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1 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 138, agosto 2005 EDITORIAL A o longo de sua obra, Lacan buscou tecer uma série de articulações entre os conceitos freudianos e outros campos do conhecimento. Assim, diversas disciplinas - como a lingüística, a antropologia e a filosofia – propiciaram valiosas interlocuções e contribuições ao campo da psicanálise. Nessa direção, a partir dos anos de 1961 e 1962, no seminário sobre a identificação, tem início o diálogo com a topologia, o qual irá ocupar uma grande proporção e ganhar fundamental importância no ensino de Lacan. Com freqüência, a densidade e a complexidade dessa interface propicia uma posição resistencial àqueles que se dedicam ao estudo da psicanálise. O efeito de tal resistência é de que uma extensa parte da obra lacaniana, que abrange mais de uma década de seu seminário, seja pouco explorada e conhecida. A seção temática desse número está composta por um conjunto de textos que se articulam em torno da topologia e, principalmente, do seminá- rio de Lacan dos anos 1966 e 1967, intitulado “A lógica do fantasma”. O estudo e discussão dos seminários de Lacan é central na transmis- são de seu ensino. Retornar a eles tem sido uma preocupação sistemática do Correio da APPOA. Em edições anteriores, já tivemos oportunidade de propiciar este debate que, com este número, mais uma vez ganha o espaço de nossas páginas

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1C. da APPOA, Porto Alegre, n. 138, agosto 2005

EDITORIAL

Ao longo de sua obra, Lacan buscou tecer uma série de articulaçõesentre os conceitos freudianos e outros campos do conhecimento.Assim, diversas disciplinas - como a lingüística, a antropologia e a

filosofia – propiciaram valiosas interlocuções e contribuições ao campo dapsicanálise.

Nessa direção, a partir dos anos de 1961 e 1962, no seminário sobrea identificação, tem início o diálogo com a topologia, o qual irá ocupar umagrande proporção e ganhar fundamental importância no ensino de Lacan.Com freqüência, a densidade e a complexidade dessa interface propicia umaposição resistencial àqueles que se dedicam ao estudo da psicanálise. Oefeito de tal resistência é de que uma extensa parte da obra lacaniana, queabrange mais de uma década de seu seminário, seja pouco explorada econhecida.

A seção temática desse número está composta por um conjunto detextos que se articulam em torno da topologia e, principalmente, do seminá-rio de Lacan dos anos 1966 e 1967, intitulado “A lógica do fantasma”.

O estudo e discussão dos seminários de Lacan é central na transmis-são de seu ensino. Retornar a eles tem sido uma preocupação sistemáticado Correio da APPOA. Em edições anteriores, já tivemos oportunidade depropiciar este debate que, com este número, mais uma vez ganha o espaçode nossas páginas

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

SEMINÁRIO: O DIVÃ E A TELA

O próximo “O divã e  a  tela” traz para a discussão “Ossonhadores”, trabalho mais recente de Bernardo Bertolucci exibido no Bra-sil. Com elementos referenciais da filmografia do diretor, o filme possibilitauma discussão a respeito da paixão pelo cinema servindo de suporte paraum outro olhar sobre os acontecimentos de maio de 68. Entre os tópicos queabordam a subjetividade contemporânea podemos citar qual o lugar que édado ao pai e a função paterna para os jovens que escreveram “é proibidoproibir” e jouissez sen entraves. O que permite um diálogo comparativo coma posição paterna apontada por Bergman em “Saraband”.

Filme: “Os sonhadores” de Bernardo BertolucciData: 10 de agosto, quarta-feira às 19h30min.Local: Sede da APPOACoord: Enéas de Souza e Robson Pereira

TESOURARIA

A Associação Psicanalítica de Porto Alegre informa que, a partir domês de agosto, haverá um acréscimo nas mensalidades de membros, parti-cipantes e Percurso de Escola em função da inflação acumulada no últimoano. Seguem, abaixo, os novos valores:

CATEGORIA VALOR R$

Membros 165,00Membros Correspondentes 220,00*Participantes 121,00Percurso de Escola 185,00

* Valor anual.

CONVERGENCIA

Nos dias 21 a 23 de junho, aconteceu em Paris a reunião do Comitêde Enlace Geral de Convergencia, movimento lacaniano para a psicanálisefreudiana. Foram três dias de trabalho (em que estiveram representadas 31das instituições que integram o movimento1) sobre os rumos do movimento esobre a articulação de trabalho comum, em especial o próximo CongressoInternacional.

Após longa discussão, sempre tendo em mente garantir condiçõespara a transmissão da psicanálise e evitar a fragmentação do movimentolacaniano internacional, a deliberação sobre o projeo dos próximos grandesCongressos resultou do seguinte modo:

·Congresso em Paris – 1 a 4 de fevereiro de 2007·Congresso em Buenos Aires – 24 a 26 de julho de 2008

O tema provável para o próximo Congresso é “comunicar a experiência”.Além dos trabalhos durante os encontros maiores, têm acontecido

jornadas e cartéis interinstitucionais, dos quais se pode saber mais no sitewww.convergenciafreudlacan.org

Ingressam em Convergencia duas instituições, a saber: CentrePsychanalytique de Chengdu, da China e L’Acte Psychanalytique, da Bélgica.

Marta Pedó

1 12 francesas, 13 argentinas, 8 brasileiras, 3 italianas, 1 norte-americana, 1 equatoriana, 1uruguaia, 1 mexicana, 1 chinesa, 1 belga.

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

COLÓQUIO EM PARIS

Entre 24 e 26 de junho, seguindo-se ao trabalho da Comissão deEnlace Geral, aconteceu o Colóquio internacional “Efeitos de Significante eViolência Política”. O debate foi em torno do assunto anunciado no título eincrementado pela constatação dos movimentos estatais para a regulamen-tação da prática psicanalítica a nível mundial.

Dentre os trabalhos, Allain Didier-Weill falou sobre “A Psicanálise eos direitos do homem”; Isidoro Vegh questionou o “Sujeito da política”; Paul-Laurent Assoun trouxe elementos para um diálogo sobre a psicanálise hoje;Robert Lévy trabalhou sobre a prática psicanalítica na irredutibilidade do ato(singular) e Paola Mieli trouxe idéias em torno de violência, democaria e laçosocial.

A política – seja ela idealista ou fanática – é relativa à “boa forma”, aovislumbre do “bom” (P. L. Assoun). No contrato social contemporâneo, nabusca do bem comum e do ideal de igualdade, a heterogeneidade da alteridadefica excluída, pois sua própria presença rompe esse laço social, diz RobertLévy. A conseqüência dessa exclusão do que é diferente é de que o sujeito“se perde”, no sentido de que se torna hetero, heterogêneo ao ideal igualitá-rio da democracia política.

Junto com isso tudo vai ainda a política “correta” e seus coroláriosque, em países como a América do Norte, ganha força com a religião. Emmeio a um debate que não nos é estranho, G. Pommier aponta o sujeito doinconsciente como o sujeito político, o sujeito da pólis, imerso no laço soci-al. Fica, no final, a impressão de um debate já conhecido, desde preocupa-ções com as quais temos trabalhado também aqui, mas também o interesseem pensar sobre as possibilidades de intervenção da psicanálise e em quemodo.

Marta Pedó

CICLO DE DEBATESMACHADO DE ASSIS NA CULTURA

PSICANÁLISE E LITERATURA 

O conto “O Alienista” é o tema da edição de agosto do ciclo de deba-tes sobre a obra de Machado de Assis, promovido pela APPOA, Instituto deLetras da UFRGS e Livraria Cultura. Para falar sobre essa obra, que satirizaa ciência psiquiátrica quando investida de poder absoluto sobre uma cidadeinteira, foram convidados o psicanalista Abrão Slavutzky e o professor deliteratura Sérgio Fischer. O personagem-título do conto, o doutor SimãoBacamarte, estudioso e cientista obcecado, representa a ciência como se-nhora absoluta da verdade e como fator de explicação das frustrações huma-nas.

A programação segue até outubro, sempre na última quinta-feira decada mês, e já tem confirmadas as presenças de Ana Costa, Flávio LoureiroChaves.

Data: 25 de agosto, quinta-feiraHora: 20 horasLocal: Livraria Cultura de Porto AlegrePalestrantes: Abrão Slavutzky e Sérgio FischerEntrada Franca

EXERCÍCIOS CLÍNICOS

Prescrição de Psicofármacos: A Intersecção da ClínicaPsiquiátrica e Psicanalítica

Data: 13 de agosto, sábado, às 10hLocal: Sede da APPOAApresentadores: Adão Luiz Lopes da Costa, Luis Roberto Dorneles

Benia e Nilson Sibemberg

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

JORNADA DO PERCURSO VI

“QUANDO A PRÁXIS FAZ QUESTÃO:CARTOGRAFIAS DE UM PERCURSO”

A jornada, realizada no dia 2 de julho, realmente fez jus ao título queportava. Durante um dia inteiro de trabalho, pudemos testemunhar algunsdos efeitos produzidos pelo encontro com a psicanálise naqueles que fize-ram do Percurso de Escola da APPOA uma etapa de sua trajetória.

Cada qual, a sua maneira, tratou de se ocupar dos interrogantes sus-citados pela psicanálise a sua prática cotidiana, fosse ela clínica, pedagógi-ca, institucional, etc. Mais uma vez pudemos ver que a psicanálise não serestringe ao trabalho privado dos consultórios. Mais do que isso, ela não sedefine pelo lugar onde o discurso psicanalítico é exercido, e sim pela éticaque o sustenta.

Certamente, ocasião de orgulho para aqueles que participaram, dealguma forma, desse percurso. Contudo, também momento que nos remeteà pergunta: o que é mesmo que se transmite? O que é que passa de um aoutro?

Sabemos que não é algo que possa ser positivado, como um saber,por exemplo; mas, antes, algo da ordem de uma perda. Perda de gozo cor-poral, de mestria, quando, por exemplo, se atribui ao outro um saber no seupróprio dizer.

Portanto, essa jornada sinaliza, ao mesmo tempo, o fim de uma etapada trajetória de formação de cada um e a abertura a outras, tal como ainserção do trabalho e da produção na instituição.

Valéria Machado Rilho

NOVIDADES DA BIBLIOTECA/JULHO 2005

É com satisfação que passamos a divulgar as novidades da bibliotecano Correio da APPOA. Lembramos que esse mesmo informativo é enviado atodos que participam da APPOA por e-mail.

Nesse mês a biblioteca adquiriu alguns livros da bibliografia básica deLacan e também livros que foram sugeridos na Mesa Diretiva. Essa aquisi-ção está, com certeza, enriquecendo ainda mais nosso acervo. Aproveita-mos também para divulgar as revistas que recebemos por permuta e pordoação.

Agradecemos todas as doações recebidas e lembramos que a biblio-teca se encontra sempre a sua disposição.

LIVROS:1.BERLINCK, Manoel Tosta (org.). Obsessiva neurose. São Paulo:

Escuta, 2005. (Biblioteca de psicopatologia fundamental).2.LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.3.LACAN, Jacques. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.4.DIDIER-WEILL, Alain. Os três tempos da lei: o mandamento

siderante, a injunção do supereu e a invocação musiacal. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 1997.

5.KEHL, Maria Rita. Ressentimento. 6.ed. São Paulo: Casa do psicó-logo, 2004. (Clínica Psicanalítica).

6.CALLIGARIS, Contardo. Cartas a um jovem terapeuta: Reflexõespara psicoterapeutas aspirantes e curiosos. 6.ed. Rio de Janeiro: Alegro,2004. 155 p

7.LACAN, Jacques. Le séminaire livre XXIII: Le sinthome. Paris: Duseuil, 2005. XXIII.

8.GORI, Orlando. Lógica das paixões. Rio de Janeiro: CampoMatêmico, 2004.

9.ECO, Humberto. História da beleza. Rio de Janeiro: Record, 2004.

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

10.BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. São Paulo: Globo, 2003.11.SOUSA, Edson. Freud. São Paulo: Abril, 2005. (Coleção para sa-

ber mais).

