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    Proibido ProibirSartre

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    Captulo 1 - Foto 3 x 4 do nascimento do sculo

    (Do livro: " proibido proibir - Sartre", Fernando Jos de Almeida,

    FTD, So Paulo, 1988, p. 6-15)

    Foi quase um aborto o nascimento deste nosso sculo. Uma infinidade de conflitos regionaisculminou com a exploso de um novo modo de fazer guerra: a 1 Guerra Mundial, iniciada em1914. Nunca tantos mortos (20 milhes de soldados e civis, por bombardeios, massacres, fomeou epidemias), nunca tanta sofisticao de gases asfixiantes, metralhadoras, balas explosivas,canhes e tanques.Em 1917 estourou a Revoluo Russa, prenncio de uma nova sociedade, radicalmente diversada capitalista, tambm com milhes de mortos, deportados e mutilados.Em 1929 a quebra da Bolsa de Valores de Nova York carregou e cores sombrias esse cenrio,

    causando desemprego em massa, fome, extorses e contrabandos, alm de presses econmicasdas naes ricas sobre os pases pobres.Mal refeito da 1 Guerra e dos abalos da economia, o mundo se envolveu, em 1939, numa 2Guerra Mundial, ainda mais destruidora e cruelmente sofisticada. Os tiros dos campos de batalhaterminaram em 1945, mas o conflito ainda permaneceu aberto, pulsante como uma chaga viva.

    No contentes com os 45 milhes de motos, os interesses das naes e de sues dirigentesinauguraram a guerra fria. O clima da guerra fria se caracterizou pelo medo generalizado dianteda constante ameaa de uma guerra nuclear, acusaes mtuas entre americanos e soviticos,espionagem e contra-espionagem, perseguies ideolgicas e censura s artes e ao pensamento.Mas no pense voc que isto foi o fim do mundo.Em meio aos gritos de dor, debaixo dos bombardeios e contando com recursos de milhes de

    dlares, a cincia e a tecnologia se desenvolveram espantosamente. Dia e noite trabalhavam para(alm de artefatos blicos) produzir invenes que trouxessem benefcios para a humanidade.

    Muita guerra, muita tecnologia: cad o homem?

    O que o homem no conseguiu nos 100 mil anos de sua existncia sobre a Terra, alguns pasesda Europa e os EUA conseguiram nos primeiros 50 anos do sculo XX. Mquinas novas,cidades de concreto, TV, vacinas, automvel, avio, foguete, domnio da energia atmica,informtica...

    No entanto o homem cientfico e a sociedade tecnolgica no cumpriram uma promessa

    esperada: a melhoria da vida humana.E sabe por qu? Porque junto com o conhecimento exato produzido pela cincia - quase urnadeusa - veio um monte de bugigangas tecnolgicas, que tinham por trs um projeto dedominao poltica e econmica. As guerras foram uma forma de reforar essa dominao.Afinal se percebeu que as certezas da cincia no serviam em nada causa de uma sociedademais humana. Os homens da dcada de 50 no poderiam pensar de outro modo:

    "Que sujeito este que domina as distncias e se comunica em segundos e tem poder de explodirvrias vezes este planeta e, contudo, no se conhece?".

    Ento tornou-se clara a mentira da promessa feita por Augusto Comte (1798-1857) de que umaera da cincia corresponderia a um grande avano e ao amadurecimento definitivo dahumanidade.

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    "Ordem e progresso!" foi a proclamao de um Comte cheio de esperana. Mas que nada!Ordem: em que direo? Progresso: para quantos? O mundo (salvo umas privilegiadasexcees que tentavam impor-se como regras) caminhava para o caos, para o agravamento dadominao e do extermnio.Poucas naes, poucos grupos dominavam quase toda a riqueza, os bens culturais e o poder

    poltico do mundo. Aps as duas guerras mundiais, a f do homem em si mesmo e na sua obraera decepcionante! A guerra destruira em pouco tempo agrupamentos humanos, realizaesmateriais e tesouros de arte que demoraram sculos para se constituir.

    Inverter a Histria

    Alto l!Os jovens e os pensadores dos anos 50 precisavam achar a ponta desse emaranhado, para ajudara mudar o curso dessa histria. Ao verem a triste situao do mundo e de si mesmos, eles se

    perguntavam: tanta busca, tanto sonho, tanto amor, tanto trabalho, para NADA?Onde est o bem? Qual a linha que o separa do mal? Haver uma sada para evitar que estaaventura de viver no termine na morte com nossas prprias unhas?Onde est a verdade: na cincia? no ser humano?

    Uma certeza: a cincia no responde a tudo. Ela no to autnoma corno aparentava, mas estamarrada a um projeto de sociedade. H de se buscar na Filosofia um conjunto coerente deresposta,, para o dilema de viver.A Filosofia apareceu como uma nova paixo capaz de indicar novos caminhos. A, sabedoria dos

    jovens pensadores angustiados percebia que a vida incerta, ambgua. Nada como nosensinavam os velhos filmes de caubi, em que o chapu do heri metido em brigas jamais cai,seu revlver jamais descarrega e ele sempre acaba dando um beijo (cinematogrfico...) em suanoiva.Hollywood punha divisrias na tela: de um lado ficava o ndio, sempre traidor e ignorante; dooutro, o branco, doce conquistador (de mulheres e terras alheias), acompanhado de crianaslourinhas e msica romntica. O bem e a mentira eram claramente separados. O progressosempre estava ao lado da cincia. enquanto outras dimenses humanas eram classificadas de

    bruxaria, e por isso olhadas com surpresa.No isso que acontece na vida real.

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    Dentro de cada indivduo e na trama da sociedade, a realidade ambgua: o bem e o mal andamde mos dadas, misturam-se. Ora odiamos, ora amamos. O mesmo bandido que roubalatifundirios tem bons sentimentos com as crianas, e o justiceiro louro, montado em seu cavaloidem, pode ser mesquinho com seus pais e ter medo de quarto escuro.Quem est com a verdade? Quem est com a mentira?(O que voc acha?)

    O gosto pela evidncia e o sentido da ambigidade

    A realidade humana cheia de contradies: a prpria vida est cheinha de morte, e seus porostranspiram dores:

    "A hora do encontro tambm despedidachegar e partir so dois lados da mesma viagem

    o trem que chega o mesmo trem da partidaa plataforma desta estao e' a vida. "

    Milton Nascimento

    Apenas um bisturi mental capaz de separar a verdade da falsidade ou o belo do feio. Essacirurgia feita utilizando-se o pensamento. Cada um de ns pode entender com clareza o que

    bem e o que mal. S que isso no basta. Viver diferente de entender!Na primeira metade do nosso sculo, os filsofos ainda estavam preocupados em separar o certodo errado, em classificar quem era sujeito e quem era objeto: "H diferena entre o eu que pensae as coisas exteriores ao pensamento?". Esses pensadores foram atrados pela clareza e buscaramiluminar a existncia humana.Mas logo a existncia se manifestou escorregadia: ela escapa de cada rede que a razo lanasobre ela para captur-la e estud-la.Enterrado nos escombros de um mundo que desabou, para o angustiado homem do ps-guerradesvendar a vida humana transformou-se num questo de sobrevivncia. por isso que os existencialistas, filsofos por excelncia dos anos 50, se definiram comoaqueles que tm "o gosto pela evidncia e o senso da ambigidade". Daqui para frente vamos

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    falar de um homem assim: angustiado. Nele voc certamente encontrar muito do conhecimentode cada um de ns, do nosso tempo e do nosso mundo.Os existencialistas foram muitos e de vrias tendncias. Alguns so considerados precursores:Kierkegaard, Nietzsche e Husserl. Eles forneceram muitos dos fundamentos tericos de Sartre.Outros combateram na Frana pelos ideais existencialistas juntamente com Sartre. So eles:

    Emmanuel Mounier, Gabriel Marcel, Albert Camus, Simone de Beauvoir e vrios outros..

    No h propriamente o existencialismo, como se fosse uma escola filosfica definida. maiscorreto falar-se em "clima existencialista" j que cada pensador dessa corrente tem umaabordagem original. Mas h um ncleo de preocupaes e temas fundamentais, comuns maioria dos existencialistas:

    - a razo humana impotente para resolver todo, os problemas da existncia;- o homem est sempre se fazendo e refazendo;- o ser humano frgil;- a realidade nos aliena, nos toma estranhos a ns mesmos;- a morte urna presena constante na vida;- no se pode fugir da solido;- a existncia um mistrio;- o Nada provoca o ser humano a avanar.

    Antes de serem uma filosofia do mundo, ou das coisas, as idias existencialistas pretendem seruma filosofia do homem. No so reflexo de um homem perfeitamente organizado, ideal,

    passvel de ser analisado e compreendido. Trata-se de uma filosofia de um homem misterioso,surpreendente, dilacerado por contradies insolveis.

    Vamos Refletir

    1. Quais os grandes dilemas humanos de nossa dcada, em nosso pas e no mundo todo?2. Quais os dilemas do jovem brasileiro atual?(Reflita individualmente e, em seguida, discuta as questes acima com o grupo de trabalho)3. No texto do filsofo Roger Garaudy (anexo), identifique as preocupaes destacadas

    neste captulo.4. No texto Moral da ambigidade (anexo), de Simone de Beauvoir - companheira de toda

    a vida de Sartre -, voc tem um bom exemplo da vertente feminina do existencialismo,numa reflexo sobre a fase que voc est vivendo.

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    Propostas de Atividade

    Fazer uma pesquisa, ou entrevista com cientistas, sobre os tipos de problemaque a cincia resolve e tipos que no soluciona.

    Anexos

    1. Perspectivas

    Roger Garaudy

    "A humanidade inteira, se continuar a viver, no ser simplesmente porque nasceu, mas porqueter decidido prolongar sua vida. No mais existe espcie humana. A comunidade que se fez

    guardi da bomba atmica est acima do reino natural, porque responsvel por sua vida e porsua morte; a cada dia, a cada minuto, ser preciso que consinta em viver. Eis o queexperimentamos hoje, na angstia. Nosso mundo uno. Mas um mundo dilacerado. Estemundo uno porque o desenvolvimento da tcnica e da produo engendrou um mercadomundial, a economia de um mundo fechado no qual o destino de cada homem depende de fatoEconmica, poltica, moralmente, do de todos os outros.Poltica, moralmente, a vida cotidiana de cada homem sofre a ressaca das mais longnquas: naBolsa de Nova York, uma manifestao em Tquio, um plano econmico em Moscou, umarevolta na frica ou na sia. As crises tornaram-se mundiais, as guerras tambm.Mas esta interdependncia universal no uma solidariedade universal. Est feita decontradies e conflitos. A universalidade s se exprime concretamente porque, doravante,

    todas as lutas se desenvolvem em escala planetria: as lutas de classe, as lutas nacionais, as lutasideolgicas. Nenhum conflito tem carter regional. Nenhuma responsabilidade tem carter limitado.Nenhuma liberdade solitria. De direito, estamos todos implicados na grande contestao domundo. A histria o quis assim. Estamos a e no podemos fazer de outro modo. Aresponsabilidade pessoal, ningum pode furtar-se a ela."( Perspectivas do homem. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1968, p. 5)

