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1 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 125, jun. 2004 EDITORIAL N este mês de junho, estaremos fazendo nossa já tradicional subida à serra para mais um “Relendo Freud e Conversando sobre a APPOA”. “Contribuições à psicologia do amor” é o título da coletânea de Freud que escolhemos para trabalhar no encontro deste ano, a qual reúne os se- guintes artigos: “Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens” (1910), “Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor” (1912) e “O tabu da virgindade” (1918). No ano em que o trabalho da APPOA está voltado para o tema da dife- rença sexual e, mais especificamente, do masculino, trabalhar este conjun- to de textos tem propiciado discussões bastante frutíferas. Mas, no que a releitura desses três breves escritos de Freud, da segunda década do século XX, pode contribuir para esclarecer as questões com as quais nos depara- mos, hoje? Na verdade, o que temos constatado é a extrema atualidade das formulações de Freud nesses três artigos. Mesmo que tenhamos que relativizar algumas questões, levando em conta a época em foram escritos, o essencial das idéias de Freud mantém um vigor e uma força surpreenden- tes. A partir do trabalho prévio de discussão desses artigos em cartel, foi elaborado este número do Correio. O conjunto de textos que compõe a se- ção temática deste mês procura trazer algumas das questões que temos discutido no cartel preparatório ao “Relendo Freud”. Nesta mesma direção, os três textos da seção debates discutem alguns pontos que perpassam a temática da masculinidade, das relações amorosas e da diferença sexual. Além do trabalho em torno dos textos de Freud, o evento em Canela tem uma segunda parte de extrema importância para a vida da Associação – aquela que batizamos de “Conversando sobre a APPOA”. É, neste espaço, a uma certa distância do cotidiano da instituição, que muitas questões, pro- blemas e propostas são discutidos e elaborados, permitindo relançar mais uma vez o projeto de trabalho que tem sustentado a APPOA ao longo des- ses quinze anos de existência.

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Page 1: EDITORIAL N - appoa.com.br · APPOA decidiu pela manutenção dos valores de Grupos, Seminários e Percur-sos de Escola. Seguem, abaixo, os novos valores: CATEGORIA VALOR R$ Membros

1C. da APPOA, Porto Alegre, n. 125, jun. 2004

EDITORIAL

Neste mês de junho, estaremos fazendo nossa já tradicional subida àserra para mais um “Relendo Freud e Conversando sobre a APPOA”.“Contribuições à psicologia do amor” é o título da coletânea de Freud

que escolhemos para trabalhar no encontro deste ano, a qual reúne os se-guintes artigos: “Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens”(1910), “Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor” (1912)e “O tabu da virgindade” (1918).

No ano em que o trabalho da APPOA está voltado para o tema da dife-rença sexual e, mais especificamente, do masculino, trabalhar este conjun-to de textos tem propiciado discussões bastante frutíferas. Mas, no que areleitura desses três breves escritos de Freud, da segunda década do séculoXX, pode contribuir para esclarecer as questões com as quais nos depara-mos, hoje? Na verdade, o que temos constatado é a extrema atualidade dasformulações de Freud nesses três artigos. Mesmo que tenhamos querelativizar algumas questões, levando em conta a época em foram escritos,o essencial das idéias de Freud mantém um vigor e uma força surpreenden-tes.

A partir do trabalho prévio de discussão desses artigos em cartel, foielaborado este número do Correio. O conjunto de textos que compõe a se-ção temática deste mês procura trazer algumas das questões que temosdiscutido no cartel preparatório ao “Relendo Freud”. Nesta mesma direção,os três textos da seção debates discutem alguns pontos que perpassam atemática da masculinidade, das relações amorosas e da diferença sexual.

Além do trabalho em torno dos textos de Freud, o evento em Canelatem uma segunda parte de extrema importância para a vida da Associação –aquela que batizamos de “Conversando sobre a APPOA”. É, neste espaço,a uma certa distância do cotidiano da instituição, que muitas questões, pro-blemas e propostas são discutidos e elaborados, permitindo relançar maisuma vez o projeto de trabalho que tem sustentado a APPOA ao longo des-ses quinze anos de existência.

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

RELENDO FREUD E CONVERSANDO SOBRE A APPOA

O “Relendo Freud e Conversando sobre a APPOA” têm se caracteri-zado, tradicionalmente, por ser um momento de encontro bastante acolhe-dor e informal entre os membros da Associação. O espaço para discussãodo texto freudiano tem permitido refletir sobre a atualidade dos conceitosfundadores de nossa prática clínica e manter viva a experiência de trabalhocom o inconsciente. É esta mesma experiência que justifica o laço associativoe, por este motivo, sustenta o segundo momento de nosso encontro – o“Conversando sobre a APPOA”. Neste espaço, nos propomos a falar sobre ainstituição, suas questões e impasses para que possamos seguir trabalhan-do com base nos princípios éticos fundamentais que tem norteado a APPOAnestes quinze anos de existência.

Este ano, os textos escolhidos são: “Um tipo especial de escolha deobjeto feita pelos homens” (1910), “Sobre a tendência universal à deprecia-ção na esfera do amor” (1912) e “O tabu da virgindade” (1918). Retomar osconceitos e proposições desses artigos nos instiga especialmente nestemomento, já que o trabalho da APPOA, neste ano, tem girado em torno dasquestões do masculino e da diferença sexual.

A discussão destes três textos, no Cartel preparatório ao RelendoFreud, tem antecipado algumas questões de nosso fim-de-semana na serra.Quais são as condições e os determinantes da escolha de um objeto amoro-so? O que situações como a impotência e a frigidez têm a nos ensinar sobrea vida erótica de homens e mulheres e, de forma mais ampla, sobre asrelações entre a cultura e o funcionamento da pulsão? Se estas são algu-mas das questões que Freud se colocava ao produzir estes escritos, hoje,podemos nos colocar outras tantas: temos uma mesma estrutura com no-vas “roupagens” ou há uma modificação estrutural em curso, a partir dosdeslocamentos na posição de homens e mulheres que a cultura tem estabe-lecido? O sujeito subjetiva-se de forma hegemônica? Estas são apenas al-gumas das questões que o trabalho com esses três escritos levanta e queprometem “esquentar” os três dias de nosso encontro de inverno.

PROGRAMA

SEXTA-FEIRA – 18 de junho18h30min – AberturaMário CorsoUm tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens (1910)Gerson Pinho e Marieta Rodrigues

SÁBADO – 19 de junho9h30minSobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor (1912)Rossana Oliva e Otávio Nunes

10h15min – Intervalo

10h30min – Conversando sobre a APPOA

Tarde livre

17h30min – Sessão de Cinema

20h30min – Jantar de confraternização, por adesão

DOMINGO – 20 de junho9h30minO tabu da virgindade (1918 [1917])Carlos Kessler e Maria Ângela Brasil

10h30min – Conversando sobre a APPOA

12h30min – EncerramentoMaria Ângela Brasil

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

RESERVASHotéis Continental CanelaInformações e reservas: (54) 3031.1111Luxo individual: R$130,00Luxo duplo: R$150,00Luxo triplo: R$170,00Cama extra: R$48,00As reservas devem ser feitas até o dia 15 de junho pelos participantes interessa-dos.

INSCRIÇÕESAs inscrições já podem ser feitas na Secretaria da APPOA pelo valor de R$30,00.Informamos que o jantar de confraternização acontecerá no sábado, dia 19/06 poradesão.

LOCALHotéis Continental CanelaEndereço: Rua José Pedro Piva, 220 – Canela/RSFone: (54) 3031.1111 – Fax: (54) 3031.1122E-mail: [email protected]: www. hoteiscontinental.com.br

XXIV JORNADA DE ESTUDOS – CENTRO LYDIA CORIATTRANSTORNOS ESPECÍFICOS DA LINGUAGEM

As questões da linguagem e a modalidade de intervenção clínica mo-tivaram o chamamento desta Jornada para promover interlocuções interdisci-plinares a respeito desta temática.

Palestrante: Mauro Spinelli – Médico especialista em otorrinolarin-gologia e neurofoniatria; estudos em Psicanálise no Instituto Sedes Sapientiae;Doutor pela PUC de São Paulo; Professor do curso de graduação e pós-graduação em fonoaudiologia da PUC de São Paulo.Data: 05 de junho de 2004.Local: Rua Dr. Lauro de Oliveira, nº 71.Programa – linguagem: conceito, origem e evolução; transtornos na lingua-gem oral e escrita; diagnóstico e intervenção interdisciplinar na linguagem;linguagem e comunicação.

CARTÉIS PREPARATÓRIOS AO CONGRESSO

O Cartel preparatório ao Congresso “a masculinidade” informa queforam organizados três cartéis de estudo que constituirão nossos eixos detrabalho. Estão abertos à participação dos interessados.

1. Lei, Família e Trabalho– A relação do homem com a lei: poder e direito– Mudanças na estruturação familiar e na educação de meninos e meninas– Transformações nas relações de trabalho– O masculino e a violência na relação com a morte2. Representações do Masculino e História da diferença sexual– O masculino nas artes plásticas, cinema, literatura, etc.– Interfaces com a Antropologia e a História da diferença sexual3. Desejo, Amor e Gozo– O desejo masculino– O masculino e a violência na relação com a morte

Os que desejarem mais informações enviem seus dados à Secretariapara que as recebam por e-mail.

TESOURARIAA Associação Psicanalítica de Porto Alegre informa que, a partir do mês

de junho, haverá um acréscimo de 6% nas mensalidades de membros e partici-pantes em função da inflação acumulada no último ano. A Mesa Diretiva daAPPOA decidiu pela manutenção dos valores de Grupos, Seminários e Percur-sos de Escola.

Seguem, abaixo, os novos valores:

CATEGORIA VALOR R$ Membros 159,00 Membros Correspondentes 211,00* Participantes 116,00

* Valor anual.

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NOTÍCIAS

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SOBRE A VIDA AMOROSADO HOMEM CONTEMPORÂNEO

Gerson Smiech Pinho

No filme “Abaixo o amor”, a escritora feminista Barbara Novak abalaNova York, no início da década de 60, com a publicação de um best-seller em que aconselha as mulheres a dizerem “não” ao amor e

“sim” à carreira, ao poder e ao sexo. No desenrolar da história, somos sur-preendidos pelas verdadeiras intenções da personagem: era uma apaixona-da inveterada que havia procurado a fama apenas como um meio para con-quistar o amor de seu antigo chefe. Esta bem-humorada comédia românticapode servir de ponto de partida para expressar uma das questões que temsido levantadas pela discussão dos três textos de Freud reunidos sob otítulo “Contribuições à psicologia do amor”. Até que ponto as diversas mu-danças na posição de homens e mulheres, processadas na cultura ao longodo último século, implicam em alguma modificação efetiva naquilo que foiestabelecido por Freud sobre a vida amorosa, nestes artigos?