PERIÓDICOS:1.Revista Brasileira de Psicanálise. São Paulo: Associação Brasileira

de psicanálise, v.38, n.4, p.781-784. dez./2004.SUMÁRIO: Junqueira Filho, Luiz Carlos Uchôa. Alteropoese: sobre a

gênese da ideogramaticização no trabalho-onírico-alfa. Sampaio, CamilaPedral. Freud e a literatura: fronteiras e atravessamentos. Engel, JaquesVieira. Reflexões sobre a natureza e a função da interpretação: a questãodas interpretações inconscientes. Migliavacca, Eva Maria. A dimensão trági-ca do psiquismo: um ensaio. Marques, Thaís Helena Thomé. Conjeturando aexpressão dos estados mentais primitivos na relação analítica. Mota, Regi-na Lúcia Braga. A clínica do vazio: novas exigências para o psicanalista.Gálvez, Manuel José. A paciência na elaboração psicanalítica. Fagundes,José Otávio. O homem de alma oxidada. Fleming, Manuela. No limiar dopensável: intolerância à frustação, pensamento e dor mental. Almeida, RobertoSantoro. Freud e Ésquilo: uma visão psicanalística ds relações da tragédiagrega com o desenvolvimento da civilização.

2. Mudancas: Psicologia da Saude. São Paulo: UMESP, v.12, n.2.jul.-dez./2004. 227-460 p

SUMÁRIO: Dimenstein, Magda; Vasconcelos, Ana Karina de Freitas;Leitão, Monique. Stress infanto-juvenil e vivência de rua . Granato, Tania MaraMarques; Aiello-Vaisberg, Tânia Maria José. Tecendo a pesquisa clínica emnarrativas psicanalíticas. Romero-Rodriguez, Ana Cecília. Relações objetaise equilíbrio psíquico em adolescentes gestantes e sexualmente ativas.Coimbra, Maria Célia Crepschi. Contamo-nos histórias para nos dizer verda-des. Armony, Nahman. Boderline e espaço potencial winnicottiano. Hara,Raquel Naomi; Priszkulnik, Léia. Obesidade na criança: algumas considera-ções. Gavião, Ana Clara D.; Costa, Frederico S.J.; Oliveira, Ana Cristina deO.A. de; Nascimento, Rosemeire Aparecida; Lúcia, Mara Cristina S. de;

Arap, Sami. Escuta psicanalítica no setting hospitalar: o procedimento dedesenhos-estórias como intermediador.

3.Revista lationoamericana de Psicopatologia fundamental. São Pau-lo: Escuta, v.8, n.2, jun./2005. 392 p

SUMÁRIO: Ávila, Lazslo Antonio. Um modelo para representar o“irrepresentado” na mente. Ferreira, Ademir Pacelli. A construção do casoclínico na internação psiquiátrica: uma direção para o plano terapêutico. Kuhn,Roland. Psicofarmacologia e análise existencial. Marcantonio, AurélioPalmeiro da Fontoura. Um estudo sobre a somatose infantil em pacienteportador de leucemia. Moro, Marie Rose. Os ingredientes da parentalidade.Quintella, Rogério Robbe. Psicossomática: historicidade ou atualidade? Saurí,Jorge J. A contrução do conceito de neurose (II) Nosologia e neurose. Silva,Martinho B.B. Responsabilidade e reforma psiquiátrica brasileira: sobre arelação entre saberes e políticas no campo da saúde mental. Entrevista aMônica Teixeira: a crítica à reforma psiquiátrica, da sua implantação e deseus fundamentos – os argumentos de Valentim Gentil. Facchinetti, Cristiana;Venancio, Ana Teresa A. “Gentes provindas de outras terras” – ciência psi-quiátrica, imigração e nação brasileira. Moreira, Juliano. A seleção individualde imigrantes no programa da higiene mental.

4.Latitudes. Paris: Association Cahiers lusophones, v.23, avril/2005.103 p

SUMÁRIO:Debs, Sylvie. presence du cinéma brésilien en France. Munoz, Marie-

Claude. Etudians brésiliens: le choix de la France. Bleil, Susana. Lemouvement des sans terre. Álvaro, Egídio. Artistes brésiliens en France.Santiago, Jorge P.. Musique brésiliense. Machado, Vladimir. A fotografia napintura da Batalha do Avahí(Paraguai) de Pedro Américo. Viallard, Monique.La communauté afro-brésilienne du golfe du bénin. Entrevista de DanielLacerda. Dois doutorandos brasileiros em Paris. Aboab, Denis. Isaac Aboadda Fonseca, premier Rabin des Amériques. Mira, Feliciano de. Notas doÍndico, a propósito do 25 de abril em Moçambique. Rodrigues, Urbano Tavares.Sarabanda de luzes e sombras.

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NOTÍCIAS

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SEÇÃO TEMÁTICA

“Eu vou partir de uma questão idiota que me foi

colocada – eu adoro os idiotas e as idiotas... O que eu

chamo de idiota é natural: um idiotismo é algo natural,

simples e muito freqüentemente ligado à situação. A pes-

soa nunca tinha aberto meu livro e me perguntava: qual é o

laço entre seus Escritos?”

Lacan acabara de publicar os “Escritos” quando pronunciou a frase acima. Talvez ele tenha se irritado com a pergunta, mas ela o fez pensar,tanto que se esforçou para respondê-la, durante o seminário La logique

du fantasme, lição de 16/12/66: “o que me parece fazer o laço, não do meuensino, mas entre meus Escritos, para qualquer um que vá abri-los, é daordem do que se chama de identidade – que cada um está no direito de serelacionar com eles para aplicá-los a si mesmo”

Da mesma forma, quando se ouve uma notícia, ou uma estória, ouquando se conta uma, a maneira de abordar é única, passa por um filtropróprio. Este filtro é tecido pela rede de significantes de cada um. Os acon-tecimentos “reais” contribuem, junto com a sensibilidade, a imaginação e aforma pessoal para organizar estes elementos. A lógica do fantasma passapela identificação, mas vai além: reúne o real, o imaginário e o simbólico emuma articulação única.

“Por que logo agora que estou grávida existem tantas mulheres grávi-das?”, perguntou uma paciente. “Provavelmente pelo mesmo motivo de quequando se compra um carro azul parece que todos também resolveram fazê-lo!” Sejam os escritos, as observações, as notícias, a história de uma vida,todos têm uma coisa em comum. E essa “coisa” é quem os está lendo,vendo, escutando... Uma mesma estória pode ser contada infinitas vezessem se repetir. A cada nova versão, ela pode retornar de um outro jeito,incluindo ou subtraindo elementos. Tudo articulado inconscientemente, poressa estranha relação entre o sujeito e seu desejo.

A lógica do fantasma foi desenvolvida no seminário de Lacan de 1966/67, e em 2004 foi tema do Seminário de Verão da Associação Lacaniana

VÍDEOS:1. Brasil, Ângela. Cleptomania. Porto Alegre: TVCOM - Falando Aber-

tamente, abr./2005.2. Rilho, Valeria. Pessoas que trocam o dia pela noite. Porto Alegre:

TVE (Programa Radar), jul./2005.3. Brasil, Ângela ; Tavares, Eda. Documentário Extremo Sul. Porto

Alegre: TVCOM - Falando Abertamente, Jun../2005.

NÚCLEO DE PSICANÁLISE DE CRIANÇAS

Por intervir no período da vida em que o sujeito atravessa os proces-sos cruciais de sua constituição, a psicanálise de crianças delimita um con-junto de particularidades, as quais têm levantado uma série de questõesàqueles que a ela tem se dedicado. Além disso, são inúmeras as disciplinasque se dedicam ao trabalho com a infância e que dirigem à psicanálise inter-rogações relativas a sua prática.

Na APPOA, tem sido permanente o trabalho em torno das questõeslevantadas pela prática analítica com crianças e pelas articulaçõesinterdisciplinares feitas a partir dela. O núcleo de psicanálise de crianças daAPPOA se propõe como um espaço sistemático para o desdobramento des-sas interrogações, a partir do estudo e discussão das especificidades levan-tadas pelo trabalho psicanalítico com a infância.

As reuniões acontecerão com freqüência mensal, sábados pela ma-nhã. O primeiro encontro será no dia 27 de agosto, das 10h às 12h, quandotrabalharemos em torno da leitura e discussão de um texto a ser em brevedivulgado. As reuniões são abertas e destinam-se a todos os que se sintamconcernidos pela clínica psicanalítica com crianças.

   

 

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SEÇÃO TEMÁTICA

Internacional, em Paris. Nesta seção temática apresentamos algumas pro-duções que consideramos importantes no debate sobre este tema tãoinstigante.

Nossos agradecimentos a todos os que contribuíram com esta edição.

Ligia Gomes VíctoraMarcia Helena de Menezes Ribeiro

O CONCEITO DE FANTASMA NA OBRA DE LACAN

Ligia Gomes Víctora

Em francês, conforme o dicionário Le Petit Robert, existem vários termos para designar os frutos da imaginação. Entre outros:1) fantasme ou phantasme (do latim phantasma) – produção imaginá-

ria pela qual o eu tenta escapar do domínio da realidade, imaginação, ilusão,sonho. Um exemplo de uso neste sentido é em “viver de fantasmes”.

2) fantôme – aparição de espíritos, visão sobrenatural de pessoasmortas. Pode ser usado também com o sentido de imaginação como em“bater-se contra fantômes”.

3) fantaisie – ostentação, ou quando algo é falso, como em bijoux-fantaisie (jóia falsa), mas que também pode ser usado como quimera, dese-jo, como na expressão “as vãs fantaisies de nossos sonhos”.

4) fantasia – termo oriundo do espanhol fantasia, que se refere aoquadro de Delacroix (às alegorias dos cavaleiros que faziam demonstraçõese jogos hípicos) e, por analogia, aos divertimentos barulhentos de criançasou adultos, acompanhados por gritos de alegria1.

5) fantasmagorie – arte de fazer aparecer figuras através da ilusão deótica, na moda no século XIX. Usada também no sentido de ilusão, como em“o medo é uma fantasmagorie do demônio”.

Lacan empregou todos estes termos, ao longo de sua obra, mas foipouco a pouco construindo o que entendemos hoje como conceito de fantas-ma. 2 Nos seus primeiros seminários, como veremos a seguir, parece que otermo fantasme foi utilizado mais com o sentido de desejo.

1 Estranho Lacan não ter ligado este termo ao krawall do Pequeno Hans – o barulhento ruídodas patas dos cavalos – que ele mesmo chamou de um “tumulto desordenado”. Esta fantasiaparticipou do “fantasma fóbico” de Hans (Seminário “A relação de objeto”, lição de 10/04/1957).2 Optei, após discussão com colegas que trabalham com tradução francês-português (vernota no final deste texto), por traduzir fantasme por fantasma.

VÍCTORA, L. G. O conceito de fantasma...

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SEÇÃO TEMÁTICA VÍCTORA, L. G. O conceito de fantasma...

São muitas as referências a este termo em suas diferentes mani-festações. Por exemplo, quando Lacan fala de fantasme de gravidez,fantasme de sevícia, fantasme sádico, de auto-mutilação, de homosse-xualidade, de espancamento, parece ser no sentido de desejo inconsci-ente.

Para Freud, em “Introdução ao narcisismo”, phantasie era função doimaginário, presente ao lado da função simbólica da fala. Foi neste sentidoque Lacan referiu-se a fantasme, em “Os escritos técnicos de Freud”. Nesteseminário, de 1954/55, ele considera como sendo a única diferença paraFreud, entre psicose e neurose, o fato de os sujeitos perderem sua relaçãocom a realidade, mas não a relação erótica e afetiva. Lacan cita Freud: “...(os psicóticos) conservam (a relação) em seu fantasma, isto é, substituemos objetos reais por outros imaginários, baseados em lembranças, ou mes-clam uma coisa com a outra... Parecem ter retirado realmente sua libido daspessoas e coisas do mundo exterior, sem havê-las substituído por outras emseus fantasmas. Isso significa que, de fato, recria este mundo imaginativo.Quando em algum caso, achamos tal substituição, é sempre de carátersecundário e corresponde a uma tentativa de cura que quer voltar a legar alibido a seu objeto.” 3 Mais adiante, Lacan refere que a primeira vez queapareceu na obra de Freud a noção de fantasma inconsciente foi para distin-guir entre fantasma, sonho e devaneio.