    2. Moral da ambigidade

    Simone de Beauvoir

    (Para a criana) "as invenes humanas - as palavras, os costumes, os valores - so fatosconsumados inelutveis como o cu e as rvores, ou seja, o mundo em que vive o mundo dosrio, j que o especfico do esprito de seriedade considerar os valores como coisasestabelecidas. (... ) o mundo verdadeiro o dos adultos, onde no lhe permitido seno respeitare obedecer. Ingenuamente vtima da "miragem do para-outro, cr noserdos seus pais, dos seus

    professores: considera-os como as divindades que estes procuram vmente ser e cuja aparnciase comprazem em imitar diante de olhos ingnuos. As recompensas, as punies, os prmios, as

    palavras de elogio ou de censura insuflam na criana a convico de que existe um bem, um mal,fins em si, como custe um sol e uma lua. (... ) E nisto que a condio da criana (ainda que

    possa ser, em outros aspectos, infeliz) metafisicamente privilegiada: a criana escapa

    normalmente angstia da liberdade; pode ser, a depender de sua vontade, indcil, preguiosa;seus caprichos e suas faltas dizem respeito somente a ela, no pesam sobre a terra, no poderiamperturbar a ordem serena de um mundo que existia antes dela, sem ela, no qual est emsegurana por sua prpria insignificncia; pode fazer impunemente tudo o que lhe agradar, sabe

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    que nada acontecer por causa disso, tudo j est dado; seus atos no comprometem nada, nemmesmo a si prpria.(...) muito raro que o mundo infantil se mantenha alm da adolescncia. Desde a infncia, jsuas falhas se revelam; no espanto, na revolta, no desrespeito, a criana pouco a pouco seinterroga: por que preciso agir assim? A quem isto til? E, se ou agisse de outra forma, que

    aconteceria? ( ) E quando chega idade da adolescncia, todo seu universo se pe a vacilar,porque percebe as contradies que os adultos opem uns aos outros, bem como suas hesitaes,suas fraquezas. Os homens cessam de lhe aparecer como deuses, e, ao mesmo tempo, oadolescente descobre o carter humano das realidades que o cercam: a linguagem, os costumes, amoral, os valores tm sua fonte nessas criaturas incertas; chegou o momento em que serchamado a participar tambm dessa operao; seus atos pesam sobre a terra tanto quanto os dosoutros homens, ser-lhe- preciso escolher decidir. Compreende-se que tenha dificuldade emviver esse momento de sua histria e reside nisso, sem dvida, a causa mais profunda da crise daadolescncia: que o indivduo deve, enfim, assumir a sua subjetividade. De certa forma, odesabamento do mundo srio urna libertao. Irresponsvel, a criana se sentia tambm semdefesa em face das potncias obscuras que dirigiam o curso das coisas. Mas, qualquer que seja a

    alegria dessa libertao, no sem uma grande confuso que o adolescente encontra-se jogadonum mundo que no mais completamente feito, mas a fazer, dono de uma liberdade que nadamais prende, abandonado, injustificado. Em face dessa situao nova, que pode ele fazer? nesse momento que se decide; se a histria, que se pode chamar natural, de um indivduo -sensualidade, seus complexos afetivos etc. - depende sobretudo de sua infncia, a adolescnciaque surge como o momento da escolha moral: ento, a liberdade se revela e preciso decidir queatitude tomar diante dela.( ... ) A infelicidade que vem ao homem do fato de ele Ter sido umacriana consiste, pois, em que sua liberdade lhe foi inicialmente ocultada e em que ele guardartoda sua vida a nostalgia do tempo em que ignorava as exigncias dela".

    Moral da ambigidade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1970, p. 29ss.

    Captulo 2 - Sartre entra em cena

    (Do Livro " proibido Proibir - Sartre", Fernando Jos de Almeida, FTD, 1988, pg. 16-27)

    Jean-Paul Sartre sempre me fascinou pela sua paixo tranqila e insensata pelo viver. Ele reuniuem si princpios de vida que quase nunca andam juntos... ao menos na figura de um filsofo.Sartre foi um soldado e um pensador corajoso; foi um bomio por princpio de prazer e deliberdade; foi uni assduo de panfletos e barricadas; literato explosivo e professor sutil eextasiante, desde os 26 anos.

    Nascido em Paris em 1905, de sade frgil, filho de famlia burguesa, jamais imaginaria que,como membro da Resistncia Francesa, viria a combater violentamente a ocupao nazista daFrana, entre 1940 e 1944. Durante a 2 Guerra Mundial, serviu no exrcito comometeorologista na regio de Lorena, entre 1940 e 1941. Feito prisioneiro, ficou na cidade alemde Trves, onde Karl Marx nasceu. Fugiu de l utilizando-se de documentos falsos.

    Nosso filsofo tambm esteve na linha de frente dos mais importantes acontecimentos polticos

    da Frana, nos ltimos 30 anos. Defendeu a libertao da Arglia, ento uma colnia francesa,que s se tornou independente em 1962, aps violenta guerra que durou 8 anos.

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    Em maio de 1968 o velho professor, aos 63 anos, junto com seus alunos, empilhou osparaleleppedos tirados das ruas de Paris para construir as "barricadas do desejo", smbolo de ummovimento estudantil que pretendia revolucionar todos os aspectos da vida do pas.Mas foi atravs de sua permanente dedicao literatura que Sartre pretendeu atingir trsobjetivos principais na vida: realizar sua paixo pela arte, comunicar-se com os homens e

    mulheres de seu tempo, virar as estruturas deste mundo de cabea para baixo.Para ele, literatura no era um luxo, nem uma diverso, mas uma arma poltica, uma armadilhaPara colher coisas vivas:

    Por ter descoberto o mundo atravs da linguagem tomei durante muito tempo alinguagem pelo mundo. Existir era possuir uma marca registrada, alguma porta nastbuas infinitas do Verbo, gravar nelas seres novos - foi a minha mais tenaz iluso -,colher as coisas vivas nas armadilhas das frases.

    A partir de 1940 Sartre retomou as aulas que havia iniciado em 1931 e largado vrias vezes paracontinuar seus estudos. Nesse tempo, comeou a escrever suas obras mais marcantes.

    Ele organizou grupos clandestinos, dedicados a atividades literrias, jornalsticas e teatrais.Fundou o grupo "Socialismo e Liberdade", integrando o Comit Nacional dos Escritores,colaborou nas Publicaes clandestinas O Combate e Cartas Francesas. Sob sua liderana, foifundada em 1944 a revista de maior importncia das ltimas dcadas na Frana: TemposModernos.A obra literria, teatral, jornalstica e filosfica de Sartre fez dele o mais importante escritorfrancs deste sculo.

    Aos saltos

    No se pense que Sartre viveu como algum que cumpre um horrio rgido. Sua trajetria no

    foi certinha, mas realizou-se aos saltos. Ele mesmo confessou que era um jovem burgus, brioso,espirituoso, anarquista, sutil, paradoxal, mas que no parecia partilhar dos sofrimentos doshomens.Enfim, um jovem classe-mdia, talvez parecido com voc. Sartre se dedicou a ser um professor,

    brilhante e bem-falante, curtindo nas horas vagas suas aulas de boxe, o desenho animado, ocinema. Sobretudo, era f apaixonado dojazz.Mas a 2 guerra Mundial (1939-1945) o empurrou violentamente para a idade da razo. Elereconheceu que

    Entre 1939 e 1945 no fazia poltica. Me ocupava de literatura, vivia com meus amigos, erafeliz... Subitamente estourou a guerra e, aos poucos, sobretudo depois da derrota e da ocupao

    alem, eu me senti completamente privado do mundo que eu acreditava ter diante de mim. Encontrei-me diante de mundo de misria, de malefcios e desespero. Mas recusei estapossibilidade de desespero que era to freqente minha volta e aliei-me a amigos que no sedesesperaram, que pensavam no que era possvel fazer, lutar por um futuro feliz, embora nomomento parecesse no existir absolutamente qualquer possibilidade de existncia para este

    futuro.(O Testamento de Sartre. Porto Alegre. L& PM Editores, 1986, p. 62)

    Obras

    Em 1936 ele escreveu duas obras: A imaginao e Melancolia, que depois se intitularia Anusea. Nelas ele se definiu como pensador. Iniciou a produo de seu trabalho mais filosfico,at aquele momento, fazendo uma anlise da imaginao.

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    Ao contrrio das filosofias da poca, que valorizavam o pensamento, a razo, ele refletia sobreum elemento aparentemente menos importante: justamente a imaginao. Nessa tarefa, eleadotou, sua maneira, um mtodo conhecido como Fenomenologia.

    Mas o que Fenomenologia? A grande ambio deste jovem filsofo era falar das coisas em

    estado puro, tais como as via e as tocava, sem serem "infeccionadas" pela cultura ou pelasinterpretaes dos outros. Isso era para ele a Filosofia. A Fenomenologia buscava a proeza deultrapassar as dificuldades encontradas por outras filosofias, como o idealismo e o materialismo,na sua tentativa de explicar totalmente o mundo.O idealismo ensina que as nicas coisas que existem so as idias. S as idias tm a existncia

    perfeita. Nosso corpo e apenas plido e imperfeito conhecimento delas. Enfim, o real est naconscincia e no pensamento de cada um.Para o materialismo, ao contrrio, o mundo econmico e social engloba toda a realidade, noexistindo prioritariamente nada fora da economia e das organizaes materiais de sociedade.Husserl (1859-1938), pai da Fenomenologia, elimina a oposio entre conscincia e matria,dizendo que as idias s existem porque so idias de alguma coisa - "Toda conscincia

    conscincia de alguma coisa". No podendo ser separadas, elas constituem uma nica coisa "ofenmeno".Sartre se apaixonou pela Fenomenologia. Conseguiu uma bolsa de estudos e foi para a Alemanhaestud-la, entre 1933 e 1934. Neste perodo, testemunhou a ascenso de Hitler. Entre 1936 e1938, foram publicadosA Nusea e o Muro, que projetaram Sartre no mundo do drama literrio.Com esses dois romances ele inaugurou uma forma de expresso do pensamento, utilizando-sede dirios ntimos, romances e ensaios, em que as idias filosficas ganham corpo nos seus

    personagens. Esses personagens no deixavam de ser um eco da vida pessoal do prprio Sartre.Em 1943 foi encenada em Paris a pea As moscas, baseada numa lenda grega. Nela Sartreapresenta arte aquilo que as naes invadidas, ou ento violentadas por governos totalitrios, tmde aprender a fazer. Dentro daquele momento histrico, com alemes nazistas e

    colaboracionistas (traidores) franceses rondando cada canto da vida da Frana, As moscasexplodiu corno uma conclamao resistncia.Fico a imaginar a emoo do pblico, dos atores e do prprio ator diante da ao dramtica quese desenrola no palco, ameaada por um permanente risco de ser reprimida. Em seu enredo, a

    pea fala de um comandante, Egisto, que tomava o poder na antiga Atenas com a ajuda decolaboracionistas, representados pelo personagem Clitemnestra. As moscas representam a pragado medo, que tomou conta dos franceses. Orestes, o lder da resistncia, conclama luta contraos invasores.O Ser e o Nada, escrito em 1943, seu mais importante trabalho especificamente filosfico.

    Nessa obra est o fundamento terico para afirmaes sartrianas que sero encontradas em todosos seus trabalhos polticos ou literrios.

