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1 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 98, jan. 2002 EDITORIAL O ideal de uma educação para todos, após três séculos de ter sido formulado, está muito longe de ser realidade. Ainda formulado como promessa, como uma conseqüência natural do progresso, no fim dos oitocentos, leva cento e cinqüenta anos de frustração. Culpam-se sistemas, vasculham-se métodos, reviram-se teorias. Mas evita-se o confronto com o ponto que revela a hipocrisia: as crianças só podem saber aquilo que o discurso social lhes demanda. E quando a deman- da é de ignorância esse princípio se cumpre também. É o discurso social que precisa ser interrogado e não os métodos. Em todo caso nestes nave- gam – de modo mascarado – as nuanças da demanda social. Que no mundo global a educação tenha ficado reduzida à transmis- são da leito-escrita e a lógica, demonstra o pouco caso que se faz das questões relativas ao laço social. A contraposição de culturas de aldeias ou de subgrupos contra-culturais, impondo modos educacionais ultra religiosos ou formações ideológicas fanáticas (veja-se a experiência das madrassas dos talibãs, ou as escolas dos grupos radicais de direita de Moçambique, assim como as práticas educativas das seitas que hoje proliferam) constitui uma formação reativa ao reducionismo pragmático proposto por uma globalização ocidentalista. Interrogar hoje a educação requer – além do questionamento dos métodos e teorias – que nos situemos nesse difícil panorama.

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Page 1: EDITORIAL O - appoa.com.br · exemplo, no caso dos filhos do governo, a delinqüência. E, assim, o circuito se mantém, pois já vimos como, ante a falha, somos levados a produzir

1C. da APPOA, Porto Alegre, n. 98, jan. 2002

EDITORIAL

Oideal de uma educação para todos, após três séculos de ter sidoformulado, está muito longe de ser realidade. Ainda formulado comopromessa, como uma conseqüência natural do progresso, no fim

dos oitocentos, leva cento e cinqüenta anos de frustração.Culpam-se sistemas, vasculham-se métodos, reviram-se teorias. Mas

evita-se o confronto com o ponto que revela a hipocrisia: as crianças sópodem saber aquilo que o discurso social lhes demanda. E quando a deman-da é de ignorância esse princípio se cumpre também. É o discurso socialque precisa ser interrogado e não os métodos. Em todo caso nestes nave-gam – de modo mascarado – as nuanças da demanda social.

Que no mundo global a educação tenha ficado reduzida à transmis-são da leito-escrita e a lógica, demonstra o pouco caso que se faz dasquestões relativas ao laço social. A contraposição de culturas de aldeias oude subgrupos contra-culturais, impondo modos educacionais ultra religiososou formações ideológicas fanáticas (veja-se a experiência das madrassasdos talibãs, ou as escolas dos grupos radicais de direita de Moçambique,assim como as práticas educativas das seitas que hoje proliferam) constituiuma formação reativa ao reducionismo pragmático proposto por umaglobalização ocidentalista.

Interrogar hoje a educação requer – além do questionamento dosmétodos e teorias – que nos situemos nesse difícil panorama.

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quer trabalho dirigido ao campo das psicoses. Ocorre que, nesse campo,encontramo-nos diante de alguém cuja condição psíquica facilmente o colo-ca numa relação de submetimento à demanda que vem do Outro.

Esse foi um tema que percorreu a mesa seguinte, sobre a clínica emdiscussão na reforma psiquiátrica, onde Alfredo Jerusalinsky apontava parao fato de que a psicose, especialmente situada na ordem do real, encontra-se além das fronteiras do que podemos saber e controlar. A angústia quelidar com o real provoca produz defesas que levam a instituir verdades únicase absolutas como resposta ao seu enigma. Ou seja, à condição propícia aosubmetimento do lado do usuário vem somar-se a posição de certeza que seconstitui como defesa do lado de quem o atende. Os riscos que corremos,portanto, não são poucos. O assinalamento desses riscos perpassou todo oencontro.

Assim, a conferência de Benilton Bezerra Jr., da UERJ, abordou o queseria a ampliação da clínica a partir da territorialização do atendimento pres-tado, implicando, por parte dos serviços, uma posição ativa e de respon-sabilização com respeito ao território (físico, geográfico, mas também subje-tivo) em que se encontram inseridos. A noção de território, porém, comportao risco de transformar-se num braço sutil e poderoso de medicalização capi-lar da sociedade, voltado a um ideal de normalização. Valendo-se de Winnicott,Benilton chamava a atenção para a necessidade de que os serviçossubstitutivos pudessem operar como espaços suficientemente bons paraseus usuários, permitindo, através do estabelecimento de relações regula-res e estáveis, alternando presença e ausência, a constituição de um espa-ço transicional que possibilitasse a vivência de estados de integração e não-integração do eu e o exercício da agressividade, autonomia e criatividade.

E, na mesa sobre formação de recursos humanos e trabalho interdis-ciplinar, enquanto se escutava o depoimento da Direção de Ensino e Pesqui-sa do Hospital sobre os entraves e avanços na constituição de uma Residên-cia Integrada em Saúde Mental, convocando outros saberes e profissõespara compor, com o saber médico, o fazer da clínica, Marta Zappa, do Insti-tuto Philippe Pinel-RJ, afirmava a necessidade de levar em conta, na consti-

SÃO PEDRO CIDADÃO: NOVOS OLHARES E LUGARES

Em 1995, a APPOA, em parceria com a Secretaria Municipal da Saú-de de Porto Alegre, foi promotora de um evento marcante na cidade, o Con-vivendo com a loucura, que reuniu nos salões do Clube do Comércio, porvários sábados ao longo de meses, centenas de pessoas, entre estudantese profissionais, interessadas no tema da clínica das psicoses e engajadasna constituição de uma rede de serviços substitutiva ao modelo manicomial.

No ano 2001, a APPOA é convidada pela direção do Hospital Psiqui-átrico São Pedro a compor parceria, juntamente com o Centro de EstudosPsicanalíticos e o Fórum Gaúcho de Saúde Mental, para a realização de umencontro abordando saberes e práticas do campo da saúde mental consoan-tes com a proposta de desinstitucionalização e inserção social da populaçãoque fora tradicionalmente alvo de internamento nos asilos manicomiais. O evento,denominado São Pedro Cidadão – um novo olhar, ocorreu de 28 de novembro a1o de dezembro de 2001, nas dependências do próprio Hospital1.

As questões que nos ocuparam num e noutro evento guardam, certa-mente, grande proximidade, mas o encontro no Hospital São Pedro pôdeassinalar os avanços e os impasses transcorridos ao longo desses anos, nolento processo de consolidação de diretrizes políticas, administrativas e clí-nicas de atenção à saúde mental na perspectiva que a reforma psiquiátrica ea luta antimanicomial vêm apontar.

O encontro teve início abordando as diferentes concepções da loucuraao longo da história, ao que se seguiu o tema dos direitos humanos e aspec-tos legais. Se essa discussão pretendeu enfocar a complexidade das ques-tões suscitadas pelo ato jurídico da interdição, através do depoimento deuma usuária, acabou centrando-se sobre a polêmica da regulamentação ounão do uso de eletroconvulsoterapia – polêmica que convém tomar comoemblema do tipo de questões, de ordem ética, que perpassam todo e qual-

1 Tiveram participação no evento os seguintes colegas, membros da APPOA: AlfredoJerusalinsky, Rosane Ramalho, Maria Ângela Bulhões (pelo HPSP), Nilson Sibemberg (peloCAIS Mental 08) e Analice Palombini (pela UFRGS e Escola de Saúde Pública).

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2ª REUNIÃO PREPARATÓRIA DO COLÓQUIO

“A CONSTRUÇÃO PSÍQUICA DOESPAÇO URBANO NA PASSAGEM ADOLESCENTE”

“Até por volta de 16 anos, sempre que alguém me perguntava sobrequem eram meus pais, invariavelmente eu respondia: o Governo. É óbvio queeu não tinha clareza suficiente para entender quem era esse meu pai nem oque ele fazia, mas isso ficou mais fácil quando tive de entender quem eraentão minha mãe: a Febem.” (Silva, 1997, p.11) Este é o início da contunden-te narrativa de Roberto da Silva, que orientou nosso debate na reunião ocor-rida no dia 24 de novembro.

A leitura de Os filhos do governo introduziu um elemento a mais nadiscussão em torno da parentalidade e os lugares rua/casa: a instituição.

No que se refere a este livro, cabe um comentário prévio. Ele é resul-tante de uma Dissertação de Mestrado em Educação na USP. Dentreincontáveis livros, dissertações e teses que se dedicam ao mesmo assunto,este tem uma particularidade que chama a atenção de qualquer leitor e dospsicanalistas em especial: o interesse pelo tema surgiu a partir da própriaexperiência do autor enquanto interno da Febem dos cinco anos até a maio-ridade.

O autor tematiza a criação da identidade criminosa em crianças órfãse abandonadas, que viveram sob a tutela de Estado no período por ele deno-minado de institucionalização. Sistematiza o desenvolvimento do pensamentoassistencial em fases ao longo da história e mostra-nos que a cada fasesempre correspondeu uma postura político-científica e filosófica, a qual, porsua vez, traduziu-se na edição de leis que estabeleceram alguns parâmetrospara o tratamento e assistência à infância. Agrega, ainda, a relação especí-fica do interno com a instituição, correspondente a cada período, conforme oquadro abaixo:

tuição de uma prática interdisciplinar, também os saberes e fazeres própriosaos usuários dos serviços.

Essa foi, sem dúvida, a marca maior do encontro, onde, mais do queum discurso sobre a diferença, tratou-se de torná-la presente. A realizaçãodo evento no interior do Hospital, se pode ser tomada como razão para apouca afluência de público externo, foi determinante para a participação deseus profissionais, e, principalmente, de seus moradores. A apresentaçãode serviços e modalidades de trabalho integrados à proposta de redesubstitutiva necessária ao processo de desinstitucionalização preconizadopelo projeto São Pedro Cidadão não passou imune à palavra dos usuários eseus familiares, que retornavam aos profissionais o seu olhar com respeitoa essas experiências.

Mas, foi na mesa de encerramento que essa participação se intensifi-cou, quando foi apresentado o Projeto Morada São Pedro, envolvendo, alémdo Hospital São Pedro, as Secretarias de Habitação, de Educação e deTrabalho, Cidadania e Ação Social, numa conjunção de esforços que temcomo objetivo a reinserção social dos internos do Hospital, através da garan-tia de moradia, acesso ao estudo e geração de renda para aqueles que seencontram aptos e desejosos de deixar o asilo, mas que não têm para onde ir.

Foram vários os depoimentos, então, dando testemunho de percursosque, desgovernados, tomados de assalto pelo real da psicose, em algumponto da rede encontraram ancoragem, teceram novos laços, refazendo,assim, sobre o tramado do tecido social, o fio de sua própria história. Porta-vam uma palavra própria, através da qual eram manifestadas as expectativase o afã por um novo espaço de vida. Mas, havia também aqueles que, aderi-dos subjetivamente ao espaço do Hospital, limitados em suas capacidadesfísicas, psíquicas ou cognitivas, faziam-se presentes ao evento de modopeculiar, fazendo eco – com o corpo, a voz, o olhar – aos discursos que ali seapresentavam. A escuta sensível e atenta dessa pluralidade de gestos e devozes impôs-se como exercício necessário e desejável à produção de novosolhares e lugares para aqueles que buscam fazer, do Hospital São Pedro,uma passagem para a pólis.

Analice Palombini

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versus a responsabilidade social, inaugurado por Hanna Arendt, é um temaque sempre se atualiza a cada vez que nos deparamos com as “falhas” denossa organização social. É, justamente, nas brechas da História coletiva,que cada um de nós se sente chamado a falar, a dar seu testemunho, aincluir-se desde a sua história individual. Ante a História que nos antecede,ultrapassa e segue seu destino, o que fazer?

Falar... Permitam-nos aqui um parênteses. É no mínimo curioso ob-servar como, na cultura contemporânea, o pensar e o falar perderam seuvalor na oposição ao fazer. Lembremo-nos, por exemplo, de O banquete, dePlatão, em que presenciamos as longas meditações de Sócrates inerte àsoleira de uma casa, frente à porta, com um dos pés fora do solo, como numpasso interrompido. Neste sentido, poderíamos pensar que o impulso ao atoe ao fazer é característico da modernidade? Fecha parênteses.

Voltando à reunião, pusemo-nos a falar sobre as instituições totais,entendendo-as como um fato discursivo, como um discurso que se caracte-rizaria por um saber total, um saber sobre o objeto que se pretende totalizante.Do lado do objeto, isso não lhe deixa outra saída senão a constituição deuma subjetividade justamente na produção de falhas desse saber, como, porexemplo, no caso dos filhos do governo, a delinqüência. E, assim, o circuitose mantém, pois já vimos como, ante a falha, somos levados a produzir umsaber total que a obture.

A partir da discussão, ficou claro como esses lugares, o do saber e odo objeto, são lugares de uma estrutura discursiva, razão pela qual são par-ticularmente cambiáveis e dependentes de a quem se endereça aquele quefala. Por isso, se em um determinado contexto o perito institucional podesustentar o saber perante um interno; em outro, ele pode se ver nesta condi-ção objetal perante os dispositivos técnico-burocráticos e políticos da insti-tuição.

Guardadas as devidas proporções, o que isso teria a ver com o infantilque anima a cada um de nós? Não seria essa a mesma estrutura discursivaencenada no fantasma neurótico, no qual é justamente naquilo que ao objetofalta para fazer gozar o Outro que se constitui um sujeito? Qual a diferença

FASES INTERNO INSTITUIÇÃO Filantrópica (1500-1874) Bastardo Benemérita Filantrópica-Higienista (1872-1922) Exposto Entidade Sanitarista Assistencial (1924-1964) Assistido Promotoria Social Institucional (1964-1990) “Menor” “Institucionalização” Desinstitucionalização-ECA (1990-?) Detentor de Direitos Asseguradora de Direitos

O trabalho e as conclusões de Roberto da Silva vão centrar-se sobreos efeitos da institucionalização: a perda da singularidade de cada um dosque estiveram sob os efeitos das instituições totais, incluindo-se aí diversasgerações de internos, técnicos, funcionários e o próprio autor. Isto explicariao alto índice de reingresso, agora em instituições prisionais, de ex-internosdas Febens à diferença da inexistência de incidência criminal dos de perío-dos anteriores. O processo de criminalização da criança órfã e abandonadafoi um fenômeno histórico, temporal e espacialmente localizado na fase de-nominada “institucionalização”, que foi a característica predominante e parti-cular do sistema Funabem/Febem, idealizado sob o espírito da doutrina dasegurança nacional, a partir de 1964. Não obstante, a derrocada da ideologiapolítico-militar, que sustentava e se beneficiava do mecanismo das institui-ções totalizantes, o autor alerta que a “cultura institucionalizada” ainda so-brevive e sua extinção definitiva constitui o principal desafio do Estatuto daCriança e do Adolescente.

Isto posto, é desnecessário dizer que o tema das instituições totaisfoi o que animou o nosso acalorado debate nesta segunda reunião. Emboranem todos os que lá estiveram possuam experiência institucional, todossofremos os efeitos desta “cultura” e nos vemos convocados a incluir-nos aípara que algo dessa “máquina discursiva” se rompa. E, neste sentido, esteparece ser o grande diferencial deste livro de Roberto da Silva: mesmo cientedos limites do alcance de seu trabalho nos rumos da política, legislação eassistência dispensadas às crianças órfãs e abandonadas, isto não o eximeda responsabilidade de, como sujeito da própria história, pôr em discussão ahistória assistencial brasileira para aí reconstruir a sua história e a de tantosoutros Robertos da Silva. Aliás, esse tema da responsabilidade individual

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qual processo será privilegiado em contextos institucionais totais, na medi-da em que este implica a exclusão de toda possibilidade de recalcamento?Pensamos que, nessas circunstâncias, o processo de forclusão seria privile-giado. Trata-se do processo pelo qual os referenciais de uma enunciação emnome próprio ficam ‘fechados fora’ das formações discursivas subsequentes.Como diz Freud, no caso do Homem dos lobos, a forclusão é um processodiferente do recalcamento.

Em que medida a operação de forclusão se dá, diferentemente dorecalcamento, desde uma posição de anonimato? E a partir de um privilégiodessa posição, como se constróem as certezas do juízo de existência e asdas noções como a do ‘dentro’ e a do ‘fora’, com as quais o sujeito contapara a sua orientação no espaço?

Roberto da Silva nos lembra da chamada ‘Roda do expostos’, atravésdas quais as crianças não desejadas eram acolhidas pela Santas Casas deMisericórdia. Com um giro desta roda, as crianças passavam do lado de forapara o de dentro da Santa Casa. Estas eram chamadas de expostas, graçasà invenção dessa roda que permitia, a elas, ficarem ou não fechadas do ladode fora. O objetivo dessa invenção era evitar que essas crianças apareces-sem em depósitos de lixo ou em qualquer canto, pela rua. A ‘Roda dosexpostos’ nos faz pensar, portanto, na diferença entre o retorno do forcluído(fechado fora) e o retorno do recalcado, bem como na diferença entre asnoções do ‘dentro’ e do ‘fora’ constituídas a partir de processos psíquicosdistintos, um que se realiza numa condição de anonimato e outro somenterealizável em nome próprio.

A reunião de janeiro será no dia 17, quinta-feira, às 20h30min, na sededa APPOA. Lembramos que as reuniões são abertas a todos os interessa-dos pelo tema.

Coordenação do Colóquio

entre A Mãe e a instituição? Pois sabemos que A Mãe, na psicanálise, éuma das representações do gozo do Outro, realização da relação incestuo-sa mãe/filho.

Mas, é claro que, no que se refere às possibilidades de subjetivação,faz muita diferença se essa estrutura é suportada pelos pais ou pela institui-ção. É no particular de cada relação que vão se dar as condições de emer-gência do desejo. É sabido que o Complexo de édipo introduz o pai e o falona relação dual mãe/criança, enquanto portador de um saber sobre a origeme a diferença sexual (por isso, um saber parcial) que remeteria do desejomaterno. Desta forma, o ser é arrancado da sua posição mítica de falo ma-terno, objeto de desejo de um Outro materno totalizante.

Mas, e quando, como dizia o menino Roberto da Silva, “o meu pai é oGoverno e a minha mãe é a Febem”? Qual é o desejo em jogo numa institui-ção? Quem sabe sobre ele?

