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1 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001 EDITORIAL T á cada vez mais down no high society! Down, down, down. .. cantava Elis Regina, ironizando as angústias da periclitante classe média bra- sileira, nos anos 70, na canção de Rita Lee. Down passou a substituir “fossa” e foi substituído por deprê! Por que será que fazemos de nosso sofri- mento um espetáculo? Décadas antes, Nelson Cavaquinho avisava: “Tire seu sorriso do cami- nho, que eu quero passar com minha dor”. Nossos humores são assim, exigem acompanhamento, querem se impor aos nossos semelhantes, a todo mundo, se possível. Na impossibilidade de contaminar o mundo, serve o nosso parceiro amoroso, os familiares e até os amigos! Melhor ainda será convencer nosso analista das perfeitas razões do nosso (mau) humor, insi- nuando sua parcela de culpa no caso ou sua total impotência para revertê-lo. “Tristeza não tem fim, felicidade sim!” dizem os versos de Vinícius de Morais para a bela música de Tom Jobim, traduzindo a melancolia da alma brasileira. O sentimento de tristeza e seus efeitos colaterais para os humanos tornaram-se, em nossa época, doença e diagnóstico pret a porter. Mas, antes de desdenhar desse estado de coisas, podemos interrogá-lo, tentar decifrar a metáfora em que se constitui. Esse é um dos ângulos da questão que o cartel-eixo deste ano vem trabalhando na APPOA e que podemos acompanhar nos textos que compõe este número do nosso Correio. Na seção Debates, retomamos a discussão sobre a reforma psiquiá- trica e a legislação e sobre os efeitos clínicos e sociais correspondentes à nova lei: ela muda os antigos estigmas relativos ao “louco”? Ajuda-nos a pensar a questão a entrevista que Miriam Chnaidermam concedeu à pedagoga Noemi de Araújo e ao professor de Teoria do Cinema Rubens Machado Junior sobre seu filme “Dizem que sou louco”, que trabalha com a figura do “louco de rua”. No que se refere às tentativas de regulamentar como profissão o trabalho dos psicanalistas, consideramos oportuna a questão levantada por Charles Melman na Fundação Européia pela Psicanálise, sobre se a Psica- nálise é uma questão de Estado e quais as conseqüências de tal atrelamento. No texto de Charles Melmam, encontramos o entrecruzamento des- tes temas: o sofrimento psíquico, a demanda de alívio, as propostas de cura

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1C. da APPOA, Porto Alegre, n. 94, set. 2001

EDITORIAL

Tá cada vez mais down no high society! Down, down, down... cantavaElis Regina, ironizando as angústias da periclitante classe média bra-sileira, nos anos 70, na canção de Rita Lee. Down passou a substituir

“fossa” e foi substituído por deprê! Por que será que fazemos de nosso sofri-mento um espetáculo?

Décadas antes, Nelson Cavaquinho avisava: “Tire seu sorriso do cami-nho, que eu quero passar com minha dor”. Nossos humores são assim,exigem acompanhamento, querem se impor aos nossos semelhantes, a todomundo, se possível. Na impossibilidade de contaminar o mundo, serve onosso parceiro amoroso, os familiares e até os amigos! Melhor ainda seráconvencer nosso analista das perfeitas razões do nosso (mau) humor, insi-nuando sua parcela de culpa no caso ou sua total impotência para revertê-lo.

“Tristeza não tem fim, felicidade sim!” dizem os versos de Vinícius deMorais para a bela música de Tom Jobim, traduzindo a melancolia da almabrasileira.

O sentimento de tristeza e seus efeitos colaterais para os humanostornaram-se, em nossa época, doença e diagnóstico pret a porter. Mas,antes de desdenhar desse estado de coisas, podemos interrogá-lo, tentardecifrar a metáfora em que se constitui. Esse é um dos ângulos da questãoque o cartel-eixo deste ano vem trabalhando na APPOA e que podemosacompanhar nos textos que compõe este número do nosso Correio.

Na seção Debates, retomamos a discussão sobre a reforma psiquiá-trica e a legislação e sobre os efeitos clínicos e sociais correspondentes ànova lei: ela muda os antigos estigmas relativos ao “louco”? Ajuda-nos apensar a questão a entrevista que Miriam Chnaidermam concedeu à pedagogaNoemi de Araújo e ao professor de Teoria do Cinema Rubens Machado Juniorsobre seu filme “Dizem que sou louco”, que trabalha com a figura do “loucode rua”. No que se refere às tentativas de regulamentar como profissão otrabalho dos psicanalistas, consideramos oportuna a questão levantada porCharles Melman na Fundação Européia pela Psicanálise, sobre se a Psica-nálise é uma questão de Estado e quais as conseqüências de tal atrelamento.

No texto de Charles Melmam, encontramos o entrecruzamento des-tes temas: o sofrimento psíquico, a demanda de alívio, as propostas de cura

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EDITORIAL

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NOTÍCIAS

JORNADA APPOA 2001

“OS NOMES DA TRISTEZA NA CLÍNICA PSICANALÍTICA”

Certas palavras ganham significados tão amplos que, em certos mo-mentos, seus contornos ficam imprecisos e acabam servindo para dizer tudoe mais um pouco. Foi assim no passado com o termo “melancolia”, e é hojecom o que chamamos de “depressão”. A verdade é que nomear a tristeza ea diversidade de seus estados sempre foi difícil. Ninguém escapa das maze-las desta experiência, mas somos pouco capazes de chegar a uma idéiasobre o que de fato nos acomete. No vácuo desta confusão de sentimentosé que este sintoma ganhou vida própria e hoje nomeia boa parte dos diagnós-ticos clínicos.

Tudo cabe debaixo do guarda-chuva da depressão: inibições, angústi-as, mal-estares difusos, fobias, qualquer sofrimento pede abrigo ao termo. Oque há em comum a todas as histórias é a recorrência de um discurso deque nada, nem ninguém, será capaz de produzir a felicidade. Chegamos,assim, à definição desta tristeza moderna: trata-se da dificuldade de lidarcom a falta de felicidade. Acorremos, então, com todo tipo de soluções,drogas, placebos e sedação à dor. Queremos acima de tudo não enfrentar ainevitável condição de existir.

Se reclamamos tanto da falta da felicidade é porque acreditamos quenão basta existir se não houver algo que justifique, marque, recompense,motive uma vida. A empreitada coletiva da humanidade já não é um propósitode fácil apreensão. Sem ilusões coletivas, resta o que cada um pode arran-car de sua passagem pela terra, e a palavra que sintetiza esta expectativa é:felicidade.

O papel da psicanálise sempre foi o de escutar o que se impõe sinto-maticamente em uma época. Foi assim que deu voz às mulheres no séculopassado. Agora, a tarefa é escutar a tristeza, a melancolia e a depressão,em suas aproximações e diferenças, para que isso faça efeitos naquele quefala e naquele que escuta. A clínica dessas patologias nos leva a pensar

e a promessa política de defender os cidadãos contra os maus profissionais.É grande a pressão pela resposta rápida e coletiva (que poupe o sujeito dotrabalho de encontrar o que perdeu naquilo que ele diz que perdeu, de econo-mizar o trabalho do luto, de encontrar suas referências privadas). Os analis-tas não estão vacinados contra os ideais de sua época, de modo que não éfácil suportar o irrealizado de seu paciente, o fracasso, mesmo que se saibaque o inconsciente é o irrealizado, o incorreto, o não-conforme, como nos dizMelmam. A insuportabilidade do ponto de ignorância da qual todos participa-mos é o que faz o sucesso dos novos medicamentos que a pesquisa deponta indicou. Só que esta, parece, só vê a ponta do iceberg!

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

sobre o suicídio, a dor, a culpa, o infantil, as toxiconamias, uma direção dacura através da sublimação e outros pontos relacionados a essa problemáti-ca, a qual, acreditamos, tem tanto a dizer.

Data: 29 e 30 de setembro de 2001Local: FEDERASUL

Largo Visconde do Cairu, 17 – 6o. andarPorto Alegre – RS

PROGRAMA

SÁBADO – 29 /09MANHÃ: 9hCortina de vidro – Maria Ângela Brasil, Psicanalista, Presidente da APPOAO vírus da desesperança – Ligia Gomes Víctora, Psicanalista, membro da APPOA(intervalo)Luto e melancolia na infância – Norma Brunner, Psicanalista, membro do CentroLydia Coriat de Buenos Aires – ArgentinaTARDE: 14hA dor do melancólico – Sandrine Malem, Psicanalista, membro da AssociationPsychanalyse et Médecine de Paris – FrançaA vida por um fio – Rosane Monteiro Ramalho, Psicanalista, membro da APPOA(intervalo)O supereu nas neuroses de transferência e na melancolia – Liz Nunes Ramos,Psicanalista, membro da APPOAA sublimação na melancolia – Lucia Alves Mees, Psicanalista, membro da APPOA

DOMINGO – 30 / 09MANHÃ: 9hTem remédio de pressão? – Eduardo Mendes Ribeiro, Psicanalista, membro da APPOAO luto do objeto nas toxicomanias – Marta Conte, Dra. Psicologia Clínica PUC/SP,Coord. Política Estadual de Drogas SES/RS

(intervalo)Quem é o culpado das nossas perdas – Alfredo Jerusalinsky, Psicanalista, mem-bro da APPOA

INSCRIÇÕES:Pagamento antecipado até dia 14/9/2001 Após 15/9/2001 e Inscrições no local:

Associados R$ 35,00 Associados R$ 50,00Estudantes R$ 40,00* Estudantes R$ 55,00*Profissionais R$ 50,00 Profissionais R$ 70,00

– As inscrições poderão ser feitas na APPOA, ou por fax (mediante depósito noBanco Banrisul; agência 032; conta-corrente 06.039972.0-6; ASSOCIAÇÃO PSI-CANALÍTICA DE PORTO ALEGRE).– * Estudantes devem apresentar, ou enviar por fax, comprovante de matrículaem CURSO DE GRADUAÇÃO.

PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA – INTERNAÇÃO HOSPITALAR

Freqüentemente os psicanalistas se deparam em sua clínica comsituações de crise, casos que requerem internação ou intervenção, inclusivemedicamentosa. Tais situações convocam a interlocução e o trabalho com-partilhado com a psiquiatria, num trânsito nem sempre fácil.

No intuito de viabilizar o trabalho analítico nestas circunstâncias es-peciais, foi criado na cidade um serviço de internação na Clínica São José.A proposta teve origem nas discussões e é um efeito do trabalho de umcartel na APPOA, dedicado às questões da psicose. Teve início com o estu-do do Seminário de J. Bergès e G. Balbo – “Há um infantil na psicose?” einterlocução com colegas da École de Psychanalyse de L´Hôpital SainteAnne – Centre Henri Rousselle – Paris. É um serviço de psicanálise e psiquia-tria voltado ao tratamento de múltiplos transtornos psíquicos que possamnecessitar de hospitalização e organizado por Adão Costa, Conceição Beltrão,Maria Auxiliadora Sudbrack e Mário Fleig.Informações sobre procedimentos e encaminhamentos:Fone/fax:051 32221281e-mail:[email protected]

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

EXERCÍCIOS CLÍNICOS

Título: Quando uma análise parece que “não anda”. (Análise de um caso clínico)Dia: 15 de setembro – sábadoHorário: 9h30minProponente: Diana Lichtenstein Corso.Debatedores: Maria Ângela Brasil e Robson de Freitas Pereira. Atividade vinculada ao Cartel “A melancolia e as depressões”.

PSICANÁLISE COM CRIANÇAS

Comunicamos que o grupo temático ”Psicanálise com crianças”, encer-rado no mês de junho com os seminários de Marta Pedó, deu origem a um Car-tel sobre o mesmo tema. Temos nos reunido quinzenalmente, nas quartas-feiras, no horário das 20h15min, na sede da APPOA. Começamos lendo textosfreudianos, o primeiro deles, “Três ensaios...”, pretendemos seguir a leitura deFreud, à luz da discussão de casos clínicos. 

Participantes: Ana Sílvia Espig, Clarice Trombka, Elaine Rosner, Eliana Dable de Mello,Roselene Gurski, Giovana Cavalcante.

Os interessados em participar, favor contatar a secretaria da APPOA.

CONFERÊNCIA E DEBATE

No dia 19 de setembro de 2001, às 20h, será realizada uma Conferên-cia e, posteriormente, um debate com Ivan Izquierdo e Alfredo Jerusalinsky,intitulada “Memória e depressão”.

JORNADA SOBRE ADOLESCÊNCIA EM BLUMENAU

Nos dias 21 e 22 de setembro, acontecerá em Blumenau – SC, aJornada “Adolescência e seus Impasses”, abrindo mais um espaço de dis-cussão sobre a passagem adolescente e suas vicissitudes. O Programa dePesquisa e Extensão “Adolescência e Experiências de Borda” terá uma par-ticipação significativa no evento, sendo que todos os palestrantes fazemparte do grupo de pesquisadores.

A Jornada está sendo promovida pelo Departamento de Psicologia epelo Centro Acadêmico de Psicologia da Universidade Regional de Blumenau– FURB.

PROGRAMASexta-feira 21/09/200118h30min – Entrega das credenciais19h30min – Abertura20h – Mesa Temática: Adolescência e Contemporaneidade

Palestrante – Clara Maria von HohendorffDebatedora – Valéria Machado Rilho

Sábado 22/09/20018h30min – Mesa Temática O Adolescente e a Escola

Palestrante – Ângela Lângaro BeckerDebatedora – Diana Lichtenstein Corso

10h – Coffe Break10h30min – Mesa temática – Clínica com Adolescentes

Palestrante – Diana Lichtenstein CorsoDebatedora – Ana Laura Giongo Vaccaro

14h30min – Mesa Temática A Exclusão AdolescentePalestrante – Valéria Machado RilhoDebatedora – Ângela Lângaro Becker,

16h – Coffe Break16h30min – Mesa Temática Adolescência e Sexualidade

Palestrante – Ana Laura Giongo VaccaroDebatedora – Clara Maria von Hohendorff

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NOTÍCIAS

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Aseção temática deste número do Correio é dedicada ao tema queconstitui o eixo dos trabalhos da APPOA, neste ano: a clínica dasdepressões e da melancolia. A especificidade da depressão em rela-

ção à melancolia, o trabalho de luto, anorexia e bulimia, as relações entreadolescência e melancolia são algumas das questões que o leitor encontra-rá trabalhadas, nas páginas a seguir.

Os textos, aqui reunidos, desdobram algumas idéias fundamentais,que já vêm sendo discutidas em torno do assunto, em diversos momentosde trabalho – na Jornada de Abertura, no “Relendo Freud e Conversandosobre a APPOA”, no espaço do cartel – e em nossas publicações – a Revis-ta n. 20 e o Correio n.90 (maio de 2001). Neste mês de setembro, com ajornada “Os nomes da tristeza na clínica psicanalítica” e a publicação desteCorreio, damos continuidade à produção em torno deste eixo temático.

Agradecemos àqueles que contribuíram para a produção desta ediçãoe desejamos a todos uma boa leitura!

Gerson Smiech PinhoMaria Lúcia Müller Stein

Local – Centro de Convenções Willy Sievert – Proeb Blumenau SCInscrições – Profissionais: R$25,00

Estudantes: R$15,00Informações pelo telefone: (47) 321 0280Apoio – Pró-reitoria de Extensão e Relações Comunitárias

Centro de Ciências da Saúde – FURB

MUDANÇA DE TELEFONEAna Maria Medeiros da Costa informa seu novo telefone: 9685 2697.

ERRATANo último Correio n. 93, p. 14, saiu grafado incorretamente o nome da autora danotícia “Um vôo interrompido: Norberto Irusta”, o nome correto é Jandira K.Mengarelli.Rosane Monteiro Ramalho é participante do Cartel “Figurações do feminino naPsicanálise” editado no Correio da APPOA, nº93, p. 4.

SEÇÃO TEMÁTICA

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ele dispõe para dar sentido e responder às diversas formas de mal-estar comque se depara.

Evidentemente, existe uma continuidade entre estes dois momentoslógicos. Ou seja, o “modo de ser” orienta o processo de inserção social decada indivíduo. Entretanto, e este é o ponto que pretendo enfatizar, não meparece que o trabalho analítico com todo sofrimento psíquico, e em especialcom a depressão, deva partir necessariamente da interpretação dos proces-sos primários de constituição subjetiva, ou seja, da forma específica comose definiu uma estrutura psíquica, ou, como estou chamando, um “modo deser”.

Interpretações desta ordem podem surgir no percurso de uma análise,mas não são condições necessárias para a produção de efeitos analíticos.Em outras palavras, quero propor o entendimento de que a “profundidade” deuma análise não depende de quanto se volta para trás.

No campo psicanalítico, no que diz respeito à relação entre melanco-lia e depressão, encontramos posições diferentes e divergentes: para al-guns, a depressão é considerada uma forma atenuada de melancolia; paraoutros, melancolia designa uma estrutura subjetiva, enquanto depressão dizrespeito a um estado de humor passageiro; para outros ainda, trata-se derelações diferentes, pois a melancolia define-se a partir de uma forma espe-cífica de constituição do eu-ideal, enquanto na depressão a relação em ques-tão é com o ideal-de-eu.

Não pretendo fundamentar uma diferenciação entre estes termos, mas,para poder apresentar alguns argumentos que me interessam, preciso partirde um entendimento do que seja melancolia e do que seja depressão. Estouentendendo “melancolia” como um “modo de ser” marcado pela fragilidadecom que se constituiu o eu-ideal, ou seja, por um tipo de relação com oOutro materno em que o sujeito produziu uma imagem de si um tanto precá-ria. Este modo de ser faz com que o sujeito apresente uma tendência aassumir estados depressivos que, mesmo quando desencadeados por fatosde realidade, remetem a uma “falha” em sua constituição subjetiva.

Uma investigação etiológica destes casos remeteria à análise da rela-ção com o Outro materno. Por outro lado, poderíamos também nos questio-

DEPRESSÃO É MAIS DO QUE UM SENTIMENTO

Eduardo Mendes Ribeiro

Arelação, ou distinção, entre melancolia e depressão tem sido objetode estudo e discussão em diversas reuniões de trabalho na APPOA.Como forma de contribuição para o debate, quero assumir uma posi-

ção em defesa da “depressão”, ou seja, do interesse clínico e teórico de setrabalhar com este significante.

