pelas

entidades, os parceiros acabavam mudando seus tempos — e conseqüentemente as

concepções —, para cumprir uma definição que se confundia com determinação. Em

realidade, o MEC não financiava mais do que seis meses, estabelecendo para todos um limite

igual. Mas quem fazia alfabetização em mais tempo poderia continuar a fazê-la, adicionando

recursos próprios com os quais trabalhava até então, aos oriundos do MEC, o que

possibilitava ampliar a ação alfabetizadora e/ou qualificá-la. No entanto, o que se viu foi uma

quase completa redução de todos os desenhos a seis meses, e uma substituição/migração mera

e simples dos recursos originais, para os novos recursos, sem ampliação significativa de

muitas ações, nem de qualificação das mesmas. Este foi, por exemplo, o caso do SESI, que

fazia a alfabetização em dez meses com recursos próprios e passou a realizá-la em apenas seis

meses, com recursos do Programa Brasil Alfabetizado, abandonando inteiramente suas

convicções quanto aos tempos de aprendizagem de jovens e adultos em processos de

alfabetização. Quando a ALFASOL afirma que o MEC é seu parceiro, e que atua adotando

147 Durante o governo Fernando Henrique Cardoso o PAS não concorria a recursos do FNDE como todas as demais entidades que atuavam com alfabetização e outros projetos. A transferência era prevista no orçamento da União, havendo, portanto, privilégios dessa organização sobre todas as demais. No momento em que as regras passam a valer para todos, as “vantagens” que as entidades auferem com o Programa Brasil Alfabetizado passam a ser iguais, desde que cumpridas as exigências, comuns a qualquer organização, sem distinção.

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421

integralmente municípios pelo país vê o mundo a partir de suas próprias compreensões,

invertendo o papel indutor de políticas do Ministério. O MEC, assumindo seus próprios

limites orçamentários, seu papel não-executor mas fomentador, e reconhecendo a sociedade

como legítima parceira pela forma como historicamente veio sustentando um direito negado a

tantos, concerta, aportando recursos nacionais — ainda insuficientes —, o coletivo de

instituições que em rede, participam, em parceria, do esforço alfabetizador que o governo

federal reconhece como compromisso ético e prioritário, no conjunto de políticas públicas, a

partir de 2003.

Alvarenga (2002, p. 2) discutindo a natureza do Programa, admite que este faz a sua

construção ainda com base no conceito de consenso no sentido gramsciano, e assim se

expressa:

[...] entendemos ser esclarecedor o argumento de Gramsci para explicar como é que, através do consenso, ou do consentimento ativo, um determinado grupo social pode obter a hegemonia sobre os demais grupos. [...] É na perspectiva da expressão cultural que aduzimos à questão da construção do consenso pelo PAS para a “aceitação” de sua política de alfabetização.

E segue, afirmando que discursivamente o Programa busca nas contribuições de

Freire a principal fonte para a construção do consenso, pretendendo, com isso, dar

legitimidade às práticas desse programa governamental, e sendo essa construção estruturada

“pela e na linguagem, seja ela veiculada pela mídia ou pela exortação à participação das

universidades públicas e privadas”. Diz a autora que, no caso das universidades públicas,

estas podem ser consideradas parceiras “naturais” do Programa, dada sua subordinação ao

poder federal e, “as segundas [as privadas] por obterem ganhos derivados (isenções fiscais ou

outros benefícios) reclamados como conseqüência de sua inserção na ‘parceria’ que mantêm

junto à coordenação executiva do PAS”. (ALVARENGA, 2002, p. 2).

Alvarenga (2002, p. 3), na explicação teórica que constrói para compreender a

hegemonia do Programa, assumido em todo o país com tanta ênfase pelas universidades,

principalmente, das quais se esperava um posicionamento mais crítico na tomada de decisão,

ainda afirma:

[...] a linguagem da cidadania e da democracia que permeia o discurso neoliberal, ao nosso ver, funciona como astuta estratégia de convencimento em busca de um consenso, sendo este discurso exaltado e entendido como única possibilidade de alfabetização de jovens e adultos. Para isto, e para atingir este grande feito, todos são convocados a compartilhar esforços para cumprir a tarefa de “combate ao analfabetismo”.

Page 424: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

422

Introduzindo a palavra alfabetização, busco apreender a concepção que encerra,

resultante não de uma perspectiva do direito, nem da apreensão, para o sujeito não-

alfabetizado, da ferramenta que possibilita o acesso à cultura escrita em sociedades

grafocêntricas, mas exatamente do alívio da pobreza, que cercou — e ainda cerca — muitas

iniciativas nessa área. Porque ocupando o espaço da insuficiência do Estado, e supostamente

pela mão da sociedade, há que ser pouca a oferta, de caráter basista, mínimo, para que a

grandeza do gesto se faça inteira: tirar os analfabetos da ignorância, solidariamente,

oferecendo-lhes o que é possível, para ser coerente com o fundamento ético que sustenta a

solidariedade, mas que não elimina, no tocante ao tema do analfabetismo, o problema do

preconceito e dos estigmas contra os não-alfabetizados. Não por acaso, alguns poucos anos

depois do lançamento do PAS, a Secretária de Educação Fundamental do MEC dizia que o

objetivo era sensibilizar as pessoas para a alfabetização, e esta viria depois, e não por esse

Programa de curto prazo, confirmando com isso o caráter “solidário” que se insistiu em

manter. Algum tempo, mais tarde, a construção pôs-se inteira, à mostra, transformando o

programa governamental em uma organização não-governamental, perfeitamente coerente,

agora, com o papel desempenhado.

Quanto à palavra programa, cabe-me comentar que expressa — como tantos outros

assim também nomeados — o não-direito, porque como tal, não se enraíza como política

pública nos sistemas, lugar único em que pode ter sustentação e permanência, associando-se

mais a idéias já bastante conhecidas de campanhas e de movimentos, todas elas de caráter

pontual e episódico, que não deixam marcas profundas quando se vão, porque feitas à

margem dos sistemas, onde poderiam se consubstanciar e constituir direito de todos.

Com essas considerações iniciais, que me apontam aspectos relevantes quanto às

concepções que norteiam o Programa Alfabetização Solidária, passo a desenvolver outras

questões que ajudam a compreender como essas concepções são sustentadas e justificadas.

1111..11 CCOONNSSTTIITTUUIINNTTEESS EE DDEETTEERRMMIINNAANNTTEESS DDAA CCOONNCCEEPPÇÇÃÃOO DDEE EEJJAA EE DDEE AALLFFAABBEETTIIZZAAÇÇÃÃOO

EEXXPPRREESSSSOOSS EEMM DDOOCCUUMMEENNTTOOSS

A leitura de alguns materiais do Programa subsidiou meu esforço de compreensão

sobre as concepções subjacentes, para além das que o próprio nome revela, quanto ao que

significa educação de jovens e adultos e alfabetização para o PAS. Para isso, utilizei os

seguintes documentos: Programa Alfabetização Solidária, Proposta político-pedagógica,

1999; Boletim Alfabetização Solidária – dez 1998; Relatório de 4 anos de atividades do PAS

Page 425: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

423

1997-2000; Revista da Alfabetização Solidária n. 4 – 2004; Trajetória 2004 - 8 anos

Responsabilidade e inclusão social; Sumário Executivo Avaliação do TCU sobre a

Alfabetização solidária de jovens e adultos, elaborada pelo Ministro-relator Guilherme

Palmeira do Tribunal de Contas da União, fevereiro de 2003. Utilizei-me também de

anotações sobre o Programa, por ter convivido, sem participar diretamente, com o seu

desenvolvimento, a partir do Programa de Alfabetização e Leitura (PROALE) da

Universidade Federal Fluminense, além de consultas à base de dados do programa na página

da Internet www.alfabetizacaosolidaria.org.br acessada em 16 e 17 de julho de 2005, pela

última vez.

Um aspecto curioso de todo o material recolhido, com exceção da Proposta Político-

pedagógica (1998), integrante de meu acervo pessoal, é que não se encontra na rica página

web, disponível para consulta eletrônica, nenhum documento com as formulações do

Programa no que tange às diretrizes, concepções, orientações teórico-metodológicas.

Além da leitura dos documentos e dos textos eletrônicos disponíveis, a pesquisa

contou com um questionário (Anexo 3) enviado a quatro profissionais que estiveram/estão

envolvidos com o PAS desde a origem do Programa. Destes, apenas três o responderam, e as

reflexões encaminhadas, decorrentes das questões, foram por mim apropriadas para a melhor

compreensão das concepções de EJA e de alfabetização do Programa, dando a ele maior

visibilidade e auxiliando na tessitura da rede que ouso tramar em busca de sentidos para a

EJA, na contemporaneidade, a partir, nesse capítulo, da Alfabetização Solidária.

Explicito a constituição do Programa, com base no item Princípios orientadores para

elaboração da proposta político-pedagógica pelas universidades (PAS, 1999), para que se

possam compreender algumas de suas concepções.

Constituído por módulos de alfabetização com duração de seis meses, sendo um deles

para “capacitação” e cinco (240h/aula) para o curso, o PAS atribui a alfabetizadores, em sua

maioria leigos, o papel de professor. O processo de formação e acompanhamento sistemático

do trabalho no campo, como apresentado, anteriormente, cabe à universidade parceira. O

documento afirma que, “apesar da previsão de atendimento prioritário à faixa de 15 a 19 anos,

os alfabetizandos que procuram o programa têm-se concentrado na faixa etária de 20 a 39

anos”. (PAS, 1999, p. 10). O documento ainda explicita que, “considerando os princípios

políticos definidos para o Programa tem-se a preocupação de inserção do cidadão no meio em

que vive como condição de ampliar a sua inserção social, diante dos avanços nas novas

modalidades de informação e comunicação”. (PAS, 1999, p. 10).

Page 426: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

424

Na data de 16 de julho de 2005, o PAS apresentava os seguintes dados: 4,9 milhões de

atendidos; 20 mil alfabetizadores; 166 empresas parceiras; 2066 municípios envolvidos; 209

instituições de ensino superior parceiras, o que, seguramente não é pouco. Mas o que chama a

atenção é que os dados, em todos os relatórios anuais, comemorativos dos aniversários do

Programa, assim como outros documentos, como revistas, são sempre de atendimento, jamais

revelando resultados da ação alfabetizadora, nem de evasão, nem de alfabetizados. Eis, acima,

por exemplo, um dado saudado na página como “quase 5 milhões de alunos atendidos”, sem

se saber quantos, por quantas vezes, refizeram os módulos, ou quantos, por uma, ou por

quantas vezes, ainda assim não se alfabetizaram.

Farah Neto, respondente ao questionário que atuou por dois anos no Programa, de

1999 a 2000, escreve: “Acho que existem dois PAS: aquele ‘ofertado’ como arremedo de

política pública decente para a EJA, compensatório, provisório e, antes de mais nada, pobre, e

aquele desenvolvido pela instituição encarregada de executá-lo em campo”. O

reconhecimento perspicaz do respondente corrobora minha percepção e, no caso do PAS, meu

limite de compreensão: sem conhecer as práticas, para tecê-las com as formulações, o âmbito

da investigação me põe como alguém que olha da janela, vê todo o cenário, mas não me

possibilita compreender a ação que a vista não alcança, o gesto que se esconde, o grito, o

sussurro que foge aos meus ouvidos. Estar no terreno, produzindo uma trajetória não linear,

espacial, e não apenas temporal, como alerta Certeau (1994), sem dúvida pode assegurar uma

compreensão mais complexa, mais rigorosa, do que significa o PAS para a educação de

jovens e adultos no país.

Cabe ainda informar que o modo de fazer a ação solidária não se restringe ao solo

brasileiro. Desde 2000 a ALFASOL coopera em projetos internacionais, “exportando seu

modelo de atuação que, por ser simples, inovador, de baixo custo e de alto impacto, é

considerado exemplar por especialistas”. Timor-Leste, seguido de Moçambique, São Tomé e

Príncipe, Cabo Verde em 2002, Guatemala em 2003 (em língua espanhola), são exemplos de

países em que a Alfabetização Solidária atua como “incentivadora das políticas de

alfabetização, repassando sua experiência social aos educadores locais, sempre levando em

conta as peculiaridades culturais de cada nação. Para isso, conta com a parceria da ABC -

Agência Brasileira de Cooperação, órgão do Ministério das Relações Exteriores”. (PAS, 2004,

p. 28).

Page 427: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

425

Por fim, em 2003, o Centro de Referência em Educação de Jovens e Adultos –

CEREJA, banco de dados eletrônico, foi criado para reunir e preservar a produção científica

na área (www.cereja.org.br ).

1111..22 CCOONNCCEEPPÇÇÃÃOO DDEE EEJJAA EE DDEE AALLFFAABBEETTIIZZAAÇÇÃÃOO NNOO PPAASS

O Programa limita-se à alfabetização, o que por si só já exige refletir sobre a visão

estreita de educação de jovens e adultos que essa idéia encerra.

No documento já referido, “alfabetização ou domínio do código da língua escrita

constitui-se um componente do letramento”148. Essa idéia é desenvolvida pela “necessidade

de domínio da escrita em situações do mundo cotidiano”; da dependência, para a participação

numa sociedade letrada, “fundamentalmente, do acesso aos instrumentos que expressam,

identificam ou registram os conhecimentos acumulados”; do requerimento da “condição

básica, o domínio das formas pelas quais as pessoas comunicam suas aquisições e

conquistas”. Ainda se assinala que “o processo de ensino-aprendizagem da alfabetização de

jovens e adultos fundamenta-se no alfabetizando e no alfabetizador como sujeitos que

constroem conhecimentos na interação com o outro e na comunidade em que vivem”. (PAS,

1999, p. 10).

