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ISSN 1516-9162 REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE N° 25 Outubro 2003 VARIANTES DA CURA

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ISSN 1516-9162

REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREN° 25 – Outubro– 2003

VARIANTES DA CURA

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REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE / Associação Psicanalítica de Porto Alegre. - n° 25, 2003. - Porto Alegre: APPOA, 1995, ----.Absorveu: Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.

Semestral

ISSN 1516-9162

1. Psicanálise - Periódicos. | Associação Psicanalítica de Porto Alegre

CDU: 159.964.2(05) 616.89.072.87(05)CDU: 616.891.7

Bibliotecária Responsável: Ivone Terezinha Eugênio CRB 10/1108

REVISTA DA ASSOCIAÇÃOPSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE

EXPEDIENTEPublicação Interna

Ano X - Número 25 - Outubro de 2003

Título deste número:VARIANTES DA CURA

Editores responsáveis:Lúcia Mees e Valéria Rilho

Comissão Editorial:Beatriz Kauri dos Reis, Inajara Erthal Amaral, Lúcia Alves Mees, Marieta Rodrigues,

Otávio Augusto W. Nunes, Valéria Machado Rilho e Siloé Rey

Colaboradores deste número:Adão Luiz Lopes da Costa, Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack,

Maria Rosane Pereira Pinto e Marta Pedó

Revisão de português:Noili Demamam

Capa:Cristiane Löff

Linha Editorial:A Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre é uma publicação semestral da APPOAque tem por objetivo a inserção, circulação e debate de produções na área da psicanálise. Con-tém estudos teóricos, contribuições clínicas, revisões críticas, crônicas e entrevistas reunidas emedições temáticas e agrupadas em quatro seções distintas: textos, história, entrevista e varia-ções.

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICADE PORTO ALEGRE

Rua Faria Santos, 258 Bairro: Petrópolis 90670-150 – Porto Alegre / RSFone: (51) 3333.2140 – Fax: (51) 3333.7922

E-mail: [email protected]: www.appoa.com.br

ISSN 1516-9162

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SUMÁRIO

EDITORIAL............................07

TEXTOSO sentido da vida ........................ 09The Meaning of LifeEda Tavares

Reflexões sobre a psicanálise comcrianças na contemporaneidade..........18Reflections on Child Psychoanalysis NowadaysAna Marta Meira

Psicanálise de crianças na instituiçãopública: direção da cura ou direção dopaciente? .................................. 28Child�s Psychoanalysis in the Public Institution:

Direction of the Treatment or Direction of the PacientIeda Prates da Silva

Clínica das psicoses:armadura simbólica ..................... 40The Direction of the Treatment in the PsychosisClinic � Symbolic ArmorMaria Ângela Bulhões

Observações sobre a direçãodo tratamento em um casode esquizofrenia ......................... 48Remarks on the Direction of the Treatment in a

Case of SchizophreniaNilson Sibemberg

O nome próprio e sua invenção ..... 54The Proper Name and its InventionMario Fleig

O corpo e a direção da cura .......... 63The Body and the Direction of the TreatmentLuciane Loss Jardim eAdão Luis Lopes da Costa

A histeria e o ressentimento .......... 69The Hysteria and the ResentfulnessMaria Rita Kehl

A direção da transmissão em psicanálise� passes e impasses na formação doanalista ..................................... 76The Direction of the Transmission � Passes andImpasses in the Psychoanalytical TrainingJaime Betts

RECORDAR, REPETIR,ELABORAR

Elasticidade da técnica psicanalítica(1928).................................................95The Elasticity of Psychoanalytical TechniqueSàndor Ferenczi

ENTREVISTAConversa com colegasde Bonneuil ............................... 107A Dialogue with Peers from Bonneiul

Marie José Lérès e Carole Dubus

VARIAÇÕESEscrita da clínica e transmissãoda psicanálise ............................ 119Clinical Writing and Psychoanalysis TransmissionSimone Moschen Rickes

Escre-pintando a clínica ............... 135Scripainting the ClinicLuciana Loureiro

Para uma interlocução(a propósito da castração) ............ 142Towards a Dialogue (Concerning Castration)Ricardo Goldenberg

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EDITORIAL

Oque se espera de uma análise, afinal? Em tempos tão científicos – nempor isso menos religiosos – a crítica a um ideal de cura feita por Lacan

em 1966, no texto Variantes do tratamento-padrão, mantém mais do que nun-ca todo seu vigor: uma análise é terapêutica?

Conduzir uma análise orientada por um padrão curativo é submeter oanalisante a um analista ideal, mestre que sabe sobre o gozo. Nesse sentido,não é mera coincidência que, numa época de vertiginoso avanço da Ciência,possamos contar aliviadamente com o especialista certo para a doença certa.Para cada parte do corpo que insiste em dar sinais de fracasso, dispomos docorrespondente corpus médico especializado. Caberia perguntar: fracassode quem?

A alusão à diversidade que a palavra variantes evoca ironicamente jogacom o equívoco neurótico de ali, onde não há senão um saber inerente à lin-guagem – reconhecido como o inconsciente pelos psicanalistas – corporificarum mestre do gozo através do oferecimento sintomático ao pai ou especialista.

Certamente não é à toa que serão justamente as clínicas que fogem aomodelo neurótico aquelas que mais vivamente interrogam o ideal de cura deuma análise. Isso pode ser vislumbrado quando vemos questionada apertinência e o “sucesso” da psicanálise na clínica com crianças, compsicóticos, com toxicômanos, com deprimidos, entre outros. Ou, então, quan-do o acento, ao invés de recair sobre o quadro sintomático, detém-se sobre olugar onde a prática psicanalítica é exercida, como nas instituições, por exem-plo. O que as especificidades clínicas dão a ver, mais abertamente que a

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EDITORIAL

clínica da neurose, é algo comum a toda e qualquer uma: toda análise é sem-pre específica, porque feita uma a uma. Para um analista, é sempre umaoutra, por mais experiência e formação teórica que ele possua.

A esse propósito, lembramos que Freud nunca deixou de ressalvar, acada novo caso clínico apresentado, que as elucidações elaboradas a partirdesse serviram apenas para orientar essa análise em particular e não poderi-am ser aplicadas nem estendidas a outras em geral. O que, a bem dizer, nãoo impedia de avançar na construção do corpo teórico da Psicanálise partindoda escuta do um a um.

Isso permite concluir que a clínica é diversa, mas sempre pautada poruma e mesma ética, a do desejo. Ética, essa, que, na condução de uma cura,principia pelo desejo do analista, despido de seu saber e de seu afã em sarar,para ser desejo de nada: abertura para a escuta do desejo do analisante,desejo intransitivo, porém decisivo para o “destino” que se traçará. A bússolada capa, assim, não poderia indicar uma orientação fixada de antemão, e simapontar para a direção que se delineia a partir da ética da Psicanálise, neces-sariamente singular.

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TEXTOSTEXTOS

RESUMOA posição do fantasma na infância não é a mesma daquela na vida adulta.Disto decorre que exista uma especificidade da clínica com crianças. O pre-sente artigo pretende abordar algumas destas especificidades na direção dacura do tratamento de crianças.PALAVRAS-CHAVE: sintoma; transferência; interpretação; filiação; sentido

THE MEANING OF LIFEABSTRACT

The position of the fantasy in childhood is not the same as the same as theone in the adult’s life.From that follows a specifidity in the clinic with children.This article intends to appoach some of these specificities in the direction ofthe treatment of children.KEYWORDS: symptom; transference; interpretation; filiation; sense

O SENTIDO DA VIDA

Eda Estevanell Tavares*

* Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, especialista em PsicologiaClínica. E-mail: [email protected]

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Otratamento psicanalítico com crianças desde seu início vem carregadode questionamentos e controvérsias.

O primeiro caso de psicanálise de uma criança foi o do pequeno Hans.Sua análise foi conduzida em conjunto pelo pai do menino e Freud, situaçãoesta já das mais inusitadas. Freud que via com cautela as intervenções comcrianças, considerou a de Hans possível justamente por esta conjunção pai/analista; e respirou aliviado quando mais tarde encontrou o jovem Hans, en-tão com 19 anos, saudável e normal, contrariando os vaticínios da comunida-de analítica da época.

A conjunção pai/analista trazia à tona um dos impasses que se coloca-va na análise de crianças. Justamente, a relação primordial de uma criançacom seus pais – na medida em que ela é fundante do sujeito – colocavaproblemas como a possibilidade de uma criança entrar em transferência comseu analista e o que poderia vir a privilegiar a relação com este, se a relaçãofundamental do filho gira ao redor dos pais. Seria legítimo o analista ocupar olugar privilegiado de destinatário de sua neurose? Por outro lado, a dificulda-de da criança de sustentar o tratamento através da palavra e da associaçãolivre colocava novos impasses sobre a técnica (utilizar ou não brinquedos,desenhos, massa de modelar). Estas questões determinaram uma celeumainfindável entre Anna Freud e Melanie Klein e uma vasta produção teóricatentando dar conta de posições que permaneceram opostas até o fim.

O que todas estas controvérsias conseguiram colocar em evidência, éque, se na psicanálise se trata do sujeito do inconsciente, a posição que ocu-pa o inconsciente não é a mesma na infância e na vida adulta. Freud [1908(1980)] mesmo colocou a questão da debilidade do recalque na infância quan-do, na consideração sobre os sonhos infantis, demonstrou o quanto estes sãomais explícitos do que os dos adultos no que se refere aos conteúdos incons-cientes.

A direção da cura na análise de crianças – como vemos – abre umasérie de questões que constituem a especificidade da psicanálise de crian-ças, uma vez que no sujeito do inconsciente na infância, apesar de ser umsujeito dividido como o adulto, a posição do fantasma não é a mesma. Propomo-nos, então, abordar entre estas questões algumas que consideramos cruciais.

Falar de cura implica falar de sintoma. Mas no caso da infância se tratade um sintoma do qual quem se queixa, em geral, não é quem o padece: sãoos pais quem se queixam, enquanto a criança padece e é arrastada até oanalista. Que sintoma é esse? De quem é? Quem precisa ser tratado?

Para Lacan, “o sintoma da criança não é mais do que o representantede três verdades: a verdade do casal parental, a verdade do fantasma da mãe

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e aquela de seu desejo quando seu filho encarna o objeto” (1997). Assimconcebido o sintoma da criança, poderia ser equivalente, como adverte AlfredoJerusalinsky (1997), à substituição da análise do filho pela análise dos pais.O inconsciente do filho seria apenas uma extensão das fantasias parentais.Por este viés deslizaram em certo momento analistas do calibre de MaudMannoni, como se pode perceber em seu livro A primeira entrevista em psica-nálise (1981). Mas, retomando Jerusalinsky, por que uma criança fica constran-gida a responder de modo tão imperativo à demanda parental? A razão de talconstrangimento reside em que o saber sobre o mundo provem desse OutroPrimordial, verdadeiro “instalador” das marcas iniciais que orientarão os pri-meiros passos da criança. Esse pivô tem um preço: responder à demandados pais. É essa resposta a única moeda com que a criança pode negociar eao mesmo tempo garantir a continuidade desse saber. Mas, ao mesmo tem-po, do outro lado, os pais formatam esse saber de acordo com seu narcisismo.Assim a sexuação, as identificações e a filiação da criança devem responderàquilo que o desejo dos pais define como ideal do eu. É evidente que nessasformações inconscientes todas as falhas de destino dos pais virão a figurarpelo avesso, ou seja, de forma denegada. Essa denegação no fantasma é oque prepara o terreno do sintoma da criança, na medida em que os pais lhedemandam que ofereça provas já, no presente imediato, de sua condiçãopara responder a esses ideais.

A bagagem com a qual a criança conta para responder a tal urgênciade oferecer prova hoje de sua posição na sexuação, ser homem ou mulherquando ainda não pode sustentar em ato tais identidades, se restringe, pelasua pequena constelação de significantes, àqueles que lhe são oferecidospelos representantes privilegiados do Outro em sua vida: seus pais. Enquan-to na filiação a criança depende das inscrições prévias para encontrar o valorsimbólico de seus atos, as identificações – formas de se representar no dis-curso – derivam inevitavelmente dos traços oferecidos nas relações primári-as. Porém, tal nível de determinação antecipada tropeça na incerteza dosmesmos pais, que demandam, paradoxalmente, algo novo no filho. Tem asua lógica: se não houver algo novo nele, a repetição do fracasso será inevi-tável. Tal a origem do desejo e a curiosidade pelo desconhecido que caracte-riza a criança que produz o sinthome com o qual escapa da repetição dofantasma parental.

Mas quando a criança tem que responder ao ideal parental hoje, ouseja, se ela não for transicional para os pais, responderá com o real da ima-gem ao que falta no real, fará um symptôme, não um sinthome (Jerusalinsky,1997). Se a demanda dos pais pede que a criança responda com seu corpo

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ao ideal, o Nome-do-Pai não pode ser metaforizado e, portanto, não poderáproduzir na cadeia significante da criança um novo sentido que possa vir arepresentá-la no discurso social. Há uma precipitação do significante em umúnico sentido, e se interrompe o deslizamento de sentido (sua extensão) nacadeia significante.

A partir do nome-do-pai, a pequena criança será marcada com o pontode partida, no qual o sujeito fundará sua identidade. Esse outro que sustentao Nome-do Pai não é um outro qualquer, não é o outro do cuidado corporal,do aconchego, ou o que oferece o objeto da satisfação; é o Outro do discursosocial e que situa o sujeito na cadeia significante que caracteriza essa cultura.É por isso que constitui um problema fundamental para todo sujeito como serepresentar no discurso.

Se a criança faz seu sintoma, a análise dos pais não equivale à análiseda criança, mas o papel dos pais não é irrelevante, como considerava MelanieKlein. Para ela, os pais só eram consultados para informar como na famíliaeram denominados os órgãos genitais, o que, paradoxalmente, mostra o quantoé a constelação significante familiar que norteia uma criança. Martine Lerude,em seu artigo Pela felicidade das crianças ou como a terapia de criançaspode algumas vezes permitir o crescimento dos pais (1993), trabalha justa-mente esta questão e demonstra o quanto a análise do filho pode ajudar ospais, assim como a análise dos pais pode ajudar seu filho, na medida em quesão para ele os representantes do Outro.

Por outro lado, se a constelação significante da qual se serve uma cri-ança pequena vem de seus pais, enquanto representantes do Outro, como,então, uma análise com uma criança que ainda não fala, ou fala muito pouco,pode se sustentar sem a participação dos pais?

Aquilo que definirá a participação ou não dos pais no tratamento de seufilho não pode ser uma regra pré-definida. Dependerá de que posição, comorepresentantes do Outro, eles sustentam na relação com seu filho: se colo-cam em cena um Outro inconsistente, tirânico, indiferente ou invasor(Jerusalinsky, 1997). O analista tem que ter claro quem é este Outro queparticipará do tratamento da criança e não apenas estas figuras de carne eosso chamadas de pais. É a partir disto que definirá a participação ou nãodeles no tratamento.

A criança, pela necessidade de se sustentar de um saber que vem deOutro, coloca todo adulto numa posição de suposto saber. Assim, a criançaestá em transferência desde sempre e muito antes de chegar ao consultóriodo analista. Erik Porge (1998) sublinha que as neuroses da criança são neu-roses de transferência. O papel do adulto, desde sua encarnação do Outro, é

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permitir que a transferência da criança possa vir a se enlaçar no discursosocial. Erik Porge (1998) define a falha no cumprimento deste papel comouma ruptura na transmissão do saber. Diz ele: “A perturbação na criança vemmanifestar um ponto de ruptura naquilo que, de um saber familiar, por causade seu poder “captador”, não é mais transmissível ao grupo social. Não émais transmissível à maneira de um chiste, ou seja, daquilo que ultrapassa abarreira de uma relação dual para se produzir em um lugar terceiro” (1998,p.12). A neurose da criança eclode quando aquele que está incumbido defazer passar socialmente a mensagem familiar claudica em sua função desujeito suposto fazer passar. Assim, seguindo o autor, podemos concluir queo papel dos pais é de serem “bons passadores”1 deixando que a mensagemde seu filho encontre um endereçamento no social.

Quando se rompe a transferência da criança com o Outro do discursosocial, quando os pais não puderam ser passadores dela, é que se justificauma análise com uma criança. E o papel do analista será o de re-estabeleceresta transferência que se apresenta paralisada no sintoma. Dar conta de taltransferência, coloca o analista em seu afazer, a interpretar o que ali fez obs-táculo, permitindo “destrancar” a série significante do pequeno sujeito paraque esta possa vir a conduzi-lo a encontrar um modo de se representar nodiscurso. É por isso que o grau de polivalência semântica de que uma criançapode se utilizar e o grau de extensão simbólica de sua constelação designificantes, são sinais de que a análise com uma criança pode estar che-gando ao seu final.

“Para existir, isto é, para sair do caos e se desvencilhar desse Outroque a enleia nas redes de seu desejo, ela (a criança) tem que compreender,ou seja encontrar a ordem do mundo e o caminho de seu próprio desejo”(Cordié, 1996, p.131). Essa “ordem do mundo” implica um significado, umsentido – na dupla acepção de compreensão e direcionamento – do qual acriança precisa se apropriar e, em certa medida, inventar. É isso o que elatenta no seu brincar: criar sentidos novos partindo dos significantes que lheforam oferecidos. Mas quando se trata de uma criança com problemas, segu-ramente, o Outro que está ali personificado – sejam os pais, os professores,os personagens próximos ao seu drama familiar – o está de modo a fazerobstáculo. A criança já tropeça, pela condição infantil do sujeito, com a curtaextensão de sua cadeia significante, o que lhe causa dificuldades para essa

1 Erik Porge refere como passar a transferência para os bastidores e de ser um bom entendedor.

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necessária produção de novos sentidos. Se, ainda por cima, o analista no seuafazer colocar o apagamento de todo o significado, como no caso da análisede adultos, poderá confrontar a criança com a angústia de um vazio semsaída.

Para uma criança, o que está em questão na sua estruturação subjeti-va é a constituição de seu sinthome e de seu fantasma. Esvaziar o significantede todo significado, se, por um lado, lhe permite que se desmanche o queficou precipitado e obstaculizando a cadeia associativa, por outro, não permi-te que o Nome-do-Pai adquira consistência. A chave está em que ossignificantes do Nome-do Pai são os que representam a filiação, e é ela quepermitirá que todo significante novo venha a produzir sentido.

Sabemos, a partir das Teorias sexuais infantis assinaladas por Freud[1908 (1980)], que todo conhecimento, todo encontro com o novo surge comocorolário de um processo de procura de um significante que responda à inter-rogação sobre a origem. É a referência a este ponto de origem que permitirádistinguir o velho do novo. Será caracterizado como um significante novo, sevier a se inserir na cadeia significante de sua origem, porque é nela que osujeito encontra os significantes onde pode se reconhecer e suportar oestranhamento que este novo significante provoca. Se não é possível essereconhecimento, o sujeito pode ficar à beira da loucura: “Esse é o cerne dosintoma de tudo que é humano: o pêndulo entre a imperiosa necessidade donovo para manter vivo nosso desejo, e o incessante retorno ao ponto de nos-sa origem para reencontrar nossa identidade” (Jerusalinsky & Tavares).2

Na clínica, é evidente a problemática que se introduz para sujeitos quenão podem se indagar sobre suas origens, que precisam por alguma razãonegar seu passado. Tais são os casos de filhos adotivos, por medo da perdado amor dos pais adotivos ou porque esta verdade sobre sua origem lhes éinterditada; ou casos em que, por terem pais em falha social grave, que aban-donam, abusam, agridem, seus filhos se vêem impelidos a negar sua filiação.