Digo isto porque tem sido freqüente a consideração de que sob onome de “depressão” costuma ser designada uma variedade de formas desofrimento psíquico, o que tornaria este termo excessivamente abrangente epouco preciso; ou de que esta expressão se refere apenas à superficialidadede um fenômeno, sem considerar suas raízes mais “profundas”, que deveri-am ser buscadas na investigação da natureza do conflito psíquico incons-ciente que lhe deu origem.

Proponho um entendimento diferente por duas razões. Em primeirolugar, porque me parece importante relacionar os conceitos teóricos de nos-so campo com as expressões de senso-comum: quando nossos pacientesafirmam estar deprimidos, eles sabem do que estão falando, e é importanteque possamos problematizar este saber; e, em segundo lugar, porque enten-do ser possível utilizar a noção de “depressão” para designar um tipo desofrimento psíquico, e mesmo de posição subjetiva, que se define na relaçãoque o sujeito mantém com seus ideais. Ideais estes que se constituem nãosomente no âmbito das relações familiares primárias, mas, também, sobinfluência do contexto sócio-cultural em que ele se encontra inserido.

Sabemos que as primeiras relações sociais, geralmente mantidas nouniverso familiar, definem um “modo de ser”, que chamamos de estruturapsíquica. Trata-se de um modo de lidar com a falta, com os ideais, com aalteridade, e que produz, também, uma determinada imagem de si.

Posteriormente, o conjunto mais amplo de relações sociais mantidospelo sujeito adolescente/adulto determina o repertório de alternativas de que

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é que o primeiro, tal como o último, estabelece exigências ideais estritas,cuja desobediência é punida pelo medo da consciência”.

“Algumas das manifestações e propriedades do superego podem sermais facilmente detectadas em seu comportamento na comunidade culturaldo que no indivíduo isolado”.

“Caso se exija mais de um homem, produzir-se-á nele uma revolta ouuma neurose, ou ele se tornará infeliz”1.

O supereu cultural, agente destas exigências ideais mencionadas porFreud, certamente constitui uma instância referencial para as possibilidadesde gozo, mas também indicativa de seu fracasso. Sendo assim, me pergun-to por que haveríamos de considerar o sofrimento produzido pela relaçãocom o supereu cultural menos legítimo ou profundo do que aquele que serefere ao supereu individual? Chamar de “depressão” a posição em que seencontra este sujeito seria adotar uma noção psicológica, que desconsideraos conflitos inconscientes?

A consideração de que na sociedade contemporânea a cultura donarcisismo apresenta-se como tendência hegemônica, no sentido de que,na dificuldade de constituição de ideais orientados para o futuro, as preocu-pações dirigem-se à busca de satisfações imediatas, não autoriza a conclu-são de que estes conflitos situem-se fora do campo do inconsciente. Nãoesqueçamos da dimensão inconsciente do ego.

Não basta reconhecer a natureza dos conflitos intrapsíquicos, é ne-cessário, também, compreender a lógica que rege as relações entre o sujei-to e o social na cultura contemporânea. Afirmar que estas relações sãosempre singulares é uma meia verdade, pois não há como desconhecer quecompartilhamos de um mesmo mundo simbólico e de um imaginário socialque nos atravessa.

É verdade que a forma como se constitui uma subjetividade, uma es-trutura psíquica, um modo de ser, determina em grande parte sua produção

1 Freud, Sigmund. O Mal-estar na civilização [1930]. Em Obras Completas de Freud. Rio deJaneiro: Imago, 1974.

nar sobre a relação que muitas mães mantém com seu Outro, ou, em outraspalavras, tentar entender o que faz com que estas mães tenham tanta dificul-dade para investir seu desejo em seus filhos, ou ainda, de forma mais gené-rica, em como conciliar cultura narcísica e maternidade. Sabe-se que muitasmães exercem suas funções como se estivessem seguindo o manual daboa mãe. O que fica em primeiro lugar é elas serem reconhecidas comoboas mães.

E estou entendendo por “depressão” uma posição (ou situação) sub-jetiva em que preponderam os sentimentos de desânimo, apatia e uma ima-gem de si desvalorizada. Excetuando-se os casos de modos de ser melan-cólicos, os estados depressivos decorrem de circunstâncias existenciaisem que o sujeito se vê, ou privado de uma referência ao ideal-do-eu, ouimpotente frente a exigências superegóicas a que não consegue satisfazer.Eu não estou preocupado em estabelecer uma distinção entre ideal-do-eu esupereu, pois estou me referindo a uma instância responsável, tanto pororientar um vir-a-ser do sujeito, quanto por exigir que ele atinja este ideal. Nateorização freudiana, o ideal-do-eu deriva do supereu, representando a trans-formação da autoridade parental num modelo referencial.

Se aceitarmos, ainda que por hipótese, estas definições, estaremoslidando com duas realidades qualitativamente distintas: uma afirma-se comoum modo de ser, dotado de certa estabilidade (a melancolia); e outra mostra-se como um modo de estar, produto de uma série de contingências queenvolvem a relação do sujeito com os ideais que recebe do Outro, ou dacultura (a depressão).

Qual o interesse de optar por esta conceituação?Colocando as coisas desta forma, torna-se possível legitimar teorica-

mente um fenômeno clínico – a depressão –, cuja realidade não dá paradesconsiderar, interpretando-a como produto das relações entre o eu e osupereu cultural, como chamava Freud; ou com o ideal-do-eu, como preferi-ria Lacan.

Vejamos algumas passagens do texto freudiano que ajudam a fun-damentar esta proposta:

“Outro ponto de concordância entre o superego cultural e o individual

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mente conseguirá realizar os ideais que assumiu como objetivos em suavida. Muitas vezes, estas pessoas parecem ter realizado uma série de coi-sas importantes, mas nada que possa ser considerado como a conquista dafelicidade, ou o ápice de um sucesso profissional.

Por outro lado, sabemos também que não é apenas o fracasso ematingir nossos ideais que produz depressão. Pode ocorrer exatamente o con-trário, quando, depois de realizar algo muito desejado, encontramo-nos “aban-donados pelo nosso ideal”, para usar uma expressão de Melman.

Seja como for, trata-se de conflitos que remetem ao que temos demais íntimo, não se situando no campo limitado às frustrações egóicas. Nãose deve confundir o conflito do eu com seus Ideais com uma psicologia doego, de bases estritamente conscientes. Afinal, se o ego é por definiçãouma instância conservadora e refratária a tensões, o ideal-do-eu representao vetor da atividade desejante.

Se encarada dessa forma, a problemática depressiva não se encontranecessariamente associada, como entende Roudinesco, a uma “valorizaçãodos processos psicológicos de normalização, em detrimento das diferentesformas de exploração do inconsciente”2.

Mas, por outro lado, ela tem razão ao alertar para o fato de que ultima-mente se tornou prática comum tratar diferentes formas de sofrimento psí-quico através de ansiolíticos e antidepressivos, e/ou com o recurso a técni-cas comportamentais. Tudo em nome de um combate à depressão.

A idéia de que a depressão é uma doença que pode e deve ser cura-da, como qualquer outra doença, estimula a adoção de terapêuticas rápidase “eficazes” no combate dos sintomas que, neste caso, acabam se confun-dindo com a doença.

Esta recusa da legitimidade do sofrimento psíquico encontra-se emconsonância com uma ideologia que não vê limites nas possibilidades hu-manas de superação de tudo que impeça seu bem-estar.

2 Roudinesco, Elisabeth. Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.

sintomática, mas a observação clínica nos mostra que existem sintomas,como a depressão, que não são monopólio de nenhum tipo específico deconstituição subjetiva. Aliás, não vejo qual o interesse que haveria em crista-lizar uma amarra entre estrutura psíquica e sintoma. Se assumirmos estaposição, corremos o risco de abrir mão do que o estruturalismo tem de maiselucidativo, que é sua análise relacional de valor, que prescinde das interpre-tações causais; e de assumir o que ele tem de mais problemático, que é ocaráter estático das estruturas, que dificulta a compreensão de suas trans-formações.

O modo de ser com que nos constituímos é dotado de grande estabi-lidade, mas, como toda estrutura, ele é apenas formal. Por outro lado, nossarelação com o mundo externo, com o social, é extremamente dinâmica.Existe uma instância psíquica que assume esta função, a de regular nossarelação com o Outro, com o mundo: é o ideal-do-eu.

O ideal-do-eu, que tem seus contornos delineados a partir das expec-tativas parentais, assume formas mais definidas no convívio social mais amplo,ao deparar-se com uma pluralidade de modelos identificatórios que se ofere-cem como signos de valor.

Entretanto, em uma sociedade individualista, é possível que o que sereceba dos pais seja a afirmação de um desejo que pode parecer tão gene-roso, como vago e inútil. Algo do tipo: “só queremos que sejas feliz e tenhassucesso no caminho que escolheres”. Ora, “ser feliz” e “ter sucesso” não éuma tarefa fácil. “Feliz” como? “Sucesso” em que? Se os pais não são capa-zes de apontar algo que mereça ser desejado, esta orientação será buscadano que a sociedade afirma ser valor.

Na dificuldade de constituir um ideal capaz de servir de orientaçãopara seus investimentos, não é de se estranhar que muitos jovens adultosposterguem, às vezes indefinidamente, a separação dos pais e, em casosextremos como na toxicomania, refugiem-se em um mundo privado, limitan-do ao máximo suas relações de alteridade.

Em outros casos, nas chamadas crises de meia idade, não é incomumo surgimento de quadros depressivos, quando o sujeito percebe que dificil-

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Sem dúvida, como aponta Roudinesco, o significante “depressão” podeencontrar-se associado a essa ilusão narcísica, mas isso não implica que orejeitemos. Pelo contrário, faz parte de nossa prática auxiliar na produção denovas articulações entre as manifestações narcísicas e seus determinantessimbólicos, na busca de uma posição subjetiva em que desejar seja possí-vel.

LUTO IMPOSSÍVEL, MELANCOLIA INSTAURADA

Robson de Freitas Pereira

“Posteriormente [em 1915] fiz uma tentativa para produzir uma‘Metapsicologia’. Com isso eu queria dizer um método de abordagem de

acordo com o qual todo processo mental é considerado em relação com trêscoordenadas, as quais eu descrevi como dinâmica, topográfica e econômica,

respectivamente; e isso me pareceu representar a maior meta que a psicologiapoderia alcançar. A tentativa não passou de uma obra incompleta; após

escrever dois ou três artigos – ‘Os Instintos e suas Vicissitudes’ [1915c], ‘Re-pressão’ [1915d], ‘O Inconsciente’ [1915e], ‘Luto e Melancolia’ [1917e] etc. – fiz

uma interrupção, talvez acertadamente, visto que o tempo para afirmaçõesdessa espécie ainda não havia chegado. Em meus mais recentes trabalhos

especulativos entreguei-me à tarefa de dissecar nosso aparelho mental, combase no ponto de vista analítico dos fatos patológicos, e o dividi em um ego,

um id e um superego. O superego é o herdeiro do complexo edipiano erepresenta os padrões éticos da humanidade”.

S. Freud

Neste trecho da obra “Um estudo autobiográfico”, Freud explica asrazões de haver escrito “Luto e Melancolia”. Insere o texto em umatentativa de construir sua metapsicologia, fornecendo-nos uma idéia

concisa do que para ele constituir-se-ia este projeto.Podemos lembrar, também, que este tema aparece quase como uma

continuação das elaborações de “Introdução ao narcisismo” e contemporâ-neo de “Considerações atuais sobre a morte e a guerra”. O psicanalistaJacques Hassoun disse certa vez que estas “Considerações” apelavam àmetapsicologia, para compreender as transformações subjetivas articuladascom os efeitos da Primeira Guerra Mundial, de 1914/1918, verdadeiro marcode inauguração século XX.

Freud abandona o projeto da metapsicologia: para ele tornou-se im-possível constituir uma teoria geral dos processos mentais a partir da articu-lação de três coordenadas (vide citação acima).

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Nos parece importante destacar a referência a incompletude da tare-fa, não como signo da impotência do inventor da psicanálise, mas comosignificante extraído da impossibilidade de inventar uma teoria, “com base noponto de vista analítico dos fatos patológicos”, que desse conta totalmentedaquilo que ele denominava “aparato mental”; ou mesmo da complexidadeparadoxal da vida social.

Coerente com esta posição, Freud fazia questão de afirmar que osavanços na clínica podiam não ser abundantes, mas um passo teórico, mes-mo pequeno, não era desprezível. Mais uma vez, podemos observar que elenão descartava os avanços, sabidamente incompletos. A psicanálise “apre-senta suas armas” reconhecendo a impossível universalidade de umateorização seja sobre a subjetividade, seja sobre os laços sociais. Querdizer, faz da castração seu limite e não se propõe como “visão de mundo”.

As questões abordadas por Freud em “Luto e melancolia” mostramsua atualidade quando, a partir delas, podemos tentar algumas observaçõesconcernentes ao trabalho de luto que os psicanalistas ainda hoje tem quefazer para manter viva sua prática. Reconhecendo o buraco ao redor do qualo fundamentalismo religioso e a hegemonia cientificista fazem suas promes-sas de recobrimento, simultaneamente fascinantes e terroríficas.

TÓPICOS FREUDIANOS DESDOBRAMENTOS LACANIANOSPor muitas razões somos obrigados a fazer escolhas. A lógica do

inconsciente determina nossa escrita. Ainda mais neste breve comentário.Assim, tentaremos nos ocupar de dois tópicos: seu posicionamento clínico,ou seja, a dimensão transferencial intervindo diretamente na elaboraçãoconceitual e, a falta de objeto como dimensão estrutural para a clínica damelancolia e das depressões. Nos parece evidente que quando falamos emtrabalho na transferência e relação de objeto, o psicanalista está em causa.Seja pelo exercício de sustentação de uma prática cuja ética está suportadapelo desejo (do psicanalista); seja pelo reconhecimento de que um psicana-lista é sintoma da psicanálise.

Tirar conseqüências deste enunciado, por mais enigmático que elepossa parecer, é uma das responsabilidades da comunidade dos psicanalis-

tas. Ele está referido aos efeitos da análise de cada um, nesta trajetóriaincerta onde se reconhece que sintoma é sinal do sujeito e que a passagemde analisante a analista não está referida a uma prática do bem ou da virtudesublime. É trágico que ainda hoje vejamos se reproduzir análises onde oprincipal resultado é a identificação com o analista (e seus desdobramentosreligiosos ou de inibição). Sintoma que Lacan fez questão de interpretar des-de a década de 50. Por sua dimensão real, o sintoma pode nos ajudar a lidarcom a falta. Por suas articulações com Simbólico e Imaginário pode orientara escuta.

Esta escuta que se ocupa das formações do inconsciente, desdobrauma prática clínica que implica esta dimensão da coragem para enfrentar aangústia de se dispor ao lugar de objeto causa de desejo do outro. Lembremo-nos da escrita do discurso do psicanalista, onde o pequeno a está no lugarde agente e o Sujeito barrado no lugar do outro; conseqüentemente S1 ocu-pa o lugar da produção e S2, o saber, coloca-se no lugar da verdade. Ocuparum lugar de objeto baliza desde uma representação preciosa até o dejeto. Aquestão crucial implica em como faz um psicanalista para desvencilhar-sedeste semblante de objeto, sem propôr promessas de completude, ou areiteração do amor ao pai, nas suas mais diversas aparências.

“O luto, de modo geral, é a reação à perda de um ente querido, à perdade alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, aliberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante. Em algumas pessoas, asmesmas influências produzem melancolia em vez de luto; por conseguinte,suspeitamos de que essas pessoas possuem uma disposição patológica”.

Assim, Freud se expressa logo no início de seu texto. Onde apósdescrever seu método de análise – homólogo ao trabalho da significação dossonhos – tentará trabalhar a melancolia em comparação com o luto.

As características da melancolia estão na mesma linha dos transtor-nos causados pelo luto com esta diferença fundamental de que na melanco-lia, o Eu do sujeito encontra-se no lugar central e, mais do que isto, é esteEu que será degradado.

“A perturbação da auto-estima está ausente no luto; afora isso, po-rém, as características são as mesmas”, afirma Freud.

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O trabalho freudiano avança no sentido de descrever como o sujeitorelaciona-se com uma perda e quais os fatores que podem fazer com estetrabalho de luto passe a se transformar numa situação melancólica. A perdarelaciona-se com um objeto amado e, conseqüentemente, idealizado. ”Ondeas causas excitantes se mostram diferentes, pode-se reconhecer que existeuma perda de natureza mais ideal. O objeto talvez não tenha realmente morrido,mas tenha sido perdido enquanto objeto de amor”.

Acrescentemos que certos aspectos da parcialidade do objeto e suadificuldade de apreensão devem-se a gama de significações das quais estáinvestido este objeto perdido. Como verificamos na afirmação de Freud: “...mesmo que o paciente esteja cônscio da perda que deu origem à sua melan-colia, mas apenas no sentido de que sabe quem ele perdeu, mas não o queperdeu nesse alguém”.

Estas observações serão amplamente desenvolvidas por Lacan, prin-cipalmente em seu seminário sobre “A transferência”, onde, a partir da no-ção de imparidade subjetiva, desenvolve a dialética das posições do “amado”e do “amante”, onde ambos encontram articulados por seu lugar de desco-nhecimento. O amado não sabe o que o outro vê nele, assim como o amantenão sabe exatamente o que o faz desejar.

Mas retornemos ao quadro clínico freudiano. Freud insiste na perdada auto-estima, onde o EU passa a ser fonte de todas as mazelas, comouma das características essenciais da melancolia. Além disto, apresentauma série de desdobramentos, efeitos da patologia do luto que nos levam apensar na atualidade desta clínica.

“Esse quadro de um delírio de inferioridade (principalmente moral) écompletado pela insônia e pela recusa a se alimentar, e – o que é psicologi-camente notável – por uma superação do instinto que compele todo ser vivoa se apegar à vida”.