A proposta ainda defende que “o domínio da escrita como fenômeno social deverá

permitir-lhes a formulação de conceitos e opiniões necessárias à sua atuação crítica como

cidadãos”, o que pode levar a pensar que, sem esse domínio, os conceitos não se formam e,

com isso, sua ação crítica sobre o mundo fica comprometida. Em continuidade, o documento

diz que a proposta pedagógica, “para um período de cinco meses, reúne informações das

diferentes áreas de conhecimento, através das quais serão desenvolvidas as habilidades de

leitura e escrita, e construção do saber lógico-matemático pelos alfabetizandos”, o que requer

um alfabetizador “preparado para planejar essa ação por intermédio de textos contextuais que

envolvam informações advindas da história, da geografia, da política, da ética, da economia,

do convívio social, das ciências, da arte, entre tantas”. (PAS, 1999, p. 11).

Eis, enfim, enunciado o sentido conferido ao Programa, no limite da alfabetização que

incorpora, além do domínio da língua, o saber matemático, debruçado sobre conteúdos do

conjunto dos saberes produzidos pela humanidade.

148 Para letramento, o documento assinala também em nota o seguinte sentido: “relação que indivíduos e comunidades estabelecem com a escrita em suas práticas sociais”. (1999, p. 10).

Page 428: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

426

O relatório do TCU (2003, p. 17) faz as seguintes considerações:

Quanto à questão da alfabetização, é necessário ressaltar que o conceito sobre analfabetismo tem sofrido significativas revisões ao longo das últimas décadas, devido às mudanças sociais ocorridas, evoluindo para um conceito mais amplo, traduzido pela expressão analfabetismo funcional. Essa expressão, segundo a UNESCO, caracteriza a pessoa capaz de utilizar a leitura e a escrita para fazer frente às necessidades que surgem em seu contexto social e usar essas habilidades para inserir-se adequadamente em seu meio.

Observa-se, assim, que essa definição já não visa limitar a competência ao seu nível mais simples (ler e escrever enunciados simples referidos à vida diária), mas abrigar graus e tipos diversos de habilidades, de acordo com as necessidades impostas pelos contextos econômicos, políticos ou socioculturais.

Interessante é constatar a emersão, em um relatório de auditoria de um organismo da

natureza do TCU, da compreensão de que os sentidos da alfabetização se ampliam, o que

também é observado, com diversas variações, entre aqueles que fazem o PAS, como

parceiros, na universidade. Medeiros, outra respondente, me afirma que “a EJA se colocou

como um espaço de ação transformadora ao permitir a participação de pessoas outrora

marginalizadas, na medida em que percebeu a alfabetização não apenas como um processo

isolado, mas embasado em um contexto social próprio do alfabetizando, responsável pela sua

não participação ativa na sociedade”.

Retomando a reflexão, novamente Farah Neto reforça a perspectiva da existência de

dois PAS, e explicita o objetivo pelo qual sua universidade trabalhou:

[...] fazer um trabalho de resgate da cidadania junto aos alfabetizadores e aos alunos, bem como de institucionalização da EJA no âmbito da Secretaria de Educação do Município (Carira, Sergipe). A tentativa de desencadear, no município, um processo de valorização e incorporação da EJA à proposta político-pedagógica mais ampla era, seguramente, uma intenção da equipe da PUC-Rio, sem respaldo da gestão do Programa em nível nacional e sem prioridade na agenda do município, cuja política para a educação, bem como para a saúde e outras áreas de peso social se mostrava sofrível. [...] pelo lado oficial, a EJA teria caráter compensatório e posição secundária em relação à política educacional; pelo lado da PUC, teria o caráter de direito de cidadania, no sentido do resgate da mesma, de ação inclusiva, ao mesmo tempo que mobilizadora de transformações na visão da educação como um todo.

Farah Neto segue ainda, acrescentando elementos que demonstram disposição de fazer

bastante diversa das esperadas pelas formulações, e que podem fazer a diferença,

efetivamente, nas práticas do Programa, nos modos de atuação dos alfabetizadores, nas

Page 429: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

427

compreensões de mundo que vão sendo produzidas, mesmo quando se tem consciência dos

aspectos restritivos implícitos e concretos:

[...] o trabalho tentava ir além dos cânones da educação popular tradicional, na medida em que não via a EJA descolada de uma política pública para a educação mais ampla e abrangente. Entretanto, esse trabalho trazia, da educação popular, duas marcas: a primeira, intencional, era a abertura para a ótica freireana e, conseqüentemente, para abordagens teórico-metodológicas não-convencionais; a segunda, resultante do tratamento de “segunda classe” dispensado pelo setor público à EJA, era a sujeição a condições materiais e de investimento extremamente limitadas.

Os estudos sobre o Programa realizados por pesquisadores no âmbito das

universidades brasileiras, muitas delas parceiras do PAS e apresentados nas reuniões anuais

da ANPEd desde 1999, indicam uma produção ainda pequena, com aspectos recorrentes, nas

diversas metodologias e amostras utilizadas. Na página CEREJA, no entanto, outros trabalhos

estão referenciados. O que chama atenção, é que, entre estes, não se identifica nenhum dos

que foram levados ao espaço do debate científico na ANPEd, e desde 1999, nenhum dos

trabalhos constantes do acervo do Centro de Referência foram aprovados/apresentados em

qualquer das reuniões anuais dessa Associação.

1111..22..11 FFeerrrraammeennttaass qquuee oorrggaanniizzaamm aass ssiittuuaaççõõeess ddee aapprreennddiizzaaggeemm:: ccoonncceeppççõõeess ddee

ccuurrrrííccuulloo

Um dos estudos que se debruça justamente sobre os “conteúdos” e “competências

básicas” (forma como enunciados no documento orientador) que fundamentam o fazer da

alfabetização e o seu grau de domínio, é o de Moura, Queiroz, Cavalcante et al. (2004) no

texto “Conteúdos” e “competências básicas” adquiridos e utilizados por jovens e adultos do

Programa Alfabetização Solidária, apresentado na 27ª Reunião Anual da ANPEd. As

pesquisadoras buscam verificar, pela prática da pesquisa, se alunos do PAS conseguem atingir

os objetivos definidos para o Programa. Sustentando os objetivos da alfabetização e as

perspectivas de letramento, na concepção teórica de Soares (2000), assumida pelo PAS e

“traduzida” pelo quadro abaixo, integrante do documento Princípios Orientadores para a

elaboração da proposta político-pedagógica, formulado pelo Conselho Consultivo das

Universidades (PAS, 1999), as pesquisadoras chegam a conclusões que confirmam muitas das

observações empíricas do Ministro-Relator do TCU.

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428

Conteúdo Competências Básicas Língua oral Desenvolvimento da escuta em situações de diálogo Escuta Exposição de idéias de forma clara e coerente Fala Adequação da fala em diversas situações de

interlocução, ampliando o intercâmbio social. Relato Narração de fatos e histórias da realidade local em

seqüência temporal e/ou causal Debate Discussão de textos ouvidos Leitura Apreensão da função do texto Identificação da função de diferentes tipos de textos Reconhecimento dos diversos tipos de textos

Reconhecimento dos diferentes portadores de textos

Compreensão e interpretação do texto Compreensão e interpretação de diferentes textos: informativo, narrativo, poético, jornalístico

Escrita Reconhecimento da função dos textos Reconhecimento da função social da escrita Produção de textos coerentes e coesos Produção de textos de diferentes tipos, de acordo com a

situação de interação Domínio do código escrito Apreensão de convenções da escrita: pontuação,

acentuação e ortografia

Números e operações fundamentais Sistema de numeração decimal Leitura e registro de números conforme sistema de

numeração Operações fundamentais: adição, subtração, multiplicação e divisão

Utilização das operações fundamentais da adição, subtração, multiplicação e divisão, com algoritmos convencionais em diferentes situações-problema

Geometria Figuras planas Sólidos geométricos

Reconhecimento, identificação e representação das figuras planas e sólidos geométricos

Medidas Peso Comprimento Área Tempo Volume Massa Sistema monetário

Reconhecimento e utilização dos diversos sistemas de medidas

Page 431: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

429

De posse dessas referências, as pesquisadoras concluem:

[...] analisando os alunos que passaram pelo Programa Alfabetização Solidária, os “conteúdos” e as “competências básicas” que eles adquiriram e utilizam, fica claro que pouco do que o programa propõe é alcançado de forma que os alunos se sustentam muito mais naquilo que aprenderam fora da escola, nas práticas de letramento sociais, do que o que vivenciaram na prática escolar propiciada pelo programa. [...]

A proposta do programa é muito ambiciosa em querer letrar os alunos. Na verdade todos nós somos letrados, o que nos diferencia são os graus de letramento que apresentamos. Logo, mesmo não acreditando na efetividade de ações desenvolvidas por programas, projetos e campanhas, e defendendo políticas governamentais efetivas de escolarização para jovens e adultos, entendemos que seria mais coerente que o programa definisse como objetivo principal elevar o grau de letramento escolar dos seus alunos através do processo de alfabetização, procurando estabelecer uma articulação permanente com as experiências de letramento que os trabalhadores alunos já trazem das práticas que vivenciam. (MOURA, QUEIROZ, CAVALCANTE et al., 2004, p.15).

Ao se recortar o tema letramento, no marco da educação de jovens e adultos, de que

questões se está disposto a tratar, tantas podem ser as possíveis compreensões exigidas?

O marco conceitual que vem me ajudando a compreender os modos de aprender a ler e

a escrever na educação de jovens e adultos tem duas representantes: Leda Tfouni, no Brasil, e

Judith Kalman, no México. Diferentemente do aporte adotado pelo Programa, não é com

Magda Soares que coincido, nos modos como venho formulando minhas compreensões.

Sei que muitos pesquisadores vêm se dedicando ao tema, mas tem sido com estas duas

que meus estudos — e minhas evidências empíricas — mais têm se identificado. Por isso,

elejo-as como referências às pesquisas que venho desenvolvendo até então.

Tfouni (1995, p. 9) inicia sua argumentação refazendo a ligação inevitável entre

escrita, alfabetização e letramento, o que nem sempre tem sido considerado um conjunto pelos

estudiosos, ressaltando que a relação entre eles é de produto e processo. Sistemas de escrita

são um produto cultural, e alfabetização e letramento são processos de aquisição de um

sistema escrito. Por isso, entende que a alfabetização refere-se à “aquisição da escrita

enquanto aprendizagem de habilidades para leitura, escrita e as chamadas práticas de

linguagem”, levada a efeito, de modo geral, por meio do processo de escolarização, ou seja,

da instrução formal, pertencendo ao âmbito do individual. Diferentemente, o letramento

focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição da escrita e, por isso, estuda e descreve “o

que ocorre nas sociedades quando adotam um sistema de escritura de maneira restrita ou

generalizada”, além de buscar:

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430

[...] saber quais práticas psicossociais substituem as práticas “letradas” em sociedades ágrafas. Desse modo, o letramento tem por objetivo investigar não somente quem é alfabetizado, mas também quem não é alfabetizado, e, nesse sentido, desliga-se de verificar o individual e centraliza-se no social (TFOUNI, 1995, p. 10).

O que a autora nos diz é que em sociedades grafocêntricas, como a nossa, não se pode

falar em iletrados, porque o processo sócio-histórico que a cultura escrita impôs aos grupos

sociais, como forma de poder, afeta tantos os que sabem ler, como os que não sabem, da

mesma maneira, exigindo dos que não sabem respostas iguais às dos que sabem. O que muda,

em sociedades letradas, segundo Vygotsky (1987) é o fato de que se transformam e se

diferenciam no uso de instrumentos mediadores. Aqui a escrita tem este papel fundamental,

que passa a organizar a vida social e mudar as relações entre os sujeitos e os objetos de

conhecimento. Os valores de uma sociedade letrada são, portanto, novos valores que

perpassam os sujeitos — alfabetizados e não-alfabetizados — e as relações entre eles não são

neutras, mas impregnadas do poder que o domínio dessa cultura carrega. Tfouni (1995, p. 27),

então, afirma que:

A explicação, então, não está em ser, ou não, alfabetizado enquanto indivíduo. Está, sim, em ser, ou não, letrada a sociedade na qual esses indivíduos vivem. Mais que isso: está na sofisticação das comunicações, dos modos de produção, das demandas cognitivas pelas quais passa uma sociedade como um todo quando se torna letrada, e que irão inevitavelmente influenciar aqueles que nela vivem, alfabetizados ou não.

E conclui, afirmando:

[...] nas sociedades industriais modernas, lado a lado com o desenvolvimento científico e tecnológico, decorrente do letramento, existe um desenvolvimento correspondente, ao nível individual, ou de pequenos grupos sociais, desenvolvimento este que independe da alfabetização e escolarização. Existe, no entanto, o lado negativo, o lado da perda: esse desenvolvimento não ocorre à custa de nada. Ele, na verdade, aliena os indivíduos de seu próprio desejo, de sua individualidade, e, muitas vezes, de sua cultura e historicidade. A alienação, portanto, também é um produto do letramento. (TFOUNI, 1995, p. 27).

A autora inverte o conceito usual de que letramento é causa (que tem como suporte a

escolarização), cujas conseqüências são o desenvolvimento econômico, e habilidades

cognitivas, tomando-o como um processo interligado à alfabetização; mas também um

continuum que se separa do processo de escolarização, porque diz respeito a processos

históricos que envolvem as práticas sociais, para além dos textos escritos, e que toma em

conta, inclusive, todos os processos discursivos. Para Tfouni, a noção-eixo do conceito de

letramento enquanto processo sócio-histórico é, portanto, a de autor do próprio discurso,

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431

entendido tanto como discurso oral quanto como discurso escrito, em que autor tem a ver com

a noção de sujeito do discurso.

A aproximação que faço de Kalman (2004, p. 75-77) com Tfouni, diz respeito à forma

como a primeira assume a perspectiva sociocultural para “compreender a relação entre a

atividade humana no mundo social e os processos de apropriação das práticas sociais”.