“Se esperamos viver não só cada momento, mas Ter uma verda-deira consciência de nossa existência, nossa maior necessidadee mais difícil realização será encontrar um significado em nossasvidas. (...) apenas na idade adulta podemos obter uma compre-ensão inteligente do significado da própria existência neste mun-do a partir da própria experiência nele vivida (...) a criança deve

2 Texto Crise, publicado na Web no site da Produtora Zeppelin.

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receber ajuda para que possa dar algum sentido coerente aoseu turbilhão de sentimentos. Necessita de idéias sobre a formade colocar ordem na sua casa interior, e com base nisso sercapaz de criar ordem na sua vida” (Bettelheim, 1980, p. 11/13).

Ou seja, uma criança não tem ainda uma constelação significante sufi-ciente para ter a confiança de que sua palavra será reconhecida pelo discursosocial, além das já conhecidas, e se lançar no novo. Criar e descobrir, parauma criança, depende de se sentir segura de vir encontrar um ponto de reco-nhecimento. Assim, se coloca a questão para os analistas de crianças: o quena transferência lhe dará essa confiança?

Bruno Bettelheim aponta um caminho. Diz ele:“Como educador e terapeuta de crianças gravemente perturba-das, minha tarefa principal foi a de restaurar um significado navida delas (...) Com respeito a esta tarefa, nada é mais impor-tante que o impacto dos pais e outros que cuidam da criança;em segundo lugar vem nossa herança cultural, quando transmi-tida à criança de maneira correta. Quando as crianças são no-vas, é a literatura que canaliza melhor este tipo de informação”(1980, p. 12).

Ele se ocupou vastamente deste tema ao trabalhar os contos de fadas.No campo da clínica e sobre nossa questão, o que nos interessa pensar ésobre a posição do saber que é oferecido às crianças nessas histórias; comorefere Bettelheim (1980), um saber “transmitido de maneira correta.” Trata-sede pensar que tipo de interpretação da vida fazem os contos de fadas quepodem permitir às crianças a criação de um sentido próprio para suas vidas;sentido, aqui como um direcionamento, e não a precipitação em um significado.

Essa literatura infantil é destinada a permitir à criança a produção deum sentido. Elas colocam em cena, através do imaginário, significantes numaposição tal que lhes permite elaborar algum saber sobre os enigmas da vida.As narrativas dessas histórias sugerem soluções, mas nunca as explicitam;isto caberá, por identificação, a cada pequeno leitor. Essa duplicidade damensagem de sugerir um saber, mas que não é acabado nem conclusivo,permite à criança inverter a demanda do Outro, produzir um saber próprioque lhe possibilite lidar com o monstro com a garantia de achar um desfechofeliz, acenando com o final da infância e a promessa do gozo sexual da vidaadulta. Promessa enganosa que será desmascarada na adolescência, deto-nando toda a revolta que lhe corresponde, mas que cumpre seu necessáriopapel na infância: suportar a condição de pequeno polegar num mundo deferozes e famintos gigantes.

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O trabalho de um analista de crianças também precisa sustentar natransferência o lugar que permitirá a produção de um novo sentido. Esvazia-se um, mas para produzir outro que possibilite ao pequeno sujeito encontrarum ponto de reconhecimento, a partir do qual ele dê mais um “passo” adiantena sua cadeia significante. Em um artigo que escrevi, sobre literatura infantil(Tavares, 1998), utilizei, para concluir um poema de José Paulo Paes sobre a“Vida de sapo”, exemplar do saber necessário na infância e da posição dosignificante, certamente um belo poema para finalizar um artigo sobre a dire-ção da cura na infância.

“O sapo caiNum buracoE saiMas noutro buracoCaiO sapo caiNum buracoE saiMas noutro buracoCaiÉ um buracoA vida do sapoÉ um buracoBuraco pra láBuraco pra cáTanto buraco enche o sapo”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e terra,1980.CORDIÉ, Anny. Os atrasados não existem . Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.FREUD, Sigmund. Escritores criativos e devaneios1908. In: Obras Completas. Rio deJaneiro: Imago, 1980._____. Sobre as teorias sexuais das crianças 1908. In: Obras Completas. Rio de Ja-neiro: Imago, 1980.JERUSALINSKY, Alfredo. Sintomas de infância. In: Sintoma da Infância. Revista daAssociação Psicanalítica de Porto Alegre, número 13, 1997.LERUDE, Martine. Pela felicidade das crianças ou como a terapia de crianças podealgumas vezes permitir o crescimento dos pais. In: RIO, Ângela Baptista do. Do pai eda mãe.Coleção Psicanálise da criança. Salvador, Álgama, 1993MANNONI, Maud. A primeira entrevista em psicanálise. Rio de Janeiro: Campus,1981.

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PORGE, Erik. A transferência para os bastidores. In: A criança e o psicanalista. Revis-ta Littoral. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998.TAVARES, Eda. No reino dos pequeninos. In: Psicanálise e literatura. Revista da As-sociação Psicanalítica de Porto Alegre, número 15, 1998.

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RESUMOO presente trabalho tem como eixos questões que se revelam na psicanálisecom crianças na sociedade contemporânea. Neste âmbito, a crescenteobjetalização que rege o social encontra-se em jogo no processo analítico,sendo que a demanda dos pais dirigida ao analista, é marcada pela mesma. Abusca de dar sentido aos sintomas do filho é imperativa e consonante com odiscurso social vigente. Dar lugar à palavra, ali onde esta encontra-se apaga-da é trabalho a perfazer em contraponto às exigências imperativas de eficáciae perfeição, ideais sociais contemporâneos.PALAVRAS-CHAVE: psicanálise; crianças; discurso social; contemporanei-dade; infância

REFLECTIONS ON CHILD PSYCHOANALYSIS NOWADAYSABSTRACT

The present work has for axes questions that are unveiled in the psychoanalysiswith children in contemporary society. In this scope, the growing objectalizationthat rules the social is at stake in the analytical process, leaving its marks inthe parents demand towards the analyst. The search to give meaning to thechild´s symptoms is imperative and consonant with the social discourse inforce. To give rise to the word, there where it is faint, is work to be done ascounterpoint to the imperative demands of efficiency and perfection,contemporary social ideals.KEYWORDS: psychoanalysis; children; social discourse; contemporaneity;childhood

REFLEXÕES SOBRE APSICANÁLISE COM CRIANÇASNA CONTEMPORANEIDADE

Ana Marta Meira*

* Psicóloga, Psicanalista, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Organizadora dolivro Novos Sintomas , Salvador: Ágalma, 2003. Coordenadora do Boquinha, grupo de meninos emeninas de rua, ligado ao jornal Boca de Rua.

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“Não se quer dizer, no entanto, que nossa cultura sedesenvolva entre trevas exteriores à subjetividade criadora.

Esta, pelo contrário, não cessou de militar nela para renovaro poder nunca esgotado dos símbolos no intercâmbio

humano que os tira a luz.” (Lacan, 1987, p.274)

Apsicanálise com crianças apresenta uma particularidade que a diferen-cia ali onde a transferência se instala: a escuta dos pais. Realizada des-

de as entrevistas preliminares, ela é marcada por uma posição que remete àhistória familiar e aos ideais que fundam a subjetividade.

Ao buscar tratamento para seu filho, via de regra os pais insistem emdizer que já fizeram tudo o que podiam por ele, que não sabem mais o quefazer para acabar com a angústia revelada nos sintomas que oscilam entre adepressão e a agitação, o isolamento e a agressividade, entre outros.

Ao analista é dirigida a demanda imperativa de responder, de formaimediata, ao desejo de cura dos sintomas, a compreender todos os atos dacriança, a realizar um diagnóstico preciso e inequívoco, a planejar formas deintervenção eficazes e de rápido efeito, tudo em prol da saúde e perfeição,vigentes no discurso social contemporâneo como índices de normatização.Para isto, muitas vezes, os pais realizam tratamentos alternativos paralelos,em que os medicamentos vêm a cobrir a angústia que o não-saber sobre seufilho provoca. A especularização com o discurso social vigente, que obtura aangústia com pautas comportamentais, sugestões e medicamentos, é umadas vias mais freqüentes que se revelam na demanda dirigida ao analista, àqual, obviamente, o analista não responde. Que seu filho não se confrontecom a falta, que não agrida, não chore, durma bem, se alimente com rigor,saiba se vestir sozinho, não adoeça, se ocupe, são algumas das falas dospais, remetidas ao ideal de perfeição que marca sua relação.

Em Infância do Sintoma, Charles Melman aponta que se espera dacriança que realize um ideal negador da castração, ou seja, o impossível:

“Considerando essa exigência que vem da parte desses Outrosreais que são os pais reais, podemos imediatamente compreen-der como a falta de cumprimento deste ideal é, de certo modo, oque vem a manter a criança nesse pouco de liberdade subjetiva,nessa pequena margem que a protege de uma alienação reali-zada.” (Melman, 1997, p.20)

Martine Lerude, em Pela felicidade das crianças, escreve:“Seguramente existe na demanda dos pais não somente umademanda inconsciente que concerne ao seu próprio sintoma, mas

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também ao sintoma social, ao sintoma generalizado pelo imagi-nário coletivo, pelo imperativo que este imaginário prescreve.”(Lerude, 1998, p.135)

Há que se pensar a respeito do estatuto do simbólico e do lugar que osideais ocupam na contemporaneidade. Ou seja, a demanda dos pais encon-tra-se hoje na confluência com o discurso social, como aponta Anne MarieHammad em seu ensaio A criança é o pai do homem:

“Interroguemos, pois, os termos que designam os sintomas maisfreqüentemente evocados há alguns decênios: por um lado, ostress, a agitação, a instabilidade1 e, há um certo tempo, sobre-tudo no nível de adolescentes, e até mesmo de crianças cadavez mais jovens, a violência; por outro, a depressão servindo dedepósito e de álibi para o tratamento medicamentoso imediato,porque estamos em uma sociedade em que é preciso, a qual-quer preço, “estar em forma”! As diversas formas de dependên-cia aditiva respondem da mesma maneira a esses sintomas que“não se falam” de saída, talvez muito simplesmente porque setrata de encontrar ou de reencontrar um sistema de decodificaçãoque nos escapou, porque ele está particularmente submetido aorecalque.” (Hammad, 2003, p. 14-15)

Ao mesmo tempo, referindo-se às transformações dos lugares paternoe materno que revelam-se nas famílias recompostas ou nas chamadas famí-lias “monoparentais”2 , a autora aponta que “ninguém pretenderá que se trate,neste caso, de constelações inconscientes novas, no encontro de casais. Oque é novo é que estas posições se acham consagradas no discurso social.”(Hammad, 2003, p.19)

Basta abrirmos os jornais, ligarmos a televisão, transitarmos pela cida-de para constatar que os ideais vigentes hoje elevam ao mais alto grau oimediatismo e a constante mutabilidade do laço social. A permanência, o tem-

1 O estudo publicado pelo Journal of the American Medical Association revela que, entre 1991 e1995, o número de receitas prescrevendo estimulantes do tipo Ritalina a crianças de dois a quatroanos triplicou; o número de receitas prescrevendo a elas antidepressivos dobrou e o recurso àclonidina, um medicamento geralmente utilizado para as hipertensões, aumentou grandemente,para tratar a insônia ligada aos transtornos da atenção na criança pequena (Le Monde, 29.2.2000).(Hammad, 2003, p. 14)2 O termo monoparental é apontado por Anne Marie Hammad como sendo operador da exclusãodo pai em sua própria enunciação: “‘Ser uma família monoparental’ tornou-se uma norma queapaga a presença do outro pai no discurso. Na grande maioria dos casos, o lugar apagado é o dopai, demissionário ou ejetado.” (Hammad, 2003, p.18)

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po que se estende, são traços que submergem em meio ao culto ao descar-tável. As brincadeiras das crianças são metáforas desta posição: revelam emsua transitoriedade a fragmentação do tecido social. Os objetos a elas ofere-cidos incessantemente são frágeis tentativas de obturar a angústia que reve-lam diante do mundo que se lhes apresenta.3

É com estas crianças e pais que hoje nos encontramos em nosso tra-balho clínico cotidiano. A demanda mágica de cura é realizada com insistên-cia, sendo o trabalho de intervir para além do imaginário uma tarefa árdua queexige do analista uma posição de distanciamento em relação às demandasconstantes de compreensão presentes no discurso social.

Quando os pais dirigem sua demanda ao analista, encontram-se toma-dos por este discurso da imediaticidade. É extremamente difícil a eles pararpara pensar, associar, falar de seus sonhos e de seus filhos para além dadescartabilidade discursiva a que estão expostos. Em tempos de respostas rá-pidas, decidir iniciar o trabalho de análise representa uma posição de distan-cia-mento em relação ao sintoma social vigente. Para tal, há que suspender ascertezas, a velocidade do tempo, suportar o desconhecimento e romper coma posição de espectadores de sua própria vida e dos sintomas de seu filho.

O início da análise da criança encontra-se marcado por posições emque os pais são convocados a sustentar a extensão temporal do tratamento,sendo que a imediaticidade exigida é passo a passo deixada de lado. Nestamedida, os pais vão fundando uma posição de humanização de seu filho,passando a valorizar pequenos atos, frases, gestos, brincadeiras que lhespassavam absolutamente despercebidos, dada a metonimização da existên-cia que hoje marca a sociedade.

Ver seu filho brincar sem programar cada passo que ele dará com obrinquedo, vê-lo pedir para brincar com os amigos, vê-lo pedir uma história,vê-lo inventar brincadeiras é um traço que vai se revelando no decorrer doprocesso analítico. Descobrir a infância no filho é trabalho a que os pais sãohoje convocados. Para isto, vêem-se levados a rememorar sua infância semcolocá-la no rol do apagamento. Jeanne Marie Gagnebin, escrevendo sobrea contemporaneidade, aponta para a tarefa de “reconciliarmo-nos com nossainfância” (Gagnebin, 1995, p. 23).

Lacan, no escrito Função e campo da palavra, apontava que “...a artedo analista deve ser a de suspender as certezas do sujeito até que se consu-

3 Ver Pequenos brinquedos, jogos sem fim, no livro Novos sintomas , Ana Marta Meira (org),Salvador: Ágalma, 2003.

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mam seus últimos espelhismos. E é no discurso que deve escandir-se suaresolução.” (Lacan, 1987, p.241) Atualmente, essa escansão encontra-se re-metida à possibilidade de que os pais tenham de suportar encontrar em seufilho o não saber, a falta, o incompreensível, o inaudito, para além das tenta-tivas de suturar sua existência com imperativos e sentidos unívocos.

Neste estudo, Lacan fala sobre os três paradoxos da relação do sujeitocom a palavra e a linguagem, afirmando que o primeiro refere-se às psicoses,nos quais “a ausência da palavra se manifesta pelos estereótipos de um dis-curso onde o sujeito, poderia-se dizer, é falado mais que fala dele”4 (Lacan,1987, p. 269), e o segundo é relacionado aos sintomas, inibição e angústianas neuroses.

O terceiro paradoxo, que aqui nos interessa sublinhar, dado que marcao discurso na contemporaneidade, refere-se ao

“sujeito que perde seu sentido nas objetivações do discurso. Pormetafísica que pareça sua definição, não podemos desconhecersua presença no primeiro plano de nossa experiência. Pois éesta a alienação mais profunda do sujeito da civilização científi-ca e é ela a que encontramos em primeiro lugar quando o sujeitocomeça a falar-nos dele.”5 (Lacan, 1987, p. 270)

Este escrito de Lacan revela a atualidade das questões que colocavaacerca da subjetividade na modernidade e dos paradoxos com que o analistase defronta diante do discurso social que se encontra em jogo na psicanálise.

A análise com crianças hoje mostra que a infância é tecida ali onde otrabalho de elaboração leva a encontrar nas palavras, nos gestos, na falta,algo a criar para além de objetivações. Às falas apocalípticas sobre o fim dainfância cabe confrontar o desvelamento do véu que a encobre, véu este queestá estampado pela mercantilização e pela objetalização.

Neste ponto, os objetos que se encontram à disposição da criança noconsultório não são casuais. Faz-se necessário intervir no ponto em que a

4 Convém salientar que a referência à ausência da palavra não é alusiva à ausência da fala, massim à posição que nas psicoses se revela, onde o sujeito encontra-se alienado no discurso do outro.5 Mais adiante, afirma que “A comunicação pode estabelecer-se para ele validamente na obracomum da ciência e nos empregos que ela governa na civilização universal; esta comunicaçãoserá efetiva no interior da enorme objetivação constituída por esta ciência, e lhe permitirá esque-cer sua subjetividade. Colaborará eficazmente na obra comum em seu trabalho cotidiano e pre-encherá os seus ócios com todos os atrativos de uma cultura profusa que, desde a novela policialaté as memórias históricas, desde as conferências educativas até a ortopedia das relações degrupo, lhe dará ocasião de esquecer sua existência e sua morte, ao mesmo tempo que de desco-nhecer em uma falsa comunicação o sentido particular de sua vida.” (Lacan, 1987, p.271)

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demanda de objetos tecnologizados e modernos se impõe. Entrar em conso-nância com os sintomas automatizantes que se sobrepõem ao brincar dascrianças, como os jogos eletrônicos e a posse desenfreada de objetos, é mantê-las na impossibilidade de falar de sua angústia desde um lugar que a remetaà falta que é constitutiva.

Tomar os objetos como dom e não como um fim em si é trabalho aperfazer no processo analítico com crianças. Diante das queixas de que fal-tam objetos na sala, das exigências de renovação constante dos brinquedos,há que apontar ao que é possível inventar com “nada”. Dar lugar à infância, àinvenção, ao brincar com o invisível, com as palavras, é romper com osespelhismos de hoje que remetem as crianças a uma busca incessante deconsonância com os objetos, como se sem seu apoio real não fossem capa-zes de dar um passo.

Diante das freqüentes queixas de que as crianças hoje apresentamdificuldades para realizar trocas, de que se revelam mestres em ocupar-se desi em busca de realizar ao máximo seus desejos, cabe aos analistas intervir alionde as linhas do horizonte social e da singularização do sujeito se encontram.

O desvelamento que se opera em contraponto ao automatismo querege o discurso social produz nas crianças, mesmo as que apresentam qua-dros psíquicos graves, a possibilidade de criar vivências que sejam traços desua história, produzidas por seus gestos, por suas palavras, por suas trocas.Lançá-las nessa travessia é via que se realiza a partir da posição transferencialque os pais venham a ocupar na direção do tratamento, suportando a sus-pensão de suas certezas.