Nas instituições, os saberes técnico-científicos ocupam a cena, se-jam eles psicológicos, pedagógicos, sociológicos, jurídicos, etc. Não seriamestes saberes parciais, já que especializados? Sim e não. Pois trazem emsi uma condição enunciativa anônima, sem sujeito – a mesma idealizadapela ciência positivista –, que tende a arrastar para o anonimato aquele quefala, desimplicando-o do desejo na relação com o Outro.

Com certeza não é por acaso que, sob o pano de fundo de nossodebate, a polaridade impotência/potência se tornou tão presente.

O afazer próprio às instituições parece favorecer uma condiçãoenunciativa anônima dos seus participantes, como se este afazer implicas-se a destituição de todo posicionamento subjetivo. De fato, em resposta àseventuais manifestações de ordem subjetiva que ocorrem nos contextosinstitucionais, um saber total tende a ser evocado. Tal evocação exclui todapossibilidade de enunciação em nome próprio.

Neste ponto de nossa discussão, abre-se uma questão acerca dosprocessos psíquicos pelos quais se mantêm o discurso e o afazerinstitucionais. O processo de recalcamento é uma operação efetivada emnome próprio, que requer um posicionamento subjetivo. Surge a pergunta:

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Cito uma passagem desse texto na tentativa de ser o mais fiel possível àinterrogação colocada:

“Mas o que dizer de formações subjetivas nas quais o “recalcado” – seé que ainda é “o recalcado” – pouco tem em comum com o “recalcado” das histe-rias, das fobias ou das obsessões? O que é “recalcado” nas síndromes de pânico,nas fobias sociais, nas depressões distímicas, nos distúrbios na imagem cor-poral (bulimias, anorexias, exercícios físicos compulsivos e iatrogênicos),nas diversas adições (drogas, sexo, consumo) ou nas diversas modalidadesde atos “anti-sociais” (bandos de adolescentes e adultos jovens, votados à depre-dação do ambiente físico urbano ou às agressões contra grupos semelhantes)?

Temos realizado um esforço considerável, na APPOA, para pensaressas novas formas clínicas, e não me parece que o resultado desse esforçovenha colocando em questão o edifício conceitual que constitui o cerne dateoria psicanalítica, mas com certeza vem produzindo teoria, como forma deresponder ao desconforto que o novo, o não saber, coloca ao conhecimentoestabelecido. Acho que é instigante o trabalho de leitura do texto citado,bem como de todo o livro – “Função fraterna”.

Ainda na mesma mesa, assisti um trabalho muito interessante da psi-canalista Rosana Gailhard (CEAPIA), que trouxe considerações precisas, apartir de um referencial freudo-lacaniano, sobre as formas de apresentação dolaço fraterno na abordagem clínica de famílias ditas tradicionais e das famíliasque, na nomenclatura antropológica, ganham o nome de “famílias ampliadas”.

Como questão final, coloco a pergunta provocadora, feita a Jurandir FreireCosta pelo atual presidente do CEAPIA, Abraham Turkenicz: A Psicanálise doséc. XXI passa por Rorthy, Hanna Arendt e Wittegnstein? A que Jurandir respon-deu: Eles não são a Psicanálise, eles estimulam a pensar, oferecem perspectiva.

A esse questão eu gostaria, então, de agregar outra: será que, paraavançar em sua construção teórica, para dialogar com outros campos desaber, a condição é que a Psicanálise deixe de ser o que é, ou seja, será queciclicamente os psicanalistas vão repetir as tentativas de abandono da Psi-canálise para torná-la mais palatável aos novos tempos?

Roséli Maria Olabarriaga Cabistani

NOTÍCIAS DA XXIII JORNADA DO CEAPIAENIGMAS CLÍNICOS E MATRIZES DA SUBJETIVIDADE

ADOLESCÊNCIA NA ERA DAS SENSAÇÕES

A APPOA tem mantido interlocuções com instituições do campo psi-canalítico e com esse propósito participei da jornada anual do CEAPIA .

A Jornada tinha como convidado especial Jurandir Freire Costa, quetrabalhou alguns dos temas dos quais vem se ocupando ultimamente. Vári-as outras instituições se fizeram presentes e algumas delas foram convida-das a debater os temas propostos. Foi uma interessante oportunidade as-sistir a exposição de diferentes pontos de vista e de como essas instituiçõesfazem leituras diversas das questões que a contemporaneidade coloca àPsicanálise, seja no âmbito da clínica, seja no âmbito social mais amplo.

Para tomar um exemplo bastante eloqüente dessas diferenças, cito aparticipação da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA), onde a falade dois de seus membros deixou evidente que, mesmo dentro da ortodoxia“ipeana”, podemos encontrar psicanalistas mais sensíveis a pensar o sofri-mento psíquico em nossos dias e as novas exigências colocadas aos ana-listas hoje, bem como podemos encontrar posições reveladoras de extremasurdez e impregnadas de conservadorismo, que impedem qualquer produ-ção teórica mais criativa no campo psicanalítico.

Os trabalhos apresentados por membros do CEAPIA, refenciavam-sepredominantemente na clínica e eram bastante reveladores da reflexão quetemos feito na APPOA, de que a construção do caso clínico é uma produçãodo analista, a partir das referências que guiam sua escuta, suas interven-ções, suas possibilidades e limites.

Gostaria de deter-me um pouco mais a comentar uma das mesas dajornada, que tratou do tema: A função fraterna – solidariedade e cultura.Nessa mesa, Jurandir F. Costa trabalhou mais detidamente o texto que es-creveu para o prefácio do livro “Função fraterna”, organizado por Maria RitaKehl. Justificou a preocupação desse escrito a partir das mudanças no perfilclínico dos sujeitos, colocando entre parêntesis o modelo teórico do recalque.

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dialética entre gerações quanto nos diferentes momentos da vida individual.Uma outra questão que diz respeito ao ato – logo, à inscrição de

descontinuidades – está colocada na produção sublimatória. Necessáriopensar, aqui, na proposta abordada por Rassial da relação entre idealização(referência a um traço da contagem) e sublimação (referência à produção deobjeto como necessária à realização pulsional).

Essas são apenas interrogações e reflexões para mais um debateque se inicia.

Os textos para apreciação devem ser enviados até 30 de março de 2002à Comissão da Revista da APPOA através do e-mail [email protected],conforme normas abaixo.

RESUMO DAS NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

Os textos deverão incluir os créditos do autor (em nota de rodapé),contendo títulos acadêmicos, publicações de livros, formação profissional,inserção institucional, endereço postal e e-mail; resumo (até 90 palavras);palavras-chaves (de 3 a 5), abstract e keywords.

Poderão conter, no máximo, 45.000 caracteres ou 15 páginas, emfonte tamanho 12 e espaço simples. A referência a autores no corpo do textodeve mencionar o sobrenome e o ano da obra referida. Citações textuaisdeverão ser seguidas de autor, ano e página. As referências bibliográficasdevem ser listadas no final do texto.

Comissão de Publicações

TOXICOMANIAS

O Grupo de Trabalho das Toxicomanias terá su próxima reunião no dia09 de janeiro de 2002, às 20h30min. Na ocasião, Walter Cruz apresentaráseu projeto de mestrado abordando a questão da toxicomania, fracassosterapêuticos e exclusão social. O Grupo de Toxocomanias é aberto.

TEMA DO PRÓXIMO Nº DA REVISTA DA APPOAO ESPAÇO DA FOBIA

O que a fobia teria a nos ensinar sobre a construção do espaço?Desde as propostas freudiana e lacaniana, sabemos que a constru-

ção do espaço é inseparável da constituição de lugares, ou seja, inseparáveldo estabelecimento de descontinuidades, de limites. Nesse sentido, a cons-trução dentro/fora pode constituir as amarrações e separações de corpo/objeto/outro desde que um referente se estabeleça. Em relação a este cami-nho, a fobia é exemplar. Nela, emergem questões que vão instituir esta liga-ção entre espaço e lugar:– na fobia de animais, como em Hans, retorna o momento fundante do esta-belecimento da referência ao totem; ligação originária entre a coisa e o nome,que permite a referência a um traço unário, na construção de um sistema deigualdade/diferença, responsável por uma contagem: é a constituição de umentre outros;– na fobia do espaço, o retorno da dissolução do lugar da contagem leva osujeito a um plus sintomático para tentar restabelecer os limites do própriocorpo, logo, do objeto e do outro;– no acompanhante contrafóbico, a necessidade da encarnação do espelhopara recuperar o traço de referência, que une/separa.

Isso que se presentifica como falta no plus da fobia, talvez apareçacomo excesso nos actings que fazem parte da construção de espaço/lugar,na “saída de casa” do adolescente. Assim, por exemplo, o traço do animaltotêmico retorna na tatuagem, o grupo funciona como acompanhantecontrafóbico e o espaço transborda para além do meio-fio das calçadas, domeio da rua, para além dos lugares fechados, por onde se espalham oslugares de reuniões. Nesse sentido, a adolescência parece retomar a ques-tão crucial do sujeito colocada em causa pela fobia: como incluir-se na rela-ção ao desejo do Outro sem aí se perder?

Talvez um ponto de investigação possa tomar o rumo de precisar osdiferentes tempos lógicos, nessa dialética da falta e do excesso – da nega-ção e afirmação – que aparecem necessariamente relacionados, tanto na

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A clínica psicanalítica, citando Lacan: “é o que se diz em uma análise”.Nos interessa a persistência e mudanças no sintoma. Algumas mu-

danças acontecem, outras parecem ter uma consistência que lhes dá umaparticularidade de parecer imutável. Queixas versus estilo?

Persistência, insistência, resistência. Perseverar para não recuar frenteao real e suas articulações imaginárias e simbólicas.

Será o desejo do psicanalista uma forma de per-severar?Nos interessa percorrer estas e outras indagações. Não tanto para

encontrar uma definição estrita do sintoma analítico, mas uma maneira dedizer como lidamos com seus efeitos.

Um deles: a própria disposição à prática da psicanálise. Outro, per-correr conceitos desenvolvidos a partir da tomada do sintoma como estrutu-ra, cotejados com algumas idéias desencadeadas no “Eu na teoria de Freude na técnica da psicanálise”.

O sintoma articulado como inibição da função simbólica, foi um dospontos de partida. Vamos tentar desenvolver esta interrogação sobre a di-mensão Simbólica e sua articulação com Real e Imaginário.Coordenação: Robson de Freitas PEREIRAInício: segundo semestre de 2002.

A TOPOLOGIA DO OBJETO NA PSICANÁLISE

No “Seminário O objeto da psicanálise”, de 1965-66, também conhe-cido como Seminário XIII, Lacan faz uma retomada de todas as questões datopologia que vinha apresentando desde os primórdios de seu ensino.

Vindo na esteira dos “Problemas cruciais da psicanálise”, este semi-nário dá seqüência a questões muito importantes para compreensão da Ló-gica do Sentido, que viria a seguir, e da teoria dos nós, que seria introduzidanos anos seguintes.

Tendo em vista a preparação e tradução do “Seminário O objeto daPsicanálise”, de J. LACAN, para o próximo Seminário de Verão da Associa-

ENSINO 2002

A partir desta edição, o Correio começa a publicar as propostas dosSeminários e Grupos encaminhadas à Comissão de Ensino.

SEMINÁRIOS

MOMENTOS CRUCIAIS DA CLÍNICA:os tempos lógicos de uma análise

A passagem das entrevistas preliminares à transferência propriamen-te analítica. A passagem da narrativa à interrogação do Inconsciente. Ostempos de rememoração, regressão, elaboração, interpretação e constru-ção: o balanço entre o simbólico e o imaginário. A angústia própria de apro-ximação ao fantasma. Não há resolução do sintoma sem interpretação dofantasma. A torção do Sujeito suposto saber atribuído ao analista para a livreerrância do Sujeito suposto saber: o fim de análise.Coordenador: Alfredo JERUSALINSKYFreqüência: quinzenalData: 1a e 3a quartas-feiras do mêsHorário: 20h30minInício: Março

SEMINÁRIO: A PERSISTÊNCIA DO SINTOMA“O analista é sintoma da psicanálise” (J. LACAN)

 O lugar de partida sempre está referido a prática psicanalítica. Comocada analista elabora um dizer de sua escuta e as transformações que vaisofrendo como efeito desta “prática de uma ética”.

Algumas questões a respeito de como se autoriza um analista, reco-nhecendo que toda análise inicia-se pela escuta de uma demanda, vestidacom o discurso do sofrimento.

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Com este objetivo, serão trabalhados textos psicanalíticos de diferen-tes autores, bem como contribuições das disciplinas dos participantes pre-sentes ou de convidados, centrados em torno de intervenções clínicas.

Dirigido a profissionais de diferentes áreas interessados no tema.Coordenador: Jaime BETTSFreqüência: mensalData: sábadoHorário: das 10h às 12hLocal: Novo HamburgoInformações: fone (51) 594.1561

A CLÍNICA DA NEUROSE: fantasia e sintoma

Neste seminário, serão trabalhados conceitos freudianos a partir daexperiência clínica contemporânea. É um seminário sobre a clínica psicana-lítica, visando especialmente ao tratamento das neuroses. Para tanto, serãoutilizados textos de Freud, contribuições de Lacan e de outros autores, as-sim como fragmentos clínicos clássicos. Os textos freudianos escolhidospara este trabalho permitirão abordar questões clínicas relevantes, tais como:fantasia inconsciente, sintoma, trauma e traumatismo, identidade e identifi-cações, questões da técnica analítica, transferência enquanto hipótese so-bre o saber no outro, interpretação e ato analítico. Isso visa exclusivamenteà elaboração de operadores da clínica da neurose. A formação psicanalíticase dá na composição singular entre a análise pessoal, a supervisão, o estu-do, e dar conta a seus pares de sua prática, na Instituição Psicanalítica.Este seminário está situado nesse contexto.Coordenador: Mário FLEIGFreqüência: quinzenalData: 1a e 3a quartas-feiras do mêsHorário: 19h30minLocal: Caxias do SulInformações: fone (51) 3222.3275 ou (51) 9968.7200

ção freudiana (AFI), que vimos desenvolvendo junto com o “Grupo de tradu-ções francês-português AFI – APPOA – CEF Recife – Tempo freudiano RJ”,proponho este assunto como tema do Seminário de Topologia para 2002.

Será retomada a topologia e a lógica das identificações, através desuperfícies como o toro e a banda de Mœbius. Avançaremos, com Lacan, noaprofundamento da análise do conceito de objeto a , decifrando o quadro LasMeninas, de Velasquez, e através do estudo das estruturas do plano-projetivo,do cross-cap e da garrafa de Klein.Coordenador: Ligia VICTORAFreqüência: quinzenalData: 1a e 3a sextas-feiras do mêsHorário: 18h

PSICOSSOMÁTICA: interdisciplina e transdisciplina

A psicossomática é, hoje, um tema abordado por múltiplas discipli-nas – inclusive a psicanálise – geralmente de forma isolada, com pouca ounenhuma interlocução e questionamento recíproco entre elas. A abordagemmultidisciplinar é, por isto, empobrecida e reducionista, pois cada disciplinacuida de seu objeto de estudo, sem levar em consideração as demais, vendoo sujeito que está sendo atendido de forma fragmentada.

Este seminário visa a constituição de um espaço comum, onde osparticipantes (de diferentes especialidades), partindo do desejo de inter-disciplinaridade, possam construir uma rede de significações que articule asrespectivas disciplinas e transcenda as fronteiras dos saberes de cada uma.Isso não implica uma descaracterização de cada disciplina, mas sim a cons-trução de um saber compartilhado a partir do trabalho das diversas especia-lidades, em função de intervenções clínicas específicas dos participantes.

A psicanálise, neste contexto, é o fio condutor da comunicação inter-disciplinar, através de uma concepção compartilhada (a ser construída nodescorrer do seminário) a respeito do sujeito do desejo e do posicionamentoético comum que decorre da mesma, o que permite a convergência dasdiferentes especialidades na transdisciplinariedade.

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– na mostração de objetos, assim como na sua construção e na relação com osoutros.

Em relação aos bebês e ao registro da vida cotidiana, acrescentare-mos: o registro da progressiva complexidade da sua atividade psicomotora(ampla e fina) no brincar com objetos. Atividades que, enquanto expressõesde comunicação e linguagem, constituem os dois âmbitos de leitura possí-veis:a- da ordem subjetiva: (lógica do processo primário)b- da ordem cognitiva: (lógica do processo secundário)

Sendo que, a partir da experiência da escuta de mulheres grávidas oude casais que esperam um filho, faremos a leitura clínica da especificidadeda lógica das funções parentais desde qual a futura mãe e/ou os futuros paisirão inscrever o bebê na sincronia. Exercício que nos permitirá montar subsí-dios teórico-clínicos para conseguirmos operar preventivamente na constru-ção do desenvolvimento na diacronia.

Também pensaremos a incidência que os sintomas clínicos formadosnestas épocas da vida poderão ter no psiquismo do adulto e suas conseqü-ências na operação clínica.Coordenação: Silvia MOLINAFreqüência: quinzenalData: segundas-feirasHorário: 20h

A ULTRAPASSAGEM DO PAI NA PASSAGEM ADOLESCENTE

A partir da obra freudiana, tanto a subjetividade quanto a cultura orga-nizam-se numa polaridade exceção-identidade. E os diferentes deslocamen-tos do lugar de exceção que se produzem na História dizem respeito a umtrabalho de representação desses dois lugares. Na civilização antiga, o lugarde exceção era ocupado pela transcendência, a qual se fazia representarpelos deuses. A originalidade de Freud foi ter percebido que esse lugar, apartir da universalização da religião monoteísta, passou a ser ocupado pelo

GRUPOS TEMÁTICOS

DIAGNÓSTICO DA ESTRUTURAÇÃOSUBJETIVA NOS PRIMÓRDIOS DA INFÂNCIA

Esta é uma proposta para realizar um trânsito pela leitura clínica daestruturação do desenvolvimento do recém-nascido, do lactente e do bebênos seus aspectos diacrônicos e sincrônicos, efetuando tanto o deciframentoda produção dos bebês “ditos normais” quanto a leitura dos valores sintomá-ticos das alterações na inscrição e na constituição desejante, assim como,das alterações orgânicas.