    Eis algumas das principais obras de Sartre e as datas de publicao. Os ttulos j so, por si,sugestivos:

    - Os caminhos da liberdade: trilogia de romances publicada entre 1943 e 1949, de queconstam A idade da razo, O sursis e Com a morte na alma.

    - Mortos sem sepultura e A prostituta respeitosa, 1946- As mos sujas, 1948- O diabo e o bom Deus, 1951- A questo do mtodo, 1956- Crtica da razo dialtica, 1969- Os seqestradores de Altona, 1969-

    Sartre em cuba, 1961- Situaes V - o colonialismo e o neocolonialismo, 1964- Situaes VI e VII - os problemas do marxismo, 1964- Existencialismo e Marxismo, 1957

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    - O idiota da famlia (1, 2,3), 1971 e 1972

    proibido proibir

    Para mim, contudo, a mais importante das obras de Sartre foi seu gesto nas ruas de Paris,naquelas "barricadas do desejo". O grito de guerra dos estudantes era " proibido proibir".Eu lia com admirao os jornais de 1968, estampando a figura de Sartre caminhando frente de

    passeatas, formando uma corrente com os estudantes, enfrentando a policia. Simbolicamente,ele enfrentava a violncia policial e militar de todo o mundo.De onde lhe nasceu essa capacidade de busca contnua de um destino renovado, para si e para ahumanidade? Nunca dando respostas prontas, sempre sem fronteiras, sempre se projetando almde seus livros, de seus quartos de hotis e de seus cafs, situados na bomia Rive Gauche, o ladoesquerdo do rio Sena.Segundo o mesmo Sartre, essa busca contnua nasceu de sua falta de superego (a dimenso do

    psiquismo que rege os deveres, a idia de bem e mal, enfim a moralidade. A formao do

    superego na criana, em nossa sociedade, atribuda influncia da figura paterna)., esta forma que, com seu humor caracterstico, o filsofo interpreta a morte de seu pai,ocorrida quando ele tinha dois anos:

    Foi um mal? um bem? No sei, mas subscrevo de bom grado o veredito (a meu respeito) deeminente psicanalista: no tenho superego. (Os pensadores. So Paulo, Abril, 1973, fascculo68, p. 887)

    Alm desse fato na sua vida individual, Sartre viveu, dos 14 aos 40 anos, nada menos do que asduas guerras mundiais. No seria de estranhar que dessas circunstncias resultasse um intelectualinquieto e desenraizado que buscou, sem conseguir ir ao fim, as causas profundas daquela

    cultura. A tarefa era por demais ampla para um s homem. Alm do mais, sua sade fraca foimais debilitada ainda pelo excesso de bebida e fumo. A perda quase total da viso, nos ltimosanos, fez de sua companheira, Simone de Beauvoir, uma semi-escritora de suas obras. FoiSimone tambm que, mais tarde, leu diariamente os jornais para ele. Ela se constituiu numaespcie de olhos de seu mundo.Mas a inquietao no parou por a. J em idade madura, Sartre quase foi preso por vender nasruas de Paris jornais considerados subversivos, que defendiam uma revoluo cultural, como aque era implantada na China por Mao-Ts-Tung.

    Fora com o Prmio Nobel!

    No auge de sua carreira, artista, literato e poltico de prestgio negou-se a receber o Prmio Nobel de Literatura, que lhe foi atribudo em 1964. Receber essa honraria, para Sartre,significaria reconhecer a autoridade da Academia Real da Sucia, comisso julgadora do prmio.E para onde iria sua liberdade, sua autonomia de criao?A destruio produzida pela guerra impulsionou-o a "novos possveis", a serem construdossobre a paixo pela liberdade. assim que, por detrs de muitas das conquistas libertrias do homem ocidental de hoje,encontra-se o aval de Sartre. Mas no se deve esquecer, nessa movimentao, a participao deSimone de Beauvoir, sua companheira, e de inmeros outros existencialistas.E foi em meio a um turbilho de novos valores e propostas que ele dizia com tranqilidade:

    No cesso de me criar, sou doador e a doao. Se meu pai vivesse, eu conheceriameus direitos e meus deveres: ele est morto e eu os ignoro. No tenho direitos, poiso amor me cumula; no tenho dever pois dou por amor?

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    Sem nenhum formalismo, Jean-Paul e Simone viveram juntos at a morte do filsofo, em maiode 1980. Nada de certides ou contratos durante esses 56 anos de convivncia: o nico lao queos uniu foi a liberdade que se renovava a cada dia. Isto no quer dizer que ele no tivesse tidouma vida cercada de presenas femininas pelas quais nutria grande afeto e at relaes ntimas.To forte quanto seu amor pelas mulheres e pela vida, foi sua esperana, mesmo no bojo deste

    nosso planeta, cada dia mais miservel. Dois meses antes de sua morte, em sua ltimaentrevista, Sartre disse que

    o mundo parece feio, mau e sem esperana. Esse o desespero tranqilo de um velhoque vai morrer ali dentro. Mas justamente eu resisto e eu sei que vou morrer naesperana. Mas esta esperana, preciso constru-la.(O testamento de Sartre. Porto Alegre, L& PM Editores, 1986, p.76)

    Vamos Refletir

    A seguir so apresentados estmulos para sua reflexo individual. Anote suas idias. Emseguida, troque as anotaes com seus colegas. Ao final do debate, a classe toda pode fazeruma sntese nica:

    a) "Uma coisa viver, outra pensar." (Comente.)b) D exemplos do valor da imaginao e da importncia da razo para solucionar os

    problemas da existncia.c) Debata as citaes dos textos de Sartre apresentados ao longo deste captulo.d) Debata o poema Tabacaria (anexo), de Fernando Pessoa

    Propostas de Atividade

    1. Pesquisar material disponvel (jornais, livros, filmes, msicas) sobre os movimentosestudantis de 1968 em vrias partes do mundo.

    2. Relacionar toda essa ebulio com a filosofia de Sartre3. 3. Interpretar a msica " proibido proibir", de Caetano Veloso (anexa) a partir da

    temtica deste captulo.

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    Anexos

    1. Tabacaria - Fernando Pessoa

    No sou nada.

    Nunca serei nada.No posso querer ser nada. parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

    Janelas do meu quarto,Do meu quarto de um dos milhes do mundo que ningum sabe quem (E se soubessem quem , o que saberiam?),Dais para o mistrio de uma rua cruzada constantemente por gente,Para urna rua inacessvel a todos os pensamentos,Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,Com o mistrio das coisas por baixo das pedras e dos seres,Com a morte a pr unidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,

    Com o Destino a conduzir a carroa de tudo pela estrada de nada.Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.Estou hoje lcido, como se estivesse para morrer..............................................................Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.Estou hoje dividido entre a lealdade que devo tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,E sensao de que tudo sonho, como coisa real por dentro.Falhei em tudo.Como no fiz propsito nenhum, talvez tudo fosse nada. A aprendizagem que me deram,

    Desci dela pela janela das traseiras da casa.Fui at ao campo com grandes propsitos.Mas l encontrei s ervas e rvores,E quando havia gente era igual outra.Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

    Quesei eu do que serei, eu que no sei o que sou?Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!

    ........................................................

    (Fernando Pessoa. Obra potica, Rio de Janeiro, Cia. Jos Aguilar Editora, 1969, p. 362-3)

    2. proibido proibir - Caetano Veloso

    A me da virgem diz que noE o anncio da televisoE estava escrito no portoE o maestro ergueu o dedoE alm da porta h o porteiro

    eu digo noeu digo no ao noeu digo proibido proibird um beijo meu amor

  • 8/8/2019 7165340 Jean Paul Sartre Proibido Proibir

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    Eles esto nos esperandoOs automveis ardem em chamasDerrubar as prateleiras

    As estantesAs esttuasAs vidraasLouas, livros, sim

    E eu digo simE eu digo no ao noE eu digo proibido proibir

    Captulo 3 - O que Sartre andou pensando?

    (Do Livro " proibido Proibir - Sartre", Fernando Jos de Almeida, FTD, 1988, pg. 29-54)

    Reflexo antes de comear a leitura

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    I. Veja apenas os subttulos existentes neste captulo ("Ser que eu existo?" etc.). Reflitasobre o significado que alguns deles podem ter para voc. Escreva um texto de umas 15linhas sobre o que os subttulos lhe sugerem. Troque seu texto com o dos colegas,debata e produza uma sntese do grupo. Guarde-a.

    Esta atividade funciona como uma "concentrao" para iniciar a leitura e pode seraplicada aos outros captulos deste livro e de leituras semelhantes.

    2. Depois que voc estudar todo este captulo, verifique a evoluo ocorrida, retomando otexto que voc havia produzido. A compreenso desta unidade pode ser trabalhadaassim

    a) ou voc a l e vai anotando numa folha as idias principais e as que lhe so novas,para apresent-las classe e confront-las com as de seus colegas;

    b) ou voc faz uma leitura junto com a classe, acompanhando-a de comentrios.

    Em ambos os casos, voc poder ir formando um vocabulrio com os termos filosficosmais especficos. O professor poder comentar os conceitos que voc anotou e irtirando as dvidas.

    Ser que eu existo?

    Sou um latino-americano entre 5 bilhes de habitantes de nosso ameaado planeta - imenso paiol

    atmico. Sou classificado pelo nmero de minha Carteira de Identidade, filho de pais que eu noescolhi. Par os polticos ou um reles voto annimo.Serei eu apenas uma estatstica que assiste TV, consome e respira ? Serei, como diziaRoquentin, aquele personagem de Sartre, "um existente que nasce sem motivo, dura por fraquezae morre por acaso"? Afinal quem sou eu? Quem o ser humano?Sei apenas que me recuso a ser olhado como mero objeto de estatsticas. Existo cheio de desejos,de medos, de sentimentos, de sonhos.Pode ocorrer, no meio de uma festa, vendo tantas pessoas falando, bebendo, danando, de eu me

    perceber mais s do que nunca. E pergunto: Quem sou eu? Ser que eu existo? Os outrosexistem? olho minhas espinhas ou minhas rugas a conscincia de que eu existo s vezes meassalta.

    Diante da perda de um amigo num acidente estpido, ou diante da notcia de jovens que sesuicidam, sou empurrado Para encontrar-me comigo mesmo.

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    Estou aqui neste mundo. Eu existo.Mas o que existir?

    mais que o simples ser.As pedras so, as flores so, as nuvens so. Elas tm ser.Mas elas no sabem disso.

    No se aborrecem, no se alegra, no criticam o chefe,No tm dor-de-cotovelo.

    S o homem existe. Quer dizer: existir ter conscincia do prprio ser. Mas tomar conscinciada prpria existncia coisa rara. Em geral tenho espao para consumir, tenho tempo para gostardaquilo que todos gostam...