No Seminário “As psicoses” (lição de 15/02/1956), Lacan apresen-tou o que eu penso ser uma diferenciação entre os termos fantasma efantasia. Referindo-se ao fantasme de Schreber: “Como seria lindo seruma mulher sofrendo o acasalamento”, explicou, “Qualquer que seja opapel atribuído na economia psíquica, um ego (sic) nunca está só. Contasempre com um estranho irmão gêmeo, o eu-ideal (moi-idéal) (...) esteeu-ideal nos indica na fenomenologia mais aparente da psicose, que elefala, ele é idêntico a essa parte da fantasia (fantaisie) que convém ao

menos distinguir da fantasia (fantaisie) ou do fantasma (fantasme), emque nós podemos observar de uma maneira mais ou menos implícita nosfenômenos da neurose, que é uma fantasia (fantaisie) que fala, ou maisexatamente, que é uma fantasia falada, deste personagem que faz ecoaos pensamentos do sujeito, que intervém, que o vigia, que nomeia, àmedida que se sucedem suas ações, ele as prescreve, não se explicade modo suficiente pela teoria do imaginário, do resto do sujeito do euespecular.” 4

Já no seminário do ano seguinte5, Lacan referiu-se a fantasmafálico, fantasma de incorporação fálica, e a fantasma perverso (Seminá-rio “A relação de objeto”, lição de 19/12/56, na análise que fez do textode Freud “Uma criança é espancada, uma contribuição ao estudo daorigem das perversões sexuais”, 1919). No mesmo seminário, falou nofantasma do Pequeno Hans, de Freud, como sendo uma passagem doImaginário ao Simbólico. Referia-se ao episódio das girafas: “Nós vemossurgir neste momento o fantasma da grande girafa e da pequena girafa.(...) Não é um sonho, é um fantasma que o próprio Hans fabrica. (...) Nãohá nenhuma contradição, nenhuma ambigüidade no fato de que uma dasgirafas possa ser amassada, como uma folha de papel.” Lacan provavel-mente se referia à seguinte passagem de Freud: “Em sua linguagem,Hans estava dizendo com determinação que tinha sido uma fantasia”(vemos aqui que o termo phantasie foi traduzido nas obras de Freud parao português como “fantasia”). 6

Lacan (Seminário “A relação de objeto”, lição de 10/04/57) pareceapontar para a passagem de um objeto, que até então tinha uma funçãoimaginária (representação imagética do animal girafa), para umasimbolização (a palavra ou o desenho da girafa no papel).

3 Lacan, J. Les écrits techniques de Freud. Lição de 10/03/1954. Tradução da autora.

4 Lacan, J. Les psychoses . Tradução da autora. Entre parênteses, os termos do original emfrancês.5 Lacan, J. La relation d’objet (1956/57). Idem.6 Freud, S. O pequeno Hans.(1909) Imago.Vol. X, pág. 47.

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SEÇÃO TEMÁTICA VÍCTORA, L. G. O conceito de fantasma...

O FANTASMA E O OBJETO aCom este esquema publicado em 1917 7, Freud tentou mostrar como

o símbolo “o pequeno” (o tico, em espanhol) se transformava de pênis embebê, fezes e dinheiro: estariam aí os primórdios do objeto a de Lacan?

Pois a letra “a” minúscula, no início do ensino de Lacan referia-se aooutro enquanto semelhante, como na expressão [i (a)] que aparece no grafodo desejo: à imagem especular. Só bem mais tarde “a” passou a simbolizaro objeto causador de desejo.

ANÁLISE DA FÓRMULA DO FANTASMAFoi no seminário “A Identificação”, de 1961/62, que Lacan apre-

sentou sua topologia das superfícies (toro, banda de Moebius, cross-cap) para trabalhar as três principais identificações citadas por Freudem “Psicologia de grupo e análise do ego” (1921). Na lição de 05/05/62,o “a” foi apresentado formalmente como objeto causador do desejo, eassim continuará até o fim de sua obra. Nesse seminário, Lacan montoutambém equações complexas, como {i + 1/ [(i + 1/ (i + 1)]}, onde i = (√-1) (raiz quadrada de menos um), para formalizar o nascimento do sujeito

do desejo. Todas essas matemáticas foram retomadas no seminário “Alógica do fantasma” (1966/67) .

A partir de então, o conceito de fantasma não se resumiria mais àfantasia inconsciente. A análise da lógica do fantasma baseia-se na relaçãodo sujeito com o Outro, que resulta sempre na queda do objeto a. Nestarelação, o sujeito tenta apanhar o objeto do desejo do Outro, mas depara-secom o vazio, e esse acaba escapando-lhe.

O que conhecemos como fórmula do fantasma ($ <> a) representaa relação entre Sujeito e objeto, onde <> (lê-se punção ou corte) é umafunção que conjuga os seguintes símbolos matemáticos:

^ = ∩ intersecção, “e” ou produto lógico;V = U união, “ou” ou soma lógica;< = “está contido” ou “menor que”;> = “contém” ou “maior que”.O fantasma seria, então, para Lacan, uma construção imaginária

para simbolizar o real inacessível? Fazendo uma montagem do Simbóli-co sobre o Real, o fantasma seria um laço possível entre ambos, lem-brando que, na época, Lacan ainda não conhecia o nó borromeano, quepossibilitou o enlace das três instâncias de uma só vez.

Na fórmula do fantasma, o pequeno a resultaria de uma operaçãode estrutura lógica, efetuada pelo significante. “O corte não atua sobre osujeito mesmo... – não in vivo, não no corpo, não na famosa libra decarne” 8. Segundo Lacan, seriam as peças sobressalentes, destacáveis,delivery do corpo, “prontas para levar”, porém profundamente relaciona-das com o corpo, que representariam o objeto a: o seio, as fezes, o olhare a voz.

Para poder escrever esse conceito, Lacan precisava de uma es-trutura capaz de suportá-lo – e este “prêt-à-porter” foi uma superfície queele recortou do plano-projetivo e que chamou de cross-cap.

7 Freud, S. As transformações do instinto exemplificadas no erotismo anal . (1915/1917). 8 Lacan, J. Seminário La logique du fantasme, lição de 16/11/66.

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O CROSS-CAP DE LACAN

O cross-cap de Lacan difere do boné-cruzado dos topólogos (que éuma superfície aberta, com uma borda) e também do plano-projetivo da geo-metria analítica, que seria impossível de ser construído em três dimensões.Lacan precisava de uma superfície unilátera que pudesse ser construída erecortada. A cinta de Moebius não bastava, pois, como ficou demonstradono seminário “A identificação”, quando recortada, seu resto ficava pendura-do, circulando em torno do próprio corte.

O que Lacan fez foi uma imersão em D3 (três dimensões) de umasuperfície D4, o que, na época, provocou muita polêmica. O cross-cap deLacan seria, então, uma superfície unilátera, fechada, sem bordas e queteria a propriedade moebiana: pode-se passar do lado aparente ao lado ocul-to, já que são um só, sem cortes e sem passar por nenhuma fronteira. Reu-niria assim desejo e realidade – inconsciente e consciente postos em conti-nuidade, graças a uma linha imaginária de interpenetração. Esta linha culmi-naria no ponto Φ (Fi).

O que os matemáticos que o criticaram talvez não tenham compreen-dido é que estas três dimensões, para Lacan, não eram as tradicionais altu-ra-largura-profundidade que dão o volume de uma figura. Esta dimensão ter-ceira é o Outro, que será recortado do Real pelo significante, dando origemao Sujeito. Aqui temos presentificada no corte, a função da falta na origemdo falasser (parlêtre) de Lacan.9

A importância da falta na origem do sujeito também pode ser acompa-nhada pelos cortes que Lacan vai operar. Os cortes feitos nesta “bolha” (cross-cap) representam para nós as diferentes figuras da falta: a necessidade, ademanda e o desejo da/pela mãe. Conforme o tipo de corte, nós teremos ainscrição da privação do corpo materno, a frustração do bebê que não podeser saciado todo tempo, ou a castração simbólica.

Em uma análise, digamos que o “tecido” a ser cortado é o discurso dopaciente. A “faca” ou “tesoura” é a voz, ou o silêncio, do analista. O operadorlógico é o falo (o phallus, de Lacan), ou seja: a linguagem. Podemos pensarnos seguintes tipos de cortes, entre outros: a pontuação (equivalente à pun-ção), a interrupção da sessão (corte simples), a interpretação (corte em oito-interior). Lembrando que os cortes têm a função de criar uma borda e são asbordas que organizam as superfícies.

Um corte sobre o cross-cap, por exemplo, pode transformar o queantes era uma só dimensão moebiana, em uma superfície de duas dimen-sões. O corte simples passando pela linha de interpenetração resultaria emum disco, torcido, com uma borda. Este corte representa a transformaçãodo Outro em objeto a. Neste caso, o sujeito ainda não se destacou do outro(p.ex.: o psicótico como objeto do desejo da mãe).

Já o corte em oito-interior no cross-cap resultaria em dois pedaços:um, semelhante ao resultante do corte simples (conforme explicado acima,que nos dava a estrutura do objeto a): “abre” a superfície com a criação deuma borda. O outro pedaço seria uma banda de Moebius, equivalente à es-trutura do sujeito barrado pelo significante ($).

Lacan utilizou-se da topologia para fazer uma análise lógica desta su-perfície prêt-à-porter do fantasma. Para ele, o sujeito tem uma estrutura moebiana,e o corte em oito-interior representa a interpretação do analista. Este cortepode criar mais uma superfície, a do desejo, com a queda do objeto a.

A lógica do fantasma concerne à relação, inconsciente, do sujeitocom seu objeto de desejo, após o corte do significante (a palavra do Outro).De uma só vez, se revela o sujeito do desejo e ocorre a separação de seuobjeto causador do desejo.

9 O falasser imagina-se esférico, ou em forma tubular. Lacan nos provou que o corpohumano é um cross-cap recortado, e mais tarde vai recorrer à Garrafa de Klein pararepresentá-lo, com sua falsa borda, por onde circulariam as pulsões.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FREUD, S. Análise de uma fobia em um menino de cinco anos (1909). Volume XEd. Eletrônica das Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Imago.________ Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). Vol. XIV. Ed. Eletrônicadas Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Imago.________ As transformações do instinto exemplificadas no erotismo anal (1917).Vol. XVII. Ed. Eletrônica das Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Imago.________ A Psicologia de grupo e a análise do ego (1921). Vol. XVIII. Capítulo 7:A identificação. Ed. Eletrônica das Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Imago.LACAN, J. Séminaire Les écrits techniques de Freud. Lição de 10/03/1954. Sitewww.gaogoa.free.fr.________ Seminário El yo en la teoría de Freud. Lição de 12/05/1955. CD-RomEl Seminario.________ Séminaire Les psychoses (1955/56). Site www.gaogoa.free.fr.________ Seminário A identificação (1961/62). Ed. Interna do C.E.F. de Recife.________ Séminaire La logique du fantasme (1966/67). Ed. Interna da Associa-ção freudiana internacional.VICTORA, L.G. Lição XXIV ou o que faltou no Objeto da Psicanálise. In: Correio daAPPOA -julho/2003.

CORRESPONDÊNCIA SOBRE A TRADUÇÃODO TERMO FANTASMA EM PORTUGUÊS

Visando a uma interlocução com psicanalistas que trabalham tam-bém com tradução de obras de Lacan, enviei uma mensagem a alguns dosque eu considero importantes neste árduo e importante trabalho. Recebi –além de vários pedidos de desculpas por não terem tempo de responder nomomento – três respostas, as quais passo a reproduzir a seguir.

17/06/2005Queridos colegasEstou organizando o Correio sobre A lógica do fantasma, e quero

saber como vocês estão traduzindo o termo fantasme de Lacan em portugu-ês.

Tenho dificuldades em aceitar a tradução para “fantasia”, como foiadotada por alguns tradutores de publicações no Brasil, mas gostaria de terargumentos para justificar o que poderia ser tomado como uma transcriçãointuitiva ou um galicismo.