Esta observação, além de outras ao longo do texto, apontam a insô-nia e os graves transtornos alimentares atuais (anorexia, bulimia) como po-dendo ser estudadas como uma transformação do Eu, na sua identificaçãocom o objeto perdido. O suicídio e a mania também são outros efeitos cita-dos no texto.

Quando falamos anteriormente na angústia que um psicanalista temque suportar, podemos nos referir a esta tarefa solitária; onde fazer atos quecortem com os diversos desdobramentos patológicos da tristeza (no Brasil:termos singulares como ‘saudade’, ‘banzo’ mostram os deslizamentos denossa língua para nomear o inominável), nos levam ao encontro transferencialcom a impotência, com os remorsos e pesadelos noturnos e diurnos pormortes não elaboradas. Daí a necessária função da instituição dos analis-tas.

Freud nos indicou também um caminho para a escuta. O sintoma éalgo da ordem da verdade para quem sofre. Não é o caso de se fazer juízosde valor a respeito das queixas e suas respectivas demandas.

“Seria igualmente infrutífero, de um ponto de vista científico eterapêutico, contradizer um paciente que faz tais acusações contra seu ego.Certamente, de alguma forma ele deve estar com a razão, e descreve algoque é como lhe parece ser”.

A pergunta freudiana dirige-se então muito mais no sentido do porquêuma pessoa precisa adoecer para ter acesso a uma verdade sobre si mes-mo.

“O ponto essencial, portanto, não consiste em saber se a autodifamaçãoaflitiva do melancólico é correta, no sentido de que sua autocrítica esteja deacordo com a opinião de outras pessoas. O ponto consiste, antes, em saberse ele está apresentando uma descrição correta de sua situação psicológi-ca. Ele perdeu seu amor-próprio e deve ter tido boas razões para tanto”.

“É assim que encontramos a chave do quadro clínico: percebemosque as auto-recriminações são recriminações feitas a um objeto amado, queforam deslocadas desse objeto para o eu do próprio paciente”.

Apenas uma rápida observação sobre esta articulação com o outro.Ela será extensamente desenvolvida por Lacan, ao descrever a constituiçãodo Eu a partir de sua alienação ao outro, via imagem especular; assim comoa identificação do sujeito com a falta de objeto (vide Seminário IV). Sem falarnos desdobramentos das três identificações, a partir do seminário 9 – “aIdentificação”, onde o traço unário passa a ter lugar de destaque. Vamos nosater a observar como Freud apresenta uma das mais importantes contribui-

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ções conceituais: a relação com a perda do objeto.Assim, retornamos ao texto. Estas duas citações de “Luto e melan-

colia” sublinhadas acima, fruto da clínica cotidiana de Freud, nos levam dire-tamente a pensar a importância fundamental deste processo pelo qual a faltade objeto transforma-se em condição central na análise da melancolia. E,como poder conceituar que “a sombra do objeto” que se projeta sobre o Eu ,por este processo de identificação do Eu com o objeto perdido, passe a teruma função primordial na vida de um sujeito.

Freud escreve desta maneira: “Assim a sombra do objeto caiu sobre oeu, e este pôde, daí por diante, ser julgado por um agente especial, como sefosse um objeto, o objeto abandonado. Dessa forma, uma perda objetal setransformou numa perda do eu e, o conflito entre o ego e a pessoa amada,numa separação entre a atividade crítica do eu e o eu enquanto alterado pelaidentificação”.

A partir daqui, vamos a algumas hipóteses. O sombreamento do Eupode nos interessar no seguinte sentido: trata-se do sombreamento dos su-portes simbólicos do Eu. Um recobrimento feito pela dimensão imaginária doobjeto que se torna hegemônica. Daí a dificuldade do sujeito que nos fala, naclínica, reinserir os elementos simbólicos que constituem os suportes desua história e, conseqüentemente, de seu Eu.

Seria importante definir de que “elementos” simbólicos estamos falan-do. Tratam-se de significantes. Significantes fundamentais que perderam suafunção de deslizamento ao ficarem presos a sentidos restritos (a serviço daimpotência e da tristeza), ou talvez, significantes que não foram inseridos naconstelação enunciativa de um sujeito.

Alfredo Jerusalinsky, em recente palestra na APPOA, se refere a istocomo uma impossibilidade de encontrar uma forma de representação doobjeto perdido que re-insira a ordem simbólica. Coerente com a concepçãofreudiana da melancolia se instaurar quando evidencia-se a impossibilidadede substituição do objeto. O luto é o trabalho feito para elaborar a perda doobjeto (sempre perdido) e nossa identificação com esta falta. A melancoliaseria um sentimento decorrente do luto e a depressão sua patologia.

Nos interessa, em todo caso, acentuar este caráter de hegemonia doimaginário, onde sustentar-se prevalentemente nesta dimensão (ou dit-mansion, mansão do bem ou mal dito) implica uma reafirmação da castra-ção em sua vertente imaginária. O Real – cuja impossibilidade deveria ater-se ao sintoma e ser reconhecido como impossível, em seus desdobramen-tos inconscientes e corporais –, fica relegado a tarefa de sustentar estaforma particular de nodalização onde I recobre parte significativa de S. Comisto, estamos fazendo referência a elaboração de Lacan ao relacionar inibi-ção, sintoma e angústia com os registros do Real, Simbólico e Imaginário.Onde o sintoma, em sua condição estrutural, seria o recobrimento do Realpelo Simbólico (aí apareceriam os furos no Real) e, a inibição seria o efeitodo sombreamento da dimensão simbólica pelo imaginário.

A partir daqui, muitas questões ficam em aberto. Como dissemos noinício, seguindo a Freud, a psicanálise está na antítese das totalizações,elas servem para alimentar a potência imaginária do Outro. Mas algumasdestas considerações podem ser enunciadas como atuais. Por exemplo: oque funciona hoje como suporte simbólico para um sujeito? A perda da auto-estima, num mundo onde a hegemonia do narcisismo é a tônica, pode pare-cer um sintoma paradoxal. Neste sentido, o imperativo do gozo, traduzido naexigência de felicidade e na promessa de que os objetos podem suprir todasas faltas, no mínimo impõem dificuldades a um trabalho de luto.

O imaginário pode fazer esta função simbólica? Sabemos que Nome-do-Pai é um significante de estrutura, porém, como pensar que este é umsignificante que deve advir na presença da ausência de um significante queencubra a falta no Outro. Este lugar da palavra, que não quer nada do sujeito,mas que, ao mesmo tempo, é constantemente substantivado, feito consis-tência para que um sujeito possa se suportar na sua existência. Os analis-tas, em seu trabalho de luto, talvez tenham algo a dizer sobre isto.

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Penso, portanto, que Freud aponta a mais de um tipo de luto patológi-co: o primeiro, em alguns casos de neurose obsessiva; o segundo, na me-lancolia. (Na neurose histérica também deve haver).

A MELANCOLIACom seu diferencial último na regressão da libido ao ego, a melanco-

lia guarda em comum com o luto a dor e o dispêndio de energia tão vastosque o ego se apresenta muito empobrecido. É na questão do narcisismocomo tipo de escolha objetal e da identificação ao objeto perdido que encon-traremos algumas chaves, diz Freud.

Após esta pequena introdução, interessa-me apresentar um fragmen-to da análise de uma senhora cuja principal queixa ela resume na palavratédio, um sentimento constante na sua vida. Penso em que lugar ocupaesse tedium vitae para ela.

É evidente a diminuição de energia disponível de que usufrui, porémnão sem angústia. Freqüentemente, também, diz pensar em desaparecer,deixar de ser; isto acontece principalmente à noite, ao deitar-se, quando oque a tranqüiliza e permite o adormecer é pensar que vai dormir e, assim,deixar de ser por algumas horas. Um dia ela traz este pequeno fragmento desonho:

Um menino e uma menina estão num poço, um desses poços d’águaredondos. Estão no fundo do poço – perdidos. Abandonados? Para morrer,certamente. É um poço que está seco. Olho agora como se fosse pelo olharda menina; olho para cima, olho para o menino, vejo nós dois como sefôssemos meio misturados. Tudo tem um tom amarronzado.

Acordo e penso em como poderia ser a dor de morrer de fome, o queme causa muito sofrimento.

Pensa então nos filhos e, logo, em si e seu irmão – companheiro debrincadeiras quando crianças. Ele era quem inventava os jogos perigosos deque a mãe não gostava. Sente pena de si e do irmão – poderiam já ter sidocastigados assim? Não acredita, mas fica com um sentimento ímpar de mal-estar.

LUTO, MELANCOLIA, DUPLO, DESAMPARO1

Marta Pedó

O LUTO

No processo normal de luto, Freud2 lembra que o mundo parece vazioao sujeito. Ele despende uma enorme quantidade de energia para ir,devagarinho, retirando suas ligações com o objeto perdido. É um

processo doloroso, pois, cada vez em que uma das lembranças é evocada,ela vem hiperinvestida, exigindo para o desligamento da libido uma quantida-de enorme de energia.

Freud não situa um tempo para o trabalho do luto, ele diz apenas queé longo e doloroso. Mas um trabalho depois do qual o sujeito sai, simples-mente, sem nenhuma intervenção terapêutica necessária. Não é sofrer oulevar muito tempo que deve nos (pre)ocupar, portanto. É algo mais o quecaracteriza o patológico. O que seria?

Parece-me, desde a leitura de “Luto e Melancolia”, que melancolia eluto patológico não são sinônimos, embora guardem semelhanças entre si.Freud identifica reações melancólicas na neurose obsessiva, com predomí-nio de auto-recriminações, o que estaria presente na melancolia propriamen-te dita, porém nesta a regressão da libido isenta o sujeito de responsabilizar-se pela auto-recriminação e ter vergonha de fazê-lo publicamente. Ou seja,se a auto-estima está abalada na neurose obsessiva, pela ambivalência afetiva,na melancolia ela é o determinante de o sujeito perder toda sua discriçãopara consigo mesmo, como se não houvesse amor-próprio em absoluto. Oelemento da vergonha está ausente no melancólico, que faz pública e cons-tante toda sua enfadonha lamúria.

1 Texto elaborado para o estudo de “Luto e Melancolia”, de Freud, e apresentado em Canelapor ocasião do Relendo Freud e Conversando sobre a Appoa em maio último.2 Freud, S. “Luto e Melancolia” [1917] in: Obras Completas, Ed. Imago, Rio de Janeiro, 1976.

PEDÓ, M. Luto, melancolia, duplo, desamparo.

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Um sonho é sempre relativo a um desejo – de que desejo estaríamostratando neste sonho? O sujeito está no fundo do poço, desamparado. Nãose trata de um sonho agradável de maneira nenhuma; mas mesmo ali, nofundo do poço, a paciente refere em suas associações a possibilidade –negada – de que isto seja um castigo, como se fosse suposta a presença deuma mãe castigadora. Ou seja, uma presença viva. Estar no fundo do poço,com toda a força da metáfora, mas pelo menos com a mãe viva, este poderiaser o desejo em questão, algo tal como se alguém com fome e frio mereces-se colo.

Aventuramo-nos a conjeturar – seria esta uma reação melancólicacomo forma de evitar o desamparo? De outro modo, teríamos de pensar nodesejo pelo desamparo, pela morte, e, conseqüentemente, no masoquismo.Em ambas situações, pela via do ser castigada, ou pela via da erotização dodesamparo, o masoquismo se faz presente.

Um lembrete não sem importância para nosso estudo: em 1917, quandoescreve “Luto e Melancolia”, Freud ainda não escreveu “Além do Princípio dePrazer”, ou seja, ele ainda considera que o sadismo é o ponto inicial para umsujeito e que o masoquismo seria secundário à introjeção deste sadismo,como por exemplo no caso da ambivalência que faz prolongar o processo deluto pela perda de um objeto amado através de auto-recriminações.

CASTIGO – AUTO-RECRIMINAÇÃONa melancolia ou no luto patológico no quadro de uma neurose obses-

siva, a auto-recriminação é a manifestação mais aparente. O conflitosubjacente é relativo à ambivalência de sentimentos amorosos e hostis paracom o ente querido perdido. O melancólico se auto-tortura, o obsessivo seauto-recrimina – são fenômenos equivalentes em sua conflitiva, mas não emsuas conseqüências.

Seguimos em “Luto e Melancolia”, onde o sado-masoquismo é descri-to como o que, elevado ao grau máximo, pode resultar no suicídio, ato emque alguém objetivaria matar em si mesmo o ódio responsável pela perda doobjeto amado. Algo como eliminar o culpado, portanto. Mas há uma distin-ção importante a fazer entre pensamentos e atos suicidas – os atos reque-

Lembra, então, de uma história em que o príncipe é deixado num poçopela rainha para se afogar – é um fragmento antigo, só tem esse registro,nem lembra que história é essa.

Água, fome, frio, solidão.Mais uma lembrança – o filme do Conde Drácula, o vampiro.Sempre conheceu apenas a história do Drácula já vampiro, este filme

conta quase como história de amor a passagem em que ele se rebela contraa Igreja.

Ele era um Conde respeitado e religioso que partira para lutar em umaCruzada, deixando sua amada no castelo, com padres que a cuidavam. Esta,durante a longa espera, de anos, recebe a mensagem enganosa de que oConde morrera durante uma batalha. Não suportando a dor, ela se suicidaatirando-se ao rio. Quando o Conde retorna, recebe a notícia da morte e deque ela não recebera a bênção da Igreja, pois o suicídio é pecado. Então,rebela-se e se torna o vampiro.

Já como homem-vampiro, o Conde escuta o lamento de sua amadaque diz em tom de apelo que o rio é tão frio e que ela está tão sozinha...

Na morte pelo frio e pela fome, pensa, a pessoa adormece antes desofrer demais – alivia-se ao pensar isto, pois a passagem do filme lhe causacalafrios.

Volta ao sonho: – Por que o irmão junto? Talvez porque aqueles mo-mentos de castigo fossem os momentos em que tinha muita raiva de suamãe. Tinha vontade de cuidar do irmão, como quando fazia os temas porele.

A mãe desta paciente, já falecida há cerca de 15 anos, era semprelembrada com especial carinho até este momento, quando passa a se per-guntar se ela tinha mesmo sido uma pessoa tão abnegada quanto antespensava. Explico melhor: a idéia do carinho predominava até que, recente-mente, ela escuta de uma amiga da mãe um conselho de maternagem (idéiade sua mãe). Diz ela que um bebê, estando bem alimentado, limpo e semfrio, não tem porque não ficar em seu berço, não precisa de colo. A paciente,então, escuta com descrença, não conseguindo acreditar que sua mãe pu-desse ter dado conselhos para uma conduta tão fria.

PEDÓ, M. Luto, melancolia, duplo, desamparo.

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Este tipo de confusão entre a perda efetiva do objeto e a perda doamor do objeto nos faz voltar ao sonho da paciente, que desejaria a mãeinsatisfeita consigo; ou melhor, com ela e com seu duplo: o irmão, compa-nheiro – descrito como o par ativo – lugar masculino de sua inveja. Aqueleque tinha a coragem de desafiar a mãe e pôr em prática seu ódio.

O conceito do duplo, do mórbido e do estranho tem um espaço espe-cial na obra de Freud4, que qualificou de unheimliche os fenômenos estra-nhos, assustadores e familiares. É possível encontrar inúmeros exemplosdo uso do mórbido e do estranho na literatura, em especial de ficção, em quesombras, espelhos, espíritos guardiões, duplos, robôs, clones, almas gême-as que se encontram em momentos históricos diferentes, e outros afins,com a crença na alma e o medo da morte. A idéia da alma imortal foi prova-velmente um dos primeiros duplos do corpo e sua origem seria muito primiti-va, no narcisismo primário.

Embora a difusão do seu uso, Freud resguardou à vida real o apareci-mento do fenômeno do estranho, momento em que determinadas situações,combinadas em condições especiais como numa repetição, provocam umasensação estranha, que evocaria o desamparo experimentado em algunssonhos. Aqui é a compulsão à repetição que tem seu efeito de estranho àpercepção.

O estranho aparece aqui como o reprimido do temor ao desamparo, ea melancolia como expressão sintomática de defesa contra o desamparo.Este estaria já presente como condição mórbida – porém ligado à noção docastigo. Castigo infligido pela suposta mãe no sonho, castigo à suicida,àquela que não suportou a espera.

O desamparo idolatrado e idealizado, ativamente buscado por vezes.Existe a permanência da crença num além-morte – este ainda parece ser odeterminante do cunho obsessivo ao quadro.

Arriscamos mais um pensamento: a pré-condição mórbida à melan-colia seria um desamparo (amoroso) experimentado. O caminho para a saí-

4 Freud, S. “O Estranho” [1919] in: Obras Completas, Ed. Imago, Rio de Janeiro, 1976.

rem mais do que a ambivalência sado-masoquista, eles requerem que osujeito trate a si mesmo como objeto, ou seja, estaríamos na regressão dalibido ao narcisismo tal qual num quadro de melancolia.

A senhora do sonho tem pensamentos de tipo suicidas (pensar emdesaparecer e deixar de ser durante o dormir) e produz a associação dahistória de amor do Conde Drácula. O relato faz saltar aos olhos dois pontos:a falha da Igreja e o sofrimento no apelo da suicidada. A Igreja, na figura dospadres, falhou em sua função de proteção e não acolheu o sofrimento damulher que não suportava mais esperar, com o agravante de que este mes-mo sofrimento, a espera, dizia respeito a uma guerra santa. Fica-se com aimpressão de que o Conde teria boas razões em rebelar-se diante de umabandono tão brutal. O guardião não resguardou e, ainda, renegou sua ove-lha. Não é sem importância pensar a figura do guardião – o guardião da rochada castração, diríamos, que faz neste caso seguirmos no gozo fálico. Essasenhora segue com o guardião a fantasiar, pensar, sonhar com o sofrimentodo desamparo, evocado pelo apelo da suicidada, que fala da solidão e do friono fundo do rio, e também pelas crianças abandonadas no fundo do poço.