Na leitura, feita a partir da análise dos registros escritos e de filma-gens de produções dos recém nascidos, lactentes e bebês no laço parental,abordaremos:

A formação do fantasma a partir:– da sexuação– da identificação primária– da filiação

A formação do sinthome: (modos de produção de artifícios para supor-tar a conexão com a realidade (sintomas de estrutura).

As filmagens e os registros escritos enfocarão: a atividade espontânea dos recém-nascidos e dos lactentes nos rit-

mos da vida cotidiana instaurados através da especificidade da lógica dasfunções parentais:– na escolha do nome– na montagem do colo– na alimentação– na higiene e no banho– nos rituais indutores do sono– na administração dos momentos livres da vigília, por parte dos adultoscuidadores– na comunicação: o “manhês” e o brincar (neste momento sustentados pelaprodução simbólica materna)

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ridas questões, a partir de conceitos como pulsão e transferência, reenviar-nos-á, incessantemente, a problematizações oriundas do campo da clínicapsicanalítica, principalmente a clínica com crianças e adolescentes.

As elaborações em torno do conceito de pulsão, cunhado por Freud, eredimensionado por Lacan, propiciam a articulação de algumas questõesque remetem tanto ao campo da Psicanálise, quanto ao da Educação, em-bora encontre em cada um deles desdobramentos singulares.

Numa nota de rodapé, acrescida em 1924 ao texto “Três Ensaiossobre a Teoria da Sexualidade”, de 1905, Freud situa: “A teoria das pulsõesé a parte mais importante da teoria psicanalítica embora, ao mesmo tempo,a menos completa”. Que Freud tenha dito isto após a publicação de “Alémdo Princípio do Prazer” (1920), texto que redimensiona o seu longo trabalhocom a pulsão, faz abrir um campo de pesquisa para os que o sucederam,assim como demarca a complexidade desta noção.

Para falar de pulsão, Lacan, no “Seminário XI”, recorre ao conceito deOutro, pois é a partir dele que a pulsão se inscreve no corpo da criança. Senos reportarmos para estruturação psíquica do sujeito desejante, logo aten-taremos para a fundamental importância da inscrição do Outro nos movimen-tos de investimento e apropriação, por parte do sujeito, dos objetos e, porconseguinte, do conhecimento. Logo, a constituição do sujeito do conheci-mento passará, necessariamente, por um Outro, que inscreve a criança numcampo de linguagem e de possibilidades. As vicissitudes do aprender, por-tanto, vão estar atreladas, desde o início, às marcas inconscientes inscritasno sujeito.

Perguntar-se sobre os meandros da construção do objeto e o lugar doOutro neste circuito pode interessar aos que pensam o campo da Educação.Tais interrogações têm seus desdobramentos para pensar a construção doconhecimento e a relação ensino-aprendizagem, tendo como baliza aestruturação do sujeito e as repercussões que possa operar para o desenvol-vimento do conhecimento.Coordenadores: Marianne Montenegro STOLZMANN e Simone Moschen RICKESFreqüência: quinzenalInício: abril de 2002

Pai. E o que lhe permitiu esta “escuta” do sintoma social foi ter encontrado,na cultura, a mesma ficção do Pai contida nas novelas familiares de seusneuróticos. Por esta razão, a instauração do monoteísmo consistiu em umamudança tanto na subjetividade quanto na cultura: é a mesma forma derelação ao Pai (o sintoma) que faz laço social, que faz a passagem, nosentido de dissolução das fronteiras, do campo subjetivo ao cultural e vice-versa.

Tomando a adolescência como paradigma do sujeito moderno e aadolescência como uma operação de passagem, o que poderemos pensarsobre a forma de relação ao pai, o sintoma e o laço social contemporâneos?Coordenador: Valéria RILHOFreqüência: quinzenalData: 1a e 3a terça-feiraHorário: 10hInício: 19/03/02

PSICANÁLISE & EDUCAÇÃO:articulações entre pulsão e transferência

O trabalho propõe-se a traçar um percurso pelos conceitos de pulsãoe transferência com o objetivo de pensar suas contribuições ao debate, quejá firmou sua tradição, entre a Psicanálise e a Educação. Para tanto, debru-çar-se-á sobre textos de Freud e Lacan.

Constituem o núcleo do estudo os seguintes trabalhos de Freud: Trêsensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905); A pulsão e seus Destinos(1915); Além do princípio do prazer (1920); Leonardo Da Vinci e uma Lem-brança da sua Infância (1910). De Lacan, o texto norteador será “O Seminá-rio XI – Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise”.

Num primeiro plano, como horizonte deste percurso, situam-se inda-gações que concernem ao campo da Educação, como a pergunta sobre aoperatividade do conceito de pulsão para pensar a construção do conheci-mento, ou ainda a proposição da noção de transferência como fio articuladorda relação ensino–aprendizagem. Sabe-se, porém, que o trabalho com refe-

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da pelo adolescente como nova possibilidade de reinscrições do Nome-do-Pai. Sustenta esta proposta a intenção em trabalhar com a condição adoles-cente  como processo de crise identitária isto é, como condição de sujeitode passagem, paradigmática do sujeito moderno, cujos ideais estão expres-sos nesta condição adolescente. Examinar novas possibilidades identitáriasa partir do “transitar” pelas instituições, praças, esquinas e abrigos  nospossibilita não só encontrarmo-nos com os próprios ideais transmitidos àsnovas gerações, mas também com o que há de novo e surpreendende nestaconstrução do sujeito moderno e sua relação com o tempo e o espaço.Coordenação: Ângela Lângaro BeckerFrequência: quinzenalHorário: das 16h às 18h, sextas-feirasInício: 15 de março de 2002Local: sede da APPOA

VULNERABILIDADE SOCIAL:inclusão/exclusão, numa perspectiva psicanalítica

Freqüentemente, os profissionais que atuam em saúde mental têmsido convocados a dar sua “contribuição” na promoção do reconhecimento,organização e participação de minorias (no sentido representativo mas nãonecessariamente numérico), nos diversos dispositivos institucionais de nos-sa sociedade. Saúde mental e inclusão social nunca estiveram tão associa-das, a tal ponto que nos perguntamos como foi possível pensar uma sem a outra.

O trabalho com usuários e dependentes de substâncias psicoativastem mostrado o quanto um discurso “terapêutico” pode fracassar quandopropõe a inclusão em um sistema, cujo ato de nomeação vem, antes, reafir-mar o poder daquele que o confere. Neste sentido, o jogo do engano estádado e a inclusão pode assumir o aspecto perverso da anulação do diferente.Coordenador: Walter Firmo de Oliveira-CRUZFreqüência: quinzenalData: 1a e 3a quartas-feiras do mêsHorário: 20h30min

CLÍNICA PSICANALÍTICA: ALGUNS CONCEITOS FUNDAMENTAIS

Defrontar-se com o início da prática clínica faz gerar inúmeras ques-tões que o desafio da condução do trabalho coloca. Da mesma forma, intro-duzir-se nas primeiras leituras dos pressupostos teóricos da psicanálise trazinterrogações. A pesquisa freudiana, desde o seu início, passou por váriastransformações no que se refere ao método, à técnica e à construção dosconceitos. O trabalho deste grupo de estudos visa resgatar os principaispontos da construção de alguns conceitos que estruturam o corpo teórico dapsicanálise enquanto essenciais à prática clínica e com ela fazendo suaarticulação. Este estudo será também orientado por uma releitura das contri-buições de Lacan em seus Seminários. A trajetória inclui questões relativasao início do tratamento, aos conceitos de transferência e identificação, comotambém aos quadros clínicos. Pretende-se que a introdução ao estudo des-tes temas possa ser articulado à prática, a partir de exemplos clínicos. Édestinado a todos os que se sentem convocados pela discussão destestemas e também àqueles aos quais a prática clínica psicanalítica e seuspressupostos teóricos suscita interrogantes.Coordenação: Carmen BackesFreqüência: QuinzenalDia/Horário: Quartas-feiras, às 18hInício: março/2002 em dia a ser combinadoLocal: sede da APPOA

ADOLESCÊNCIA, INSTITUIÇÕES EDUCATIVAS E ESPAÇO URBANO

Este seminário visa trabalhar com o processo adolescente na suarelação com a polis, especialmente em duas direções: 1)na relação proble-mática, embora necessária e estruturante do adolescente com as institui-ções, desde a família até o juizado de menores, passando por escolas, conse-lhos tutelares e abrigagens e 2) na sua relação com o espaço urbano, con-siderando que a rede significante oferecida por este  pode  ou não ser toma-

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Por outro lado, comenta o desejo de Joyce de se fazer um nome paracompensar a carência paterna, aliado à necessidade de se encarregar do paipara fazê-lo existir: “Ulisses é o testemunho de por que Joyce continua en-raizado em seu pai enquanto o renega, e é bem isto que é seu sintoma.”

Se tudo é sintoma, poderemos um dia viver essa trindade do RSI ape-nas? O que resta quando “o real forclui o sentido”?Coordenador: Maria Auxiliadora SUDBRACKFrequência: quinzenalData: quintas-feirasHorário: 14h

MOMENTO DE LER

Propomos um espaço dedicado especialmente à leitura e discussãode textos psicanalíticos. Textos variados, sem compromisso de preparo pré-vio, incluindo autores que sejam no momento do interesse dos colegas (co-legère, ler juntos), ou mesmo opção de leitura por determinados artigos cujosassuntos estejam em pauta ou referenciados a algum movimento de estudona APPOA.

A leitura minuciosa de um escrito, com função de provocar um estudodetalhado (de-talhado), pretende fornecer um leque de possíveis debates emtemas por onde circulará a transferência de trabalho, a par do desejo deaprofundamento teórico sempre faltante em cada um.

Por outro lado, o trabalho de leitura em textos psicanalíticos, a partirda originalidade da letra de Freud e Lacan, levam o leitor a um lugar onde, emdeterminados pontos, esses escritos não constituem sentido. Os equívocosdessa leitura esburacada tendem a promover um lugar a partir do qual cadasujeito estará como que forçado a pensar.

“Nenhum sentido, pas de sens, a verdade desnuda – dirá Lacan –, olugar donde brota a desnudez é o vazio do poço do significante.”

Pretendemos iniciar os trabalhos deste ano com escritos de JeanBergès e Gabriel Balbo sobre as teorias sexuais infantis.

INTRODUÇÃO ÀS ESTRUTURAS CLÍNICAS FUNDAMENTAIS

O objetivo deste Grupo é introduzir o estudo sobre as estruturas clíni-cas básicas – neurose, psicose e perversão, – visando discernir as espe-cificidades de cada uma, bem como os conceitos que fazem laço entre elas.

Trabalhar a teoria destas estruturas paralelo às suas manifestaçõesclínicas no vínculo transferencial é uma via de introdução à psicopatologiapsicanalítica que rompe com os clichês diagnósticos psiquiátricos, basea-dos na observação dos sintomas, e abre possibilidades para uma verdadeira“escuta” do discurso dos analisantes.Coordenador: Návia T. Pattussi BEDINFrequência: semanalData: terças-feirasHorário: das 17h45min às 19h15minLocal: Chapecó – SC

GRUPOS TEXTUAIS

LE SINTHOME (SEMINÁRIO XXIII – 1975-76)O Sinthome

Lacan escolheu a antiga palavra francesa sinthome como uma manei-ra de escrever Symptome , ou seja, o sintoma. Quase ao finalizar sua traje-tória de ensino, Lacan vai ligar sua leitura de Joyce com avanços no estudodo nó borromeu apresentando não três, mas quatro nós: o Simbólico, o Ima-ginário e o Real, entrelaçados com o Sintoma que se torna o âmago dosistema.

Mantendo rigorosa unidade interna, apresenta uma sequência renova-dora em várias questões clínicas, ao mesmo tempo que nos mostra, de umaforma muito especial, a relação da psicanálise com a arte literária de Joyce,a da palavra, da letra, do equívoco, do atravessamento das línguas. Tambémé uma tentativa de Lacan para nova abordagem da arte.

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Por sua própria especificidade este espaço permanece sempre aber-to, dirigindo-se também àqueles que só desejem nele transitar enquantoforem tratados assuntos de seu interesse .Coordenador: Maria Auxiliadora Pastor SUDBRACKFreqüência: semanalData: sextas-feirasHorário: 16h

JORNADA DE ABERTURA 2002“A BEIRA DA LOUCURA”

A psicanálise cunhou um termo para consumo próprio que ganhouinusitado espaço clínico e social: a neurose. Ela define um quadro de gravi-dade relativa, embora possa ser profunda quanto ao sofrimento, já que suaporção de loucura, de des-razão, ficaria dentro do controlável. A neurose éuma loucura reservada, bem comportada e quase sinônimo de normalidade.Reservamos para o pior da desagregação subjetiva o termo de psicose. Tudoisto funcionaria bem se não fossem nossos pacientes que insistem em rom-per com nossos paradigmas.

Mas... as pessoas deliram sem serem psicóticas, fazem pequenas egrandes loucuras podendo voltar ao mal estar neurótico crônico em seguida.O senso comum, e boa parte dos clínicos inventaram um estado intermediá-rio, comumente chamado de boderline. Com imenso barulho, passagens aoato, fantasias suicidas, arroubos místicos, perdas amorosas incuráveis, sur-tos de ninfomania ou don-juanismo, e outras tantas manifestações, invademvidas estruturadas por trabalho, família e outras certezas. Ao calar, o gritoestridente destas vivências destrói para sempre o silêncio que havia, a me-mória daquele episódio barulhento macula a certeza do silêncio.

Nossa questão é justamente destampar esta classificação fácil e re-pensar quais os limites que podemos pensar a loucura hoje. Uma via possí-vel de discussão é a de que hoje estaríamos encontrando mais subjetivida-des com fraturas no simbólico.

Infelizmente as ficções psicopatológicas, embora úteis de uma formageral, pouco ajudam na direção de uma cura por que se adecuam muito malà diversidade das subjetividades dos nossos pacientes.

Se muitos pacientes apresentam novidades – criamos um nome. Semuitos psicanalistas passam a dizer que seus pacientes estão mais frágeis,que as transferências são constantemente convocadas à ortopedia – o quefazemos? Uma jornada de abertura, para debater com os que se sentiremconvocados por este tema.

PROGRAMA9hA beira da loucura – Liliane Froemming(título a confirmar) – Ângela Lângaro Becker 15hFora da casinha – Maria Lúcia Müller SteinAlém da neurose, aquém da psicose – Alfredo Jerusalinsky 

Data: 06 de abril de 2002Local: Hotel Continental Porto Alegrelnformações e inscrições: sede da APPOA

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SEÇÃO TEMÁTICA

Enfim, o leitor poderá percorrer uma série de textos instigantes sobretão vasto tema e, de quebra, aquecer os motores para o Fórum Social Mun-dial que se inicia no dia 30 de janeiro, onde a APPOA reeditará a sua partici-pação.

Analice de Lima PalombiniSimone Moschen Rickes

Em outubro de 2001, Porto Alegre foi sede do Fórum Mundial de Educação, espaço plural de reflexão e discussão sobre A Educação nomundo globalizado, preparando a participação sobre esse tema no II

Fórum Social Mundial que acontece em breve. A APPOA, tomando comoreferência o enlace do sujeito à cultura, esteve presente neste evento, numainterlocução com o campo da educação, expressa através da participaçãode alguns colegas que apresentaram relatos e acompanharam as conferên-cias e debates propostos. Adiante, o leitor se encontrará com os trabalhosapresentados ou ainda com textos que desdobram questões que o Fórumsuscitou.

A pluralidade de interrogantes que o campo da Educação faz aflorarse vê contemplada na diversidade dos artigos. Eles percorrem temas comoadolescência, inclusão escolar e o que há de possível na transmissão que aEducação aposta em operar...

O trabalho com a adolescência se elabora em torno das indagaçõescom que a escola se vê confrontada ao constatar que o adolescente, hoje,encontra fora dela espaços de aprendizagem de maiores identificações queem seu interior.

A inclusão escolar, abordada em um painel, é pensada a partir dosdesafios que o convívio com a diferença produz e que requer, como resposta,não a padronização dos comportamentos (ideal de um mundo tecnológico egloba-lizado), mas uma atitude que tem, na reflexão ética sobre o humano, oseu fundamento.

O painel sobre o que há de possível e de impossível na transmissãofaz trabalhar uma série de interrogações, a partir da perspectiva própria àpsicanálise, que leva em conta a articulação do sujeito com o momento dacultura: neste tempo que se mundializa/globaliza, qual o impacto sobre asubjetividade das pessoas? E sobre a ação educativa? Como pensar suaviabilidade e seus impasses? Como pensar a relação dos professores, crian-ças, adolescentes, instituições com a escola? E as manifestações deagressividade e violência que eclodem crescentemente?

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SEÇÃO TEMÁTICA

OS ESTIGMAS EM NÓS

Analice de Lima Palombini

Nas múltiplas experiências de trabalho por que já passei, em institui-ções diversas, e naquelas em que hoje me encontro engajada, otema da diferença se faz sempre presente, ainda que em graus vari-

ados, representado por crianças, adolescentes e adultos com necessidadesespeciais dirigidas à clínica, à escola ou à abrigagem. Mais particularmente,no trânsito entre a clínica e a escola, pude acompanhar, por um lado, aintensa mobilização que produz, na comunidade escolar, a presença de umacriança com um transtorno grave no seu desenvolvimento, exigindo, paraalém da assessoria ao professor em sala de aula, também um trabalho como coletivo de professores, serviços, direção, às vezes com o grupo de pais ecom a turma de alunos – um trabalho árduo, que, muitas vezes, ressente-seda ausência de suporte dos serviços de saúde para a sua realização; poroutro lado, enfrentei as limitações de um trabalho clínico que, incidindo so-bre o processo mesmo de constituição psíquica da criança ou buscandoconsolidar e ampliar os seus recursos simbólicos, deixava de contar com odesdobramento e sustentação desse trabalho no espaço social da escola eno campo das aprendizagens. Quase sempre a clínica tornava-se o únicolugar de circulação social permitido a essas crianças e jovens. A escolamesma, sem um maior suporte técnico e impotente para lidar com as dificul-dades de sua inserção, indicava-lhes o espaço terapêutico como aquele quevinha substituir o pedagógico.