Abraços, daLigia Víctora

19/06/2005Ligia,Eu mesmo, certa vez, defendi que o correto seria traduzir fantasme

por fantasia. Depois, mudei de opinião, e estou traduzindo fantasme porfantasma. Creio que o que atrapalha, quando se traduz, são os sentidosevocados - de roldão, via associativa - pela palavra escolhida na língua alvo.Fantasma pode evocar assombração, visagens, essas coisas. Issoatrapalha. Mas fantasia é pior: 1) evoca fantasia (roupa); 2) evoca fantasia,no sentido de devaneio; 3) e o pior é que evoca, com a idéia de fantasia, algoque poderia ser cotejado e seria oposto à realidade (isso se disseminou coma egopsychology). Ora, sabemos que a realidade psíquica é pautada pelofantasma. Então, essa oposição não se sustenta, e devemos evitá-la.

Agora, quando dá para evitar um galicismo, a gente faz força.Um abraço doFrancisco Settineri.

19/06/2005Oi amigosQuanto ao termo fantasme temos traduzido, aqui, por “fantasma”.

Creio que colocamos uma nota explicativa em algumas das traduções, por-que fatalmente caímos num risco face a qualquer escolha, com perda de umlado ou de outro. Pela cultura popular verificamos a predominância de “fanta-sia” no sentido do vestuário, de uma peça de roupa usada no folclore. Creioter sido esse um dos aspectos levados em conta. Por outro lado, enfocamosbem a diferença de fantasme enquanto utilizada por Lacan (com o matema

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específico, etc), da acepção corrente que lhe é dada. Ainda, posteriormente,reforçando nossa opção, encontramos no dicionário de Chemama, os doistermos - fantasma/fantasia, estando ‘fantasma’ em primeiro lugar. Mantendoas devidas observações, acho que o fantasma já está devidamente legitima-do e dicionarizado. Particularmente, fico torcendo para que reforces nossadecisão, forçando nosso idioma.

Abraços,Letícia Fonseca

30/06/2005Oi pessoalQuanto ao termo “fantasia”, para fantasme, me parece que fantasia

tem no final das contas o mesmo peso que “fase” para stade, dá conta deapenas alguns aspectos do conceito.

Mas me parece que em “fantasia” há o agravante do senso comuminterpretar de uma maneira vulgarizante e psicologizante. Isso sim, me pare-ce que não vale a pena estimular, confundir conceitos psicanalíticos tão clí-nicos com lugares comuns da psicologia.

Maria Rosane Pereira

A TOPOLOGIA NÃO FAZ CRUZ 1

Charles Melman2

Primeiramente, obrigado a todos os que aceitaram preparar esta Jor-nada, nela se expor, e apresentar nossas dificuldades bem como nossostalentos, aliás, com a mesma simplicidade e a mesma coragem. Esta Jorna-da marca certamente um início no trabalho que podemos agora propor àAssociation lacanienne internationale.

O significante não tem estrutura linear. É o que experimentamos àmenor análise do sonho, onde nos encontramos expostos ao encontro deuma rede, e como Freud a especificou, de uma rede esburacada, esburacadapor aquilo que ele chama o umbigo do sonho; isto quer dizer que a lógica, elaque tem uma estrutura linear, não está certamente em condição de dar contadas propriedades do significante; até porque um de seus traços capitais éque, se ela respeita o real sem saber – Lacan diz que a lógica é a ciência doreal – sabemos, no entanto, que, ao mesmo tempo, ela forclui o sujeito.

Então, se o significante tem uma estrutura em rede esburacada , qualpoderia ser o campo matemático suscetível de dar conta de suas leis, doseu funcionamento, de suas incidências e – ao mesmo tempo, é claro – daspossibilidades da nossa ação sobre os efeitos desta rede?

No seminário, que eu recordava outro dia, há uma pequena frase deLacan: “há um desafio em toda esta questão, quer dizer, esta partida quejogamos continuamente de modo que, em todos os casos, ela sejaindubitavelmente perdida”.Como esta partida pode ser ganha? Reside nisso,parece-me, o maior problema, o problema crucial para a psicanálise. Eis aí oproblema crucial para a psicanálise: esta partida que o significante nos leva1 Conclusão da Jornada de 16 de março de 2002. Publicado originalmente no Bulletin del’Association Lacanienne Internationale, nº 111. Paris, janeiro de 2005.2 Charles Melman é psicanalista, membro fundador da Associação Lacaniana Internacionale da antiga Associação Freudiana Internacional. Autor de vários livros e inúmeros artigos,muitos já traduzidos para o português, entre eles: “Novas formas clínicas do terceiro milê-nio”, Porto Alegre: CMC Editora, 2003 e “O homem sem gravidade”, Rio de Janeiro: Compa-nhia de Freud, 2003.

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a jogar e que sistematicamente somos conduzidos a perder, poderia serganha? Então, sejamos sensíveis ao fôlego que anima aqui o esforço deLacan em seu uso da teoria matemática das superfícies para dar conta dosefeitos do significante.

Primeira questão, e que me parece essencial: por que o espaçomoebiano seria o espaço próprio ao campo, para retomar o termo de Brini,ao campo do significante? Por que o espaço moebiano? Pois, afinal de con-tas, este não é o único espaço que se poderia encontrar nesta teoria mate-mática das superfícies. Por que esta eleição, que faz Lacan, do espaçomoebiano?

As respostas que eu estaria tentado a dar seriam, por um lado, queeste espaço é organizado não pelo gesto de um demiurgo que teria vindopegar, tirar o cinto de suas calças e torcer suas bordas para criar uma bandamoebiana e ao mesmo tempo o mundo; mas que este espaço moebiano éinstaurado pela perda, pelo corte operado sobre o plano projetivo deste obje-to particular que vocês conhecem, e que vai, doravante, marcar o que eletem, em si, de buraco próprio à organização, à rede do significante, e, aomesmo tempo, esta particularidade da borda constituindo este buraco, ouseja, sua natureza borromeana. Não me deterei sobre o que isso implicaentre outras coisas: para que um objeto possa vir a completar este buracoserá necessário que ele tenha uma propriedade geométrica perfeitamenteespecífica. Então, em primeiro lugar, a presença na banda moebiana desteobjeto cortado, destacado, do qual ela guarda evidentemente a memória –não há banda moebiana sem a memória deste buraco que veio constituí-la.

Evocava também outro dia este fato com o qual lidamos na teoria e aoqual respondemos bastante mal: o lugar do recalcado. Onde vocês o situam,o recalcado ou, para retomar o termo de Freud, o Unterdrückt? Simplesmen-te o que é posto de lado em um canto do espaço plano?

É o que veio se marcar, se inscrever do outro lado da mesma face eque o percurso do significante vai inelutavelmente trazer de volta – porque opróprio do recalcado, o Unterdrückt, é evidentemente retornar. Se vocês ad-mitem alguma importância à distinção feita por Lacan entre o recalcamento

e a forclusão, é um retorno que se faz sem transposição de nenhuma borda.Logo, organização deste espaço a partir do esburacamento . Lacan insistirásobre o fato de que ele é introduzido, este buraco, pelo próprio jogo da letra.Material organizador desta questão: a letra. Sejamos materialistas conse-qüentes: a letra se encontra aqui organizadora deste buraco na rede e, seposso dizer, dá valor erótico ao que se encontra recalcado; recalcado do qualnenhum entre nós, ou entre vocês, jamais conseguiu se livrar, uma vez quesua propriedade, independentemente dos esforços de vocês, é retornar, ine-vitavelmente, de estar no outro lado de uma mesma face.

É, em todo caso, a interpretação que lhes proponho desta excelênciaque Lacan atribui ao espaço moebiano, uma vez que todas as outras figurascom as quais vamos lidar têm por propriedade essencial, capital, precisa-mente, serem moebianas.

Ao apresentá-lo assim, não faço mais que evocar outra vez para vocês ofracasso inevitável de Freud ao trabalhar no espaço plano, no espaço euclidiano,ao procurar desesperadamente o lugar que poderia ocupar aí o inconsciente, orecalcado, e evidentemente sua captura pela distribuição imaginária que nos écomum, deste espaço plano, dominado pelo fato de que ele é o suporte do eu(moi), que ele é organizado por este eu – e a esse respeito, imagina-se, oquanto ele é defensivo contra a castração! E ele é devidamente orientado ehierarquizado entre a parte superior e a parte inferior, a direita e a esquerda, aparte interna, o que está dentro do corpo e que é suposto ser o bom, e a parteexterna que é o cocô, que é o mau, entre o que está adiante e o que é supostoser tranquilizador, e tudo o que está atrás, tudo o que se move atrás, supostoser obscuro, ameaçador, evidentemente sujo, erótico.

Conhecer o que há por trás? Hoje, os meios de comunicação socialsó se interessam por isso. Quando se interroga alguém é necessário, imedi-atamente, saber o que ele tem por trás. O que ele pode dizer, o que ele podemanifestar, não é isso que conta, sua verdade, ela estaria atrás dele. Estaprofunda estupidez que nos domina, que nos inquieta e que até o século XIXordenou a composição da geometria: vejam a certeza, por exemplo, de Kant,de que a geometria estava concluída!

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Parece-me que podemos ser sensíveis ao mesmo tempo à virulênciaque o espaço moebiano vem aqui introduzir, e que temos que responder aisto: este espaço é o que se revela especificamente instaurado pela redesignificante?

Tomemos o cross-cap, o cross-cap enquanto plano projetivo. O planoprojetivo, a instauração descoberta da perspectiva na arte, da organizaçãodo plano pelo ponto no infinito. Isso foi um grande negócio, evidentementecom todas as potências que evocamos ao nível deste infinito, deste olhar,em primeiro lugar –claro! E igualmente de tudo o que vem reger o mundo dasrepresentações. Pude me aventurar a pensar que Descartes tinha feito suacolocação a partir do que antes dele fizeram os pintores: a descoberta e aorganização da perspectiva, com o que o mundo das representações devia,em suas deformações, à organização por um ponto situado no infinito, que épermanente, não poderia se mover, é sempre o mesmo, do qual podemosestar certos. Isto não tem nenhuma importância, é só uma digressão...

Observem como com o cross-cap, o que vocês têm no lugar desteponto assim no infinito, não é mais que o objeto, este objeto cortado e des-tacado. Não sei se vocês são sensíveis a esta espécie de extraordináriaoperação de laicização que uma tal formulação é suscetível de agenciar.

A garrafa de Klein: uma das questões, parece-me, às quais teríamosque responder, é saber que tipo de progresso ela constitui em relação aografo, ao grafo do desejo. Porque, olhem o grafo: verão que para além do fatode haver uma torção moebiana – o que não vou acentuar exageradamenteaqui, mas o grafo é organizado por uma torção mœbiana – trata-se aquitambém de um percurso que se desenrola entre o sujeito e o ideal, com umareversibilidade, diz Lacan, entre os dois, e que concerne à passagem e àinterrogação pelo Outro. O grafo – ter-se-ía vontade de dizer – é uma bandade Moebius, única, evidentemente.

Mas não está exatamente aí a questão. A questão é saber se a garra-fa de Klein constitui o suporte supostamente legítimo da relação do sujeitocom o grande Outro, a partir deste orifício que, ao sujeito e ao grande Outro,seria comum.

Há pouco e muito precisamente, Jean-Jacques Tyszler evocou o fatode que “o sujeito recebe do grande Outro sua própria mensagem sob umaforma invertida”. Qual mensagem? Aquela na qual estamos todos tomados.É esta mensagem que nos devota ao sexo e à morte, isto não é complicadoe não sustenta a discussão! Isso sustenta a rebelião, mas às expensas dosujeito. É a mensagem que recebemos do grande Outro sob uma formainvertida, e que faz com que, certamente, nossos propósitos venham inscre-ver-se no que préviamente foi, eu ia dizer, sinalizado a partir do grande Outro.

Este tempo – o futuro anterior – que muitos dentre vocês não gostamde forma alguma (devo dizer, aliás, sobretudo as senhoras, elas não gostammuito do futuro anterior...). Para se situar – é maravilhosa essa inteligênciada gramática – ao menos em francês, pois que este tempo não existe emtodas as línguas – poder se colocar de cara no fim, ao fim do percurso; esendo o fim bem marcado, bem situado, ser capaz de vir em posição antece-dente, retrógrada, para evocar o que terá sido cada vez o futuro do sujeito eque o precedia, seu futuro evidentemente.