    O espanto de existir

    Aqueles que descobrem o prprio existir so tomados de uma sensao de enorme e espantosaaventura. "Eu existo!", admiram-se. Mas como entro nesta aventura filosfica? Os gregos diziam

    que ela comea a partir da admirao e do espanto.O existencialismo tambm partiu desse espanto e admirao para perceber e mergulhar naaventura do existir. bom explicar o que "existir" num sentido filosfico.O existir tem sua origem etimolgica na palavra latina "ex-sistere", que quer dizer "estar em p,fora de".Isto , poder observar o prprio ser como se estivesse fora dele.Assim, pode-se dizer que s o homem existe, porque somente ele capaz de distanciar-se de simesmo e de seus atos para examin-los, critic-los ou valoriz-los. por isto que apenas os homens batem recordes. Os animais no superam suas marcas.Exatamente porque o atleta - que aqui comparamos ao ser humano - no se contenta com o que

    consegue que ele sempre quer ir alm do que j alcanou.Quando ligamos a TV, quase sempre ouvimos que um recorde foi batido e vemos a alegria doatleta quando recebe o resultado. a humanidade que existe nele que se supera a cada xito.Esta a posio do existir: sou assim, mas posso ser mais, ou de um outro jeito.Mas meu questionar sobre mim e minha conscincia no pra por a. Vou mais longe.O meu prprio ser: por que existe?Por que, entre milhes de possibilidades de arranjos genticos que fariam nascer irms ou irmosmeus, logo eu fui ser o escolhido ao fim dessa longa cadeia de acasos?Que fora, ou que jogo de azar, levou aquele espermatozide - um entre milhes - a chegarmilsimos de segundos na frente?

    A mais nfima diferena na srie em que sou o ponto final: em vez de mim, vido de ser eu,haveria apenas outro. Quanto a mim, seria apenas o nada, como se eu estivesse morto.(Foulqui, Pierre. O existencialismo. So Paulo, Difel, 1961, p. 42)

    Cenas de violncia que presencio na rua, a perda de companheiros queridos ou a traio de umamigo me empurram a pensar no meu existir. Por qu?

    Quando me pergunto sobre meu existir, tomo conscincia dele. uma situao parecida com adaqueles momentos em que estou sozinho dentro de um elevador e me deparo com um enormeespelho. Ajeito meu cabelo, aprumo meus ombros... Eu ali, comigo mesmo, tendo de me olhar..Mais ou menos raros, ocorrem em minha vida momentos fortes - doces ou violentos - doces ou

    violentos - em que tenho de me olhar de "corpo inteiro". Busco o sentido de tudo.Penso em mim, nos meus projetos, no mundo que vai me fazendo, neste meu corpo que sou eu.Pensar importante. Mas no basta. O pensar no faz o existir. Os textos de Sartre trouxeram-me memria algumas de minhas idias de criana.

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    Morria de modo de que as coisas desaparecessem: acreditava que isto aconteceria se eu nopensasse mais nelas. Sumiria tudo do meu mundo: meus pais, minha cidade de Friburgo, minhaescola, meu Fluminense.

    No esta a viso existencialista. Meu pensar no d o ser s coisas, mas as faz existirem com

    caractersticas boas, ms, agradveis ou inteis. Eu as transformo em objetos para seremconhecidas, ou para serem motivo de agresso ou de construo. Misturando-me realidade, eumesmo passo a me reconhecer como til, agradvel, triste ou falso.

    Essncia ou existncia. O que isto?

    Aristteles, filsofo grego que viveu no sculo 4 a . C., ensinou que a essncia aquilo quedefine ou fornece as caractersticas fundamentais de um ser. Dito de outro modo, essncia oque faz com que uma coisa seja o que e no outra coisa qualquer.Da essncia no fazem parte qualidades acidentais. Por exemplo: o fato de a caneta ser azul ouverde, pequena ou grande, cara ou barata no diz respeito sua essncia.O fato de ser um instrumento usado para escrever, ser tinta e de formato adaptvel mohumana que dita a essncia da caneta.Vamos ver como isto acontece ao ser humano, segundo a corrente aristotlica e segundo oexistencialismo.Para muitos pensadores aristotlicos, o homem tem uma essncia - animal racional - que

    pertence a toda a humanidade e pode ou no ter existncia individual.J os existencialistas afirmam que a essncia humana no existe nas idias nem dadagratuitamente ao homem. A essncia humana construda por cada um de ns no prprio existir.Quando penso em minha vida, vejo que h mil direes para se seguir. medida que vouexistindo, decido-me por um caminho. Ando nele. Com meu caminhar, abro a trilha. Sou comoo trator, que faz seu caminho enquanto avana, mais do que o automvel, que s corre porestradas que foram feitas por outros.O homem um ser apenas possvel. Existo media que transformo esse possvel em real. Esta

    passagem do possvel para o real a vida. E mais que a passagem, o modo como o fao."- Que profisso seguir nesta sociedade to complicada?"Meus pais me pressionam para profisses rentveis e que dem nome e status. Vibro com arte,msica. Acho que tenho compromissos para fazer desta sociedade, louca e injusta, algo maishumano. Mas isto no d dinheiro nem aprovao dentro da "boa sociedade". Como sobreviverdignamente e ser coerente com o que eu sinto e penso?Os alunos da escola em que eu trabalho sempre trazem questes desse tipo. Provavelmente elasapareceram tambm para voc.

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    Depois de muita conversa, alguns estudos e bastante reflexo ,a gente tem chegado seguinteconcluso: mais importante do que a profisso escolhida amaneira como cada um de nsescolhe viv-la.Essa maneira aparece seja no empenho com que nos preparamos para exercer essa profisso, sejana dimenso de arte e beleza ou no contedo poltico que pretendemos dar a ela.O mundo da justia ou da verdade, da liberdade ou da democracia, quem vai construir nesta

    profisso cada um de ns. Temos o poder de escolher livremente nosso modo de serprofissional. Disto no podemos abrir mo!O que vimos que ocorre na escolha de um projeto profissional, segundo Sartre, tambm se aplica destinao de um significado para a vida toda.Mas este existir, escolhido e criado - ou a passagem do possvel realidade -, feito usando-se aliberdade. Est nas mos de cada um. seu privilgio.Isto no quer dizer que todos tenhamos uma existncia autntica s pelo fato de sermos homens.Ser autntico sempre buscar a identidade entre nossos valores e nossa atividade: fazer aquiloem que acreditamos. no processo livre de escolha, a cada dia, de nossa essncia que construmos a existnciahumana. Escolhemos a nossa essncia o procedermos escolha do personagem que pretendemosser.Essa escolha serve para ns, mas serve sobretudo para a humanidade toda. Deixamos nossamarca na histria de toda a humanidade mesmo quadro fazemos um ato bem no fundo da nossamorada interior.

    Escolho por todo o mundo

    Os existencialistas forma particularmente sensveis questo da angstia humana. Seusromances batem e rebatem nesse tema.Eles destacam que ficamos cada dia mais angustiados quando aceitamos o fato de que pertence acada um a liberdade de construir, pedra a pedra, a essncia do prprio edifcio. Toda aresponsabilidade ser minha pelo xito ou pelo fracasso desta minha cosntruo. Exclusivamenteminha.A est a angstia que sentimos por nossas vidas, tantas vezes absurdas e marcadas para a morte.As experincias vividas por Sartre durante as duas guerras mundiais, as perdas, as dores, asdestruies, as incertezas, certamente tero contribudo para a formao da sua filosofiaexplicativa

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    As conseqncias das guerra, das traies, do colaboracionismo de alguns franceses com osalemes invasores, da resistncia de mulheres e crianas, das torturas, da vitria, vo tambmfaz-lo sentir vivamente a questo da responsabilidade. Voc, eu, cada um de ns contribui paraos problemas da sociedade e para sua soluo.Voc j imaginou se cada um dos proprietrios de automveis de uma cidade grande como So

    Paulo ou Rio resolvesse, ao mesmo tempo, sair de carro? Ningum sairia. No h suficientesmetros quadrados de ruas para comportar tantos automveis.Moral da histria: os interesses individuais devem responder ao interesse do conjunto. Da queser responsvel ter de responder ao conjunto da sociedade pelas prprias aes.Essa responsabilidade no advm do fato de termos de responder a um Deus pelos nossos atos,mas de termos de responder perante a valores que ns mesmos construmos. E responder a todosos homens:

    Se o homem no , mas se faz, e se, em se fazendo, assume a responsabilidade por toda aespcie humana, se no h valor ou moral dados a priori, mas se, em cada caso, precisamosresolver sozinhos, sem ponto de apoio e, no entanto, para todos, como haveramos de no sentir

    ansiedade quando temos de agir? (Sartre, J. P. O existencialismo um humanismo. Lisboa,Presena, s/d, p. 221)

    Tal responsabilidade est apoiada na prpria escolha que o homem faz, no do seu ser, mas dasua maneira de ser. A atitude que cada um assume em face daquilo que ele contribui para a

    prpria transformao.Essa idia to poderosa que Sartre afirma que ns temos condies at de interferir em nosso

    passado. Os dias que j vivi no so imutveis, nem fixos. Posso fazer, atravs de minhaatitude, com que o passado mude de significado. Passado feliz ou triste, saudoso oumelanclico, meu "projeto" futuro que vai determinar se foi bem ou mal sucedido.

    "Tudo bom quando acaba bem", ensina o povo.O significado de cada ato meu dado por uma deciso consciente e livre, toda minha.

    Aqui Sartre combate duramente Freud (aquele que - dizem explica tudo). O Pai da Psicanlisecoloca no passado uma fora to poderosa quanto um destino. Segundo ele, nossa histria

    psicolgica anterior determina nosso presente a ponto de no podermos escapar dele: sobretudode nossos traumas de origem sexual. Sartre no concorda com Freud e diz que o ser humano

    pode reconstruir o prprio passado e dar-lhe um novo significado.

    Se sou estudante numa certa escola, sou eu que escolho como serei estudante nela. Poder seralgo intolervel, humilhante, carregado de responsabilidade, objeto de orgulho ou justificativa

    para meus fracassos. Digo-me ento: "Minha vida infeliz, ou realizada, por causa de meuspais, ou dos professores bons que no tive, ou pela frieza de meus amigos, pelo amor que me

    envolveu...".Freqentemente esqueo que eu mesmo escolhi livremente construir os amores, esquecer-me dosamigos ou curtir meus pais. Mas o mais saboroso, e quase fantstico, desta aventura humana

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    que cada um vai fazendo sua libertao ao longo deste caminhar. E no s a sua vida, mas detoda a humanidade, pois, com sua vida, est construindo sua essncia humana:

    Queremos a liberdade pela liberdade atravs de cada circunstncia em particular E,

    ao querermos a liberdade, descobrimos que ela dependeinteiramente da liberdade dosoutros e que a liberdade dos outros depende da nossa (..) (Sartre, J. P. Oexistencialismo um humanismo. Lisboa, Presena, s/d, p. 260)

    O homem um ser que no pode querer seno a sua liberdade e que reconhece tambm que nopode querer seno a liberdade dos outros.Da que ningum livre sozinho...

    O outro e minha identidade

    Quem de ns, quando criana, ou nos momentos de decepo cm este mundo cheio de loucuras,no desejou ser um nufrago, na solido de uma ilha do Pacfico, tal como Robinson Cruso?O escritor Michel Tournier d sua verso da vida solitria de Robinson sob a ticaexistencialista. Coisa bonita! O pensamento sartriano sobre o Outro aparece muito claro numtrecho do livro. Que "outro" este? aquele que se depara minha frente, diferente de mim.L pelas tantas, depois de viver muitos anos na ilha, Robinson esquece o que so os corpos dosoutros seres humanos. Corpo da mulher, em especial.