À primeira vista, o filme parece afirmar a permanência de certas ques-tões, independente das mudanças do tempo. Mesmo com o surgimento dapílula e do feminismo, o cerne da vida amorosa de homens e mulheres acon-teceria mais ou menos da mesma maneira, já que tudo o que a feministadurona fazia era em nome do amor que tentava escamotear. Porém, o finalda história parece assinalar o surgimento de algo novo. Após ter seu segredorevelado, Barbara constata ter sido bem sucedida em seu plano: seu ex-chefe realmente se apaixona por ela. Mas, ela descobre também que, apóso sucesso como escritora, sente-se uma nova mulher. Algo se desloca naposição dos personagens e, agora, é ele quem passa a se interrogar sobre otipo de homem que necessita ser para poder estar ao lado dessa “nova mu-lher”.

No presente escrito, tomando essas questões, procuro interrogar aatualidade dos conceitos e idéias propostos por Freud em suas “Contribui-

FILME E PALAVRAS PARA UM DIA CENTENÁRIO – 16 DE JUNHO DE 1904

No próximo dia 16 deste mês, uma quarta-feira, o Seminário Sinthomana clínica e na escrita e o Núcleo Passagens estarão promovendo a apre-sentação e exibição do filme “Os vivos e os mortos”, do diretor John Huston.A película é baseada no conto “Os mortos”, da coletânea de contos “OsDublinenses”, de James Joyce.

Enéas de Souza fará a apresentação do filme e introduzirá uma dis-cussão sobre os aspectos cinematográficos desta adaptação em sua articu-lação com a psicanálise. Além disto, Luis Roberto Benia lerá trecho deUlisses, de Joyce; pois nesta data, 16 de junho, tradicionalmente, comemo-ra-se o Bloomsday , dia em que transcorre a narrativa do livro.

A atividade é aberta aos interessados e será realizada na sede da APPOA.Atividade: Filme e discussão: “The Dead”, de John Huston.Data: 16/06/04, quarta-feira Hora: 19 horasLocal: APPOA – Rua Faria Santos , 258 – Fone 3333.2140Entrada franca. Solicita-se que as reservas sejam feitas antecipadamente.Os lugares são limitados.

SEÇÃO TEMÁTICA

DIÁLOGOS COM A CLÍNICA

A Mosaico – Centro Interdisciplinar e Oficinas Terapêuticas convidapara o 2º Diálogos com a Clínica: “Histórias de Brincar – reflexões psicana-líticas sobre a infância contemporânea na clínica”. Neste ocasião, estare-mos recebendo Ana Marta Meira e Simone Rickes para discutirmos sobre olugar do brincar e sua ausência, o papel do jogo e da escrita na psicanálisede crianças.Data: 26 de junho de 2004Horário: das 9h às 12hLocal: Mosaico, Rua Miguel Tostes n° 230, Bairro Rio Branco, Porto Alegre.Informações sobre inscrições através do telefone 3346.4236.As vagas são limitadas.

Ana Laura Giongop/equipe da Mosaico

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SEÇÃO TEMÁTICA

dias de hoje. Lembro de situações, na clínica, nas quais homens que expe-rimentavam “relações abertas” falavam da especial curiosidade que sentiamem saber a respeito dos atributos físicos e o desempenho sexual dos outrosparceiros de suas companheiras. A comparação das “medidas” indica queum tanto de rivalidade ainda persiste. Porém, o fato de que a outra relaçãoseja permitida parece deslocar a idéia do prejuízo para outra, mais ligada aobenefício concedido a todos os integrantes do triângulo amoroso, em nomede uma suposta “liberdade sexual”.

Chemama (2002) refere que, principalmente durante as décadas de60 e 70, proliferaram relacionamentos que propunham dar ao terceiro eventu-al um lugar lícito, previsto na própria constituição do casal. Na medida emque esta ideologia da liberação era proposta como ideal, surgia o imperativode incluir outros parceiros no relacionamento com a conseqüente proibiçãoem sentir qualquer ciúme em relação aos mesmos. No lugar de uma “lógicado terceiro excluído”, ganhava terreno uma “ideologia do terceiro incluído”.Ao interrogar essas ideologias, esse autor afirma que, à primeira vista, aproposição de Freud, em seu artigo de 1910, parece distante das mesmas,pois, ali, descreve o caso de homens que só podem amar na rivalidade.Porém, é possível aproximá-las, ao enfatizar não a rivalidade com o terceiro,e sim a obrigação de deixar-lhe um lugar. Chemama (2002) aborda estaquestão tomando a trilogia “As leis da hospitalidade”, do escritor PierreLossowski: obra na qual é retratado o fantasma de alguns homens que con-siste em “emprestar” sua esposa a outros homens. Independente do lugarque o sujeito venha a ocupar nesse fantasma, importa situar no mesmo apresença de um lugar reservado ao terceiro no laço conjugal. Em todos es-tes casos, temos o terceiro elemento como presença necessária para que arelação aconteça. Assim, torna-se possível afirmar que a ideologia da libera-ção sexual, que teve seu apogeu três ou quatro décadas atrás, tem a mes-ma base de sustentação subjetiva que o comportamento do tipo masculinodescrito por Freud em “Um tipo especial de escolha de objeto feita peloshomens”.

ções à psicologia do amor”, coletânea composta pelos seguintes títulos:“Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens” (1910), “Sobre atendência universal à depreciação na esfera do amor” (1912) e “O tabu davirgindade” (1918). Este conjunto de artigos contém uma extensa análise docaminho percorrido por ambos os sexos na organização da vida sexual erefletem, sem dúvida, um dos momentos mais fecundos da produção freudianaem relação a esta questão. Vou procurar centrar minhas reflexões nas pro-posições de Freud acerca do tipo de escolha amorosa feita pelos homens,principalmente nos dois primeiros artigos desta trilogia e num texto posteri-or, “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914), em que o assunto é retoma-do.

O TERCEIRO (PREJUDICADO?)Segundo Jones (1989), a intenção de escrever um ensaio ou um livro

sobre “A vida amorosa do homem” foi comunicada pela primeira vez por Freudem uma reunião da Sociedade Psicanalítica de Viena no final de 1906. Estaintenção se concretizaria somente quatro anos mais tarde, com a publica-ção de “Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens”. Como otítulo indica, neste artigo, Freud aborda as condições necessárias ao amorem um tipo particular de escolha de objeto que ocorre, principalmente, noshomens. Enumera duas condições do objeto para que possa ser eleito: anecessidade de existir uma terceira pessoa prejudicada com o relaciona-mento e a preferência por mulheres cuja fidelidade é “duvidosa”. Já o compor-tamento do amante que faz esse tipo de escolha se caracteriza pela altavalorização do objeto amoroso, o caráter compulsivo com que o mesmo éabordado, o estabelecimento de uma série de relacionamentos sucessivos ea ânsia em “salvar” a mulher amada. Segundo Freud, todas estas caracterís-ticas tem como origem a fixação infantil na relação edípica.

Em seu artigo, Freud situa a figura do “terceiro prejudicado”, principal-mente, em uma posição de rivalidade para com o sujeito. O que pensarquando este terceiro elemento passa a ter um lugar consentido em um rela-cionamento? Esta situação, improvável na época de Freud, não é rara nos

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clivagem inevitável entre o amor e o desejo, estrutural e constitutiva da pró-pria sexualidade. Sem esta clivagem, ou seja, sem uma pitada de deprecia-ção, a vida erótica ficaria inviabilizada. Esta separação tem sua origem naforte ligação do desejo sexual com sua “irmã”, a perversão, que se susten-tam no anonimato e na impessoalidade, pois “o parceiro da fantasia sexual,da mesma forma que o pai na perversão, não tem nome” (Pommier, 1992, p.157). Na neurose, sai-se do anonimato e o interesse é dirigido a uma pessoaa quem se dedica afeição e amor. É possível articular o desejo sexual emsua impessoalidade ao interesse por uma pessoa, registrado no amor?

Segundo Pommier (1992), a clivagem é a regra geral e é inevitável,mesmo que exista um único parceiro. “A partir do momento em que o amadosai da impessoalidade, a sexualidade se retrai e fica por trás de um véu,numa obscuridade onde é preciso ir a seu encontro de olhos fechados, coma luz apagada, para que o duplo erótico possa novamente se animar.(...) Aclivagem é inevitável, e o desejo só se resguarda do amor graças a diferentesprocessos que separam a amada dela mesma, dissociando-a entre sua facenoturna e aquilo que ela deixa surgir à luz do dia” (Pommier, 1992, p. 158).

Então, como afirmamos acima, algo da ordem da depreciação e doanonimato sempre entram em jogo no erotismo, na medida em que a divisãoentre amor e desejo é estrutural e necessária para a atividade sexual. Nocontexto cultural atual, em que ponto poderíamos situar esta depreciação?Levantar esta questão na época de Freud teria muito pouco sentido, já que arestrição moral imposta a vida sexual acarretava a imediata divisão entre asmulheres “para casar” e aquelas de vida “fácil”, por exemplo. Em uma épocacomo a nossa, de banalização, em que tudo é mostrado, tudo é explícito, oque seria passível de depreciação? Melman (2003) afirma que um dos gran-des traços da mutação cultural que vivemos, hoje, é que aquilo que nosparecia ser demais, a ser rejeitado, excessivo, agora é o normal. Segundoesse autor, em nossa cultura, há uma presença crescente de representa-ções do objeto a, ligada à ideologia liberal que ao “nos forçar ao gozo, acar-reta obrigatoriamente a modificação moral que consiste em acharmos bom oque outrora era mau, e que era preciso rejeitar” (Melman, 2003, p. 86). Nessa

AMOR E DESEJOSe, no primeiro artigo das “Contribuições à psicologia do amor”, Freud

limita sua abordagem a um tipo específico de escolha amorosa dos homens,no segundo, avança em suas proposições a respeito da vida erótica mascu-lina em geral ao abordar o problema da impotência psíquica. Sob o título“Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor”, afirma que aimpotência está vinculada à dificuldade em conjugar, em um mesmo objetoduas diferentes correntes – a amorosa e a sensual. Para que a correntesensual possa ser colocada em cena, é necessário que o objeto não sejainvestido pela corrente amorosa, já que esta última tem sua origem associa-da a objetos incestuosos, nos primeiros cuidados da criança exercidos pe-los pais. Assim, as duas correntes em jogo são impedidas de investir nummesmo objeto; se um objeto amoroso é abordado sexualmente, surge osintoma da impotência. A estratégia para sustentar esta divisão é a depreci-ação do objeto investido pela corrente sensual, já que o investimento pelacorrente amorosa sempre implica na valorização do mesmo. Deixando delado o tema da impotência, Freud conclui com a idéia de que a divisão entreum objeto amoroso valorizado e um objeto sexual depreciado faz parte davida sexual do homem civilizado em geral, o qual expressa respeito e valori-zação pela mulher amada, enquanto deprecia a mulher desejada.