O sentimento de desamparo é, em “Inibição, Sintoma e Angústia”3,apontado como o que se apresenta à criança pequena ameaçada da ausên-cia da mãe – ou seja, ameaçada da perda do objeto. Um pouco mais claro:o desamparo seria a conseqüência de algo que a criança prevê em suaangústia. Numa criança pequena, a angústia antecipa o perigo da perda, operigo do desamparo, mas ela vem acompanhada do componente da dor daperda em si, numa certa confusão entre antecipação e fato ocorrido.

Um primeiro elemento, então, a pensar é o de que há um período emque a percepção da possível perda evoca na criança o sentimento da perdaem si. Adiante, encontramos que uma criança vai distinguir entre perda doobjeto e perda do amor do objeto, este sendo um novo perigo, bem maisduradouro e fonte determinante de angústia de ali em diante.

3 Freud, S. “Inibições, Sintomas e Ansiedade” [1926] in: Obras Completas, Ed. Imago, Rio deJaneiro, 1976.

PEDÓ, M. Luto, melancolia, duplo, desamparo.

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A DOR EMUDECIDA NA ANOREXIA E NA BULIMIA

Rosane Monteiro Ramalho

Atualmente, é crescente o número de casos de anorexia e de bulimia,bem como é assunto recorrente na mídia. Na clínica, a escuta dealgumas pacientes com tais problemáticas levou-me a investigar as

produções já existentes sobre o tema, essas, porém, em alguns aspectos,não correspondiam ao que escutava.

Muitos estudos na área médico-psicológica geralmente consistemnuma descrição fenomenológica, sendo associados a uma exagerada preo-cupação com o corpo, corroborada pelo ideal social do “corpo perfeito”, quepreconiza a magreza como padrão estético. Obviamente que a cultura emque essas pacientes estão inseridas tem influência sobre elas. Relacionadaa este ideal, portanto, encontra-se a proliferação de inúmeros tipos de die-tas, moderadores de apetite, cirurgias estéticas, bem como academias deginástica. No entanto, a questão é como esse ideal é tomado por essasjovens que acabam apresentando anorexia e bulimia.

Entre os estudos psicanalíticos, existe um relativo consenso em atri-buir esses sintomas a dificuldades nas relações primordiais dessas pacien-tes, que influenciariam na imagem que elas têm de si mesmas. Entretantoalguns deles consistem numa interpretação psicológica, atribuindo essaspatologias, por exemplo, a uma recusa da feminilidade, numa tentativa demanter o corpo infantil. Outros interpretam-nas como uma recusa do corpoestando associado ao sexo, ou ao “pecado”. Alguns consideram tais mani-festações como autodestrutivas, outros, ainda, como onipotência, havendouma recusa da falta, uma recusa da diferença.

Assim, o que escutava de minhas pacientes, em determinados as-pectos, se contrapunha ao que encontrava em muitas produções sobre oassunto, nas quais algumas generalizações também me causavam um cer-to incômodo, uma inquietação, levando-me a escrever. Partindo da escuta decasos clínicos e lançando um outro “olhar” sobre essas problemáticas, pro-ponho, então, uma outra perspectiva de interpretação.

da, neste caso, parece ter sido primeiro poder esboçar essa queixa: ela éque me deixou pela sua frieza, diferente do auto-referido castigo: ela medeixou porque minha ambivalência, meu ódio, me faz indigna do seu amor.

“É verdade que a afirmação “Todos os homens são mortais” é mostra-da nos manuais de lógica como exemplo de uma proposição geral; masnenhum ser humano realmente a compreende, e o nosso inconsciente temtão pouco uso hoje, como sempre teve, para a idéia da sua própria mortalida-de.” (Freud, 1919).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:Freud, Sigmund. “Luto e Melancolia” [1917] in: Obras Completas, Rio de Janeiro

Ed. Imago, 1976._____________. “O Estranho” [1919] in: Obras Completas, Rio de Janeiro, Ed.

Imago, 1976._____________. “Inibições, Sintoma e Ansiedade” [1926] in: Obras Completas,

Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1976.

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SEÇÃO TEMÁTICA

No caso de minhas pacientes, a dificuldade na relação com suasmães não fazia parte, a princípio, de seus discursos. Trata-se de constru-ções ao longo dessas análises, uma vez que, diferentemente dos relatoscomumente escutados de neuróticos – que se colocam num lugar de vítima,mesmo que sentindo culpa –, essas pacientes não atribuíam ao outro (nocaso, a mãe) a causa de seus problemas. Ao contrário, elas se considera-vam as únicas responsáveis por eles, como se sua insuficiência ou desvalorfosse algo inquestionável e razão de suas dificuldades. Ou seja, que, por suaresponsabilidade, não se fizeram amar. Seus discursos aí se mantinham,bem como se restringiam às suas dificuldades alimentares, como se essasmulheres não tivessem uma história. Somente ao longo das análises é quefoi, então, construída uma narrativa, uma história, que possibilitasse queseus atos acedessem à fala.

Por não encontrarem um lugar no desejo materno em relação a si (ouencontrarem-no de forma frágil), isto é, por não se tratar de um Outro desejante,castrado, mas, absoluto, sem falta, sem desejo, sem a possibilidade (oucom muita dificuldade) de uma alteridade – em relação ao qual era difícil umaseparação, uma distinção, só restando o desamparo e a angústia do aban-dono – elas tentavam corresponder, então, a um ideal impossível, inatingível,um ideal de perfeição, muitas vezes, de uma forma obstinada.

Penso que isso nos ajude a entender a demasiada exigência emrelação a si característica dessas pessoas. O que também podemos deno-minar como um “superego sádico, mordaz” (um superego materno). Issoparece também explicar a tendência ao masoquismo nessas pacientes, oque também encontramos na melancolia2.

Alguns autores consideram que a anorexia e a bulimia não constitu-em uma estrutura psíquica diferençável. No entanto, às vezes, são denomi-nadas como estados limites3; outras vezes, patologias do narcisismo4, ou do

2 Freud (1924) diferencia a melancolia da psicose e da neurose, passando a denominá-la deneurose narcísica, resultando de um conflito entre o eu e o supereu.3 JEAMMET, P. In: URRIBARRI, R. (org.). Anorexia e bulimia. São Paulo: Escuta, 1999.4 ANDRÉ, J. As origens femininas da sexualidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

Na escuta dessas jovens, em suas distintas histórias, eu percebiacertos aspectos em comum. Elas apresentavam uma problemática imagemde si, sendo frágeis suas sustentações enquanto sujeito. Além disso, asmanifestações de anorexia e bulimia iniciaram após um rompimento amoro-so, vivido, por elas, como experiências de abandono, de desamparo. Aolongo dos processos de análise, essas pacientes puderam também falar dadifícil relação que tinham com suas mães, sentindo-se “abandonadas” porelas, ou seja, sentiam não ter encontrado um lugar para si no desejo mater-no, embora, na busca de encontrá-lo acabassem numa posição sacrificial,com uma extrema exigência em relação a si.

Sabemos que a aquisição da imagem de si – como constitutiva dasubjetividade –, é tomada especularmente, a partir do olhar, do desejo de umoutro (no caso a mãe, como encarnação deste Outro primordial) endereçadoao sujeito. Imagem esta que passa a ser uma matriz simbólica em seuprocesso de identificação. No entanto, a falta de um olhar, de um desejo queforneça uma imagem de si, permanecendo o modelo ideal sempre inacessí-vel, “estrangeiro”, fora do alcance do sujeito, é o que se encontra na melan-colia1. Aliás, esta parece ser a verdade explicitada no sofrimento melancóli-co; ou seja, ele, mais do que ninguém, conhece o desamparo, a fragilidadecom que nos sustentamos enquanto sujeitos: uma imagem, uma ilusão. Ouseja, sabe que “o rei está nu”. Enfim, tem acesso à verdade do logro egóico:a ilusão da identidade – esta irredutível ficção que define o sujeito –; e é estaconsciência tão crua, esta impossibilidade de ter uma ilusão, um engodo,esta estreita proximidade com a morte, que torna sua vida tão cinza, semesperança e amarga.

A frágil imagem de si característica das pessoas que apresentamanorexia e bulimia muitas vezes decorre do fato de se sentirem atendidassomente em suas necessidades orgânicas e não encontrarem acolhida àssuas demandas psíquicas, não lhes sendo oferecido um olhar, através doqual pudessem obter um reconhecimento enquanto sujeito.

1 A cerca disso, Lacan propõe que, na melancolia, trata-se do suicídio do objeto, de umobjeto que entrou, de algum modo, no campo do desejo e que, por sua ação, ou por qualquerrisco que correu na aventura, desapareceu.

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SEÇÃO TEMÁTICA

Consistem na tentativa, embora fracassada, da demarcação de um dentro ede um fora, uma vez que encontram-se fragilizados os limites tanto corpo-rais, quanto psíquicos.

Para pensar tal processo, utilizo-me das contribuições de Freud, Lacane Hyppolite sobre a introjeção e a incorporação como protótipos da identifi-cação. Enfim, a instauração de um dentro e de um fora considerada comoum processo constitutivo do simbólico. Nesta linha, também, relaciono afreqüente divisão, estabelecida por essas pacientes, entre objetos conside-rados bons (que podiam ser introjetados), enquanto outros classificados comomaus (que deviam ser rejeitados).

Considero esta questão importante para pensarmos a problemáticada anorexia e da bulimia, pois, muitas vezes, são interpretadas como atospuramente destrutivos, quando parecem tratar-se justamente do oposto.Assim, ao meu ver, a partir desses casos, tais manifestações, paradoxal-mente, por mais que possam levar à morte física, consistem também numaluta pela vida, pela vida psíquica, sendo uma tentativa desesperada de esta-belecer uma falta, de uma separação, até então impossível de ser simboliza-da. Discordo, portanto, de alguns autores que sustentam a idéia de umarecusa da falta, e também de uma recusa de qualquer internalização.

Nessa direção, tanto na anorexia quanto na bulimia, encontra-se umaproblemática de domínio, de controle, porém, mais do que controlar, dominaro objeto, a tentativa da paciente parece ser de defesa, de sair da condiçãoem que se encontra dominada, anulada, “engolida”. Podemos pensar queessas manifestações consistam na única forma possível de se rebelar, dedizer não, negação esta necessária ao acesso a uma condição subjetiva. Aanorexia e a bulimia são, no entanto, respostas diferentes e, por que nãodizer, opostas, à mesma questão fundante.

Assim, o forçar a paciente a comer – atitude freqüentemente tomadaem muitos tratamentos – acaba fazendo, geralmente, com que ela intensifi-que a resistência, por se encontrar acuada, ameaçada psiquicamente, porse sentir invadida, dominada, “engolida”, pois o que ela mais teme é a perdade controle em relação à comida, em relação ao Outro, ou seja, sua morte

ideal5. Muitos autores também as associam à depressão ou melancolia6,como já o faziam Freud e Abraham.

Embora essas manifestações não consistam numa estrutura especí-fica, através do discurso dessas pacientes, podemos encontrar um substratocomum. Parece haver uma deficiência, uma precariedade relativa à identifi-cação primária, devido a sentir não ter sido investida de forma a ter significa-do o falo imaginário materno – o que poderia imaginariamente suprir a faltamaterna. Pois, por mais que se configure ilusório e que, além disso, sejapreciso deixar de sê-lo para aceder a uma posição subjetiva (isto é, é neces-sária a castração), sabemos que, para deixar de sê-lo, é preciso “ter sido”antes. Então, é necessário ter havido a alienação para haver a separação.

A partir desses casos, podemos pensar que a anorexia e a bulimia –ou seja, a recusa ou a ingestão excessiva seguida pela expulsão do objeto-alimento – parecem ser tentativas de estabelecer uma separação, uma faltaaté então impossível de ser simbolizada, tal qual o brincar infantil de fazerdesaparecer o objeto. Reporto-me, então, ao Fort-da freudiano, enquantoconstitutivo do simbólico.

Desta forma, ao invés de ser abandonada, é ela (anoréxica ou bulímica)quem abandona, que recusa. Faz a tentativa de passar da experiência queviveu passivamente à atividade. Ao invés de ser abandonada, ela se torna,então, a autora da separação. Busca, na ausência do objeto, a presença desua representação, uma “presença na ausência”.

Assim, na falta de uma introjeção simbólica do objeto, tais manifesta-ções, através de um objeto real (no caso a comida), consistem ou numarecusa – na anorexia – de forma a inscrever uma falta, um limite; ou naincorporação e expulsão do objeto – na bulimia –, de maneira a buscar oestabelecimento de uma introjeção (e, conseqüentemente, de uma separa-ção). Ambas, de formas, porém, distintas, implicam a possibilidade de umarecusa, a busca de uma diferenciação, de um reconhecimento como sujeito.

5 LAMBOTTE, M-C. “A deserção do Outro”. In A clínica da melancolia e as depressões -Revista da APPOA. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2001.6 HERSCOVICI, C. & BAY, L. Anorexia nervosa e bulimia. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

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Porém, para além da questão diagnóstica, o que considero significa-tivo, no caso dessas pacientes, é a especificidade da relação de objetoestabelecida. Para pensar tal questão, tomo, de Lacan, os conceitos de faltasimbólica (ou castração), falta imaginária (ou frustração) e falta real (ou priva-ção). Nesse sentido, na recusa do objeto da necessidade (na anorexia) ouna sua ingestão e posterior expulsão (na bulimia), trata-se da tentativa deinscrever uma falta simbólica, uma vez que a problemática dessas pacientesparece consistir em uma falta real, da ordem da privação. Parecem lidar coma falta - ou precariedade - deste agente simbólico que possibilitaria, então, ainscrição desta outra falta, a falta simbólica e o acesso ao desejo. No entan-to, na busca de fazer uma falta no Outro, acabam por fazer é nelas mesmas.

Mediante essas manifestações alimentares, é como se essas jovens“dissessem” que, mais do que do objeto da necessidade orgânica, era doobjeto de “necessidade” psíquica que precisavam para viver; enfim, que ne-cessitavam de desejo para viverem, para não morrerem enquanto sujeito.

A partir desses casos, penso que essa possa ser uma direção daclínica da anorexia e da bulimia, ou seja, possibilitar que essa dor emudecidae atuada possa ter uma inscrição, uma representação, que possa ser, então,nominada. Que o ato possa dar lugar à palavra, de forma que o sofrimentodessas mulheres consiga, portanto, adquirir uma inscrição, a partir daespecificidade do lugar ocupado pelo analista. Para isto é necessário que apaciente encontre uma acolhida no desejo de seu analista, para que possa,então, também ter acesso ao seu. Isto é, uma acolhida que possibilite, quepermita, uma separação, uma diferenciação. Que o analista possa oferecerum “olhar”, um testemunho, possibilitando que o apelo emudecido, sufocadoe desesperado de sua paciente adquira uma inscrição. No entanto, que con-siga transitar com ela, na transferência, no estreito limite entre o abandono eo ingurgitamento; ou seja, nem muito perto, que sufoque, nem muito longe,que abandone.

Enfim, que essas pacientes passem a poder falar, simbolizar essafalta, esse vazio... que sua dor, até então silenciada, possa ser nominada...que, no lugar do ato, possa vir, enfim, a palavra... que possam, então, rees-crever – ou mesmo escrever – suas histórias.

psíquica. Por isso, o fato de a intervenção analítica tomar o sintoma da paci-ente como uma busca pela vida, por um reconhecimento enquanto sujeito, –enfim, tomar o seu aspecto constitutivo –, pode, justamente, implicar noabrandamento, por parte da paciente, da necessidade de seu sintoma. Istoé, fornecer uma via discursiva para o ato.

Acredito que tais manifestações, mais do que se tratar de sintomasneuróticos propriamente ditos (no caso, retorno do recalcado, ou formaçãosubstitutiva), por não serem decorrentes de um recalcamento, mas, justa-mente, de sua falha, de sua precariedade, consistem, portanto, ao meu ver,numa tentativa de instaurá-lo. Por isso, tais sintomas parecem tratar-se deatos que “escaparam” ao simbólico, que decorrem das suas brechas – daí aangústia – e, por isso, serem uma tentativa de estabelecer um recalcamento,obtendo, assim, uma inscrição.

A partir desses casos, penso existir, então, uma outra perspectiva deinterpretação dessas manifestações, não como uma recusa da castração,da falta, mas enquanto uma tentativa de instaurá-la.

No sofrimento dessas mulheres, podemos escutar um apelo de virema aceder a uma condição de sujeito, ao desejo, e, portanto, à feminilidade.Porém, é necessário escutar o que está emudecido no ato. Essas pacien-tes, em seu silêncio, “pediam” um reconhecimento enquanto um ser diferen-ciado. No entanto, trata-se de um limite, que, mais do que impossibilitar umarelação, justamente, a promove, fornecendo-lhe as condições. Buscavamum lugar no desejo do Outro – todavia, um desejo, não uma demanda impe-rativa – que lhes permitissem existir, bem como, que lhes fossem reconheci-das a sua feminilidade.

É possível que, muitas vezes, as interpretações de recusa da femini-lidade e mesmo de autodestrutividade decorram do impacto que a visão docorpo emagrecido da paciente provoca no terapeuta, ou naquele com quemela se depara. É como se o horror da figura esquálida se sobrepusesse,dificultando e, por vezes, até impossibilitando a escuta da paciente. A escu-ta de um sofrimento que requer um esforço para que consiga ser formuladoatravés de palavras, manifestando-se, geralmente, por atos, ou nas “entreli-nhas”.

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transformação do afeto (neurose de angústia e melancolia).Se a pulsão não nos aparecesse sob a forma de afeto, nada podería-

mos saber sobre ela, afirmava Freud dois anos antes em “O inconsciente”. Oafeto está sempre à deriva, não é recalcado, apenas os significantes que oamarram podem sê-lo. A neurose traumática testemunha os efeitos de umafeto produzido por um sujeito quando confrontado com a iminência de suaprópria morte. A melancolia nos diz dos efeitos produzidos por uma perdaque não encontra registro e que busca inscrição no eu, mediante uma iden-tificação.