Novamente, a perspectiva da cultura e das relações sociais como processos formadores volta à

cena, e os conceitos de contexto (de uso) e de participação (idéias e significados que a

norteiam), são ferramentas teóricas sugestivas para compreender o acesso à língua escrita, e

alguns aspectos de sua apropriação. Embora Kalman (2004, p. 80) não se refira à idéia de

letramento, ela entende a alfabetização como um processo inicial em que sua apropriação,

intersubjetiva, se faz pelo “conhecimento e o uso das práticas da cultura escrita” que se

constroem “mediante a interação com outros leitores e escritores, na qual a língua oral é chave

para conseguir a aproximação à leitura e à escrita e sua eventual apreensão”. Seguindo esta

idéia, afirma que “os atos de ler e escrever se realizam em eventos socialmente organizados,

nos quais a língua escrita é uma ferramenta necessária para alcançar propósitos

comunicativos”. Observa-se nessas afirmações que o conceito de uso e participação, assim

como de acesso e disponibilidade, estão claramente informando-nos quanto à presença ativa

de sujeitos no mundo da cultura escrita, seja ele oral ou não. O que importa, para a autora, é o

modo como sujeitos podem constituir-se, na intersubjetividade e nas práticas sociais

comunicativas de uso, autores de discursos orais e escritos.

O que essas autoras trazem para minha prática de pesquisadora que intervém em

processos formativos não-escolares, mas formalizados com jovens e adultos, é que, a despeito

da assunção conceitual, para mim a alfabetização e sua continuidade traduzem um claro

processo de formação de leitores e escritores, que se deve desenvolver em busca da autoria,

cada vez mais intensa, da autonomia, da criticidade e da criatividade, sem o que toda

intervenção é insuficiente para se pensar um sujeito cidadão, que interfira nos contextos em

que vive e no mundo em geral.

Com esse marco de compreensão, interajo com as enunciações do PAS e percebo

inequívocas divergências entre o que se propõe como resposta a jovens e adultos não-

alfabetizados — tanto do ponto de vista do horizonte dos objetivos, dos “conteúdos” e das

“competências básicas”, quanto do que está subjacente como concepção de currículo, assim

como quanto ao tempo, estrutura, procedimentos que suportam o fazer do PAS — e o que se

espera como direito para um programa de escolarização cuja oferta não pode negar, nem na

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formulação, nem nos modos como estrutura sua execução, os saberes dos sujeitos e suas

práticas orais e escritas com as quais interferem, agem, mantêm/transformam a vida cotidiana.

Apreendendo as respostas dos três questionários devolvidos, devo assinalar que duas

pessoas trabalharam na mesma universidade, no entanto com concepções muito divergentes

sobre o Programa e com práticas também diversas. No que era possível ser autônoma, a

respondente Abrantes, buscava imprimir, nos momentos de sua participação, concepções e

objetivos diferentes dos estabelecidos, o que infelizmente nem sempre tinha continuidade,

pelos desafios que o acompanhamento fez, o tempo todo, às equipes. Pergunto-me se esta, no

entanto, a despeito de ser a tática149 da profissional para aproximar-se dos objetivos que

buscava desenvolver no Programa, não acabava por criar inseguranças nos alfabetizadores,

que lidavam com disputas teóricas distanciadas das questões práticas que os acometiam na

prática pedagógica e para as quais, muitas vezes, não deviam encontrar respostas, nem com

uma, nem com outra.

Abrantes, reafirmando a crítica ao voluntarismo e ao tempo, considerado insuficiente

para o alfabetizando dominar o sistema convencional de escrita, explicita a compreensão de

letramento com a qual trabalhava: os usos sociais da leitura e da escrita. Para isso, fazia o

“levantamento dos textos escritos que circulavam nos referidos espaços cotidianos da vida dos

alunos, o que normalmente marcava, de forma singular, as respectivas experiências”. No meio

deles, “cartazes de divulgação de programas governamentais, por exemplo, eram uma

referência importante para os modos de aprender a ler e a escrever”, nas cidades no interior do

Piauí. Nas “experiências no Rio de Janeiro (Projeto Grandes Centros Urbanos), eram os

materiais de uma organização não-governamental da localidade, textos que abordavam

questões de gênero, que imprimiam marcas singulares nessa ação alfabetizadora”.

Explicita, ainda, a mesma respondente:

[...] metodologia de alfabetização que contemplava o uso do texto escrito, desde a sua leitura e discussão coletiva, passando pela análise das regras do sistema escrito (separação entre palavras, pontuação, semelhanças e diferenças entre palavras, letras, sílabas), decodificação de palavras para estudo de letras/sílabas, até a formação de novas palavras. Uma outra referência era a história de vida, individual e coletiva, dos alunos como fio

149 Tática, como Certeau (1994, p. 100-101) explicita é a “ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. [...] a tática é movimento ‘dentro do campo de visão do inimigo’ como dizia von Büllow, e no espaço por ele controlado. [...] Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as ‘ocasiões’ e delas depende, [...] O que ela ganha não se conserva. [...] Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia. Em suma, a tática é a arte do fraco.

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condutor das práticas alfabetizadoras. Tendo a concepção de como o conhecimento é produzido: em rede, os processos de formação estimulavam a reflexão sobre a prática alfabetizadora – os caminhos que os alfabetizadores criavam na sua prática, as dificuldades de aprendizagem dos alunos, a lógica de pensamento de cada um — possibilitando que fossem puxados os fios de saberes dos alfabetizadores, no intuito de entrecruzá-los com outros saberes criados por outros alfabetizadores, pesquisadores, professores, alunos, poetas, chargistas, escritores, expressos por diferentes linguagens (fotográfica, televisiva, jornalística, de vídeo, literária).

Como se observa, apesar de a compreensão mais ampla indicar um compromisso com

o entendimento da alfabetização para além da descodificação, no tocante à organização do

sistema escrito, o que se observa é um recair nas práticas escolares convencionais que durante

todos esses muitos anos ensinaram, e ainda ensinam a todos nós, que é preciso chegar à sílaba,

reconstruir novas palavras, em um processo que só faz sentido para quem sabe ler e escrever,

pois que a leitura escandida não existe, com significado, para quem não sabe ler, pela

ausência de sentido do que são esses fragmentos chamados sílabas. Mas faz sentido o texto, o

todo, o bloco de sentido.

Assinalando ainda a ausência de materiais escritos diversos, além da falta de outros

recursos tecnológicos: vídeo, computador, quadro-negro, cadeiras e mesas em bom estado,

demarca que há, no entanto, outras vantagens como, por exemplo, a ausência das “grades

curriculares” dos espaços escolares que tanto têm dificultado a criação de currículos mais

próximos ao legado da educação popular. Observa-se, nessas considerações, a autonomia da

profissional em relação ao projeto, desprezando mesmo, por assim dizer, a formulação que,

como vista anteriormente, trabalha com um conjunto de conteúdos e competências básicas

distintamente organizado. Estes fazeres diversificados, somados a tantos outros não

apreendidos no espaço dessa investigação é que, sem dúvida, fazem “o outro PAS” a que se

refere o respondente Farah Neto. E estes fazeres, como táticas, entram nas brechas por onde

são capazes de surpreender o próprio do poder, que estrategicamente se organiza para o

controle, a garantia da uniformidade que, supostamente, impede a diversidade.

A visão de processo de alfabetização que acontece em cinco meses de ação pedagógica

tem sido rejeitada, com intensidade, pelo conjunto dos educadores, não apenas pela

exigüidade do tempo para uma tarefa tão complexa, como pelo fato de que essa é a etapa

inicial de um processo muito mais amplo, de formação de leitores.

Tanto assim que, nos últimos tempos, quando a perspectiva de EJA volta à cena como

prioridade de um governo, depois de oito anos relegada à condição de ação solidária, de

responsabilidade da sociedade, educadores e educadoras populares associados à Rede de

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Apoio à Ação Alfabetizadora do Brasil (RAAAB), participantes dos Fóruns Estaduais de

Educação de Jovens e Adultos e membros da coordenação nacional dos Movimentos de

Alfabetização (MOVAs), reunidos em São Paulo nos dias 12 e 13 de novembro de 2002,

manifestaram ao governo eleito seu integral apoio e, conscientes de seu papel, teceram várias

considerações, das quais destaco algumas, atinentes à posição assumida em relação ao direito

de todos à educação, ao entendimento de alfabetização e ao que caberia ao governo fazer,

frente aos desafios de consolidar esse direito, em um documento intitulado Manifesto ao

Presidente Eleito Luís Inácio Lula da Silva.

[...] É fundamental garantir o cumprimento do preceito constitucional do direito de todos à educação até hoje não efetivado; para tanto, enfatizamos a necessidade de inclusão da Educação de Jovens e Adultos nos mecanismos de financiamento da educação básica.

É fundamental que o Governo Federal reafirme os compromissos relativos à alfabetização e à educação de pessoas adultas firmados nas Conferências Internacionais de Jomtien (1990), Hamburgo (1997) e Dakar (2000), orientando-se pelas diretrizes do Parecer 11/2000 e pelas lutas populares em defesa da educação pública para todos.

É importante reafirmar a concepção consagrada na V Conferência Internacional de Hamburgo (1997), que compreende a formação de jovens e adultos como processo de educação ao longo da vida, na busca da autonomia e do senso de responsabilidade das pessoas e das comunidades, fortalecendo a capacidade de lidar com as transformações que ocorrem na economia, no trabalho, na cultura e nas relações sociais, considerando as diferenças geracionais, de gênero, etnia, entre campo e cidade, de portadores de necessidades especiais e de outros grupos.

Nessa perspectiva, a alfabetização é concebida como apreensão de conhecimentos básicos de leitura e de escrita da palavra e do mundo, parte de um direito mais amplo que não se restringe à alfabetização, mas deve atingir a terminalidade do ensino fundamental —, como requisito básico para a educação continuada durante a vida e para a formação de cidadãos leitores e escritores críticos e éticos, capazes de expressar suas culturas e experiências, e de intervir na realidade social (Declaração de Hamburgo, 1997).

O Governo Federal, por meio do Ministério da Educação, deve ser o articulador de uma política pública que incorpore a Educação de Jovens e Adultos definitivamente ao Sistema Nacional de Educação, para o que deve contar com uma estrutura administrativa capaz de responder a esse enorme desafio. [...]

Uma das críticas mais contundentes que tem sido exercitada em relação ao modus

operandi do PAS diz respeito ao fato de este ter tido nas mãos, sem custos diretos,

praticamente, tantas universidades atuando, sem que isso definisse uma supremacia de

propostas, pela convergência de tantos professores pesquisadores envolvidos. A lógica

fechada do Programa dialogou fugidiamente com as produções advindas das práticas

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efetivadas, deixando de capitalizar, das avaliações sobre as ações executadas, os possíveis

avanços e as alternativas construídas nesses fazeres, incorporando as mudanças ao

desenho/formato do modelo originalmente proposto. Porque também não investiu na

pesquisa, perdeu a oportunidade de ser insuperável na produção de conhecimentos advinda

dessas práticas, tanto em quantidade como em qualidade, sobre a área da alfabetização.

Apesar das reiteradas críticas sempre renovadas, módulo a módulo, mesmo quando o

Programa organizou a versão para atendimento às populações em grandes centros urbanos, ao

lado das ações nos municípios mais empobrecidos e com índices alarmantes de analfabetismo,

não se curvou à evidência da realidade, para formular uma proposta mais adequada no tempo,

nos modos de atendimento, na escolha dos alfabetizadores, tomando em conta as críticas que

já se acumulavam no Programa.

Muito embora o Programa esteja restrito à concepção e execução restrita da

alfabetização, preocupa-se em apontar uma defesa forte da necessidade de garantir a

continuidade, o que faz com veemência, como modo de fazer com que a concepção de

alfabetização enunciada — vinculada à idéia de inserir o sujeito em novas práticas leitoras,

circulantes em uma sociedade de cultura escrita — se consolide, garantindo condições reais

para que os alfabetizados ajam no mundo. Entrementes, não indica qualquer ação efetiva que

possibilite essa continuidade, tanto porque se trata da oferta de um programa, e não de uma

ação sistêmica, como porque afirma, no mesmo documento Princípios Orientadores para a

elaboração da proposta político-pedagógica (PAS, 1999), a ausência de qualquer ação

política nesse sentido, embora reconheça — e recomende — a necessidade de garanti-la.

A responsabilidade pela abertura de salas de aula de EJA é dos municípios atendidos, mas a Alfabetização Solidária dá total apoio para esse tipo de iniciativa, promovendo as seguintes ações:

▪ mantém os municípios informados sobre as ações do MEC; ▪ mobiliza toda a comunidade para a abertura dessas salas de aula; ▪ promove encontros com representantes dos municípios, para estimulá-

los a criar salas de aula; ▪ acompanha os resultados do Censo Escolar para monitorar a ampliação

de vagas de todos os municípios parceiros. (www.alfabetizacaosolidaria.org.br. Acesso em 17 julho 2005).

A pesquisa já aludida, Avaliação Diagnóstica da EJA Programas Brasil Alfabetizado

e Fazendo Escola, concluída em março de 2005, revela dados interessantes sobre a atuação do

PAS, por exemplo, quanto à formação de alfabetizadores, de que tratarei adiante, mas não

evidencia a importância desse apoio às iniciativas de continuidade. Pelo contrário, o que se

observou foi a circulação de alunos matriculados em outros projetos em parceria com o Brasil

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Alfabetizado, que passaram por vários programas, incluindo o PAS, antes de chegarem ao

projeto onde atualmente estudavam.

Observa-se certa tendência em municípios do interior: grande parte dos alunos integra a mesma família e, embora muitos sejam analfabetos, já passaram pela escola (há vários relatos de remanescentes do MOBRAL e da Alfabetização Solidária). (MEC/UNESCO, 2005, p. 123).