A prevalência, hoje, de propostas por uma educação inclusiva, nãoevita o fato de que a dissociação entre o campo clínico e o pedagógico oumesmo a relação de exclusão estabelecida entre ambos (ou clínica ou esco-la) continua candente, tanto mais candente quanto mais grave o quadro apre-sentado pelo sujeito em questão. Alijado da escola ou alijado na escola,durante a infância e adolescência, tal sujeito se vê impedido do acesso aessa zona intermediária de sociabilização, situada entre a família e o vasto

O PORTADOR: INSÍGNIA DA DIFERENÇA

Sob este título foi apresentado painel sobre o tema da inclusão esco-lar, com a participação de Analice Palombini, Denise Teresinha daRosa Quintão e Clarisse Trombka. A inclusão escolar implica bus-

car, para cada criança, a sua forma própria de inclusão, a que lhe permitetomar lugar no mundo como sujeito, o que produz efeitos que ultrapassam oâmbito pedagógico. No que diz respeito aos portadores de necessidadeseducativas especiais, PNEEs, a possibilidade da sua singularização esbarrano traço que a sua identidade porta, como insígnia da diferença que vemmarcar o modo de constituição dos laços sociais. Os educadores enfrentamaí uma situação paradoxal, diante de crianças que reproduzem modelosidentitários propostos pela globalização e pelos avanços tecnológicos e que,ao mesmo tempo, na sua diferença remetem a esse estranho/familiar querequer, como resposta, não a padronização dos comportamentos, mas umaatitude que tem na reflexão ética sobre o humano o seu fundamento. É naarticulação entre os campos da saúde e da educação, entre cultura e subje-tividade, entre o espaço social e o mundo psíquico que propomos enfrentaras tensões que esse paradoxo gera.

PALOMBINI, A. de L. Os estigmas em nós.

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sindrômicos que, nesse momento, passam a ser distinguidos em categoriaspróprias.

Em nosso século, a psicanálise, embora tendo origem nessa ciênciamédica positivista, ao instituir a escuta em substituição ao olhar como méto-do clínico, transforma a relação ética estabelecida com a loucura, resgatan-do a tradição do Renascimento, que a interpreta como modo de o sujeitodizer a verdade de seu desejo. Mas a exclusão, o internamento, segue sen-do a prática corrente no tratamento da doença mental, compulsória e vitalí-cia. É na década de cinqüenta, com a aceleração industrial e o surgimentodos primeiros psicofármacos, que tem início uma transformação no locus devida daquelas pessoas intituladas de doentes mentais, impulsionada pelosmovimentos político-sociais. Segue sendo um desafio, porém, a efetiva con-solidação de práticas substitutivas aos manicômios, capazes de oferecerreferências, possibilidades de tratamento e perspectivas de vida aos ditosdoentes mentais, levando em conta o sujeito psíquico aí implicado, mastranspondo o âmbito restrito dos serviços de saúde e lançando-se no espaçoaberto do urbano.

O desafio é o mesmo quando se toma a questão da diferença inscritaenquanto dano orgânico, como marca que se carrega no corpo, como de-sempenho que não alcança o esperado. Pois os processos de exclusãoincidem sobre os deficientes da mesma forma que sobre a loucura. Já noséculo XVII, o saber jurídico elabora algumas categorias de debilidade men-tal de acordo com a adaptação ou o rendimento social, no interesse deassinalar aos seus portadores uma situação jurídica, com o intuito de salva-guardar bens de família. Essas categorias, mais tarde, são retomadas pelamedicina.

Escreve Maud Mannoni (1983; p.201):Quando o adulto se encontra em face de um semelhante que não é à

imagem do que ele crê poder esperar, oscila entre uma atitude de rejeição ede caridade. O problema não se coloca ao nível das boas intenções, mas aomuito mais obscuro que as sustém. Todo ser humano que, por seu estado,torna impossíveis certas projeções provoca no outro um mal-estar – mal-

mundo, que, no entanto, constitui uma experiência tão fundamental na vidade cada criança e de seus pais.

Se nós tomarmos, porém, a figura do louco como paradigma da dife-rença na relação com o outro, veremos, com Michel Foucault (1978), queessa experiência foi exuberante e polimorfa até meados do século XVII, ten-do, até essa época, circulado de modo livre, fazendo parte do cenário e dalinguagem cotidiana. É certo que a valorização do físico, na Grécia Antiga,levava ao sacrifício dos mutilados do corpo, lançados do alto de penhascos,tão logo eram nascidos. É certo também que, desde a medicina grega, algu-mas formas de loucura eram tomadas como patologias e submetidas a prá-ticas de cura. Mas restava ainda uma ampla extensão do campo da loucurafora do domínio médico (Foucault, 1975). Uma extensão cujos contornos evalor vão sofrer variações conforme as épocas, mas onde podemos destacarduas vertentes: uma, que atravessa a Idade Antiga e Média, é a concepçãoda loucura como manifestação dos deuses, como graça ou castigo, para obem ou para o mal, possessão divina ou demoníaca; outra vertente, própriaao renascimento, em que experiência da loucura é tomada ou como expres-são de forças da natureza, do inumano, revelando a verdade e os mistériosdo mundo, ou como o humano naquilo que é o seu limiar, a razão em seunecessário avesso, uma das suas formas, enfim, carregada de secreta ver-dade. A situação altera-se radicalmente a partir do século XVII, quando omundo da loucura vai tornar-se o mundo da exclusão. E é o contexto asilar,então, social e juridicamente determinado, que vem dar nascimento e cir-cunscrever o espaço da clínica, da pesquisa e da produção teórica no campoda psiquiatria e da psicopatologia, num amálgama em que vão confundir-sepráticas médicas e sanções morais. No século XIX, a loucura vê-se incorpo-rada à noção de doença mental, como objeto da ciência positiva, num esfor-ço classificatório em que o semelhante é reunido ao semelhante, em que oburburinho e a complexidade da vida são evitados, onde as variáveis sãocontroladas. O louco, designado como doente mental, vê ser suprimido ovalor de sua palavra, sendo-lhe imposto o silêncio dos pacientes (Cunha,apud A Casa, 1991). Igualmente são silenciados os lesionados, deficientes,

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cuja lógica foge àquela que nos orienta. O saber, então, de que se po-defazer uso aí, não tem como função o apagamento da diferença, a anulaçãodo espanto, a antecipação do que não se dá a ver, mas, ao contrário, torna-se sustentáculo de uma relação ao outro onde a diferença pode incluir-secomo espaço de criação e expressão de singularidades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A CASA, Equipe de Acompanhantes Terapêuticos do Hospital-Dia (org.). A ruacomo espaço clínico: acompanhamento terapêutico. São Paulo: Escuta, 1991,247p.

CAMARGO, Elisa M. de C. “O acompanhante terapêutico e a clínica” em: A CASA,Equipe de Acompanhantes Terapêuticos do Hospital-Dia (org.). A rua comoespaço clínico: acompanhamento terapêutico. São Paulo: Escuta, 1991, p.51-60.

FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspec-tiva, 1978, 551p. Originalmente publicado em 1972.

________ Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.MANNONI, Maud. A criança, sua “doença” e os outros. Rio de Janeiro: Zahar,

1983. Originalmente publicado em 1967.

estar negado, cujos efeitos vão produzir-se no plano imaginário; esses efei-tos, podemos ao longo da história medir-lhes o caráter absurdo...

No que diz respeito a esses efeitos, é possível observar o modo comovão sobrepondo-se, no imaginário social, as diferentes versões que, à cadaépoca, a sociedade oferece da loucura, do diferente, do estranho, de talforma que na contemporaneidade nos encontramos com práticas que vão daexclusão, do confinamento, às interpretações místicas, à visão romântica daloucura, ou mesmo o seu abandono em um lugar à deriva, pelas ruas, semporto de chegada, tal como a nau dos loucos renascentista. O louco, odiferente, o deficiente são ou identificados ao infantil, ao selvagem, largadosàs forças da natureza (de onde pressupõe-se nele uma sexualidade eagressividade desenfreada), ou são considerados gênios, dotados de umdom sublime, cuja palavra é portadora de uma verdade não revelada e muitasvezes perigosa. Mas, dominando o cenário em que se presentificam essasexperiências, situa-se o saber médico e científico. Se esses saberes produ-zem intervenções que se mostram eficazes na potencialização das capaci-dades humanas, se fornecem argumentos que justificam os movimentos eas políticas inclusivas, são também capazes de travestir em cientificismo asatitudes de rejeição com que nos defendemos daquilo que no outro se apre-senta como diferença. E então, novamente, o semelhante é reunido ao se-melhante, controlam-se as variáveis, evitam-se o burburinho e a complexida-de da vida. As conseqüências sabem ser nefastas. Mutilados de corpo se-guem sendo lançados do alto de penhascos, mas, agora, em gestos cujaaparência guarda a assepsia e a acuidade técnica de um procedimento cirúr-gico; desatinados permanecem atados em camisas de força, mas que sãoinvisíveis aos olhos, guardadas em frascos de comprimidos; clínicas ditasterapêuticas propagandeiam métodos científicos revolucionários que, no en-tanto, não fazem mais do que repetir a segregação e o tratamento moral dosvelhos asilos de loucos.

Enfim, o desafio de enfrentar a exclusão exige, primeiro, enfrentar emnós mesmas o estranhamento que a diferença provoca, reconhecer nossosmedos, mitos e superstições, suportar a angústia do encontro com alguém

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INSÍGNIA:– Bandeira, estandarte;– Divisa, legenda, dizeres (escritos em emblemas, escudos, brasões), sinaldistintivo;– Marca;– Peça bordada ou de metal aposta aos uniformes para distinguir os grausde hierarquia.

DIFERENÇA:– Caráter que distingue um ser de outro ser, uma coisa de outra coisa;– Falta de igualdade ou semelhança;– Excesso de uma quantidade em relação a outra;– Diversidade, variedade;– Distância, descompasso;– Na matemática: o que resta quando uma quantidade é subtraída da outra;resultado da subtração. Diferença entre dois conjuntos (A e B), formada pe-los elementos de A que não pertencem a B.

Portador, carregador... Certamente, a invenção e o uso das palavras ten-dem a transcender nossos propósitos, pois, ao etratar as verdades humanas, aspalavras são imbuídas pelos valores construídos por uma sociedade num dadomomento histórico e numa dada cultura. Tais palavras denunciam, sutilmente,um mal-estar que vem sendo reconhecido, gradativamente, no social – porta-dor, carrega-dor. Mas que dor seria essa? Porta, carrega a dor de quem? Afinal,a nomeação “portador” é do Outro, dos educadores, da sociedade que legitimatal expressão (e outras que surgirão para nomear este real que nos aparececomo uma incógnita, inominável). O que proponho seria poder pensar que estador que o portador conduz implica a todos nós – educadores, terapeutas, pais...– que nos ocupamos com ela e que também compartilhamos a dor de existir.Este ato de nomear já traz consigo um movimento importante de nossa socie-dade, ao possibilitar uma maior aproximação e comprometimento para com aeducação e a inclusão de seus futuros cidadãos historicamente segregados.

O “PORTADOR”: INSÍGNIA DA DIFERENÇA

Denise Teresinha da Rosa Quintão

Se tomarmos a educação como um processo, nos seus mais variadosaspectos, capaz de construir um sujeito para ocupar um lugar nomundo, não podemos nos abster de pensar que este lugar é construído

a partir das relações deste sujeito com seus semelhantes, imersos numacultura que produz subjetividades. Desse modo, pensar as nossas diferen-ças enquanto humanos é considerar os efeitos de uma educação.

Constatamos, na área da Educação Especial, que têm sido freqüen-temente revisados os termos que mais adequadamente representariam suaclientela, a fim de melhor qualificar e, ao mesmo tempo, minimizar os efeitosde uma nomenclatura que possa rotular, estigmatizar os “diferentes”. Algunstermos utilizados nas últimas décadas foram: excepcional, deficiente, débil,retardado... Atualmente, têm-se feito referência às Pessoas Portadoras deDeficiências (PPDs) ou Pessoas Portadoras de Necessidades EducativasEspeciais (PPNEEs) e, mais recentemente, Pessoas com NecessidadesEducacionais Especiais.

Faço referência, aqui, ao título deste trabalho, O “Portador”: Insígniada Diferença, a fim de retomar alguns significantes utilizados para denominaros educandos com necessidades especiais. Para isso, vou valer-me do au-xílio do dicionário para traduzir estes vocábulos que nos parecem significati-vos para expressar ao menos um recorte desta realidade. Pretendo enfatizarapenas alguns elementos que permitam o avanço destas considerações,atravessadas pela escuta das personagens em cena.

PORTADOR:– Pessoa que carrega ou que conduz alguma coisa; carregador.– Na medicina: portador de germes, diz-se de um indivíduo que carrega osgermes de uma infecção (podem-se ser indivíduos em perfeito estado desaúde aparente, os quais chama-se, então, “portadores sãos”).

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rença nem sempre está estampada, o que torna fácil, por vezes, escamoteá-la.

Não estaria, aí, apresentada uma “verdade” que concerne a todos nós?Numa sociedade que se pretende igualitária, estamos às voltas, constante-mente, com a tentativa de apagar nossas diferenças, e “o portador” tende aescancarar a imperfeição humana. Afinal, não somos todos “portadores denecessidades especiais”, na medida em que nos encontramos referidos àcastração, à condição de seres faltantes, incompletos, imperfeitos... ?

A falta de igualdade ou semelhança (como uma das possíveis defini-ções para a diferença) não remeteria a um ultraje ao nosso narcisismo, vistoque o que vejo no espelho (imagem do outro semelhante) é “feio”?

Na definição de diferença, fica enfatizada a idéia daquilo que falta, ouque se encontra em excesso, ou mesmo o que resta, sempre na relação aalguma outra coisa. Ao que parece, da diferença ninguém tem como esca-par.

Chama a atenção que, nesta constante mudança de terminologia, aexpressão “Portador de Necessidades Especiais” é corrigida, pois esta de-claração coloca a todos numa condição de igualdade, de semelhança; daí anecessidade de se reafirmar a diferença para demarcar de quem estamosfalando, substituindo-se a primeira por “Portador de Necessidades EducativasEspeciais”. Contudo, surge uma nova denominação: “Pessoas com Neces-sidades Educacionais Especiais” (é retirado o termo “portador”). Não estariaaqui, novamente, uma tentativa de apagar a diferença (ou o mal-estar queesta carrega) representada pelo termo “portador” e uma maneira de promoveruma suposta “igualdade”? As expressões utilizadas não estariam a serviçodo recalque daquilo que dói?

Gostaria, neste ponto, de retomar a questão da inclusão e, para avan-çar, trarei novamente alguns possíveis deslizamentos atribuídos à palavrainsígnia.

In-sígnia – estamos diante de um signo que está no próprio sujeito,naquele que o carrega. Podemos pensar que haja um valor que seja carrega-do no signo por ele mesmo, porém, o signo só é signo através da interpreta-

A inclusão social dos sujeitos portadores de deficiência é um temacomplexo e passa por diferentes instâncias, começando pela família, lugar,a priori, de onde partem os significantes primordiais, fundantes e estruturantesda constituição psíquica. O que se constata é que, com freqüência, a buscade atendimento especializado acontece no momento da entrada da criançana escola, onde ficam expostas suas dificuldades, em muitos casos, atéentão não reconhecidas. A clínica nos mostra o quanto a carência de umlugar para esta criança é anterior a este momento; é preciso, antes, a cons-trução de um lugar no desejo de seus pais, um lugar junto ao Outro, quepermita se reconhecer numa filiação e se acolhida na sua diferença.

Este talvez seja um dos pontos em comum da relação clínica/escola:se o que costumamos encontrar é um não-lugar para estes sujeitos, estamosdiante de um impasse, pois o que passa a estar em jogo é uma apostavoltada à construção de novas possibilidades para a criança e sua família.Da mesma forma, fica lançado um desafio para as instituições, guardadasas especificidades de cada trabalho.

Muitos pais, cujos filhos apresentam uma deficiência que não ficaestampada, quando recebem a indicação de uma classe especial em escolaregular ou de escola especial, relutam com esta idéia porque seus filhos nãopossuem uma “aparência de doente” e, por não serem “tão prejudicados”,temem que possam ficar, ou piorar pela convivência. Há a preocupação de“não se contaminar”, de não se tornar igual ao diferente. É como se o “porta-dor” portasse os germes de uma doença capaz de contaminar. Expressõesouvidas como: “Mas ele não parece que tem isso” ou “parece normal” sãocomuns. Uma mãe, ao trazer seu filho autista, diz: “Ele é um menino bonito,saudável. O único problema é que ele não fala”. Diante de tais situações, ospais costumam se perguntar: “De onde vem isso?” E cada um vai tentarformular uma resposta e, isso, às vezes, já é um começo para se começar afalar “disso”.

Torna-se curioso verificar o quanto a questão da imagem é tomadacomo referência. É preciso uma insígnia, uma marca que permita reafirmaruma distinção. É mais fácil excluir a diferença escancarada. Todavia, a dife-

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e Desenvolvimento Infantil. Porto Alegre, Artes e Ofícios, 1999.JERUSALINSKY, Alfredo e PÁEZ, Stella Maria C.. Carta Aberta aos Pais acerca da

Escolarização das Crianças com Problemas de Desenvolvimento. In: Escri-tos da Criança. Centro Lydia Coriat – Porto Alegre – 2001 – nº 6.

TAVARES, Eda Estevanell. O Brincar na Clínica com Crianças. In: Ato & Interpreta-ção. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – nº 14. Porto Ale-gre, Artes e Ofícios, 1988.

ção de alguém: é preciso um Outro que lhe atribua significados. Da mesmaforma, há um contraponto entre o que seja valor cultural e, portanto, coletivoe aquilo que seja da experiência própria, singular, ou melhor dizendo, comoo sujeito irá significar e o que irá fazer com os signos que ele possa reconhe-cer como seus.

Busco, mais uma vez, alguns recursos da clínica. Com freqüência, noato de brincar das crianças nas sessões, estas demonstram um interesseparticular por bonecos que representam a figura do herói e suas insígnias –policiais, bombeiros, até figuras montadas a partir de conceitos mitológicos,como os Pokemóns e os Digimons, nos nossos dias – que passam a incor-porar um valor social, ao menos durante algum período, para este público (játiveram outros). E acredito ser importante mencionar que, frente a este brin-car, estão todos incluídos, os “portadores” e os “normais”, pois o que estáem jogo é sua condição de crianças.

Ao perguntar para uma criança o que ela entendia por insígnia, umavez que me falava sobre os Pokemóns, escuto que “insígnia é como umprêmio de uma batalha, tem várias insígnias e o Pokemón vai ganhando e vaificando mais forte e pode evoluir”.