Este artigo se situa entre a “Introdução ao narcisismo” (1914) e “O eue o isso” (1923) e parece assinalar que a clínica da melancolia joga umimportante papel nesta passagem. Na melancolia, um investimento de obje-to é substituído por uma identificação (1917). Porém, este processo não érestrito à melancolia, ele é mais geral, deduz Freud no capítulo III de “O eu eo isso” (1923). O que vem antes, o investimento de objeto ou a identificação?Esta questão perpassa vários outros escritos.

Uma das primeiras formulações do conceito de inconsciente deriva daclínica da histeria. No embate teórico com Breuer, que falava em estadoshipnóides, Freud vai além. A amnésia, o fato de não registrar na consciênciaeventos traumáticos, era tomado como algo próprio da histeria. Freud vaidizer que é próprio do funcionamento psíquico um plano de registro diferenci-ado. Poderíamos dizer que, para Breuer, só as histéricas têm inconscienteenquanto que Freud vai dar a real amplitude ao conceito.

Se, em 1917, ao refletir sobre a clínica da melancolia, Freud diz quese verifica a substituição de um investimento de objeto por uma identifica-ção, seis anos depois, ele dará uma amplitude maior a esta operação, situ-ando-a como constitutiva do próprio aparelho psíquico, dando origem ao super-eu. Assim, deduzimos, houve um tempo na história da formulação dos con-ceitos psicanalíticos em que se supunha que só as histéricas tinham in-consciente e outro tempo em que vigorou a suposição de que só os melan-cólicos tinham super-eu.

Como as pessoas referem perdas é algo que passei a escutar com

TRAUER UND MELANCHOLIE:TRADUZINDO OS NOMES DO EU

Liliane Seide Fröemming

Oh, pedaço de mimOh, metade arrancada de mim

Leva o vulto teuQue a saudade é o revés de um parto

A saudade é arrumar o quartoDo filho que já morreu

Oh, pedaço de mimOh, metade amputada de mim

Leva o que há de tiQue a saudade dói latejadaÉ assim como uma fisgada

No membro que já perdi(Chico Buarque – Pedaço de mim – 1977)

Freud inicia seu texto de 1917 dizendo que, se o sonho serviu comoparadigma normal das perturbações psíquicas narcísicas, agora a tris-teza – um afeto normal – servirá de base para explicar a melancolia.

Há, inclusive, uma homofonia entre Traum (sonho) e Trauer (tristeza). Trauerseria mais propriamente traduzido como tristeza, além de luto. A tristeza, oluto, a angústia são afetos. A melancolia pode ser explicada a partir de umafeto: a tristeza.

Um dos primeiros ensaios freudianos visando construir uma nosologiaenvolve justamente algo que nomearíamos como as vicissitudes dos afetos ea melancolia aparece como resultado de uma transformação do afeto. Emcarta a Fliess, em 1894, Freud escreve: “Tenho agora uma visão de conjuntoe uma concepção geral das neuroses. Conheço três mecanismos: conver-são dos afetos (histeria de conversão), deslocamento do afeto (obsessões) e

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eu alterado por uma identificação com o objeto perdido.Vamos propor um exercício de trabalhar algumas diferenças entre três

versões do texto freudiano, assinalando algumas diferenças entre o alemão,o espanhol e o português. Selecionamos o terceiro parágrafo:

“Die Melancholie ist seelisch ausgezeichnet durch eine tiefschmerzliche Verstimmung, eine Aufhebung des Interesses für dieAussenwelt, durch den Verlust der Liebesfähigkeit, durch die Hemmung jederLeistung und die Herabsetzung des Selbstgefühls, die sich in Selbstvorwürfenund Selbstbeschimpfungen äussert und bis zur wahnhaften Erwartung vonStrafe steigert”. (GW, Fischer Verlag)

“La melancolia se singulariza em lo anímico por una desazón profun-damente dolida, una cancelación del interés por el mundo exterior, la pérdidade la capacidad de amar, la innhibición de toda productividad y una rebaja emel sentimiento de sí que se exterioriza em autorreproches y autodenigracionesy se extrema hasta uma delirante expectativa de castigo” (OC, AmorrortuEd.).

“Os traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo pro-fundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perdada capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma dimi-nuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar expressão emauto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa expectativa deli-rante de punição” (OC, Imago Ed.).

Aufhebung, substantivo e aufgehoben, predicado, são termos nossosconhecidos da discussão de Lacan e Jean Hyppolite em torno da Verneinung(1925). Vou lhe dizer o que não sou, daí se conclui o que sou. Apresentar-secomo o que se é, sob a forma do não ser. Ao formular o que não sou, permitoconclusões sobre o que sou. Forma de expressão da denegação. Mas, dizFreud, a denegação é uma Aufhebung do recalque, mas nem por isso umaaceitação do recalcado. “O próprio processo do recalque ainda não foiaufgehoben por isso”. Aqui, prossegue, o intelectual separa-se do afetivo.Aufhebung remete à dialética de Hegel, que ao mesmo tempo quer dizernegar, suprimir e conservar, suspender.

mais cuidado desde que iniciamos a perscrutar a tristeza e a melancoliacomo nosso tema privilegiado. Trago duas referências que escutei recente-mente de pessoas que me contam como vivenciaram a morte de familiares.Se é que se pode vivenciar uma morte...

Uma mãe, que perdeu recentemente o único filho num acidente, contaque ele era muito cuidadoso e organizado, mantinha tudo em ordem, gostavade tomar banho, de ter tudo limpo, de se perfumar. Diz que o pior momentofoi quando teve que mexer em seus pertences. Não sabia o que fazer comaquilo. Havia dias em que arrumava a casa e, inadvertidamente, trocava asroupas de cama do quarto do filho. Foi muito difícil se desfazer do travessei-ro. O que escolhemos guardar quando alguém morre? Essa mulher, queinicia falando da limpeza do filho, talvez tenha guardado dele o único objetoque exalava seu genuíno cheiro.

Uma mulher, que iniciou há pouco sua análise, invoca como razãotransferencial, dentre outras, o fato de me ver constantemente fazer comprasem uma feira de produtos ecológicos (“alguém que tem cuidados com suaalimentação e de sua família, provavelmente é alguém capaz de ter outroscuidados...”). Não se sente com a idade que tem. Diz que foi “pêga distraí-da”, quando percebeu estava prestes a chegar aos cinqüenta anos. Têmagora a idade que a irmã tinha quando morreu. A mãe pediu que ela arrumas-se as coisas da irmã, logo após o enterro. Achou estranho, recusou, perce-beu que não poderia atender aquele pedido. Diz que a morte da irmã foi comose um trem a pegasse desprevenida pelas costas. Pegar distraída, pegardesprevenida. A partir desta pontuação surge a questão de que o efeito damorte da irmã foi de que o tempo começou a passar mais depressa, foiarremessada no tempo.

Se na tristeza provocada pela perda de um familiar, o mundo se tornaempobrecido, esvaziado, há que se desfazer de objetos; na melancolia, é opróprio eu que fica desabitado, desprovido do enlace libidinal que o prendiaao mundo. A perda de um objeto se transforma numa perda do eu, e a ruptu-ra entre o sujeito e a pessoa amada se transforma em uma ruptura no interiordo próprio eu. O eu sofre um rearranjo, bipartido agora entre o eu crítico e o

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nicht geeignet, eine Trauer oder eine Melancholie zu verursachen. DerCharakter der Einzeldurchführung der Libidoablösung ist also der Melancholiewie der Trauer in gleicher Weise zuzuschreiben, stütz sich wahrscheinlichauf die gleichen ökonomischen Verhältnisse um dient denselben Tendenz”(GW, Fischer).

“Se discurre de inmediato y con facilidad se consigna: “larepresentación (cosa-) {Dingvorstellung} inconciente del objeto es abandona-da por la libido”. Pero en realidad esta representación se apoya en incontablesrepresentaciones singulares (sus huellas inconcientes), y la ejecución destequite de libido no puede ser un proceso instantáneo, sino, sin duda, como enel caso del duelo, un proceso lento que avanza poco a poco. Comienza almismo tiempo en varios lugares o implica alguna secuencia determinada?No es fácil discernirlo; en los análisis puede comprobarse a menudo que oraeste, ora estotro recuerdo son activados, y que esas quejas monocordes,fatigantes por su monotonía, provienen empero en cada caso de uma diversaraíz inconciente. Si el objeto no tiene para el yo una importancia tan grande,una importancia refozada por millares de lazos, tampoco es (*) apto paracausarle un duelo o una melancolía. Esse carácter, la ejecución pieza porpieza del desasimiento de la libido, es por tanto adscribible a la melancolíade igual modo que al duelo; probablemente se apoya em las mismas propor-ciones económicas y sirve a idénticas tendencias” (OC, Amorrortu).

“A resposta rápida e fácil é que “apresentação (da coisa) inconscientedo objeto foi abandonada pela libido”. Na realidade, contudo, essa apresen-tação é composta de inumeráveis impressões isoladas (ou traços inconsci-entes delas) e essa retirada da libido não é um processo que possa serrealizado num momento, mas deve, por certo, como no luto, ser um proces-so extremamente prolongado e gradual. Se ele começa simultaneamenteem vários pontos ou se segue alguma espécie de seqüência fixa não é fácildecidir; nas análises, torna-se freqüentemente evidente que primeiro umalembrança, depois outra, é ativada, e que os lamentos que soam semprecomo os mesmos, e são tediosos em sua monotonia, procedem, nãoobstante, cada vez de uma fonte inconsciente diferente. Se o objeto não

Reencontramos aqui, a propósito da melancolia, o termo aufhebung,traduzido como cessação/cancelamento/liquidação. Há, no melancólico,aufhebung de seu interesse pelo mundo exterior, perda da capacidade deamar, e diminuição de Selbstgefühls. Talvez fosse mais próprio o uso desuspensão.

O parágrafo 9 situa que o melancólico sofreu uma perda no que tangeao eu: Er hat seine Selbsachtung verloren (D); Há perdido el respeto por símismo(E); Ele perdeu seu amor próprio (P).

Vamos encontrar muitas variantes do eu neste texto freudiano; este éum texto antecipatório do “Eu e o Isso”, onde o que está em questão é comonomear o eu, quais são os nomes do eu. Eis aqui um glossário da ocorrênciadestas variantes no original seguido das propostas de tradução em espanhole português:Selbstgefühl – auto-estima ou sentimento de auto-estima (P) e sentimiento

de sí (E).Ichgefühls – auto-estima (P) sentimiento yoico (E)Ich selbst – próprio ego (P), yo mismo (E)Selbstachtung – amor próprio (P), respeto por sí mismo (E)

Também o parágrafo 26, pelas preciosas indicações sobre a escutaanalítica e por imprecisões de tradução merece ser detidamente trabalhado.

“Es spricht sich nun rasch aus und schreibt sich leicht nieder, das die“unbewusste (Ding-) Vorstellung des Objekts vond der Libido verlassen wird”.Aber in Wirklichkeit in diese Vorstellung durch ungezählte Einzeleindrücke(unbewusste Spuren derselben), vertreten, und die Durchführung dieserLibidoabziehung kann nicht ein momentaner Vorgang sein, sondern gewisswie bei der Trauer ein langwieriger,, allmählich fortschreitender Prozess. Ober na vielen Stellen gleichzeitig beginnt oder eine irgendwie bestimmteReihenfolge enthält, lässt sich já nicht leit unterscheiden; in den Analysenkann man oft feststellen, dass die gleichlautenden, durch ihre Monotonieermüdenden Klagen doch jedesmal von einer anderen unbewusstenBegründung Herrühren. Wenn das Objekt keine so grosse, durch tausendfältigeVerknüpfung verstärkte Bedeutung für das Ich hat, so ist sein Verlust (*) auch

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SEÇÃO TEMÁTICA

UM ADOLESCENTE DE MEIO SÉCULO

Diana Lichtenstein Corso

Aatualidade do “Apanhador no campo de centeio”. Quando um texto aniversaria, tendemos a dizer-lhe o mesmo que a uma pessoa: – “Estás jovem!”. Por isso, no cinqüentenário do “Apa-

nhador no campo de centeio”, o óbvio seria comentar a sua atualidade e oquanto ele foi inovador. É perfeitamente possível lê-lo, se subtrairmos asreferências históricas, como o discurso contemporâneo de um adolescente.

O livro é o relato de três dias na vida de um jovem de dezesseis anos.Holden Caulfield tem cabelos grisalhos, quase dois metros, fuma, bebe, opi-na e sente frio. São três dias em que tudo e nada acontece, o personagemestá vagando após a expulsão do colégio e ainda não quer chegar em casa.Neste espaço de tempo, ninguém o espera em lugar nenhum e nesta peque-na eternidade compartilhamos a análise do mundo que Holden freqüentava.A delícia do livro emana da inteligência com que o personagem desmonta asambições e crenças de seus colegas, professores, ex-alunos da escola,artistas. Em linguagem depretensiosa, casual, vai desnudando a alma detodos com quem se cruza ou de pessoas de quem se recorda, montando umleque de personagens que, embora seus contemporâneos, não perderam aatualidade.

Holden não consegue entrar em sintonia com ninguém, embora façaesforços de inserção na busca de quem o escute. Esse eterno desencontroproporciona um olhar de exterioridade sobre o mundo que habita e, realmen-te, visto de fora, tudo parece ridículo. No passado perdido, parecia haveralguma esperança de interlocução: o irmão que morreu, o outro irmão escri-tor, antes de “se prostituir em Hollywood”, a amiga a quem não revelou seusdesejos eróticos, estes poderiam entendê-lo, mas estão mortos ou ausen-tes. Compartilhando a sua solidão gelada, chegamos a um único encontro,Phoebe, a irmãzinha de 8 anos, somente ela quer ouvi-lo mais do que falar-lhe. De todas as questões do personagem a mais contundente é que nin-guém suporta escutá-lo.

possui uma tão grande importância para o ego – importância reforçada pormil elos –, então também sua perda (*) não será suficiente para provocarquer o luto, quer a melancolia. Essa característica de separar pouco a poucoa libido deve, portanto, ser atribuída de igual modo ao luto e à melancolia,sendo provavelmente apoiada pela mesma situação econômica e servindoaos mesmos propósitos em ambos” (OC, Imago).

Eis um glossário e anotações de tradução para trabalhar o texto:Vorstellung – representação; Einzeleindrücke – impressões. Donde se con-clui que há um erro de tradução na Amorrortu. (*) Também aí falta uma pala-vra em espanhol, verlust (sua perda).Verlassen, aufgelassen : resignadas (E), abandonadas (P). Proposta: deixa-da de lado, deixada, talvez cancelada.Abziehung – quite (E), retirada (P). Ou: separar, tirar, subtrair. Da libido (P),de libido (E). Preferência por espanhol por sugerir que é uma quota e não Alibido toda.Zuzuschreiben – adscrita (E), atribuída (P). Melhor em E, mantém a idéia deescrever, schreiben.Ablösung – separação (P), desasimeinto (E). Proposta: desatamento, des-prendimento.Lösung – desligamento (P) , desasimiento (E)Interesselosigkeit – perda de interesse (P) falta de interés (E)Verlust – perda (P) perda (E)

Os paragráfos estudados foram extraídos a partir do texto em alemão(A) Gesammelte Werke, S. Fischer Verlag; em espanhol (E) Obras Comple-tas, Editora Amorrortu e Português (P) Obras Completas, Imago Editora.

O trabalho de tradução do parágrafo 26 foi realizado com a colabora-ção do colega Luis Fernando Lofrano de Oliveira, que identificou o erro datradução na Amorrortu onde Eizeleindrücke está traduzido como representa-ções e não como impressões.

Estas são anotações produzidas por ocasião do “Relendo Freud eConversando sobre a APPOA” realizado em maio deste ano em Canela/RS.

CORSO, D. L. Um adolescente de meio século.

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SEÇÃO TEMÁTICA

profissão, entre ter experiências amorosas e sexuais e fazer escolhas amo-rosas.

A adolescência é justamente o tempo de uma suspensão, como po-deria dizer transição, passagem. A compreensão crucial é que este espaçointermediário precisa ser considerado legítimo, escutado, acompanhado.Pedir ao jovem que assuma as conseqüências do que pensa é remetê-lo aum tempo de resoluções que ainda não chegou. A relação com o mundo éexperimental, o que não impede de amar, aprender e até trabalhar. Existe umaregra que ninguém deveria desrespeitar: a inteligência do discurso adoles-cente não é instrumentalizável, ela não serve para nada. É claro que serve, emuito, para o sujeito que cresce: será a matriz de seu projeto de vida, é nelaque ele está formatando sua versão de ser a partir da criança que ele não émais. O importante é não pedir ao sujeito provas, nenhuma pragmática re-dunda de seu trabalho psíquico, porque a adolescência é uma experiênciade suspensão da vida.

 A adolescência é idealizada pela sociedade dos adultos como sendouma época de potência, confundindo o potencial de fazer escolhas, verdadei-ro pesadelo para os jovens, com a potência de possuir todas as alternativas.Ao adulto, melancólico de maturidade, parece que o jovem pode possuirtodas os amores, todas as profissões, viver no mundo inteiro, freqüentartodos os amigos. Nada mais falso. Dois trechos poético-literários, separa-dos por meio século, são a melhor tradução do que estou tentando dizer.O primeiro é cantado por Renato Russo: “Quantas chances desperdicei,quando o que eu mais queria era provar para todo mundo, que eu nãoprecisava, provar nada para ninguém” (no disco Legião Urbana – Dois).O segundo sai da boca de Holden Caulfield, o personagem do livro, queassiste a apresentação de um pianista muito bem quisto do público, numacasa noturna de Nova York: “Juro por Deus que, se eu fosse um pianista,ou um autor, ou coisa que o valha, e todos aqueles bobalhões me achassemfabuloso ia ter raiva de viver. Não ia querer que me aplaudissem. Aspessoas sempre batem palmas pelas coisas erradas. Se eu fosse pianista,ia tocar dentro de um armário”. Mais que espetáculos artísticos, Caulfieldassiste principalmente o teatro da vida dos jovens de seu tempo: o estudante

Holden critica a tudo e a todos, duvida de qualquer solução, e umadas alternativas que se coloca é desistir. E se, em vez desta guerra pelosucesso, construíssemos uma cabana na natureza, tendo que lutar apenaspela subsistência? Não se trata de uma visão romântica apenas, mas de umdiscurso que atravessou o movimento hyppie, assim como todas as alterna-tivas juvenis que se quiseram construir à sociedade capitalista.É precisamente esta postura que elevou J.D. Salinger, autor deste livro, àcategoria de mito.