A maioria dos alunos já passou por algum outro programa de alfabetização, os mais citados foram o MOBRAL e a ALFASOL. Fica evidente que cada vez se reduz mais quem nunca passou pela escola. (MEC/UNESCO, 2005, p. 124).

A reiteração das mesmas pessoas nas classes de alfabetização possibilita, ainda, o levantamento de três hipóteses: a) os programas não estão sendo efetivos em sua tarefa alfabetizadora; b) não há oferta de continuidade para os jovens e adultos recém-alfabetizados, que, para não perderem o contato com a leitura e a escrita, mantêm-se nessas classes; c) os alunos atribuem às classes de alfabetização um sentido muito mais socializador do que educativo, na medida em que essa é a única oferta pública de atividades comunitárias/coletivas. (MEC/UNESCO, 2005, p. 125).

1111..22..22 CCoonncceeppççõõeess ddee ffoorrmmaaççããoo ccoonnttiinnuuaaddaa ssuubbjjaazzeemm ààss ccoonncceeppççõõeess ddee EEJJAA

Do ponto de vista dos alfabetizadores, a experiência histórica mostra a necessidade de

se ter, contrariamente ao que mais uma vez se propõe, não voluntários para a alfabetização,

apenas engajados no compromisso com a tarefa, mas profissionais experientes, cujo processo

de formação não comece — e quase termine — em uma “capacitação” de um mês de duração.

A concepção que se tem da formação implica processo, que parte das histórias de vida das

professoras e das suas práticas, para, fazendo-as emergirem, (re)conhecê-las e compreendê-las

de modo a (re)pensar essas práticas continuadamente. O modelo do sujeito “mobilizado”,

somado à ação solidária, e a traços de voluntariado, por se saber barateado o custo do

alfabetizador, também sem vínculo empregatício, nem direitos trabalhistas vem apontando

graves problemas e distorções no entendimento da função social relevante que um

profissional deveria assumir. No documento original do Programa, Princípios Orientadores

para a elaboração da proposta político-pedagógica (PAS, 1999), usou-se, inclusive, o

argumento de mobilização da juventude para defender a presença dos que conseguiram

estudar um pouco mais e que, agora, deveriam “doar-se” à causa da alfabetização, encobrindo

as autênticas motivações para esta opção de quem deve ocupar o lugar do professor: o

descompromisso com os educadores formados e com a educação de jovens e adultos, para

quem as ações quase nunca são garantidas como direito e com qualidade.

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Nesse caso, a recomendação original de que os alfabetizadores fossem renovados a

cada “módulo”, porque o Programa trazia a lógica do “emprego temporário”, denotava uma

perda não só de recursos, mas de capital cultural, pois se dispensava o alfabetizador,

provavelmente quando ele começava a ter indagações sobre a prática, passíveis de serem

problematizadas, e de fazê-lo avançar. Não se estabelece, assim, processo de formação

continuada, mas um eterno recomeçar, o que fragiliza o alfabetizador, que não consegue

consolidar um saber, e os processos pedagógicos nos módulos seguintes, que não podem

contar com a sua participação, agora mais experiente. Comprometem-se os resultados, ainda,

responsabilizando os alfabetizadores voluntários, uma vez mais, pelo sucesso ou insucesso da

ação.

Sobre esse aspecto, recorro novamente à pesquisa Avaliação Diagnóstica da EJA

Programas Brasil Alfabetizado e Fazendo Escola, em observações no mínimo curiosas,

denotando a inteligência prática dos alfabetizadores, submetidos a essas condições de

temporalidade no PAS. Nos diversos estados e municípios visitados, pode-se perceber a

presença do PAS, ao lado de muitas outras instituições, tanto de âmbito local, quanto

nacional. E dos muitos alfabetizadores entrevistados em todas elas, um aspecto foi destacado:

a passagem desses alfabetizadores “formados” pelo PAS em muitos outros

programas/instituições, que aproveitavam o conhecimento e a formação, além da vivência

prática, desses alfabetizadores descartáveis, segundo as orientações do Programa.

Inventavam eles, assim, táticas de sobrevivência no cotidiano duro de suas vidas, pela

escassez de trabalho.

Também o relatório do TCU (2003, p. 17-18) tratou da questão, para a qual dispensou

um tratamento cuidadoso de escuta junto aos coordenadores das instituições de ensino

superior e municipais (locais):

Para cada novo módulo é realizada a capacitação dos alfabetizadores, segundo as diretrizes do Programa, tendo em vista que esses alfabetizadores não podem ser aproveitados no módulo seguinte. O maior aproveitamento da capacidade dos alfabetizadores, por sua vez, favoreceria a qualidade do ensino, atenderia ao princípio da economicidade e da eficiência, aumentaria a efetividade do processo de aprendizagem dos alunos e diminuiria o número de capacitações.

Assim, há uma alta rotatividade dos alfabetizadores, cujas evidências apontam para a perda de qualidade do ensino oferecido. Nesse sentido, de acordo com as respostas obtidas nos questionários, tem-se o seguinte: 41,15% dos coordenadores das Instituições de Ensino Superior – IES afirmaram que o não aproveitamento dos alfabetizadores no módulo seguinte prejudica o desempenho do Programa, 16,06% acham que não influencia e

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8,76% acham que contribui para o desempenho do programa. Já em relação aos coordenadores locais (municipais), 48,97% acham que a rotatividade prejudica o desempenho do PAS, 17,01% pensam que não influencia e 5,15% consideram que o não aproveitamento no módulo seguinte contribui para o desempenho do programa.

Muitos outros problemas são evidenciados em relação à participação dos

alfabetizadores, um dos mais sérios referente aos atrasos de pagamento nas bolsas a que

fazem jus. A mesma pesquisa citada, MEC/UNESCO (2005, p. 137-138), também evidenciou

esses problemas, mostrando como é intrincada a rede que os recursos percorrem até chegarem

às mãos dos alfabetizadores. Esta questão é apontada por Abrantes, como causa de sua

participação no Programa: “Desde 2002, não trabalho mais no PAS (municípios no Piauí),

pelo mesmo motivo que deixei de atuar no Projeto Grandes Centros: constantes atrasos no

pagamento das bolsas das alfabetizadoras”.

Sobre as metodologias de formação, Farah Neto afirma ter existido, durante o tempo

de sua experiência no Programa, a “construção de uma prática baseada no exercício da

reflexão, da crítica, da relação entre o conhecimento local e o universal. Paulo Freire, sem

dúvida, foi o autor mais significativo para essa experiência”, reforçando a idéia de que cada

PAS é um, dependendo, mais do que da instituição que o desenvolve, dos profissionais que o

fazem, com as próprias concepções, visões de mundo, de formação. E o respondente ainda

continua: “uma proposta própria de formação e de utilização do material disponível, [...]

desenvolver no alfabetizador um processo de apropriação (“vôo próprio”), de autonomia em

relação ao curso. O investimento em formação inicial e em serviço foi bastante acentuado,

além da supervisão e do planejamento”.

No mesmo sentido da metodologia de formação, Abrantes reconhece que a questão da

escrita — central no processo de formação — constitui:

[...] o desafio nos nossos momentos formadores, até porque a escrita não é a linguagem mais utilizada pelos alunos, incluindo os alfabetizadores. Situação que sempre nos instigou a pensar alternativas metodológicas de formação, não tendo o texto escrito como única referência de leitura, mas que pudesse incluir outros que ajudassem a compreender os atos da leitura e da escrita.

Medeiros afirma ter trabalhado “a formação do educador como um campo de múltiplas

escolhas, compreendendo as complexidades do ato educativo a fim de propor a emancipação

dos grupos populares envolvidos. [...] tal proposta pressupõe o conhecimento da realidade

histórico-social onde vivem o alfabetizador e alfabetizados”. Para isso, estabeleceu:

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[...] temas a serem trabalhados e objetivos como alternativas que privilegiassem as necessidades dos educadores, levando em consideração suas experiências, expectativas e anseios tanto no que diz respeito ao seu trabalho quanto no que diz respeito aos seus alunos.

Sobre os riscos permanentes de ingerência política na seleção de alfabetizadores —

atribuição que cabia às instituições de ensino superior, Farah Neto confirma que havia

tentativas de indicação de alguns alfabetizadores, exclusão de outros etc. Mas que sua

instituição, durante todo o tempo em que esteve ligado ao Programa, se contrapôs a essas

tentativas, algumas vezes de forma bastante enérgica e decisiva. E acrescenta a informação de

que nenhuma mudança de concepção e gestão no PAS ocorreu durante o período em que

atuou, a não ser o fato de passar a exigir que os alfabetizadores selecionados fossem

professores vinculados à rede municipal de ensino. Diz, também, que as condições materiais e

de recursos educativos do Programa eram péssimas, o que não difere dos dados levantados,

no geral dos projetos em parceria com o Brasil Alfabetizado, pela pesquisa MEC/UNESCO

(2005).

1111..33 AALLGGUUMMAASS IINNDDIICCAAÇÇÕÕEESS PPAARRAA RREEPPEENNSSAARR AA AAÇÇÃÃOO DDOO PPAASS NNAA EESSFFEERRAA PPÚÚBBLLIICCAA

Pensar o PAS na perspectiva pela qual se constituiu, ou seja, como alternativa para

consolidar a oferta da esfera pública exige refletir sobre algumas questões centrais que sempre

envolveram o Programa.

Uma delas, cuja importância é fundamental nesse contexto, traduz a pouquíssima

visibilidade para os resultados da ação alfabetizadora, razão pela qual o Programa existe. O

país viveu, como a história da EJA demonstra inequivocamente, renovados processos de

aposta em soluções episódicas, de programas emergenciais ou de campanhas, sem nunca ter

conseguido consolidar o direito de ler e escrever para todos os brasileiros, mas reiteradamente

oferecendo a esperança de deixar de ser analfabeto para tantos que continuam, por isso

mesmo, acreditando que, agora sim, terão sucesso. De ilusão em ilusão, trapaceia-se com um

contingente imenso da população, que se recusa a não acreditar no poder público, ou nas

formas pelas quais ele se expressa, recomendados/em nome de, e mais uma, duas, muitas

vezes, a população volta, com a verde esperança colorindo de entusiasmo o reinício de nova

etapa. Quantos, então, pode-se dizer que passaram pelos programas, quantas vezes, por quanto

tempo, e quantos aprenderam? Os dados que não mudam, estacionados em 16 milhões a partir

do Censo IBGE 2000, não conseguem captar os movimentos que os programas e os projetos,

muitos e múltiplos vêm fazendo pelo território brasileiro, distribuindo esperança, nem

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conseguem assumir o limite do que são/foram capazes de realizar, com isenção, autocrítica,

transparência.

A constituição da esfera pública, estabelecendo os princípios da democracia como

base, trata com pouco rigor essas ausências, assumindo como naturais as lacunas que

esburacam os programas e os dados, como um queijo suíço.

O PAS, ao trabalhar exclusivamente com dados de atendimento, e não com aluno

alfabetizado, deixando para seu uso interno esses resultados, põe-se à margem da possível

contribuição que poderia fazer para consolidar essa esfera pública, exigente de transparência,

de visibilidade, de rigor. Recorrendo ao relatório do TCU (2003, p. 15), verifico que essa,

dentre outras ausências sentidas, contribui para fragilizar o Programa, e comprometer a

qualidade do ensino, e que um relatório interno, ao que o TCU teve acesso, reflete a realidade

expressa no gráfico abaixo, muito aquém dos resultados desejáveis:

Gráfico 1

Fonte: Sumário Executivo, TCU, 2003.

O relatório ainda aponta que a desarticulação do Programa nos municípios, um dado

verificado e corroborado pela Avaliação Diagnóstica (2005, p. 134), extrapola essa

instituição, para reaparecer como problema nas muitas outras que, diversamente do esperado,

nem colaboram para a construção de uma política pública, nem para a mudança do quadro de

atendimento, porque competem entre si, disputam alunos, não dialogam com o poder público,

planejando a orquestração das próprias ações, ou as formas de dar a elas conseqüência,

seguimento, continuidade.

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441

Observa-se que a relação entre os parceiros no nível local não existe, atuando cada qual como se fosse único, no território. A tarefa política que cabe às secretarias de educação, de coordenar as ações de atendimento que cumprem o dever do Estado com a educação, é absolutamente esgarçada, não pertence a ninguém, e cada um trata de justificar seu esforço de atendimento, sem qualquer responsabilização com a continuidade e/ou encaminhamento futuro dos alfabetizandos.

Não se trata, pois, de escolarizar à força, mas, talvez, assumir a Declaração de

Hamburgo (1997) com veemência e instaurar novos e inusitados processos de aprender por

toda a vida.

O gráfico a seguir, produzido pelo TCU (2003), demonstra, pelo relato de

cooordenadores, como são tênues os laços que envolvem os alfabetizandos a processos de

continuidade, e frágeis os resultados dos que se alfabetizam:

Gráfico 2

Fonte: Sumário Executivo, TCU, 2003.

Outra constatação da auditoria diz respeito ao tempo de duração do módulo de

alfabetização, essa uma quase certeza para os educadores, pelo fato de não se mostrar

suficiente, nos muitos exemplos que a história tem oferecido, para atender às necessidades de

aprendizagem dos alunos. A evidência surge pela quantidade de alunos que repetem o

módulo, ocultados até recentemente pela falta de cadastro e coleta de dados, do mesmo modo

como são encontrados em muitos outros programas, por anos a fio, como a pesquisa

MEC/UNESCO (2005) também demonstra. Mas também há excedente de oferta em muitos

lugares, sem que se faça, rigorosamente, um exame do significado desses excedentes:

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442

Há municípios pequenos com grande oferta de turmas de alfabetização, o que exige avaliar se a demanda por alfabetização continua, de fato, existindo, ou se os alunos estão se rematriculando em outros projetos, formando um círculo de dependência – já que os professores dependem dos alunos para a geração de renda e os alunos dependem dos professores, pois não tendo sucesso nos curtos processos de alfabetização, ou não conseguindo continuar os estudos no ensino fundamental, têm em novas turmas de alfabetização a única chance de continuidade. Isto indica, de modo geral, a necessidade de avaliar, como política pública, a demanda potencial x ofertas de atendimento já disponibilizadas nas áreas municipais, para verificar se a continuidade de oferta de projetos não se torna dispensável em algumas, e continua a ser insuficiente em outras. Esta idéia se reforça pela indicação feita em uma localidade em que se entrevistou pessoal do Programa por falta de demanda. Algumas localidades estão repletas de ofertas em alfabetização. (MEC/UNESCO, 2005, p. 131-132).