A demanda dos pais já é apontada por Freud na análise de Hans, quandose refere às constantes interpelações que o pai lhe faz a respeito de seusmedos, desejos ou brincadeiras. Freud comenta que o pai de Hans

“pergunta demasiado e investiga seguindo propósitos que lhesão próprios, em vez de deixar que o pequeno se exponha. Tudoisto tira transparência e segurança à análise. Hans segue seupróprio caminho, e não rende nada positivo quando se querapartá-lo dele. Seu interesse, agora, se orienta ao cocô e ao xixi;não sabemos por quê.” (Freud, 1973, p. 1397)

O pai de Hans revela em suas constantes interrogações que as tentati-vas de compreender os sintomas de seu filho são muitas vezes infrutíferas.Hans, por sua vez, comenta: “gosto muito de escrever ao professor. Me diver-te muito”. (Freud, 1973, p. 1392) Escreve a este que supõe saber a respeitode sua angústia. Seu pai, como Freud comenta, invade a fala de Hans comperguntas permeadas por suas fantasias. A este respeito, Freud aconselha

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aos que ainda não dirigiram por si mesmos uma análise que “não pretendamcompreender tudo no ato e vão acolhendo com certa atenção imparcial tudo oque surja, em espera de sua definitiva aclaração” (Freud, 1973, p. 1397).

Lacan, no Seminário Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise,faz uma observação que se insere na mesma via, colocando que a posiçãodo analista não é a de procurar mas a de achar, citando uma frase de Picasso:“Eu não procuro, acho (Lacan, 1979, p.14).

Em outra passagem desse mesmo Seminário, Lacan escreve a respei-to da construção freudiana do conceito de inconsciente:

“Eu lhes soletrei, ponto por ponto, o funcionamento do que nosfoi produzido primeiro por Freud como fenômeno do inconscien-te. No sonho, no ato falho, no chiste – o que é que chama aten-ção primeiro? É o modo de tropeço pelo qual eles aparecem.Tropeço, desfalecimento, rachadura. Numa frase pronunciada,escrita, alguma coisa se estatela. (...) O que se produz nessahiância, no sentido pleno do termo produzir-se, se apresentacomo um achado. É assim, de começo, que a exploração freu-diana encontra o que se passa no inconsciente”. (Lacan, 1979,p. 30)

Na clínica psicanalítica esta posição referente à escuta do inconscienteali onde há tropeços inesperados, “achados em meio a uma trajetória” e nãointerrogados e procurados como se já fossem conhecidos de antemão, fazcom que o lugar do analista seja marcado pelo não saber, onde paradoxal-mente o analisante supõe um saber. Neste ponto se constitui a transferência.No trabalho com crianças esta suposição de saber, própria da neurose, sedesdobra no trabalho com seus pais. E hoje revela-se mais difícil de sustentarem função da consonância que esta demanda estabelece com o discursosocial, marcado pelas exigências de objetivação.

Erik Porge, em A transferência para os bastidores, escreve a respeitoda análise com crianças:

“Essa simultaneidade de dois planos6 no endereço da mensa-gem se chama ‘falar para os bastidores’ (parler à la cantonnade).Cantonnade era um termo de teatro; designava, nas peças italia-nas, um lado do teatro onde uma parte dos espectadores se sen-

6 Esta simultaneidade é exemplificada a partir do caso Hans, em que o menino falava a seu pai,mas sua mensagem era dirigida a Freud (Porge, 1998, p.13).

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tava, em bancos em forma de pequeno anfiteatro. Depois, pas-sou a designar os bastidores. Falar para os bastidores é falar aum personagem que não está em cena.” (Porge, 1998, p.13)

Colocar em cena a transferência, falar para os bastidores, prescinde daparafernália de objetos tecnológicos ou jogos que o social oferece sem ces-sar. Para isto, basta a escuta do analista e a possibilidade de dar lugar àscenas que a criança possa vir a inventar. Brincar de faz de conta, sem quepara isto tenha que ter todos os objetos que venham a cobrir a cena, mas queestes possam ser invisíveis, possibilita que o véu que os cobre seja a palavra,a dimensão simbólica. Ao mesmo tempo, tece-se o imaginário, em uma posi-ção de invenção, não mais remetida aos ideais que o povoam, que se repe-tem nas crianças que neste se encontram mergulhadas.

Pode-se observar que as crianças que estão atreladas aos ideais e aosobjetos em uma posição de automatismo não conseguem facilmente, na aná-lise, deslocar-se deste lugar. Ali encenam o que vivem, repetindo inúmerosjogos onde o que vale é ganhar a qualquer custo. Neste sentido, os tabuleirosdos jogos de hoje não são os mesmos. São telas. A posição desde a qual acriança joga encontra-se atrelada à demanda avassaladora de perfeição quemarca o discurso social.

Para finalizar, remeto-me a uma passagem que é ilustrativa de umadas posições ocupadas pelas crianças hoje: Em um parque da cidade, umamenina de dois anos, filha de moradores de rua, vê crianças maiores andan-do de pernas de pau e tenta fazê-lo. Não consegue, mas isso não a paralisa.Pega pequenos pedaços de madeira que eu tinha nas mãos e me pergunta:“Dá para botar na terra?” Respondo que “Sim, pode brincar com eles na ter-ra”. Ela balança os gravetos na areia de um lado para o outro e me diz sorrin-do: “É capoeira!”7

A menina fica tempos ali, fazendo seus traçados na terra, encontrandoem seu imaginário a cultura de seus pais e dos que a cercam. Isto a fazbrincar. A pergunta que ela fizera, pedindo permissão para sujar os gravetos,revela que, mesmo vivendo nas ruas, o discurso que sacraliza os objetos sefaz presente: não sujar, não quebrar, é imperativo colocado pelos pais.

Por outro lado, esta menina, podendo brincar com a terra, passa a evo-car não este discurso, mas aquele que é referência simbólica em sua vida,

7 Esta observação faz parte do trabalho realizado com o Boquinha, grupo de meninos e meninasde rua, ligados ao jornal Boca de Rua e da pesquisa de mestrado A infância, o brincar e os ideaissociais na contemporaneidade, do curso de Psicologia Social e Institucional da UFRGS.

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que faz parte de sua cultura. Em suas palavras, encontro a direção de umahistória, marcada pela história de seus pais e de sua terra: “é capoeira!”8

Esses traços sobre a areia remetem a uma passagem de Lacan, emFunção e campo da palavra:

“Pela palavra que é já uma presença feita de ausência, a ausên-cia mesma vem a nomear-se em um momento original cuja recri-ação perpétua captou o gênio de Freud no jogo da criança. Edeste par modulado da presença e da ausência, que basta igual-mente para constituir o rastro sobre a areia do traço simples edo traço quebrado dos Koua mânticos da China, nasce o univer-so de sentido de uma língua onde o universo das coisas virá aordenar-se.Por meio daquilo que não toma corpo senão por ser o rastro deum nada e cuja sustentação por conseguinte não pode se alte-rar, o conceito, salvando a duração do que passa, engendra acoisa.” (Lacan, 1987, p. 265)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD,Sigmund. Análisis de la fobia de un niño de cinco años. In: Obras Completas.Madrid: Biblioteca Nueva, 1973. p. 1365-1440.GAGNEBIN, Jeanne. Centenários.Revista da Associação Psicanalítica de Porto Ale-gre – De um ao outro século: a psicanálise, Porto Alegre, Artes e Ofícios, n. 18, p. 18-23, jun. 2000.HAMMAD, Anne Marie. A criança é o pai do homem. In: MEIRA, Ana Marta (Org).Novos sintomas. Salvador: Ágalma, 2003. p.12-27.LACAN, Jacques. Función y campo de la palabra. In: Escritos 1. Argentina: SigloVeintiuno Editores, 1987._____. O Seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Riode Janeiro: Zahar, 1979.LERUDE, Martine. Pela felicidade das crianças ou como a terapia de crianças podealgumas vezes permitir o crescimento dos pais. In: O sujeito, o real do corpo e o casalparental. Salvador: Ágalma, 1998.

8 No momento esta família está vivendo em uma casa onde a mãe refere com orgulho que temtelevisão, computador e vídeo-game. Possivelmente as formas de as crianças brincarem se alte-rarão, pois ela relata que eles ficam vendo televisão grande parte do dia. Talvez esta meninapasse a confrontar-se com outros ideais veiculados pelos meios de comunicação, mas os traçosque primordialmente a marcam encontram-se referidos a sua cultura, o que muitas vezes nãoencontramos nas crianças de classe média e alta, já que frente às telas assistem como especta-doras, desde bebês, a imagens que falam mais de culturas japonesas ou americanas do que dade seu país.

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MEIRA, Ana Marta. Pequenos brinquedos, jogos sem fim. In: MEIRA, Ana Marta (Org).Novos sintomas. Salvador: Ágalma, 2003. p. 41-53.MELMAN, Charles. Sobre a infância do sintoma. In: BERNARDINO, Leda Maria Fischer(Org). Neurose infantil versus neurose da criança. Salvador: Ágalma, 1997.PORGE, Erik. A transferência para os bastidores. Revista Littoral – A criança e o psica-nalista, Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 1998.

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RESUMOA partir de um breve resgate histórico da psicanálise de crianças, o texto sepropõe a desenvolver qual a particularidade da clínica psicanalítica, quandose trata da infância. Traz à discussão, mais especificamente, alguns impassesque dizem respeito à clínica psicanalítica de crianças nas instituições, a partirda experiência da autora num serviço público de saúde mental infantil. Discu-te as questões da demanda, a transferência dos pais e da criança, o trabalhointerdisciplinar.PALAVRAS-CHAVE: psicanálise de crianças; o brincar; transferência; insti-tuições

CHILD’S PSYCHOANALYSIS IN THE PUBLIC INSTITUTION: DIRECTIONOF THE TREATMENT OR DIRECTION OF THE PATIENT?

ABSTRACTFrom a brief historical rescue of child´s psychoanalysis, the article intends todevelop which is the particularity in the psychoanalytical clinic when regardingchildhood. It puts under discussion, more specifically, some impasses relatedto the psychoanalytical clinic with children in the institutions, from the author´sexperience in a child´s public mental health center. It discusses the issues ofdemand, transference of parents and child, the interdisciplinary work.KEYWORDS: Child Psychoanalysis; play; transference; institutions

PSICANÁLISE DE CRIANÇASNA INSTITUIÇÃO PÚBLICA:DIREÇÃO DA CURA OUDIREÇÃO DO PACIENTE?

Ieda Prates da Silva *

* Psicóloga, Psicanalista, membro da APPOA, Coordenadora do Serviço de Atendimento à Crian-ça e ao Adolescente Françoise Dolto – SACA, da Secretaria de Saúde de Novo Hamburgo.E-mail: [email protected]

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“Pra buscar a morte? pra buscar a morte?,perguntei, suando o sulco nasal do bigode amarelo que

eu não tirava, por medo de que,vindo fios mais fortes e escuros,as pessoas depois dissessem que eu já tinha virado homem de bigode.”

(Altair Martins, 2001, p. 15)

Inicialmente, sigamos as pistas de Freud: em 1905, desnudara a “alma” in-fantil, lançando holofotes sobre as forças pulsionais atuantes na primeira

infância. Apresenta ao mundo o perverso polimorfo, ali onde se queria encon-trar apenas o angelical, o assexuado ou, pelo menos, o domesticável. MasFreud é radical: a pulsão não é domesticável, nem extinguível. Isto ele jáhavia descoberto ao ouvir as histéricas e os “doentes dos nervos” e ao anali-sar seus próprios sonhos e lembranças infantis. Mas agora sua escuta privile-giada se voltava à infância, deixando claro que a sexualidade infantil não édistorção de uma mente neurótica, ou resultante de uma infância “anormal”,ou ainda conseqüência de abusos sexuais por parte de adultos. Está configu-rado o estatuto de realidade psíquica e de fantasia. Logo a seguir introduz ostermos “teorias sexuais infantis” e “novela familiar” para caracterizar o enredosubjetivo em que a criança se estrutura. Está às voltas com um conceito-chave em psicanálise, embora só o nomeie um pouco mais tarde: trata-se doComplexo de Édipo, cerne do drama humano (basta lembrarmo-nos da tragé-dia de Hamlet, para não falarmos do próprio Édipo!).

Em termos clínicos, a porta se abre para a psicanálise de crianças coma publicação da Análise da fobia de um menino de cinco anos (1909), analisa-do por Freud a partir dos relatos do pai do menino, e sustentado pela transfe-rência do mesmo com o criador da psicanálise. Portanto, Hans é o caso queinaugura a psicanálise de crianças, embora Freud se mantenha reticente emrelação a essa clínica.

São as mulheres as primeiras que vão defender a psicanálise de crian-ças, tomando-as em tratamento, ao mesmo tempo em que passam a publicare a teorizar sobre estes casos – o que não se dá impunemente. Até porque asprimeiras crianças a serem analisadas são as da família: Melanie Klein tratouseu próprio filho; Hermine von Hug-Hellmuth, que tentou utilizar-se da teoriapsicanalítica na educação de seu sobrinho órfão, acabou sendo assassinadapor ele. Esta última é considerada a pioneira na psicanálise de crianças, umpouco antes de Melanie Klein e Anna Freud, que também se analisou com opai (Fendrik, 1991).

A psicanálise de crianças nasce, assim, sob o jugo dos pais (ou dasmães, melhor dizendo), não apenas porque se dá no âmbito das relações

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familiares, mas porque a intromissão do adulto, o saber e a autoridade dospais são desejados e legitimados no tratamento (no caso de Anna Freud) eexercidos através de interpretações determinadas mais pelas construçõesteóricas da analista do que pela escuta do inconsciente da criança (no casode Melanie Klein). Não obstante, é a própria Klein que nos alerta: “Os critériosdo método psicanalítico proposto por Freud, ou seja, que devemos usar comoponto de partida os fatos da transferência, (...) que devemos levar em consi-deração o recalque e seus efeitos, a amnésia e a compulsão à repetição, sãoescrupulosamente conservados na técnica do jogo” (Apud Santa Roza, 1993,p. 122).

Portanto, ela nos lembra que há transferência na infância, que o recalqueestá ali operando e que o inconsciente é posto em cena no brincar. Jerusalinsky(1988) salienta que a criança está em transferência o tempo todo, pelo lugarde suposto saber que os adultos representam para ela.

A Melanie Klein (1981) devemos a introdução e a sistematização dobrincar e do jogo como ferramenta crucial na técnica da análise de crianças,assim como o resgate da fantasia: lembra-nos que a realidade em questão éa realidade psíquica. Claro que a criança está numa relação de dependênciae submetimento ao adulto e às contingências da vida de uma forma que àsvezes lhe é avassaladora, que pode chegar a um esmagamento de sua auto-nomia, de sua espontaneidade, de seu desejo, com conseqüências que atin-gem diretamente o corpo, a capacidade de pensar ou de se relacionar, queinibem o brincar e a linguagem, ou que provocam um incremento de angústia(muito comum nas fobias infantis). Mas este submetimento da criança ao po-der do adulto e às situações de vida não deve nos impedir de ver as marcasde um sujeito em construção, e que, a partir da escuta e da intervenção psica-nalítica, possibilite abrir um espaço de expressão para este sujeito, de formaque ele possa se constituir e se reconhecer.

Digo isto porque, principalmente na clínica da infância nas instituiçõespúblicas com crianças provenientes de casas-abrigo, ou de situações famili-ares e sócio-econômicas por demais precárias, o apelo imaginário pode nosencaminhar a um aprisionamento ao factual, ao fenomênico, à situação demiserabilidade, de violência ou de abandono afetivo que acomete esta crian-ça, obstaculizando que possamos escutar ali as forças pulsionais da infânciae dar-lhes espaço através do brincar, do desenho e da fala. A questão não ésimples, porque justamente a pulsionalização e a estruturação psíquica des-ta criança não se darão de forma alheia à organização discursiva que se farácarne, se fará voz, se fará olhar e se desdobrará em significantes familiares:caldo imaginário e simbólico que constituirá as bordas do corpo do filho e

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sustentará suas incursões na vida. Então, onde vamos escutar os significantesque fazem marca nesta criança, e a sua particular forma de gozo e de rela-ção ao Outro? Evidentemente a partir de seu sintoma, posto em ato no brin-car na cena terapêutica e que comporá uma particular relação transferencialcom o analista. Mas a leitura deste sintoma e dos significantes que a criançanos traz – ou daqueles que silencia – começa antes: nas entrevistas com ospais, que nos trazem uma história (às vezes de várias gerações) cuja escutacomeça a delinear qual o lugar que a criança e seu sintoma vêm ocupar.“Para entender uma criança ou um adolescente (de fato, inclusive um adul-to), temos de retroceder aonde ele ainda não estava.”, nos lembra Rodulfo(1990, p. 17). Mas não é pelo fato de a criança estar presa nesta rede signifi-cante familiar e social (pois a escola cumpre aqui seu papel – para o “bem”ou para o “mal”), que não será necessário escutá-la, ou seja, pôr em causa –e em curso – os efeitos de estruturação que sua singularidade como sujeitoproduziu. Retomaremos esta questão mais adiante no texto, articulando-acom as vicissitudes do trabalho analítico numa instituição de saúde mentalinfantil, onde elementos de ordem social e institucional parecem complexificarainda mais este terreno já por si só pedregoso.

Então, retomando a clássica oposição entre Melanie Klein e Anna Freud,enquanto a primeira defendia a técnica do brinquedo nas sessões, a segundaprotestava, garantindo que:

“a tarefa consistia, como na análise de adultos, em desfazer asvárias repressões, distorções, deslocamentos, condensações,etc, que houvessem sido configuradas pelos mecanismos neu-róticos de defesa até que, com a ajuda ativa por parte da criança,o conteúdo inconsciente do material fosse posto a descoberto.Uma tal cooperação com a criança pressupõe naturalmente oextenso uso da palavra.” (A. Freud, 1971, p. 108)

O que fica esquecido aqui é que o brincar e a linguagem não se exclu-em. A criança necessita do apoio nos objetos (do mundo) para que o corpo seinstrumentalize, para que a pulsão, circundando o objeto, retorne ao própriocorpo, erogenizando-o e inscrevendo-o no circuito de desejo. O primeiro ob-jeto a fazer esta função é a mãe (ou substituto), mas não somente com seucorpo, e sim na medida em que este corpo materno circunscrito por uma bor-da – por um olhar e por uma rede significante – captura esta criança numuniverso simbólico que a lança para além do corpo, seu ou da mãe. Nestatrajetória os objetos, sejam quais forem, se transformam imediatamente embrinquedos nas mãos de uma pequena criança: transmutam-se em outra coi-sa, em outro tempo, em outra corporeidade, pelo revestimento imaginário e

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simbólico que a pulsão e a rede discursiva na qual este ser está mergulhadolhe permitem engendrar. (Prates da Silva, 2000)

Maria Rital Kehl (1990) denomina fome do mundo a isto que lança acriança na busca e manipulação dos objetos, desenvolvendo sua curiosida-de, seu pensamento, sua capacidade de abstrair, mas inicialmente apoiadana concretude da coisa – não para fixar-se nela, mas para transcendê-la.Tudo isto, e muito mais, está em causa no brincar. É através do brincar quea criança pode elaborar a distância entre a insuficiência real e o ideal, apon-tada pelo discurso familiar e social. É no brincar que ela encena esta potên-cia, saindo da insuficiência para a possibilidade. E isto fica patente, por exem-plo, na linguagem expressa no faz-de-conta: “Agora eu era a professora e tuera a aluna”; “Tu era o papai”, etc. Jerusalinsky (1988) discorre sobre estaantecipação, este vir-a-ser que se atualiza no brincar, permitindo à criançaconstituir-se como ser sexuado, quando ela ainda não tem condições de res-ponder a isto no Real. Então, neste tempo outro do brincar, a criança consti-tui um agora, mas olhando-se do futuro, como se ela já tivesse passado poraquilo e já soubesse como é. Prepara-se, assim, para enfrentar o abismo,lançando sobre ele uma ponte simbólica que lhe permite transitar: olhar paratrás e para frente, situar-se em diferentes pontos do caminho.