Na clínica, encontramos algumas situações que remetem diretamenteao texto freudiano, com modificações referentes ao contexto cultural atual. Se,na época de Freud, a valorização e o respeito por uma mulher estavam relacio-nados a seu lugar de esposa e mãe e a sua “integridade” sexual, hoje, outrosatributos ocupam esse lugar. Por exemplo, um paciente queixava-se do maisabsoluto desinteresse sexual por sua esposa, a qual julgava “perfeita”: era ex-tremamente bela, com o corpo malhado, inteligente e muito bem sucedidaprofissionalmente. Esta personagem impecável parece ter pouco a ver com a“santa”, devota ao lar e aos filhos, do tempo de Freud. Porém, a impotênciadiante dela denuncia o parentesco com a mesma figura materna de outrora.

Pommier (1992) afirma que a divisão assinalada por Freud entre obje-to de amor e objeto de desejo nos homens é um caso particular de uma

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ma que uma comparação entre os sexos masculino e feminino indica queexistem diferenças fundamentais entre eles. O amor do tipo de ligação écaracterístico dos indivíduos do sexo masculino. Ele exibe a acentuadasupervalorização sexual que se origina do narcisismo original da criança,correspondendo assim a uma transferência desse narcisismo para o objetosexual. Já o tipo narcisista, é característico do sexo feminino. Na verdade,ambas as escolhas são fundadas no narcisismo primário; o que varia é se omodelo amoroso é tomado do lado da própria criança ou do lado da mãe.Poderíamos pensar, hoje, em alguma modificação nesta proposta de Freudquanto a relação entre o tipo de escolha de objeto e a diferença sexual?

Muito recentemente, a mídia tem nos apresentado o surgimento deum novo tipo de homem, apelidado com o termo “metrosexual” – união daspalavras metrópole e sexual, criado pelo jornalista americano Mark Simpsonpara definir um tipo de consumidor específico. São homens heterossexuaisde 25 a 45 anos, com alto poder aquisitivo, urbanos, preocupados com aaparência, que gastam com roupas de grife, pilotam carros velozes, consu-midores de cremes anti-rugas, tratamentos de beleza e cirurgias plásticas.Dois ícones desse tipo são o ator Brad Pitt e o atacante inglês David Beckham.Enquanto Brad Pitt planeja por semanas a posição exata de cada fio de seucabelo “despenteado”, Beckham pinta as unhas, muda o corte e a cor docabelo como quem troca de camisa no final do jogo, gasta milhares de librascom produtos de beleza e confessou já ter usado algumas vezes as calci-nhas da mulher, a ex-Spice Girl Victoria.

O termo metrosexual delimita um “tipo masculino” cada vez mais pre-sente nas últimas décadas, mas que difere substancialmente daquele queorganiza a escolha de objeto de tipo anaclítico, descrita por Freud em seuartigo. Aproxima-se muito mais da escolha de tipo narcísica. Ao tomar afigura do metrosexual como ideal masculino da atualidade, poderíamos pen-sar em uma maior flexibilização no modo como são feitas as escolhas deobjeto por homens e mulheres do que aquela do tempo de Freud? Ou, aocontrário, teríamos uma tendência de ambos os sexos em direção a escolhanarcísica, em detrimento da escolha anaclítica? Neste último caso, qual

cultura do excesso, da visibilidade, que almeja tudo representar, que espaçoresta àquilo que, ao se manter encoberto, não-visível, não-representável, po-deria manter viva a hiância necessária ao desejo?

SOBRE O NARCISISMOEntre a publicação do primeiro texto das “Contribuições à psicologia

do amor”, em 1910, e do último deles, em 1918, temos um intervalo querecobre praticamente o tempo de uma década – momento da elaboraçãofreudiana que é chamado por Lacan (1983) de “período intermediário”. Esteperíodo sucede a experiência inaugural, em que são estabelecidas as pri-meiras idéias a respeito do inconsciente, e antecede a formulação da teoriadas três instâncias, a partir de 1920. É um momento de impasses clínicos eteóricos que irão conduzir Freud a reformulações importantes em sua teoria.Um dos conceitos centrais desse tempo de elaboração, fundamental paracompreender as modificações posteriores, é a noção de narcisismo. Apesarde Freud não abordar diretamente o tema do narcisismo nos três artigos emquestão, assinalo sua importância porque sua formulação é contemporâneaa eles e perpassa as questões que Freud ali trabalha.

Se a noção de narcisismo vinha sendo elaborada paralelamente aosdois primeiros desses artigos, Freud só vai articulá-la de forma direta àsquestões neles trabalhadas em “Introdução ao narcisismo” (1914). Nessetexto, um dos temas através dos quais aborda o estudo do narcisismo é avida erótica e suas diferenciações no homem e na mulher. Ali, afirma que asprimeiras escolhas de objeto sexual das crianças derivam de suas primeirasexperiências de satisfação, relacionadas às experiências vitais que servemà finalidade de autopreservação. As pulsões sexuais estão sempre ligadas,de início, à satisfação das pulsões do eu. A partir daí, teríamos duas possi-bilidades. Se a escolha objetal toma a mãe ou quem quer que a substituacomo modelo, é denominada como escolha de “tipo anaclítico” ou “de liga-ção”. Se, ao invés da mãe, o próprio eu é tomado como modelo de objetoamoroso, temos um tipo de escolha objetal narcisista. Mesmo que ambosos tipos de escolha objetal estejam abertos a qualquer indivíduo, Freud afir-

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SEÇÃO TEMÁTICA

ISTO É. Nasce a camundonga Kaguya, a verdadeira filha da mãe. 28 abr. 2004, nº1803.

JONES, E. A vida e a obra de Sigmund Freud. v. 2. Rio de Janeiro: Imago, 1989.LACAN, J. O seminário, livro 1 – os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 1983.MELMAN, C. Novas formas clínicas no início do terceiro milênio. Porto Alegre:

CMC editora, 2003.POMMIER, G. A ordem sexual. Perversão, desejo e gozo. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 1992.

seria o destino da escolha de objeto considerada por Freud como tipicamen-te masculina?

Enquanto escrevia este texto, me deparei com uma notícia que, inevi-tavelmente, me fez pensar no lugar reservado ao masculino no porvir de nos-sa cultura. Em um número bastante recente da revista “Isto É”, lemos oseguinte: “Um dogma da ciência na área da reprodução foi quebrado na quar-ta-feira 21 (de abril de 2004). Desde que o mundo é mundo, acreditava-se serimpossível o nascimento de um mamífero sem a presença do sexo masculi-no no processo de fecundação.” A reportagem prossegue com o relato, origi-nalmente publicado na revista britânica Nature, do nascimento de Kaguya,uma fêmea de camundongo produzida por partenogênese. Isso significa queessa camundonga, fabricada por uma equipe de pesquisadores da Universi-dade de Agricultura de Tóquio, tem duas mães e nenhum pai, tendo sidogerada sem a presença de espermatozóide. Se os bancos de sêmen jáhaviam reduzido o lugar paterno ao de um produtor de esperma, a reporta-gem mencionada parece indicar um novo “avanço” em relação às tecnologiasde reprodução. Resta a questão sobre as modalidades de mal-estar queestas novíssimas conquistas no campo da ciência e modificações no planoda cultura venham a produzir. Questões que se mantém como importantespontos a serem interrogados por nosso trabalho de escuta.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:CHEMAMA, R. Elementos lacanianos para uma psicanálise do cotidiano. Porto

Alegre: CMC editora, 2002.FOLHA ON LINE, Mercado “descobre” o homem vaidoso. 20 jul. 2003.FREUD, S. Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens (1910). In:

Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1987._________ Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor (1912).

In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1987._________ Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). In: Obras completas.

Rio de Janeiro: Imago, 1987._________ O tabu da virgindade (1918). In: Obras completas. Rio de Janeiro:

Imago, 1987.

PINHO, G. S. Sobre a vida amorosa...

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SEÇÃO TEMÁTICA

Referimo-nos aos excessos, que estão na ordem do dia, para trans-formar o corpo em modelo de perfeição, tanto pelo seu valor estético, quantopelo seu funcionamento. Há cem anos, o corpo virgem e intocado de umamulher era o ideal cultuado. Parece-nos que, atualmente, o corpo (tanto dohomem quanto da mulher) quanto mais mexido e trabalhado, mais próximoestará da excelência, tal como a virgindade era noutros tempos, ou seja,mais valorizado o corpo será. O ideal da cultura, como sugerimos, foi sedeslocando da virgindade para o corpo perfeito, sendo que este pode, inclu-sive, já ter sido maculado. De uma parte mínima do corpo, o hímen, para oque representaria a totalidade imaginária do corpo, o que é interditado agoraparece estar localizado numa depreciação libidinal do corpo, na medida quehá uma hipervalorização dele, o que é acentuando, ainda mais, com oexibicionismo do corpo em todas as suas dimensões.

Neste sentido, gostaríamos de pensar quais as conseqüências psí-quicas na vida erótica dos sexos, que a ruptura com este ideal tão caro àépoca vitoriana – o tabu da virgindade – acarretou. Sabemos que em relaçãoaos ideais a assimilação não se dá de maneira hegemônica, é necessáriofazer uma contextualização. De qualquer forma, essa diferença acarretoumudanças no processo de subjetivação e nas vicissitudes da pulsão sexu-al.