Outra informação interessante sobre estes personagens é que cadaum destes pequenos seres tem um tipo de arma especial e, na batalha,cada um vai fazendo uso de suas virtudes, de suas capacidades, obtendonovas insígnias, brasões, etc... que podem ser da Coragem, do Amor(Digimons), para desenvolver.

Se tomarmos a insígnia como um sinal distintivo a partir de uma“batalha” e suas conquistas, cujos “heróis” buscam um reconhecimento, tal-vez possamos atribuir à diferença justamente este caráter que distingue umser de outro e considerar, nesta diferença, sua condição humana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica. Ministérioda Educação. Parecer nº 17/2001 de 03/07/2001.

JERUSALINSKY, Alfredo. A Escolarização de Crianças Psicóticas. In: Psicanálise

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Também entendemos que o acesso do sujeito ao conhecimentoindepende de uma única estrutura lógica, uma vez que o sujeito não se ex-plica nem se define somente como sujeito epistemológico, tão pouco pelodualismo cognição e afetividade.

Ao valorizarmos o processo de ensino-aprendizagem de cada crian-ça, não o reduzindo àquele apresentado por outra, como faz o modelo baseadoem antigos paradigmas, defensor de grupos homogêneos, reconhecemos aheterogeneidade existente em todo o grupo humano (Colli e Amâncio, 2000).

Falarmos em inclusão, hoje, implica reconhecer a luta pelos direitosda população com NEEs, fazendo frente a um processo histórico de exclu-são, forçando sua entrada, muitas vezes a partir da lei, nas escolas, notrabalho, na cultura, no lazer, no exercício da sexualidade. Para que issoocorra, as instituições precisam passar por um processo de reestruturaçãoque exige uma mudança de paradigmas e também investimento em forma-ção e equipamento, como, aliás, está previsto nos relatórios oficiais do MEC.

Identificar seus professores com condições inclusivas pode ajudar aescola a reconhecer as singularidades presentes em seu corpo docente,podendo oferecer–lhes espaços diferenciados de trabalho. Além disso, acre-ditamos ser de grande importância a valorização da experiência desses,incentivando-os a escrever e falar sobre sua caminhada na construção de umespaço inclusivo.

A busca de novas produções apartadas do pensamento tradicionalexige que nos encontremos em uma interlocução com outros campos dosaber, proposta da interdisciplina, onde possamos quebrar o projetonormatizador/padronizador da razão técnica.

A perplexidade de uma professora que trabalha com inclusão, depa-rando-se com uma situação na qual seu aluno se encontrou no meio de umarodinha de colegas que diziam: “Tu é burro mesmo! Prá que tu tá aqui ?”,convocou-nos a trazer algumas reflexões.

Ela vem trabalhando com inclusão há pouco tempo, porém o faz commuita consideração pela singularidade de seus alunos, observando e ajudan-do-os a construir, muitas vezes de forma lúdica, uma posição curiosa em

UM MUNDO POR FAZER

Clarisse Trombka

Este trabalho é uma síntese do original, apresentado no Fórum Mundi-al de Educação, cujas idéias versaram sobre os seguintes eixos:inclusão e singularidade; instituição escolar e projetos educacionais;

professores inclusivos e ética; mudança de paradigmas e mentalidade esco-lar; função social da escola (LDBEN); programas especiais para excluídosda escola; educação especial e educação geral (Política Nacional de Educa-ção Especial do MEC); questões econômicas como obstáculos à saúde eeducação e a escola especial. Foi realizado a partir da experiência de aten-dimento interdisciplinar com crianças e adolescentes portadores de neces-sidades educacionais especiais (NEEs), desenvolvido em uma ONG com-prometida com sua inclusão social e escolar.

Aceitarmos a singularidade implica reconhecermos que acontemporaneidade, marcada pela globalização, apesar de trazer em seubojo a diversidade, também produz a padronização. Assim, não podemosesperar que a abertura ao novo implique a abertura à tolerância nem ao estra-nho, pois os ideais massificadores do nosso tempo geram uma proposta dereferência identitária.

Sabemos que o máximo que as culturas conhecidas conseguiramconquistar foi certa tolerância à diversidade e à convivência com a diferença,o que não implica aceitação. Abrirmos mão de uma idéia pré-fabricada desujeito, portanto, é tarefa difícil.

Trabalhamos com o sujeito do desejo, com todas as dificuldades queisso acarreta, e procuramos um modelo que o simplifique (proposta dos pro-jetos educacionais baseados em conceitos normativos, que reduzem o com-plexo ao simples, tentando eliminar contradições) constitui-se em uma ten-tativa de neutralizar as concepções mais complexas sobre esse sujeito. Osujeito do desejo estará sempre presente com suas surpresas, caprichos,imprevisibilidades, criações.

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Jerusalinsky e Páez, em Carta Aberta aos Pais Acerca da Esco-larização das Crianças com Problemas de Desenvolvimento (2000), deixamclaro que a inclusão não deve se transformar num ato de mera aparência,sendo necessário certificarmo-nos das condições subjetivas das criançaspara enfrentarem as resistências institucionais que venham a se colocar.

Precisamos reconhecer que há momentos problemáticos na vida dascrianças e adolescentes com NEEs que não admitem que sejam submeti-das à demanda de freqüentarem uma escola regular. Nesses momentos, aescola especial pode ser uma boa alternativa.

Por fim, alertam-nos para que a inclusão não venha a se transformarem bandeira incondicional, nem para os pais, nem para os advogados ououtros profissionais, almejando uma vitória colocada em uma questãonarcísica que acredita que as aparências e o real externo podem recuperar aposição do sujeito que ali está em jogo (Jerusalinsky e Paéz, 2000).

Gostaria de finalizar sublinhando que se espera de um professor inclu-sivo a possibilidade de romper com idéias instituídas, fazer-se escutar emseu desejo e ser também, de alguma forma, diferente.

Como brasileiros, vivemos, mesmo não querendo ser otimistas de-mais, a promessa de um futuro melhor. Afinal, somos o país do futuro, temosmuito por fazer!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COLLI, Fernando A.G. e AMÂNCIO, Valéria. Continuando a Travessia Pela Ponte.Estilos da Clínica. Revista sobre a Infância com Problemas, V(9), 69-81. SãoPaulo, SP. Escuta, 2000.

JERUSALINSKY, Alfredo e PÁEZ, Stella Maris C. Carta Aberta aos Pais Acerca daEscolarização das Crianças com Problemas de Desenvolvimento. Estilos daClinica. Revista sobre a Infância com Problemas, V(9), 118-123. São Paulo.SP. Escuta, 2000.

MAZZOTTA, Marcos José da Silveira e SOUSA, Sandra M. Zákia. Inclusão Escolare Educação Especial: Considerações sobre a Política Educacional Brasilei-

relação ao mundo e incentivadora do conhecimento. Além disso, busca dis-cutir sistematicamente com nossa equipe sobre o percurso de seu aluno.Oferecemos a ela um espaço de escuta do qual se apropria, dizendo sentir-se respeitada em seu trabalho.

Pensamos que o paradoxo colocado pela professora é: como lidarcom a inclusão de alunos com NEEs, educando para a diversidade, propon-do uma reflexão ética diante dos problemas humanos e, ao mesmo tempo,com alunos que reproduzem modelos identitários propostos por uma socie-dade cada vez mais elitista, competitiva, atravessados pela rapidez das no-vas tecnologias e por exigências de eficiência e eficácia ?

Stella Páez (2001, p. 131), pode ajudar com uma possível resposta:“Atender à diversidade na escola é justamente procurar romper com essesdestinos previamente determinados, procurar dar igualdade de oportunida-des, ou seja, oferecer a cada um o que necessita para construir o seu melhorprojeto de vida. É justamente, não se resignar a aceitar modelos assentadosem uma concorrência feroz e comprometer-se a dar cotidianamente a todosos alunos uma experiência de vida solidária”.

Mazzotta e Sousa (2000, p.104) relatam que o “novo modelo de ges-tão assumido pelo Estado transpõe a lógica da gestão privada para a educa-ção pública com reflexos nos processos de trabalho da educação básica,em que as iniciativas de avaliação educacional têm centralidade, constituin-do o elemento capaz de induzir a competitividade, em consequência, a qua-lidade, tal como no mercado“.

Os autores observam que, no Brasil, não se tem, até o momento, aprática de associar a premiação ou punição aos resultados da avaliação,porém, pensam que a prática já vigente para os programas de pós- gradua-ção e o exemplo de países que servem de inspiração aos brasileiros para odelineamento da utilização dos sistemas de avaliação deve servir de alerta

Resta-nos torcer para que, caso sejam realmente implantados no país,esses sistemas de avaliação possam valorizar as escolas inclusivas, inver-tendo a lógica do mercado em favor da heterogeneidade, da construção deespaços de criação e de solidariedade. Seria esperar demais?

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SEÇÃO TEMÁTICA

A ESCOLA, O TEMPO E O LUGAR DO PROFESSOR

Eliana Dable de Mello

Para nós, humanos, a idéia da passagem do tempo sempre será ins-piração de sabedoria para todos que suportarmos encará-la. Passa-do, presente e futuro são noções elementares a quem quer que se

proponha a buscar algum entendimento sobre qualquer coisa: seja um pratoculinário, uma casa, uma obra de arte, uma teoria científica, uma colheita,uma rede de informação, etc. Todas as disciplinas do conhecimento huma-no, de uma forma ou de outra, precisam traçar seus princípios incluindo anoção de temporalidade. Dela ninguém escapa, embora seja o que todosdesejamos, o que atesta nossa estruturação neurótica possível: não quere-mos envelhecer, supomos ilusoriamente um tempo infinito e, como diz Freud,da morte não temos representação.

A escola está, em todos os seus vetores, sinalizada por esta condi-ção. Destina-se ao ser humano e sua formação: da escola infantil à universi-dade, ela acompanha um sujeito que nunca é o mesmo no transcorrer desteprocesso e que é único neste mundo em todos os tempos, cuja constitui-ção, contudo, estará sujeita aos ideais transmitidos pela cultura de sua épo-ca que o referenciará a como ser criança, jovem e adulto.

A Escola também tem sua história e, obviamente, não tem sido sem-pre a mesma. Foi instituída no séc. XIV para apresentar aos que chegavam oconhecimento acumulado pelas gerações anteriores além de transmitir pre-ceitos civilizatórios éticos e morais: talvez possamos pensá-la como um dosprimeiros ícones realizados da modernidade que, como sabemos, substitui,ou pelo menos problematiza severamente, a referência tradicional à comuni-dade e ao saber parental. A configuração de uma nova esfera pública, osocial, vai estabelecendo uma gradativa disjunção entre conjugalidade eparentalidade ; ou seja, o que diz respeito ao conjugal, ao casal, as escolhassexuais, desde o surgimento da afirmação do amor cortês – rompendo coma tradição de sustentar alianças políticas através de contratos conjugais

ra. Estilos da Clínica. Revista sobre a Infância com Problemas, V(9), 96-108.São Paulo, SP. Escuta, 2000.

PÁEZ, Stella Maris C. As Pessoas com Necessidades Especiais, a Comunidadee suas Instituições. Estilos da Clínica. Revista sobre a Infância com Proble-mas.

Política Nacional de Educação Especial: livro I / MEC / SEESP- Brasília, 1994.VI(10), 129-140. São Paulo. SP. Escuta, 2001.

RHODEN, Kuno Paulo e GOUVÊIA, Sylvia Figueiredo. Diretrizes Nacionais para aEducação Especial na Educação Básica. Parecer nº 17/ 2001 de 03. 07. 2001.Ministério da Educação, Conselho Nacional de Educação.

MELLO, E. D. de. A escola, o tempo...

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rística do cotidiano privado. Como fornecer referências que possibilitem olaço social a sujeitos em formação, a partir deste lugar? Resgatar o saberparental possível, quando possível, pode ser um bom norte para as inter-venções profissionais, seguindo por esta lógica. Para Julien, a lei dodesejo, que permite fundar uma nova família, precisa se fundar primeira-mente numa conjugalidade privada, já que nem a sociedade nem aparentalidade sozinhas a sustentam.

A educação, para Hanna Arendt, é uma das atividade mais elementa-res e necessárias da sociedade humana, onde se joga nossa atitude frente ànatalidade e à responsabilidade que estamos dispostos a assumir pelasnovas gerações, que têm, por sua vez, a tarefa de renovar um mundo co-mum. As mudanças transcorridas no tempo trouxeram novas questões, po-demos abordá-las a partir de sua análise sobre a crise da educação namodernidade. De um modelo autoritário e conteudista, a escola não teriaexagerado sua pauta de transformações, basculando no exato oposto? Aautoridade do professor, para ela necessária, estaria ameaçada a partir deuma formação pedagógica demasiado generalista, emancipada da matéria aser ensinada. Tal fato o que produziria uma relação professor-aluno por de-mais simétrica, numa hegemonia da noção pragmática de que só é possívelconhecer e compreender aquilo que nós mesmos fazemos, substituindoradicalmente o aprendizado pelo fazer e o trabalho pelo brincar, o que mante-ria a criança mais velha o mais próximo possível da primeira infância (valeaqui considerar a magnitude do ato que o adolescente deverá fazer paramudar de posição).

Em síntese, sua preocupação é com o “pathos do novo”, que traz orisco de abafar a oportunidade dos jovens “de eles próprios empreenderemalguma coisa nova e imprevista para todos nós”. É importante esclarecerque, para Hanna Arendt, o conceito de autoridade envolve obediência masexclui a coerção; para ela, quando existe o uso da força não existe autorida-de legítima, apenas autoritarismo e violência. A questão que propomos éjustamente esta: o que legitimaria a autoridade necessária a algum atoeducativo nos dias de hoje?

feitos em nome da autoridade paterna –, vem sendo cada vez mais do âmbitoprivado; já o saber e a responsabilidade quanto ao bem estar das crianças ea transmissão entre as gerações vai sendo, cada vez mais, encampada pelocampo social, encarnado nas figuras de professores, pediatras, psicólogos,assistentes sociais, juizes da infância e da juventude, e hoje acompanha-mos a emergência da figura dos conselheiros tutelares.

A escola absorve boa parte desta transferência, já que é a instituiçãomatriz para os assuntos da infância e da juventude, apesar de todos osabalos sofridos com a queda da autoridade característica de nosso tempo. Éatravés dela, que outros saberes serão convocados a responder sobre omelhor para o bem estar das crianças. Resposta esta que dependerá dalente de leitura utilizada – graduada nos diferentes enfoques teóricos – eque, inevitavelmente, deixará sua marca em estruturações subjetivas emcurso. Para a viabilização de sujeitos de desejo cada simples quesito focali-zado já fará muita diferença: em que estatuto o bem e o mal são utilizados?Como são consideradas as verdades subjetivas? E os pais, onde se colo-cam? Onde os colocamos?

Uma das falas mais escutadas nas escolas, da parte dos professo-res, é que os pais estão se desresponsabilizando pela educação de seusfilhos, transferindo à escola esta tarefa. O que, afinal, coincide com o avan-çar da modernidade que imageia um ideal autofundado, desorganizando asreferências generacionais. Concordamos que os pais não deveriam abdicarda transmissão de seu patrimônio de ideais e de apontar para sua descen-dência um posicionamento na cadeia de gerações; a escola, neste sentido,tem razão em proclamar sua impossibilidade de arcar com todos os sabe-res. A distinção se perde, contudo, quando a escola e seus “peritos sociais”,na expressão de Philippe Julien, toma para si a missão da salvação dascrianças, desautorizando ainda mais os pais perante seus filhos, agudizandoa confusão entre o que é da ordem pública e o que é de ordem privada. Acena que muitas vezes acaba prevalecendo é o encontro do funcionamentoburocrático, como arremedo de uma ética pública e arrasador de qualquersingularidade, com a ansiedade de encontrar respostas imediatas caracte-

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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adolescer”. In Mais tarde... é agora. Ágalma, Salvador, 1996.

Sabemos que os maiores problemas com a autoridade que a escolaenfrenta colocam-se ao término da infância de seus alunos. Efeito damodernidade, a adolescência, na compreensão psicanalítica, é a operaçãopsíquica de validação do valor de um sujeito, onde o abandono da posiçãoinfantil põe a prova sua viabilidade enquanto desejante. Torna-se necessáriaexatamente quando os dispositivos societários presentes nas sociedadestradicionais, para sustentar esta passagem, perdem sua eficácia em garantira simbolização do real do impacto pubertário (Ruffino, 1996). Em tempo pre-sente, o adolescente precisa se arriscar em manifestações que buscaminscrever um traçado que delimite novas bordas no corpo ficcional da infância(Costa, 1998), num trabalho de produção de uma nova imagem de corpo, quelhe permita se representar simbolicamente na comunidade dos adultos. Pre-cisa, portanto, afirmar sua singularidade e, ao mesmo tempo, reconhecer-secomo um igual perante seus pares: além do que, percebe o imenso fascínioque a sociedade lhe consagra “por ser quem melhor encarna o sonho deliberdade do sujeito contemporâneo”, nas palavras de Contardo Calligaris, oque ainda alimenta seu narcisismo e lhe serve de trunfo nas suas relaçõessociais.

Para que sua travessia tenha êxito é necessário que, por alguma via,a sociedade ofereça elementos simbólicos que possam referenciá-lo nestemomento de grande perigo real, simbólico e imaginário, para todos, já que aviolência das pulsões desorganizadas encontra-se com a violência de umasociedade em crise de valores. A escola, enquanto instituição humana volta-da para a cultura, tem a tarefa precípua de veicular estes elementos. A rela-ção professor-aluno constitui-se em palco privilegiado para este encontrosempre que o professor não sucumbir à tentação do doutrinamento ou, pelocontrário, da estéril indiferença, e suportar a sustentação de um lugar onde ojovem sujeito possa introduzir sua marca singular nos valores e nos objetosdo conhecimento transmitidos, reinventando-os a seu modo, desde que de-sejar possa.

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belo dia, ao serem abordados por um pedinte que é visto como tendo aspectoameaçador, matam-no, sem que uma palavra alí faça a mediação dessa ação.Crianças que são contidas nas escolas por estarem brigando e quando conse-guem se explicar, dizem que estavam “brincando de lutinha”.