Um dos problemas mais graves, detectados em campo, diz respeito ao excesso de instituições conveniadas com o Brasil Alfabetizado no mesmo município. Existe uma disputa sutil pelos alunos, com oferta de benefícios como merenda, material didático, cesta básica. As instituições funcionam desarticuladamente, transitando pelo município ou até mesmo pelos municípios vizinhos, sem nenhum tipo de controle. (MEC/UNESCO, 2005, p. 135).

Essa situação, que faz com que até alunos do antigo MOBRAL estejam nessas classes,

persistindo em busca do aprender a ler e a escrever, se associa, para sua compreensão, a novas

questões que andam de braços dados com a educação, mas que não costumam ter tratamento

intersetorial para consolidar políticas públicas efetivas, de direito. Abrantes alerta para o fato,

da seguinte forma:

[...] a experiência de alfabetização de jovens e adultos, como toda a educação básica, preocupada com os usos da leitura e da escrita, pouco pode fazer se o contexto social não favorece essas práticas [...] a pobreza, a miséria, o desemprego, a melhor distribuição de renda no país precisa fazer parte da EJA, para que não seja criada a ilusão de que basta aos nossos alunos o domínio de certos conteúdos, incluindo a escrita, para que sejam cidadãos de direitos. [...] formação mais politizada dos grupos marginalizados, na perspectiva de que tenham maior participação nas definições de políticas que afetam o dia-a-dia de suas vidas, exige uma reflexão maior sobre os princípios político-pedagógicos da EJA.

Por último, cabe compreender, para poder interferir, nos modos ainda convencionais

como vêm sendo feitas as formações de educadores: para eles, e não com eles, os que

verdadeiramente fazem a EJA, os que transitam, com todas as dificuldades que cercam a

educação, em modos por fora do sistema, chamados não-formais. Condenar os alfabetizadores

apenas, pelo insucesso das iniciativas, não se apresenta como um caminho adequado, para

tratar quem aceitou, desde sempre, o desafio que o poder público não tem conseguido realizar.

Com eles, cabe refletir sobre “como a formação inicial e continuada precisa ser um direito dos

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educadores da EJA, exigindo a discussão de alternativas metodológicas, para além dos

cânones acadêmicos” (Abrantes), porque essa formação precisa ser realizada em conjunto,

com o alfabetizador e com todos os que fazem a EJA, pondo-se à mesa, como quem recebe

visitas, o que de melhor eles podem oferecer: suas vivências, suas experiências, suas práticas:

pedagógicas, e de vida mesmo.

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1122.. TTRRAAMMAANNDDOO CCOONNCCEEPPÇÇÕÕEESS EE SSEENNTTIIDDOOSS PPAARRAA RREEDDIIZZEERR OO DDIIRREEIITTOO ÀÀ

EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO DDEE JJOOVVEENNSS EE AADDUULLTTOOSS

[...] Escrever, numa hora daquelas? O que ele explicado mandou, eu fui e principiei; que obedecer é mais fácil do que entender. Era? [...] “Ah, o que eu não entendo, isso é que é capaz de me matar...” (GUIMARÃES ROSA, 1986, p. 287).

Riobaldo1 me anima no esforço de compreender as concepções da educação de jovens

e adultos que se explicitam nos projetos selecionados para representarem o atual momento em

que a EJA se realiza na sociedade brasileira, quando pude transitar por seis propostas,

buscando seus sentidos, nexos, possibilidades, relações, visando a expressar a complexidade

dessas concepções.

O conhecimento produzido por meio da abordagem que busquei desenvolver —

transdisciplinar — ao gerar compreensão (NICOLESCU, 2003, p. 44, 46), o fez pela

apreensão dos diversos níveis de realidade nos quais operam os projetos e seus atores,

tentando, também, capturar a surpresa — esta talvez representada pelos depoimentos

reveladores do estar no mundo de tantos educadores com quem pude conviver, causando-me

novos e surpreendentes encantamentos com o movimento, com a dinâmica da ação dos

sujeitos nos níveis de realidade, entrelaçando e apreendendo os objetos e as múltiplas relações

que estabelecem em uma larga rede de sentidos, que possibilitam ao conhecimento

permanecer aberto para sempre.

Os projetos selecionados expuseram a abrangência nacional, considerada critério

inicial, possibilitando-me aventurar-me em busca da compreensão das concepções de EJA,

historicamente situadas, temporal e espacialmente, multidimensionais, organizadas segundo

fatores não-duradouros, mas sensíveis aos movimentos dos sujeitos nas suas ações de fazer e

desfazer, pensar e transformar o mundo. Seguindo essa perspectiva, discuti os muitos sentidos

que se deram a ver, na trama com que operam em nível macro — com as instâncias de poder e

as políticas —, em tensão com as estruturas do cotidiano e a mudança, sem o que é impossível

apreendê-las.

Embora o atual momento ofereça um rico campo de compreensão, com marcas muito

peculiares reveladoras das produções de uma sociedade em movimento de democratização,

ganhando experiência e experimentando práticas diversas das reconhecidamente autoritárias

1 Personagem de Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas.

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445

que forjaram outros momentos da história do país e da educação, muitas pistas ainda poderão

ser melhor compreendidas, na interlocução que, necessariamente, este trabalho produzirá.

Duas grandes questões orientaram a pesquisa, e as retomo, nesse momento, com vistas

a que sejam os guiões dessas reflexões finais:

a) que concepções de alfabetização e de escolarização fundamentam, então, as

propostas curriculares na EJA e como contribuem para atualizar as concepções

próprias do campo da educação de jovens e adultos?

b) com que perspectivas teórico-metodológicas os saberes da prática social passam a

constituir as redes de conhecimento em projetos de educação que visam ao direito

de todos à educação, e que implicação têm no repensar os sentidos

contemporâneos da educação de jovens e adultos.

1122..11 PPEERRSSPPEECCTTIIVVAASS IINNTTEERRNNAACCIIOONNAAIISS DDOO DDIIRREEIITTOO

A perspectiva do direito — marco conceitual do porquê educar jovens e adultos —

tem fortes enunciações ao longo de toda a história pela qual transitei, embora nem sempre

tenha sido assumido da mesma maneira, nem para todos. Da Declaração Universal dos

Direitos Humanos, de 1948, passa-se à II Conferência de Educação de Adultos no Canadá, em

1960, em que a perspectiva do direito se explicita pelo reconhecimento do papel dos jovens

no esforço da alfabetização. Em 1972, na III Conferência em Tóquio, alguns temas são

recorrentes, e já se faz a associação, pela primeira vez, da educação às necessidades humanas,

mais tarde traduzidas por necessidades básicas de aprendizagem, recortando a abrangência

que neste momento aparecia. A diferenciação dos segmentos excluídos de direitos se faz

apontando a precária realidade dos jovens seja em relação à escola, seja em relação ao

trabalho; a situação de populações rurais desassistidas de escolas; a condição de trabalhadores

migrantes, de idosos e desempregados em geral. Em todas elas a condição das mulheres se

destaca como objeto de atenção, pela desigualdade que as acomete mais fortemente no

interior de cada categoria.

Na alfabetização é creditada a responsabilidade para o desenvolvimento, e

fundamento da educação de adultos. Meio, e não fim em si mesmo. A educação deve ser

funcional, atravessando a sociedade, o trabalho, o lazer, as atividades cívicas e, para isso, os

governos deveriam tratar a educação de adultos em pé de igualdade à educação escolar, com

sensível aumento de investimentos.

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Nairóbi em 1976 aprofunda a idéia do direito de toda pessoa à educação e a uma livre

participação na vida cultural, artística e científica, considerando inseparáveis educação e

democracia, e educação e abolição de privilégios, esta última idéia sob a responsabilidade da

educação permanente, por assumir ser a educação de adultos parte integrante da educação

permanente. Como tal, a educação permanente é constitutiva do direito à educação, e meio

facilitador do exercício do direito à participação na vida política, cultural, artística e científica.

Mais uma vez a preocupação com os jovens aparece, recomendando-se sua inclusão na

educação permanente até que, integrando o mundo adulto, possam ser beneficiados pela

educação de adultos.

O conceito de educação permanente se expressa como forma de um projeto global

com vista a reestruturar o sistema educativo existente, assim como para desenvolver todas as

possibilidades de formação fora do sistema educativo, abarcando todas as dimensões da vida e

áreas do saber, de modo orgânico, com todos os processos educativos que crianças, jovens e

adultos seguem ao longo da vida.

Por educação de adultos entende a totalidade dos processos organizados de educação,

seja qual for o conteúdo, o nível ou o método, formais ou não-formais, que prolonguem ou

recoloquem a educação inicial oferecida nas escolas e universidades, e sob a forma de

aprendizagem profissional, vinculada precipuamente à idéia de desenvolvimento, cara para a

década de 1970. A capacidade de aprender a aprender se enuncia nos termos da

Recomendação de Nairóbi.

Paris, em 1985, sedia a IV Conferência, e movimenta-se para definir um termo novo,

traduzindo uma ciência equivalente à pedagogia — a andragogia —, com conhecimento

adequado sobre as formas de ensinar e educar adultos. Mantém estreita vinculação da

educação permanente ao desenvolvimento econômico, social, científico e tecnológico do

mundo contemporâneo, associando população educada e desenvolvimento econômico.

Declara o direito de aprender como desafio capital da humanidade, reconhecendo-o como

direito humano fundamental, e destacando que, por esse caráter, não se destina a apenas uma

parte da humanidade, com o que critica as formas como os países vêm tratando os

desfavorecidos em todas as partes do mundo.

A chegada à V CONFINTEA, em 1997, exige compreender o processo de mudanças

instalado na América Latina, conhecido como globalização, referida por Chesnais (1996, p.

14) como mundialização do capital, perda de soberania dos países, em troca da pujança do

poder do capital internacional, transnacional e virtual. A contribuição da América Latina

Page 449: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

447

marcou lugar, principalmente, pelo anúncio da presença juvenil na EJA, cada vez mais intensa

e denunciadora do fracasso dos sistemas públicos e dos acordos em relação à educação básica,

ditados pelas agências internacionais de financiamento.

Apesar dessa constatação, no Brasil desse tempo, embora o direito à educação de

jovens e adultos não seja assumido como política pública, de fato é o Estado ainda o potente

articulador de políticas. Essas políticas nem sempre estão expressas pelo sentido do direito à

educação que venho buscando, do ponto de vista da concepção com a qual opera, mas

seguramente pelo financiamento que possibilita.

1122..22 PPAARRCCEERRIIAASS EE FFIINNAANNCCIIAAMMEENNTTOOSS

O financiamento na educação de jovens e adultos — restrito em períodos recentes, e

insuficiente para a demanda atual — é inequívoco pelo modo como enunciou e

reconceitualizou o termo parceria, relação indiscutível no fazer da EJA nos espaços da

sociedade. Os financiamentos, constituindo políticas educacionais, têm fontes diversas, e o

Ministério do Trabalho passou a ser um grande indutor de projetos de EJA, com o MEC

inexpressivamente apoiando algumas quantas ações de formação continuada e de reprodução

de material didático. Especialmente durante os oito anos do governo Fernando Henrique

Cardoso essa situação se reforça, pelo esvaziamento do papel do MEC como indutor de

atendimento na EJA — dever constitucional do Estado —, relegando à parceria com a

organização não-governamental ALFASOL a responsabilidade do atendimento, de forte

concepção compensatória e clientelista, assim como os recursos “carimbados” no orçamento.

A concepção de parceria passa a resolver as questões da EJA, e esta concepção toma

caráter e visibilidade muito variada, tanto na forma como o poder público a encarna, quanto

pela forma desenvolta como as instituições conformam seu papel social nesse campo, como

parceiras.

Várias são as concepções de parceria com as quais a EJA se depara nos projetos em

discussão. Uma delas, a que executa uma ação predefinida pelos atores do Estado, submetidos

a regras e procedimentos não-discutíveis — o caso do PAS, que depois leva a mesma prática

centralizada para sua ação como organização não-governamental, embora ela própria, a partir

de então, passe a depender de financiamento público para cumprir o modelo antes assegurado,

por ser braço executor da política de EJA do Estado.

Page 450: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

448

Uma segunda, em que a concepção inclui o parceiro como contribuinte na formulação

de propostas, segundo os interesses dos grupos sociais que representa, mas não lhe conferindo

qualquer poder de controle sobre os recursos, sobre regras e procedimentos, nem sobre a

execução orçamentária, o que cabe a um terceiro parceiro — o caso do PRONERA, com o

MST, que depende da universidade para a execução da ação e em parte para a administração

de recursos, centralizados no INCRA.