Então, a garrafa: ela será susceptível de ser disso o suporte metafóri-co, imaginário? Pois Lacan não procura de modo algum deixar-nos comple-tamente loucos – um pouquinho, mas não completamente – ele jamais diz:“é o real”. Diz que são metáforas, que são suportes imaginários, modelos,mas cuja eficácia se deve ao desafio da partida. Por que depois de tudo, alógica também, a lógica clássica ou as outras mantêm suas virtudes dodesafio das suas partidas, que é obviamente chegar a realizar o impossívelprograma de Hilbert: algebrizar o mundo. Elas têm, elas também, seus de-safios.

Por outro lado, o que nos embaraça é que Lacan, este saber, ele nãoo espera de antemão, ele não está decifrando o que seria uma ordem domundo, ele está em vias de constituí-lo com aqueles a quem ele se endere-ça. O que faz, evidentemente, que isso possa evoluir, que isso possa mudar.E isso, isso é muito inquietante...

Vejam o tipo de golpe que este gênero de topologia representa aomesmo tempo para o eu (moi) colocado em causa pela queda do espaço

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plano, e depois igualmente pela nossa transferência, nossa relação com osaber; já que Lacan não é aquele que vem decifrar a ordem e as leis domundo; ele tenta construir com aqueles que querem, o tipo de organizaçãomatemática susceptível de dar conta e de agir para ganhar uma partida.

Ele está livre, neste negócio? Lógico que não! E se ele não está, seele é limitado, é porque há este material que eu evocava no começo, o daletra – que não é o do número – que é primordialmente o da letra.

Com esta garrafa de Klein, a questão é a do tipo de interpretaçãosusceptível de fazer o corte que seria necessário. Como Jean-Jacques oevocou: qual corte? Qual seria o bom corte? Seria o corte que permitiriamostrá-la como sendo constituída por duas bandas de Moebius simétricas?

Foi muito bem sublinhado há pouco de que maneira isso era espe-cífico da psicose, e também, faço vocês observarem, estranhamente, daneurose obsessiva. As injunções se produzem aqui ao mesmo tempoem que o paciente as ouve. Por que de forma assim simultânea? O queé específico do neurótico obsessivo é ter procurado forcluir o que era dosexo e da morte, quer dizer, o que constituía esta mensagem invertidavinda do Outro. Como se, pelo fato de tê-la forcluído não pudesse existirmais nada no Outro que fazendo destino, que fazendo mensagem, pu-desse vir recordar-lhe sincronicamente, simultaneamente, tudo o que eletinha traído em relação ao sexo e à morte. E precisamente aí, a posiçãode escândalo onde ele se coloca recusando a mensagem que se tornaentão um imperativo: “Vai, vai lá, pega tua navalha, e corta o pescoço damulher! Ou então o teu!” E depois, injunções sexuais que ele julgavaabomináveis e que vinham sob a forma de comando e sempre no temordo lugar onde tudo isso o levaria: ao final. Este final que precisamente oobsessivo procura forcluir por uma operação que se refere, sem dúvida, ànossa relação à garrafa de Klein, isto é, renunciando ele mesmo ao queé sua própria demanda em relação ao grande Outro, para se fazer oobjeto que viria tapar a exigência do Outro, tapar este buraco a partir doqual isso entra em movimento. E nós sabemos que isso não funcionaassim tão facilmente e que é um problema.

Então qual seria o bom corte? Certamente não o que seria capaz deisolar duas bandas simétricas! Seria aquele capaz de isolar duas bandasopostas? Nada mal! Nada mal precisamente por situar o que o neuróticoinjuria, ao que ele se opõe, ou seja: à mensagem que lhe vem do Outro comas prescrições que ela implica no que concerne à sua vocação ao sexo e àmorte. Só isto já não seria pouco...

Talvez isso fizesse demasiado sentido, mas o que me permito pensaré que o bom corte seria certamente este, surpreendente, que foi evocado hápouco, e que permite mostrar que, finalmente, aquilo de que o sujeito depen-de é de uma banda de Möebius, e que o quê ele tomava pelo grande Outronada mais era do que este espaço investido pelo seu objeto a, e neste tipode corte, Lacan insiste sobre o fato de que há esta banda única, e um resí-duo. Um resíduo que ele aliás vai até procurar no que seria o conteúdo dagarrafa, naquele resto, “a não negligenciar”, diz ele.

Tudo isso nos diz respeito tanto mais que esta partida que Lacaninterrogava para saber se ela era susceptível de ser ganha, ele a abandonou,ele deixou a mesa. Ele abandonou a teoria matemática das superfícies parapartir para a dos nós. Mas creio que, para nós, tudo isto constitui um formi-dável convite para seguir sua tentativa, tudo que ela tem de instrutiva. Defato, pouco importa se ele estava errado, ou se ele tinha razão! O que issoquer dizer, aliás? Mas o que importa é prosseguir este esforço para dar contaao mesmo tempo das especificidades da neurose, das especificidades dacura, e das possibilidades de direção da cura.

Eu posso assegurar a vocês, que, em realidade, sei que os efeitos detudo isto estão presentes em nosso meio, e não somente em nosso meio,eles são ativos mesmo se eles não são necessariamente sempre isolados epensados como tais. Mas lhes asseguro que, quando vocês se confrontamcom analistas para os quais o espaço plano permaneceu como sendo oorganizador do mundo, quer dizer, os “freudianos” – isso foi efetivamente oobstáculo para Freud – verão imediatamente que, em realidade, para oslacanianos, isto, mais ou menos bem, mais ou menos claramente, foi trans-mitido; e que este ensino de forma alguma foi em vão, e mesmo que ele

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SEÇÃO TEMÁTICA

O HOMEM DE PEDRA E O FANTASMA SEM LÓGICA

Maria Rosane Pereira Pinto1

O mito de Don Juan2, difundido desde a antiguidade até nossos dias,sofreu todas as variantes históricas e estéticas que cada contextode época lhe exigiu. Mas, desde a Idade Média, um elemento per-

manece invariável: a presença e a função do personagem do homem depedra. O “eterno menino”, perverso sedutor encontra, no momento limite desua trajetória, a famosa “estátua do comendador”, pai de uma de suas belasseduzidas e que ele havia assassinado. O retorno desse pai morto, cujaestátua fúnebre Don Juan cinicamente convidara para jantar, é emblemáticodo limite do homem em relação a seus atos. À hora prevista, o “convidado depedra” se faz presente e, apertando a mão de seu assassino anfitrião, oconduz aos infernos. Molière e Mozart3 mostraram magistralmente a sagadesse herói quase atemporal, colocando em cena a père-version4 de DonJuan em sua mais plena humanidade.

Essa figura do homem de pedra nos interessa aqui, assim como aposição infantil perversa polimorfa de D. Juan, para refletirmos sobre umaquestão da atualidade clínica: a recusa de realidade, funcionamento psíqui-co ao qual Freud chamou de Verleugnung para definir a perversão a partir deseu artigo sobre o fetichismo em 1927. Mas, também, como elementoconstitutivo da clivagem do eu (Ichspaltung) em seus processos de defesa,conforme seu artigo de 1938, onde ele não mais se contenta em situar aVerleugnung apenas na perversão enquanto estrutura, mas também enquan-to um funcionamento psíquico presente na neurose.

1 Psicanalista, membro da Association Lacanienne Internationale e da AssociationPsychanalyse et Médecine de Paris.2 A versão do mito a qual nos referimos aqui é a de Molière, Dom Juan. Paris: Flammarion,19983 Cfe. A versão de Mozart em sua ópera Don Giovanni .4 Neologismo de Jacques Lacan enviando ao termo francês perversion e à noção mesma dapsicanálise, ao mesmo tempo em que envia aos termos de père (pai) e version (versão).

tenha deixado a teoria matemática das superfícies para passar a dos nós,tudo isso teve seus próprios efeitos, e efeitos que permitem hoje aoslacanianos não parecerem extraviados, completamente perdidos no mundo.

A topologia não faz cruz. Primeiro porque a cruz não é uma figuratopológica, e depois porque, como vocês sabem, a topologia é a resposta, omodo de conceitualização jamais visto anteriormente para responder por nósà questão da relação com o ideal, àquele que nos crucifica, e de que maneirao sujeito poderia sustentar-se e manter-se sem ser o crucificado desta iden-tificação.

Muito obrigado!

Tradução: Marcia Helena de Menezes RibeiroRevisão: Mônica Vasconcelos Delfino

PINTO, M. R. P. O Homem de pedra...

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SEÇÃO TEMÁTICA PINTO, M. R. P. O Homem de pedra...

desejo. Vivemos em uma cultura da eterna criança, em cuja lógica, a exem-plo de Don Juan, não inscrevemos a figura do homem de pedra, do limite.Sabemos que ela existe, mas mesmo assim...

No final dos anos 80, tomei em tratamento um menino de dez anos.Este menino, com constituição física de uma criança de no máximo seisanos, franzino e pálido, chegou ao meu consultório com sua mãe e me im-pressionou o número de cicatrizes e curativos espalhados por seu corpo. Opedido de ajuda era na verdade uma exigência da escola. Não podiam mantê-lo inscrito sem tratamento porque ele estava “perigoso para ele mesmo”,segundo o enunciado da direção da escola. Tratei de saber qual era o “peri-go” e perguntei imediatamente o que significavam aqueles “ferimentos deguerra”. A mãe me responde que esse é o problema: ele sofre muitos aciden-tes. Quedas de escada com clavícula quebrada, chutes em marcos de goleiraque lhe custaram um osso do dedo do pé quebrado, tropeços enquanto ca-minha com freqüentes ferimentos no nariz. Em três semanas ele havia sidoatropelado duas vezes nas imediações da escola, embora sem gravidadeimportante (ele apenas caiu e se esfolou, um hematoma aqui e ali mas en-fim, sem fraturas). Até mesmo quando ia apontar seu lápis ele conseguiapassar a lâmina na ponta dos dedos. O último acidente tendo sido relativa-mente grave, pois ele “atravessou” a porta de vidro de um armário sem se darconta que estava aberta e isso lhe custara uma intervenção cirúrgica doloro-sa, com pontos hemorrágicos importantes e mesmo necessidade de corre-ções plásticas, a mãe decidiu então buscar ajuda, apesar da exigência daescola ter sido feita meses antes.

Quanto a sua escolaridade, repetia o ano e corria o risco de ser maisuma vez reprovado. Desde os seis anos de idade, sofria de crises de “ausên-cia” que eram atribuídas ao uso dos antiepiléticos que tomava. Antes do usodos antiepiléticos, ele dormia pouco e mal, pois tinha tremores, dores abdo-minais e suores noturnos intensos. Nenhum eletro-encefalograma acusoulesão cerebral, mas a fenomenologia indicava a medicação e efetivamenteele desde então dormia muito bem. Uma psicopedagoga, um pediatra e umneuropediatra acompanhavam seu caso havia já algum tempo. Manifestava

Particularmente, trata-se aqui de pensar de que modo a recusa darealidade - essa dupla posição do sujeito de aceitar e repudiar, no mesmomovimento, a realidade que a ele se impõe - pode engendrar uma dificuldadena atividade psíquica do sujeito à qual Freud chamou de “fantasma”. Ativida-de esta que consiste em fazer correções na realidade frustrante e com issosustentar o princípio de prazer, o que de certo modo equivale a “indenizar” àeconomia psíquica pelas renúncias impostas a ela pelo princípio de realida-de. Considerando que a fonte do fantasma é o brincar infantil e que o adultoprolonga, pelo viés do fantasma, essa atividade psíquica através da qual arealidade lhe é suportável, pensemos também na questão da temporalidadepsíquica a partir da qual o fantasma se organiza: ele se situa entre o desejopassado, a impressão presente e a projeção futura.