Então, temos que a possibilidade de não sucumbir à barbárie, passapor valorizar a palavra, tanto do lado de quem supostamente pratica um ato,quanto do lado de quem o interpreta. Sabemos que a violência existe, tododia ela mostra sua face, mas queixar-se dela e pedir mais segurança nãotem mudado as coisas. Aqueles que somos comprometidos com a educa-ção temos o dever de refletir sobre isso, para buscar novas saídas, para nãoficarmos na posição de impotência em que essa atitude queixosa nos lança.

Do ponto de vista da identificação das causas da violência, encontra-mos explicações que apontam à falta de limites nas crianças e jovens e,imediatamente, esse raciocínio leva à conclusão de que se falta limite éporque a função de autoridade está falhando em algum lugar. Perguntamos,então, quem é o agente da autoridade em nossa sociedade? Como estafunção se constitui no âmbito público e no âmbito privado?

Em nossa organização social atual, a Escola é a primeira instânciado mundo público da qual a criança faz parte. Mas isto não foi sempre as-sim, Philippe Ariès descobriu que o reconhecimento da infância como umaetapa diferenciada da vida adulta foi responsável pela “...crescente percep-ção da família como um grupo natural que abriga uma classe especial deseres – as crianças – fixou limites mais abrangentes na questão da expres-são pública” (SENNET,1976, p.120). O interessante foi que a gênese dalimitação da vida pública aos adultos, em parte provém da gradual distinçãoentre as formas de jogos infantis e jogos adultos. Por volta do séc.XVIII, osacontecimentos dos centros cosmopolitas começaram a ser refletidos pelaspessoas ditas maduras, isto é, a reflexão sobre a vida pública implicavacomplexidade, postura e habituais encontros com estranhos, coisa que sóos adultos poderiam suportar, segundo escreve SENNET(1976).

Essas mudanças, então, trouxeram alterações quanto à responsabili-dade da família. O reconhecimento das fragilidades “naturais “da criança

AUTORIDADE E VIOLÊNCIA

Roséli Maria Olabarriaga Cabistani

Pretendemos pensar como se situa a queixa do incremento da violên-cia na escola hoje. Isto implica analisar as condições de sua enun-ciação, coisa que tem sido negligenciada ao tomarmos esse enuncia-

do como verdadeiro, demandando, então, medidas para acabar com tal esta-do de coisas. Via de regra, quando a questão se coloca, imediatamentechegamos a conclusão de que falta lei, ou falta “pai”. Hoje, vamos encontrarorganizações familiares diversificadas. Os modelos de família tradicionaisapresentam-se ampliados, em muitas dessas famílias, de fato, falta o pai.Mas será que essa constatação é suficiente para justificar ou violência?Queremos sustentar aqui o conceito de função, que permite pensar osreferenciais necessários à constituição psíquica, mais além de uma confor-mação de grupo familiar “adequado”. Se trabalhamos com o conceito defunção, também podemos refletir quais as funções que a escola é chamada aocupar e quais os efeitos sociais possíveis do atendimento dessa demanda.

***

Agressividade e violência são temas recorrentes no âmbito da educa-ção, os quais, muitas vezes, tomamos como equivalentes. Para a Psicaná-lise, a agressividade é constitutiva de nosso processo de estruturação subje-tiva primária e uma parte dela acompanha e preside nossa vida , isto é, asarticulações imaginárias e simbólicas que permitem situarmo-nos no mun-do. As fronteiras entre o que denominamos agressividade ou violência po-dem ser tênues, dependendo dos efeitos que os atos geram no outro. Comoseres de linguagem, interpretamos a realidade e, com freqüência, o que predo-mina é o imaginário, terreno sede de nossas ilusões cotidianas. São inúmerosos exemplos de passagens ao ato violento, quando a reação do outro é tomadacomo risco à própria integridade. Sujeitos que nunca praticaram um crime e um

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instâncias e atores. Se essa mesma sociedade muda, no sentido de queoutros laços sociais se constituem, a função de autoridade também muda,ou circula, podemos dizer mais apropriadamente.

Uma pesquisa realizada em 1998 pela Datafolha, sobre o perfil dafamília brasileira, traz dados muito significativos, que nos permitem avançarem relação a essa análise.

No que diz respeito à estrutura, a pesquisa mostra que a organizaçãobásica da família brasileira segue sendo a nuclear (pai, mãe e filhos), masesse modelo vem perdendo espaço para outro modelo, o matrifocal (filhosque moram apenas com as mães). Para os entrevistados, independente danatureza dos laços que a determina, a família é a instituição social maispresente na vida das pessoas. Apresenta-se cada vez mais mutifacetada,onde aumenta o número de grupos familiares diferentes da estrutura tradici-onal: os casados sem filhos, os solteiros com filhos, os solteiros com filhosque moram com os pais, os separados, ou viúvos com filhos, que constituiramnovos casamentos ou não.

Outro dado importante é o de que a mãe assumiu papéis que eramtradicionalmente exercidos pelo pai, como por exemplo prover o sustento dafamília. Houve de fato uma redução do papel do pai na família, e esse incor-porou outras responsabilidades, porém são atividades de caráter mais lúdico.Os pais fazem atividades de lazer com as crianças e até compras, mas nãolavam roupas, nem ajudam os filhos com a lição de casa. Isto significa queas tarefas de caráter mais privado continuam sendo realizadas pelas mães.Estas, além de serem identificadas como mais próximas dos filhos, de abarcarnovos papéis na vida famíliar, também detêm um certo poder de fazer valer asregras e princípios da casa. Porém, um dado bastante significativo na pes-quisa mostra que o pai é a segunda instância na criação dos filhos, isto é,quando as questões mais difíceis não são resolvidas na primeira instância(mãe), entra o pai, a segunda instância. Sabe-se que no nível da justiça, asegunda instância é a que resolve as disputas que perduram após uma deci-são em primeira instância. Esse é um indicador da autoridade paterna, queprecipitadamente poderíamos interpretar como uma função em declínio.

trouxe como conseqüência uma valorização maior da família também, e daparticipação de ambos os pais da criança. Era uma recomendação pediátricaque as mulheres cuidassem elas mesmas de seus bebês e que os pais nãodelegassem sua autoridade a colégios.

O dicionário Aurélio (p.204) define autoridade de diversas maneiras.Selecionei aquelas que penso poder articular a esta reflexão: 1- Direito oupoder de se fazer obedecer, de dar ordens, de tomar decisões, de agir.... 2-Aquele que tem por encargo fazer respeitar as leis, representante do poderpúblico. 3- Influência, prestígio, crédito. 4- Indivíduo de competência indiscu-tível em determinado assunto.

Com a valorização da família enquanto instituição privada, o pai emnossa civilização passou a ocupar a função de autoridade junto aos filhos,isto é, aquele que faz valer a lei, que representa o público no espaço privadoda família, responsável pela formação da moralidade inicial da criança antesque ela enfrente a socialização secundária representada pela Escola, ou emtermos psicanalíticos, o responsável pela castração.

Em Freud, a teoria do Complexo de Édipo remete ao lugar do pai, oumelhor dizendo, a função de autoridade se confunde com a temática do pai,situando como palco privilegiado o drama edípico, conforme diz COSTA(2000,p.87). Lacan chama “Nome-do-pai” a função simbólica paterna e afirma que“...se o nome do pai assegura essa função,

Em nossa civilização, isso é decorrente da influência do monoteísmo,nada tendo de obrigatório nem de universal. O mito edípico é ativo no incons-ciente do indivídio ocidental, masculino ou feminino, porém, em outras civili-zações, as africanas por exemplo, o Édipo poderá ser nada mais do que “umpormenor, em um mito imenso”, outras estruturas simbólicas encontrando-se nele, em posição de promover a castração.” CHEMAMA(1995, p.57).

Este recorrido permite afirmar que quando nossa cultura denuncia afalta de limites, a agressivização das relações sociais e a própria violência,identificando como causa a ausência de autoridade paterna, ela está apenasinterpretando um mal estar desde o mito edípico, sem considerar que a auto-ridade, enquanto uma função simbólica, pode ser ocupada por diferentes

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– As mudanças que vêm acontecendo conosco (família) geraram mui-ta confusão, não sabemos mais quem é o porta-voz do sistema de regras(TANIS,1998, in: pesquisa Datafolha). Vocês (Escola) não poderiam ajudar aaplacar essa confusão, não poderiam nos dizer como ser pais eficientespara nossos filhos, já que durante tanto tempo disseram que fazíamos tudoerrado?

– Se não sabemos mais o que fazer, a Escola que temos no nossoimaginário, fonte do saber e da transmissão da cultura entre gerações, devesaber. Respondam então: Como fazemos nossos filhos vestirem seus casa-cos? Vocês ensinaram nossos pais, e ensinaram os pais de nossos pais,por que não querem ensinar a nós e a nossos filhos? Quando eles (crianças)perguntam como fazer algo, respondem: façam do jeito de vocês.

Para o que vocês estão aqui afinal de contas?

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

CHEMAMA, Roland (org.). Dicionário de psicanálise. Tradução Francisco FrankeSettineri – Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1995.

COSTA, Ana Maria Medeiros da. Autoridade e legitimidade. In : KHEL, Maria Rita.et al. Função Fraterna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.

FERREIRA, Aurélio B. H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:Nova Fronteira S. A. 1986. 2a ed. Revista e aumentada.

PAULINO, Mauro Francisco. et al. Família. Pesquisa Datafolha. Jornal Folha deSão Paulo, São Paulo, 20 setembro 1998. Caderno Especial A.

Gostaria de trazer muitos outros dados que nos ajudariam a pensar,mas por hora nos bastam esses.

A instituição escolar é um espaço privilegiado onde essas mudançasnos papéis sociais dentro da família, se fazem sentir. Será que temos hojeuma compreensão aprofundada dessas mudanças, no campo educacional?Tendo a pensar que ainda estamos buscando explicações reducionistas epsicologizantes para atos que nos causam inquietude e que desafiam nossaignorância.

Escutei reclamações de professoras de séries iniciais ao relatar queos pais lhes pedem para exercer funções que seriam deles. Exemplos: “–Um pai teve a capacidade de pedir que eu fizesse seu filho vestir o casaco,porque ele não tinha conseguido” ou “–...pedem que a gente recomende queos filhos durmam mais cedo, porque eles não conseguem se fazer obedecer,mas nós não somos pais, somos professores”.

Vimos anteriormente que nos séc. XVII e XVIII a Escola tinha suafunção bastante demarcada enquanto espaço público, mas a modernidade,com o fortalecimento do individualismo, foi trazendo para o campo educacio-nal as questões que antes eram da esfera privada. Qualquer dificuldade es-colar era analisada do ponto de vista de um fracasso pessoal do aluno, cujascausas eram rapidamente buscadas na família. Dessa forma, as fronteirasentre escola e família foram atenuando-se e hoje, quando escutamos asdemandas familiares dirigidas à Escola, devemos ir mais além do aparentepedido que se apresenta. Os pais pedem autoridade por parte da escola.Retomando uma das definições de autoridade abordadas anteriormente, nocaso da escola: instituição de competência indiscutível em determinado as-sunto. Transmitir conhecimentos, é a isso que a escola se destina? Educarcertamente é a resposta, e educar não se reduz a transmitir conhecimentos.Em que, então, se sustenta a autoridade da Escola? Na tradição, a Escolasustentava-se na experiência, no testemunho, que lhe conferiam reconheci-mento.

Será muito precipitado interpretar a demanda familiar supondo o se-guinte enunciado subjacente?

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como modelo de vida, o que vem se intensificando nas últimas décadas. Poroutro lado, numa tentativa de retardar a velhice, a adolescência tornou-seuma espécie de ideal e imperativo a ser preservado e obedecido, tanto físicocomo psicológico. Não se aspira mais à autoridade e à sabedoria da velhice– a própria autoridade passou a ser questionada – mas a velhice é algo a serpostergado sob as vestes da eterna juventude adolescente.

Essa “cultura” adolescente, integrada à sociedade capitalista, funcio-na segundo a lei do mercado, voltada para a produção e o consumo deprodutos que visam realizar os desejos de toda a sociedade.

Neste novo cenário sociocultural, as identidades não mais se organi-zam e se configuram em torno de ideais caros à modernidade tais como acidadania, mas sob o império de um novo senhor: o consumo. Nesta pers-pectiva, o adolescente torna-se um expoente, assumindo um lugar privilegia-do como representante e modelo de consumo a ser seguido.

2. Indiferença às questões sociais:Surge uma nova imagem de cidadão, que assume comportamentos

conectados mais pelo imaginário do consumo e menos pelos desejos co-munitários. Perde-se o ideal coletivo e assume-se uma postura narcísica eindividual, que por sua vez acaba por atuar como um modelo homogenizante.Esta nova geração não carrega sonhos de igualdade social, mas de bemestar individual.

O posicionamento reivindicatório do adolescente, de maneira geral,deixou de ter as características das reivindicações dos anos 70 e agora podeser lido como uma tentativa de defender-se de um impasse, na realidadesem buscar sua resolução, como uma posição produzida por um projetonarcisista em busca de auto-satisfação, cuja extensão social não vai alémdos amigos.

3. Valorização da liberdade e dos direitos:Numa sociedade baseada na expressão e na afirmação da personali-

dade individual, a obrigação junto aos pais perde irremediavelmente sua for-

O PAPEL SOCIAL DO ALUNOADOLESCENTE E A FUNÇÃO DA ESCOLA1

Ana Sílvia Espig

Nosso interesse pelo adolescente transformou-se em reflexão e pes-quisa, a partir dos trabalhos que temos desenvolvido desde a nossadissertação de mestrado, fazendo confluir a prática clínica psicana-

lítica com a explicitação do papel social do adolescente. O grande paradoxoque temos encontrado de contínuo é que, aos adolescentes, estão ligadasas maiores preocupações sociais – aumento da delinqüência, da violência,do uso de drogas, prostituição, a dificuldade em ter limites – e o estilo devida do adolescente como a possibilidade da realização dos sonhos do adulto.

Como a maioria dos pesquisadores sobre a adolescência, nós tam-bém acreditávamos conhecer o adolescente. A literatura especializada nosfazia acreditar numa etapa pré-estabelecida da vida, com data de entrada ede saída, outorgando características variadas e previsíveis, comportamentosjustificados devido à faixa etária, isto é, as crises e/ou conflitos apresenta-dos eram aceitos como sinônimos da idade. Hoje, no entanto, a adolescên-cia nos parece mais uma passagem necessária e menos uma questão deidade do que de atitude.

Aqui pretendemos apresentar cinco aspectos essenciais, que ocor-rem de maneira integrada na vida do adolescente (e que dizem respeito aoseu papel social), que em muito nos tem ajudado a pensar o nosso tema,para chegarmos a elaborar algumas idéias sobre o papel do aluno adoles-cente e a função da escola.

1. O adolescente como modelo social e consumidor:O adolescente passou a ter um papel forte quanto ao estabelecimento

da moda e do mercado, tornando-se modelo e consumidor, lançando produ-tos e estilo de vida. Estamos em uma sociedade que toma o adolescente

1 Este texto foi a base para a palestra proferida no Fórum Mundial de Educação.

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Esta mesma necessidade de reconhecimento deixa claro essa mistu-ra de rebeldia e dependência que vemos nos adolescentes. O adolescentepromove uma luta consigo mesmo, na tentativa de sentir-se real, a luta paraestabelecer uma identidade pessoal, a luta para viver o que deve ser vividosem ter de conformar-se a um papel pré-estabelecido.

5.Identificação entre pares:Os modelos de identificação anteriormente apresentados pela família

e pelo padrão de maturidade adulta foram transferidos para outro lugar quepode ser descartado sem culpa. Os referenciais tornam-se os próprios cole-gas de grupo, intercambiáveis, ou os ídolos fabricados continuamente pelaindústria cultural. Os substitutos da figura paterna, portanto, se encontramesfacelados no dia-a-dia destes adolescentes e pouco tem a ver com o re-curso à tradição ou à genealogia. Não há mais um modelo de vida adultapara o adolescente, mas ele próprio tornou-se um modelo seguido pelosadultos.

O PAPEL DO ALUNO ADOLESCENTENa escola, o professor como o lugar daquele que sabe, perdeu seu

poder, e contra isto os professores protestam. A escola pouco parece terevoluído nas últimas décadas e encontra-se ameaçada de ser ultrapassada.Os adolescentes, principalmente, e com o advento das tecnologias avança-das de comunicação, têm condições de poder-saber mais do que o próprioprofessor. Aprender parece ter se tornado algo independente da escola e doprofessor e cada vez é mais confusa no imaginário social a diferença entreinformação e educação.

As chamadas novas tecnologias vieram para ficar e não são um mo-dismo como ainda insistem alguns. Elas têm quebrado paradigmas, masainda não encontraram um paradigma próprio, e vivem por entre adaptaçõese improvisos. Talvez, elas deixem de ser tão interessantes e cativem menosos alunos quando começarem a ser utilizadas massivameste como recursonas escolas. Mas o que temos percebido é que elas têm aberto um universo

ça, cada indivíduo se reconhece livre e vive em primeiro lugar para si mesmo.Além da valorização da liberdade individual, o adolescente deve buscar a suafelicidade, obtendo-a através da liberdade. O sacrifício de si, em benefíciodos desejos dos pais, não tem eco no social. E os pais sentem-se frágeisdiante da necessidade de impor obrigações, as mesmas às quais foramsubmetidos no seu próprio passado.

A liberdade individual torna-se uma faca de dois gumes. Nas matériasligadas à escolha profissional, ao relacionamento afetivo e sexual, à escolhade residência, ao tipo de educação dos filhos, cada um tem que decidir deacordo com sua liberdade e arcar sozinho pelos resultados.

Na cultura individualista, se repudia a retórica do dever e se consa-gram os direitos individuais, que não excluem as reivindicações intransigen-tes. É o privilégio da construção individual de modelos éticos pelo própriosujeito que se constitui como sujeito, e onde predominam os direitos e osdeveres são minimalistas.

4. Necessidade de autoridade:Há uma tendência dos pais de não impor uma autoridade por não

mais acreditarem no seu valor. Limites tornaram-se tabus e, de algum modo,as figuras maternas e paternas acabam por se confundir ou se anular. Aautoridade do adulto tem um significado de reconhecimento para o adoles-cente, na medida em que o adulto ao assumir este lugar perante o adoles-cente, postula e reconhece sua capacidade e, mais importante ainda, a suaexistência.