Freud, em 1908, no texto “Escritores criativos e devaneio”, já afirmaraque o brincar é dirigido, em última instância, por um único e legítimo desejo dacriança: o de ser grande. Neste desejo de crescer,

“o desenvolvimento da cadeia significante ainda não é suficientepara que a criança possa apoiar-se somente na palavra. É essesuporte imaginário que permite à criança fazer passagem de umsignificante a outro. Ela precisa de um suporte imaginário no qualpossa se reconhecer, para que o significante que está aí susten-tado adquira a consistência necessária para que a criança possadar um passo adiante na cadeia significante.” (Tavares, 1998, p.64).

É este “passo adiante” que muitas vezes está obstaculizado para ascrianças que nos chegam para tratamento, tão demarcadas se encontram porsignificantes que parecem encerrar seu destino, ou esvaídas numa ausênciaabsoluta de demarcações que lhe pudessem dar alguma sustentação, per-dendo-se num corpo que ainda não está circunscrito por uma imagem, numolhar vazio ou numa fala ecolálica e sem sujeito, ou ainda, num movimentofrenético e sem endereçamento. Possibilitar um espaço de escuta e um tem-po de brincar abre de saída uma dimensão nova, em que o corpo e as produ-ções da criança começam a adquirir uma consistência, uma presença, que

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ora encontra acolhida na família e na escola, ora provoca um incômodo e fazsurgir ali um buraco antes insuspeitado, justamente porque estava encobertopelo sintoma da criança.

Bem o sabemos que o trabalho analítico com crianças alcança as figu-ras parentais. Já de início porque – salvo em raríssimos casos, que configu-ram exceção à regra – a demanda de tratamento é proveniente de outros quenão o próprio paciente, sejam estes pais, escola ou cuidadores. Na verdade,na maioria das vezes não há uma demanda de cura (no sentido psicanalíticodo termo) e sim um pedido de ajustamento da criança ao meio, seja estefamiliar, instituição escolar ou de abrigamento. Então o primeiro trabalho (atra-vés do que chamamos nesta instituição clínica de Entrevistas de Acolhimen-to) é justamente o de tentar produzir ali uma inversão neste pedido, dandolugar à demanda de tratamento. Trabalho árduo e às vezes infrutífero, o quenos deixa tomados de angústia, ao entrarmos em contato com situações degrave sofrimento e em que nada podemos fazer.

Neste tempo preliminar, não sabemos quem é a criança que sofre: se éo filho que nos trazem ou a criança que constitui o infantil dos pais. Ou seja,não sabemos ainda quem é o sujeito em questão ali. A partir desta escutainicial e da discussão do caso em equipe interdisciplinar, composta por profis-sionais das áreas de psiquiatria, psicologia, neuropediatria e serviço social, épossível se pensar numa direção de tratamento, se houver indicação tera-pêutica para aquela criança. É preciso igualmente escutar a demanda de tra-tamento que, em geral, encontra-se ali subjacente e emerge tão logo oferece-mos ouvidos abertos a ela.

O trabalho complica-se porque a resistência dos pais encontra muitosapoios e incrementos reais: não há quem possa levar a criança porque estãotodos trabalhando, são operários e não podem faltar nem um minuto sequerao emprego, quanto mais algumas horas. Ou estão desempregados (o que émais freqüente) e não têm dinheiro para as passagens de ônibus (a clínicafica no centro e os pacientes moram nos bairros da periferia da cidade); emuitas outras situações decorrentes das fraturas sociais e econômicas destasociedade desigual em que vivemos1. Se não houver uma intervenção extra-clínica, que dê condições mínimas para a efetivação do tratamento, este muitas

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1 Lembro de um caso de um menino de oito anos, atendido por uma estagiária de Psicologia, cujopai, desempregado e muito comprometido psiquicamente – com delírios persecutórios em rela-ção ao serviço clínico – se recusava a levá-lo já há algumas sessões; então ele foge de casa e vaicaminhando até a clínica à procura de sua terapeuta.

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vezes se torna inviabilizado. É aqui que entra o trabalho de equipe, com asvisitas domiciliares, o encaminhamento para aquisição de passagens em al-guns casos extremos, o assessoramento às escolas, principalmente nos ca-sos mais graves. Ou, ainda, intervenções junto ao Conselho Tutelar, à Pro-motoria da Infância e Juventude, o encaminhamento para serviços de saúde,o contato com outras instituições sociais, educacionais ou de abrigamento.

Enfim, o trabalho clínico com crianças, numa instituição pública maisdo que no consultório, extrapola o setting analítico. Há um transbordamentonesta clínica, que muitas vezes precisa ser contido, pois os excessos vãodesde o grande número de terapeutas que uma criança pequena pode ter atéa ronda interminável e estéril pelos serviços de saúde, a quantidade de esco-las pelas quais ela já passou, uma sacola repleta de exames ou umamultiplicidade de pessoas e órgãos públicos envolvidos com esta família. Sepor um lado não há como se trabalhar com a criança num setting intramuros,por outro, é preciso estancar esta sangria, limpar o campo e, para além des-tes ruídos, escutar o som do Inconsciente. Convocar o sujeito a que fale, paraalém da cena que o antecede e que o encobre. É aí que os espaços institucio-nais de escuta dos pais e dos professores, e o espaço analítico do brincar edo falar oferecido à criança, se potencializam, proporcionando um esvazia-mento da posição de um saber cristalizado geralmente em preceitos morais epseudocientíficos, para dar lugar a um movimento na cadeia signifi-cante.Movimento este que permite entrever e legitimar as marcas singulares dosujeito em estruturação.

É com os ensinamentos de Lacan (1998,1992,1985) e com os textosclínicos de Françoise Dolto que nos damos conta da importância da escutados pais na psicanálise de crianças. Evidentemente, não pela via de umaanamnese que nos fornecesse todos os detalhes, fatos e datas dos aconteci-mentos da vida de seu filho, nem tampouco para construirmos uma linhaevolutiva das etapas de seu desenvolvimento. Menos ainda para orientarmosestes pais, ajudando-os a consertarem seus possíveis (e inevitáveis) erros,indicando-lhes o “modo correto” de criar seus filhos. A nada disto a Psicanáli-se se propõe. Sua ética é regida por uma posição completamente díspar,aquela que abre lugar para a palavra livre do sujeito, isto é, uma palavra quenão está regrada pela ordem de dizer o bem, mas antes, do bem-dizer: “Tra-ta-se do discurso de um bem-dizer, cuja lei, longe de ignorar o gozo ou deopor-se a ele, encontra-se nele para, ao mesmo tempo, apoiá-lo e encaminhá-lo” (Julien, 1997, p. 86).

O que se busca nessa escuta é colocar a palavra em circulação, resga-tando sua função simbólica. E aqui nos referimos tanto à palavra que está

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recalcada, sempre presente porque não é dita, quanto ao significante repeti-do à exaustão, fixo a um único e irremovível significado, que soterra quais-quer possibilidades oxigenadoras para esta criança ou para esta família. En-tão, escutar o que os pais têm a dizer provoca um primeiro efeito de surpre-sa, porque eles não supõem que tenham muito a falar; ao contrário, achamque vêm para escutar o nosso saber de especialista. Nossa escuta analíticaconvoca primeiramente o olhar: pessoas que não estão habituadas a olha-rem seus interlocutores erguem suas cabeças baixas e se autorizam a olharo “doutor” ou a “doutora”; assim como percebemos que começam a olharseus filhos e a fazerem comentários sobre coisas cotidianas antes nãoregistradas.

Um segundo momento de surpresa é quando constatam que desdeque começaram a vir falar sobre seu filho, sua família, sua vida conjugal, etc,algo incompreensível aconteceu: as coisas começam a mudar, a criança jánão está tão agitada, tão agressiva, tão insuportável. Ou, ao contrário, novossintomas começam a aparecer. Quer dizer: algo se movimenta na dinâmicafamiliar, e os pais se intrigam, afinal, nada aconteceu, apenas conversas!Esse efeito surpresa também aparece em relação ao tratamento de seus fi-lhos, pois alguns pais inicialmente reclamam de que elas, as crianças, “vêmaqui só para brincar”, e mais tarde manifestam sua admiração frente ao fatode que elas estão diferentes, embora não tenham tomado nenhum remedinho,nem recebido nenhum “tratamento sério”, apenas brincavam.

Françoise Dolto, excelente psicanalista de crianças e que muito contri-buiu para o avanço dessa práxis, possuidora de um estilo clínico marcante eescuta analítica aguçada, insurgia-se contra o uso de brinquedos e materiaislúdicos nas sessões terapêuticas. Só se utilizava do desenho e da massa demodelar como recursos para a expressão da criança. Dizia que o brinquedolimitava esta expressão, pela sua forma, pelo seu significado cultural ou pelainterpretação arbitrária do analista. Contrapunha-se assim à Melanie Klein,para quem – não obstante suas importantes teorizações sobre a fantasia e ouniverso infantil –, “...dois carros que colidem significa sempre o coito dospais.” (Klein, 1975, p. 105).

Pensamos que o brincar é uma expressão característica e singular dacriança, uma forma de fruição pulsional e, conforme Jerusalinsky (1988), umaforma de tentar dar consistência ao recobrimento da distância entre a insufici-ência real e a antecipação de um ideal sexual e social. É através do brincarque ela, a criança, suporta e desdobra os efeitos da rede discursiva que asustenta, ou que tenta dar conta das falhas nesta sustentação. O brincar con-fere-lhe o suporte corporal à inscrição significante. Portanto não há porque

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impedir ou dificultar o brincar na sessão, e sim nos deixarmos levar por ele,como uma cadeia associativa na qual terão lugar os atos analíticos, sejamestes de corte, interpretativos, pontuações ou mesmo intervenções em ato.Emprestamo-nos à cena lúdica, não para gozar (embora não falte ali um pra-zer), mas para que nosso corpo e nossa fala se faça suporte de um gozo quepossa ser inscrito na cadeia significante, abrindo novas possibilidades criati-vas e substitutivas, na medida em que o objeto desse gozo (objeto a) se ins-tala como perdido.

A transcrição a seguir parece-nos enfatizar esta particularidade do brin-car como formação do inconsciente:

“O processo interpretativo que o brincar é capaz de promover –por conter em si múltiplos sentidos que permanecem flutuantes,potencialmente evocadores – é facilitado pelo analista não ape-nas pelo que ele diz, mas também e principalmente pelo que elebrinca. Falamos então de uma interpretação que se dá ao nívelda própria linguagem do jogo: com ela é possível propor ques-tões, ressaltar e sublinhar determinados movimentos da brinca-deira pela imitação, inverter papéis e produzir cortes”. (SantaRoza, 1993, p. 136-7)

Françoise Dolto não está equivocada ao preocupar-se com o uso quese possa fazer do brinquedo na análise de crianças. Porém, ao argumentarque o brinquedo tem uma forma e um significado definidos, uma determinadainscrição na cultura familiar e social, não pode esquecer que a criança se apro-pria dele a partir do determinismo inconsciente, e com a plasticidade que lhe éprópria na relação aos objetos, onde à concretude da forma se superpõe asignificação imaginária que a criança lhe dará. É assim que uma caminhapode se transformar num chapéu, numa barricada, num carro, num penico...ou na cama mesma da mamãe. Parece-nos, então, que o problema não estáem deixarmos a criança brincar, mas sim no lugar transferencial em que nossituamos e do qual operamos neste brincar, e que vai configurar a direção dacura.

A clínica de crianças é uma clínica ruidosa, principalmente nos casosdas psicoses ou dos transtornos graves da infância. É recheada de barulhose gritos, de movimentos corporais, de perguntas insistentes e repetitivas, delambuzos e sujeiras. Alarga-se nos espaços para fora do consultório: no cor-redor, na sala de espera, no banheiro ou na cozinha da clínica, no pátio ou aténa rua. Também é ruidosa pelo alarido que produz no seu entorno: cenas emcasa ou na escola, nas quais é comum que, frente ao descontrole da criança,pais e professores se descontrolem, reagindo de forma desproporcional e

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alimentando um círculo vicioso em que é preciso, muitas vezes, que o analis-ta intervenha. Por isto o analista de crianças não trabalha sozinho: ele neces-sita da solidariedade de todos na clínica, desde os que trabalham na recep-ção ou na cozinha até os colegas da equipe técnica. Ou seja, é preciso umcerto entendimento da particularidade daquele trabalho, para que possam sersuportados na instituição os sintomas da criança e da família, sem provocar,ali também, um alarido. Mas ele também não trabalha sozinho, no sentido deque é preciso intervir com a família, com a escola, enfim, com as instituiçõesque dizem respeito a essa criança em tratamento.

Destaco ainda a importância da abordagem interdisciplinar, em que osdiferentes recortes e intervenções sobre o corpo e o sintoma da criança, asdiferentes leituras sobre a configuração familiar e social, devem sustentaruma abertura permanente à interrogação sobre os efeitos do tratamento e adireção da cura. A especificidade da psicanálise na equipe interdisciplinar éjustamente manter aberto e operante este lugar da interrogação, o que émuito trabalhoso e desgastante – e que só pode ser sustentado a partir daefetividade da função de terceiro que exerce a supervisão e a análise dopróprio analista.

Neste sentido, a clínica psicanalítica de crianças é artesanal2, faz-se erefaz-se a cada dia, a cada caso, a cada nova situação com que nos depara-mos. Não há regras estabelecidas. Há uma práxis terapêutica que é a dotrabalho em transferência, nos vários atravessamentos que se entrecruzam:criança, família, escola, outros profissionais e instituições – sustentada poruma formação analítica de um lado, e de outro por um trabalho interdisciplinar.Este trabalho de equipe também nos interroga de um lugar terceiro e vem sesomar aos efeitos da própria formação analítica. Igualmente permite a ex-pressão e elaboração de angústias e superação de impasses, através deespaços de fala e de discussão clínica, onde ouvimos o outro e ouvimos anós mesmos, agora de um novo lugar. Refiro-me a que muitas vezes algodiferente se instaura ao ouvirmo-nos a nós próprios quando falamos de umcaso entre colegas; há uma intermediação ali, na relação de trabalho comnossos pares, que provoca novos efeitos transferenciais naquele caso clíni-co.

Um último atravessamento que quero destacar na clínica psicanalíticaem uma instituição pública, e que provoca um impasse angustiante e de difí-

2 Numa expressão de Mário Corso que achei muito apropriada.

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cil resolução, diz respeito à enorme demanda numérica de atendimentos,sempre maior do que a capacidade e as possibilidades do serviço. São muitocomuns as “listas de espera”, que conferem uma pressão ao trabalho clínico,levando muitas das instituições de saúde mental públicas a optarem por trata-mentos com tempo estipulado previamente – e igual para todos –, ou sob aforma de dispositivos que alcancem um maior número de pacientes (atendi-mentos em grupo, por exemplo). Não que o grupo não venha a ser um recur-so clínico interessante em várias situações, mas parece a que as indicaçõesterapêuticas perdem sua dimensão ética e sua qualidade analítica quandopassam a ser determinadas a priori, sem a escuta e a discussão de caso acaso. Quando a decisão sobre o tipo e duração dos tratamentos está determi-nada por critérios administrativos, quantitativos, e não por critérios técnicos,analíticos, não há direção da cura, e sim direção do paciente, por melhoresque sejam as intenções da instituição.

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RESUMOEste trabalho trata da clínica com pacientes psicóticos, as dificuldades, riscose construções no percurso do tratamento. A autora aposta na produção desujeito, ao mesmo tempo em que reconhece a fragilidade subjetiva da condi-ção de foraclusão do Nome do Pai na estrutura psicótica. A experiência clíni-ca, no Projeto Morada São Pedro do HPSP, faz parte de um processo de re-forma que convoca também o psicanalista a uma reflexão.PALAVRAS-CHAVE: psicótico; sujeito; Real; Outro

THE DIRECTION OF THE TREATMENT IN THEPSYCHOSIS CLINIC – SYMBOLIC ARMOR

ABSTRACTThis article concerns the clinic with psychotic patients – the difficulties, risksand constructions during the treatment. The author bets on the subject´sproductions while recognizing the subjective frailty of the condition of forclosureof the Name-of-the-Father in the psychotic structure. Clinical experience, asthe Morada Sâo Pedro Project in the HPSP, is part of a reforming process thatcalls the psychoanalyst, too, to reflect upon reclaiming these patients´singularity.KEYWORDS: psychotic; subject; real; Other

CLÍNICA DAS PSICOSES:ARMADURA SIMBÓLICA

Maria Ângela Bulhões*

* Psicanalista, técnica da equipe do projeto Morada São Pedro do Hospital Psiquiátrico São Pedro.e-mail: [email protected]

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“Pois a loucura, se soubermos ouvi-la,Traz em si sua própria cura”.

(Quinet, 1997)

Apsicanálise, por muito tempo, manteve-se distante dos pacientes psicóti-cos. Os psicanalistas consideravam que estes pacientes não eram capa-

zes de estabelecer transferência, pois o investimento da libido não sedirecionava aos objetos, mas ao seu próprio eu, estabelecendo uma clivagemcom o mundo externo que impedia a aproximação necessária para o sucessode uma análise. A resistência ao tratamento estava situada, portanto, do ladodo paciente, consideração que não recebia maiores questionamentos. Freud(1911/1980) dedicou-se ao estudo da psicose principalmente através da aná-lise do livro de memórias do Presidente Schreber (Memórias de um Doentedos Nervos, 1985). A partir desse trabalho, ele ampliou o conhecimento sobrea formação do processo delirante e inovou ao reconhecer o delírio como umatentativa de cura e não apenas uma produção sintomática. Neste reconheci-mento foi estabelecido um novo lugar para a fala na loucura, pois o Presiden-te Schreber, a partir de seu delírio, reconstruiu o mundo de forma a podertornar a viver nele.

Todavia, Freud não se mostrava otimista em relação ao tratamento depsicóticos através do método psicanalítico, deixando para seus discípulos oempreendimento. A ousadia de psicanalistas como Ferenczi, Jung, Klein, Bione Lacan, entre outros que se aventuraram no tratamento de pacientespsicóticos, produziu teorias que até hoje sustentam uma prática psicanalíticajunto a essa clínica.