Sabemos da importância da sublimação para a vida psíquica. Entretodos os destinos pulsionais, talvez seja o que mais favoreça a cultura e osujeito, provando mais uma vez o entrelaçamento indissociável entre um eoutro. Dos benefícios para o sujeito podemos contar com a satisfação parci-al da pulsão sexual, já que é impossível que ela se esgote em strictu senso,pelas razões do objeto, pois ele é sempre parcial, e por ser uma konstanteKraft. A cultura aproveitaria a produção individual que é a conseqüência dasublimação. Esta produção deverá interessar o laço social, na medida emque são os ideais de uma época que incitam o rumo da sublimação, apon-tando as direções que ela poderá tomar. Evidentemente, existem outros des-tinos pulsionais, como por exemplo o próprio recalcamento, que incide nacultura de uma outra maneira.

TABUS NO CORPO

Rossana Stella OlivaOtávio Augusto Winck Nunes

Uma das questões que mais intriga ao lermos os textos de Freudreunidos sob o subtítulo “Contribuições à Psicologia do Amor”1 ésaber se seus pressupostos são atuais ou se são textos datados.

Parece-nos que, obviamente, algumas reflexões ainda permanecem vigen-tes, enquanto outras já ultrapassaram, em muito, seu prazo de validade.

Mesmo assim, em relação às idéias que poderíamos considerar data-das, uma nova discussão pode relançá-las dentro de uma outra contextua-lização, tornando-as, deste modo, atuais.

Uma dessas discussões, por exemplo, poderia ser feita sobre o texto“O Tabu da Virgindade”, que data de 1917, publicado em 1918, num momen-to diferente da obra freudiana em relação aos outros dois textos integrantesdesta série. Nele, defende a idéia de que a mulher, em geral, desenvolve umaagressividade direcionada ao homem que a desvirginou. Isso aconteceria,numa das vertentes exploradas pelo autor, pela eclosão de uma injúria narcísicaresultante da destruição de um órgão corporal hipervalorizado culturalmente,já que a perda da virgindade levaria a mulher à diminuição do seu valor sexualna sociedade. Não seria preciso nos estendermos em demasia na análisedesta tese, pois a discussão e a reordenação dos costumes já avançaram osuficiente para mudar a situação e considerá-la sem vigência – a preserva-ção da virgindade – no que diz respeito ao nosso tempo.

Não obstante, se no início do século passado, situar na virgindade umtabu foi uma interpretação necessária para o trabalho freudiano, poderíamos,ainda, localizar no corpo outros tabus, por certo, modernizados. Afinal, docorpo não nos livramos.

1 Os textos reunidos por Freud em “Contribuições à psicologia do amor” são: “Um tipoespecial de escolha de objeto feita pelos homens” (1910); “Sobre a tendência universal àdepreciação na esfera do amor” (1912); “O tabu da virgindade” (1918[1917]).

OLIVA, R. S. E NUNES, O. A. W. Tabus no corpo.

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SEÇÃO TEMÁTICA

com a censura, desvia-se deste objeto e retorna agora para o corpo, dessexua-lizado. O corpo como início, meio e fim.

Bem, dessa constatação, talvez, seja possível retirar conseqüências:pode-se entender porquê, apesar do aumento fantástico do número de plás-ticas e seu correspondente “aumente seu pênis”, não é exatamente o exer-cício aprimorado da sexualidade que está em jogo, mas uma convocatóriado dar-se a ver, como corroboração necessária para que o gozo narcísicoaconteça. Seria isto a geração de uma sociedade mais histérica, uma vezque a obra – conseqüência da sublimação – para o laço social não precisaser utilitária, basta que simbolicamente reproduza o valor do que ela mesmavaloriza?

Poderíamos compreender, igualmente, que este ideal, que conferepouca exterioridade ao sujeito mas que, sobretudo, em nada transcende aele, provoque um empobrecimento na cadeia simbólica, propiciando menosrecursos para responder e para lidar inclusive com o pulsional. E então nãoestaríamos diante de uma sociedade mais propensa ao acting e a depres-são? A tristeza que advém deste fato é, sobretudo, porque isso nos impedede sonhar.

Nossa proposta, é começarmos a pensar que destino pulsional subli-matório seria possível hoje, já que nos ideais de nossa época – entre eles,que não há nenhuma verdade que nos transcenda, seja ela de que ordem for– a idéia de que tudo começa e termina em nós é mais atual do que nunca.Quais as conseqüências disto?

Retomando o exemplo do processo de sublimação e no que ele deveconsistir, entendemos que a sublimação é uma forma de satisfação da pulsãosexual, realizada de forma não sexual. Queremos dizer com isso que a libidoé desviada do objeto que traria a satisfação sexual (segundo a fantasia decada um) para um outro não sexual, mas valorizado socialmente. Aliás esteé o pré-requisito para satisfação. Como indica J. D. Nasio, é pela intervençãodo eu narcísico que esta troca de objeto produz satisfação: “...uma vez inici-ado o processo, o impulso sublimado desliga-se do ideal e retorna em dire-ção ao próprio eu, dando lugar a um gozo narcísico”.2

Isto só é possível devido à plasticidade das pulsões que podem subs-tituir umas às outras, canalizando a intensidade para que se ofereça emsubstituição àquela que não pode ser satisfeita por exigências da censura.

Retornando a possibilidade de sublimação na atualidade, e tendo oideal como incitador do processo, pensamos que um dos ideais mais carosde nossa atualidade é o propalado consumo, a aquisição de objetos. A cul-tura do corpo perfeito tanto esteticamente quanto nas questões de saúde,como dissemos anteriormente, entraria na mesma lógica, inclusive, pode-mos transformá-lo e pagar pelos serviços prestados em suaves prestações.Não pensamos que estes ideais sejam melhores ou piores que o da virginda-de, que, nos parece, apontava para a sustentação do poder patriarcal e dafamília que ameaçava dissolver-se3, mas que a única vantagem é que apon-tava para algo fora do sujeito.

Quando se fala de corpo estética e saudavelmente perfeito, como se-ria o processo? A libido, ao se encaminhar para o objeto sexual, deparar-se

2 Nasio, J.D. “Os 7 conceitos cruciais da psicanálise”. Jorge Zahar Editor (1995)3 Conforme prefácio de M. Rita Kehl – “A necessidade da neurose obsessiva”.

OLIVA, R. S. E NUNES, O. A. W. Tabus no corpo.

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SEÇÃO TEMÁTICA

Parece que encontramos aqui um ponto latente daquilo que está nabase do que se consagrou como sendo a produção característica de nossainstituição. Assim, se partimos da distinção freudiana entre masculino efeminino, passando por Lacan e suas posições de ‘amante’ e ‘amado’ doSeminário 8; ou ainda sua elaboração das fórmulas da sexuação, todos es-tes elementos podem apontar para o estabelecimento de posições subjeti-vas e estruturas constitucionais, independentemente de fatores contextuais.Mas também podemos nos remeter às inúmeras produções sobre o sujeitocontemporâneo, laço ou sintoma social, partindo da proposição do ‘inconsci-ente como discurso do Outro’, apontando, então, para a necessária conside-ração do sujeito como constituído desde os mesmos fatores contextuais, oque pode ir até uma espécie de plasticidade radical do sujeito, singular emoldado conforme os caprichos do momento em que se viva. Pode-se fazerde conta que não há aqui tensão ou contradição, ou mesmo adotar alguma“solução de compromisso”, mas pode-se também levar estes dois princípiosa um antagonismo. Parece uma boa hora para fazer a questão trabalhar. Atéaqui a manutenção desta em suspensão já produziu o seu efeito interessan-te: possibilitou a consolidação de uma posição que já rendeu seus bonsfrutos, mas sobre a qual poderíamos agora tentar avançar.

Talvez nos ajude, colocadas estas questões, retomar o velho e bomFreud. Visitando o texto freudiano, em acordo com o espírito do nosso en-contro anual, ver o que isso nos indica. Buscar nos próprios textos escolhi-dos, elementos para alimentar este debate. Caso alguém não os tenha pre-sente, basta revê-los rapidamente que saltarão aos seus olhos as tantasreferências a elementos culturais, bem como outras que remetem ao queteria a ver com a constituição parcial, tanto dos objetos, quanto das própriaspulsões. Sempre é interessante perceber o horizonte riquíssimo, infindável,de questões e linhas de trabalho que se descortina em um exame maisaproximado do texto freudiano (e aqui pouco importa se é com a velha lupaou o moderno zoom).

Em “Um tipo especial de escolha de objeto”, o estruturante gira emtorno do conflito edípico. Segundo o editor da tradução inglesa da obra

ACERCAMENTOS ÀS ‘PSICOLOGIAS DO AMOR’

Carlos Henrique Kessler

“...o mistério do amor é muito maior queo mistério da morte.”

O. Wilde

Otrecho acima é uma pequena referência à história de Salomé que,pelo que se conta, teria feito decapitar João Batista, por este não sedeixar seduzir. Oscar Wilde, irlandês nascido no mesmo ano que

Freud, mas que ‘encerrou seus trabalhos’ quando recém se lançara “A Inter-pretação dos Sonhos”, escreveu uma peça em torno desta personagem. Ofragmento que coloquei acima situa – além da interessante assonância nalíngua francesa na qual ele escreveu esta peça – a posição do escritor quan-to a dois temas centrais constitutivos do campo da psicanálise. Curiosa-mente, um deles foi objeto de exame no primeiro “Relendo Freud” (quandonem tinha ainda sido batizado com este nome). Naquela época, o “além doprincípio do prazer” me parecia o mais complexo e decisivo ponto de trabalhoem psicanálise. O outro tema, que vem proposto nestes pequenos escritosde Freud que agora escolhemos trabalhar, pode também nos indicar tantouma direção para nossos trabalhos, quanto alertar para a dimensão da em-preitada.

Uma temática que se impôs, durante o trabalho do Cartel preparatórioao próximo encontro “Relendo Freud” deste ano – que como todos sabemtomará os três textos reunidos sob o título de “Contribuições à Psicologia doAmor” – foi a respeito de haver ou não uma subjetivação estruturada indepen-dentemente das circunstâncias de tempo e lugar, ou se estas circunstânci-as incidiriam substancialmente nesta constituição. Isto foi evidenciado nosrelatos dos encontros do Cartel, publicados em nossos correios, tanto oimpresso quanto o eletrônico. Em função dos textos abordados, isto surgiuparticularmente no que concerne aos campos amoroso e sexual.