O que podemos verificar, seja ao nível da pesquisa empírica, seja aonível da escuta clínica, são adolescentes abandonados sob a face dasuperproteção durante a infância, não encontrando na adolescência as ima-gens da Mãe autoridade envolvente e o Pai autoridade ordenadora. Em seulugar, os pais aparecem como irmãos mais velhos fragilizados. O adolescen-te acaba por reivindicar este lugar de autoridade, seja pedindo proteção elimites, seja sob a forma nefasta da participação em grupos autoritários taiscomo se tem verificado em alguns grupos de extrema-direita.

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ganha outro sentido na vida do adolescente. Cabe, então, ao adulto trabalhareste novo sentido. Diante da pergunta pelo sentido da escola na vida doadolescente, ficamos com uma tentativa de resposta que se esvai na própriadúvida.

plural e heterogêneo para os alunos, universo nem mesmo sonhado pelosprofessores mais velhos quando estes eram crianças, e que esta aberturatem rompido com as barreiras impostas pelos currículos escolares. É bemprovável que, hoje, seja possível aprender mais fora da escola do que naescola.

Os educadores precisam reconhecer e mobilizar-se frente às mudan-ças cada vez mais rápidas e a explosão de novas informações. Afirma-seque a base de informações do mundo dobra a cada cinco anos, ao mesmotempo em que elas se encontram prontamente acessíveis em bibliotecas eem recursos de multimídia. Isto é demasiado para que qualquer pessoa sefamiliarize com tudo. Ninguém precisa saber tanto a respeito de tudo. Tor-nou-se mais importante promover a habilidade de pensar. Pensar e interagir.Isto se torna a função da educação e da aprendizagem.

No caso da adolescência, pensamos que a aprendizagem do tipo só-cio-afetivo deve ser privilegiada, formalmente, frente às aprendizagenscognitivas. O discurso do adulto deve, portanto, dar conta da formação, trans-mitir valores e referências, ser um valor e referência, estruturar relações,ensinar a sonhar. O professor não necessita identificar-se com o aluno, agire pensar como seus alunos – como temos verificado através das queixas deadolescentes – mas ele tem que ocupar este lugar de professor.

O adolescente busca nos adultos uma sincronia entre a fala e a ação.Na medida em que as regras existentes não são seguidas pelos professorescomo cobrá-las dos alunos? Neste contexto, o direito à confusão, ou aonomeado “desinteresse” presente nas avaliações docentes, torna-se com-preensível.

O maior entrave para a educação, a causa do mal existente na educa-ção, é buscada, geralmente, num lugar em que ela não se encontra, porqueenquanto se buscam fórmulas e métodos pedagógicos melhores, disfarça-mos a tragédia de um corpo discente que não quer mais exercer seu ofícionem ocupar seu lugar.

Ora, na medida em que o adolescente encontra fora da escola espa-ços de aprendizagem com os quais se identifica mais, o espaço da escola

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Esperança e frustração. Estas foram as palavras que me ocorreramna noite do dia 24 de Outubro, durante a abertura do Fórum Mundial daEducação, ocorrida em um Gigantinho superlotado de educadores e correlatos.Entrevia-se, dentre os passantes, uma categoria sofrida, mas esperançosa,como que em busca de reconhecimento. Cena que, de certa forma, não éinédita, pelo contrário, já é quase praxe os ginásios e auditórios lotados emeventos de educação, parecendo com um formigueiro humano. Nota-se des-ta maneira que os educadores se movimentam em busca de supostas refe-rências de como melhor desenvolver seu trabalho. Este evento, desdobra-mento do Fórum Social Mundial (Um Outro Mundo é Possível), mesmo quefazendo parte da série, parecia-me estar em um lugar especial.

Destaco dois momentos que foram particularmente tocantes e quepodem auxiliar a perceber o que quero apontar:

1º) Na abertura, se apresenta um grupo de dança, constituído das“crianças de uma escola para as classes populares”. Passada a músicaerudita de praxe, se destaca uma dançarina, sambando, sorriso aberto, reve-lando-se hábil passista, com uma vivacidade realmente impressionante. Se-gue a apresentação até quando o grupo todo, envolvendo muitos dos queestavam nas arquibancadas, dançam e cantam o “viver é não ter a vergonhade ser feliz”, de Gonzaguinha;

2º) É feita a proposta da biblioteca dos povos. Cada participante, emtese de diversos lugares do mundo, é instado a doar um livro, sendo evocadoo espírito da biblioteca universal de Alexandria. São feitas várias doações notranscorrer do fórum (evidentemente também doamos algumas publicaçõesda APPOA). Cabe destacar a doação inaugural – o manuscrito original de“Pedagogia do Oprimido” (independentemente da maior ou menor simpatiateórica as teses propostas na obra, isso indica que Paulo Freire teria conse-guido transmitir aos seus herdeiros, as condições de perceber a dimensãoda aposta que se coloca).

Diria que por aí, então, surgiu a inexorável ligação que a educaçãotem com os ideais e com a utopia. Ideais relativos a um vir-a-ser; ideais aserem resgatados daquilo que a humanidade construiu em seus milênios de

ENTRE A ESPERANÇA E A FRUSTRAÇÃO

Carlos Henrique Kessler

Não trarei propriamente o texto apresentado durante o painel propostopara o Fórum Mundial de Educação, uma vez que o argumento quepara lá levei foi já publicado na revista nº 16 da APPOA. Achei que a

proposta que fizera do “professor como agente/agitador cultural” seria perti-nente para o Fórum, que possuía como subtítulo “A educação em um mundoglobalizado”. Confesso que tinha uma certa curiosidade sobre a possívelacolhida que ela poderia ter, como provocação que é. Cabe apenas destacarque, talvez por que se tratava de um encontro de professores, busquei sinte-tizar a idéia através de uma fórmula, evocando aquelas que se estuda emmatemática no 2º grau:

∃ x / x ∈ {professores} ⇔ x ∈ {professores}, x ≡ “agitador cultural”

(Ou seja: existe x, tal que x pertence ao conjunto dos professores, se e somentese, para todo x pertencente ao conjunto dos professores, x é idêntico a “agitadorcultural”)

Sendo assim que, apenas na medida em que o professor não se tomecomo um burocrata dos conteúdos, mas como alguém que busca ampliar ointeresse e o campo da cultura, é que ele terá uma chance de ser levado emconsideração por seus alunos e então conseguir ensinar, mesmo que sejaaquele “seu conteúdo”. Mas que educar, certamente, vai bem além disto.Não vou me estender novamente sobre o assunto, quem por ventura tivercuriosidade de acompanhar como chego aí, remeto ao texto referido, ondeos desdobramentos mínimos foram feitos.

Penso ser oportuno, cumprindo de certa forma minha função de dele-gado da Associação, tecer alguns comentários, compartilhando algumasimpressões surgidas durante o acompanhamento do evento com os demaisinteressados pelo que ali se passou.

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desencobriu é que o material com que a educação efetivamente trabalha sãoou deveriam ser os ideais, que norteiam nossa existência e que sãoconstitutivos de nossa(s) subjetividade(s). Voltaria a minha proposição inici-al, aquela que retomei na mesa proposta pela Associação, pois a “matéria”,o “conteúdo”, seja do ensino, ou mais precisamente da educação, não seriaa ortografia, a álgebra, a análise sintática. Isso pode até vir “a mais”, mesmoque pragmaticamente possibilite concretizar os prédios e demais constru-ções que a humanidade tem produzido. Por aí, nada mais adequado queeste fórum, uma aposta no processo civilizatório. Uma outra via, tivemosuma demonstração a 11 de setembro, é a do obscurantismo.

Nota final quanto a babel dos trabalhos, que infelizmente se realizou.Todos falando ao mesmo tempo, sem se escutar, uma vez que ficou reserva-do apenas um turno para apresentação de trabalhos propostos por aquelesque não fossem os conferencistas/painelistas escolhidos pela organizaçãocentralizada. Há muito a ser feito. Voltamos às utopias.

existência. Certamente isso já tinha sido lido, escutado, pensado, seja porfontes psicanalíticas ou pedagógicas. Mas, neste momento, tomou uma di-mensão distinta, com uma consistência até então inédita.

Freud, e sua já batida afirmação da “Educação impossível”, apontavapara isto. Eis que agora estávamos diante de um evento em que esta se uniaa outro impossível freudiano, a política. Bem, e acrescentamos também ali o3º impossível freudiano, uma vez que estávamos presentes na condição deintegrantes de uma instituição psicanalítica. Seria de se perguntar que ope-ração pretenderíamos produzir neste fórum? Que fazer com um triplo impos-sível?

Cabe aqui uma lembrança, que marcou o então pequeno aluno Sartre(vide “As Palavras”) confrontado à estratégia/postulado/invenção dos mate-máticos para resolver um cálculo impossível. Mesmo elemento, aliás, queLacan veio a recorrer buscando dar conta do traço unário. Procedem a arbi-tragem do “número imaginário”, que seria aquele número que, multiplicadopor ele mesmo (como todos sabem, “menos com menos dá mais”), resulta-ria em -1 (donde i = √-1). Condição que é indispensável para que se consigaconstruir pontes, sobre as quais passam pessoas, carros, trens. Criandocaminhos e, portanto, ligando lugares antes impossíveis de serem transpos-tos. Provavelmente também para que se construam arquibancadas e ginási-os como aquele onde ocorreu o FME. Sólidas construções que, para serempossíveis, precisam ser erigidas sobre um número que não existe!

Assim, se de ideais é que se constitui a matéria prima com a qual oeducador trabalha, bem como se este é o combustível que o move e por aíele é enganchado, pode-se talvez vislumbrar o porquê esta categoria se apre-senta sofrida, mas que ao mesmo tempo insiste, não se abate/não desiste.Apenas que não seria demais se os professores, mesmo sabendo que preci-sam sempre ir em busca do ideal, tivessem presente que nunca irão encontrá-los enquanto tais, eventualmente, num relance ou por seus efeitos.

Esse, talvez, o sentimento despertado no FME. Pois se educaçãoremete a impossíveis, é na direção em que as utopias (“não lugares” queservem de referência), os ideais o são. O que então já estava aí, mas que se

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Não nos admira que, cada vez mais, recebamos em nossos consultó-rios crianças e adolescentes que resistem às proposições escolares com oargumento de que não vão usar isso em sua vida profissional. “Para quêaprender história, eu quero mesmo é ser administrador, não vou usar isso nomeu trabalho”, dizia um adolescente cursando o primeiro ano do segundograu. O absurdo de seu próprio argumento, que uma vez examinado interna-mente não se sustenta, pelo simples fato de que os processos históricostem laço direto com as modalidades administrativas, pode nos fazer tomá-locomo uma denúncia de algo, muito mais extenso do que aquilo que adentrao cotidiano escolar: nossa impossibilidade de dar lugar àquilo que, num pri-meiro momento, não se mostre útil aos objetivos produtivos. Ocupados queestivemos com o tema do luto durante este ano que passou, pudemos cons-tatar e desdobrar as conseqüências de um estreitamento do tempo, muitasvezes chegando a sua anulação, dedicado a este trabalho. A utilidade emtermos da produção dos objetos é argumento conclusivo e suficiente paraque se decida por uma coisa e não por outra.

Como forma de incluir uma diferença nesta proposição, a da utilidade, oFórum foi unânime: é preciso ser intransigente no que se refere a não tomar aEducação desde uma perspectiva custo/benefício. A Educação precisa serpensada fora de um sentido de utilidade, precisa ser desalojada deste lugar.

A experiência que tivemos no Fórum, em muitos momentos comovente,de assistirmos a alunos, em sua maioria de escolas públicas, nas apresen-tações que abriam os momentos de trabalho, inclui-se de forma inelutávelnesta perspectiva. Na verdade, penso que esta divisão apresentação dosalunos/trabalho dos conferencistas é falsa, pois, ao assistirmos os alunos,experienciávamos os efeitos de uma Educação cujo fim primeiro não é aprodução do útil. Uma Educação que possibilita, a cada uma das crianças,tomar a palavra, expressando-se através da dança e da música. Creio que ainclusão dos pequenos e dos adolescentes em uma condição de fala, de dara ver sua a produção com o efeito de reconhecimento que disto derivou, foium dos pontos altos do trabalho.

A cada grande atividade – as conferências aconteceram no Gigantinhoe as mesas simultâneas em locais como o salão de Atos da UFRGS ou

ALGUMAS IMPRESSÕES SOBREO FÓRUM MUNDIAL DE EDUCAÇÃO

Simone Moschen Rickes

Durante quatro dias, Porto Alegre viveu clima de cidade cosmopolita,abrigando pessoas de vários estados e países, dispostas a pensar aEducação como um bem público. Começamos a aquecer os moto-

res para a segunda edição do Fórum Social Mundial, que terá início no finalde janeiro de 2002. Aliás, a iniciativa do Fórum Mundial de Educação foimotivada pelo desejo de dar lugar a algo que pareceu, a muitos, não terrecebido a necessária atenção durante o primeiro FSM. Objetivou-se fazertrabalhar algo que restou como uma lacuna, ao mesmo tempo que lançar esubsidiar novos debates que poderão encontrar um segundo tempo de elabo-ração em janeiro.

As críticas a uma Educação tecnocrática e mercantilista, voltada unicamen-te para as necessidades do mercado perpassaram o encontro. Dentro destaperspectiva, a escola tem se direcionado no sentido de instrumentalizar, cadavez mais, os indivíduos para atender as demandas de dito mercado. Esquece-se que a própria demanda é algo que deriva da posição que a palavra ocupa,que ela não é um jacaré perene, de boca aberta, disposto a abocanhar o quelhe venha pela frente. Não é de se estranhar que a política de investimentos doBanco Mundial e do BID para a América Latina e outros países, ditos emdesenvolvimento, seja a de incentivar e investir na Educação Básica. EducaçãoBásica para atender às expectativas dos mercados. Ao contrário, nos países ditosdesenvolvidos, a Educação Secundária e Superior recebe investimentos maciços.

Na perspectiva de uma política de Educação Básica, vemos a escolacada vez mais reduzir o espaço para aquilo que não demonstra utilidadedireta na formação profissional, – básica, frisemos. Os espaços para a po-esia, a arte, a filosofia, a literatura diminuíram a olhos vistos nos últimosanos, chegando, em algumas escolas, à extinção. São disciplinas que nãosão decisivas na hora do vestibular.

RICKES, S. M. Algumas impressões sobre...

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mento. Impossíveis sempre fizeram parte da Educação, não foi à toa queFreud a tomou desde esta perspectiva. Hoje, aos impossíveis que habitam ocotidiano deste campo, agregou-se mais um: à escola se demanda que in-clua aqueles que a sociedade e o mercado acabam por excluir. É a escolaquem diz a seu aluno: “te esforça e triunfarás”, te esforça pois, ao fim e aocabo, receberás tua recompensa. Porém, na vida, as crianças e os adoles-centes se encontram com situações em que “aprendem” que devem tomarpara si o que puderem, pois, se não o fizerem, nada lhes será dado. A escolapede à criança que abandone a lógica do mundo lá fora, ofertando-lhe umoutro horizonte que não pode sustentar. Um horizonte que, mais do que nãopoder sustentar, não se materializa nem mesmo para os seus professores,tão desvalidos que estão em sua autoridade, ou ainda em seu poder econô-mico. Esta mensagem que se apresenta quase como uma recusa –verleugnung –, na medida em que vela aquilo que todos testemunham, temcomo um dos seus efeitos a violência que se observa contra a própria esco-la. Violência que expressa a indignação compartilhada pelo engodo veicula-do na promessa de um futuro triunfante.

A última conferência do Fórum foi aberta por um grupo de jovens deSão Paulo que, em sua apresentação, fizeram questão de denominar-secomo habitando a periferia. Em suas músicas cantavam seu cotidiano dediscriminação. Traziam à dimensão da palavra as agruras do dia-a-dia naperiferia. A opção por esse não apagamento das experiências, bem como dapertença – são, como dizem, jovens da periferia – mas, ao contrário, pordesdobrar meios de simbolização das mesmas através da música, atualizauma posição contrária a da recusa, contrária a da servilidade à república doútil.

Nessa mesma esteira trilhou o trabalho, que alguns tiveram o prazerde testemunhar no Primeiro Fórum Social Mundial, apresentado por Esme-ralda Ortiz, que durante aquele encontro foi chamada a falar sobre sua expe-riência de escrita que redundou na publicação de um livro em que testemu-nha de sua trajetória de menina de rua. Escrita que, segundo ela, possibili-tou-lhe uma outra saída que não a da vida, na medida em que não lhe impingiu

Auditório Araújo Viana – as crianças se apresentavam dançando, desde oballet clássico até o contemporâneo. Nesses momentos, entusiasmavam opúblico que, não raras vezes, acompanhou o espetáculo de pé, dançandoou, ainda, aplaudindo efusivamente. Aplauso que creio se dirigia não só aomomento de grande beleza, mas à esperança que com estes trabalhos se(re)fundava. A esperança de uma Educação que tome a formação profissio-nal como uma conseqüência e não como um fim em si. Esperança que caimuito bem com aquilo de que uma Educação se sustenta: uma aposta.

As apresentações dos meninos e meninas, em essência singelas,podem também nos fazer redimensionar a idealização que, em muitas dis-cussões, tem o efeito de produzir uma paralisia e não um relançamento dopercurso. Aquilo que se constitui como um horizonte de trabalho ideal, umtempo em que investimentos de grande porte seriam feitos na Educação, emque professores teriam sua atividade valorizada e bem remunerada, em queos currículos não mais responderiam exclusivamente às demandas do mer-cado, mas apostariam na formação total das crianças – o total aqui tem seupeso –, pode cair como uma bigorna sobre a cabeça dos que se ocupamcom a Educação, tornando qualquer iniciativa muito menor do que aquilo quese quer alcançar, transformando qualquer iniciativa em um passo inútil frenteao poderio dos interesses macro-econômicos, que ditam o compasso denossas vidas. Mas não é justamente disso que se trata, de não pautar osatos por sua utilidade, nem mesmo que seja a de finalmente alcançar oobjetivo de uma educação global? Trata-se de cindir o global, de macular ototal, de redimensionar o ideal como aquilo que constitui um horizonte inatin-gível, uma bússola a orientar nossos passos, e não uma imagem a qual ouestamos colados ou não valemos nada, ou triunfamos cruzando o ponto dechegada ou nada que façamos tem sentido. Trata-se, no vernáculo psicana-lítico, de fazer com que as propostas operem como ideal de eu e não comode eu ideal.