A psicanálise francesa, a partir da psiquiatria clássica, trabalhou comos diagnósticos de neurose, psicose e perversão. A montagem organizadaem relação ao falo, ao complexo de Édipo, ao pai como representante da lei,que proíbe o incesto, definirá a estrutura neurótica. Lacan (1958/1998) afir-ma:

“É num acidente desse registro e do que nele se realiza, a saberna foraclusão do Nome do Pai no lugar do Outro e no fracassoda metáfora paterna, que apontamos a falha que confere à psi-cose sua condição essencial, com a estrutura que a separa daneurose” (p. 582).

Na medida em que o tratamento de psicóticos esteve ligado de formapreponderante à psiquiatria e ao hospital como local principal de tratamento,o modelo médico se estabeleceu de forma hegemônica. Este modelo conce-deu à definição do diagnóstico um lugar central no tratamento e, além disso,

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com o avanço da indústria farmacêutica, priorizou o diagnóstico como proce-dimento classificatório para a indicação de fármacos. Os psicanalistas, dife-rentemente, entendem que, para que o diagnóstico possa servir de bússolana direção da cura de um paciente, é necessário que ele cumpra a função deremeter à estrutura que o condiciona. Quando nos encontrarmos no campoda clínica, a singularidade de cada caso, a escuta e a transferência que seestabelece funcionam como o motor na travessia do tratamento.

A psicose causa desconforto e desconfiança, pois, como aponta a fa-lência da instância de lei, ela ameaça a razão e a construção da ordem social.Isto explica porque encontramos na história da psiquiatria um forte viés moralno tratamento dos pacientes psicóticos, além de um movimento contínuo deexclusão. Pinel, o pai da psiquiatria, considerava que o doente encontrava-seem contradição com sua razão e que a instauração de uma ordem moralexterna poderia fazer eco interno e trazê-lo de volta à consciência.

Lacan (1958/1998) nos forneceu o conceito de foraclusão, para pensaro fenômeno psicótico, e nos fez refletir sobre o desafio desse trabalho. Apsicose, diz Lacan, é isso diante do que um analista não deve recuar emnenhum caso. Na psicose, a condição de sujeito fica comprometida, o corpo égozado pelo Outro, a fala pode tornar-se apenas a reverberação do eco deum Outro não barrado.

Nesta clínica, a passagem ao ato é um risco constante. O que não seinscreve simbolicamente faz sua expressão no Real, isto é, a palavra nãomediatiza, não se torna representação, ela é concretamente “a coisa”. Assim,na busca de se fazer uma inscrição na via simbólica, com muita facilidadeacontece uma passagem ao ato, e, através da ação, ocorre a expressão dire-ta daquilo que não consegue ser dito de outra forma.

Estamos, assim, num espaço/tempo em que as palavras falham ou,indo mais além, diante da comprovação de que ali o simbólico fracassou.Nessa situação, toda a fascinação que a loucura pode causar, com seu charmesubversivo, depara-se com a face mais cruel da psicose: a falência do ser.

Para ilustrar o que considero ser um processo de revitalização das con-dições da fala, recorro à experiência de trabalho nesta clínica. P. J. (pacientecom o qual trabalho em uma instituição) me fez refletir como o trabalho defazê-lo viver “cada dia” pode, ainda que de forma frágil, adiar a sua morte real.Ele não tem dúvidas de que no paraíso não falta nada e de que na sua vida naterra só existem desgraças. Ele me afirma que já esteve no paraíso e narraalguns detalhes de sua passagem por lá, insistindo que não é desse mundo.P. J. tem uma vida marcada pela errância e pela institucionalização psiquiátri-ca. A busca de significados que possam amarrar (simbolicamente) esse sujei-

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to à sua vida e a efetivação de alguns pequenos projetos nesse sentido meparecem estar servindo de anteparo e evitando (ou adiando) as contençõesfísicas de uma internação.

O trabalho com P. J. exige cautela em relação às expectativas, poistambém eu devo saber que cada dia é apenas mais um dia. O trabalhosignificante do par confiar/cuidar vai na mesma direção do par ausência/pre-sença realizado na constituição do sujeito. Rascunha-se um projeto de repre-sentação para que ele possa não se jogar no vazio.

Aulagnier (1979) nos diz:“De seu lugar de significante da mãe, ele só pode ser o maço decartas enquanto tal, maço de cartas que um Outro disporá a seubel prazer a fim de que a combinação que assim formam faça-lhe obter sua vitória. Mas o sujeito enquanto carta não poderáver nada nem compreender nada do conjunto que o constitui; eleé o significante do Outro, talvez um significante para os Outros,mas um significante que não tem a menor referência para sereconhecer e se nomear.” (p. 154)

Nessas considerações, Aulagnier analisa o que foi historicamente cha-mado de alienação da loucura. Simplesmente, o sujeito não pode ser reco-nhecido em seus atos, ao mesmo tempo em que parece não se reconhecerneles. Essa afirmação conduz à questão que serve de base para discutir adireção da cura no presente texto. É possível estar completamente alienadode si mesmo ou a loucura também pode ser uma escolha?

Contardo Calligaris (1989) afirma que o sujeito realiza uma escolhadefensiva tanto para a constituição de uma neurose como para de uma psico-se. Ele não postula sobre uma escolha consciente, mas sobre o fato de apsicose ser uma questão de existência. Isso quer dizer que, dependendo daforma como o sujeito estiver relacionado aos significantes, se definirá suaestrutura psicopatológica. Essa definição não permite qualquer atribuição devalor à estrutura psicopatológica “escolhida”. Portanto, se o sujeito não forcolocado a falar do lugar de agente e produtor de sua própria história, nadapoderá se articular de forma significante para que possa construir balizas quesustentem sua existência. Dar o lugar de sujeito a alguém que no Real nosmostra o quanto não encontra lugar pode ser o primeiro passo para se esta-belecer uma transferência, capaz de sustentar uma aposta simbólica.

Segundo Nasio (1987), a transferência analítica é equivalente ao in-consciente: são homeomorfos, como dois conjuntos que se correspondemponto por ponto. É uma maneira de dizer que o inconsciente e a relaçãotransferencial são uma mesma coisa no momento do acontecimento. Assim

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sendo, o que fará “diferença” nesse percurso clínico será a condição de dese-jo do analista, que produzirá, a partir de sua ética, um espaço subjetivo para aexistência de seu paciente psicótico. O voto de morte de um Outro não barradopode, nesse encontro analista/paciente, ex-barrar num anteparo.

O fato de o sujeito psicótico não poder acessar o significante Nome doPai (aquele que organiza a cadeia significante) o deixa numa condição detrabalhar subjetivamente em dobro, para efetivamente não naufragar nas tur-bulentas águas da vida. Os naufrágios são os momentos de crise, os surtos,quando as formas de defesa utilizadas até o momento fracassam, pois o sujeitoé chamado a responder a partir de um significante que lhe falta (Nome do Pai).

Calligaris (1989) refere-se à metáfora delirante como uma forma deprótese à metáfora paterna, que se encontra ausente na psicose. Ele a deno-mina de delirante não no sentido de estar fora da realidade, mas por guardarem si um núcleo de Real. De qualquer forma, ele considera que essa “cria-ção” pode sustentar um laço social viável e que o psicanalista deve participarfacilitando esta construção.

Quando falamos da estrutura psicótica, falamos de sujeitos que estãoagenciados de forma significante frente a um Outro não barrado. Eles se or-ganizarão e farão seus arranjos dentro de um mundo organizado pelos neu-róticos (pelo falo). Quando falamos da doença psicótica, falamos de sujeitosque estão encontrando dificuldades de fazer esses arranjos e que, portanto,precisam de cuidado.

Acompanhar esse sujeito, no processo de invenção da sua “cura”, exi-ge que o psicanalista respeite a diferença colocada pela estrutura psicótica,mas que não o trate como “incapaz”, pois a patologia não deve impedi-lo deser sujeito. Afinal, responsabilizar o homem é convocar o sujeito. Esse traba-lho exige muita persistência do analista, pois é necessário encontrar e reco-nhecer pequenos traços significantes que descolem o sujeito do eterno retor-no da pulsão de morte e do Real que não cessa de não se inscrever.

Nesse trabalho, costumo utilizar a imagem da construção de uma pele,que possibilite ao paciente o contato com o outro, com o mundo, de forma queviver não seja sempre tão ameaçador. Pois, para o psicótico, o Outro tomaconsistência e se torna seu algoz.

A proteção que a identidade de doente e o hospital podem oferecerpara um sujeito em crise podem também lançá-lo no “destino da doença”. Apsiquiatria biologicista, que insiste em simplesmente esbater sintomas atra-vés de medicamentos e classificar patologias, oferece o lugar de objeto a umpsicótico pronto a se entregar ao seu Outro. Esse encontro pode ser desas-troso.

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Por outro lado, no entanto, a medicação pode atuar na defesa de umsujeito que está totalmente à mercê do gozo do Outro e precisa encontrar oanteparo químico para produzir algum limite. A relação com a medicação podeser uma construção importante na trajetória de um tratamento. É necessáriauma organização mínima, para que novas construções significantes possamse realizar. Nesse sentido, palavras, remédios, produções artísticas e expres-são corporal são elementos que interferem num sujeito que pode tornar-sedesejante. Como afirma Tenório: “Nessa condição, o sujeito no qual se apos-ta, paradoxalmente não está lá antes. Decorrerá de um trabalho clínico.” (2001,p. 99)

Cavalcanti (1992), em sua dissertação de mestrado – O Tear das Cin-zas –, que aborda a relação da psicose com a instituição psiquiátrica, propõe:

“É preciso alguma coisa que não seja nem uma instituição, nemum estabelecimento, nem um grupo, nem etc. É o que chamei deuma máquina abstrata, da qual uma das funções essenciais é afunção diacrítica, que, como temos visto até aqui, busca cons-truir uma ‘armadura’ simbólica, a fim de que os acontecimentospossam ser recolhidos neste nível, ou seja, no nível da diferenci-ação e do encadeamento complexo de significantes. Significantesestes que permitem ao psicótico um ancoramento e alguma or-ganização, ainda que frágeis”. (p. 227)

O próprio título da dissertação nos dá a dimensão do trabalho de cons-trução e da fragilidade desta composição. Ao utilizar o conceito de ArmaduraSimbólica, Cavalcanti aposta na possibilidade de construção significante naclínica das psicoses. O termo traz em si a dimensão de defesa que pode seconstituir na fala de um sujeito. Esta é a aposta para a transformação dasintervenções pedagógicas, muitas vezes utilizadas com esses pacientes, emterapêuticas.

Atualmente, os profissionais da área da saúde reúnem esforços paraações em parceria, pois o atendimento de psicóticos demonstra que a ampli-ação dos recursos utilizados (medicação, terapia ocupacional, psicoterapia,atividade artística, musical, etc.) e da rede transferencial aumenta as possibi-lidades de rearranjos subjetivos que possibilitam sua inserção no mundo.

A reforma psiquiátrica, ao combater o isolamento como forma de trata-mento do sujeito psicótico e apostar no fortalecimento de sua capacidade deestabelecer laços, demanda uma maior reflexão e formulação teórica sobre apsicose e convoca os diferentes tipos de saber que podem contribuir para amudança na forma de tratá-la. Os psicanalistas reconhecem uma dificuldadeintrínseca ao psicótico de realizar laço social, mas, como nos afirma Tenório

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(2001, p.100), “isto não nos demite, a nós psicanalistas, de nossa responsabi-lidade em relação ao modo como, na sociedade, é agenciada a loucura, éadmitida ou recusada a psicose”.

A lei da reforma psiquiátrica, aprovada recentemente em nosso país,prevê a criação de novos dispositivos que possam acolher e transformar arealidade dos pacientes psicóticos. Dentre os vários serviços criados, encon-tramos os residenciais terapêuticos, lares protegidos para pacientes vindosde longas institucionalizações em hospitais psiquiátricos.

A direção do Hospital Psiquiátrico São Pedro, a partir de 1999, resolveuenfrentar o desafio de realizar projetos de reforma psiquiátrica e criarresidenciais terapêuticos para os pacientes que tivessem condições e vonta-de de sair do Hospital. Foi criado, então, o Projeto Morada São Pedro, do qualparticipo desde o início de sua implementação. Atualmente, faço parte daequipe técnica responsável pelo trabalho com os pacientes que saíram dohospital e se tornaram moradores da vila.

Os residenciais terapêuticos foram construídos na área localizada atrásdo Hospital, junto à comunidade da vila São Pedro, com o objetivo de promo-ver a saída de moradores da área asilar e a integração dessas pessoas coma comunidade da Vila. Com esse propósito, foram construídas 27 casas, dasquais, neste momento, 17 já estão ocupadas. A ocupação das casas vemocorrendo de forma gradual desde janeiro deste ano.

O trabalho no Morada implica o desafio da mudança e, quotidiana-mente, nos exige a reflexão sobre os limites e possibilidades dessa experiên-cia. Não existem dúvidas sobre a ineficácia do modelo manicomial; entretan-to, a desconstrução deste modelo exige a construção de novas referênciaspara/nessas pessoas.

O resgate da singularidade é precioso neste processo e produz de for-ma natural a emergência da história anterior ao hospital. Muitos moradoresfalam da vontade de retornar para o meio familiar, apesar de terem sido aban-donados. No Morada, existe um permanente trabalho de “resgate”. Resgatedo que foi perdido, resgate dos naufrágios que aconteceram – e ainda acon-tecem, pois não podemos negar a fragilidade da nau. A riqueza dessa experi-ência está intimamente ligada à aposta na mudança. Essas pessoas estãosendo investidas, acompanhadas, exigidas, escutadas, e isto está produzin-do efeitos de sujeito.

O lugar anônimo oferecido pelo manicômio não exige do psicótico ne-nhum movimento de existência (ter um lugar). Essa situação fica modificada,a partir do momento em que a rede de trocas é ampliada, a solução dosconflitos acontece através do diálogo, as relações de poder começam a ser

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transformadas. Entretanto, existe o tempo de cada um para conseguir “talvez”construir um lugar menos anônimo. Um morador me disse: “tem que dar tem-po, a gente viveu muito tempo dentro do hospital, eu não estou nem aqui, nemlá, pareço uma alma penada”.

Retirar os pacientes do hospital foi possível, entretanto, a grande tarefaé retirar o hospital de dentro deles. Isto é possível? Como fazer? Ainda é cedopara que estas perguntas possam ser respondidas, mas com certeza estamosnum processo de desconstrução do manicômio.

Tenório (2001) afirma que existe uma tensão entre a Reforma Psiquiá-trica e a Psicanálise, pois a primeira existe como um movimento humanista etrabalha a partir de uma ética do cuidado, enquanto a Psicanálise se propõecomo uma ética do desejo. Considero que Tenório tem razão na avaliaçãoque faz sobre os encontros e desencontros desses discursos. Na prática clí-nica do Morada, encontro esta tensão. Todavia, tenho que reconhecer queela está sendo produtora de importantes aprendizados e questionamentos.Existem momentos em que a tensão, o confronto com as diferenças nos esti-mulam a produzir. Este texto é o resultado de muitos confrontos, muitas dife-renças, mas também de muitos encontros.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AULAGNIER, Piera. A Violência da Interpretação: do pictograma ao enunciado. Rio deJaneiro: Imago, 1979.CALLIGARIS, Contardo. Introdução a Uma Clínica Diferencial das Psicoses. Porto Ale-gre: Artes Médicas, 1989.CAVALCANTI, Maria Tavares. O Tear das Cinzas: um estudo sobre as relações entrea psicose e a instituição psiquiátrica. Dissertação de Mestrado em Psiquiatria. Institutode Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1992.FREUD, Sigmund. (1911). Notas psicanalíticas sobre um caso de paranóia. In: ____.Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980.LACAN, Jacques. (1958) A direção do tratamento e os princípios do seu poder. In:Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.NASIO, Juan David. “Lo inconsciente, la transferencia y la interpretacion delpsicoanalista: una vision lacaniana”. In: En los Limites de la transferencia. BuenosAires: Nueva Vision, 1987. p.15-27.QUINET, Antônio. Teoria e Clínica da Psicose. Rio de Janeiro: Forense Universitária,1997.SCHREBER, Daniel P. Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: EdiçõesGraal, 1985.TENÓRIO, Fernando. A Psicanálise e a Clínica da Reforma Psiquiátrica. Rio de Janei-ro: Rios Ambiciosos, 2001.

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RESUMOO texto analisa o longo tempo de estabilização de um paciente esquizofrênicograve, buscando os pontos possíveis de serem aplicados como dispositivosde tratamento para pacientes com dificuldade de articular uma metáfora deli-rante.PALAVRAS-CHAVE: tratamento; psicose; esquizofrenia; delírio

REMARKS ON THE DIRECTION OF THE TREATMENTIN A CASE OF SCHIZOPHRENIA

ABSTRACTThe current article analyses the longlasting period of stability in a patientsuffering from serious schizophrenia, searching for points that might be appliedas treatment interventions with patients facing difficulties to devise a deliriousmetaphor.KEYWORDS: treatment; psychosis; schizophrenia; delirium

OBSERVAÇÕES SOBRE ADIREÇÃO DO TRATAMENTO EMUM CASO DE ESQUIZOFRENIA

Nilson Sibemberg*

* Médico psiquiatra, Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, membrodas equipes clínicas do Centro Lydia Coriat e do Centro de Atenção Integral à Saúde Mental-8,Professor do Centro de Estudos Paulo Cesar D’Avila Brandão.

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Adireção do tratamento nas psicoses aponta para distintos caminhos. Naspsicoses não decididas da infância torna-se possível a inscrição da me-

táfora paterna, constituindo a operação de separação da criança do corpomaterno pela intervenção simbólica dessa instância terceira, o Nome-do-Pai.

A puberdade impõe uma marca real ao sujeito, que diante da demandado Outro reatualiza o complexo de castração de tal forma que nas psicosescostuma tornar essa estrutura psíquica como decidida. O delírio do psicóticoaparece como uma tentativa de cura, significação delirante que busca fazersentido a um vazio do sujeito. Esse vazio diz respeito à rejeição de um signifi-cante primordial no Outro, o Nome-do-Pai, significante metafórico que permi-te ao sujeito o acesso à significação fálica. Assim, o delírio viria a se constituircomo uma tentativa de articular uma metáfora que possa fazer suplência doNome-do-Pai e rearticular o conjunto de suas significações na falta dosignificante fálico. Uma metáfora delirante. No entanto, diferente da paranóiaque pode construir uma consistência delirante, cuja articulação metafórica emconsonância com elementos do discurso social lhe facilita um certo trânsito,na esquizofrenia se faz mais difícil a construção de uma metáfora delirante,requerendo, em alguns casos, outros dispositivos clínicos que possam ajudarna constituição de um sintoma que permita ao sujeito articular um nó entre osregistros dissociados do real, do simbólico e do imaginário, caracterizando,como refere Jerusalinsky (1998), uma operação ortopédica1, mas que permi-tem uma estabilização da psicose. O que não pode ser menosprezado selevarmos em conta os efeitos dilacerantes da angústia de fragmentação doesquizofrênico.