KESSLER, C. H. Acercamentos...

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no título, cumpriria sua função de defesa. Nada mais estrutural/estruturanteque a condição de interdição incestuosa. Isso não seria um dos legadosdecisivos que Lacan, via Levi-Strauss, nos deixou? Mas a eventual certezaque aqui nos confortaria é complexificada na seqüência. Freud vai abordar oparalelo feminino da impotência: a frigidez.

De saída já precisamos destacar a sobreposição entre homem/mas-culino, mulher/feminino. Isso contraria outros momentos de sua produção,nos quais ele vai convictamente propor como ”definição operacional”, para omasculino, a condição de atividade; enquanto para o feminino, atribui a pas-sividade. Quando faz assim, Freud não deixa dúvidas, indicando que a raizdestas definições – provocativamente aos estudiosos do gênero, podemosdefender que Freud é um dos precursores neste campo – não concernem aobiológico, mas ao cultural, sendo que para ele tanto homens quanto mulhe-res podem se encontrar em uma ou outra destas condições.

Mas, voltando, a condição de frigidez remeteria para a componente dotempero amoroso feminino – a proibição – como sendo a correspondentedaquilo que o elemento de rebaixamento é para os homens. Teríamos umaconexão quase behaviorista, uma vez que a proibitividade derivaria da com-ponente (também explorada no texto seguinte) que remete à condição defidelidade/tabu da virgindade. A mulher devendo “guardar” sua atividade sexu-al para depois do casamento, não esqueceria dessa proibição inicial comoelemento constitutivo de seu erotismo. Novamente não podemos dizer que ofantasma/fantasia de tipo “bela da tarde” tenha desaparecido do horizontecontemporâneo, mas de qualquer modo, dificilmente os termos que são osque alimentam a reflexão freudiana são os que encontramos nos nossosdias, até por conseqüência, diga-se de passagem, destes próprios escritos.A demora, entre a maturidade sexual e seu exercício, não é mais um ele-mento indispensável.

Justamente aqui encontramos, no terceiro capítulo do texto o momen-to “mais explícito” relativo a questão que estamos “perseguindo”. Segundo avelha tradução da Imago: “...se não se limita a liberdade sexual desde oinício, o resultado não é melhor. Pode-se verificar, facilmente, que o valor

freudiana, seria este texto o primeiro lugar onde a referência ao “complexo deÉdipo” ocorreu, curiosamente apontando para sua reedição na “pré-puberda-de”. A “escolha especial” em questão, como é sabido, remete a algumaspré-condições. Uma delas é que a atração do homem se dá por uma mulherjá comprometida, implicando uma condição de rivalidade. Em segundo lugar,com a posteriormente famosa “divisão na esfera do amor”: de um lado aatração por uma mulher de alguma forma rebaixada, de má reputação quantoa sua fidelidade; seria endereçado a outra mulher “de boa reputação” um laçoelevado, afetuoso, mas sem atração. Aqui estaríamos frente à condição dociúme. Uma terceira derivação desta escolha de objeto é a ânsia por ‘salvar’a mulher amada, o que mistura os dois elementos anteriores. E então aquestão retorna, pois – se isto não impede de percebermos que opera umaestrutura onde pode predominar o laço entre dois (rivais), ou onde o que regeé o lugar de um ou outro, perante um terceiro (ciúme) – em que medida seriaviável tomar o que, por exemplo, no final do século XIX implicaria “boa” ou“má” reputação, no início do XXI? A clínica aqui pode auxiliar, e é fato que seencontram inúmeros relacionamentos comportados pelo modelo indicado porFreud, quer gerem demandas de tratamento ou não. Mas isso não é suficien-te, pois sempre podemos pensar em um efeito residual, mas não maisprevalente, ou que, no mínimo, não opere mais com a mesma contundênciade outro tempo. Ainda encontramos um outro elemento importante, que tam-bém será explorado no texto seguinte, que remeteria a uma condição estru-tural: trata-se da constituição de um objeto primordial no inconsciente,insubstituível, o que só pode buscar ser compensado por uma série infindável.

“Tendência universal à depreciação na esfera do amor” parece ser otexto mais rico. Freud o dividiu em três pequenos capítulos e não consideroque ele fizesse, seja divisões, seja escolha de títulos, por simples capricho,geralmente percebem-se claros motivos para isto. Vai aqui abordar a “impo-tência psíquica”, para o que, após seguir com sua elaboração sobre a divisãodas correntes afetiva e sensual, propõe que o apagamento, exatamente da-quilo que possa velar o traço incestuoso responsável pela atração, é quelevaria a condição de impotência. Para isso, a depreciação, retomada aqui

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nesta condição de sujeição: ela estaria ocorrendo “mais amiúde” tambémnos homens. Vai fazer um percurso – influenciado por seu trabalho sobre“Totem e tabu” – nos povos primitivos. Mostra-nos assim que também eleestava às voltas com esta questão da existência de possíveis invariantes, oque ele igualmente vai buscar, mais ou menos nesta mesma época, ao to-mar instituições milenares (Exército e Igreja Católica) em exame. No cami-nho que passa pelos povos primitivos, podemos entrever a questão do misté-rio d’A mulher, pois o que motiva um tabu é o temor de algum perigo desco-nhecido. A “receita” freudiana poderia indicar ser melhor a fórmula adotadaem nossos dias: deveria se evitar um parceiro “que deve ingressar numa vidaem comum”, que esteja ligado à experiência do primeiro ato sexual de umamulher (teríamos aqui ‘resíduos’ daquele fantasma/fantasia no número signi-ficativo de ocorrências de gravidez nas primeiras relações sexuais, na ocor-rência de incestos e etc..?). Curiosamente, pode-se encontrar uma esperan-ça, talvez a que anime algumas feministas, quando Freud situa os assimchamados “impulsos antigos”, anteriores à escolha de objeto: da inveja dopênis, do complexo de castração.

Bem, minha intenção passa longe de resolver esta questão. Se acasoalguém considerar isso cômodo, permito-me divergir. Meu interesse é que odebate continue (que haja debate).

PS: Permitam-me um pequeno parênteses. Seria abusado (ou quemsabe ultrapassado?) supor a necessidade de atualização do debate psicana-lítico no campo do sexual, a partir da produção de um autor como Foucault,com seus três textos sobre a “história da sexualidade”? Trabalhos por sinal,que marcaram a obra deste autor, a ponto de os dois derradeiros destestextos caracterizarem um “terceiro Foucault”, conforme o que ouvi de algunsde seus estudiosos. Dá para imaginar que Freud, que tanto revisou seus‘Três ensaios’ – atenção apenas comparável a que ele dedicou à “A interpreçãodos sonhos” – ao longo de sua vida, certamente o levaria em consideração.Deixo esta questão apenas posta aqui. Embora muito me intrigue atualmen-te, transcende o alcance deste trabalho, quem sabe consiga retomá-la atempo para nosso Congresso. Fecha parênteses.

psíquico das necessidades eróticas se reduz, tão logo se tornem fáceissuas satisfações. Para intensificar a libido, se requer um obstáculo; e ondeas resistências naturais à satisfação não forem suficientes, o homem sem-pre ergueu outros, convencionais, a fim de poder gozar o amor.” Temos aquitalvez uma boa pista para pensar em uma combinação necessária entre‘estrutura atemporal’ e as soluções que até em função disso cada época temque se arranjar por fabricar. (A seqüência inclusive traz uma afirmação extre-mamente contundente e interessante: “Isto se aplica tanto aos indivíduoscomo às nações”). Mas tenho claro que para muitos isso não resolveria oassunto. Dando seqüência, então, vemos que Freud vai abordar o ascetismo(o que bem poderia levar a tentação de estabelecer o paralelo entre a “nãoexigência” atual e a emergência dos fundamentalismos religiosos nas suasdiversas versões). Condição do dinamismo cultural, então. Mas o texto dáseqüência ao contrapondo estrutural, ao discorrer sobre o que claramentepodemos ler com Lacan como sendo a caracterização de objeto e pulsãoparcial. E por aí segue, abordando a impossibilidade de harmonizar pulsão ecultura, chegando à sublimação como sendo a solução civilizatória.

Em torno de “O tabu da virgindade”, imediatamente o que ocorre éinterrogar da vigência ou não deste em nossos dias. Ao longo dos anos,acompanhamos o movimento da sua aparente entrada em falência. Estetabu caiu, não funciona mais. A ‘revolução sexual’ preconizada por Reichocorreu, o que não quer dizer que isto tenha trazido a revolução social (desteponto de vista, é uma das teses que o curso da história decisivamente de-monstrou estar equivocada). A sequência necessária desta consideraçãoseria pensar sobre o destino do que operava em função deste tabu.

Ora, novamente somos remetidos à tensão entre o que poderia serdevido a uma estrutura do sujeito e o que seria atribuível ao tempo em que sevive. Um primeiro exame das considerações do texto sugere-o como extre-mamente datado, propondo a condição da mulher como em um estado desujeição, objeto do desejo do homem. Mas não é isso o que seríamos leva-dos a pensar a partir das “fórmulas da sexuação” de Lacan? Logo podemostambém notar que Freud mesmo já constata a seu tempo uma mudança

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SEÇÃO DEBATES

feminino. E essa referência não muda de uma hora para outra, talvez nem deum século para outro. Tanto que se diz que tal homem tem um comportamen-to feminino e isso chama a atenção a ponto de ser citado pelas pessoas, ouque tal mulher é masculina. Nesses casos, houve um certo desvio do que seespera que seja o comportamento esperado para um homem ou para umamulher. Apesar da multiplicidade, há caracteres comuns associados à mascu-linidade ou à feminilidade e estes estão ligados ao ser homem e ser mulher.

Sabe-se que Freud (1932) deixou em aberto uma circulação do mas-culino e do feminino entre homens e mulheres. Não colou uma coisa à outra,até porque teorizou a respeito da bissexualidade original humana ou o quan-to cada um possui do outro sexo. Mas, nem por isso, deixou de apontaralgumas características como mais tipicamente femininas e outras comomasculinas. Considerou a atitude passiva, um elevado narcisismo e a ne-cessidade maior de ser amada, bem como o masoquismo como caracterís-ticas femininas. E a atitude ativa e de amante, como masculina. Para nãotomar estas categorias como universais é interessante ampliar suacontextualização histórico-cultural, utilizando os estudos da cultura.