    Percebe, ento, que estava perdendo a prpria identidade. Esquecia-se de quem era. Sente nessemomento o desejo de ter relaes ntimas com um outro diferente de si, no qual possa mergulhare cujo interior possa conhecer. No outro, poderia se olhar e conhecer. Enfim, recuperar soaidentidade.O grande Outro, para Robinson, aquela ilha, a terra. Terra que veste o homem, que bebe seusangue, come sua carne, mas que tambm o alimenta.Robinson descobre a terra. Dorme com ela, amando-a sexualmente.Dessa relao com a terra, desse abrao com as rvores, nasce uma flor at ento inexistente nailha. Ao v-la, Robinson tira-a cuidadosamente da terra e v, com espanto, que suas razes tmforma de corpos humanos. Forma do seu corpo. Reconhece-se nas razes. Essa flor o ajuda aentender quem ele e o que a ilha. apenas o outro que permite o conhecimento de mim e o sentido de minha Existncia.

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    Lutando desesperadamente para encontrar sua identidade, Robinson - noconvivendo com sereshumanos - deve buscar no "outro", vegetal e telrico, uma referncia mnima, um espelho paraseu eu.

    O inferno so os outros?

    Quando vou ao cinema, vejo filas, esbarro em pessoas que compram balas, que disputam lugaresou que riem na sesso que ainda no terminou. Todas elas so objetos para mim: filas,quantidades, multido annirna que ri, massa que briga por um lugar.S eu me sinto sujeito. Eu os meo, classifico, analiso.Eu que tenho projetos, tenho conscincia. No sou uma coisa entre as coisas.J sentado, esperando a prxima sesso de cinema, de repente meu olhar encontra um olhar queme observa (porque minha meia no combina com a minha roupa? Ou porque tenho uma

    mancha na camisa? Ou porque no sou bonito como o ator daquele fume?). Nesse momento,como por mgica, esse olhar me transforma num objeto.Esse olhar me escapa. Pelo olhar, seu (sua) dono (a) se recusa a tornar-se objeto do meu olhar. como um duelo.Tomo, assim, conscincia, pelo olhar do outro, de que ele tambm conscincia. Tal o cerneda vergonha e do pudor: sinto-me olhado e considerado um objeto.Apenas minha "casca", meu corpo olhado e no o meu ser consciente, o meu universo interior. por isso que muitas meninas, mesmo que estejam vestidas dos ps ao alto do pescoo, sesentem desnudadas por um olhar que as enche de vergonha. Por outro lado, pode ser que,mesmo usando o biquni mais sumrio, a jovem se sinta perfeitamente dona de seu corpoconforme o tipo do olhar que se dirige a ela.

    O olhar do outro me rouba o mundo que era meu e rouba a minha intimidade.Olhar e amor

    Essa "objetivao!" - o fato de tentar transformar o outro em objeto - que se faz com o olhartende a ser uma caracterstica de todas as relaes efetivas.Quantas vezes voc j sentiu que sua relao mais complicada e conflituosa acontece exatamentecom quem voc mais gosta? Mas por que complicada essa relao?Voc quer amar: a d presentes, faz poesia, sonha com a outra pessoa. S que voc vai agindo e

    pensando de tal forma que aos poucos ela se toma objeto para voc.Voc quer ser amada: a vem a sua vez de querer ser acarinhada, receber atenes, ser objeto de

    atenes.A o n do conflito entre duas pessoas. Ora uma, ora outra tende a ser transformada em objeto;ao mesmo tempo, nenhuma das duas quer e pode deixar de ser sujeito.Voc j deve estar com uma pergunta na ponta da lngua: ento no existe o amor?Quase, diz Sartre.Para ele, o ato de amor uma tnue conquista, que se refaz a cada momento.De um lado, o amor uma histria de respeito liberdade do outro. De outro lado, uma buscacontnua de fazer respeitar a prpria liberdade.A relao entre pessoas que no consideram essas delicadezas leva Sartre a dizer, pela boca do

    personagem Garcin:

    Vocs se lembram o enxofre, a fogueira, as grelhas.. do inferno? Ah! que brincadeira. No h necessidade de grelhas: o inferno so os outros! (Foulqui, Pierre. Oexistencialismo. So Paulo, Difel, 1961, p. 42)

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    Contudo essa viso pessimista no representa o conjunto da obra do filsofo: foi uma fase.Sartre percebe que querer ser amado tentar assimilar a liberdade de outrem, sujeitando-a

    prpria liberdade. Mas, ao mesmo tempo, ningum quer ser amado s porque um outro lhe fezum dia uma promessa: "Amo voc porque me comprometi e no quero voltar atrs na

    minha palavra".Do mesmo modo, ningum admite ser verdadeira uma relao semelhante quela que se teriacom aquelas bonecas inflveis que aparecem no cinema. So usadas e depois vo para a caixa.Esvaziadas.

    Todos queremos tambm o risco renovado da possibilidade de no ser amado. Ns somos assim

    mesmo. Gostamos do risco e da ambigidade.Tendemos a rejeitar aquele amor que admite ser sempre um objeto passivo para ns. Por issoningum constri uma relao saudvel com aquele amor que o quer seu escravo. Alm de tudo,ficamos sempre no sobressalto de que esse amor pode tambm escapar de ns.

    No amor inevitvel esse conflito entre a tendncia de transformar o outro em objeto e a de sedeixar ser objeto. Esse conflito saudvel, pois mantm o equilbrio da relao afetiva.

    O tropicalismo chega Frana

    Numa entrevista TV, Caetano Veloso confessou que tinha dois desejos em sua infncia l emSanto Amaro da Purificao, interior da Bahia: o primeiro desejo era ser artista, pintor. O outro

    era ser pensador, "como aqueles existencialistas de Paris". Consciente ou no disso, queCaetano foi uma das mais notveis expresses do tropicalismo, espcie de existencialismo brasileira

    "Sem leno, sem documento,nada no bolso ou nas mos,eu quero seguir vivendo, amor! Eu vou!

    Por que no?Por que no?"

    (msica: "Alegria, alegria")

    Assim como um mgico que tira tudo - suas iluses, seus sonhos, sua vida - do vazio da cartola,tambm Sartre e os existencialistas partem do nada que o homem para construir tudo: a trgica,

  • 8/8/2019 7165340 Jean Paul Sartre Proibido Proibir

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    bela, derrotada, sutil e absurda existncia humana. Cada um de ns inicia essa aventura semnenhum documento, sem nenhuma certeza de onde veio ou onde vai.O nosso passado nada, no temos leno nem documento. Nosso destino desconhecido masqueremos seguir dizendo: "Eu vou! Por que no""Damo-nos conta de que h um nada em nosso interior. Esse nada o futuro. O futuro aparece

    como uma srie de aes possveis em que um Eu (que ainda no ) deve decidir comautonomia.Sartre formula seu conceito de liberdade mergulhado nesse sentimento de angstia advindo do"nada"' que nossa existncia. Torna-se apaixonado pela liberdade e vai fazer dela uma das

    bases de seu sistema filosfico. No entanto d liberdade um significado diferente do quehabitualmente se d palavra.

    1. Numa primeira e mais simples viso, uma pessoa considerada livre medida que podealcanar seus objetivos sem encontrar obstculos, ou com um mnimo de esforo. Se algumencontra dificuldades, ou lhe falta capacidade, ento no tida como livre.

    2. No sentido Poltico, a liberdade pode significar no encontrar obstculos - legais ou policiais

    - sua ao ou expresso.3. H muitos sculos, uma corrente do pensamento ocidental vem fundamentado seu conceito deliberdade em Deus.

    Ao criar o homem, Deus faz um plano para a realizao dessa criatura. Esse plano - de bondade,justia, verdade... - pode ou no ser cumprido pelo homem. Na realizao (ou no) desse planoest sua "autodeterminao'. Chama-se liberdade autodeterminao.

    Ao criar o homem, Deus faz um plano para a realizao dessa criatura. Esse plano - debondade, justia, verdade... - pode ou no ser cumprido pelo homem. Na realizao (ou no)desse plano est sua "autodeterminao". Chama-se liberdade de autodeterminao. um outro modo de v-la. Somos livres, mas para seguir um plano que nos foi dado por Deus.Sartre situou a liberdade num outro patamar.

    O homem mata Deus e se condena... a ser livre!

    O existencialismo ateu, defendido por Sartre, partir de um pressuposto radicalmente contrrioquele que situa a liberdade como um espao de "autodeterminao".

    No h mais a dependncia de um sujeito com relao a um plano divino. Deus no existe paraSartre. Este o seu fundamento:

    Com efeito, tudo permitido se Deus no existe, fica o homem, por conseguinte,abandonado, j que no encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que seapegue. Antes de mais nada, no h desculpas para ele.

    (Sartre, J. P. O existencialismo um humanismo. Lisboa, Presena, s/d, p. 226)

    H uma agravante para a solido de sua liberdade: na realizao da prpria vida (existncia)concreta, na sua histria pessoal, que o homem constri suas caractersticas, sua essncia. tambm nessa mesma histria que cada um de ns as remodela, aperfeioa, cria...

    Para nosso filsofo, a pessoa no tem nenhuma natureza humana que a revista de determinadosvalores e deva ser realizada. No nascemos com uma receita de bolo embutida em nossa

    personalidade dizendo que ingredientes a compem.

  • 8/8/2019 7165340 Jean Paul Sartre Proibido Proibir

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    Sartre diz que, se Ado existisse, no teria uma natureza j dada, com essas ou aquelascaratersticas. Se assim fosse, ele no teria nenhuma responsabilidade pelo seu ser. Nem mrito:

    Para ns, pelo contrrio, Ado no se define por uma essncia, pois a essncia , para arealidade humana, posterior existncia (...)Se, com efeito, a existncia precede a essncia, no ser nunca possvel referir uma explicaoa uma natureza humana dada e imutvel; por outras palavras, no h determinismo (...)(Sartre, J. P. O existencialismo um humanismo. Lisboa, Presena, s/d, p. 214)

    Quando se diz que o homem est sujeito a determinismos, significa que se acredita que qualquerfora, seja econmica, social, ou biolgica, obrigam de tal forma que ele nada pode escolher porsi mesmo e com liberdade.

    No fundo, os defensores do determinismo afirmam que o homem um prisioneiro de suaherana gentica e um rob das presses econmicas, que o levam a escolher a profisso, oamor, a amizade, o partido, ou uma viagem, sem nenhuma autonomia. Homens, em suas reaes,seriam pouco diferentes de cobaias de laboratrio.Sartre props e defendeu a soberania da subjetividade humana, que permite ao homem escolhera cada passo o seu caminho.O indivduo livre. Ele no apenas tem liberdade, mas liberdade.

    A inexistncia de um Deus que vive a nos indicar caminhos e valores faz com que nada fora dens legitime nosso comportamento.Ns construmos tudo: at mesmo os nossos valores, regras e imposies..