A análise de um fragmento clínico num caso grave de esquizofrenia vaiorientar nossa reflexão sobre um dos caminhos possíveis no tratamento daspsicoses.

Carlos é um esquizofrênico que passou grande parte de sua vida inter-nado no manicômio. Quando o conheci era um sujeito prestativo que cuidavada portaria de uma pensão protegida e, usando esse tempo, fazia compulsi-vamente bordados e tapeçaria. Sempre que alguém chegava e comentavaseu trabalho ele respondia com um número que aquela peça tinha numa sériede tapeçarias que já fizera.

1 Jerusalinsky utiliza o termo ortopedia para diferenciar o conceito de suplência desenvolvido porLacan na abordagem do sinthome em Joyce. A suplência se refere à falha na amarragem de umdos registros ( real, simbólico e imaginário), enquanto a ortopedia estaria em função da falha deanolamento dos três registros.

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Por trás daquela aparente calmaria, Carlos vivia povoado por alucina-ções auditivas e visuais com conteúdo recheado de entidades da umbanda,das quais procurava se defender. Quando sua defesa psicótica fracassavatornava-se agressivo em surtos persecutórios, chegando a ter agredido comuma enxada um colega da colônia agrícola.

Sua última crise grave se deu há mais de sete anos quando, atendendovozes de comando de uma entidade (o preto velho), acreditou ser possívelcaminhar nas nuvens. O real da lei da gravidade mostrou o engodo e Carloscaiu do 1º andar da casa que habitava. Teve fratura cominutiva dos tornozelos.

Os neurolépticos tradicionais que lhe eram receitados em grande quan-tidade não impediam o aparecimento dos fenômenos elementares.

Na pensão onde morava, Carlos participava de oficinas de terapiaocupacional onde os pensionistas eram incentivados a realizar algumas tare-fas. Numa dessas oficinas, coordenadas por uma estudante de artes plásti-cas, a demanda se fazia na direção de uma expressão artística.

Carlos, além da compulsão pela tapeçaria, passou a desenhar de for-ma repetitiva pequenos animais com um traço diferenciado que lembra aspinturas rupestres encontrados nas paredes das cavernas. O olhar da artistanotou que havia ali algo de significativo no campo das artes plásticas, o quefoi confirmado por um professor seu. Carlos era um artista primitivista.

Desde então, Carlos passou a ser olhado como um artista. Participoude diversas exposições nacionais e internacionais. Retornou a cidade de ori-gem para pintar seus desenhos nos muros da mesma cidade que deixaracomo o louco em direção ao manicômio, onde passou longos anos de suavida.

Este evento marcou nele uma profunda mudança. As vozes e as visõesdesapareceram. A quantidade de neurolépticos usada foi diminuída para menosde um terço que costumava usar. Alguns sintomas persistem até hoje, comoqueixas que recaem sobre o corpo despedaçando. Quando as manifestaçõesde uma crise aparecem, põe-se a desenhar diante do olhar da equipe nainstituição onde faz seu tratamento. Logo os sintomas deixam de lhe importu-nar, sem que seja preciso uma intervenção medicamentosa diferente da usual.

Qual razão de buscar nesse caso clínico a referência para algumasreflexões sobre a direção do tratamento na esquizofrenia?

Apesar da estabilização das crises psicóticas ter se dado quando foitransformado em artista, aqui não se trata de arte-terapia. É importante res-saltar que este sujeito não se reconhece enquanto tal. Segue realizando seusdesenhos, sendo que outros lhe dão sentido artístico e os levam a ser expos-tos. Sobre a arte primitivista, pouco ele sabe.

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Na instituição onde Carlos segue seu tratamento (Cais Mental-8), nãosão todos os usuários que realizam uma análise. Porém, os dispositivosinstitucionais de tratamento passam por uma leitura psicanalítica das psico-ses.

O psicótico é habitado pela linguagem, mas não habita o discurso soci-al. A forclusão do Nome-do-Pai, significante que incide sobre a castração,acarreta alterações no enodamento dos três registros, o real, o simbólico e oimaginário. A falta desse significante primordial manifesta-se na desarticula-ção da linguagem, onde a cadeia falada apresenta-se sem limites e semvetorização. A perturbação da relação com o significante, que se produz peloafrouxamento dos pontos de fixação entre o significante e o significado, impe-de a constituição de um discurso, representação verbal capaz de veicularsignificações estáveis e compreensíveis em direção ao Outro.

Assim, na esquizofrenia, a incidência da forclusão sobre o significantemestre (S1), ordenador da cadeia significante, dificulta a construção de umsaber delirante (S2) consistente. A tentativa de restituir uma significação, dereinvestir nas representações de palavra, encontra um buraco simbólico noretorno ao ponto de partida da cadeia. Uma das características da esquizofreniaé a fragmentação da linguagem, a dificuldade de articulação discursiva.

Os dispositivos institucionais buscam fornecer suporte para a expressi-vidade do sujeito. Dar suporte, ajudar na articulação de uma fala, pressupõe apresença do Outro. Uma fala pode fazer sentido somente se é dirigida aoOutro, se encontrar testemunho da mensagem. Esse Outro pode ser encar-nado por algum membro da equipe, estabelecido numa escolha transferencial,porém ele circula como lugar de remetência no funcionamento diário da insti-tuição.

O discurso institucional pode vir a preencher o buraco deixado pelaforclusão do significante mestre, construindo uma ortopedia da cadeia signifi-cante. Este ficaria, então, encarnado no sintoma, nos dispositivos institucionais,que poderiam ajudar o esquizofrênico a construir um campo de saber com umlugar de referência.

Que leitura poderia ser feita sobre a estabilização de Carlos? A hipóte-se que fazemos é de que funcionou, na pensão onde morava, um dispositivosemelhante ao que, para alguns usuários, tenta-se armar no Centro de Aten-ção Psicossocial (CAIS Mental-8).

O desejo da estagiária de artes plásticas produziu um olhar em direçãoa Carlos cujo vetor deixou de ser seu corpo, as dores da fragmentação daimagem corporal, ou os sintomas que só adquiriam significado como expres-são do corpo da patologia. O vetor deslocou-se, então, do corpo para a repre-

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sentação no traço que apresentava Carlos como sujeito para o outro. Umsignificante representa um sujeito para outro significante.

O desenho de Carlos foi transformado em mensagem relativa a umcódigo de linguagem, o das artes plásticas, constituindo um representante darepresentação. O caráter representacional da palavra permite que o sujeitopossa se distanciar do corpo real.

O traço primitivista no desenho de Carlos passou a ser seu cartão devisita. O reconhecimento artístico dentro e fora da instituição parece ter funci-onado como substituto de S1.

Poderíamos pensar no bordado ou na tapeçaria, realizados por um tem-po de forma compulsiva, como um sinthome que poderia fazer trama nadissociação entre o real, o simbólico e o imaginário? Naquele momento Carlosestava em crise contínua, portanto seu sintoma não era exitoso em produzirum nó. A hipótese que faço é que a eficácia do sintoma na amarragem dosregistros depende da incidência do olhar, da palavra do Outro.

Essa estratégia terapêutica tem suas limitações. Não arriscaria dizerque se tenha inscrito uma metáfora neste reconhecimento artístico. Carlos,sem a presença constante de um olhar sobre seu desenho, sua obra, nãoconsegue articular um discurso de sua produção no contexto das artes plásti-cas.

O significante “artista” subsiste enquanto marca na dependência de umOutro encarnado que lhe dê suporte constante. É por isso que quando retornamas queixas corporais, tomadas como sintomas crepusculares de uma crise,se intensifica sua presença na instituição como retomada de um olhar quedesloca do corpo para uma produção que faça sentido, o desenho. Com issoas crises são abortadas num curto espaço de tempo e ele pode retomar suacirculação social.

Nesse dispositivo parece não haver lugar para um fim de tratamento. Oacompanhamento é continuado, apenas modulando de intensidade em ummovimento de alternância, presença e ausência, frente ao olhar que lhe em-presta sustentação psíquica.

Pode se objetar que essa direção de tratamento não diga respeito àpsicanálise. No entanto, é importante considerar que a direção da cura naspsicoses, enquanto vetor que aponta um sentido para o tratamento sem con-tudo antecipar seu fim, não é única. A clínica das psicoses, como aponta oplural, constitui uma variedade, uma diversidade de situações clínicas querequer pensar em diferentes formas de intervenção.

O tratamento de Carlos iniciou de uma forma pouco casual, com umaparticularidade que não há como estender a outros pacientes. São poucos os

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que tem uma expressão artística que possa ter reconhecimento no mundodas artes, e que, ainda por cima, encontrem um artista que reconheça essevalor e faça um investimento pessoal no desenvolvimento da obra do pacien-te. Tampouco podemos pensar em arte-terapia, pois o que sustenta uma po-sição psíquica em Carlos não é somente o exercício compulsivo de seu dese-nho, mas um olhar constante que lhe atribui uma significação.

Não obstante, é possível, com uma leitura psicanalítica, buscar os ele-mentos dessa dinâmica que possa se constituir em dispositivos clínicos na-queles casos onde há uma impossibilidade de articular uma metáfora deli-rante.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

JERUSALINSKY, Alfredo. Considerações preliminares: a todo tratamento possível deuma criança. Revista da Associação Psicanalítica de Curitiba, Curitiba, n° 2, p. 95-114,1998.

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RESUMOEste artigo parte do recorte clínico de um caso de psicose, examinando asincidências da teoria infantil não-sexual na problemática do nome próprio e nodelírio de auto-engendramento, assim como a especificidade da direção dotratamento, com especial atenção ao recorte da letra como suporte do traçounário e seus efeitos no delírio e alucinações do analisante.PALAVRAS-CHAVE: Nome-próprio; direção do tratamento; psicose; letra

THE PROPER NAME AND ITS INVENTIONABSTRACT

This article starts from a clinical cutting on a case of psychosis, examining theincidences of the non-sexual infantile theory in the Proper Name issue and inthe delirium of self-engendering, as well as a specificity in the direction of thetreatment, with special regard to the letter´s cutting as support of the unarytrace and its effects on the analysant´s delirium and hallucinations .KEYWORDS: Proper Name; direction of the treatment; psychosis; letter

O NOME PRÓPRIOE SUA INVENÇÃO

Mario Fleig*

* Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Analista membro da Asso-ciação Lacaniana Internacional, Professor do PPG-Filosofia da UNISINOS. E-mail:[email protected]

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“A psicose, é diante desta queum analista jamais deve recuar.”

J. Lacan (1977)

Otrabalho cotidiano confronta o psicanalista com a insuficiência de seusaber e ao mesmo tempo com a exigência de dar conta do que se passa

em cada tratamento que dirige. Em função disso, não há caso clínico maisfácil do que outro, assim como não se pode dizer que o tratamento do sofri-mento neurótico oferece menores dificuldades do que o da psicose. Contu-do, no trabalho clínico com pacientes situados no discurso psicótico, obser-va-se que estes oferecem menor resistência à transferência do que os situa-dos na neurose, acarretando uma dificuldade especial. Esta dificuldade éacrescida pelo efeito visível de que toda análise desencadeia a patologiaque visa a tratar: é a clássica descrição da “neurose de transferência”. Nocaso da psicose não é diferente. Como pode o analista estar à altura doquadro psicótico que seu ato desencadeia, no qual está necessariamenteincluído e que lhe demanda uma resposta e uma rearticulação? Trata-se deum quadro inevitavelmente totalitário, como se apresenta exemplarmente demodo puro na paranóia. Como não responder de modo totalitário, em espe-lho, apelando para os recursos que apagam nossa divisão, como a camisade força medicamen-tosa e a internação compulsória? Lacan nos alerta quecomo psicanalistas não podemos recuar diante da psicose. Contudo, nãobasta dizer que temos sujeitos psicóticos em análise para estarmos de acor-do com este alerta. Além daquilo que estes analisantes certamente ensinamao analista, cabe também ao analista dizer algo sobre o seu fazer, visando aexplicitar aspectos da especificidade do ato psicanalítico. É isso que propo-mos neste artigo, partindo de um recorte clínico e da problemática do nomepróprio, discutir aspectos da direção do tratamento na psicose à luz das for-mulações de Lacan.

Recebi João – vou chamá-lo assim – em meu consultório, e veio acom-panhado de sua esposa. Disse-me de saída que tinha vindo me ver porquesabia de meu profundo conhecimento sobre religião e teologia. Passou entãoa me relatar sua existência errática, marcada por hospitalizações repetidas,com uma incidência mais ou menos anual. Já tinha perdido a conta de quantotempo passara dentro de hospitais psiquiátricos, e nada conseguia interrom-per essa reincidência. Estava próximo dos 50 anos de idade, e as crises cominternações aconteciam desde o primeiro episódio, que tinha ocorrido antesdos seus 30 anos. Passou a vir regularmente e, às vezes, também apareciaem horários não combinados; na medida do possível, eu sempre o recebia.

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Ao longo de seu relato, no qual seguia o fio de sua memória, resgatou osacontecimentos e lembranças marcantes.

Ele me disse que sua primeira crise ocorrera dois anos após o casa-mento, quando foi transferido para uma cidade distante, determinada pelaempresa em que trabalhava, o que coincidiu com o nascimento do seu primei-ro filho. Nesta empresa, sendo um funcionário muito competente e honesto,descobrira uma fraude praticada por seu superior, que determinara sua trans-ferência.

Nessa primeira crise, relatou-me que dizia ser Jesus Cristo e, sendoassim, tinha “o corpo fechado”, nada poderia lhe acontecer, e tinha uma mis-são muito importante, que era a salvação de todos. Além disso, achava-secapaz de “olhar para o sol diretamente”, afrontá-lo, sem que nada pudesselhe acontecer, pois “eu posso tudo”. Quando começou a desafiar as pessoasà sua volta, tentando entregar-lhes seu revólver e dizendo que podiam dispa-rar contra seu corpo, na aposta de que nada poderia lhe acontecer, pois tinhao corpo fechado, foi compulsoriamente internado. Afirmava que nenhuma balapoderia entrar em seu corpo, que nada poderia atingi-lo e, ao mesmo tempo,que ele podia tudo. Disse-me que se sentia “todo-poderoso”. Relatou-me tam-bém seus problemas com as ameaças vindas dos vizinhos, das vozes queouvia e especialmente de algo que lhe acontecia, produzindo um riso que nãoconseguia conter. Este riso se estendeu por muito tempo ao longo do trata-mento. Também explorava um problema que o atormentava desde sempre:ele não sabia se era filho adotado ou não, se era filho natural, devido ao fatode seus pais nunca terem sido casados.

Quando ele me relatou sobre sua entrada na escola, apareceu um pro-blema com seu nome, que trazia como ainda não resolvido: por ocasião deseu nascimento, diz que fora sua mãe quem o registrara, com o nome JoãoLuís da Silva, e esse era o nome que ele supunha que fosse seu. Ao ter queapresentar a certidão de nascimento, como normalmente ocorre, ele desco-briu que tem outro registro e com outro nome. O seu pai também o tinharegistrado, depois da mãe, com o nome de João Silva Souza. Ele teve aí seuprimeiro problema, mas isso ficou assim. Somente mais tarde, quando come-çou a trabalhar, teve que resolver o problema. Ou seja, precisou escolherquem ele era. Ele escolheu o segundo nome, João Silva Souza, pelo qual seupai o inscrevera no registro civil, renunciando ao segundo prenome, “Luís”, eà partícula “da”.

Somente depois de sete anos de tratamento, ele me disse outra coisasurpreendente: que tinha um terceiro nome, pois fora batizado com o nomede João Fischer. Mas ele não sabia de onde tinha vindo este nome, talvez dos

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padrinhos. Ele pensava que seus problemas se originavam do fato de seuspais não serem casados, o que, naquele tempo, era algo muito importante. Oseu pai tivera muitos problemas, como uma meningite na infância, com se-qüelas físicas. Mas, apesar disto, havia ingressado no exército, como solda-do, e mais tarde dera baixa, passando a exercer a profissão de padeiro. Estaprofissão determinava que ficasse fora de casa em seus horários de trabalhoespecíficos ou quando trabalhava em outras cidades, ausentando-se por lon-gos períodos. Em contrapartida, situava como a pessoa mais importante emsua vida a avó materna, de quem sua mãe era “filha de criação”. O nome daavó era Joana Páscoa. Esta avó, Dona Páscoa, com quem moravam, tiverauma casa espírita, sendo uma pessoa de muita importância na comunidade.Desde criança, João acompanhava tudo aquilo que acontecia nesta casa.Contudo, sua escolha religiosa se dera pela religião católica, ainda que sem-pre tenha se visto dividido entre o espiritismo e o catolicismo. Esta escolhafora em parte determinada pela atenção especial que recebera dos catequistasjesuítas, que desenvolviam um trabalho muito intenso no bairro em que mo-rava.

Nos primeiros meses do tratamento, eu ficava me perguntando sobre oque fazia com que João continuasse vindo e por que a expectativa de umacrise e conseqüente necessidade de internação, formulada por sua esposaao me telefonar em momentos mais preocupantes, não acontecia e de fatonunca mais voltou a acontecer. Eu sempre tinha bem presente o que medissera de saída, a respeito de sua suposição de eu ter um profundo conheci-mento sobre religião e teologia. Suponho que tal êxito fora devido à chanceque tive de introduzir algo de uma não-certeza em seus enunciados e em suateoria delirante. Consegui formular isso depois que ele me explicou sua teoriasobre o tratamento, que foi tendo muitas variantes, mas cujo ponto centralapareceu no enunciado: “Eu venho aqui me tratar com a Psicanálise”. E apartir disso, passava a me ensinar sobre o que vinha fazer ali e sobre o queera a psicanálise. Ele começou a formular essa teoria quando me disse, nummomento de muita angústia, que ele não sabia como sair do poço: “Eu estouno fundo do poço e não sei como sair”. Esse poço o remetia a sua infância eseu temor de um dia cair de fato dentro do poço que existia no pátio de suacasa. Para ele, isso já havia acontecido, ou seja, não sabia qual era seu nome,quando não estava referido pelo nome delirante Jesus Cristo. Aconteceu deum dia, depois de tantas vezes falar-me desse poço, ouvi no que me disse umacento um pouco diferente e lhe devolvi o que tinha ouvido: “póço”, ou seja,introduzi um acento agudo e isso produziu um efeito inesperado, colocandoem pauta o “posso”, de seu enunciado “eu posso tudo”. Então ele retornou

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com uma nova formulação: “É fácil de resolver: é só esperar o poço encher eaí a gente sai do poço”. A partir deste dia, suas certezas começaram a desa-bar, e os pequenos detalhes do cotidiano e de suas lembranças foram crian-do delineamentos diferentes. A nova sintaxe e um novo léxico passaram acobrir suas impressões e os elementos externos. Onde antes se produziamidéias persecutórias ou alucinações auditivas, agora se organizam situaçõese objetos, sensações e idéias, marcadas por vacilações e não-certezas. Emseu vocabulário surgiram termos como “pode ser”, “talvez”, “tenho a impres-são”, “isso eu não sei”, “tal coisa vou ter que ver”, etc.