Uma terceira, em que o Estado, em última instância é o grande financiador das ações

de EJA pela isenção fiscal, e que os parceiros atuam com absoluta autonomia na destinação

dos recursos, seja quanto às concepções, políticas, prioridades, indo ainda, muitas vezes,

concorrer com outras entidades quando outros recursos públicos ou internacionais se

oferecem, com larga vantagem sobre outras instituições, devido ao porte, à inserção do

segmento que representam, às gestões de nível macro da qual participam — o caso do SESI e

do SESC, embora este último venha demonstrando maior independência de novos recursos,

como parceiro do Programa Brasil Alfabetizado, por exemplo, em movimento inverso:

aportando recursos de seu próprio orçamento, provenientes da contribuição obrigatória

calculada sobre a folha de pagamentos (recolhida pelo INSS e devolvida aos integrantes do

chamado Sistema S) para a execução da formação continuada de alfabetizadores, equipe

técnica e supervisores, sem recorrer a novo financiamento do governo federal.

Uma quarta, em que a EJA é realizada com aportes de recursos não apenas das

próprias administrações que as desenvolvem, mas também com recursos da parceria do

governo federal, em projetos voltados ao apoio a ações de formação continuada de

professores e outras menores, complementares, ou alquimizadas em subterfúgios de outros

programas com financiamento, utilizados desde a exclusão da EJA no FUNDEF — o caso da

Secretaria de Educação da Bahia, nessa última situação, e do município do Rio de Janeiro,

que tem atendimento restrito na rede, mas vem sendo usuário sistemático de recursos do

FNDE para formação continuada de professores.

Embora não tenha sido objeto da discussão nessa pesquisa, uma quinta forma vem se

delineando desde 2003, quando o Ministério da Educação lançou o Programa Brasil

Alfabetizado, por meio do qual as diversas concepções circulantes de alfabetização podem ser

apoiadas com financiamento para um período de tempo entre seis e oito meses, na proposta

validada desde 2004. Esse período de tempo nem restringe nem exclui, no entanto, qualquer

desenho de ação do parceiro, seja do ponto de vista das concepções de alfabetização, seja dos

tempos de execução. O parceiro executor da ação tem liberdade para integrar novos recursos

Page 451: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

449

ao projeto pedagógico, ampliando quantitativamente o atendimento e mantendo seu “modelo”

de ação pedagógica, segundo concepções de alfabetização, de tempos de aprendizagem, de

organização dos cursos, de duração, sem ferir as regras do financiamento federal.

Esses modos de fazer a parceria podem acontecer integrados, e cada instituição,

dependendo do momento, pode também realizar concomitantemente mais de uma forma de

parceria, desde que as regras admitam a concorrência a recursos para a natureza da entidade

que o pleiteia. Duas constatações, entretanto, devem ser feitas. Uma reconhece que as

parcerias, a busca dos recursos públicos têm sido arquiteturas bem-montadas de financiar o

setor privado, escoando recursos do erário legalmente para esse fim, e impedindo, por outros

mecanismos, que não cabe discutir nesse âmbito, o acesso de diversas instâncias do sistema

público, seja federal, estadual, municipal, autárquico, fundacional etc. a esses novos recursos.

O PAS principalmente, emblematiza, de meados da década de 1990 para cá, algumas formas

de como se faz a conexão nas relações público-privado, revelando a promiscuidade do Estado

com a esfera privada, no âmbito do neoliberalismo. A outra, sem negar a parceria como

estratégia política de alcançar o direito, reafirma o dever constitucional do Estado com esse

direito, não o eximindo da responsabilidade que lhe cabe.

1122..33 OOSS FFÓÓRRUUNNSS —— TTEECCIIDDOOSS CCOONNJJUUNNTTIIVVOOSS CCOONNSSTTIITTUUEEMM RREEDDEESS DDEE PPRROOJJEETTOOSS

Algumas compreensões bastante relevantes destacaram-se dos projetos, e em busca

dos sentidos que vão sendo atribuídos à EJA, nesse cenário da contemporaneidade, passo a

discuti-las.

Uma primeira compreensão diz respeito à forma como os projetos, representados pela

ilustração da rede que se interconecta, mostram-se permeáveis à interferência e à produção da

rede sob a qual busquei compreendê-los.

Essa afirmação se visibiliza, no âmbito da pesquisa, por meio de algumas evidências e

institucionalidades que se vão constituindo e que não mais os mantêm isolados, mas

integrados no mesmo tecido com o qual estabelecem trocas, interpenetrações, parcerias,

vínculos. Como evidências, penso que devo apontar duas importantes: a) a disseminação dos

sentidos da EJA como direito; b) a apropriação do papel do Estado como parceiro potente e

fomentador de ações e de novas concepções no campo.

Desde quando a ação na EJA era intensa mas desconectada no espaço-tempo, sem um

tecido conjuntivo agregador, os fóruns resgataram o reconhecimento entre os tantos atores,

Page 452: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

450

agora em relação, em rede, cujas conectividades estão exigindo maior compreensão e

investigação. Não sendo os fóruns meu foco principal, tomo a materialidade da existência

com a qual vêm refazendo a EJA, pela conquista da legitimidade do papel que representam.

Atuando como insterstício das múltiplas trocas, injunções e disjunções que as

instituições/programas/projetos realizam, os fóruns, de modo permeável e contiguamente, por

meio de pessoas — variados atores imbricados desde os níveis centrais à base da ação na qual

a prática pedagógica acontece em movimento de ir-e-vir —, novamente permeabilizam as

redes de contato e experiências entre atores e instituições.

A identidade desses fóruns se produz, em maior ou menor escala, pela busca constante

da garantia do direito à educação de jovens e adultos, em espaços de interlocução entre

entidades públicas e privadas, governamentais e não-governamentais, formais e não-formais,

representadas por administrações públicas estaduais e municipais, tanto da educação quanto

de áreas afins, nas suas diversas instâncias de realização; universidades e institutos superiores

de educação; SESC, SESI, SENAR, pelo Sistema S; organizações não-governamentais;

sindicatos e federações; entidades filantrópicas e comunitárias; movimentos sociais;

estudantes universitários e de EJA; professores, alfabetizadores, educadores populares. As

identidades vão sendo estabelecidas nas negociações de sentidos para os temas/problemas

atinentes à área, que passam a configurar o perfil de cada fórum, assim como interferem nas

concepções e práticas de atores, projetos e instituições ali representadas. A isso chamo

permeabilidade, em interação dinâmica que constrói e reconstrói sentidos, ressemantizando o

campo da educação de jovens e adultos.

Para a constituição do direito, a proposta dos fóruns se estende da interlocução com

agentes e dirigentes estatais, formuladores e executores de políticas, programas e projetos à

intervenção direta nas políticas públicas, sejam de âmbito local, regional ou nacional. O

exercício da democracia segue como desafio para a convivência e o diálogo entre atores tão

diversos, com missões e objetivos às vezes até mesmo conflitantes, que demandam a escuta, a

possibilidade de divergir, de tensionar idéias, negociar e construir saídas e alternativas

pactuadas por todos.

Entendi, desde que enunciei o “modelo” de relações estabelecidas, que o tecido em

que se dão as trocas na contemporaneidade, representado pelos fóruns de EJA, tem

constituído novas institucionalidades que se forjam no tempo-espaço nacional, ao longo de

quase dez anos.

Page 453: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

451

A legitimidade desses espaços de produção — os fóruns — a que se têm atribuído a

categoria de movimento social tem sido reconhecida, no atual momento histórico, pelo

governo federal que, identificando a potência das articulações políticas e ideológicas ali

realizadas, tem mantido com eles canais de interlocução direta e formal visando à formulação,

consolidação, avanço e enraizamento das políticas públicas de direito à educação de jovens e

adultos.

1122..44 DDIIRREEIITTOO ÀÀ EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO

Uma segunda compreensão — a educação como direito humano, continuadamente

reafirmada, que ganha força nas últimas décadas, mais para o sentido das enunciações do que

para as formas como as políticas públicas resguardam esse direito — é um princípio

indiscutível na EJA. Se o poder econômico tem sido o grande fazedor de políticas

educacionais, nos tempos de globalização, afetando diuturnamente as organizações e

prioridades dos sistemas públicos e regulando todos os elementos integradores, a partir do

custo-aluno/ano, no trato da EJA a questão tem sido ainda mais complexa, no marco do

direito. Dados quantitativos de população e de escolaridade não deixam dúvidas sobre o não-

cumprimento do direito, e nenhuma garantia jurídico-legal tem sido suficiente para alterar a

sistemática ruptura com o dever da oferta, por parte dos poderes públicos, organicamente, nos

sistemas de ensino. Mas a proclamação dos direitos se faz, em textos legais, programas,

projetos, pareceres, documentos. Não é, portanto, por falta da letra, nem da lei nem de outros

usos da cultura escrita, que o direito não se faz prática, mas principalmente porque o contexto

em que se promove e se defende esse direito é fortemente desigual, produtor de exclusões,

porque o mundo em que é reivindicado rege-se pela ideologia do capital, para o qual a

desigualdade é fundamento, e não a eqüidade.

Por outro lado, não há como negar o potente papel indutor do Estado no fazer das

políticas, mesmo quando tímidas, nem há como dispensar o Estado da responsabilidade com a

educação de jovens e adultos. O jogo de forças entre níveis e modalidades — todos com

recursos escassos —; entre público e privado; entre a modalidade presencial e a distância na

EJA põe-se desfavoravelmente contra esta. O imaginário social que invisibiliza os não-

alfabetizados/não-escolarizados, com o concurso dos meios de comunicação ou que elege as

crianças e adolescentes como prioridade, absolve o Estado pelo não-cumprimento de um

dever, por considerar cada sujeito interditado do direito como culpado pela própria condição.

Page 454: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

452

A conta dos largos contingentes, em um país como o Brasil, só pode ser saldada por

meio da presença forte do Estado, envolvendo diferentes atores em rede, com projetos de

longo prazo e sustentados como de interesse nacional, com todos os efetivos e potenciais

atores sociais que se põem em movimento pela educação de jovens e adultos. No caso do

PEJA, por exemplo, a desresponsabilização do setor público como promotor de políticas não

impede que o programa permaneça no tempo (desde 1985), apesar das várias ameaças de

rompimento, mas não assumindo a EJA como dever municipal, porque as ofertas nunca foram

intensificadas quantitativamente, e nunca levaram em conta a população demandante, mesmo

com a existência de uma rede de escolas públicas com 1.054 unidades.

Todavia, a constituição do direito, com todas as imbricações que consegui capturar,

exige-me formular mais uma pergunta: em que medida o direito, compreendido nos limites

dos projetos estudados, revelam de fato a conquista social do sentido que direito pode assumir

nas sociedades contemporâneas, ou: seria este direito feito sob a tutela do Estado, e portanto,

frágil conquista que pode ruir quando este poder sair de cena?

Uma terceira compreensão diz respeito à forma como a educação de jovens e adultos

se espraiou pela sociedade brasileira, tanto se alargando em projetos que têm dimensão

nacional, ocupando muitos estados e localidades, como também atingindo contingentes

expressivos de público.

A história da EJA no Brasil, não se pode esquecer, foi constituída como uma história

de experiências, porque, de modo geral, não conseguiu produzir enraizamentos nos sistemas

públicos. Algumas fogem dessa categoria, como o MEB, por exemplo, efetivamente nacional

em poucos meses de ação, e o MOBRAL, que como programa de governo constituiu política

pública em rede de atendimento, mas paralela ao sistema. O caso mais recente do PAS, de

larga penetração, não ultrapassa o lugar de experiência, no meu entender, porque embora

oferta oficial, mobilizando formalmente a rede de instituições de ensino superior, mantém um

modelo de atendimento “volátil”, com duração curta e alta rotatividade dos alfabetizadores,

cujo vínculo interessa mais à geração de emprego e renda do que à tarefa alfabetizadora, o que

não enraíza sequer o esforço da formação. São, no entanto, as experiências expressas em

pequenos projetos de educação popular, de poucos participantes e localizadas as que

demarcam com intensidade a história da EJA, no tempo e no espaço nacional.

Os programas em discussão nessa pesquisa não podem mais ser considerados

experiências, no sentido clássico da educação popular em busca da produção de alternativa às

concepções hegemônicas.

Page 455: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

453

O SESI, na atualidade, atende cerca de 1 milhão de alunos na própria rede, e tem meta,

pelo terceiro ano consecutivo, de 300 mil alunos em alfabetização, e previsão de 1,1 milhão

de alunos para 2006; somado ao atendimento do PAS, em alfabetização, com 629.843 alunos

em 2004; à Secretaria de Educação do Estado da Bahia, com rede regional de atendimento

com 250 mil alunos, dos quais 86 mil de ensino médio, em 417 municípios; à Secretaria

Municipal de Educação do Rio de Janeiro, com 32 mil alunos em 118 escolas; ao MST com

30 mil alfabetizandos; e ao SESC Ler, com atendimento da ordem de quase 6 mil alunos, em

cerca de 70 unidades, compõe-se um quadro bastante expressivo, ainda que

predominantemente realizado na esfera na alfabetização, demandando expansão e constituição

do direito para a continuidade da escolarização. Para todos esses os recursos públicos — a

potência do Estado como indutor de políticas — são expressivos, respondendo pela grande

parte das metas atingidas, pelo menos, no campo da alfabetização e da formação continuada

de professores das administrações públicas, assim como significam a perspectiva de

continuidade, na maioria dos casos em que o atendimento se restringe à alfabetização, ou ao

primeiro segmento do ensino fundamental. A articulação entre esses programas/projetos ainda

não pode ser considerada uma realidade como política, mas se faz pela busca de cada aluno

que deseja dar continuidade aos estudos. Essa demanda “não-intencionalmente organizada”,

pressiona os sistemas para a oferta do atendimento, e gradativamente, impõe a eles a

compreensão de que o fazem como dever público a sujeitos de direito, o que altera os

planejamentos, as prioridades, as políticas locais. O relato nos programas tem, por exemplo,

no MST, uma outra lógica, porque seu compromisso com a educação se integra ao novo

projeto de sociedade, pelo qual os trabalhadores sem-terra organizados vêm lutando. Não é a

demanda, portanto, que pressiona o atendimento, mas a certeza de que qualquer projeto de

transformação social exige foco na educação, sem limites na sua compreensão: da

alfabetização à universidade; do cumprimento do direito ao ensino fundamental, da conquista

à escola média à formação continuada; da educação técnica à profissional; do aprender por

toda a vida.