Além de escrever este livro, que tornou-se uma espécie de “carta defundação da adolescência”, o autor é um eremita, famoso pelas recusas decontato com a mídia. A questão levantada pelo personagem e pela atitude doautor é a de uma abstinência das metas, valores e principalmente destascentenas de bugigangas com os quais os adultos se rodeiam, encontrandoaí a prova de seu sucesso.

O sucesso deste texto sempre foi atribuído a ser fiel e premonitório.Temos todos os motivos para pensar que nos últimos 50 anos não houvemudança substancial no discurso adolescente. Ou melhor, poderíamos dizerque a adolescência, enquanto fenômeno, continua sendo uma resposta aospropósitos de que foi incumbida, principalmente a partir do pós-guerra.Mais que uma resposta, a adolescência é uma reação. Não é de formaalguma novidade que os jovens tenham um papel social definido. Rituaisde iniciação e sistemas de ensinamentos constituem para a juventude umespaço desde a antiguidade. A novidade, que tem mais ou menos a idadedeste livro, é a de um período da vida para o qual a sociedade não temespaço e, se o tiver, o jovem fará o possível para criar uma alternativaou simplesmente não ocupá-lo. O espaço social da adolescência é o limbo.Costumamos associar a adolescência com a época dos acontecimentos,das escolhas, mas ela é antes de tudo uma experiência de melancolia eprocrastinação. Quando finalmente tomamos alguma decisão, ainda somosjovens, inexperientes, pretensiosos, mas já estamos deixando de seradolescentes. Não me refiro, por exemplo, a fazer uma escolha vocacional,mas a assumi-la. Qualquer um sabe a diferença que há entre entrar em umcurso universitário e o momento de realmente estar se preparando para uma

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É dela que fala o adolescente, quando escutado a sós, fala da tristezadele e da de todos nós, de um potencial de covardia, de insatisfação quequando amadurecermos será adormecido mas nunca eliminado. O adoles-cente fala daquilo que o adulto experiencia sob a forma de depressão.“Começou a acontecer um negócio um bocado fantasmagórico. Cada vezque eu chegava ao fim de um quarteirão e descia o meio-fio, tinha a sensa-ção de que nunca chegaria ao outro lado da rua. Pensava que ia caindo,caindo, caindo, e nunca mais ninguém ia me ver”, descreve Caulfield.

O psicanalista inglês D.W. Winnicott fazia referência a necessidadede que os adultos não abdiquem de sua condição, de que sobrevivam, nosentido de manter vivas suas premissas éticas, ao processo dos adolescen-tes com que convivem. Com isto este autor lembra que o nosso adolescenteinterior está sempre pronto para nos perguntar “será que precisa mesmotudo isso?”, e nós adultos estamos sempre prontos para desistir. Por isso atristeza é nosso maior fantasma e a adolescência sua mais clássicaencarnação.

Fala-se incansavelmente da incomunicabilidade de Salinger, o autor,por outro lado sabemos que o “Apanhador” tem atravessado gerações.Interessante que possamos dizer que está incomunicável alguém que escre-veu algo que continua tão vivo meio século depois...

Em verdade não há contradição entre o autor e sua obra. O livro écomo a adolescência: depois de adulto não se tem com ela mais comunica-ção direta, tentativas de reeditá-la não passam de acessos caricaturais demania. Ela fica lá, quieta, muda, eremita. Mas o que nela vivemos, sofremose aprendemos está como um livro na estante. Se o consultarmos de tantoem tanto ele será eloqüente, sempre pronto a apresentar um parágrafo quenão tínhamos visto antes.

Se chegamos à idade adulta é porque tinha alguém na borda do preci-pício disposto a nos apanhar, é bom lembrar disso, porque temos que estarlá quando for nossa vez de cumprir este papel. Como diz Holden Caulfield,este é o trabalho mais importante que um adulto tem a fazer.

atleta que se entrega a carícias ousadas no carro com as moças, o jovemfeio que vence na vida como comerciante, o intelectual estufado que só es-cuta a si mesmo, a moça burra e bonita, a inteligente que cede ao assédiodo medíocre bonitão, assim como todo tipo de coitado que sofre por nãoconseguir se inserir nestes papéis. Estes são personagens da narrativa deCaulfield, mas ele não quer ser nada disso, não quer provar nada para nin-guém, quer ficar no armário, ir para uma cabana na floresta.

A vivência individual dos impasses do adolescente não é suprimidapor nenhum tipo de aglutinação grupal. Caulfield pode ser visto indo aoteatro, com amigos num bar, dançando, saindo com uma garota, visto defora parece que tudo corre normalmente. Por dentro, porém, ele se sentecaindo.

O livro intitula-se a partir da resposta que Holden dá à sua irmã sobreo que vai querer ser quando crescer. “Eu fico na beirada de um precipíciomaluco. Sabe o que eu tenho que fazer? Tenho que agarrar todo mundo quevai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar ondeestá indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só issoque eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio etudo.”

Ao longo destes dias ele freqüenta constantemente esta borda, masninguém está lá. Como em toda história adolescente, os pais eprofessores não estão, ou, se estão, não parecem falar a mesma língua. Sóuma criança, a irmãzinha Phoebe, se dispõe a escutá-lo. A ausência dospais faz parte da vivência adolescente, quando o jovem se separa, mas sesente expulso. Porém, só isso não explica toda a solidão, é preciso buscá-la na dificuldade de suportar o que ele sente e diz. O jovem fala de tristeza,vontade de desistir, quando o que esperamos dele é vigor juvenil, potência,hormônios em euforia.

A tristeza é o outro lado da moeda do desejo. Para aquele que selastima, nem nada, nem ninguém será capaz de produzir a felicidade, triste-za é a falta de felicidade. Somos capazes de qualquer negócio para suprimi-la: crenças místicas, auto-ajuda, remédios, placebos e analgesias, tudo menosenfrentar as questões que ela nos assopra aos ouvidos.

CORSO, D. L. Um adolescente de meio século.

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internações psiquiátricas deveriam se dar, quando necessárias, em hospi-tais gerais.

No entanto, a aprovação desta lei deve-se a um vigoroso movimentosocial, que reuniu gestores, técnicos, usuários, familiares, parlamentares eorganizações profissionais, promotor de um debate esclarecedor para a opi-nião pública da inadequação do modelo manicomial. Movimento este queteve sua primeira conquista legislativa em 1992 com a aprovação da lei esta-dual, no Rio Grande do Sul, que regulamenta as internações psiquiátricascompulsórias e abre as instituições manicomiais para fiscalização de suasações e condições de funcionamento.

O texto da tão aguardada nova lei estabelece direitos aos que pade-cem de sofrimento psíquico que vão além do acesso ao melhor tratamentodo sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades. Prescreve a ga-rantia de sigilo das informações prestadas, o acesso as informações sobresua doença e tratamento e a possibilidade de defender-se juridicamente dosexcessos de restrição dos direitos civis que a perversidade do modelohospitalocêntrico oportunizava, entre outros. Podemos vislumbrar nestes di-reitos um respeito maior que deve ser dado a palavra dos usuários dos servi-ços de atenção à saúde mental.

Não obstante o valor que deve ser dispensado à nova lei, não encon-tramos o artigo que constava no projeto de lei original que revogava o decretolei nº24559 de 1934 do código civil, o qual versa sobre a interdição dos direi-tos civis dos loucos de todo gênero. Nem sequer fica questionado o códigopenal quando trata da inimputabilidade penal do doente mental, reservandoàqueles que ofereceriam perigo à segurança social a possibilidade de trata-mento em instituições como o manicômio judiciário.

A coexistência deste grupo de leis guarda uma contradição. Ao mes-mo tempo que se busca inovar o modelo assistencial e a postura ética diantedos que padecem dos males da mente, não se altera dispositivos legais queremontam a lógica do movimento alienista e higienista do tempo do império.

O artigo 5º do decreto lei 24559 diz: São absolutamente incapazes deexercer pessoalmente os atos da vida civil:

REFORMA PSIQUIÁTRICA E LEGISLAÇÃO

Nilson Sibemberg

No dia 6 de abril deste ano, o presidente da república sancionou a leifederal nº 10216 que dispõe sobre a proteção e os direitos das pes-soas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo

assistencial em saúde mental.A data tem sua relevância pelo tempo transcorrido entre a apresenta-

ção do projeto de lei do deputado federal Paulo Delgado e a aprovação da leino Congresso Nacional, com sua posterior sanção. Foi mais de uma déca-da.

É de se perguntar o porquê de tanta demora, quando o ministério dasaúde já vem adotando a política de mudança do modelo assistencialhospitalocêntrico para outro constituído por uma rede de serviços substitutivos(CAPS, NAPS, Hospital-Dia, etc) com diferentes níveis de complexidade,através da edição de portarias que redirecionam a distribuição de verbas parao novo modelo desde 1992, dando relevância a outras formas de intervençãoque não apenas a consulta psiquiátrica.

A resposta para essa questão encontramos em um poderoso lobbyque defende os interesses daqueles que buscam o lucro fácil, recebendoverbas do Sistema Único de Saúde para custear leitos psiquiátricos, muitasvezes em instituições que não apresentam condições mínimas toleráveispara tratamento. São aqueles que seguem defendendo a manutenção de ummodelo segregacionista e iatrogênico no trato do doente mental.

É importante lembrar que as Sociedades de Psiquiatria tem debatidocom freqüência a Reforma Psiquiátrica desde a Conferência de Caracas em1990, quando a Organização Mundial da Saúde e a Organização Pan-ameri-cana da Saúde debateram a reestruturação da atenção psiquiátrica na Amé-rica Latina, priorizando os sistemas locais de saúde e salvaguardando adignidade pessoal e os direitos humanos e civis dos usuários, a partir demodelos alternativos centrados na comunidade e suas redes sociais. As

SIBEMBERG, N. Reforma Psiquiátrica e legislação.

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tuição de direitos de cidadania para o louco de todo gênero, incluindo aí odireito a um tratamento digno que não o afaste de sua comunidade de origemou pertença, mas o que a manutenção das antigas leis revela é que não sequestiona das condições subjetivas dessas pessoas para o exercício de suacidadania. Segue valendo a velha lógica alienista.

Não obstante a importância de seguirmos lutando pela ampliação darede de serviços substitutivos, não mais em oposição ao velho manicômio,mas na sua positividade política, administrativa e técnica, se faz tambémimportante levarmos em consideração os efeitos clínicos e sociais quecorrespondem a uma determinada legislação. Neste campo, assim como noanterior, a psicanálise tem muito a contribuir dentro de um debate interdis-ciplinar.

I.Os menores de dezesseis anos.II.Os loucos de todo gêneroIII.Os surdos-mudos que não puderem exprimir a sua vontade.IV.Os ausentes, declarados tais por ato do juiz.O artigo 446 dispõe da sujeição à curatela também aos loucos de

todo gênero.No código penal temos o artigo 26 que disserta sobre a imputabilidade

penal: É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimen-to mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão,inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-sede acordo com esse entendimento.

Em se verificando periculosidade no agente, devem ser tomadas me-didas de segurança que corresponde a internação em hospital de custódia etratamento psiquiátrico, o que, em outras palavras, significa a internação nomanicômio judiciário. Diga-se de passagem, tais medidas têm durado a vidatoda para muitos dos que ingressaram nestas instituições, apesar da possi-bilidade do tratamento ambulatorial e das revisões da perícia psiquiátrica quedevem ser anuais. Se a perícia médica não contestar a periculosidade ates-tada, a internação se dá por tempo indeterminado. Isso acontece, muitasvezes, por receio do médico perito em arcar com a responsabilidade de liber-tar alguém que ele não pode definir absolutamente que não voltará a cometeralgum ato delituoso.

Enfim, o louco continua incapaz, perigoso e inimputável, segundo essalegislação. Alguém não responsável pela sua palavra e por seus atos, masperigoso e sujeito a uma custódia que pode ultrapassar o tempo de pena queteria de pagar se fosse julgado como os outros. Sua palavra perde valor derepresentação social pela ausência de reconhecimento por parte do Outro.O efeito subjetivo e social corresponde a impossibilidade de fazer uma elabo-ração discursiva de seu ato, ao tempo de sua estigmatização e segregaçãosocial.

O debate em torno das questões legislativas na reforma psiquiátricadeveria ser mais aprofundado. O que se preconiza com a nova lei é a consti-

SIBEMBERG, N. Reforma Psiquiátrica e legislação.

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Como as imagens foram colhidas? A gente percebe que há váriostipos de câmera e de suporte, vídeo, 16mm, foto. Os diferentes comporta-mentos entre câmera e personagem levam ao heterogêneo. Isto depende dapersonalidade de cada um, o enfocado e o camera-man, que também muda-va. Mas você conseguiu uma postura bem marcada no conjunto, tratando aspersonagens igualmente, dando-lhes voz. Eles expuseram seus delírios nãodando tempo para a câmera cultivar e embarcar neles. Você não deu trelapra eles, para que fizessem uma mise-en-scène particular (aquilo que algunscineastas fazem, por exemplo, o Augusto Sevá em Gilda)?

Eu não queria um filme didático, pedagógico, de um lado. Eu queriaentender a cidade e a loucura. E de outro lado, não me preocupei com aquestão do louco maluco, com a situação psiquiátrica. Eu quis marcar umapostura de cinema pela estética, que eu gosto. É uma escolha de não estig-matizar as pessoas, é uma coisa meio socada, bagunçada. Eu queria algoesparramado mesmo. Escolhi não folclorizar, nem pedagogizar a loucura e acidade. De qualquer jeito eu queria muito estilhaçar, de todo modo eu iatentar chegar nisto.

E aí, qual era a cidade do louco?Isto foi ficando claro nas conversas com a equipe e no que fomos

conseguindo. Eu sempre tive o desejo de ter tido mais dinheiro pra fazer estefilme. Mas não sei, se eu tivesse tido, não sei se eu ia gostar tanto doresultado. Com os recursos que a gente tinha: uma câmera caseira que nemsei o nome, num outro dia saíamos com uma 16mm, outro dia com a Beta...O suporte foi uma injunção da realidade, mas eu gosto porque é a cidade. Acidade é isto. Com o equipamento Beta, mais pesado, muda total o modocom que as pessoas vão se comportar. Teve uma coisa de gravadorzinho namão, a câmera pequena na cidade, chegando às praças, aos muros, aosdesenhos da cidade. Eu gosto dessa bagunça no filme. Dentro dele aparecea questão da diferença, da diversidade nas posturas, nos comportamentos.Ele passou no festival de Brasília mas não foi selecionado, e nem em Gra-mado. Porque eu consegui não fazer nada de pedagógico. Agora, o filme temsido reconhecido e tem sido buscado no contexto da luta anti-manicomial. É

EXISTE UMA CIDADE NÃO INSTITUCIONALIZADAQUE É PRECIO APRENDER A VER1

Ocurta metragem “Dizem que sou louco” (1994, 12') é o primeiro filmedirigido pela psicanalista Miriam Chnaiderman. Em 1992 ela ganhou o Prêmio Estímulo da Secretaria da Cultura do Estado de São

Paulo. Ela, que sempre se interessou e até mesmo escreveu sobre cinema,disse que sonhava um dia colocar a mão na massa e realizar filmes. Miriamacaba de ganhar mais um Prêmio da Secretaria, projeto no qual ela pretendedocumentar como vivem as pessoas que trabalham com a morte.

Entrevistador: “Dizem que sou louco” trabalha com esta figura quevocê tem chamado de “louco de rua”, não é?

Miriam: Na pesquisa para a realização deste filme nós nos depara-mos com a realidade desta personagem, o louco de rua. Ele é um solitário eé discriminado pelos outros moradores de rua e pelos “bebuns”. Ele buscaum jeito de ser o que ele é. Tenho insistido nisso sempre que sou chamadapara conversar com profissionais que trabalham com moradores de rua naPrefeitura de São Paulo, que tem um serviço muito legal. Na pesquisa, nósfomos indo devagar e conseguimos chegar perto daquelas pessoas que nosinteressavam para o filme. Saíamos geralmente em grupo, sempre com umgravador discreto e uma câmera de vídeo na mão. Pedíamos sempre a ajudadas pessoas. Descobrimos que existia em geral uma solidariedade paracom eles e isto foi um estímulo. Ora, todos querendo muito fazer algumacoisa para aquelas pessoas, quando elas percebem que existe alguém fa-zendo algo, elas ajudam, se interessam.

1 Entrevista (publicada no Jornal “O Popular” em 15/12/1999) com Miriam Chnaiderman (cine-asta, psicanalista, autora de “Ensaios em Psicanálise e Semiótica”, Escuta, 1989. SP, entreoutros) por Noemi de Araujo (pedagoga e psicanalista) e Rubens Machado Jr. (Professor deTeoria do Cinema ECA-USP).

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SEÇÃO DEBATES

vamos abordar estas pessoas? Como vamos saber quem é louco na rua?Onde foram parar os loucos da cidade do interior? Ora, descobrimos que,para sobreviver, existe um código ético super rígido na rua. Eles se arreben-tam entre eles para não brigar com as pessoas da rua. Entre eles têm umesquema comunitário do tipo da década de 70, onde se divide tudo. Tudo.Fui filmar uma personagem na Praça Buenos Aires e observei que os mora-dores de rua vão chegando com latas de comida, pinga, cobertor e colocan-do tudo lá; e depois tem uma pessoa responsável pela divisão. E os loucosficam rondando e tentando pegar alguma carona. Nisto, os outros ficam bra-vos com eles. Neste universo, o dito louco de rua tem uma coisa que émanter o mundo do delírio, que são as histórias que eles montam no meio deuma luta pelo básico. É muito impressionante como eles conseguem umagrande produção simbólica. Nota-se no filme, nas próprias falas deles, pro-duções muito lindas! Demonstrando que no meio dessa batalha pelo mínimoeles conseguem manter uma poesia via loucura. A loucura é um sofrimentoatroz, estas pessoas deveriam ser ajudadas, só que não vai adiantar inter-nar.