Uma de minhas hipóteses era de que o problema de sua identificaçãocom nome próprio tinha a ver com a injunção que o lançava na produçãodelirante. Ele mesmo tinha a esperança de sanar seu problema quando tives-se resolvido a questão do seu nome, mas descobrira que, mesmo resolvendolegalmente o problema do seu nome, continuava no mesmo sofrimento. Odesencadeamento de sua psicose fora pontual com o nascimento do primeirode seus cinco filhos, ou seja, quando teve que apelar para o significante doNome-do-Pai no grande Outro para autentificar seu lugar de enunciação comopai, e assim poder nomear seu filho, e nada respondeu à sua invocação.

O problema de seu nome retornou em suas sessões durante muitotempo, tendo se desdobrado em duas direções: as dúvidas sobre sua origem,se era adotado ou não, o que o levou inclusive a uma intensa pesquisa juntoà sua idosa mãe, que continuava sempre afirmando ser ele seu filho; e aslembranças sobre sua avó, a Páscoa. O que ele fazia era me apresentar asteorias que tinha sobre estas questões, e minha linha de trabalho consistiatanto em questionar suas formulações absolutas quanto seguir o fio do mate-rial que trazia, até pode introduzir uma fala que situasse o ponto específico aoqual aquilo se ligava, a um resto diurno, uma lembrança, um conversa quetivera, uma imagem na televisão, etc. O que aconteceu é que tanto suas alu-cinações, especialmente as auditivas em relação aos vizinhos, como suascertezas delirantes sobre sua origem e seus nomes foram se desfazendo,com conseqüências benéficas para sua qualidade de vida e de sua família.Um dia, depois de, mais uma vez, me falar de lembranças antigas em relaçãoà sua avó materna, me disse que achava que já tinha falado tudo o que gos-taria de falar, me dispensando. Foi um momento sereno e triste. Tambémpara mim. Nossos encontros já duravam mais de quinze anos. Menos de umano depois, seus familiares me comunicaram seu falecimento, decorrente deproblemas de saúde que o acompanhavam desde muito tempo.

O que este recorte clínico pode nos ensinar? Eu mesmo penso queainda tenho muito para aprender a partir do que João me ensinou ao longo

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destes anos, tanto no modo de acolher um analisante quanto nas hipótesessobre como se organiza uma subjetividade na psicose. Durante um certo tem-po, tentei olhar o trabalho com João na perspectiva do tratamento da psicosea partir da hipótese de elaboração de um delírio constituído e viável com basena metáfora delirante. Essa formulação foi proposta por Calligaris (1989), emseus seminários realizados em Porto Alegre. Partindo do pressuposto de queaquilo que retorna no Real para o sujeito situado no discurso psicótico é afunção paterna, afirma ele que seria então nesse retorno que se daria o traba-lho analítico, visando a facilitar a constituição de um delírio viável. Deste modo,conclui Calligaris:

“Portanto, se é possível produzir modificações na constelaçãopaterna do sujeito psicótico, similares às obtidas com um pacien-te neurótico, é possível auxiliar o paciente psicótico em análise aconstituir um delírio viável, isto é, uma pseudometáfora paterna.“(Calligaris, 1989, p. 57)

Ora, a proposta do tratamento da psicose a partir da hipótese de elabo-ração de um delírio constituído e viável com base na metáfora delirante1 en-contra fundamento na formulação de Lacan:

“É a falta do Nome-do-Pai nesse lugar que, pelo buraco que abreno significado, inicia a cascata dos remanejamentos dosignificante de onde provém o desastre crescente do imaginário,até que se alcance o nível em que significante e significado seestabilizem na metáfora delirante.” (Lacan, 1966, p. 577)

Três pontos a destacar nesse enunciado: a psicose se desencadeiapela forclusão do Nome-do-Pai; a metáfora delirante se produz como umaprótese à falta do significante Nome-do-Pai; e seria possível se alcançar umnível em que o significante e o significado se estabilizem, graças à metáforadelirante. Esta proposta de Lacan (1966) para um tratamento possível de psi-cose é viável? Como operar com vistas à construção de um delírio constituídosem que isso mantenha o analisante à mercê de injunções? Seria possívelesta estabilização que sugere Lacan? Sabemos que muitos analistas já colo-caram esta perspectiva em questão, inclusive Lacan (1991), especialmentequando introduz a topologia dos nós e a noção de sinthoma, no seminário “O

1 Segundo nossas pesquisas, encontramos apenas uma vez o uso do conceito “metáfora deliran-te” em Lacan. Por outro lado, esse conceito nos remete à formulação freudiana acerca do traba-lho do delírio, na medida em que o paranóico o reconstruiria de tal modo que pudesse voltar a viverdentro dele. Assim, afirma Freud que “o que consideramos a produção patológica, a formação dodelírio, é, na realidade, a tentativa de restabelecimento, a reconstrução”. (Freud, 1911c, p. 193)

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sinthoma”2. Não vamos tomar esta direção em relação ao presente caso. Nãoporque não se trate de uma psicose joyceana, senão que julgamos mais per-tinente a abordagem a partir do problema do nome próprio e a sua teoriasubjacente. João era um católico formado pelos jesuítas, mas não era de boacepa, dada sua vacilação face à religião da avó materna. Talvez por issomesmo pôde se entregar a uma análise3. João encontrou seu sinthoma napsicanálise e um dia pode dispensá-la, sem sucumbir à melancolia ou erigir-se na paranóia.

Um significante não pode se significar a si mesmo. Disso resulta que oprincípio de identidade é abandonado no âmbito do sujeito, e, conseqüente-mente, o sujeito do inconsciente situa-se fora do campo do predicável. É adiferença que Lacan introduz entre a mediação por via da imagem e a media-ção pelo significante: a possível identidade imaginária como permanência doobjeto no campo perceptivo e a impossível identidade simbólica que se resol-ve pela identificação com o significante que produz o sujeito dividido, comoefeito da cisão entre ser e significante. É nesse âmbito que se resumem,então, as três identificações assinaladas por Freud [(1921c) 1982].

A primeira identificação, a narcísica, por incorporação do pai da pré-história, é anterior a qualquer investimento objetal não sendo, com isso, con-seqüência de uma perda de objeto. É desta primeira identificação que se ori-gina o Nome-do-Pai. A segunda identificação é formadora do ideal do eu eresulta da perda dos objetos libidinais relativos à história edípica do sujeito.Ela não toma forma total do objeto copiado, mas apenas um dos seus traços,o traço unário. A terceira identificação, dita histérica, é aquela em que o objetocopiado se apresenta não como desejável, mas como desejante. A primeiraidentificação instaura o campo da metáfora que possibilita o desejo e as ou-tras duas situam as condições de seu exercício. Ou seja, de onde desejar e oque desejar.

2 Diante da pergunta sobre a existência de outras forclusões além da que resulta da forclusão doNome-do-Pai, Lacan (1991, p. 131) responde afirmativamente, rompendo com a concepção desituar a forclusão como a operação exclusiva do campo da psicose. Harari (2002) é elucidativo arespeito da diversidade das forclusões, assim como R. Chemama em sua conferência sobre a“Forclusão do falo” proferida em Porto Alegre em 2002.3 Quanto a Joyce, Lacan (1991) nos afirma que era um católico inanalisável, bastando-lhe o seusaber lidar com a literatura como sinthoma, de tal ordem “que não haja nada para fazer paraanalisá-lo” (p. 136). Não estaria Joyce de tal modo arraigado na certeza e no amor narcísico deseu sinthoma que não lhe restava outra alternativa senão a reiterada pregação deste amor? Nãosurge aqui uma das mais atuais resistências à psicanálise, ao lado do ideal de racionalidade dasciências positivistas?

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O sujeito dividido nasce pelo contável do traço, identifica-se com a pos-sibilidade da conta, confundindo-se e sendo a mesma coisa que a operação“mais um” da produção do sucessor. Contudo, fica a pergunta de como se dáa singularização, pois os traços, na conta, não se diferenciam senão pelaposição na série. Assim como o patronímico, ele desmancha, apaga o queexiste de singular pelo fato de referir a pertença a uma linhagem comum. Eneste movimento de apagamento da singularidade, nos singulariza. Como sedá isso? Parece que isso ocorre por ocasião da formação do ideal do eu,momento em que o traço unário é extraído da série do contável para repre-sentar, para o sujeito que aí se constitui, a perda do objeto edipiano. Daí emdiante, esse traço unário ganha valor significante, na medida em que é a partirdele (de onde desejar?) e identificando-se com ele é que o sujeito passará ainterrogar todos os outros significantes da cadeia em busca do reencontro doobjeto (o que desejar?). O ideal do eu não demarca o sujeito, mas o lugar deonde o sujeito surge como movimento de representação.

É dentro deste quadro das três identificações que Lacan vai colocar aquestão do nome próprio, defrontando-se com as formulações clássicas des-ta questão. Sabemos que o problema do nome próprio (Wolf, 1985) é enfren-tado tanto pelos lógicos, no campo da função referencial, ligado à denotaçãocom ou sem conotação, quanto pelos lingüistas (por exemplo, Benveniste eJakobson). Mill nos apresenta sua já clássica concepção do nome própriocomo sendo um termo individual não conotativo, isto é, sem atribuição, comouma marca. Já para Frege, o nome próprio sempre é referido a um objeto.Para Russell, o nome próprio é uma word for particular, um isto, e como tal sedefine pelo seu caráter descritivo. Ou seja, é a substituição de uma descrição.Assim, Sócrates, o que não deixa de ser paradoxal, já não pode mais serconsiderado um nome próprio, dado que, quando pronunciado, já não com-porta nenhuma descrição de um alguém.

Lacan se confronta com a insuficiência das formulações sobre o nomepróprio. Encontramos o desenvolvimento teórico da especificidade do nomepróprio no seminário “A identificação” (Lacan, 1995, p. 71-103; cf. Lacan, 1966,p. 819). Sua posição indica que o sujeito não se identifica com o nome pró-prio, mas com o traço significante que lhe permite ser dito um. O nome próprioé que veicula a operação de instauração do sujeito, nomeando seu lugar eespecificando sua pertença. O sujeito é o efeito de um discurso no movimentodo qual seu lugar já está inscrito desde seu nascimento, sob a forma de seunome próprio. É porque o traço unário é o suporte da identificação que osujeito pode se contar ou descontar e que pode ser representado no discursopor substituição a este traço.

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A especificidade da teoria de Lacan (1995) sobre o nome próprio situa-se no privilégio que mantém o nome próprio com a letra, no sentido em queela se pronuncia tal qual em todas as línguas, não se traduz, mas se transfereeventualmente de alfabeto a alfabeto por transliteração. É este vínculo com aescritura, com a letra, que remete ao traço unário. A letra é um operador daestrutura, fazendo suporte do traço unário, do significante da diferença pura.O nome próprio funciona como um lugar vazio que tem por função designar oindivíduo, não simplesmente como indivíduo, mas como indivíduo suscetívelde falhar. Pode-se entender o nome próprio do mesmo modo que se entendeo zero, a partir do momento em que este zero conta por um.

Esta operação de identificação como pura subtração é assim enuncia-da por Lacan:

“A bateria de significantes, na medida em que ela é, sendo porisso mesmo completa, esse significante só pode ser um traçoque se traça de seu círculo sem poder aí ser contado. Simbolizávelpela inerência de um (-1) ao conjunto de significantes, ele é comotal impronunciável, mas não sua operação, pois ela é o que seproduz cada vez que um nome próprio é pronunciado. Seu enun-ciado se iguala a sua significação.” (Lacan, 1966, p. 819)

Para que o sujeito possa ser representado, possa ser contado, devepoder se descontar, constituindo o lugar vazio que constitui o patronímico,como o que dá peso e engaja a palavra do sujeito, dando-lhe um sentido euma orientação.

O que acontece, então, quando nós mesmos pronunciamos o nossonome próprio ou ele nos é invocado de um outro lugar? O que aí se aponta éeste impronunciável, este impensável que só pode comparecer como zero.Seria esta passagem entre o zero e o um. O traço como um que se inscrevesomente é possível porque lhe antecede um zero, isto é, um furo que nadapode preencher. Lacan aproxima a questão deste furo que não se completacom o significante da falta no grande Outro. O que resulta é que, quando umnome próprio é pronunciado, ele não encontra no grande Outro nenhumagarantia, nenhum pai que lá esteja garantindo este nome, nada que o valide.E aqui dá para pensar também a diferença da posição de Lacan em relação atodo desenvolvimento dos filósofos, lingüistas e lógicos, que estão em buscade resolver o problema da referência, Bedeutung na linguagem de Frege. Ouseja, onde se suporia uma garantia, o que encontramos é o sem garantia. Oefeito disso para cada um de nós é que ali onde fomos nomeados ou chama-dos, só nos resta autorizarmo-nos a partir disto mesmo de onde não há ga-rantia. Contudo, ao invocar o Outro, lá há um significante que autentifica o ato

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do sujeito, e este significante se chama Nome-do-Pai. Como cada falante lidacom este significante no Outro, ele encontrar-se ou não no Outro, na busca defundar um ato, resulta nos impasses de todo aquele que pretende pronunciaralgo em nome próprio, que é o autorizar-se que diz respeito a todo falante.Como resolver este impasse? Como o falante se põe relativamente a estesem garantia, sem referente? A partir deste ponto podemos construir umanosografia. Isto é, que tipo de patologia podemos pensar a partir do nomepróprio. Não é meu propósito desenvolver isto aqui, mas apenas apontar comopoderíamos pensar as três estruturas fundamentais: neurose, psicose e per-versão.

Podemos encontrar a patologia do nome próprio na neurose, cujo signi-ficante com o qual o sujeito se identifica, como nome próprio, sofre um traba-lho de dissolução e apagamento. O neurótico sofreu a castração, mas a recalca,tentando transformar os significantes que o determinam em meros signos eassim podendo supor que passará sem pagar sua dívida simbólica, utilizan-do-se do recurso do anonimato. Podemos nos lembrar na clássica negaçãoda marca significante de pertença na tríplice negação de São Pedro, que di-ante da invocação de um traço singular, responde pelo anonimato: “Juro queeu não conheço este homem”. O eu do neurótico é tão forte que seu nomepróprio o importuna. Por isso, afirma Lacan (1966, p. 826) que “o neurótico éno fundo um Sem-Nome.”

Na psicose, o sujeito se faz um nome próprio como sendo o Nome,exclui todo gozo fálico, não conhecendo senão o gozo do Outro. Já para operverso, não ocorre o esquecimento do nome, mas ele dispensa seu nomepara se servir do nome do Outro. Este é o enunciado que poderia caracterizartal posição subjetiva: “Eu não sou em meu nome, mas estou em nome doOutro, sou o instrumento do nome do Outro”. Se na neurose o sujeito ex-sisteao seu nome, dado que o nome próprio é um corte, um traço a partir do qualpodemos nos contar e descontar, na psicose o nome ex-siste ao sujeito, poisna falta do Nome-do-Pai, só resta ao sujeito o nome como pedra angular desustentação de seu edifício real (Czermark, 1992). Por isto o nome em que setorna apresenta comumente este caráter de absoluto e completo. Neste caso,o nome como tal não é um referente, mas aquilo a partir do qual pode haverreferência, o que determina que tenha este caráter de absoluto.

Lacan afirma que um nome próprio, ao ser pronunciado, significa parao sujeito o que lhe é impensável, o que lhe falta para se pensar completo noseu cogito. E isto porque ele se confronta sem mediação com o furo no simbó-lico, com o significante da falta no grande Outro, ou seja, o nome próprio, aoser pronunciado, não encontra no Outro nenhum Pai que o garanta, que o

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valide. A conseqüência é que quem se nomeia ou é chamado, deve, ou antesdeveria, se autorizar por si mesmo. E é isto que as identificações abrem comopossibilidade para um sujeito: falar em nome próprio, sem nunca alcançarresolver o impasse que o enigma que cada um porta seja resolvido, enigmatanto do lado do sujeito quanto daquilo que incessantemente persegue. Atemporalidade é a própria estrutura do sujeito como corte que se faz purapresença, em ato.

Eu ainda gostaria de retornar à questão da letra, porque é uma questãoextremamente complexa. Encontrei em Aristóteles algo que pode nos ajudar.Como sabemos, ele define o homem como um animal de linguagem .No DeInterpretacione (Aristóteles, 1950, 16a) afirma que a significação se dá a par-tir de quatro elementos: a voz (phoné), os patemas da alma (os afetos daalma, os sofrimentos da alma) e das coisas exteriores e o quarto hermeneutaque é a letra (gramma). Em Política diz o seguinte:

“O homem é o único vivente dotado de linguagem. A voz, comefeito, é signo de dor e prazer, é porque ela pertence tambémaos outros viventes (pois sua natureza vai até lhe fazer experi-mentar a sensação de dor ou de prazer que eles podem se signi-ficar uns aos outros); a linguagem, ao contrário, serve para ma-nifestar o que convém e o que não convém, igual o que é justo einjusto; o próprio dos homens em relação aos outros seres vivosé que eles têm a sensação de bem e de mal, do justo e do injustoe outras coisas do mesmo gênero; e a comunidade (koinomia)destas coisas faz a habitação (oikia) e a cidade (pólis).” (Aristóte-les, 1962, 1523a 10-18)

Este texto do filósofo nos faz pensar que toda a discussão a respeito dosujeito, do nome próprio, do desejo e da identificação quer resolver o proble-ma de como nós fazemos para tornar viável o habitar na pólis. Podemos pen-sar que a letra (gramma) é o que ocupa este intervalo abismoso que existeentre a voz (phoné) e a linguagem (logos). Aristóteles parte da oposição entreato e potência que aparece na cisão entre voz e linguagem. Este intervaloabre o espaço da ética (relativo ao caráter contingente da práxis) e da vida emcomum na pólis, na medida em que não há articulação perfeita entre phoné elogos. A voz não está jamais completamente inscrita na linguagem, e o grammaé a própria forma da pressuposição de si e da potência. O espaço entre voz elogos é um espaço vazio, um limite, um abismo, e o homem se define pelaexperiência de alíngua, que joga no risco do vazio. A definição de Lacan dosignificante, como sendo aquilo que representa um sujeito para outro signifi-cante, é esta passagem de um nada para um outro, isto é, do zero para um.

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Este intervalo é um buraco, é um abismo, e nos sustentamos nesse intervalosomente, e apenas somente, nos agarrando em um traço. Isto constitui aidentificação com um traço. Esse intervalo pode ser pensado no âmbito domito freudiano do assassinato do pai da horda primitiva, no qual, de um lado,cai o cadáver, que constitui este resto perdido, como objeto “a”, e, do outro,nos resta um traço ao qual nos agarramos, nos identificamos e aí nos consti-tuímos. E estarmos agarrado a este traço é que nos permite cruzar de umlado para outro desse abismo sem aí afundar. A identificação com este cadá-ver determinaria um outro destino para o sujeito, pois esse cadáver está noReal. A partir daí poderíamos pensar o que é a problemática da psicose, umaidentificação com o falo imaginário materno, i(a) I, que impede a formaçãode i, imagem que se interpõe entre a mãe e o falo imaginário e que permitiriauma ancoragem para os significantes.