Freud (1925) analisa o real da anatomia corporal e seu efeito sobre oimaginário e o simbólico dos sujeitos homens e mulheres quando aborda asconseqüências psíquicas da diferença sexual anatômica. Não toma a biolo-gia como principal determinante, mas também não recusa seu papel, teorizasobre seus efeitos na subjetividade. É um modelo metodológico a seguirtambém na análise da questão da masculinidade. Embora com facilidade secaia numa busca de justificativas, pelo real, para as diferenças simbólicas,se esquece que a própria justificativa já está no registro simbólico e imaginá-rio que ela defende. Faz parte do contexto histórico-cultural em que se en-contra.

Sendo assim, não podemos negar que ao pensar em masculino inevi-tavelmente nos vem à mente a figura de homem. E qual é o lugar do homemna cultura patriarcal? Certamente é um lugar de dominância. Assim como odo pai, que também tem um lugar central na cultura, da mesma forma que nateoria de Freud e Lacan.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O LUGAR DO HOMEME DO PAI NA TEORIA PSICANALÍTICA

E NA CULTURA PATRIARCAL

Elaine Rosner Silveira1

Neste momento em que se discute a masculinidade e se sabe queFreud produziu bem mais sobre o feminino, pode ser interessantefazer interlocução com áreas que têm trabalhado sobre isso. Os

estudos na área da cultura trabalham a masculinidade e a feminilidade den-tro da categoria de gênero.

Autores como Bourdieu (1995) e Rosaldo (1995) têm abordado a cons-trução social da diferença genérica homem/mulher e a forma como esta dife-rença é naturalizada e geralmente justificada a partir das diferenças biológi-cas entre os sexos. Outros autores relacionam o gênero como uma caracte-rística central da sociedade e organizador da vida humana tanto no aspectosocial (Rosaldo,1995) como no aspecto psíquico (Kaufman,1997). Badinter(1993) mapeia duas grandes correntes que pesquisam a questão do gênero:o determinismo biológico que considera que os comportamentos se definemem função da biologia e os culturalistas que contestam o papel principal dabiologia e dedicam-se a demonstrar a plasticidade humana. Para estes últi-mos, a masculinidade não é uma essência, ela se ensina e se constrói,além de ser mutável e variável conforme a cultura.

Os pesquisadores da cultura em geral (falo mais dos antropólogos)procuram não universalizar afirmações sobre a masculinidade ou feminilida-de, mas contextualizá-las no tempo e no espaço para que não sejamnaturalizadas e consideradas imutáveis.

Em toda cultura, mesmo com múltiplas formas de apresentação, setem sempre uma referência predominante do que se considera masculino e

1 Mestre em Antropologia Social/UFRGS.

SILVEIRA, E. R. Considerações sobre o lugar...

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SEÇÃO DEBATES

tidos, passando o homem a ocupar seu lugar. A autora demonstra isso exa-minando registros da cultura indiana, egípcia, lendas mitológicas celtas, re-ligiões pré-islâmicas e os trágicos gregos, entre outros. Faz um percorridobibliográfico extenso sobre diferentes culturas para fazer suas afirmações.

Badinter (1986) refere que o patriarcado na história foi em alguns mo-mentos mais fechado (no século XVIII nas monarquias católicas) ou maisaberto (nos países protestantes) mas que em todas as culturas teve comofundamento o controle da fecundidade e a divisão sexual do trabalho. Sem-pre utilizou sistemas de representação e valores para justificar a si e à con-cepção hierarquizada dos sexos. A oposição homem/ mulher sempre sefunda em uma mitologia ou teologia. Para a civilização judaico-cristã, Adãofoi criado por Deus em partenogênese, não há mulher, esta tem papel secun-dário, sai do corpo de Adão, o primeiro está mais próximo da imagem deDeus. Os mitos de criação do mundo na sociedade patriarcal dão vantagemao pai.

O sistema patriarcal perdurou tendo como base a assimetria dos se-xos e o casamento como significado de troca de mulheres pelos homens, ouseja, a mulher como objeto. As representaçãos sobre as mulheres levavam àidéia de que precisavam ser controladas. Os padres da Idade Média diziamque as mulheres eram fornicadoras insaciávieis, associadas à serpente eSatã. Os teólogos muçulmanos diziam que a mulher era omnissexual, comgrande apetite sexual, perigosas e fonte de desordem, por isso o homemdeveria dominá-la. No Corão, a mulher fica com ¼ de homem, pois este temdireito a quatro mulheres legítimas, fora as concubinas. A sociedade patriar-cal dá dois pesos e duas medidas à relação entre homem e mulher.

A relação homem/mulher se inscreve no sistema geral de poder e aderrocada do patriarcado se deu, primeiramente, despojando o pai do divinonos séculos XVIII e XIX, com a separação do soberano do poder divino, alaicização do Estado, a Revolução Francesa e seus ideais de igualdade,fraternidade e liberdade. E, num segundo momento, no século XX, quandodiminui a autoridade moral do pai e a exclusividade do poder econômico.Pois, após a segunda guerra, houve grande questionamento dos valores tra-

Na obra de Freud, observa Julien (1997), em todos os casos clínicos,há conflito com o pai. Da mesma forma, ele teoriza o pai em vários textoscomo em “Totem e Tabu”, “Moisés e o Monoteísmo” e “Leonardo da Vinci”.Em seu pensamento, Freud apresenta três mitos fundadores (Julien,2000),os três relacionados ao pai: o pai Édipo; o pai primitivo de Totem e Tabu eMoisés, fundador de uma nova religião. Lacan também seguiu este caminhodando lugar fundamental ao pai, seja teorizando a função paterna (1956-57),seja ao falar do Nome-do-Pai que amarra os três registros do nó borromeu(1974-75), só para citar dois momentos. Neste último seminário, Lacan dizque não importa se somos ateus ou não, todos cremos em Deus e temosnele a referência que estrutura e ordena a nossa cultura.

Então, é válido perguntar por que Deus e o pai têm essa função comoestruturadores da subjetividade e da cultura. Na teoria psicanalítica, verifica-se essa função na prática clínica em geral e em especial de crianças, quan-do se vê sua necessidade de que ocorra a separação da função materna e aindividuação; bem como na clínica da psicose, onde o saber se organizasem uma referência centralizada como na neurose o faz o Nome-do-Pai. Nãose trata de questionar esse lugar fundamental nem sua importância, mas detentar responder por que é assim. Sempre foi assim em diferentes momen-tos da história das civilizações e em todas as culturas?

Acredito que a resposta aponta para a questão da sociedade patriar-cal que tem no mínimo três ou quatro milênios de existência em sua formaabsoluta (Badinter, 1986). Segundo esta autora, houve um tempo em quenão acontecia a predominância do masculino, embora não se possa afirmarque isso tenha sido universal. Porém, onde isto aconteceu, as mulheres sedeixaram despojar pouco a pouco pelos homens e adquiriram, em troca,passividade, dependência e desejos masoquistas. A própria criação de umDeus todo-poderoso é, para a autora, invenção dos homens para fundar emanter o patriarcado. Os homens inventaram Deus para melhor assentar opoder paterno. Antes, na mitologia, as deusas tinham lugar de igualdadecom os deuses em relação aos poderes divinos. Aos poucos, a mãe deusatorna-se esposa subalterna e os mitos femininos são ridicularizados e inver-

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_____. A Feminidade. 1932 In: Obras Completas de Sigmund Freud. RJ: Delta,vol. X,1958.

JULIEN, Philippe. O Manto de Noé: Ensaio Sobre a Paternidade. Rio de Janeiro:Revinter, 1997.

JULIEN, Philippe. Abandonarás teu pai e tua mãe. Rio de Janeiro: Companhia deFreud, 2000.

KAUFMAN, M. “Las Experiencias Contradictorias del Poder entre los Hombres”. Masculinidad/es: poder y Crisis. Ediciones de las Mujeres, Santiago, Isis Interna-

cional, nº 24, 1997.LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 4. A Relação de Objeto . 1956-57.RJ: Jorge

Zahar Ed., 1995.______. Seminário R.S.I. 1974-1975. Fotocópia da APPOA.ROSALDO, Michelle. O Uso e o Abuso da Antropologia: Reflexões sobre o Femi-

nismo e o Entendimento intercultural. Horizontes Antropológicos, Porto Ale-gre, PPGAS/UFRGS, nº 1, ano 1, 1995.

dicionais (viris) que levaram ao racismo e à discriminação, e a uma ascen-são de valores humanistas de respeito pelo outro e não submissão. Nessecontexto, ocorreu a emancipação feminina paulatina, que teve grande incre-mento com a possibilidade de contracepção nos anos 60 e a ruptura naequivalência entre mulher e mãe.

Tendo em vista esta contextualização, pode-se dizer que Freud e Lacanforam grandes leitores ou intérpretes da cultura patriarcal em que viveram,que é, em grande medida, a que ainda vivemos e que vem passando porgrandes transformações. Se o pai tem um papel central em suas teorizações,é porque reflete o papel central que tem na cultura onde viveram e clinicaram.

Quando associa-se ao feminino ou ao masculino certas característi-cas comumente ligadas à mulher ou ao homem, nada mais se faz que reco-nhecer os aspectos culturais, imaginários e simbólicos relacionados ao realda diferença sexual. Porém, não creio ser possível analisar de forma etérea eseparada os aspectos simbólicos, eles se assentam no imaginário que éseu substrato e também no real. A questão é que em todas as épocassempre houve representações e justificativas imaginárias para a diferençahomem/mulher, pois ela minimamente existe no real. E parece que hoje emdia vem se tornando cada vez mais mínima. Mas este é um outro ponto,igualmente instigante, que merece estudos à parte e que outros trabalhostêm abordado com propriedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:BADINTER, Elisabeth. Um é o Outro; relações entre homens e mulheres. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 1986._____. XY: Sobre a Identidade Masculina. RJ: Editora Nova Fronteira, 1993.BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Educação e Realidade, Porto Ale-

gre, vol. 20, nº 2, jul/dez 1995.FREUD, Sigmund. Algumas Consequências Psíquicas das Diferenças Sexuais

Anatômicas.1925. In: Edições Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de

Sigmund Freud. RJ: Imago, vol. XIX, 1976.