    Assim, no temos nem atrs de ns, nem diante de ns, no domnio luminoso dos valoresjustificaes ou desculpas (...) o homem est condenado a ser livre. Condenado, porque nocriou a si prprio; e no entanto livre, porque uma vez lanado ao mundo responsvel por tudoquanto fizer... (J.-P. Sartre. O Existencialismo um humanismo. Lisboa, Presena, s/d, p. 226)

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    Vamos Refletir

    1. Comente em duplas, e depois com a classe toda, a seguinte proposio de Sartre,levantando situaes concretas em que se aplique:

    "A existncia precede a essncia"

    2. O poema de Fernando Pessoa (anexo) reproduz muito bem o clima existencialista.Destaque os versos que explicitam o pensamento de Sartre,

    3. No textoA Repblica do Silncio (anexo) destaque as idias de Sartre sobre os temas:liberdade;responsabilidade;compromisso indivduo-sociedade

    4. Tambm anexos trechos de O existencialismo um humanismo, de Sartre. Discuta estestextos, levante suas concordncias e discordncias.

    5. Irmos, de Lus Fernando Verssimo (anexo), retrata bem a questo da gratuidade danossa existncia. Compare o texto com as idias de Sartre.

    Propostas de Atividade

    I. Faa entrevista sobre a idia de liberdade com trs pessoas de grupos sociais e instruodiferentes. Veja com qual das quatro definies de liberdade apresentadas neste captuloo entrevistado mais se identifica.

    2. Em grupos, fazer pesquisa com poesias e msicas contemporneas que apresentem eilustrem as idias existencialistas. As letras das msicas, por amplo, de Chico Buarque,Milton Nascimento, Ivan Lins e as poesias de Drummond,Fernando Pessoa, Ceclia Meirelles, Adelia Prado, Joo Cabral, Ferreira Gullar, entreoutros, podem oferecer amplo material.

    3. Uma boa idia pode ser a apresentao de urna seleo de dos de msicas.

    Anexos

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    Dizes-me: tu s mais alguma cousapedra ou uma planta.Dizes-me: sente, pensas e sabesQue pensas e sentes.Ento as pedras escrevem versos?

    Ento as plantas tm idias sobre o mundo?Sim: h diferena.Mas no a diferena que encontras;Porque o ter conscincia no me obriga a ter teorias sobre as cousas:S me obriga a ser consciente..Se sou mais que uma pedra ou uma planta? No sei.Sou diferente. No sei o que mais ou menos.

    Ter conscincia mais que ter cor?Pode ser e pode no ser.

    Sei que diferente apenas.Ningum pode provar que mais que s diferente.

    Se que a pedra a real, e que a plantaSei isto porque elas custem.Sei isto porque os meus sentidos mo mostram.Sei que sou real tambm.Sei isto porque os meus sentidos mo mostram.Embora com menos clareza que me mostram a pedra e a planta.

    No sei mais nada.

    Sim, escrevo versos, e a pedra no escreve versos.Sim, fao idias sobre o mundo, e a planta nenhumas.Mas que as pedras no so poetas, so pedras;E as plantas so plantas s, e no pensadores.Tanto posso dizer que sou superior a elas por isto,Como que sou inferior.Mas no digo isso: digo da pedra, " urna pedra"Digo da planta, " uma planta",Digo de mim, "sou eu"E no digo mais nada. Que mais h a dizer?

    Fernando Pessoa. Obra potica, Rio de Janeiro, Cia. Jos Aguilar Editora,1969, p. 234.

    2 A Repblica do Silncio

    J.-P. Sartre

    Nunca fomos to livres como sob a ocupao alem. Tnhamos perdido todos os direitos e, antes

    de todos os outros, o direito de falar; insultavam-nos na cara todos os dias e tnhamos de ficarcalados; deportavam-nos em massa, como judeus, como prisioneiros polticos; em toda a parte,nas paredes, nos jornais, nos cinemas, reencontrvamos o imundo e desenxabido rosto que osopressores nos apresentavam de ns mesmos; por tudo isso, ramos livres.

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    Dado que o veneno nazi se infiltrava at no nosso pensamento, cada pensamento era umaconquista; dado que uma poltica prepotente procurava reduzir-nos ao silncio, cada palavra setornava preciosa como uma declarao de princpio dado que ramos perseguidos, cada um dosnossos gestos tinha o peso dum compromisso.As circunstncias tantas vezes atrozes do nosso combate punham-nos a viver, sem fingimento

    nem vus nem vus, a situao atormentada, insuportvel, a que se chama condio humana. Oexlio, o cativeiro e principalmente a morte, que habilmente disfarada nas pocas felizes,tornavam-se os objetos perptuos das nossas preocupaes, aprendamos que no so acidentesinevitveis, nem mesmo ameaas constantes, mas exteriores: era preciso ver nisso o nossoquinho, o nosso destino, a origem profunda da nossa realidade de homens; em cada segundovivamos plenamente o sentido da pequenina frase banal: "todos os homens so mortais".E a escolha, que cada um de ns fazia de si prprio, era autntica, pois era em presena damorte, pois teria sempre podido exprimir-se sob a forma "Antes a morte do que...." E no merefiro aqui a essa elite que foram os verdadeiros resistentes mas a todos os franceses que, emtodas as horas do dia e da noite, durante quatro anos, disseram no.A prpria crueldade do inimigo levava-nos at extremos da nossa condio, obrigando-nos a

    fazer a ns prprios perguntas que so iludidas em tempos de paz: aqueles de ns - e que francsno esteve uma vez ou outra neste caso? - que conheciam alguns pormenores relativos Resistncia interrogavam-se angustiosamente: "Se me torturarem, agentarei?".Assim se punha o prprio problema da liberdade e estvamos beira do conhecimento mais

    profundo que o homem pode ter de si prprio.Porque o segredo dum homem no o seu complexo de dipo ou de inferioridade, o prpriolimite da sua liberdade, o poder da resistncia aos suplcios e morte.Aos que tiveram uma atividade clandestina, as circunstncias da luta traziam uma experincianova: no combatiam luz do dia, como soldados; perseguidos na solido, prisioneiros nasolido, era no abandono, na misria mais completa, que resistiam s torturas: ss e nus diantede carrascos bem barbeados, bem alimentados, bem vestidos, que troavam da carne miservel e

    a quem uma conscincia satisfeita e um poderio social desmesurado davam todas as aparnciasde ter razo. Contudo, no mais profundo dessa solido, eram os outros, todos os outros, todos oscamaradas de que defendiam; uma s palavra era bastante Para causar dez, cem prises. Essaresponsabilidade total na solido total no ser o prprio desvendamento da nossa liberdade?Esse abandono, essa solido e esse risco enorme eram os mesmos para todos, para os chefes e

    para os homens; para os que levavam mensagens de que desconheciam o contedo como para osque comandavam toda a Resistncia, a mesma sano: a priso, a deportao, a morte.

    No h exrcito no mundo em que se encontre tal igualdade de riscos para o soldado e ogeneralssimo.E por isso que a resistncia foi uma verdadeira democracia: tanto para o soldado como para ochefe, o mesmo perigo, a mesma responsabilidade, a mesma absoluta liberdade na disciplina.

    Assim, na sombra e no sangue, constituiu-se a mais forte das repblicas.Cada cidado sabia que tinha obrigaes para com todos e que no podia contar seno consigoprprio; ao abandono mais total, cada um deles estava ciente do seu papel histrico.Cada um deles, contra os opressores, se propunha ser ele prprio, irremediavelmente, e, aoescolher-se a si prprio na sua liberdade, escolhia a liberdade de todos.Essa Repblica sem instituies, sem exrcito, sem poltica, era preciso que cada francs aconquistasse e a afirmasse em todos os instantes contra o nazismo.Estamos agora beira duma outra Repblica: deseja-se que conserve luz do dia as austerasvirtudes da Repblica do Silncio e da Noite.

    Situaes III. Braga, Publicaes Europa-Amrica, 1971, p. 11-14

    3. O existencialismo um humanismo (trechos)

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    J.-P. Sartre

    O existencialista, pelo contrrio, pensa que muito incomodativo que Deus no exista, porquedesaparece com ele toda a possibilidade de achar valores num cu inteligvel; no pode existir jo bem a priori, visto no haver j uma conscincia infinita e perfeita para pens-lo; no est

    escrito em parte alguma que o bem existe, que preciso ser honesto, que no devemos mentir, jque precisamente estamos agora num plano em que h somente homens. Dostoivski escreveu:"Se Deus no existisse, tudo seria permitido". A se situa o ponto de partida do existencialismo.Com efeito, tudo permitido se Deus no existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, jque no encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue.Antes de mais nada, no h desculpas para ele. Se, com efeito, a existncia precede a essncia,no ser nunca possvel referir uma explicao a uma natureza humana dada e imutvel; poroutras palavras, no h determinismo, o homem livre, o homem liberdade.Se, por outro lado, Deus no existe, no encontramos diante de ns valores ou imposies quenos legitimem o comportamento. Assim no temos nem atrs de ns, nem diante de ns, nodomnio luminoso dos valores, justificaes ou desculpas. Estamos ss e sem desculpas. o que

    traduzirei dizendo que o homem est condenado a ser livre. Condenado, porque no se criou a siprprio; e no entanto livre, porque uma vez lanado ao mundo responsvel por tudo quantofizer. (...)O existencialista no pensar tambm que o homem pode encontrar auxlio num sinal dado sobrea terra, e que o h de orientar; Porque pensa que o homem decifra ele mesmo esse sinal como lheaprouver. Pensa portanto que o homem, sem qualquer apoio e sem qualquer auxlio, estcondenado a cada instante a inventar o homem. Disse Ponge num belo artigo: "O homem ofuturo do homem". perfeitamente exato. Somente, se se entende por isso que tal futuro est inscrito no cu, queDeus o v, nesse caso um erro, at porque nem isso seria um futuro. Mas se se entender porisso que, seja qual for o homem, tem um futuro virgem que o espera, ento essa frase est certa.

    Mas em tal caso o homem est desamparado.O quietismo a atitude das pessoas que dizem: os outros podem fazer aquilo eu no posso fazer.A doutrina que vos apresento justamente a oposta ao quietismo visto que ela declara: s hrealidade na ao; e vai alis mais longe, visto que acrescenta: o homem no seno o seu

    projeto, s existe na medida em que se portanto nada mais do que o conjunto dos seus atos,nada mais do que a sua vida.De acordo com isto podemos compreender por que a nossa doutrina causa horror a um certonmero de pessoas. Porque muitas vezes no tm seno uma nica de suportar a sua misria,isto , pensar "as circunstncias foram contra mim, eu muito mais do que aquilo que fui; certoque no tive um grande amor, ou uma grande amizade, mas foi porque no encontrei um homemou uma mulher que fossem dignos disso, no escrevi livros muito bons, mas foi porque no tive

    tempo livre para o fazer; no tive filhos a quem me dedicasse, mas foi porque no encontrei ohomem com quem pudesse realizar a minha vida. Permaneceram, portanto, em mim einteiramente viveis, inmeras disposies, inclinaes, possibilidades que me do um valor queda simples srie dos meus atos se no pode deduzir".Ora, na realidade, para o existencialista no h amor diferente daquele que se constri; no h

    possibilidade de amor seno a que se manifesta no amor, no h gnio seno o que se exprimenas obras de arte; o gnio de Proust a totalidade das obras de Proust; o gnio de Racine asrie das suas tragdias, e fora disso no h nada; por que atribuir a Racine a possibilidade deescrever uma nova tragdia, j que precisamente ele a no escreveu? Um homem embrenha-sena sua vida, desenha o seu retrato, e para l desse retrato no h nada.Que significa aqui o fato de a existncia preceder a essncia? Significa que o homem

    primeiramente existe, se descobre, surge no mundo, e que s depois se define.O homem, tal como o concebe o existencialista, se no definvel, porque primeiramente no nada. S depois ser alguma coisa e tal como a si prprio se fizer. Assim, no h natureza, vistoque no h Deus para a conceber.