O encontro de milhares de educadores no Fórum – quinze mil –, tal-vez tenha sido um momento de refundar uma aposta. A aposta de que ummundo mais solidário é possível e de que a Educação tem aí seu papel.Papel que hoje se mostra atravessado por um impossível de difícil desdobra-

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“UMA ESCUTA ANALÍTICAEM UMA INSTITUIÇÃO ESCOLAR”

Carla Regina Cumiotto

Na travessia de um trabalho institucional, nos primeiros contatos écomum a instituição (normalmente representada pela diretora), nosperguntar: “Qual é a sua linha?, Qual a sua técnica de trabalho?”

E, ao respondermos que nossa linha de trabalho é a linha da escuta(deslizando o significante “linha” – linha de costurar, “costurar” as cadeiassignificantes que representam esta escola, linha telefônica, estabelecer umalinha de transferência com esta escola...), inúmeras vezes, recebemos comoretorno a seguinte pergunta: “Mas, como é escutar? Que efeitos esta escutapode trazer para o nosso trabalho?”

Entendemos que a escola tem razão em nos perguntar sobre o quefaremos a partir das queixas e do não aprendizado de seus alunos, dosprofessores descontentes, dos relatos de alunos agressivos, e que garantiaspodemos dar a ela que nosso trabalho trará efeitos no que está interessada,ou seja, no processo de ensino e aprendizagem. E o nosso lugar é o depoder escutar esta demanda de garantias e promessas, mas não responderpor esta via, ou seja, é preciso acolher a demanda sem atendê-la.

É necessário situar ainda, que entendemos a escola não como umainstituição abstrata, ou como um papel ideológico do Estado, e sim, comoum conjunto de significantes que falam da subjetividade da mesma, onde osprofessores, os pais, as crianças se fazem representantes destessignificantes. Quando estes significantes se sintomatizam, a escola sofre, ea partir de seus sofrimentos e queixas, sempre singulares, é que somosconvocados a intervir. E, uma das especificidades do lugar do psicanalistaestá na posição de ignorância que ele se coloca diante do que faz verdadei-ramente a escola sofrer, ou seja, tomamos o sofrimento como um significante,algo que só teremos notícia, quando este fizer cadeia e se articular comoutros significantes, outras representações.

a necessidade de recalcar sua experiência, mas, ao contrário, permitiuinscrevê-la escrevendo-a.

Quanto ao lugar do inútil, da sua centralidade em nossa humanização,a Psicanálise tem muito a dizer. Quem sabe não possa ser essa uma dasvias de nossa contribuição neste processo de construção de uma Educaçãopara um mundo mais solidário.

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mais baixo do que as outras?” Será que é culpa dos pais, que não incentiva-ram as crianças a estudar? Para não falar dos esforços pedagógicos (méto-dos, diferentes técnicas motivacionais, seleção dos estímulos mais favorá-veis...) Somente no decorrer do trabalho com toda a escola, é que pudemosescutar que esse sintoma (a não aprendizagem), revelava a verdade dessaescola. É claro que o objetivo daqueles que a idealizaram ou ali trabalharam,não era apenas a alimentação, mas, a repetição do significante alimentaçãofoi fazendo cadeia, a ponto de fazer obstáculo à tarefa de aprendizagem, àrevelia do desejo e das boas intenções das pessoas envolvidas.

Este significante “alimentação” foi sendo “pescado”, nos seus retor-nos em diferentes situações, tais como: aniversários, trabalhos escolares ouem momentos informais, onde as crianças diziam: “Nossa escola é bonita etem comida boa”. E nos grupos de trabalho com professores, o significantealimentação aparecia em forma de queixa: “Parece que os alunos vêm aquisó para comer”.

Queixa esta que retornava nas entrevistas com os pais e de tantorepetir, os professores se deram conta do quanto este lugar da escola comoum lugar para comer insistia, e se propuseram a trabalhar o discurso tãoemitido pelos políticos, técnicos e idealizadores desta escola: “Saco vazionão para em pé!”, o que ao longo do trabalho, culminou em um semináriointerno, onde os professores convidaram os políticos, os pais e a comunida-de para discutirem os efeitos deste significante imperativo na escola, pro-pondo a seguinte reflexão: “Se saco vazio não para em pé, saco cheio tam-bém não anda!”. Tal apontamento visava alertar que para o sujeito, para oaprendente, não basta só comer, ele tem outras necessidades e desejos.

A partir destas produções, buscou-se um novo posicionamento frenteàs aprendizagens naquela escola; manteve-se o grupo de discussões, masos efeitos desse significantes continuam até hoje, e o que mudou foi a rela-ção da comunidade escolar em relação a esse significante.

Dessa forma, o trabalho da Psicanálise na escola vem apontar a exis-tência de algo – o inconsciente – que vem ultrapassar a boa vontade dospartícipes do processo ensino-aprendizagem, e se intrometer no planeja-

Em nossa prática, podemos constatar a existência de significantesfundadores que determinaram o modo de subjetivação, o modo do fazer-pedagógico desta escola.

Para ilustrar a forma como estas construções vão se delineando noespaço escolar, relataremos uma experiência em uma escola onde, na im-plantação de seu projeto, houve toda uma idealização de que esta escolaseria a melhor, a mais completa da cidade. Na época de sua implantação,muitas reuniões foram realizadas com a comunidade que iria ser atendidapor esta instituição, além do oferecimento de cursos de treinamento paraprofessores, recursos materiais e técnicos à disposição assim como umaexcelente estrutura física. A idealização em relação a esta escola apareciano discurso político e social, sob a forma: “A escola que viria dar segurançae alimentação aos filhos de pais trabalhadores”. E ao longo do trabalho,podemos constatar que um dos significantes fundadores desta escola era aalimentação, onde o discurso emitido pelos idealizadores da mesma (ospolíticos, os pedagogos), fez eco, fez cadeia, discurso que aparecia da se-guinte maneira: “A primeira tarefa pedagógica desta escola é a alimentação”,ou “saco vazio não para em pé”. Embora tais discursos sejam comuns emnosso país, no que se refere às políticas públicas educacionais, aqui preten-demos nos ater às particularidades do discurso desta escola, e como esteproduziu efeitos determinantes na sua prática pedagógica referente.

Por significantes fundadores, entendemos ser aquilo que aliado a ou-tros significantes, constituíram, subjetivaram esta escola, ou seja, há algoda rede simbólica que vai além da boa intenção, do conhecimento teórico edidático dos educadores e que determina o seu fazer pedagógico.

Nos interessa investigar, como estes significantes fundadores prepa-raram o campo de seus futuros sintomas; sem é claro, que os professoresdesta instituição se dessem conta. É interessante situar que quando fuichamada a intervir, dois anos após a implantação desta unidade escolar, jáhavia um mal estar em relação ao nível de aprendizagem, onde os pedagogosse perguntavam: “Mas como que nossa escola, possuindo todos os equipa-mentos, profissionais e especialistas, possui um nível de aprendizagem até

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RESENHA

HISTÓRIA DA INFÂNCIA SEM FIM

CORAZZA, Sandra Mara. História da Infância sem Fim.Ijuí, Editora UNIJUÍ, 2000, 392 p.

Em “História da infância sem fim”, obranascida de sua tese de doutorado emEducação, Sandra Corazza combina

uma pesquisa de ampla extensão com umareflexão consistente e rigorosa. Ao longo dotexto, somos convidados a percorrer com deta-lhe diversos territórios que compõe os discur-sos a respeito da criança, da infância e dainfantilidade. Pouco a pouco, vemos desenro-lar-se, através das páginas, a história das rela-ções de poder-saber e das formas de subjetivação do modo moderno de serinfantil.

Para trabalhar estas questões, a autora utiliza como instrumental te-órico a “caixa de ferramentas” produzida por Michel Foucault e selecionacomo coordenadas para orientar seu estudo as noções de dispositivo e dehistória do presente. Com esta última, diferencia-se das monótonas versõesda história que Foucault chamava de “histórias dos historiadores”, procuran-do privilegiar a problematização da singularidade dos acontecimentos, suasdescontinuidades e rupturas para configurar o “dispositivo de infantilidade”,considerado como um dos dispositivos concretos da história genealógica dosujeito ocidental.

Ao contar esta história, a autora delimita o aparecimento do “infantil”na modernidade, a partir das modificações operadas no campo das repre-sentações. À medida em que se descobriu limitado pela morte, pelo tempo epela contingência, o humano encontrou na figura da criança uma base paraperpetuar seu sonho de infinitude e fazer um desvio em relação ao “nada” desua existência. Nesse contexto, a pedagogia e as instituições escolarespassaram a delimitar um mundo à parte para as crianças, no qual elas esta-

mento das aulas, no rendimento e nos ideais comportamentais, almejadospelo professor e pelo aluno.

E a cada escola, a cada trabalho, é nossa escuta que colocamos àdisposição. Através da transferência a ser construída passo a passo e mantidaao longo do trabalho, nosso objetivo é permitir que as associações, as repre-sentações quanto ao fazer pedagógico de cada escola emerjam. Nossa es-cuta se dirige sobre o discurso da escola, sobre o seu mal estar, abrindo aqueixa, escutando o gozo que acompanha esta queixa, construindo saberespróximos à verdade de cada sujeito envolvido no fazer pedagógico de umadeterminada escola.

Se a aplicação da Psicanálise à Pedagogia (ou vice-versa) não é pos-sível, estamos certos de que é possível em escuta analítica do espaço esco-lar, entendendo que uma escola estás tramada numa rede simbólica de re-presentações, significantes fundadores, dos quais professores e os pais,querendo ou não serão representantes, havendo aí um espaço de interven-ção.

Quanto aos efeitos dessa intervenção – a especificidade de uma es-cuta analítica a uma instituição – quanto ao fenômeno transferencial e o seumanejo no trabalho com grupos de professores, quanto ao inconsciente comoalgo particular e de como tomá-lo num grupo são questões que permanecempara serem aprofundadas num outro momento, pois consideramos o traba-lho da psicanálise em instituições escolares uma intervenção ainda incipientee tímida nas suas elaborações e nos seus efeitos.

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RESENHA RESENHA

cia, já que os adultos e as crianças passam a ter acesso às mesmas infor-mações, principalmente, através da televisão. Como afirma a autora, “dianteda televisão, as crianças e os adultos são iguais, abastecem-se na mesmafonte de notícias e de entretenimento. A televisão faz com que termine adistinção historicamente construída: entre duas culturas, uma infantil, outraadulta, e entre dois tipos de conhecimento, como a leitura e a escrita haviampromulgado.” (p. 193-4) Com a televisão, encontramos uma aceleração dodesenvolvimento infantil e a uma infantilização do adulto, já que diante delaambos ficam situados em uma mesma posição. No interior deste contexto,a escola aparece como a instituição que trabalha a partir do pressuposto deque existem diferenças importantes entre a infância e a vida adulta e que, poreste motivo, os adultos têm coisas de valor para ensinar às crianças. Embo-ra a escola não possa diluir os efeitos da mídia, aparece como uma últimaforma de defesa contra o desaparecimento da infância.

A autora também analisa as relações entre os dispositivos de infan-tilidade e sexualidade, os quais combinam-se, produzindo a sexualizaçãodo infantil e a infantilização do sexo. Demonstra que todos os dispositivos desaber e poder relacionados à sexualidade, delimitados por Foucault, possu-em relações com o dispositivo de infantilidade, integrando e implicando emseus processos, o infantil.

No final do livro, precipitam-se cinco figuras de uma ética da infantilidade,as quais emergem como um “retrato” das figuras infantis que percorremos aolongo das páginas. Figuras que surgem como ponto de basta desta históriada infantilidade e cuja função é apontar alguma resposta à questão a respei-to do tempo presente desta história.

Gerson Smiech Pinho

riam isoladas e protegidas dos conflitos da vida dos adultos.Atualmente, tem-se falado do “fim da infância”: diz-se que a infância

vem se perdendo, que as crianças têm sido tratadas como adultos e que asociedade tem roubado sua possibilidade de ser infantil. Este fim apareceassociado à privação da educação escolar e a escolarização é apontadacomo um dos remédios para a perda da infância, cujo efeito seria uma “infân-cia-sem-fim”. Assim, a Educação aparece como um dispositivo social que,ao mesmo tempo que constitui a infância, é uma das únicas salvaguardascontra sua morte anunciada.

O relato da autora sobre esta história da infância-sem-fim percorrediversos caminhos, desde as antigas práticas de infanticídio, passando pelaexposição das crianças, até a exposição na Roda. Este último mecanismo,em que as crianças eram depositadas e recolhidas em instituições, permitiuracionalizar, ordenar e centralizar a antiga prática de exposição indiscriminada.Tanto as práticas de salvar as crianças “expostas” pelo recolhimento nasruas, no século XVII, quanto através da Roda, no século XVIII, deram lugar,nos séculos XIX e XX, às práticas de educação, as quais implicavam, tam-bém, na “salvação”, disciplina e regulamentação das crianças.

Ao longo do livro, vamos acompanhando como o corpo infantil foi sen-do gradualmente marcado de história, precipitando significações que atra-vessaram e atravessam a noção de infância: dependente, servil, insignifican-te, pura, inocente, sagrada, louca, doente, primitiva, adulta.

A autora também sublinha o caráter constituinte que a escolarizaçãoabrangente da sociedade ocidental teve em relação à infância. Ao analisaras idéias de outros autores a este respeito, demonstra que, com a invençãoda imprensa, por Gutmberg, em 1450, e com o surgimento da necessidadesocial de aprender a ler e a escrever, é criada uma nova definição de adultez,baseada na capacidade de ler, e também de infância, baseada na incapaci-dade de fazê-lo.. Assim, os adultos passam a ter acesso a um meio deinformação inacessível às crianças.

Porém, com o surgimento de novos meios de comunicação, a partirda invenção do telégrafo, em 1844, esta divisão vai deixando de ter importân-

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80 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 98, jan. 2002

AGENDA

EXPEDIENTEÓrgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre

Rua Faria Santos, 258 CEP 90670-150 Porto Alegre - RSTel: (51) 3333 2140 - Fax: (51) 3333 7922

e-mail: [email protected] - home-page: www.appoa.com.brJornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n0 3956

Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (51) 3318 6355

Comissão do CorreioCoordenação: Maria Ângela Brasil e Robson de Freitas Pereira

Integrantes: Ana Laura Giongo Vaccaro, Francisco Settineri, Gerson Smiech Pinho, Henriete Karam, Liz Nunes Ramos, Luis Roberto Benia, Luzimar Stricher,

Marcia Helena de Menezes Ribeiro e Maria Lúcia Müller Stein

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREGESTÃO 2001/2002

Presidência - Maria Ângela Brasil1a. Vice-Presidência - Lucia Serrano Pereira2a. Vice-Presidência - Jaime Alberto Betts

1o. Tesoureira - Grasiela Kraemer2a. Tesoureira - Simone Moschen Rickes

1o. Secretária - Carmen Backes2a. Secretário - Gerson Smiech Pinho

MESA DIRETIVAAlfredo Néstor Jerusalinsky, Ana Maria Gageiro, Ana Maria Medeiros da Costa,

Analice Palombini, Ângela Lângaro Becker, Edson Luiz André de Sousa,Gladys Wechsler Carnos, Ieda Prates da Silva, Ligia Gomes Víctora,

Liliane Fröemming, Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack,Marta Pedó e Robson de Freitas Pereira.

Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.)Criação da capa: Flávio Wild - Macchina

Reunião da Comissão de BibliotecaReunião da Comissão de Eventos

Reunião da Mesa DiretivaReunião da Comissão do Correio da APPOAReunião do Serviço de Atendimento ClínicoReunião da Mesa Diretiva aberta aos mem-bros da APPOA

20h30min15h

21h20h30min20h30min21h

PRÓXIMO NÚMERO

PSICANÁLISE E LITERATURA

DEZEMBRO – 2001

Dia Hora Local Atividade

07 e 14

Sede da APPOASede da APPOA

Sede da APPOASede da APPOASede da APPOASede da APPOA

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N° 98 – ANO IXN° 98 – ANO IX JANEIRO JANEIRO – 200– 200 22

FÓRUM MUNDIAL DE EDUCAÇÃOFÓRUM MUNDIAL DE EDUCAÇÃO

S U M Á R I O

EDITORIAL 1NOTÍCIAS 2SEÇÃO TEMÁTICA 28OS ESTIGMAS EM NÓSOS ESTIGMAS EM NÓSAnalice de Lima PalombiniAnalice de Lima Palombini 3131O “PORTADOR”: INSÍGNIAO “PORTADOR”: INSÍGNIADA DIFERENÇADA DIFERENÇADenise T. da Rosa QuintãoDenise T. da Rosa Quintão 3636UM MUNDO POR FAZERUM MUNDO POR FAZERClarisse TrombkaClarisse Trombka 4242A ESCOLA, O TEMPOA ESCOLA, O TEMPOE O LUGAR DO PROFESSORE O LUGAR DO PROFESSOREliana Dable de MelloEliana Dable de Mello 4747AUTORIDADE E VIOLÊNCIAAUTORIDADE E VIOLÊNCIARoséli M. Olabarriaga CabistaniRoséli M. Olabarriaga Cabistani 5252O PAPEL SOCIAL DO ALUNOO PAPEL SOCIAL DO ALUNOADOLESCENTE E A FUNÇÃOADOLESCENTE E A FUNÇÃODA ESCOLADA ESCOLAAna Silvia EspigAna Silvia Espig 5858SEÇÃO DEBATES 64ENTRE A ESPERANÇAENTRE A ESPERANÇAE A FRUSTAÇÃOE A FRUSTAÇÃOCarlos Henrique KesslerCarlos Henrique Kessler 6464ALGUMAS IMPRESSÕESALGUMAS IMPRESSÕESSOBRE O FÓRUM MUNDIALSOBRE O FÓRUM MUNDIALDE EDUCAÇÃODE EDUCAÇÃOSimone Moschen RickesSimone Moschen Rickes 6868UMA ESCUTA ANALÍTICA EMUMA ESCUTA ANALÍTICA EMUMA INSTITUIÇÃO ESCOLARUMA INSTITUIÇÃO ESCOLARCarla Regina CumiottoCarla Regina Cumiotto 7373RESENHA 77“HISTÓRIA DA“HISTÓRIA DAINFÂNCIA SEM FIM”INFÂNCIA SEM FIM” 7777AGENDA 80