Este “não adianta internar”, você consegue passar no filme? Como eletem sido acolhido pelo mundo dos psi, pelas instituições?

Creio que temos que repensar a rua e poder ver que muitas vezes elaatua como se fosse um remédio para estas pessoas, como um neuroléptico,um antipsicótico. O Seu Arlindo, por exemplo, era a terceira vez que eleestava na rua. Quando ele ouve vozes e o barulho da rua, externo, alivia-se obarulho interno dele. Em 1995 me convidaram para falar sobre este filme noInstituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HC-SP). Já fui preparadapara receber críticas, dentro da linha “negligência psiquiátrica”. Surpreen-dentemente, os psiquiatras presentes acharam que antes a rua do que umpavilhão de crônicos. Como fazer, então, para a rua poder acolher estasfiguras dando-lhes condições melhores de vida, sem institucionalizar, semprender, respeitando seu nomadismo? A partir do meu trabalho comecei ame perguntar: porque não fazer atendimentos na rua?

a coisa do filme cumprir um papel de intervenção na sociedade, dentro deuma proposta de não dizer o que é a loucura ou deixa de ser. É isto aí, evamos ver o que a gente faz disto.

Gostaríamos que falasse um pouco da história da produção do filme.Encampei o argumento do Reinaldo Pinheiro, que queria realizar um

filme a partir do poema de Paulo Leminski que diz que “todo bairro tem umlouco que o bairro sabe quem é”. Ganhei o prêmio e convidei a Estação, umaequipe de psicanalistas, acompanhantes terapêuticos, que naquele momen-to estava preocupada com questões da loucura e da cidade. Eles trabalha-vam fazendo uma mediação, entre o mundo interno e o externo, com aquelaspessoas que estavam com muita dificuldade de ir para o mundo. Com aEstação montei uma equipe que passou um ano e meio na rua pesquisando.Muito embora a minha preocupação fosse exatamente o avesso do problemaque eles enfrentavam: eu estava buscando pessoas que já estavam no fora,no mundo, o tempo todo.

Mas este trabalho de pesquisa, no que consistia?Eu ando muito à pé, vou caminhando para o consultório. Uma vez vi

um cara muito estranho aqui na esquina com um bastão e eu fiquei commedo. E aí eu parei e pensei: eu não vou fazer um filme com estas figuras?Por que eu vou ter que fazer o que sempre faço, que é desviar porque a gentesente medo? Me aproximei, então, de um senhor que trabalha no estaciona-mento ao lado de casa e disse que estava fazendo um filme sobre os loucosde rua e eu precisava da ajuda dele para conversar com aquele homem dobastão. A conversa com ele não rendeu muito, hoje eu penso que se tratavade um bebum. A partir daí o garagista começou a me contar sobre os loucosde rua que ele conhecia; e aí a pesquisa começou. Ora, foi preciso perguntarsobre estes loucos para as pessoas que trabalham na rua, e fomos perce-bendo que as figuras iam se repetindo, mesmo nesta megalópole. Saímos àrua com muitas questões: Em quê o louco de rua é diferente do mendigo, dobebum? A miséria enlouquece? O estar na rua enlouquece? Como é que

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SEÇÃO DEBATES

A PSICANÁLISE É UMA QUESTÃO DE ESTADO?1

Charles Melman2

Ao término desta Jornada eu me encontro em um estado de sofrimen-to psíquico. Felizmente existem terapeutas na sala… O único pro-blema é que, ao mesmo tempo, é o que me inquieta! Porque logo que

eu procuro compreender e saber o que eles fazem, qual é sua prática, evi-dentemente eu me interesso pela sua literatura que é abundante, bastanteprecisa, eu percebo que – para dizer as coisas simplesmente e diretamente– eles fazem… qualquer coisa! É certamente o que caracteriza o seu agru-pamento. Parece que existem 19 escolas ou grupos reunidos. Na essêncianão há, entre elas, nenhuma comunidade de referência teórica. Há uma lin-guagem que se inspira mais ou menos corretamente em Freud, está claro –às vezes mesmo habilmente, eu reconheço, mas, em todo o caso, não hánecessidade de ser muito forte para saber que isso tem o gosto do Canadadry…

Ou seja, práticas das quais é preciso dizer que são qualquer coisa,um saber teórico do qual é preciso dizer que é qualquer coisa. Na minhacarreira, que agora já não é mais tão curta assim, eu conheci muitas… Euconheci muitas evoluções de psicoterapias, e de modas, e de modos depsicoterapias; eu conheci bem Moreno, por exemplo. Isto não diz nada avocês? Eu afirmo que ele era um personagem considerável em seu tempo!Houve Jdanov… o «grito primal», isso nos faria bem! Nós o escutamos re-centemente, ele estava aposentado, na Côte d’Azur, nós o escutamos dizerque se divertiu muito. Enfim! Não é preciso fazer assimilações abusivas,nem excessivas, nem muito rápidas, mas eu me fio no que eu leio, e tam-bém no que escuto, pois no decorrer da Jornada, ninguém ainda me disse…o que é a psicoterapia!

1 Conclusão da Jornada de 25 de março de 2000 da Fundação Européia pela psicanálise.2 Tradução Ester Trevisan.

O que você tem pensado como alternativa?Escutar é uma baita de uma intervenção. Eles ficam muito felizes,

isto fica claro no filme. Eu escrevi a respeito no meu texto com a ReginaHallack, “Estranhas urbanidades” (Na sombra da cidade, 1995, Escuta). Te-nho pensado muito em equipes itinerantes, atendimentos e oficinas de artena rua. Porque não instrumentar estas pessoas? O senhor que consertacadeira de palhinha na rua, oficinas de costura com carrinho, sei lá... a pes-soa sai andando com o carrinho e pode reformar ou consertar roupa. Pensomuito nestas alternativas como uma das formas de intervenção. Não creioque com isto eu esteja fazendo a apologia da rua. Muito menos idealizandoa loucura. A loucura é um sofrimento atroz e merece ser tratado. Pensonoutras formas de trabalho com estas pessoas, diferentemente daquelaspráticas tradicionais de reclusão. Ora, penso a rua como um espaço queprecisa ser recuperado, como um espaço em que podem acontecer coisas.Isto do medo da violência, eu também sentia muito medo e é normal que osintamos, é algo desse momento e faz parte de uma luta pela cidadaniaresgatar o espaço da rua. Fiquei me imaginando na rua, eu não sobreviveriaum mês. Estas pessoas estão há anos na rua e isto é uma força de vidaimpressionante! Trata-se de um jeito que elas encontraram de poder ser elasmesmas. Elas escolheram estar na rua? Sei lá se é escolha. Elas não po-dem estar noutro lugar e encontraram este jeito de estar na vida. Em váriosmomentos deste trabalho, eu me sentia na rua como se estivesse invadindocasas. E aprendi a ver que existe uma cidade não institucionalizada que agente tropeça sem se dar conta. Onde eu vou, eu falo de uma mudança nacabeça da gente que tem que acontecer em relação à rua. Creio que a rua sópoderá ser diferente se houver uma mudança política-econômica, mas achoque uma das frentes de luta política é batalhar pela existência do espaço darua. Para que ele volte a ser público.

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SEÇÃO DEBATES

ca nós nos sentimos tão bem psiquicamente como quando estamos maisalienados; dito de outro modo, animados por isto o que nós chamamos odiscurso do Outro – ou o que nós emprestamos ao Outro. E é bem tudo oque nos propõe a religião, é também o que nos propõem todas as ideologias,compreendido aí inclusive o campo psicanalítico: com este sentimento deconforto que podem experimentar os alunos a retomar como convém, comose deve, o propósito de seu mestre…

Aqui só há um pequeno passo a fazer para ressaltar que este acordodo Eu com o Super-eu, que parece dar este sentimento de bem-estar, mes-mo que o seja em detrimento do Isso. Certas formas de organização política,social, encontram-se na mesma posição de fornecer e de propor uma solu-ção coletiva a esses pequenos incômodos individuais. Na falta de se referirao que seria para cada um o discurso do que para ele constitui uma referên-cia privada, por que não ter uma referência coletiva, que se trate de umaideologia, ou que se trate do conformismo ao meio social?

Eu evoco muito diretamente todas estas formas de regime político,estes regimes políticos que foram, que são e que serão eminentemente po-pulares (pois não podemos utilizar um outro termo), que justamente nãopropõem aos seus concidadãos desgraçados, em situação de dificuldade,com um Eu exposto a tudo o que vocês quiserem – eu não vou entrar nisso– nada além do acordo restabelecido com uma instância ideal coletiva e comos efeitos inegáveis de alívio psíquico e de conforto psíquico que isso podetrazer!

Hoje, entre nós, há esta o-utra fórmula que chamamos de um termorápido o “politicamente correto”: trata-se, em todo o caso, de ser conformeao que parece ser a média dos julgamentos morais da sociedade à qualpertencemos e com conseqüências que podem ser graves para aquele quedeles se afaste… 

Se o que eu ressalto aqui é exato, isto poderia dizer que, finalmente,as psicoterapias, qualquer que seja a diversidade dos seus procedimentosou de suas referências teóricas, têm pelo menos uma média comum. Umamédia que nós conhecemos, Freud encontrou-a na origem do seu percurso ese interessou por ela, ele foi a Nancy por isto. Isto se chama a sugestão. A

Então eu vou pensar que é uma comunidade de objeto, que o quereúne estes diversos grupos… Finalmente, com métodos diferentes comohouve em medicina e como ainda há, diversos modos de proceder: isso visacurar. Vejam então, tratam-se de pessoas bem intencionadas e que procu-ram, através dos meios que são os seus, curar. O único problema é queprecisaria que eles quisessem nos dizer o que é a cura psíquica. O que é?

Porque o sentimento de bem-estar psíquico varia eminentemente se-gundo os períodos, segundo as culturas, segundo as religiões, segundo aslínguas, segundo os meios sociais no interior de uma mesma cultura. O quefaz com que falar em cura psíquica merece evidentemente que se venha adizer o que se entende por isto…

Há em Freud – pois evidentemente eu me voltarei em direção a Freudpara tentar ter uma suposição quanto a isto – uma proposição que merecenosso interesse: finalmente, o que podemos considerar como sobressaindode uma cura psíquica, é uma espécie de acordo entre estas três instânciasque constituem o Eu[moi], o Super-eu[surmoi] e o Isso[ça]; e que, no interiorde um mesmo indivíduo, estas três instâncias funcionem de modo mais oumenos harmonioso.

É uma definição que me parece interessante porque, eu devo dizer,acho-a um pouco otimista. Um pouco otimista na medida em que nós verifi-camos que se o Isso representa o conjunto das pulsões e dos desejos in-conscientes, o Eu tem o péssimo hábito de, com muito prazer, sacrificarseus desejos e suas pulsões para satisfazer o Super-eu. Isto parece estarno princípio dos funcionamentos psíquicos mais comuns, como se o índicedo bem-estar psíquico fosse este acordo do Eu e do Super-eu; como se ofato de poder me imaginar articular o que seria a mesma linguagem, a mes-ma proposição, o mesmo discurso, exprimir as mesmas vontades que ele,fosse o que seria suscetível de me dar este sentimento de conforto psíquico,o sentimento de estar no meu direito, de ser sustentado, e, então, ao mes-mo tempo, de estar bem – mesmo que isto possa me custar o sacrifício dosdesejos inconscientes.

O que eu quero dizer com isto é que se nós prestamos um pouco deatenção a esta formulação de Freud, seremos levados a constatar que nun-

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diria o nome que lhes dou, este movimento é perfeitamente homogêneo,congruente – por que não dizê-lo – com a multiplicação das religiões: ouseja, com a idéia de que há, na população, uma necessidade de religiões, eque as igrejas arcaicas, antigas, constituídas, dogmáticas, sofisticadas, tudoisso, toda a parafernália ideológica, estas igrejas esclerosadas não respon-dem mais a esta necessidade – que é qual? Que cessemos de expô-lo aosilêncio de Deus! Chega! Agora somos suficientemente grandes, suficiente-mente sábios, suficientemente fortes, ricos o bastante para dizer a ele comodeve fazer; as boas respostas, elas estão aqui.

Há pouco um amigo de Strasbourg me dizia: mas nós estamos muitoatrapalhados para distinguir as seitas das religiões! Eu devo dizer que nãovejo nenhuma diferença. As religiões são fundadas sobre o amor. Então, oamor é interessante porque implica o ódio, a dúvida, o receio, o engano, ainfidelidade… Enquanto que as seitas são fundadas sobre a paixão. E apaixão, nós sabemos onde isto se trata – aqui, por exemplo, no Saint-Anne.A paixão é uma outra questão!

Estes grupos psicoterápicos apresentam-se, assim, em um momen-to onde existem tantos neste dominiozinho privado, mesmo que ele consti-tua um campo em que podemos ainda crescer, aumentar; trata-se de res-ponder às “necessidades” da população. Estes psicanalistas, com seus pro-cedimentos centenários! Vocês se dão conta? As velharias! Enquanto hoje épreciso ser rápido, preciso, curto, eficaz. A técnica de Freud era boa para aépoca, o início do caminho de ferro… Hoje é preciso estar em condições deir adiante, de responder…

Porém, responder o quê? Responder a que? Responder como?De minha parte, não estou muito surpreso com isto que surge neste

momento em que vivemos. Parece-me, eu não sou muito hábil em política,escuto muito atentamente meus amigos quando eles fazem prova de sabe-doria quanto ao modo de se conduzir frente a tudo isto, mas eu penso queimportaria na questão que nós chamamos as psicoterapias, que os psicana-listas se situem claramente: “psicoterapia” não é nada senão o quê? Umapalavra, senão isto não tem existência; uma palavra, um significante sob oqual vocês enfiam qualquer coisa! E esta palavra é hoje suscetível de respon-

sugestão, isto quer dizer estar em condições de se dispensar de sua exis-tência miserável e dos problemas que ela pode colocar para somente ter quese remeter aos imperativos de bondade que vão se encarregar de guiar aexistência de vocês.

Eu só peço para ser contestado sobre esse ponto, por aquelespsicoterapeutas que estariam em condições de fornecer aqui objeções váli-das. Eu só peço para fazer um melhor julgamento quanto a isso, mas nãome pareceria ilegítimo dizer que quaisquer que sejam os procedimentos, nãose trata, em última instância, de nada se não do recurso à sugestão e de umreforço da alienação enquanto ela dissimularia isto que o sujeito, abandona-do à sua solidão, poderia esperar, exigir: o que nós chamamos também deum certo modo e em outro lugar, a pulsão invocante.

Então, sobre a questão do diploma, o problema mais imediatamenteteórico e prático que ele põe é o seguinte: podemos ser psicoterapicamentecorretos?

Podemos sê-lo, quando sabemos que o que caracteriza a vida psíqui-ca, o que faz seu preço, é justamente a sua incorreção? O inconsciente é oincorreto por excelência, os desejos do inconsciente são regularmente esistematicamente não corretos, não conformes. E, na medida em que opouco de vida que temos é sustentado por estes desejos inconscientes –que é sinônimo, que vai junto – querer ser psiquicamente correto, quer dizer,conforme a qualquer coisa que seja, só pode significar a extinção desteresto de vida, que está lá a se debater, a se interrogar, a se questionar, apropor, a duvidar, a hesitar, a sofrer. Já que, em suma, há esta parte de so-frimento que se revela interna à existência e nós sabemos muito bem de quemodo cada um pode colocar aí um fim.

Então, o que acontece hoje conosco, com isto que ressaltaram aque-les que fazem a profissão de psicoterapeutas, é certamente ir na direção deuma preocupação ministerial que, de minha parte, acho legítima: testemu-nhar aos cidadãos que o governo não vai deixar se repetir os golpes-baixosno campo da saúde, que o governo está sempre alerta, que os cidadãos vãoser rigorosamente defendidos contra – parece – os charlatões…

Este movimento destes que nós chamamos os psicoterapeutas, eu

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RESENHA

PERTO DAS TREVAS

STYRON, William. Perto das trevas. Rio de Janeiro:Rocco,1991, 91p. Tradução de Darkness Visible (1990),por Aulyde Soares Rodrigues.

“Numa noite gelada de Paris, no fimde outubro de 1985, me dei conta pela

primeira vez de que a luta que travava coma perturbação da minha mente – uma

luta que vinha acontecendo hámeses – poderia ter um desfecho fatal.”

Assim William Styron, escritor norte-americano consagrado, nascidoem 1925, inicia seu depoimento acerca de sua experiência com adepressão.

Num relato vívido e enxuto ele apresenta e discute vários aspectosrelevantes da questão, articulando a leitura de sua própria experiência com adiscussão de elementos que circundam essa experiência, dela formandoparte e, assim, extravasando o âmbito individual em que ela se dá.

Em todo o relato suas qualidades de ficcionista sobressaem, pois elevai apresentando os elementos da narrativa como fios de uma trama queengenhosamente vai tecendo, tornando o leitor cúmplice e refém do destinodo personagem/autor, preso da primeira à última linha, não raro emocionadocom a densidade da experiência que testemunha, assim como com a quali-dade da narrativa que se desenrola.

Da leitura do texto pode-se extrair elementos clínicos relevantes, ten-do por referência a teorização psicanalítica acerca da questão melancolia/depressão. O eixo base apontado por Freud e ressituado por Lacan caracte-riza um movimento de retorno a si, que remete à constituição do eu e, por-tanto, à relação eu-outro, na perspectiva da relação especular do eu. Freudafirma que, no processo de constituição do eu, a identificação narcísica é a

der à espera e à necessidade de um certo número, de um grande número depessoas… Vai haver sempre alguém para curar vocês! Vocês falam de umvelho fantasma! Aí está, isso infla3… mas qual é a natureza, qual é o caráter,qual é o espírito disto que vem inflar aqui?