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    O homem , no s como ele se concebe, mas como ele quer ser; como ele se concebe depois daexistncia, como ele se deseja aps este impulso para a existncia, o homem no mais do que oque ele faz de si mesmo. Tal o primeiro princpio do existencialismo. tambm a isto que chamamos subjetividade e pelo que somos censurados sob o mesmo nome.Mas que queremos dizer com isso, seno que o homem tem uma dignidade maior do que uma

    pedra ou uma mesa? Pois o que ns queremos dizer que o homem primeiro existe, ou seja, queo homem, antes de mais nada, se lana para um futuro, e que consciente de se projetar nofuturo.O homem , antes de mais nada, um projeto vivido subjetivamente, ao invs de ser um creme,qualquer coisa podre, ou uma couve-flor; nada existe anteriormente a este projeto; nada h nocu inteligvel, e o homem ser antes de tudo o que ele houver projetado ser. No o que elequiser ser. Pois o que vulgarmente entendemos por querer uma deciso consciente que, para amaior parte de ns, posterior ao que algum fez de si mesmo. Posso querer aderir a um

    partido, escrever um livro, casar-me; tudo isso no mais do que a manifestao duma escolhamais original, mais espontnea daquilo que se chama vontade.Mas se verdadeiramente a existncia precede a essncia, o homem responsvel por aquilo que

    . Assim, o primeiro esforo do existencialismo o de pr todo homem de posse do que ele eatribuir-lhe a responsabilidade total por sua existncia. E, quando dizemos que o homem responsvel por si prprio, no queremos dizer que o homem responsvel por sua estritaindividualidade, mas que responsvel por todos os homens. H dois sentidos para a palavrasubjetivismo, e com isso que jogam nossos adversrios. Subjetivismo quer dizer, de um lado,escolha do sujeito individual por si prprio; e, por outro, impossibilidade do homem em superara subjetividade humana. O segundo que o sentido profundo do existencialismo.Quando dizemos que o homem se escolhe, queremos dizer que cada um de ns se escolhe; mas,com isso, tambm queremos dizer que, ao se escolher, ele escolhe todos os homens.Com efeito, no existe um ato nosso que, ao criar o homem que desejamos ser, no crie aomesmo tempo uma imagem do homem como julgamos que deve ser.

    Escolher ser isto ou aquilo afirmar ao mesmo tempo o valor do que escolhemos, pois nuncapodemos escolher o mal; o que escolhemos sempre o bem e nada pode ser bom para ns semque o seja para todos.Se a existncia, por outro lado, precede a essncia e se quisermos existir, ao mesmo tempo emque construmos a nossa imagem, esta imagem vlida para todos e para toda a nossa poca.Assim, a nossa responsabilidade muito maior do que poderamos supor, porque ela envolve ahumanidade.

    O existencialismo um Humanismo. Lisboa, Presena, s/d/, p. 241

    4. Irmos

    Lus Fernando Verssimo

    - De vez em quando eu penso neles,- Quem?- Nos espermatozides...- De vez em quando voc pensa nos seus espermatozides?- Nos meus no. Nos do meu pai.

    - Voc est bbado.- Na noite em que eu fui concebido - suponho que tenha sido um noite - eu era um entre milhesde espermatozides, Mas s eu cheguei ao vulo de mame. Ou ser bilhes?- Acho que vulo mesmo.

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    CAPTULO 4 - EXISTENCIALISMO X MARXISMO(Do livro: " proibido proibir - Sartre", Fernando Jos de Almeida, FTD, So Paulo, 1988, p.55-65)

    "A vida no comea com o primeiro salrio

    Meu amigo Moumen, um argelino carismtico e de barba negra que trabalha com exilados emLyon no entendia por que a maioria dos franceses tanto teme os argelinos e o desemprego quecausam. Dizia no saber tambm por que, quando faltava mo-de-obra desqualificada, seuscompatriotas eram to bem-vindos. Ironia pura. Ele bem sabia que era o colonialismo que tinhafeito aquilo e continuava a fazer estragos, espalhando preconceitos e segregao.Sartre foi dos primeiros franceses, l em 1936, a combater violentamente, na prpria Frana, ocolonialismo francs.

    Ele, que tanto combatera os invasores alemes no seu pas, denunciou incansavelmente aocupao que os franceses fizeram do Vietn, da Indochina e da Arglia. Sartre esteve entre osprimeiros a exigir a imediata independncia dos povos dessas terras. Sua denncia durou quase20 anos (1945-1963), apontando o nmero de exilados, o racismo, os milhes de mortos, astorturas "praticas em nosso nome".

    Na Arglia a explorao colonial metdica e rigorosa; expulsos de suas terras,empurrados para os solos improdutivos, so obrigados a trabalhar em troca de

    salrios irrisrios, o temor do desemprego desencoraja neles a revolta... (COLOMBEL,Jeannette. Sartre. Paris, Le Livre de Poche, 1985, p. 163, tomo 1)

    Embora tenha terminado oficialmente, o colonialismo continua sendo um ciclo forte e infernal.Sartre denunciava que dois teros da humanidade passavam fome, ou seja, no comiam senomicrbios, e que estes mesmos micrbios seriam mais tarde seus carrascos. Situao inaceitvel.

    Nos quarteires pobres e nas terras pobres do planeta, as crianas morrem por falta de higieneOu por m distribuio da renda; isto um absurdo e no se pode apontar um Deus surdo e cegocomo causa desses males, mas deve-se, diz Sartre, acusar os homens e as condies sociais.Suas posies de filsofo-poltico o levaram tambm a ter uma espcie de compromisso e paixo

    pela classe operria. Escreveu sempre pensando nela. Escolheu-a como destinatria de seusromances e peas de teatro. O importante era denunciar os abusos, a podrido, a crise, da classe

    burguesa, causando-lhe irritao e inquietude. Ele define seu alinhamento ao lado dos operriosdizendo que "no estamos mais com aqueles que querem possuir o mundo, mas com aqueles que

    o querem transformar".Mas essa paixo no fazia dele um operrio. Continuava um burgus nascido em Paris, quefreqentou os melhores colgios, comendo, bebendo em bares sofisticados e vivendo como um

    burgus.A nica sada que encontrou para ser coerente foi a dedicao causa operaria atravs de seucompromisso como escritor. Sua literatura vai ser vista como forma de elevar-se acima dasclasses, fora da histria, para denunciar assim as injustias sociais e poder criticar at asorganizaes poltico-sociais dos prprios operrios. Funcionrio da humanidade, o empenhointelectual de Sartre vai poder ser uma atividade pedaggica superando a prpria poltica degrupos. Assim ele fala da sua funo como escritor:

    Demiurgo destitudo de interesses prticos imediatos, o escritor deve dirigir-se comunidade inteira, deve revelar ao pblico as suas prprias necessidades, deveeducar e congregar em conjunto burgueses de boa vontade, intelectuais, operrios

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    no comunistas. (SARTRE, J.-P. "Quest-ce que la litterature?", in Situations II, pp.257 e 292)

    Violncia como libertao

    A conclamao feita por Sartre aos oprimidos no se restringia a uma denncia terica oupotica. s vezes ela se revestia com a marca da violncia. Falando da libertao da Arglia, eledefendeu empenhadamente a luta armada... dos argelinos! A luta elevava a milhes os mortosdo lado argelino e a dezenas de milhares os franceses, o que o obrigou a defender o valor daviolncia, se ela libertadora:

    As marcas da violncia, nenhuma doura as apagar: apenas a violncia que pode destru-las. E o colonizado se cura da neurose colonialista caando o colonizador pelas armas. Quandoum campons toma um fuzil, os velhos mitos empalidecem, as proibies uma a uma setransformam: a arma de um combatente sua humanidade. Porque neste primeiro momento darevolta preciso matar: abater um europeu dar dois golpes com uma s6 pedra, suprimir ao

    mo tempo um opressor e un oprimido. Resulta um homem morto e um homem livre: o sobrevivente, pela primeira vez, sente um solo nacional sob a planta de seus ps.(COLOMBEL, Jeannete. Sartre. Paris, Le Livre de Poche, 1985, p. 163, tomo 1)

    Como este pensador to vibrante se coloca perante o pensamento marxista?

    O marxismo, pois, permanece a filosofa do nosso tempo: insupervel porque as circunstnciasque o engendraram no foram ainda superadas. Nossos pensamentos, quaisquer que sejam, no

    podem se formar seno sobre este humo... (Os pensadores. So Paulo, Abril, 1973, fascculo 68,p. 887)

    Ele revela que leu Marx na universidade aos 20 anos, tendo seu primeiro contato com os livrosO capital e A ideologia alem:

    Eu compreendia tudo luminosamente e no compreendia absolutamente nada. Compreender modificar-se, ir alm de si mesmo: esta leitura no me modificava. Mas o que comeava a metransformar, em contrapartida, era a realidade do marxismo, a grave presena, em meuhorizonte, das massas operrias, corpo enorme e sombrio que viva o marxismo, que o praticavae que exercia distncia uma irresistvel atrao sobre os intelectuais pequeno-burgueses. (Os

    pensadores. So Paulo, Abril, 1973, fascculo 68, p. 887)

    A partir da, um conhecimento mais maduro da filosofia de Marx levou-o a afirmar que estava

    convencido de que o materialismo histrico, defendido por Marx, "fornecia a nica interpretaovlida da histria e de que o existencialismo permanecia a nica abordagem concreta darealidade".Mas Sartre se desencantou com o marxismo. No pela sua teoria mas pela dificuldade de setomar uma prtica poltica coerente, devido dificuldade de o marxismo ser traduzido em ao.Sartre e muitos existencialistas apoiaram durante os primeiros anos que se sucederam 2Guerra as posies polticas da URSS. Puseram nos Partidos Comunistas as grandes esperanasde transformao da sociedade europia.A segunda interveno sovitica na Hungria em 1956 e a existncia de campos de concentraona URSS desencadearam em Sartre, as primeiras crticas aos modelos sociais que se apoiaram nateoria marxista. Sua histria de aproximaes e afastamentos frente ao Partido Comunista e ao

    marxismo foi uma marca de toda sua vida.Os marxistas querem distncia dele

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    A primeira rejeio foi feita pelos prprios marxistas que atriburam a Jean-Paul Sartre umafilosofia que expressa a ideologia burguesa decadente.Para marxistas, O existencialismo representava a sociedade burguesa que, privada de seus

    privilgios, destronada, sem futuro, sem justificativa, declara absurdos o mundo e a vida.Este drama da nusea, do nada e do absurdo so frescuras daqueles que "vivem do trabalho

    alheio. Quem no vive de rendas, quem acorda de madrugada, luta para educar seus filhos ecome de marmita tempo de sentir tal nusea existencial diziam os crticos de Sartre.A grande crtica dos marxistas ao pensamento sartriano est no seu modo de dar importncia aoato livre do sujeito; subjetividade que o permite agir, passando por cima das determinaes doeconmico e do material."Para um marxista a liberdade uma possibilidade de ao e eficcia. Tudo tem de setransformar em ao para a mudana da sociedade.Portanto o ideal comum do Partido mais importante que as idias pessoais, talvez merasdivagaes.Por outro lado, a liberdade individual to fundamental para o existencialismo que Sartre chegaa dizer que pouco importa fazer isto ou aquilo, tomar uma bebedeira sozinho ou ser lder de um