Isso somado ao fato de a realidade psíquica do fantasma se desdo-brar a partir do que Freud chamou de “fantasmas originários” – ou seja, aobservação do coito parental, a fantasia de sedução, o temor à castração –não é sem conseqüências para a clínica. Pois sabemos o quanto é estruturantea possibilidade que a criança tem, com isso, de se servir de suas verdadespré-históricas para sustentar as lacunas de sua verdade individual.

Minha hipótese é de que uma precariedade dessas possibilidadespode se apresentar quando o sujeito se encontra enredado em uma posiçãode recusa da realidade que ele, ao mesmo tempo, sabe que se impõe. Comoservir-se de suas verdades “pré-históricas”, como construir a partir delas umaverdade individual fantasmática sem estar efetivamente inscrito, subjetiva-mente, na problemática prazer-realidade já que um desses termos é repudi-ado?

Parece-me que, cada vez mais, deparamo-nos com essa dificuldadeem nossas clínicas, pois, mais do que nunca, os sujeitos que nos pedemajuda estão na posição do “eu sei, mas mesmo assim...”5, essencialmenterepudiadora da realidade, como se o fato de sermos fundamentalmente se-res de linguagem não nos colocasse por si só na lógica do interdito, do

5 MANNONI, O. “Je sais, mais quand même.. “ in Clefs pour l´imaginaire ou l´Autre Scène.Paris: Éditions du Seuil. 1969.

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SEÇÃO TEMÁTICA

bem assim. Até nosso primeiro encontro, apesar de várias outras advertênci-as, nunca havia pensado que seu filho pudesse estar em risco.

O menino, que é o caso em si, me dizia, no início do tratamento, queele na verdade nunca sabia ao certo porque fazia ou não fazia alguma coisa.E os estados de “ausência”, que pareciam causar os acidentes, ele explica-va de uma maneira muito curiosa: “é como se eu saísse de meu corpo e elenão me obedecesse mais, ele faz o que bem entende quando eu não estounele. Quando eu volto, já estou machucado. É a mesma coisa na aula. Quan-do eu falo ou presto atenção no que estão dizendo, meu corpo pode sair semachucando, então fico cuidando para isso não acontecer e não aprendonada”.

O fato é que, logo depois da entrada no dispositivo da transferência,esses acidentes cessaram. Um ano depois, o neuropediatra concluiu queele não precisava mais dos neurolépticos e ele passou a ter as doenças deinfância que antes nunca havia tido. Enfim, se deixava “contaminar” por seuspequenos outros. As notas nunca foram brilhantes, mas ele conseguiu fazeruma escolaridade relativamente satisfatória, sem repetir mais suas séries.

É importante assinalar que ele passou a uma importante depressão.Em análise, interrogava muito a vida e a morte, e tentava construir teorias.Interessava-se a ponto de ter desenvolvido a capacidade de leitura lendoobituários de jornal, pois queria saber quantas pessoas morriam por dia nacidade e se eu as conhecia. Com o tempo, parece que algo da ordem de umluto se organizou como trabalho de análise. No decorrer do tratamento, eleconseguiu estabelecer conflitos de convívio e tinha mesmo enfrentamentosfísicos com outros meninos. Narrava, feito um “Homero”, suas odisséias es-colares. Uma agressividade especular se havia instalado, havia um corpo eum sujeito. Ele não precisava mais “encarnar” o fantasma do corpo indepen-dente ou do espectro paterno para sua mãe. Podia brincar de Outra coisa,pois não seria mais um eterno menino nem um menino eterno.

Esse caso ensinou-me muito quanto à importância das primeirassessões. Parece-me que a possibilidade que esse paciente teve de ingres-sar, no momento inaugural de sua análise, em um trabalho de elaboração de

PINTO, M. R. P. O Homem de pedra...

uma agressividade verbal e um desinteresse pelo aprendizado, uma recusaem acompanhar o trabalho escolar, comia muito pouco e era absolutamenteinsuportável que lhe dissessem “não”.

Pergunto o que o pai pensa disso e a mãe me responde “não existepai, meu filho é uma produção independente”. Era um pouco a moda nosanos oitenta, socialmente se ouvia isso com certa freqüência, mas clinica-mente , pelo menos para mim, era a primeira vez. Reagi dizendo à mãe queisso era impossível, que se esse menino podia estar ali, se ele falava e atémesmo aprontava tantas peripécias, era porque sim, ela havia encontradoum homem com o qual o concebera, logo, ele tinha um pai.

Pergunto ao menino o que acontecia quando ele se acidentava e eleme diz “não sei, nunca tou nem aí!” Termino essa primeira sessão dizendoao menino que se ele queria voltar ao meu consultório, se queria estar emalgum lugar, era necessário que se mantivesse vivo, pois eu não tinha comotratar uma criança morta, eu só poderia trabalhar com um menino vivo e queele me parecia bastante “vivo” para entender o que eu lhe dizia. “Um mortonão vai a lugar nenhum, um morto é apenas um nome na pedra de um cemi-tério”, concluí para ele.

Antes de sair, a mãe me pede para escutá-la só, e marcamos umasessão. O menino, então, intervém perguntando quando seria sua próximavez.

Escutei essa mãe por quase dois anos e ela seguiu sua análise comoutro colega. O menino permaneceu em análise comigo até os treze anos.Durante o período em que a escutei, o discurso dessa mãe ficou muitocentrado em seu próprio romance familiar. Quando ela tinha onze anos deidade, seu pai, cujo prenome ela havia dado ao menino, havia desaparecidoe jamais soubera dele, nem se estava vivo ou morto.

Na época da concepção, ela havia tido mais de um amante e nuncaquis certificar-se da paternidade, pois nenhum deles era, na sua opinião, umpai viável. Ela era uma mulher independente, os homens lhe eram dispensá-veis. Sabia que havia sido necessário o encontro, mas mesmo assim, nãovia necessidade de um pai para o menino, lhe parecia que estavam muito

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SEÇÃO TEMÁTICA

LACAN É LACANIANO?SOBRE RUSSEL E LACAN

Felipe Garrafiel Pimentel 1

“Que queres tu? É a eterna contradição humana”.Machado de Assis2

O jogo da psicanálise tem algumas regras. Uma delas: somos obrigados a topar com paradoxos. Desde o seminário “A angústia”,Lacan postula que é a partir deles que surgem os sintomas. Acres-

centa Ivan Corrêa: “e é a partir da escuta destes paradoxos que podemos teruma escuta do sujeito”. (CORRÊA, 2001, p.11). No L´Étourdit Lacan coloca:“Nenhuma elaboração lógica, e isso desde antes de Sócrates e de outroslugares que não nossa tradição, jamais proveio senão de um núcleo deparadoxos”.(LACAN, 2003, p.494) E se buscamos compreender a “Lógicado fantasma”, que paradoxos podem nos auxiliar?

Já na primeira aula deste seminário, Lacan recorre a um paradoxode longa data na lógica, no caso, o Paradoxo de Russel. Que diz ele?

“Alguns conjuntos são elementos de si mesmos, enquanto outrosnão o são (por exemplo, o conjunto de objetos abstratos, sendo ele pró-prio um objeto abstrato, é um elemento de si mesmo; o conjunto dasvacas, não sendo uma vaca, não o é) Consideremos agora o conjuntodos conjuntos que não são elementos de si mesmo. Ele é um elementode si mesmo ou não? Se ele é um elemento de si mesmo, então ele tema propriedade que todos seus elementos de si mesmo têm, ou seja, elenão é um elemento de si mesmo; se, entretanto, ele não é um elementode si mesmo, então ele tem a propriedade que qualifica um conjunto

1 Pesquisador do Laboratório de Filosofia e Psicanálise da UNISINOS. E-mail:[email protected] “A igreja do diabo”. Contos: uma antologia.Porto Alegre: Companhia das letras, 1998.

elementos mórbidos importantes, produziu-se porque eu, de saída, me colo-quei na posição do “homem de pedra” para essa mãe “donjuanesca” e seufilho. Ou seja, algo da presentificação da morte deve ter tido efeito ali mes-mo. E esse registro da morte - não esqueçamos - é nosso maior referencialda linguagem. Além disso, quando eu “desmenti” o desmentido da realidadematerna quanto à inexistência de pai, estava dizendo ao menino “tu estásaqui, falas, tens este corpo, estás vivo e podes morrer porque um homem euma mulher te conceberam”. De certo modo, algo da experiência do estádiodo espelho se recapitulou e ele pôde então, a partir daí, começar a assumirsua palavra e seu corpo. Fundamentalmente, pode-se dizer que tudo issopôde ter lugar porque a mãe suportara assujeitar-se ao Outro com sua deci-são de pedir ajuda, de construir uma demanda a um terceiro.

Esse deslocamento da posição materna possibilitou ao menino co-meçar e prosseguir sua análise, ingressar na lógica do Édipo, sem a qual elenão poderia colocar em ato a sua realidade psíquica, e sustentar seu desejo.Isso exigia que o fantasma materno encontrasse a sua lógica, pois enfim,não há fantasma sem uma mãe em seu horizonte, mãe que possa formularuma versão do pai para sua criança.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FREUD, S. Le Fétichisme (1927), in La vie sexuelle, Paris: P.U.F., 1969.FREUD, S. Le Clivage du moi dans les processus de défense, (1938) in: Oeuvrescomplètes, Paris: P.U.F., 2000.

PIMENTEL, F. G. Lacan é lacaniano?

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SEÇÃO TEMÁTICA PIMENTEL, F. G. Lacan é lacaniano?

xos, Sainsbury postula que este é o mais complexo e atual da lógica.Que tentativas de resposta a lógica formula?

A primeira é apresentada pelo próprio Russell, já em 1903, na obraPrinciples of Mathemathics. Ela divide-se em dois intentos, um formal,outro filosófico. A resposta formal, intitulada “Teoria dos tipos”, subdivideo universo do discurso em níveis: indivíduos, conjunto de indivíduos, con-junto de conjuntos de indivíduos... Desta forma, enunciar que x Ε y (xpertence a y) só é possível se o índice do tipo y é superior ao índice de x.É desta forma, evitada a possibilidade de articular x E x. A pergunta se“o conjunto dos conjuntos que não são elementos de si mesmos é ele-mento de si mesmo” fica anulada. Subjaz a compreensão de que umaproposição sobre todas as proposições não pode ser elemento dela mes-ma porque cria uma proposição que não estava na totalidade anterior. Asegunda resposta, filosófica, afirma Russell, postula que todo paradoxoderiva de uma violação do Princípio do Círculo Vicioso (PCV). O PCVafirma: “Nenhuma total idade pode conter membros totalmenteespecificáveis somente nos termos de si mesma”. (SAINSBURY, 1995,p.128) Estas restrições de tipo russellianas bloqueiam a prova da infini-dade dos números – que teriam que ser contados a partir de sua própriapropriedade – e não abarcam certos conjuntos que violam o PCV – entreeles, Ramsey propõe que especificar um homem como aquele que tem amaior média de pontos de seu time, viola o PCV, apesar de aceitável.(HAACK, 2002, p.194).

Próxima da resposta de Russell, temos a formulação de Tarski.Ele elabora uma hierarquia de linguagens. Teríamos uma linguagem-ob-jeto que fala das coisas, e uma linguagem que fala desta linguagem.Uma metal inguagem. E para esta uma outra l inguagem,“metametalinguagem”. E daí em diante. Desta feita, a verdade de umasentença é expressa por um predicado do nível superior. A frase do men-tiroso não é avaliada em seu nível, mas no nível seguinte. Dizer que algoé tal, está na linguagem-objeto. Dizer que é verdadeiro que algo é talestá no próximo nível, no caso, na metalinguagem. O paradoxo deixa de

para pertinência a si mesmo, logo, ele é um elemento de si mesmo.Assim, o conjunto de todos os conjuntos que não são elementos de simesmo é um elemento de si mesmo se e somente se não é um elemen-to de si mesmo”.(HAACK, 2002, p.187).