É preciso que os psicanalistas digam – e é a isto que pessoalmenteeu me empregarei, com o limite dos meus próprios meios – sobre a ques-tão das “psicoterapias” entre aspas, que eles digam do que se trata clara-mente. É sobre o que os deputados, reputados cultos, vão ser levados a sepronunciar, é sobre o que um pessoal administrativo, que por outro lado têmmuitas qualidades e saber, vai ser levado a se pronunciar. É preciso, euacho, em todo o caso é o que me parece, especificá-lo muito bem; não hánada aí, por detrás disso, senão uma intenção, que se possa julgá-la boa oumá, pouco importa! Em todo o caso uma intenção que não tem nem osmeios nem o saber de seu fim.

Obrigado pela atenção de vocês.

3 Em francês a expressão utilizada é «ça mousse».

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duzindo uma gradativa apropriação do si mesmo:“À medida que eu melhorava, procurava me distrair com a rotina do hospital,com seus espetáculos institucionalizados. Dizem que a terapia de grupo temum certo valor. Não pretendo negar qualquer conceito comprovadamenteeficaz para certos indivíduos. Mas a terapia de grupo não me ajudou em nadaa não ser me deixar furioso, talvez porque era dirigida por um odioso e jovempsiquiatra, dono da verdade, com uma barba escura em forma de espada(der junge Freud?) que, enquanto tentava fazer com que revelássemos assementes das nossas misérias, alternava a condescendência com a provoca-ção e ocasionalmente reduzia um ou dois pacientes, tão desamparados comseus quimonos e rolinhos nos cabelos, a uma crise de choro que para ele eraextremamente satisfatória. (O resto da equipe psiquiátrica era exemplar notrato e na compaixão.)(...) Posso dizer mais ou menos a mesma coisa daterapia da arte, que não passa de infantilismo organizado. Nossa classe eradirigida por uma jovem delirante, com um sorriso fixo e infatigável, evidente-mente saída de uma escola que oferecia cursos de Ensino da Arte aos Doen-tes Mentais. Nem mesmo uma professora de crianças retardadas muito no-vas seria capaz de distribuir, sem ordens definidas, aquela orquestração derisadinhas e arrulhos. Desenrolando metros de papel de parede escorrega-dio, ela nos mandava fazer com crayon desenhos de nossa criação. Porexemplo, A Minha Casa. Eu obedecia humilhado e furioso, desenhando umquadrado com uma porta e quatro janelas vesgas, uma chaminé no alto comuma espiral de fumaça. Ela me inundava de elogios e com o passar dassemanas minha saúde melhorava e com ela meu senso de comédia. Come-cei a trabalhar, feliz, com massa colorida, esculpindo primeiro uma horrendacaveira verde que a professora definiu como uma réplica esplêndida da mi-nha depressão. Passei então pelos estágios intermediários da recuperaçãoaté chegar a uma cabeça rosada e angelical com um sorriso de Um Bom Diapara Você! Por coincidir com a época da minha alta, essa criação encantouminha instrutora (de quem acabei gostando, mesmo contra a vontade) pois,segundo ela, era o símbolo da minha cura e portanto, mais um exemplo dotriunfo da Terapia da Arte sobre a doença. Estávamos então no começo defevereiro e embora ainda abalado, eu acabava de emergir para a luz. Nãome sentia mais como um sabugo, mas como um corpo no qual recomeça-vam a circular algumas das doces seivas vitais. Tive meu primeiro sonho em

etapa preliminar da escolha de objeto – primeira modalidade pela qual o euse distingue de um objeto. Lacan afirma a dimensão narcísica do eu contra-pondo-se ao eu percepção-consciência, que encontra uma elaboração deci-siva na formulação da fase do espelho, na qual o conceito de eu será vincu-lado ao de imago: o eu se constitui através da imagem do corpo próprio.

Nesta perspectiva, podemos acompanhar no texto de Styron uma pro-gressiva problematização da imagem corporal até chegar à falência genera-lizada do corpo em suas funções vitais.

“Sentia uma espécie de anestesia, uma apatia, mais especificamente umaestranha fragilidade – como se meu corpo tivesse se tornado fraco, hipersen-sível e de certo modo, desajeitado, sem a coordenação normal. (...) A libidofez uma retirada precoce (...) A comida, como tudo o mais na área dos senti-dos, não tinha sabor algum. A perturbação de instintos mais dolorosa foi a dosono, ao lado da ausência completa de sonhos.”

Da mesma forma, a articulação entre a imagem e a agressividade en-contra tanto em Freud como em Lacan formulações produtivas. Em “Luto emelancolia” (1915), Freud enuncia: “Se o amor pelo objeto – um amor quenão pode ser abandonado, ao mesmo tempo que o objeto o é – se refugiouna identificação narcísica, o ódio entra em ação neste objeto substitutivo,insultando-o, humilhando-o, fazendo sofrer e ganhando neste sofrimento umasatisfação sádica.”

No seminário sobre a transferência, ao referir a posição conflituosa dopequeno ser diante daquilo que é ao mesmo tempo ele e o outro, que oespelho tão vividamente veicula, Lacan refere: “Existe uma certa dimensãode conflito, que não tem outra solução além de um ou ..., ou... É necessárioa ele ou tolerar o outro como uma imagem insuportável, que o arrebata de simesmo, ou quebrá-lo imediatamente, inverter, anular a posição à frente, afim de conservar aquilo que ele é, naquele momento, centro e pulsão de seuser, evocado pela imagem do outro, seja ela especular ou encarnada. O laçoentre a imagem e a agressividade é, aqui, inteiramente articulável.”

Nesta perspectiva é possível observar o elemento de agressivizaçãoda relação ao outro presente em Styron através da ironia, que produz amobilização do pulsional, com efeitos palpáveis sobre seu estado geral, pro-

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Finalmente, chegamos à questão apontada tanto por Freud como porLacan da perda como central na melancolia e no luto depressivo, com suasdiferenciações. Ao analisar os efeitos subjetivos de uma perda real, Lacanprecisa que no luto o buraco no real faz apelo à ordem significante, o quesugere uma diferença entre a depressão neurótica e a melancolia, esta comouma impossibilidade de recobrimento ao nível da própria constituição estru-tural do sujeito.

No relato autobiográfico de Styron acompanhamos a referência a umaperda do objeto na puberdade (a morte da mãe), momento em que se reeditaa relação de objeto na problemática edípica. Em passagens de grande bele-za ele descreve uma associação decisiva para ele entre a música e a mãe,no que pode-se ler uma referência ao fusional da experiência musical, ma-gistralmente trabalhada por Didier-Weill em seu livro “Os três tempos da lei:o mandamento siderante, a injunção do supereu e a invocação musical”.

“Bem tarde, numa noite fria, quando me convenci de que não teria forças paraviver o dia seguinte, sentei na sala de estar enrolado em cobertores. Tinhaacontecido alguma coisa com o aquecimento. Minha mulher estava deitada eme obriguei a assistir o tape de um filme no qual a atriz que havia trabalhadonuma das minhas peças fazia um pequeno papel. Em certa parte do filme,passado em Boston, no final do século XIX, os personagens caminhavampelo corredor de um conservatório de música, ouvindo uma passagem daRapsódia para contralto de Brahms, executada e cantada por músicos e poruma cantora, invisíveis. O som, como toda música – na verdade como todosos prazeres – ao qual eu estava indiferente há meses, atingiu meu coraçãocomo uma adaga, e numa torrente de rápida lembrança pensei em todas asalegrias que aquela casa havia conhecido. As crianças que tinham corridopor ela, as festas, o amor e o trabalho, o sono honestamente merecido, asvozes e vivacidade, a tribo eterna de gatos, cães e pássaros...Compreendique tudo isto era mais do que eu podia abandonar, assim como o que eu tãodeliberadamente resolvera fazer era mais do que eu podia infligir àquelaslembranças, e a todos aqueles, tão chegados a mim, aos quais essas lem-branças estavam ligadas. E com a mesma força compreendi que eu nãopodia cometer aquela profanação de mim mesmo. Recorri a um último lampejode sanidade para perceber as apavorantes dimensões do horror mortal no

muitos meses, confuso, mas inesquecível. Havia uma flauta, um ganso selva-gem e uma dançarina.”

Um outro elemento produtivo a ser destacado nesta leitura é o dolugar da sublimação. No texto “O eu e o isso” (1923), Freud introduz umenlace entre a melancolia e a sublimação, apontando que a transformaçãoda libido de objeto em libido narcísica determina um abandono de objetivossexuais, uma dessexualização, espécie de sublimação: “Na verdade, surgea questão, que merece consideração cuidadosa, de saber se este não seráo caminho universal à sublimação, se toda sublimação não se efetua atra-vés da mediação do eu, que começa por transformar a libido objetal sexualem narcísica e depois, talvez, passa a fornecer-lhe outro objetivo.”1

No relato de Styron é possível pensar a escrita como destinação/desdobramento viável do pulsional, reconhecendo os efeitos subjetivos desteato de transformação do vivido em narrativa.

“Revoltado com tudo aquilo, escrevi um artigo curto para a página op-ed doTimes. Meu argumento era claro e simples. A dor da depressão grave nãopode ser imaginada por quem não a experimentou e ela mata, muitas vezes,porque a angústia torna-se insuportável. (...) Expus meus pensamentos na-quele pequeno artigo para o Times, apressada e espontaneamente, e a res-posta foi igualmente espontânea – e extraordinária. (...) Foi a única vez emminha vida em que valeu a pena permitir que minha privacidade fosse inva-dida e passasse ao domínio público. Pensei então que, para aproveitar aque-le impulso, e com minha experiência em Paris como um exemplo detalhadodo que ocorre durante a depressão, seria útil tentar a descrição cronológicadas minhas experiências com a doença; talvez estabelecendo no processoum quadro de referência do qual pudessem ser extraídas conclusões valio-sas. Essas conclusões, devo acentuar, devem ser baseadas apenas na expe-riência de um indivíduo.”

1 Remetemos o leitor ao artigo de Urania Peres em Melancolia.(Vários autores) São Paulo:Escuta, 1996.

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trecho da Rapsódia para contralto, de Brahms – que eu a ouvira cantar – elaestava toda na minha lembrança.”

Tomar este relato como uma experiência significa referir que diz res-peito a todos nós. A partir de uma referência a Paracelso, médico e alquimis-ta suíço da Idade Média, Urania Peres interpreta talentosamente a articula-ção essencial entre a tristeza e a alegria na constituição subjetiva, por via darelação especular ao outro, situada pela psicanálise:

“Adão, primeiro homem, é depositário da tristeza e será Eva o primeiro seme-lhante, o outro especular que lhe trará a alegria. É ao contemplar o outro enele se reconhecer que o júbilo faz a sua aparição na ‘fase do espelho’. EmAdão e Eva, o primeiro encontro especular, a tristeza e a alegria fizeram suapresença.”

Lucy Linhares da Fontoura

PS.: Agradeço a Gilson de V. Ferreira ter feito chegar às minhas mãos estepequeno grande livro e à escuta fraterna dos integrantes do Espaço de EstudosPsicanalíticos de Ijuí/RS, com quem formulei esta leitura.

qual havia mergulhado. Acordei minha mulher e vários telefonemas foramdados. No dia seguinte dei entrada no hospital. (...) Até o ataque que sofri e arecuperação, eu nunca havia pensado no meu trabalho em termos de sualigação com o inconsciente – uma área de investigação que pertence aosdetetives da literatura. Mas quando recuperei a saúde e consegui pensar nopassado à luz do meu sofrimento, comecei a ver claramente que há muitosanos a depressão espreitava à margem da minha vida. O suicídio é um temapersistente nos meus livros – três dos meus personagens principais cometemsuicídio. Relendo, depois de muitos anos, trechos dos meus livros – passa-gens em que as heroínas trilham o caminho da desgraça final – verifiqueiatônito a exatidão com que eu havia criado uma paisagem depressiva nasmentes daquelas jovens, descrevendo instintivamente as imagens de uminconsciente já eivado de perturbações, o desequilíbrio psíquico que as leva-va à destruição. Desse modo, a depressão, quando me dominou, não erauma estranha, nem mesmo uma visitante completamente inesperada. Hádécadas ela batia à minha porta. Terminei por me convencer de que a condi-ção mórbida tinha origem nos meus primeiros anos de vida – no meu pai, quelutou contra o monstro durante grande parte da sua vida e que foi hospitaliza-do, quando eu era menino, depois de uma rápida descida em espiral que, emretrospecto, acho muito parecida com a minha. As raízes genéticas da de-pressão aparentemente estão agora acima de qualquer controvérsia. Porém,estou certo de que o fator mais importante foi a morte da minha mãe, quandoeu tinha treze anos. Esse abalo, essa dor precoce – a morte ou desapareci-mento de um progenitor, especialmente da mãe, antes da puberdade, oudurante essa fase da vida – aparece repetidamente na literatura sobre de-pressão como um trauma que pode criar um caos emocional quase irreparável.O perigo é mais aparente quando o jovem atravessa o que chamam de ‘lutoincompleto’ – isto é, não consegue a catarse da dor e carrega no íntimo, portoda a vida, um misto de raiva e culpa, aliado à dor não liberada, a sementeem potencial da autodestruição. (...) Assim, se essa teoria do luto incompletotem alguma validade, e eu acho que tem, se é verdade também que no maisrecôndito abismo do comportamento suicida a pessoa está ainda sob a influ-ência de uma perda imensa, procurando anular seus efeitos devastadores,então minha vitória contra o suicídio foi uma homenagem tardia à minhamãe. Sei que naquelas últimas horas, antes de me libertar, quando ouvi o

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AGENDA

EXPEDIENTEÓrgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre

Rua Faria Santos, 258 CEP 90670-150 Porto Alegre - RSTel: (51) 333 2140 - Fax: (51) 333 7922

e-mail: [email protected] - home-page: www.appoa.com.brJornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n0 3956

Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (051) 318 6355

Comissão do CorreioCoordenação: Maria Ângela Brasil e Robson de Freitas Pereira

Integrantes: Ana Laura Giongo Vaccaro, Francisco Settineri, Gerson Smiech Pinho, Henriete Karam, Liz Nunes Ramos, Luis Roberto Benia, Luzimar Stricher,

Marcia Helena Ribeiro e Maria Lúcia Müller Stein

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREGESTÃO 2001/2002

Presidência - Maria Ângela Brasil1a. Vice-Presidência - Lucia Serrano Pereira2a. Vice-Presidência - Jaime Alberto Betts

1o. Tesoureira - Grasiela Kraemer2a. Tesoureira - Simone Moschen Rickes

1o. Secretária - Carmen Backes2a. Secretário - Gerson Smiech Pinho

MESA DIRETIVAAlfredo Néstor Jerusalinsky, Ana Maria Gageiro, Ana Maria Medeiros da Costa,

Analice Palombini, Ângela Lângaro Becker, Edson Luiz André de Sousa,Gladys Wechsler Carnos, Ieda Prates da Silva, Ligia Gomes Víctora,

Liliane Fröemming, Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack, Marta Pedó e Robson de Freitas Pereira.

Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.)Criação da capa: Flávio Wild - Macchina

Reunião da Comissão de Eventos

Reunião da Mesa DiretivaReunião da Comissão do Correio da APPOAReunião da Comissão de BibliotecaReunião do Serviço de Atendimento ClínicoReunião da Mesa Diretiva aberta aos mem-bros da APPOA

14h30min

21h20h30min20h30min20h30min21h

PRÓXIMO NÚMERO

PSICOSSOMÁTICA

SETEMBRO – 2001

Dia Hora Local AtividadeSede da APPOA

Sede da APPOASede da APPOASede da APPOASede da APPOASede da APPOA

05, 12,19 e 261310 e 2411 e 2511 e 2527

Page 38: EDITORIAL T - appoa.com.br · que o cartel-eixo deste ano vem trabalhando na APPOA e ... Atividade vinculada ao Cartel “A melancolia e ... Proeb Blumenau SC Inscrições – Profissionais:

N° 94 – ANO IXN° 94 – ANO IX SETEMBRO SETEMBRO – 200– 200 11

OS NOMES DA TRISTEZAOS NOMES DA TRISTEZANA CLÍNICA PSICANALÍTICANA CLÍNICA PSICANALÍTICA

S U M Á R I O

EDITORIAL 1NOTÍCIAS 3SEÇÃO TEMÁTICA 9DEPRESSÃO É MAIS DODEPRESSÃO É MAIS DOQUE SENTIMENTOQUE SENTIMENTOEduardo Mendes RibeiroEduardo Mendes Ribeiro 1010LUTO IMPOSSÍVEL,LUTO IMPOSSÍVEL,MELANCOLIA INSTAURADAMELANCOLIA INSTAURADARobson de Freitas PereiraRobson de Freitas Pereira 1717LUTO, MELANCOLIA,LUTO, MELANCOLIA,DUPLO, DESAMPARODUPLO, DESAMPAROMarta PedóMarta Pedó 2424A DOR EMUDECIA NAA DOR EMUDECIA NAANOREXIA E NA BULIMIAANOREXIA E NA BULIMIARosane Monteiro RamalhoRosane Monteiro Ramalho 3131TRAUER UND MELANCHOLIE:TRAUER UND MELANCHOLIE:TRADUZINDO OS NOMES DO EUTRADUZINDO OS NOMES DO EULiliane Seide FröemmingLiliane Seide Fröemming 3838UM ADOLESCENTEUM ADOLESCENTEDE MEIO SÉCULODE MEIO SÉCULODiana Lichtenstein CorsoDiana Lichtenstein Corso 4545SEÇÃO DEBATES 50REFORMA PSIQUIÁTRICAREFORMA PSIQUIÁTRICAE LEGISLAÇÃOE LEGISLAÇÃONilson SibembergNilson Sibemberg 5050EXISTE UMA CIDADE NÃOEXISTE UMA CIDADE NÃOINSTITUCIONALIZADA QUEINSTITUCIONALIZADA QUEÉ PRECIO APRENDERÉ PRECIO APRENDERMiriam ChnaidermanMiriam Chnaiderman 5454A PSICANÁLISE É UMAA PSICANÁLISE É UMAQUESTÃO DE ESTADO?QUESTÃO DE ESTADO?Charles MelmanCharles Melman 5959RESENHA 65“PERTO DAS TREVAS”“PERTO DAS TREVAS” 6565AGENDA 7272