1122..55 PPRREESSEENNÇÇAA FFRREEIIRREEAANNAA

A presença de Paulo Freire é forte referência na EJA, o que implica dizer que há

influências do seu pensamento no modo de propor a educação para o público jovem e adulto,

embora muitas vezes as formulações e as práticas ainda não revelem os efeitos dessa

referência.

Page 456: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

454

Uma quarta compreensão, portanto, se expressa na existência de uma concordância ou

convergência nos projetos/propostas, quanto ao significado de Paulo Freire para a EJA,

muitos inclusive apontando seus aportes teóricos como fundamentos, embora, na prática, se

perceba pouca relação entre as concepções que sustentam o pensamento do educador e as que

revelam os projetos, ou que os organizam. A cultura, como esteio da educação, por exemplo,

se visibiliza, praticamente, na concepção do MST, o que não significa necessariamente

ausência, face a características que se observam em muitas práticas, presentes no fazer

cotidiano dos projetos, mas não enunciadas nos currículos. Nas formulações dos projetos na

Bahia, as marcas das concepções freireanas são evidentes, especialmente na definição de

currículos pensados em função das características dos sujeitos, expressos em diversos

programas em resposta às necessidades dos demandantes, tanto nas ofertas culturais que a

prática vem sugerindo, assim como nas formas de atendimento, organizadas não apenas em

unidades escolares, mas especificamente em centros de educação de jovens e adultos e, para o

caso de exames, em comissões de avaliação (vinculadas às unidades escolares), com ofertas

mensais permanentes.

Nessa compreensão, observam-se aspectos relacionados à duração dos

programas/projetos, aos tempos escolares, às formas de organizá-los, às propostas

curriculares, à avaliação etc., com poucas enunciações diferenciadas da escola regular. A

organização do projeto, por exemplo, em blocos, etapas e unidades de progressão surge no

PEJA, embora sua identificação esteja sempre associada, nas falas docentes, à estrutura

seriada para destacar a que correspondem. Embora com componentes curriculares bem

demarcados, nas práticas relatadas principalmente pelos docentes do segundo segmento do

ensino fundamental, ainda se observa ser este um ponto de muita dificuldade: professores de

disciplinas específicas custam a conceber novas práticas curriculares em função de um outro

projeto pedagógico, nem sempre exercitando as possibilidades que a concepção do PEJA

admite.

No caso da EJA na Bahia, a forma de organização do Programa de ensino

fundamental para jovens e adultos apresenta ruptura com modelos tradicionais, para

apresentar unidades conceituais, organizadoras do processo de aprendizagem, cujo conjunto

de conhecimentos pode atender a diversas interpretações e, conseqüentemente, a campos

conceituais diferenciados, em função do avanço da ciência, da técnica, da tecnologia, não

ficando presos a conteúdos muitas vezes ultrapassados. Não segue nem série, nem fase, nem

ciclo, mas tem a unidade conceitual como organizadora do momento de aprendizagem.

Page 457: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

455

A presença freireana leva a outras apreensões dela decorrentes. Portanto, uma quinta

compreensão se apresenta: a exigência de processos continuados de formação e de apreensão

dos possíveis sentidos da EJA, como forma de ampliar as concepções correntes entre

professores, especialmente nas práticas pedagógicas.

De modo significativo, a escolarização de jovens e adultos, apesar dos avanços na

conformação da área, ainda reproduz e se define como uma escola de parâmetros fortemente

restritos ao modelo convencional, regular, ela mesma anacrônica para crianças, e,

conseqüentemente, alheia ao tempo-espaço histórico e social da vida de jovens e adultos.

Sofre ruptura também quando se verifica, nas enunciações de vários projetos, a dimensão do

aprender por toda a vida: Sempre é tempo de aprender - MST; SESC Ler; SESI Educação do

Trabalhador.

Mesmo estas propostas não têm construções concretas que possibilitem a realização

dessa dimensão, a não ser no caso do MST, em que se imbricam formação de educadores e

escolarização e, ainda, a formação inclui o tempo escola e o tempo comunidade,

demonstrando que as aprendizagens fazem-se para além dos muros da escola — ou das

“quatro paredes da sala de aula”, situação mais provável, como se refere a coordenadora

Joelma —, embora essa formação gire, também, em torno da escolarização. A formação

política dos educadores militantes, como se referiram vários educadores, ultrapassa a

dimensão escolar, mas mesmo essa não fica exatamente visível na enunciação do que o

Movimento compreende como educação de jovens e adultos. Nesse caso, a dimensão do

aprender por toda a vida acontece para militantes, lideranças, educadores, mas habita o

terreno da informalidade, não estando incluído na intencionalidade da EJA. A pedagogia da

EJA no MST, segundo a concepção registrada, está sendo produzida e maturada, embora faça

parte, desde então, da Pedagogia do Movimento, que, esta sim, tem clara dimensão educativa

em todas as ações da luta. A chegada a esse outro patamar de compreensão inegavelmente

acontecerá, pelos modos e processos pelos quais o Movimento vem, dinamicamente,

dialogando com a realidade e com os estudos.

Cabe apostar, entretanto, na continuidade do entranhamento das idéias de Freire nas

reflexões dos educadores, possibilitando maior aproximação e compreensão das práticas

pedagógicas. Alguns outros autores — por exemplo Emília Ferreiro e Magda Soares —

também são recorrentes, principalmente no que tange à alfabetização, embora nem sempre

visíveis suas teorizações nos modos de alfabetizar jovens e adultos.

Page 458: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

456

1122..66 SSUUCCEESSSSOO EE CCOONNTTIINNUUIIDDAADDEE NNAA EEJJAA

Uma sexta compreensão imbrica-se diretamente com a avaliação, em sentido amplo,

nos modos como ela organiza a oferta pedagógica e por ela possibilita o percurso de sujeitos

em programas/projetos, concorrendo para a construção do sentido do direito.

Observa-se, por exemplo, convergência de enunciações quanto à entrada e saída de

alunos a qualquer tempo, segundo seu desempenho e desenvolvimento, o que a prática, no

entanto, nem sempre tende a confirmar. Nas redes escolares, principalmente, as lógicas da

organização racional dos servidores docentes, distribuição de cargas horárias pelas unidades

escolares, fatores como licenças, afastamentos, aposentadorias interferem sobremaneira para

que os projetos possam atender a essa premissa da educação de jovens e adultos. Além do que

as organizações formais são pouco propensas a mudanças que ameacem os controles

instituídos e os modelos em curso, exigindo modificações nos procedimentos de

acompanhamento e controle, o que do ponto de vista organizacional costuma ser mal

recebido.

Os tempos de aprendizagem e os tempos de duração dos projetos conflituam

permanentemente. Horários inadequados de entrada e saída obedecem a interesses das

instituições, negociando pouco os interesses dos alunos. Chocam-se com horários de trabalho,

tempos de deslocamentos até à escola, quando não punem os atrasos com novas interdições. A

duração do projeto muitas vezes coloca-se como tempo de permanência do aluno, e não como

referência de organização pedagógica. A premissa de que a matrícula pode-se dar a qualquer

tempo, e de que a saída pode ser decorrente do sucesso alcançado, segundo ritmos de

aprendizagem variados tão logo tenha o domínio (no sentido de Ardoino) do conhecimento

não tem sido exercitada, de fato, nos projetos instituídos. A cultura de uma nova relação entre

os sujeitos e o processo de aprendizagem, indispensável à EJA, demanda abrir mão da cultura

do controle, que funde burocracia e autoritarismo. A saída, derivada de outros fatores que não

o sucesso, não deve ser interpretada sempre como evasão, se o aluno não volta à escola. A

EJA aponta para interrupções freqüentes, face a fortes motivos da vida adulta (impostos

também aos jovens): um emprego; mudança de local de trabalho, mudança de local de

moradia, doenças (pessoais e com familiares), estrutura familiar que se altera, exigindo maior

participação de quem estudava etc.

Page 459: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

457

1122..77 CCOONNCCEEPPÇÇÕÕEESS DDEE FFOORRMMAAÇÇÃÃOO CCOONNTTIINNUUAADDAA DDEE PPRROOFFEESSSSOORREESS

Uma sétima compreensão diz respeito à pregnância de concepções de formação

continuada às práticas pedagógicas e às “artes de fazer” (CERTEAU, 1994) o currículo.

Tendo como princípio o entendimento de que os saberes, produzidos ao longo da vida pelos

sujeitos praticantes, são a base sobre a qual assentam seu estar no mundo, sua compreensão e

as explicações sobre ele, a EJA faz-se viva para sujeitos professores, eles também jovens e

adultos em processos de metacognição sobre o aprender de seus alunos, produzindo

conhecimentos, nem sempre suficientes para possibilitar a continuidade dos processos de

aprendizagem e adequados para criar ambientes satisfatórios ao aprendizado do que deve

compor o currículo na educação de jovens e adultos.

Os modos de fazer a formação, junto a professores que já vivenciaram, em outros

projetos, também outras concepções; de valorizar as ações e fazer emergir as práticas

cotidianas de sala de aula e confrontá-las; assim como confrontar as concepções docentes,

constituem fundamentos da metodologia de trabalho expressa em alguns programas/projetos,

que tem no princípio de aprender por toda a vida o entendimento de que professores são

também jovens e adultos formando-se e constituindo-se como pessoas e profissionais nesses

processos de interação e diálogo estabelecidos com seus pares, mediados pelos formadores em

relação aos conhecimentos. A circulação de alfabetizadores e professores por diversos

projetos contribui para a constituição da rede, conectando suas percepções, saberes, práticas

pedagógicas e subjetividades, e impregnando as práticas — mais que as concepções — de

outros projetos.

O desafio de construir processos de formação continuada para professores tem

significado a possibilidade de concretizar idéias forjadas durante anos de trajetória na EJA e

de estimular a luta por espaços legais, institucionais, em que os projetos políticos de

atendimento pela escola e da EJA se façam como direito, fortalecendo os professores para

intervir na realidade social, educacional e pedagógica, de forma qualificada, consciente e

significativa.

Essa concepção de formação, evidentemente, tem relação direta com o perfil dos

professores — sob todas as possíveis denominações —, nem sempre um profissional

qualificado para a atividade que exerce. Em um extremo, cito o caso do PAS, em que o

voluntariado é predominante, além da rotatividade do alfabetizador a cada projeto, como

Page 460: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

458

alternativa inaugural de oferta de trabalho precarizado, diante da concepção compensatória do

programa. No outro extremo, o SESI, em que a profissionalização da EJA é visível, não

apenas pelo contrato formal nos projetos institucionais, com remunerações normalmente

acima da média, como pela existência de outras funções pedagógicas na rede de atendimento,

que promovem o acompanhamento, a formação continuada. A assunção da formação de

qualidade levou a entidade à formulação, em parceria com a UnB, de um curso de

especialização a distância em EJA, privilegiando o público interno, mas também com vagas

para candidatos externos, cuja duração demonstra o compromisso com a profissionalização

das equipes que atuam na área. No caso do MST, em que muitas vezes o educador não tem

nem escolaridade, nem formação para a função docente, o caráter da militância aparece como

forte atributo que o desafia a realizar a formação, superando as barreiras existentes, pela

premissa de que todos são educadores do povo e de que todos são capazes de aprender. A

profusão de documentos de formação, de eventos formativos e de registros das práticas

evidencia um modus operandi tão relevante quanto o do SESI, embora partindo de um sujeito

inicialmente com formação diversa. A existência dos cursos de Pedagogia da Terra, em

muitos estados, em parceria com universidades, é emblemática quanto ao poder desafiador

que o Movimento produz pela educação. No estado da Bahia, a formação continuada não

consegue atingir toda a rede, o que vem sendo tentado, nos últimos tempos, pelas

teleconferências, na tentativa de fazer-se chegar a um público docente maior. Sobretudo, as

formações não são espaços apenas de aperfeiçoamento profissional — o caso do PEJA, com

sucessivos projetos de extensão universitária para a formação continuada de professores —,

mas de deliberação e formulação de programas, projetos, políticas, em situações coletivas —

o caso da Bahia, do MST —, demonstrando, também, o crescente envolvimento das

universidades com a EJA, principalmente pela assunção de um preciso papel junto à formação

inicial e continuada.

O que se destaca, nas concepções de formação, é a compreensão de que, para a EJA,

não cabe restringi-la à técnica, mas principalmente resgatar o compromisso político exaltado

por Freire, pela exigência da militância docente na construção política do direito à educação,

para além da prática pedagógica.

1122..88 SSUUJJEEIITTOOSS AALLUUNNOOSS —— FFOOCCOO EE IIDDEENNTTIIDDAADDEESS

Outra compreensão, a oitava, diz respeito a como os programas/projetos são

formulados, muitas vezes não centrando o foco nos sujeitos concretos para os quais se pensa a

Page 461: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

459

proposta educativa. Surgem alunos cujo perfil revela a presença de jovens que, não

concluindo a escola regular, são “empurrados” para o noturno, pelas armadilhas sutis que o

poder sabe bem dispor. Alunos que “fracassam” de muitas formas — considerado o fracasso

desde a indisciplina aos resultados processuais e finais causados pela desmotivação com as

propostas pedagógicas — são “convidados” à matrícula no noturno, pelos gestores das escolas

regulares, chegando crescentemente em número a esta modalidade de atendimento — EJA.