Russell, tratando do paradoxo do maior e do último número deCantor, formula algo que o conduz ao encontro com seu paradoxo. Aversão mais inicial data de novembro de 1900 (a publicação será somen-te em 1903). Este paradoxo encontra paralelo3 no paradoxo que data daAntigüidade – o Mentiroso. Diz-se que um sujeito ouve de Epimênides,que é cretense, o seguinte: “Todos os cretenses são mentirosos.” Vocêstêm saída? Sucede que, se Epimênides fala a verdade, qual seja, quetodos cretenses são mentirosos, então Epimênides fala uma mentira, jáque não mente. Mas, se Epimênides fala uma mentira, isto é, que oscretenses falam a verdade, então ele fala uma verdade, já que mente.(Uma outra formulação está no paradoxo do barbeiro: O barbeiro quebarbeia todos habitantes da aldeia que não se barbeiam a si mesmos, sebarbeia?).

A primeira reação de estupefação diante da questão dirige-nos,todos, a uma tentativa de resposta. Mas encontramo-nos, após algumaselaborações, sem saída. Aceitamo-lo. Sabendo que Lacan serve-se des-te paradoxo (e para pôr lenha na fogueira do leitor adiantamos, Lacan4

afirma que estes paradoxos não são paradoxos, mas “imagens”, verda-des “confusas” de um tempo “ingênuo” da lógica) – poderíamos dirigir oolhar, não à psicanálise, mas à lógica contemporânea, e enxergar qual apertinência desta questão nas formulações atuais.

Qual o nosso susto? É que, em contato com as mais recentesproduções da lógica, os lógicos confirmam a atualidade do Paradoxo deRussell. Em uma obra dedicada ao estudo detalhado de diversos parado-

3 Segundo Sainsbury (1995), o paralelo entre os dois paradoxos é pertinente. Para umadiscussão detalhada, ver Capítulo 5, ps. 126-129.4 LACAN, J. Seminário “A lógica do fantasma”, classe do dia 16 de novembro de 1966.

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SEÇÃO TEMÁTICA PIMENTEL, F. G. Lacan é lacaniano?

ções lingüísticas terminam. Quando Lacan abre mão de articular significadoe significante a partir do signo, tal como em Saussure, ou de colar o signifi-cado no significante, tal como na Lógica 6, ele propõe que a unidade estáperdida, mas o substrato se dá pela cadeia de significantes em sua vinculação.

A fórmula de Lacan, que todos conhecemos, “um significante é o querepresenta o sujeito para outro significante” (e na “Lógica do Fantasma” eleacrescenta: “o que encontra paralelo com o funcionamento da metáfora doinconsciente”. (Classe do dia 14 de dezembro de 1966)) fere um princípiobásico da Filosofia: empregar a palavra definida na definição7. Como isto épossível?

O paradoxo aqui reside que, no mínimo, uma letra deve estar ausentepara que todas as outras funcionem, ou melhor, esta falta radical é exata-mente a “fecundidade da operação” (Classe do dia 23 de novembro de 1966).Assim, Lacan insere a temática do “menos-um”, na qual enuncia que “aomenos-um” significante deve faltar para que a linguagem se exerça. Estesignificante “menos-um” direciona o autor para a temática do inefável, já pre-sente em outras tematizações da filosofia da linguagem – tais como a deWittgenstein – mas, em vez de cercar a questão pela negatividade e impos-sibilidade do universo do discurso, Lacan toma o paradoxo como positividadeem sua formalização.

Perpassa a noção de que “não há metalinguagem” (classe do dia 23de novembro de 1966), ou melhor, “não há universo do discurso” (classe dodia 22 de fevereiro de 1967). Há um uno que não comparece na cadeiasignificante, e que a faz funcionar – fórmula S A (barrado) – e esta falha –tendo sempre em mente o caráter positivo de qualquer falha – está em todoo paradoxo, tal como o de Russell (classe do dia 14 de dezembro de 1966).

6 Responder o que a lógica faz com o significante, como ela procura suturar o fato de nãohaver universo do discurso pela introdução de “letras” mereceria outro estudo. Deixamosalgumas indicações da relação entre Lacan, a Lógica de Aristóteles e a formalização doPrincípio da Contradição. (Para tal, ver Tugendhat, cap. 5 2005).7 O que empresta à Ontologia a mais difícil das tarefas: responder “o que é Ser”. Para umadiscussão detalhada, remetemos a Heidegger, Ser e Tempo, 1927, Primeiro Capítulo.

ser paradoxo e passa a ser uma falsidade. Temos uma solução formal,mas nada nos indica por que, do ponto de vista filosófico, deveríamosaceitar esta hierarquização.5

Uma outra resposta temos em Kripke, na teoria da fundamentação(groundedness). Ele parte da rejeição de que toda sentença deve ser ouverdadeira ou falsa. O argumento: pensemos que alguém tenha que explicara outrem que não compreende o que é a palavra verdadeiro. Então, ele faztal: uma sentença é verdadeira se alguém está tentado a afirmar essa sen-tença; e afirmar que uma sentença não é verdadeira se dá quando alguémestá tentado a negá-la. Então, se o aprendiz está tentado a dizer “O céu éazul “ ele está em posição de afirmar que “O céu é azul” é verdadeira. Poden-do também estender a outras sentenças que contenham a palavra verdadei-ro, tais como ‘’O céu é azul” é verdadeira é verdadeira. Uma sentença éfundamentada quando ela está habilitada a ganhar o título de verdadeira oufalsa. Assim, a frase do mentiroso que diz, “o que eu estou dizendo é falso”ou “essa sentença é falsa”, não tem critério de avaliação como verdadeiro oufalso. Desta feita, os paradoxos não têm nenhum valor de verdade. Estasolução conduz-nos ao perigo da arbitrariedade da atribuição de verdade.“Esta sentença é verdadeira” compartilha da mesma estranheza de “estasentença é falsa”. Soma-se a isto, o fato que o predicado primeiro está com-pletamente indefinido. Segundo Haack, “a situação também deixa margemao caráter ‘arriscado’ das atribuições de verdade, pois o caráter paradoxal deuma sentença pode ser intrínseco (‘esta sentença é falsa’) ou empírico (‘afrase da linha 20 é falsa’). (HAACK, 2002, pág.200)

O que nos resta? Nenhuma solução, somente seus efeitos. O Para-doxo de Russell fornece a Lacan a imagem das aporias que certas concep-

5 Praticamente temos as seguintes decorrências: pensemos que Dirceu diga “Todas asdeclarações de Roberto Jefferson sobre o ‘mensalão’ são falsas”. Esta sentença deveestar num nível acima das sentenças de Jefferson. E não nos permite avaliar as própriasdeclarações de Jefferson. E para complicar, suponhamos que entre as declarações deJefferson esteja: “Todas as afirmações de Dirceu sobre o ‘mensalão’ são falsas”. Assim,todas as declarações de Dirceu têm de estar num nível mais alto que as de Jefferson, etodas as de Jefferson num nível mais alto ainda que as de Dirceu.

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SEÇÃO TEMÁTICA SEÇÃO DEBATES

OS GRUPOS DE KLEIN NA OBRA DE LACAN1

Ligia Gomes Víctora

Felix Klein

Felix Klein (1849-1925) foi um matemático nascido em Düsseldorf, antiga Prússia, atual Alemanha, que ficou conhecido por suas pesquisas na geometria não-euclidiana. Herdeiro do trabalho de Plücker,

colega de Engel e contemporâneo dos fundadores da Topologia, De Morgan,Jordan e Poincaré, Klein deu uma importantíssima contribuição às teorias doGrupo e da Função. As primeiras descobertas matemáticas importantes deKlein foram feitas em 1870 em colaboração com Marius Lie. Em 1875, Kleincasou-se com Anne Hegel, neta do filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel.

Klein desenvolveu a geometria de Riemann e a teoria das funções.Mas sua saúde delicada conspirava contra sua força de trabalho. Como se lêem sua biografia2: “nele conviviam duas almas... uma que aspirava a umavida acadêmica tranqüila, a outra, à vida ativa de editor, professor, e pesqui-sador científico... Durante o outono de 1882, estes dois mundos vieram abai-xo... sua saúde desmoronou completamente, e durante os anos de 1883-84foi flagelado por uma depressão”. (Será que temos aqui mais um matemáticoangustiado?!)

Além da teoria dos Grupos, Klein inventou a nossa querida “Garrafa deKlein”. Ele também desenvolveu uma teoria de funções automórficas,conectando resultados algébricos e geométricos em seu livro de 1884, sobreo icosaedro. Entretanto, na mesma época (1881), Poincaré – conhecido comoo pai da topologia – começou a publicar um esboço da teoria das funçõesautomórficas e isso provocou uma acirrada competição entre ambos. Primei-ramente, iniciou-se uma correspondência entre eles, que logo deu lugar auma “rivalidade amigável”, cada um procurando formular e provar um teoremaque servisse como a pedra angular dessa nova ciência.

1 Resumo do Seminário de Topologia da APPOA, ministrado pela autora em 09/07/2004.2 Estes e outros dados encontram-se no site: http://www-gap.dcs.st-and.ac.uk/~history/BiogIndex.html. Tradução da autora.

Lacan esclarece este aparente equívoco e nos dá indícios do que pode-mos traçar como sua concepção de linguagem: “O significante não está aserviço do princípio da contradição, já que a não é a.” (Classe 10 de 21 defevereiro de 1962,do seminário “A identificação”). Interna contradição humana!

O significante um-a-mais é o que coloca o relacionado sob seu jugo.Isto responde às perguntas dos atentos alunos do seminário de Lacan quelhe perguntavam: O falo é fálico? O seio é mamário? Encontrando comoresposta que ‘à medida que o significante falo aparece como fator reveladordo sentido da função significante em um certo estágio’, (Classe 10 de 21 defevereiro de 1962, do seminário “A identificação”) o falo não é fálico, mascoloca o pênis real sob a ameaça da castração. E se, com Melman, enxer-gamos que há um desvio deste significante que articula a cadeia significante,sob que ameaça estamos?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CORRÊA, Ivan. A Psicanálise e seus paradoxos. Bahia: Ágalma, 2001.CRAIG, Edward. Routledge Encyclopedia of Philosophy. London: Routledge, 1998.HAACK, Susan. Filosofia das Lógicas. São Paulo: UNESP, 2002.LACAN, Jacques. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.LACAN, Jacques. El Seminario. CD RomMEULEN, Alice; BENTHEM, Johan. Handbook of Logic and Language. Amsterdam:Elsevier, 1997.SAINSBURY, R. M. Paradoxes. USA:Cambridge Univesity, 1995.TUGENDHAT, Ernst; WOLF, Ursula. Propedêutica Lógico-Semântica. Petrópolis:Editora Vozes, 2005.

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SEÇÃO DEBATES VÍCTORA, L. G. Os grupos de Klein...

UMA LÓGICA QUATERNÁRIAPodemos considerar a lógica de Lacan uma lógica quaternária. Ve-

jam, por exemplo, os esquemas L, R e I; o sistema a, ß, γ, δ; o Grafo dodesejo; a fórmula da metáfora; os quatro discursos; a lógica da sexuação...

Os grupos de Klein estão presentes na maioria das elaborações deLacan. Desde o “diamante” do Seminário “Os escritos técnicos de Freud”(53/54), no qual as três “paixões do sujeito” (amor, ódio e ignorância) sãopostas nos lados de um primeiro triângulo, que vai se desdobrando em umaanálise. Mas o que eu gostaria de retomar aqui é o tratamento que Lacandeu ao cogito de Descartes, a partir de um grupo de Klein.

Primeiramente, no seminário “A identificação”, Lacan transformara oslaços cartesianos entre o pensamento e o ser (“penso, logo sou”), através deuma abordagem “morganiana” (do matemático e lógico De Morgan (1806-1871), dos círculos de Euler (1707-1783).

REFLEXOS NO ESPELHOO texto kleiniano (do Félix, não da Melanie!), conhecido como “Refle-

xos no espelho” ou “programa de Erlanger” (1872), influenciou profundamenteo desenvolvimento da matemática. Este foi escrito para a ocasião da aulainaugural de Klein, quando ele foi nomeado professor em Erlangen (emboranão tenha sido realmente o discurso que ele deu nessa ocasião). O progra-ma, inovador na época de Klein, propõe uma aproximação entre a geometriaespacial (euclidiana) e a geometria analítica (não-euclidiana). Hoje as contri-buições de Klein já foram completamente absorvidas pela matemática mo-derna.