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a implantação, trezentos o chip e o controle remoto. O mítico ponto G final-mente realizado pela tecnologia aplicada à medicina. Sozinha ou acompa-nhada, durante o coito ou fora dele, basta apertar o botão. Nasce um novoórgão feminino localizado fora do corpo. E o orgasmo enlatado, a melhorilustração que conheço do gozo do Outro. Já tínhamos o café sem cafeína,a carne sem colesterol, a cerveja sem álcool e agora vem aí o orgasmo semsexo. Fosse eu amante dela faria questão de ficar com o controle remoto...

3) NÃO HÁ MAIS HOMENSFalava do pênis finalmente separado do falo. Psicanalistas, atentar

para a ironia: há mais de quarenta anos repetimos para os estudantes que opênis não deve ser confundido com o falo que o simboliza – quem simbolizao quê? Vejamos, o órgão viril adquire status simbólico e passa a exercer afunção para a qual foi criado pela mãe natureza graças ao falo, mas o falochama-se assim e está simbolizado por um enorme pênis ereto separado dequalquer corpo (às vezes tem asinhas) precisamente devido ao órgão queum meu amigo batizara, no tempo em que o pinto ainda gozava de um certocartaz, como “o desbravador” (eram bons tempos aqueles!). Hoje, aparente-mente, o órgão ímpar perdeu o brilho imaginário e a marca do significanteque lhe conferiam dignidade e garantiam o seu funcionamento e o vemosconvertido num reles apêndice de carne, uma tripinha; o rabicho, como di-zem na França. Lembro de uma mulher que dizia adorar pau, só lamentavaque o homem viesse junto.

Um deles me contava ontem que só conseguiu manter a ereção ao irpara a cama com uma moça que o paquerara no dia anterior ao se imaginarestuprando-a amarrada. “Eu nunca broxei com mina nenhuma, mas achoque fiquei inibido por ela ter tomado a iniciativa”, comentou. Há pouco reco-mendei a uma paciente pegar leve na exigência de ser comida, uma vez queo amante – homem cujo ofício é de reputados garanhões – já reclamara porestar sendo tratado como um objeto. Digamos que perdia o desejo (e o falo)ao sentir-se reduzido ao pênis. Nada há aqui de surpreendente, já que aopassar do querer ao dever o gozo vira persecutório, superegoico, digamos.

A PROPÓSITO DE UM CERTO DIVÓRCIOENTRE O PÊNIS E O FALO

Ricardo Goldenberg

1) VIAGRA

Tesão e ereção dependem do falo. Mas a sua presença nunca estágarantida. Agora existe uma pílula que, agindo sobre o pênis, assegu-ra o cumprimento do mandamento: “não falharás!”. Mesmo nada ha-

vendo de errado com a vascularização do órgão ímpar, os homens querem seprecaver contra o risco do instrumento não estar à altura da sua função, qualseja, fazer o parceiro gozar (o Wiwimacher do Herbert Graf criança – o Pe-queno Hans – é um Lustmacher).

“Tomo Viagra para garantir o meu funcionamento com a Fulana”. De-pois dessa, venham me falar em Razão Instrumental. A “Fulana” em ques-tão, note-se, é a legítima esposa, por quem meu interlocutor não tem tesãohá tempos. A droga assegura, portanto, o cumprimento do dever conjugal,consistindo tal dever num faz-de-conta recíproco: ela finge querer dar e ele,comer. Não forço a interpretação, a mulher já declarou “não sentir nada” epreferir ser poupada (sic) do coito. E ele preferiria não ter que, como elemesmo disse, go through the motions1, mas entende que é mau para a suareputação de macho não confirmar a posse da própria mulher de vez em quan-do. Já com a amante... Com a amante ele toma por medo de errar na performance.Não ficou broxa uma vez ao dar-se conta que esquecera o remédio? Meu paci-ente em suma é um viciado em Viagra, a pílula da ereção prêt-à porter.

2) ORGASMATRONNa outra margem do rio, a tecno-ciência se sai com um eletrodo a ser

implantado num lugar xis da medula feminina que, controle remoto mediante,produz um inevitável, incontrolado e automático orgasmo. Vinte mil dólares

1 Inimitável expressão inglesa, literalmente: repassar pelos gestos.

GOLDENBERG, R. A propósito de um certo...

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O CASAMENTO GAY E A VOLTA DA INTOLERÂNCIA1

Contardo Calligaris

No fim de julho, o papa exortou os políticos católicos a combaterqualquer lei que legalize a união de casais homossexuais. Os não-católicos, ele acrescentou, deveriam pegar carona com a Igreja de

Roma para defender a “lei moral natural”.Quase simultaneamente, o presidente Bush declarou que casamento

deve ser entre homem e mulher, embora lembrando que é preciso respeitaras escolhas amorosas de todos. Ele expressava assim a contradição de seueleitorado, que é cristão e conservador, mas que é também americano, ouseja, não gosta que o Estado se meta na vida privada dos cidadãos.

Na semana seguinte, a Igreja Episcopal enfrentou uma ameaça decisma ao aprovar a nomeação de um bispo assumidamente homossexual.

Eu imaginava que esses eventos despertariam debates adormecidossobre a existência ou não de princípios morais “naturais”, sobre o caráterlaico do Estado etc. Aprestava-me a participar quando, no começo de agos-to, foram publicados os resultados surpreendentes de uma pesquisa de opi-nião do instituto Gallup.

Resumindo: entre os americanos, houve um repentino declínio da apro-vação da “agenda gay”. Em maio passado, 60% dos americanos pensavamque as relações homossexuais deveriam ser legais; hoje, só 48% pensamassim.

Desde 1997, uma maioria (crescente) de americanos afirmava que sergay é “um estilo de vida aceitável”. Hoje essa é a opinião de uma minoria. Aqueda não vale apenas para as fileiras conservadoras: quase um quarto dosdemocratas favoráveis à união civil gay mudou de opinião. O que aconteceu?

Primeira explicação: a idéia do casamento gay produz uma resistên-cia particular. Por quê? O americano médio divorcia-se sem muita hesitação,

1 Texto publicado originalmente no Jornal Folha de São Paulo em 21/08/2003.

Maria Ida Fontenelle me fazia observar que os homens estão produ-zindo o mesmo discurso das mulheres de antigamente: a queixa de seremtratadas como objetos e só serem procuradas para trepar. Teriam os gêneros(falar em sexos é politicamente incorreto) trocado de lugar? Não é isso queas mulheres declaram, elas dizem: “não há mais homens”. Não há maishomens é a própria mensagem que elas recebem do Outro, de forma inverti-da. Com efeito, desde as suffragetes, passando pelo women’s lib, as fêmeasinsistem em reivindicar a igualdade com os homens. “Ah”, diz o Outro, “que-rem igualdade? Pois então, toma a igualdade: não há mais homens!” E nadamelhor para ilustrar esta demissão masculina segundo olhos femininos queo fenômeno recente de proliferação de casos de neo-lesbianismo. Mulheresque, depois de vários decênios de devotados serviços como esposas e mãesdescobrem repentinamente o verdadeiro amor... nas mulheres.

4) O PAI É O FALO“Nas mulheres” quer dizer aqui, precisamente, prescindindo do pênis

para realizar o falo. Não me parece que estejamos perante uma conversãoheterossexual (a blague de Lacan de que heterossexual é quem gosta demulher, seja qual for o seu sexo): a iluminação do novo amor que anuncia amudança do discurso. Antes pelo contrário, parece-me um sintoma socialrevelador desta separação entre o falo e o órgão viril. É menos atração donão-todo que desafio jogado na cara dos que se cadastram do lado do todo:o pai imaginário, cuja inoperância para sustentar o pai simbólico é escanca-rada desta maneira. E o pai real revela não ser nem o espermatozóide, nemo genitor ou o esposo da mãe (que alguns preferem denominar “pai da reali-dade”); o pai real revela-se idêntico ao falo simbólico, este produzido pelametáfora paterna a partir da demanda materna real .

O falo, enfim, teria deixado de ser patrimônio masculino, se posso dizerassim, para se ter deslocado, graças à tecno-ciência (e agora estou pensandonas técnicas de fertilização in vitro e nos bancos de sêmen), à seara femini-na. Podemos sugerir que o famigerado declínio da função paterna de quetanto se fala coincide com este deslocamento real do falo para o lado feminino?

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Mas não adianta objetar: há uma razão de fundo que alimenta aidealização coletiva do universo gay. Os homossexuais, reprimidos por cau-sa de suas práticas sexuais, só puderam reivindicar respeito e liberdadeconstituindo-se como grupo definido por sua sexualidade sufocada.

Consequência: eles são o único grupo social que deve sua consistên-cia a uma modalidade comum de desejo sexual. A coesão feminista dasmulheres, por exemplo, é decidida pelo sexo biológico e pela discriminaçãocomum no trabalho e na vida de família, não por uma preferência sexual.Travestis e transexuais se definem como grupos a partir da experiência co-mum de um desacordo entre seu sexo biológico e seu gênero, não por umapreferência sexual.

Por isso, por serem o único grupo social definido pela forma de seusprazeres, os homossexuais encarnam facilmente, aos olhos dos “normais”,um ideal genérico de prazer sexual: “eles” (“à diferença de nós”) ousam esabem gozar. É um privilégio duvidoso. Afinal, na Europa de 70 anos atrás,os judeus eram aqueles que, “à diferença da gente”, ousavam e sabiam fazerdinheiro, não é?

Quem é idealizado por saber pretensamente, de uma forma ou deoutra, aproveitar a vida, mais cedo ou mais tarde, acaba sendo apontadocomo o responsável por nossas privações. A lógica corre assim: eles sabemgozar, eles têm o prazer que não tenho, eles me privam. A idealização dogozo dos outros é, frequentemente, a antecâmara do ódio e da perseguição.