    povo: o principal agir com liberdade.O indivduo no pode perder o espao de sua realizao mxima em nome de nenhuma causa oubandeira poltica.O que fez os tericos marxistas terem tanta averso ao pensamento de Sartre e de seusseguidores foi a paixo existencialista pela liberdade individual e sua mstica da derrota. Elescurtem o absurdo, o nada, o vazio.Se, por um lado, o culto ao subjetivismo (liberdade individual como alicerce central do projetohumano) motivou o rompimento do marxismo com o existencialismo, por outro a consideraocontnua da possibilidade do revs e da derrota tomou definitivo esse rompimento.O marxismo precisa crer na mstica do xito do proletariado e no triunfo das foras progressistasna histria. A nusea, o absurdo, o nada no levam os partidos, as massas e o indivduo a lugar

    nenhum.Embora Sartre exaltasse o marxismo como a mxima teoria explicativa da histria e como afilosofia do nosso tempo, ele apontava para erros fundamentais, seja no seu modo de ver aquesto do indivduo, seja na reduo do esprito a matria, ou ainda pelo fato de ter negadoDeus e a metafsica de um modo superficial e ter apostado apenas na determinao dos motivoseconmicos, eliminando toda a subjetividade. Seus posicionamentos sobre o marxismooscilaram entre a simpatia, a defesa e a aliana, passando em seguida a disputas, discordnciasataques. Se marcarmos no calendrio o ciclo dessas alteraes veremos que as

    brigas/reconciliaes variam de 6 em 6 anos! Curiosa coincidncia!

    Integrar as tenses

    O que fica mais claro em todo este debate a contnua tentativa de Sartre de integrar os doissistemas. Ele tentou interpretar o marxismo segundo a tica existencial. A economia poltica, aluta de classes e as complexas anlises de estruturas de Marx passaram a ser consideradas temassecundrios. Sartre buscou em Marx o tema da filosofia do homem, mas inserindo novosconceitos como o de "situao" e de "superao",para que o marxismo ganhasse estatuto deFilosofia. O que Sartre fez foi recuperar as categorias que j havia desenvolvido em O ser e onada, apenas acrescentando a noo de situao e superao. Vejamos seu texto:

    O homem define-se com base no seu projeto. Este ser material supera continuamente acondio que se encontra j feita, revela e determina sua prpria situao, transcendendo-a

    para se objetar atravs do trabalho, da ao ou do gesto.. Esta relao imediata para alm doselementos dados e constitudos, com outro que no ns mesmos, esta perene produo de n6smesmos atravs do trabalho e da prxis a nossa estrutura prpria: nada mais do que umavontade, no uma necessidade ou uma paixo, mas as nossas necessidades taiscomo nossas

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    paixes,ou tal como o mais abstrato dos nossos pensamentos, participam da mesma estrutura:encontram-se sempre fora de si em direo a ... a isto que ns chamamos existncia e queentendemos, de fato, no como uma substncia estvel que repouse sobre si mesma, mas comoum permanente desequilibro uma auto-erradicao de todo o corpo. Como esta tendncia paraa objetivao assume formas diversas conforme os indivduos, e como nos projeta atravs de um

    campo de possibilidades, das quais realizamos umas mais do que as outras, designamo-la porescolha ou liberdade. (Os pensadores. So Paulo, Abril, 1973, fascculo 68, p. 887)

    Esta sntese dos princpios antropolgicos de Sartre no encaminha seu pensar na direo domarxismo. Antes uma retomada insistente e talvez disfarada do existencialismo.Vale aqui esclarecer os dois conceitos de "situao" e "superao" que so inovaes do seu

    pensamento e representam mais uma tentativa para aproxim-lo do marxismo.A situao limita a vida do indivduo e nada mais que a sociedade e suas normas. O homemfreqentemente dominado pela rotina nem a percebe, apenas a suporta.Pelo carter de sersituado, posso entender o homem como algum que no escolhe seus pais,nem seu tempo, nem sua altura, nem sua ptria. Porm, pelo seu carter de transcendente s

    circunstncias concretas da vida, ele pode super-las. Pela sua transcendncia ou por suacapacidade de superao, ele pode "ir alm"...Assim, no escolhi meus pais (e de certa forma nem eles a mim), mas posso decidir sobre minhaforma de relao com eles: afetiva, sincera, autoritria, omissa, descartvel...Se minha ptria marcada pela corrupo, pela poltica da pobreza produzida, ou pelodesencanto, pelo meu projeto posso executar uma prtica de vida individual (e mesmo social)que aponte Para outra direo. Isto a superao, mesmo que eu no a realize integralmente.A concluso que tiro de tantas lutas, tantos conflitos, tanta participao e at tanta ambigidade, que Jean-Paul Sartre foi um homem de nossa poca, Profundamente conhecedor de nossosdescaminhos e de nossa vontade de buscar o sentido de tudo: a existncia!

    Vamos Refletir1. Em que pontos Sartre e os marxistas tm suas principais: o semelhanas? discordncias?

    2. Comente a frase de Sartre:

    O marxismo estacionou: precisamente porque esta filosofia quer transformar omundo, porque visa tornar-se mundo da filosofia, porque e quer ser prtica,operou-se nela verdadeira ciso que jogou a teoria de um lado e a prxis dooutro.

    3. Anexo, voc tem um exemplo das idias polticas de Sartre, na ltima entrevista que deuantes de morrer. Levante suas concordncias e discordncias com o testo.

    4. Em que situaes atuais (poltica, literatura) est presente a disputa levada a efeito porSartre e pelos marxistas?

    Propostas de Atividade

    1. Pesquise uma pea de teatro, um filme, livro ou novela de TV em que apaream algunstemas que foram preocupao de Sartre.

    2. Em grupos, montar atividades-sntese (jornais, teatro, vdeos etc) sobre o pensamento deSartre.

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    Anexo

    Nosso planeta habitado hoje pelos pobres, de um lado - os extremamente pobres, que morremde fome - e uma pequena poro de ricos, do outro - ricos que comeam a se tornar menos ricos,

    mas que, ainda assim, ainda vivem muitssimo bem.Com essa terceira guerra mundial que pode estourara qualquer dia desses, comesse conjuntomiservel que o nosso planeta, o desespero recomea a me tentar: a idia que no acabaremos

    jamais com isso, que h finalidade, mas apenas pequenos fins pelos quais combatemos...Fazemos pequenas revolues, mas no existe um fim humano, no h algo que interesse aohomem, s h desordem.Pode-se chegar a pensar assim. uma idia que volta a nos tentar incessantemente, sobretudo quando j estamos velhos

    podemos pensar: "Pois , em cinco anos, no mximo, estarei morto". Na verdade penso dez, maspodero ser cinco. Em todo o caso, o mundo parece feio, mau e sem esperana. Esse seria odesespero de um velho que j morreu por dentro. Mas eu resisto, e sei que morrerei na

    esperana, dentro da esperana - mas essa esperana, teremos de fund-la. preciso tentar explicar por que que o mundo de agora, que horrvel, no passa de ummomento no longo desenvolvimento histrico, e que a esperana sempre foi uma das forasdominantes das revolues e das insurreies - e como sinto, ainda, a esperana como minhaconcepo do futuro.

    (O testamento de Sartre. Porto alegre, L&PM Editores, 1986, p. 63)

    Captulo 5 - voc tambm pode fazer

    A seguir, voc vai se deparar com trs textos que so verdadeiros desafios sua criatividade. Primeiro, um sonho. Ele concentra as idias e o clima - psicolgico e filosfico - doexistencialismo.

    Em seguida, so apresentadas duas reflexes de autores atuais que manifestam a presena, nasensibilidade moderna, dos temas e do clima existencialista.

    Leia estas pginas coma teno, procurando situar-se no ambiente. A seguir, com as idias quelhe ocorrerem e com as intuies suscitadas, monte uma pea, faa uma msica, escreva umaredao, faa cartazes, onde voc d seu "toque", sua interpretao da temtica sartriana

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    Um sonho

    Fernando Jos de Almeida

    No tenho certeza se a vida um sonho ou se outra coisa diferente. H noites (ou sero dias?)em que ele aparece clarssimo para mim. manh brilhante e cheia de silncio. Abro os olhos. Estranho. Sinto tudo balanar. o rudocadenciado de ondas do mar me revela que estou dentro de um navio, no camarote de umadaquelas naus do sculo XVIII, que povoam os filmes de corsrios, piratas e mocinhas derodados vestidos. Invade-rne a sensao de retorno: a sculos passados, minha adolescncia, ou minha origem mais ntima.Subo para o convs. Sou cercado por um imenso silncio, maior que o barulho calmo das ondasque batem a bombordo, muito maior que o ranger das cordas, das amarras e do que o panejar dasvelas.

    O silncio, sinto-o, parte de dentro de mim. Nada escuto a no ser o pulsar de minha solido.Estou irremediavelmente ali, diante de um mundo que nada tem a ver comigo. Nada me familiar, nem o mar com sua majestade quase aterrorizante, nem este navio com suas amarras,cordoalhas, velas, mastros. Nem a falta de horizontes.,,Recupero-me do susto. Esfrego os olhos: no h terra e nada vejo em qualquer dos lados. Estaespcie de gelatina verde sobre a qual me situo, sinto-a como prolongamento de meus msculos,ainda moles de sono. So de gelatina os meus pensamentos,Sbito, deparo-me com urna tarefa urgente. o meu barco: nele vou traar meu destino. Comele vou conquistar meu porto. Com ele vou saborear cada gota do meu viver.Sinto-me febril. Corro at a proa, pego no leme, subo at o topo do mastro, confiro a ncora,invado pores e paiis. Nada daquilo eu escolhi, nem seus apetrechos, nem seu porte, nem a cor

    do seu oceano, nem a profisso que de agora em diante ser a minha. Sei apenas que tomar possedaquilo tudo e dar-lhe um rumo se impe como uma tarefa s minha. Insubstituvel.Angustiante. Sinto medo? No sei. Acho que um sentimento doloroso e nobre ao mesmotempo. De agora em diante, tudo vai depender s de mim.O timo gira desgovernadamente direita e esquerda. Procuro em toda parte. Onde haveralgum mapa ou roteiro que me indique rumos? Mas intil.Acima de mim o cu de um sol que nasce manso e invejoso. Pra onde ir? Busco portos demercadores, baas de bom abrigo, enseadas de praias longes e repletas de coqueiros semprecheirando a trpicos? No h regras. Nem mesmo jogos. Tudo precisa ser definido.As coisas se aceleram. Crio portos que nunca vi. Pinto baas com cores imaginrias, guasverdes e riquezas prateadas e esmeraldas. Velocidade, rumo, pausas, riscos: eu os escolho. Ah!

    As emoes desta viagem! Sero elas intolerveis! Humilhantes? Assombrosas? Objetos deorgulho? Tristes? Emocionantes? Ou amveis?Isto tudo eu que escolho. Eu Prprio me defino, enquanto vou escolhendo