O Grupo de Klein é uma função de transformação. Transformaçõesjogam um papel fundamental na matemática moderna. Klein mostrou comoas propriedades essenciais de uma geometria poderiam ser representadaspor grupos de transformações, em que dois elementos jogam entre si paraformar um terceiro, onde:

0 = neutro (o elemento, em contato consigo mesmo, nada faz)

a x b = c

b x c = a

a x c = b

A relação entre os quatro elementos pode ser organizada nesta tabela:

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SEÇÃO DEBATES

sujeito nasce do nada, do vazio ou do lugar falta, que não por acaso tambémé o lugar do desejo, a lógica é subvertida, pois o lugar mais “vazio” é o lugarmais “cheio”. Entre o pensar e o ser, o lugar é do objeto a e do -ϕ(fi negativo)– o desejo sempre vem no lugar da falta.

Negando-se ambas as expressões: “ou eu não penso, ou eu não sou”,e se juntarmos a isto o soll Ich werden freudiano – “Eu devo advir” – teremosa seguinte equação: “lá onde Isso era... Eu não penso”! Observem que noseminário “O ato...” está grafado ao contrário de como se costuma nos livrosde lógica: o conjunto ‘hachureado’ contém elementos, e onde está em bran-co, é vazio. Com a ressalva de que os campos que contêm elementos sãosempre negativos (Não penso, Não sou), o que faz com que onde contém,não contenha, e vice-versa.

Mais uma vez 4, Lacan se utilizou de uma estrutura tetraédrica (gru-pos de Klein):

.

4 LACAN, J. Seminário O Ato Psicanalítico, 10/01/67.

VÍCTORA, L. G. Os grupos de Klein...

Mais tarde, no seminário A Lógica do Fantasma (lição de 14/12/66) ocogito cartesiano foi retomado sob o prisma dos grupos de Klein.

E foi também a partir de uma associação sobre o cogito cartesiano queLacan recuperou este raciocínio, no seminário O ato psicanalítico (1967-68).

Com a lógica da alienação (ou... ou...), Lacan encontrou uma alterna-tiva de escritura para a falta original do sujeito. “O interesse desta teoria dosconjuntos é que ela introduz no pensamento matemático sob uma formamascarada, o sujeito da enunciação que vem, assim, se igualar à função deconjunto vazio. Isso justifica no cogito a passagem do” penso, logo sou “, àsua negação “não penso, não sou”, sob forma de uma reunião: reunião da-queles que negam a conjunção das duas proposições”. 3

O que se operava em Descartes era, conforme Lacan, a transforma-ção da relação patética (no sentido de pathos) da interrogação filosófica, emuma outra coisa: em um questionamento da função do eu, ou seja, do sujei-to. Esta substituição (do penso pelo sou) precisava ser questionada justa-mente pela negação. Se “eu penso” é necessário para “eu sou”, se nãohouver “penso”, não haverá “sou”. Logo, sem “pensar”, nada de “ser”! Nalinguagem lógica, diríamos: se P logo Q; não P, logo não Q. Ora, como o

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SEÇÃO DEBATES

E o tempo não passa!Se passa, é limite.Limite? Aí se (A.I.C.)(me) apaga!Que seria o limite?O tempo curto?Mas, se curto o tempo,Estou sofrendo,Estou vivendo,Vivendo o tempoVi, vendo o tempo.Vivendo.Então, vivo a vidaE... vivo o tempo,Um tempo finito.

(julho1990)

TEMPO

Anna Irma Callegari

Instantes... instantes...Infindável sucessãoInstantes de sessãoImpensável cessação.Imprevisível no silêncioInterminável às vezes,Imperceptível, outras.Imponderável na levezaIndefinível na duraçãoIncalculável na ação.Ação de tempo longo,Longo tempo...Longa espera!Nada vai fluindo,Nada vai escoando,Nada vai passando...Mas... a sessãoVai ecoandoE, num crescendo,Vai significando,Vai se distendendo,E vou falandoE vou dizendo:Que longo tempoQue não passa...Que me passa é medo,Medo da fala,Do som prolongadoDe uma palavra

Onde estaria o analista neste esquema?Lacan indicou que o Inconsciente, isto é, o lugar da Verdade, possui

um estatuto lógico no qual o sujeito é suposto se alojar só depois (après-coup). Por isso, o discurso analítico seria como um “lugar reserva”, sendo ainterpretação uma tentativa de preservar esse lugar.

O mais interessante deste esquema é o lugar “de eclipse”, em que opsicanalista seria colocado, na transferência. Ali o analista estaria, de certaforma, preservado no lugar de sujeito suposto saber.

A estrutura de uma análise seria a mesma da construção subjetiva.Partindo da divisão inaugural do sujeito (“ou... ou...”), passando pelo lugar do“lá onde Isso era” (“sou, não penso”), seguindo para a instalação em seufalso-ser inconsciente (“penso, não sou”), para se reencontrar finalmente nolugar do desejo.

O final de uma análise traria necessariamente uma certa realizaçãodo que Lacan chamou de “operação verdade”, em que o analista seria desti-tuído do lugar do suposto saber. Seria percorrer um percurso completo nografo acima, até chegar a esta falta que define a essência do homem – quechamamos de desejo – e que corresponde ao acesso à castração simbólica.

-oOo-

Esta é apenas uma leitura possível dessa viagem de Lacan atravésdos grupos de Klein e da lógica da alienação. Muitas outras são possíveis, econvido vocês a lerem as aulas 5 e 6, do Seminário “O ato psicanalítico”, e afazerem as suas!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

LACAN, J. El Seminario, versão em CD- rom.

CALLEGARI, A. I. Tempo

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RESENHA RESENHA

estado que se atribui o direito e o dever de proteger os seus cidadãostornando-os infantis.

O terceiro ponto do livro trata sobre o fenômeno sectário, essa coisainominável – essa “charlatanice sem bordas” – pela qual uma comunidadedesigna incessantemente aquilo que não é. A seita é ao mesmo tempo aprovedora de uma droga (phármakos) e a própria droga (phármakon), preten-dendo depurar seus adeptos. Com mais de quinhentos milhões distribuídospelo mundo, particularmente nos EEUU e na América Latina, a seita dosevangélicos (oriunda das Igrejas protestantes tradicionais) estabeleceu comomissão organizar o “Armagedon” (a batalha final entre o bem e o mal) desper-tando os cristãos do seu adormecimento. No Brasil, além do comando deuniversidades, houve tentativa de regulamentar a formação do psicanalista,reivindicando ao Estado uma lei que a regulamentasse.1

Sob o instigante título “Miragens da perícia” este capítulo tratafundamentalmente da formação do terapeuta e suas relações com o Es-tado. É interessante observar o acento colocado pela autora de umdistanciamento entre a psiquiatria – colocando-se a serviço dos labora-tórios farmacêuticos e da ditadura das perícias técnicas – e a psicanáli-se. No capítulo sobre a ideologia de avaliação, Roudinesco (p.92) argúi:“A questão fundamental a ser colocada é saber de que instância legalprovém aquele que pretende avaliar os outros? Quem está em condiçõesde avaliar o avaliador? Como controlar as derivas ligadas às miragensdessa ideologia da perícia generalizada que assaltou as sociedades de-mocráticas e que pretende, em nome da segurança das populações,controlar o incontrolável?”. Também o custo dos tratamentos é levantadona questão de avaliação e controle das práticas terapêuticas na socieda-de de consumo, onde o melhor tratamento deve ser o mais barato.

1 Submersos num confronto em nosso país, que já passa de um ano e que envolve poder,obrigações, formação, igrejas, delimitação de espaço, reserva de mercado, ortodoxia, mídia,liberdade, entre outros pontos, discute-se sob a égide política sobre o dito “ato médico”:quem faz, ou o quê cada um poderá fazer.

O PACIENTE, O TERAPEUTA E OESTADO

ROUDINESCO, Elisabeth. Rio de Janeiro: Jorge ZaharEditora Ltda, 2005. 149 p.

Dividido em cinco capítulos e três ane-xos, nos quais a autora transcreve: 1. o “Ju-ramento de Hipócrates”; 2. “Uma tentativade classificação das medicinas da alma edo corpo” e, no terceiro, ela lista “As seitascontemporâneas”. O que resulta da leituradesta “lista” é a reflexão sobre o lugar deonde falamos ou escutamos. A tentativa declassificação dos tratamentos põe emcheck , na cronologia histórica, o período em que estamos envolvidos. Ojuramento confronta felicidade e honradez com a palavra dada.

O primeiro capítulo está centrado na figura estrutural do que a autorachamou de “heterogêneo” (p.18), que seria um ser duplo: envenenador oureparador, o “charlatão” se configuraria como o “outro” da ciência e da razão,o outro de nós mesmos. Da clássica definição de saúde preconizada pelaOMS(Organização Mundial da Saúde): “num estado de bem-estar físico,social e mental do indivíduo”, passando por questões da cultura do narcisismo,cai-se na espetacular cultura da ilusão terapêutica que promete nada me-nos que a imortalidade.

A criação do termo psicoterapia por Tuke em 1872 (fundador dapsiquiatria inglesa) desdobra curiosas associações no catálogo da pró-pria OMS, em especial tratamentos ditos clássicos, de medicinas alter-nativas, sectárias, espirituais ou corporais. A relação da psicanálise comesses tratamentos, e a relação dos pacientes e terapeutas com a cren-ça na cura prometida é criteriosamente discutida, sob ângulos de trata-mentos religiosos, acadêmicos e culturais. Tudo isso sob a ótica de um

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RESENHA

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AGENDA

P R Ó X I M O N Ú M E R O

PERCURSO DE ESCOLA

No último capítulo Roudinesco salienta em Freud2 as afirmaçõesque atestam sobre a contradição inerente ao status da psicanálise: do pontode vista teórico um sistema de pensamento, do ponto de vista clínico, umaarte. Sob o título “Do bom e do mau governo” a autora diz: “Quanto aosmembros das ‘boas’ sociedades lacanianas, agora subordinadas à IPA, oluto da figura do mestre levou-as não à sabedoria ou à reconciliação com aética freudiana, mas à normalização profissional e, finalmente, porautoimunização, à raiva dos ‘outros’ ”. (p.122).

Em tempo: é conveniente salientar que a obra resenhada trata emespecial da França, no ano 2000. E de uma emenda à constituição daquelepaís que tentava “legalizar” (?) as atividades “psi”. Considerando a nossaposição geográfica, histórica e cultural parece ser necessário observar comatenção os desdobramentos aqui, espelhados no já acontecido naquele país.

– Tememos qual charlatão? Parece ser a questão final que não cala.

Gilson Firpo

2 FREUD, S. As perspectivas futuras da terapia analítica (1910), ESB, vol.II. e Sobre oensino da psicanálise nas universidades . ESB, vol.XVII.

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04 21h Sede da APPOA Reunião da Mesa Diretiva

12, 19 8h30min Sede da APPOA Reunião da Comissão de Aperiódicose 26

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18 21h Sede da APPOA Reunião do Mesa Diretiva aberta aos Membros da APPOA

06/08/05 11h Livraria Cultura Lançamento do Livro “Prostituição -O Eterno Feminino” de Eliana dosReis Calligaris

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A TOPOLOGIA E ALÓGICA DO FANTASMA

N° 138 – ANO XII AGOSTO – 2005

S U M Á R I O

EDITORIAL 1

NOTÍCIAS 2

SEÇÃO TEMÁTICA 11

O CONCEITO DE FANTASMA NA OBRADE LACANLigia Gomes Víctora 13A TOPOLOGIA NÃO FAZ CRUZCharles Melman 23O HOMEM DE PEDRA E O FANTASMASEM LÓGICAMaria Rosane Pereira Pinto 31LACAN É LACANICANO?SOBRE RUSSEL E LACANFelipe Garrafiel Pimentel 37SEÇÃO DEBATES 43

OS GRUPOS DE KLEIN NA OBRA DELACANLigia Gomes Víctora 43TEMPOAnna Irma Callegari 49RESENHA 50

O PACIENTE, O TERAPEUTA E OESTADOGilson Firpo 50

AGENDA 53

N° 138 – ANO XII AGOSTO – 2005