Mas os programas/projetos nem sempre são precisos no pensar o sujeito da educação,

suas peculiaridades e singularidades, antes de formular as propostas. Observe-se, por

exemplo: no caso do SESC, não há distinção da condição de sujeito trabalhador, mas a

entidade olha o entorno, a comunidade como público de atendimento; no SESI, a produção é

sempre orientada pelo sujeito trabalhador da indústria, o trabalhador assume o lugar do foco

enunciativo, mesmo quando se atende toda a comunidade; no PEJA, há prevalência histórica

da concepção do direito para alguns – jovens (embora de há algum tempo o direito de acesso

dos adultos esteja assegurado). No MST, especificamente, há vínculo estreito com o

trabalhador do campo, uma preocupação com a identidade sem-terra, tanto marcada pela

redignificação, quanto pelas singularidades que expressa, seu lugar no mundo, sua condição

de cidadão.

Observação significativa diz respeito a como esses sujeitos contribuem também na

construção dessa rede de projetos — tal como os alfabetizadores e professores —, porque em

muitos casos, não obtendo sucesso em programas de duração curta, circulam por vários

outros, em busca do aprendizado, conhecendo e diferenciando as “vantagens” que cada um

deles oferece.

Uma das identidades mais presentes em projetos de alfabetização tem estado posta

pelo lugar de analfabeto, criando um modo próprio de pensar a ação educativa a partir dessa

condição de marginalizado das práticas de leitura e de escrita. Embora essa condição ajude a

configurar o campo semântico dos sujeitos, não revela a imensa diversidade que permanece

encoberta, e que pelo fato de se manter razoavelmente homogênea, do ponto de vista das

categorias socialmente desfavorecidas, não se mostra suficiente para subsidiar propostas de

atendimento que exigem reconhecer a cultura como locus da prática pedagógica. No momento

atual, o poder público avança na construção da identidade desses sujeitos, quando desde 2003

criou o cadastro de alfabetizandos (e de alfabetizadores), passando a visibilizá-los a partir de

sua identidade civil, cor, sexo, local de moradia, história de escolarização. Deixaram, assim,

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460

de ser números contabilizados, para serem reconhecidos como pessoas — talvez um grande

passo para atribuir a eles, de fato, o direito subjetivo.

1122..99 CCOONNCCEEPPÇÇÕÕEESS DDEE AALLFFAABBEETTIIZZAAÇÇÃÃOO

A nona compreensão, quanto às concepções de alfabetização e sua continuidade, que

refletem a dimensão escolarizada da EJA, são as formas mais evidentes de atribuir sentido à

educação de jovens e adultos, ainda que os marcos internacionais apontem para a dimensão do

aprender por toda a vida como o verdadeiro sentido da área, reafirmado pelo Parecer CNE nº.

11/2000. As diversas concepções pelas quais a alfabetização vai passando, assim como a EJA,

são, de modo geral, sincrônicas, e não seqüentes, o que exige pensá-las num espaço-tempo

não-linear, mas multidimensional.

Parece haver clareza conceitual de que só a mera alfabetização não basta para conferir

status de leitor e escritor da realidade aos sujeitos jovens e adultos, mas que esta é

indispensável como integrante da EJA, da qual não deve estar desconectada, como etapa

isolada, não integrada, pela certeza das inconsistências na trajetória de tantos sujeitos, que

passaram por campanhas, programas e projetos de curto prazo. Pensar um projeto para jovens

e adultos nesta dimensão exige planejar um caminho mais amplo que chegue, pelo menos, ao

ensino fundamental completo — o nível reconhecido como de direito universal pela

Constituição de 1988. Esta observação, constatada na Avaliação Diagnóstica dos Programas

Brasil Alfabetizado e Fazendo Escola, traz a indispensável determinação de que o ato de

alfabetizar não pode ser reduzido a um tênue curso de alguns meses, pelas múltiplas

apreensões que exige dos sujeitos, que se fazem no tempo, e não apenas no espaço entre um

ou outro mandato político.

Apesar de haver concordância com essa concepção, em praticamente todos os

projetos, a realidade dos financiamentos apequena-os, e resumem-se ao tempo dos recursos,

tirando do centro os sujeitos e suas necessidades básicas de aprendizagem, mesmo quando as

concepções originais prevêem tempos mais largos. A inexistência de projetos de leitura, de

bibliotecas, de vivências culturais ajudam a reforçar essa dimensão escolar estreita, que ainda

perdura na maior parte das propostas. O PAS, por um tempo, fez um movimento de doação de

acervos de literatura infantil, mas na atualidade não há registro de continuidade dessa ação. O

SESC Ler, de ocorrência nos espaços arquitetônicos onde muitas vezes se situa, dispõe de sala

de leitura e biblioteca, mas não se apreendeu qualquer informação sobre de que modo operam,

imbricadas com a alfabetização.

Page 463: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

461

O momento atual avança no sentido de melhor reconhecer o que configura o campo

das iniciativas de alfabetização no país, quando o MEC propõe e desenvolve um mapeamento

das iniciativas de alfabetização.

Finalizando, posso dizer que a pesquisa leva-me mais a desenhar as tendências que a

educação de jovens e adultos assume, como um campo político em disputa pelo direito,

tensionando a esfera pública estatal a garantir e manter modos de oferta, do que pela disputa

de incorporações nos instrumentos legais que podem consolidar a EJA nos orçamentos,

assegurando organicamente políticas de atendimento: planos estaduais e municipais de

educação, em sua maioria, estão por construir, configurando um espaço novo de

possibilidades para a inclusão da EJA no campo dos direitos. A efemeridade dos programas,

mesmo quando concertados pelo governo federal, como no momento atual, com intenções e

concepções evidenciando o compromisso com o direito, esbarram nas disputas internas e não

contam com o povo na rua, nem com a pressão de jovens e adultos, exigindo esse direito.

Mas há um novo desenho se fazendo na paisagem do país, produzido quase

silenciosamente pelo trabalho dos fóruns, com efetiva interferência nas concepções e práticas

de EJA, porque realizado como formação continuada, exercitando o método democrático e

pautado na cidadania. Esse desenho, tramado nos espaços cotidianos, com táticas de ocasião,

tem alterado as agendas e enredado nos fios, novos interlocutores para a mesma causa. O

cenário — a teia — é favorável e as disposições, recíprocas, possibilitam manter desenhos

tramados na espera, nas escolhas, nas lutas, e na certeza de que as lições de hoje devem ser

relembradas sempre, porque a educação de adultos, como um direito não-dado, mas arrancado

do chão, não pode mais escapar das mãos dos que por ele têm despendido a vida.

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ANEXO 1

ROTEIRO DE QUESTÕES PARA ENTREVISTADOS SOBRE O PROGRAMA SESC Ler

1. Que concepção tem a EJA, no seu entender, no âmbito do Programa SESC Ler — o que é EJA, que sentidos tem assumido, por que oferecer EJA? A quem oferecer?

2. Há alguma relação estabelecida entre EJA, no Programa e educação popular? Qual?

3. O que o Programa considera como direito à EJA?

4. Existe proposta pedagógica no Programa? Que diretrizes, princípios, fundamentos a sustentam?

5. Com que metodologia trabalha o Programa? Quais são suas bases teóricas: autores, processos, avaliação, desenvolvimento de propostas educativas.

6. Que vínculo esse Programa tem com a alfabetização? Explicite, por favor. O que é alfabetização no âmbito do Programa? Que metodologias, materiais, ação alfabetizadora prevê?

7. Qual o currículo do Programa? O que é currículo, que propostas curriculares apresenta, quem organiza, quem participa?

8. Organização pedagógica da proposta: como se dá a entrada e saída de alunos no processo; duração de cada projeto; calendário letivo.

9. Considera que ocorreram mudanças ao longo dos anos nas concepções e gestão do Programa? Quais?

10. Como tem se desenvolvido o Programa? Em que municípios o SESC Ler atua? Há vinculação entre as classes do Programa nos municípios e a rede pública? Qual? Há encaminhamento dos alunos concluintes visando à continuidade? Para onde? Que resultados considera que o Programa obtém?

11. Alfabetizador/professor: qual a formação inicial exigida, quantas horas de formação, como tem sido feita; tem sido possível assegurar a formação continuada (encontros pedagógicos, freqüência)? Quem a realiza? Como é financiada? Percebe diferenças entre os alfabetizadores/professores ao longo dos anos?

12. Como definiria o perfil dos alunos na atualidade? Há diferenças entre o público que participava há alguns anos e o atual? O que considera que mudou?

13. Local de classes, condições de oferta: bibliotecas, merenda, supervisão, equipamentos audiovisuais, informática etc. Como era... como é... o que mudou?

14. Quem é o gestor do Programa? Equipes locais de coordenação e gestão: formação específica, qualificação etc.

15. Relação de parceria do Programa com outras instituições, com o governo federal etc. para realizar sua ação na EJA: como se dá? Mudou? Em quê?

16. Que papel desempenha/ou no Programa? Há quanto tempo?

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479

ANEXO 2

ROTEIRO DE QUESTÕES PARA ENTREVISTADOS SOBRE A AÇÃO DE EDUCAÇÃO DE JOVENS

E ADULTOS / PRONERA/MST

1. Que concepção tem a EJA, no seu entender, no âmbito do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária — o que é EJA, que sentidos tem assumido, por que oferecer EJA? A quem oferecer?

2. Há alguma relação estabelecida entre EJA, no Programa, e educação popular? Qual? 3. O que o Programa considera como direito à EJA? 4. Existe proposta pedagógica no Programa? Que diretrizes, princípios, fundamentos a sustentam? 5. Com que metodologia trabalha o Programa? Quais são suas bases teóricas: autores, processos,

avaliação, desenvolvimento de propostas educativas. 6. O que é alfabetização no âmbito do Programa? Que metodologias, materiais, ação alfabetizadora

prevê? 7. Qual o currículo do Programa? O que é currículo, que propostas curriculares apresenta, quem

organiza, quem participa? 8. Organização pedagógica da proposta: como se dá a entrada e saída de alunos no processo;

duração de cada projeto; calendário letivo. 9. Considera que ocorreram mudanças ao longo dos anos nas concepções e gestão do Programa?

Quais? 10. Como tem se desenvolvido o Programa com o Movimento? Desde que ano o Movimento é

parceiro do PRONERA? Há vinculação entre as classes nos assentamentos e as redes públicas municipais? Qual? Há encaminhamento dos alunos concluintes visando à continuidade? Que resultados — alunos alfabetizados — considera que o Programa obtém? Há algum recurso do município para o Programa?

11. Como a política local atua em relação ao PRONERA? Faz intervenções (ou tenta fazer)? 12. Educadores: qual a formação inicial exigida, quantas horas de formação, como tem sido feita;

tem sido possível assegurar a formação continuada (encontros pedagógicos, freqüência)? Quem a realiza? Como é financiada? Há diferenças entre os educadores do início da parceria e os atuais?

13. Como definiria o perfil dos alunos na atualidade? Há diferenças entre o público inicial do PRONERA que participava e o atual? O que considera que mudou?

14. Local de classes, condições de oferta: bibliotecas, merenda, equipamentos audiovisuais, informática etc. Como era... o que mudou?

15. Equipes locais de coordenação e gestão: formação específica, qualificação etc. 16. Relação de parceria do Movimento com o PRONERA. Como se dá? Mudou? Em quê? Com as

universidades? Como se dão as relações entre as diversas partes? 17. Dificuldades do Movimento e facilidades para o desenvolvimento do Programa. Grau de

autonomia do MST para gerir o Programa. 18. Dificuldades e facilidades em relação ao parceiro federal/público e às universidades. 19. Que papel desempenha/ou no Programa?

Page 482: Educação de jovens e adultos: direito, concepções e sentidos

480

ANEXO 3

ROTEIRO DE QUESTÕES PARA ENTREVISTADOS SOBRE O PROGRAMA

ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA

1. Que concepção tem a EJA, no seu entender, no âmbito do Programa Alfabetização Solidária — o que é EJA, que sentidos tem assumido, por que oferecer EJA? A quem oferecer?

2. Há alguma relação estabelecida entre EJA, no Programa e educação popular? Qual?

3. O que o Programa considera como direito à EJA?

4. Existe proposta pedagógica no Programa? Que diretrizes, princípios, fundamentos a sustentam?

5. Com que metodologia trabalha o Programa? Quais são suas bases teóricas: autores, processos, avaliação, desenvolvimento de propostas educativas.

6. O que é alfabetização no âmbito do Programa? Que metodologias, materiais, ação alfabetizadora prevê?

7. Qual o currículo do Programa? O que é currículo, que propostas curriculares apresenta, quem organiza, quem participa?

8. Organização pedagógica da proposta: como se dá a entrada e saída de alunos no processo; duração de cada projeto; calendário letivo.

9. Considera que ocorreram mudanças ao longo dos anos nas concepções e gestão do Programa? Quais?

10. Como tem se desenvolvido o Programa com a UFF? Em que municípios a UFF ainda atua? Desde que ano a UFF é parceira do PAS? Há vinculação entre as classes de PAS no município e a rede pública? Qual? Há encaminhamento dos alunos concluintes visando à continuidade? Que resultados — alunos alfabetizados — considera que o Programa obtém? Há algum recurso do município para o Programa?

11. Como a política local atua em relação ao PAS? Indica alfabetizadores? Faz intervenções (ou tenta fazer)?

12. Alfabetizador: qual a formação inicial exigida, quantas horas de formação, como tem sido feita; tem sido possível assegurar a formação continuada (encontros pedagógicos, freqüência)? Quem a realiza? Como é financiada? Há diferenças entre os alfabetizadores do início da parceria, em 1998 e os atuais?

13. Como definiria o perfil dos alunos na atualidade? Há diferenças entre o público de 1998 que participa e o atual? O que considera que mudou?

14. Local de classes, condições de oferta: bibliotecas, merenda, equipamentos audiovisuais, informática etc. Como era... o que mudou?

15. Equipes locais de coordenação e gestão: formação específica, qualificação etc.

16. Relação de parceria da universidade com o PAS. Como se dá? Mudou? Em quê?

17. Que papel desempenha/ou no Programa?