Escuto, nestes dias, aqui no Brasil, vozes pretensamente liberaiscontra o casamento gay. Comentam: “Eles querem casar? Mas que coisamais careta! A gente esperava deles que fossem os porta-bandeiras da revo-lução sexual”. É um jeito velado de dizer: já gozam mais que a gente, agoravão apoderar-se também dos modestos prazeres do lar, os únicos que nossobram?

mas, paradoxalmente, mais de 80% dos casais americanos confirmam suaunião numa cerimônia religiosa. Ou seja, os casamentos acontecem e que-bram-se segundo as variações das paixões e dos desejos, mas ninguémadmite. Quase todos preferem continuar concebendo o casamento comosacramento eterno, orientado pelo projeto de criar filhos. Nesse contexto, aidéia do casamento gay (que é sempre efeito de uma escolha afetiva) éincômoda, pois desvenda uma verdade que vale para quase todos os casa-mentos modernos: eles são instáveis não por acidente, mas por essência,por serem cimentados mais pela precariedade dos sentimentos que por com-promissos solenes e procriativos diante de Deus.

Segunda explicação. Nos últimos tempos, o estilo de vida gay triunfouna cultura popular americana. O canal de televisão a cabo Bravo propõe,com grande sucesso, o show “Queer Eye for a Straight Guy” (olhar homopara um cara hétero). A cada semana, cinco gays reorganizam a vida de umheterossexual: arrumam sua casa, sua aparência física, suas escolhas deindumentária, suas maneiras, ensinando-lhe “estilo, bom gosto e classe”.

Os gays se tornaram alvos privilegiados e explícitos de muitas propa-gandas por serem, em média, segundo as pesquisas de mercado, consumi-dores mais abastados e mais requintados que os heterossexuais. Quando amídia recenseia a vida noturna e os prazeres do momento, as boates e osclubes gays lotam regularmente os primeiros lugares das listas.

Em suma, o universo gay está se tornando, na cultura popular, umideal de hedonismo bem-sucedido: “Eles, sim, têm uma vida boa”. Suben-tendido: não a gente. Quando, numa proposição que habita a mente do ho-mem da rua, o sujeito é uma terceira pessoa do plural (“eles”), a paranóianunca está longe.

É fácil objetar que há uma grande distância entre o ideal da vida gay,que assombra a cabeça dos heterossexuais, e a realidade do universo gay,que não é tão gaio assim. Além disso, o dito estilo de vida gay concerne auma minoria de homossexuais, que talvez sejam fascinados pela imagemque lhes é proposta, como um espelho, pelos heterossexuais que os ideali-zam.

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RESENHA RESENHA

constituição da metáfora paterna, ancoradas em ricas e numerosas vinhetasclínicas, próprias e resgatadas dos textos que o orientam no seu caminho.

Finalmente, as Reflexões Babelianas nos certificam a presença deum analista que entende que seu instrumento não pode nem deve ficar redu-zido a uma prática fechada na compreensão do sofrimento em seu recortesingular, senão que o coloca à prova no pensamento de aquilo de onde osofrimento singular toma sua carnadura: as formas do mal-estar de nossotempo. Nesse sentido, Miguelez afirma a vocação de continuidade com aobra freudiana, que Lacan retoma com vigor – muitas vezes não escutado.Pensar a política, os traços que sustentam o imaginário de uma sociedade esuas conseqüências no padecer dos sujeitos que o compõem, se inclui numatradição de pensamento que hoje mais que nunca se nos apresenta como deimportância vital para enfrentar os duros tempos que nos toca viver.

E, sobretudo, o que ressalta, no texto, é a presença constante dohumor, do lúdico como instrumento fundamental para a existência do espaçode pensamento e trabalho analíticos. Cito: “Nossa experiência como analis-tas nos ensina com freqüência que o humor e a arte são boas razões paraamar a vida. Permitem uma emancipação de nosso eu da prisão do ser,possibilitam o descentramento, a libertação do sujeito da certeza alienantede ser sempre o mesmo. Essa emancipação cria laços com os outros, for-mas de prazer partilhado”.

No prólogo, Emilio Rodrigué joga tanto com a dimensão do lúdicoquanto ressalta o efeito viajante que a leitura lhe suscita. Fala da necessida-de de tomar o texto como “um manual de instruções babelianas”, no sentidode afirmar a paixão pela multiplicidade das línguas, nascidas no momentoem que a ilusão de uma única língua se revela impossível. E alerta que setrata, não tanto da destruição da Torre, mas de sua descontrução.

Texto nômade, que transita pelas fronteiras, incitando a perder a tris-te paixão da solenidade que tanto mortifica nosso afazer, por vezes tingidode um delicado lirismo, Jugar la palabra é leitura recomendada para todoaquele que não deseja esquecer que fazer psicanálise em sério, é sobretu-do, se atrever a brincar.

Isabel Marazina

JUGAR LA PALABRA

MIGUELEZ, Luis Vicente. Jugar la palabra. Editorial Letraviva. Buenos Aires, 2003.

Sem dúvida, um livro que provoca. Come-ça já no título, cuja ambigüidade convidaa brincar, a escorregar no jogo do signi-

ficante , a nos deixar levar pela inter-textualidadeentre o castelhano e o português. “Jugar lapalabra” não pode ser traduzido como “Brincarcom a palavra”, e também pode. Entretanto,“juego” nos remete à “jogo”, aposta, a colocar naroda , assim como em castelhano se fala de “es-tar jugado” quando se trata de se implicar de maneira definitiva num doslados do jogo.

Tudo isso me suscita o texto de Luis Miguelez. Um estar jugado nasua nítida definição pela psicanálise, numa prática clínica que salta à vistaem cada uma das reflexões que, a maneira de uma trama tecida de fios decores variadas, se estende em quatro grandes momentos.

O primeiro, onde desenvolve sobretudo suas reflexões sobre a presen-ça do analista e os modos em que ela pode e precisa se enodar no tecidodelicadíssimo de uma analise. Poder estar, saber jogar: condensação deinúmeras indicações que nos dizem, em princípio da matriz de sua forma-ção, e porque não, da apaixonada dedicação à clínica de crianças e adoles-centes que marcou o seu início no caminho da psicanálise.

O segundo, os Testemunhos Clínicos, onde centra a mira exatamentena experiência que essa clínica lhe trouxe, com especial acento na figura doadolescente e o que esta nos revela acerca do mal-estar contemporâneo.

No terceiro, Identidades e Pertenças, transita pelas referencias teóricase históricas que o constituem como analista, nos levando de mão para pensarjunto com Freud, Lacan, Winnicott ,Groddeck e Tausk as questões que reme-tem á clínica de nosso tempo: o desamparo, a psicossomática, o lugar e a

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AGENDA

EXPEDIENTEÓrgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre

Rua Faria Santos, 258 CEP 90670-150 Porto Alegre - RSTel: (51) 3333 2140 - Fax: (51) 3333 7922

e-mail: [email protected] - home-page: www.appoa.com.brJornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n0 3956

Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (51) 3318 6355

Comissão do CorreioCoordenação: Marcia Helena de Menezes Ribeiro e Robson de Freitas Pereira

Integrantes: Ana Laura Giongo, Fernanda Breda, Gerson Smiech Pinho, Henriete Karam, Liz Nunes Ramos, Maria Lúcia Müller Stein,

Rosane Palacci Santos e Rossana Oliva

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREGESTÃO 2003/2004

Presidência: Maria Ângela C. Brasil1a Vice-Presidência: Mario Corso

2a Vice-Presidência: Ligia Gomes Víctora1a Secretária: Marieta Rodrigues

2a Secretária: Marianne Stolzmann1a Tesoureira: Grasiela Kraemer

2a Tesoureira: Luciane Loss JardimMESA DIRETIVA

Alfredo Néstor Jerusalinsky, Ana Maria Medeiros da Costa, Ângela Lângaro Becker,Carmen Backes, Clara von Hohendorff, Edson Luiz André de Sousa,

Gladys Wechsler Carnos, Ieda Prates da Silva, Jaime Betts, Liliane Seide Froemming,Lucia Serrano Pereira, Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack, Maria Beatriz Kallfelz,

Maria Lúcia Müller Stein e Robson de Freitas Pereira

Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.)Criação da capa: Flávio Wild - Macchina

Reunião da Comissão de Eventos

Reunião do Serviço de Atendimento ClínicoReunião da Mesa DiretivaReunião da Comissão de AperiódicosReunião da Comissão do Correio da APPOAReunião da Comissão da Revista da APPOA

19h30min

20h30min21h8h30min20h30min16h15min

PRÓXIMO NÚMERO

VIOLÊNCIA

JUNHO – 2004

Dia Hora Local AtividadeSede da APPOA

Sede da APPOASede da APPOASede da APPOASede da APPOASede da APPOA

03, 17e 2407 e 211704 e 1814 e 2818 e 25

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N° 125 – ANO XIN° 125 – ANO XI JUNHO JUNHO – 200– 200 44

RELENDO FREUD:RELENDO FREUD:“CONTRIBUIÇÕES À PSICOLOGIA DO AMOR”“CONTRIBUIÇÕES À PSICOLOGIA DO AMOR”

S U M Á R I O

EDITORIAL 1

NOTÍCIAS 2

SEÇÃO TEMÁTICA 7SOBRE A VIDA AMOROSA DOSOBRE A VIDA AMOROSA DOHOMEM COMTEMPORÂNEOHOMEM COMTEMPORÂNEOGerson Smiech PinhoGerson Smiech Pinho 7 7TABUS NO CORPOTABUS NO CORPORossana Stella OlivaRossana Stella OlivaOtávio Augusto Winck NunesOtávio Augusto Winck Nunes 1616ACERCAMENTOS ÀSACERCAMENTOS ÀS“PSICOLOGIAS DO AMOR”“PSICOLOGIAS DO AMOR”Carlos Henrique KesslerCarlos Henrique Kessler 2020SEÇÃO DEBATES 26CONSIDERAÇÕES SOBRE OCONSIDERAÇÕES SOBRE OLUGAR DO HOMEM E DO PAILUGAR DO HOMEM E DO PAINA TEORIA PSICANALÍTICA ENA TEORIA PSICANALÍTICA ENA CULTURA PATRIARCALNA CULTURA PATRIARCALElaine Rosner SilveiraElaine Rosner Silveira 2626A PROPÓSITO DE UM CERTOA PROPÓSITO DE UM CERTODIVÓRCIO ENTREDIVÓRCIO ENTREO PÊNIS E O FALOO PÊNIS E O FALORicardo GoldenbergRicardo Goldenberg 3232O CASAMENTO GAY E A VOLTAO CASAMENTO GAY E A VOLTADA INTOLERÂNCIADA INTOLERÂNCIAContardo CalligarisContardo Calligaris 3535RESENHA 38“JUGAR LA PALABRA”“JUGAR LA PALABRA” 3838AGENDA 40