Partindo da clássica concepção freudiana de defesa, Bergès e Balbo(2003) propõem uma nova leitura da tese lacaniana da psicose como efeitoda forclusão do Nome-do-Pai: a psicose é que produziria a forclusão comomecanismo de defesa, atingindo não apenas o Nome-do-Pai do pai, mas tam-bém o Nome-do-Pai da mãe. Isso significa que a geração dos genitores é quefica forcluída. Para situar isso melhor, requer-se introduzir a questão da teoriasexual da criança em relação às três gerações necessárias para a estruturaçãodo sujeito. Para que surja uma psicose, também são necessárias no mínimotrês gerações, mas com a condição de que a geração do meio seja pulada,isto é, a geração dos pais não conta para o sujeito. Disso resultam dois efei-tos: a produção de uma teoria de auto-engendramento e de uma teoria não-sexual, como resposta às duas clássicas questões das crianças: de ondevêem os bebês e sobre a diferença sexual. A não inscrição do sexual determi-na a não entrada no infantil, isto é, no brincar.

Deste modo, o psicótico evacua completamente a dimensão do atosexual de seus pais que lhe deu origem, correspondendo à dupla forclusão doNome-do-Pai de sua mãe e de seu pai. A partir disso só lhe resta a saídaatravés de uma teoria de auto-engendramento e a invenção de um nome quetenha caráter absoluto e completo, como Jesus Cristo, visto que os três no-mes que já recebera não lhe eram suficientes. O pai de Jesus Cristo, todossabemos, é Deus, Deus Pai, que aparece verdadeiramente no Sol. Na formu-lação do Faraó Akenaton, inventor do monoteísmo, o Sol ocupava o lugar dadivindade única (e também para o Presidente Schreber). Era invocando oDeus Pai, o Sol, que nosso analisante buscava encontrar o significante quepudesse autentificar sua existência, na certeza absoluta de sua imortalidade,ao formar um circuito pulsional no fazer-se ser visto grande Outro. Não ape-

O NOME PRÓPRIO E SUA INVENSÃO

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nas se tratava de olhar para o sol diretamente, mas que o sol o olhasse dire-tamente, na busca de ser autentificado pelo olhar do Pai Absoluto. Era essasua teoria, que jamais tinha sido colocada em questão. Aquela inusitada vaci-lação entre “posso” e “póço” introduziu uma cunha, produzindo uma divisãosubjetiva onde corríamos o risco de ver emergir uma injunção enlouquecedora.Penso que foi neste acento agudo, pequena letra que permitiu colocar emfuncionamento a função da diferença ao fazer suporte do traço unário, dosignificante da diferença pura, que uma direção do tratamento começou. Aseguir, foi um lento trabalho de corte e costura, com os alinhavos prévios acada passo a ser dado. O momento do fim de sua análise girou em torno doluto da avó Páscoa, significante diretamente ligado a Jesus Cristo e Deus Pai:a Páscoa do sacrifício perfeito. Parece que depois disso ele olhou para mim eme dispensou. Já não estava mais se tratando com a psicanálise.

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RESUMOOs autores trabalham com o conceito de corpo parcial a partir de uma leituraque a psicanálise lacaniana proporciona sobre este tema, em contraposiçãocom a perspectiva do discurso médico-científico que entende que o corpo é amatéria; e seu funcionamento, uma totalidade. Argumenta que, desta forma,os objetos da ciência podem ser tomados para preencher a falha constitucio-nal do sujeito. Por outro lado, consideram que o discurso científico faz bura-cos no Real com sua produção de saber, enquanto produção simbólica. No queconcerne à direção do tratamento para a psicanálise, trata-se de esvaziar olugar do objeto na operação significante para produzir o sujeito desejante e,em uma terceira volta, inscrever/escrever a perda que constitui o sujeito da falta.PALAVRAS-CHAVE: psicanálise; medicina; corpo; tratamento

THE BODY AND THE DIRECTION OF THE TREATMENTABSTRACT

The authors work with the concept of partial body starting from a LacanianPsychoanalysis reading on this subject, as opposed to the perspective of theScientific-medical discourse that understands the body as matter and itsfunctioning as a totality. It sustains that in this way the objects of Science maybe taken in a way as to fulfill the subject´s constitutional lack. On the otherhand, consider that the scientific discourse opens holes in the Real with itsproduction of knowledge, as a symbolic production. Concerning the directionof the treatment according to Psychoanalysis, it consists in emptying the spaceof the object in the signifier operation in order to produce a desiring subject and,in a third turn, inscribe/write the loss that constitutes the subject of the lack.KEYWORDS: psychoanalysis; medicine; body; treatment

O CORPO E A DIREÇÃO DA CURAAdão Luiz Lopes da Costa*

Luciane Loss Jardim**

* Médico, Psiquiatra, Psicanalista, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Diretorda Hybris – Clínica de Psicanálise e Psiquiatria, e-mail: [email protected]**Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica PUC/RS. Psicanalista, Membro da Associação Psica-nalítica de Porto Alegre, e-mail: [email protected]

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Em si toda a ciência é unilateral. Tem de ser assim,visto que ela se restringe a assuntos, pontos de

vista e métodos específicos. É uma insensatez [...] lançar uma ciência contra a outra.

Sigmund Freud (1926, p. 262)

Oque é um corpo? Como se organiza um corpo? O ponto de partida paraarticularmos uma resposta é situarmos os discursos que se ocupam deste

tema. Existem diferentes lugares e saberes, no contexto da ciência moderna,que configuram campos distintos no acolhimento dos sofrimentos do corpo.

Tradicionalmente, a medicina ocupou-se e ocupa-se de fazer do corpohumano o objeto privilegiado de seu estudo. Nesse discurso, o sujeito podeestar excluído, é um corpo que está doente e que deve ser diagnosticado etratado. O corpo é dissecado pela medicina dentro dos cânones da observa-ção científica, o que é metodologicamente necessário para alcançar os seusobjetivos. Este pode ser tomado em partes, por vezes, um órgão, pedaços deum órgão, tecidos, células, genes que se intercomunicam na globalidade docorpo.

O corpo é a matéria, e seu funcionamento, pode ser considerado, aprincípio, como uma totalidade: um estímulo qualquer produz efeitos na suaGestalt. Isso faz com que a medicina avance no sentido de se tornar cada vezmais precisa e pontual no que concerne às suas intervenções, tendo comohorizonte chegar a operar sobre um gene.

Por outro lado, a psicanálise constituiu-se ocupando-se justamentedaquilo que a ciência deixou de lado, a saber, o corpo histérico, que por suavez instaurou um buraco no saber sobre o corpo totalizado. Freud produziuum deslocamento do olhar para a escuta, introduzindo uma modificação naterapêutica e revelando que o método experimental é inadequado para seocupar deste corpo.

Portanto, a psicanálise toma a questão pelo ponto de vista do “falasser”1 ;o corpo é o corpo falado, tecido pela cadeia significante a partir da relaçãocom o Outro, corpo inscrito e escrito pela linguagem. O homem, desde o mo-mento em que fala, já está implicado em seu corpo pela palavra. Esse corpofalado também é o corpo investido. É o narcisismo dos pais que vai tornar ocorpo erógeno, vai falar, organizar, produzir ideais no corpo dos filhos. Por-tanto, este corpo já está previamente no discurso e no desejo parental.

1 Falasser é a tradução do termo usado por Lacan parlêtre, que aponta para a condição de ser dosujeito ao falar.

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Nesse processo, ou seja, no narcisamento, mesmo normal, algo sem-pre fica de fora. Esse corpo falado, esse corpo investido, já está, de início,comprometido. Pois é justamente porque o corpo não é investido em suatotalidade e nem recoberto completamente pela linguagem que podemosdenominá-lo de corpo parcial. A parte não investida, a parte perdida vai serchamada de objeto, objeto perdido que é permanentemente buscado, masnunca reencontrado, pois nunca encontramos no espelho o objeto, apenasnossa imagem especular. Trata-se, então, sempre de uma superação essen-cial com certa parte do corpo, como algo separado que sustenta, que mostrauma relação que de nenhum modo está localizada.

O processo de narcisamento do lactente é fundamental para que ocor-ra a constituição do sujeito, para que este se estruture como algo distinto doReal do corpo, algo além do que alguns quilos de carne. Nesse processo, obebê reconhece uma imagem unificada de seu corpo em sua própria imagemno espelho, que, por sua vez, é reconhecida pelo Outro. Nesse primeiro mo-mento, essa imagem provoca fascinação e a sensação de completude, ca-racterística própria de uma relação dual.

Entretanto, no instante mesmo em que se constitui, no momento emque a criança é nomeada pelo Outro, essa ilusão já se desfaz. É mediante apalavra do Outro que a criança separa-se dessa imagem, da qual fazia parte,e que não encontrará jamais. Esta parte perdida, que inicialmente é o faloimaginário, vai ser chamada pela psicanálise de objeto para dizer que se tratade certa relação permanente com algo perdido.

Ao deparar-se com a falta que lhe é constitucional, o sujeito tenta enco-bri-la, encobrindo-se também, por sua vez. Trata-se da busca para reencon-trar esse objeto perdido, para sempre irrecuperável, perdido nos diferentesníveis da experiência corporal em que se produz o corte no trabalho dosignificante. Isto é o substrato da função da causa. A causa é o corpo parcial(Lacan, 1962/1963).

O homem, desde o momento em que entra no campo simbólico, por umlado, vai se constituir, enquanto sujeito e, por outro, deixa um resto. É nacondição do sujeito falante que o objeto se perde e se constitui enquantoobjeto perdido. Adquire o estatuto de objeto a, quando é perdido pela segun-da vez, ou seja, no plano simbólico. É a situação do sujeito que, ao procurar noespelho o objeto que o causa, só encontra a sua imagem especular, pois sópode encontrar seu objeto causa do desejo separado de si mesmo, no Outro.

Na entrada do sujeito na linguagem, algo fica de fora, que é da ordemdo real que não cessa de não se inscrever, do impossível de dizer, do não-dito. Este não-dito pode ter raízes com o corpo. Isso se verifica em uma topolo-

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gia2 e não em uma extensão, em uma concepção dual corpo e mente. Umresto do corpo não simbolizado está no registro do Real.

Sujeito falante e objeto perdido vão construir a fantasia. A fantasia, cujafórmula lacaniana é (S a), faz existir o sujeito por aquilo que o causa, querdizer, por seu próprio objeto. É a partir desta constituição fantasmática ine-rente ao ser falante, que produzimos symptômes e fantasias que podem sercientíficas e religiosas, na ânsia de preencher a falta.

A perda no que tange ao sujeito desejante concerne aos três registros.Desta forma, o sujeito faz buracos no Real, produz falta no Real e o sujeito dafalta é o sujeito do desejo, diferente do sujeito da fantasia que quer preenchera falta da falta. O sujeito da fantasia apaga as diferenças e produz conformi-dade, buscando a distribuição igualitária do gozo.

A proposta contemporânea de superação desta falha, deixada pela fal-ta da falta, é imediatista, ao propor repô-la com objetos ideais, porém impró-prios, como nos aponta Lacan (1962/1963). Cria-se a fantasia de que estesobjetos são substitutos, que podem constituir o eu. A busca de coisas quepossam tapar esse buraco impreenchível pode se tornar intensa. O equívoconesta busca é tomar uma coisa pela outra, de que estes objetos produzidospela ciência possam constituir o eu.

O próprio mercado encarrega-se de suprir o empório com objetos deconsumo que prometem a felicidade para quem consumi-los. O mercado deconsumo promete a completude a cada nova compra que possamos fazer:um carro, drogas, remédios, auto-ajuda, uma guerra, um deus, roupas, jóias,obesidade, magreza, cirurgias plásticas, um corpo perfeito, ressecção de par-te do estômago, psicanálise. Trata-se, enfim, da promessa de recuperar essaparte de nossa carne tomada na máquina formal.

O mercado se serve desta falha na constituição do sujeito oferecendo oideal do igualitarismo e da distribuição do gozo, jogado, por sua vez, no afã dolucro (mais-valia), conseguindo produzir dessa forma verdadeiros escravosconsumidores. Isto é bom para o mercado. Os objetos de consumo estãonum campo em que se repetirão infinitamente na busca desesperada do fa-lante para encontrar o objeto que o causa, mas se buscado nas coisas darealidade, nos fatos da realidade, apenas perpetuam-se em uma substituiçãoinfindável.

Nesta perspectiva, precisamos falar sobre o lugar diferenciado que cadavez mais a ciência ocupa em nossas vidas e que vai ao encontro do anseio de

2 Como diz Lacan em 18 de fevereiro de 1975, RSI, “pode ser o ponto de partida de outro modo depensar com rigor”, ao que denomina “more geométrico”.

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devolver ao corpo sua completude. O homem, ao confrontar-se com esta fa-lha que lhe é constitutiva, produz a ciência, e através desta e de seus produ-tos tem a expectativa constante de supera-la.

Os avanços tecnológicos apontam segundo Sfez (1996) para a utopiada saúde perfeita. Assim, o projeto Genoma Humano pretende levar à even-tual eliminação dos defeituosos e ao aperfeiçoamento dos genes. Esta ques-tão, além de nos aproximar de uma idéia de eugenismo, aponta para a buscado corpo perfeito e completo. Idéia que também pode estar presente no con-texto social, atrelada à busca de uma sociedade perfeita, de uma completudesocial, impelindo populações à guerra, à destruição daquilo que não completanarcisicamente o ideal de uma sociedade.

De outro modo, o conhecimento sobre a própria vida e as descobertascientíficas proporcionaram uma melhora na qualidade de vida do ser humano.A partir do conhecimento científico, existiu uma substancial valorização docorpo, as ciências biológicas chegaram a descobertas fantásticas, benefici-ando indivíduos e populações (Garrafa & Berlinguer, 1996).

Nesta perspectiva, a ciência enquanto produção simbólica produz bu-racos no Real, à medida que simboliza através do seu discurso este Real,inscrevendo-o no campo do saber. Ou seja, as fórmulas produzidas pelo avan-ço do discurso científico aportam um saber, um discurso naquilo que era an-teriormente inominável para o homem.

Dentro deste contexto, podemos pensar a dimensão que os fármacosestão assumindo na vida cotidiana dos indivíduos. Sendo assim, é normalque tenhamos sentimentos como alegria, tristeza, e que estes por sua veztenham suportes bioquímicos. Também é normal que se possa agir sobreestes sentimentos modificando os fatores bioquímicos sob a açãofarmacológica. Pode-se até provocar sentimentos de bem-estar puramenteartificiais, independentes do sujeito. Hoje em dia pode-se produzir de formaartificial, por meios farmacológicos, ereções em sujeitos machos. Pode-sefazer dele um puro mecanismo. Trata-se de um ideal científico, e a ciênciacontinua progredindo neste sentido.

Estes progressos deixam de lado o sujeito, prova de que o recalque dasubjetividade é constitutivo do discurso científico. Lacan (1966) sublinhou quea psicanálise se constituiu ocupando-se do sujeito que a ciência deixa delado, idéia que se vinculou à ação do analista que está atento àquilo que omédico não escuta.

Desta forma, a psicanálise surge a partir da resistência constitutiva daposição da ciência moderna. Este limite da ciência é epistemológico, não éuma questão de ignorância da medicina, por exemplo, não se ocupar da sub-

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jetividade, trata-se de um desconhecimento de quem não pode, não quer sa-ber. Da mesma forma, a psicanálise tem seu limite nos avanços da biologia. Apsicanálise não contribuiu em nada para o avanço das neurociências.

Todavia, a psicanálise não está aí para preencher com seu saber osuposto desconhecimento do saber científico, muito menos para aumentaros limites deste, pois, se assim fosse, a ciência seria o seu alvo e esta estariareferenciada no discurso científico. Como afirma Lacan (1971/1972), “nodiscurso analítico, não se trata de um discurso científico. Senão de um dis-curso para o qual a ciência nos prove o material, que é algo muito diferen-te” (p.73).

Portanto cabe aos analistas tomarem o caminho da transferência, umavez que uma psicanálise só ocorre neste campo. Segundo Melman (1993,p.39), “os progressos das ciências tornam-se uma boa notícia para os psica-nalistas, quer dizer que, pouco a pouco, os psicanalistas vão ser indispensá-veis”, em função deste resto que é produzido pelo corpo da ciência, do qual oanalista se ocupa.

Retomaremos, agora, então, a questão da causa. Pergunta que sem-pre se repete, qual é a causa disto, doutor?

Do ponto de vista médico, a resposta geralmente é farmacológica; noentanto, o que é ingerido é tomado dentro de um campo de transferência. Omédico oferece um agalma3 a seu paciente juntamente com a prescrição. Éjustamente esta preciosidade que é passada na prescrição que faz a diferen-ça nos efeitos do medicamento prescrito. Por isso, pode-se pensar sobre ovalor das prescrições para os pacientes. Quando não se consegue passareste agalma, os efeitos podem ser reduzidos ou até inexistentes. Portanto, aprescrição asséptica, ou seja, fora de uma relação transferencial não produzou altera os efeitos do medicamento.

Os efeitos placebos são outro exemplo de como a “química” passa pelarelação transferencial do paciente com o médico. A eficácia simbólica, termoempregado por Levis-Strauss (1975) para designar esta propriedade indutorade uma estrutura sobre a outra, pode estar presente mesmo em substânciasneutras, quando há esta outra “química” que se produz na relação transferencialou no amor.

Entretanto, uma coisa é tomar um remédio esperando que este possaeliminar um sintoma ou curar uma doença, outra coisa é esperar que esteconstitua um sujeito. Pois, o sujeito só se constitui enquanto ser faltante e

3 Termo grego que pode ser traduzido por ornamento, tesouro ou objeto de oferenda.

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desejante separado de qualquer objeto, e nenhuma droga, por mais podero-sa que seja, irá reintegrar a perda para o sujeito, que, para sê-lo, é somenteenquanto castrado e faltante.

Segundo Lacan (1962/1963), a causa sempre surge em correlação como fato de que algo é omitido na consideração do conhecimento, algo que éprecisamente o desejo que anima esta função. Cada vez que se invoca acausa, ela é de certo modo a sombra do que é ponto cego na função desseconhecimento. A raiz disto é o compromisso com seu corpo. A crítica da cau-sa vai buscar seu fundamento, sua raiz, nesse objeto oculto, nesse objetosincopado, objeto cortado do corpo.

É justamente por isso que há sempre no corpo alguma coisa de sepa-rada, algo feito estátua, algo desde então, inerte: é a libra de carne. O desejoé organizado nos sujeitos de forma perversa, uma vez que o oferecimento doobjeto é justamente para completar o Outro. Na fórmula da fantasia, reencon-tramos este algo separado, aquilo que fica na condição de reserva, reservadona fantasia, como o falante que diz: “tenho vergonha de falar isso” mantémsua reserva para poder seguir com isso, mantendo o falo intacto. Desta for-ma, mantém suas drogas, suas compras, suas doenças...

A libra de carne, como diz o texto do Mercador de Veneza de Shakespeare,tem que ser tirada de bem perto do coração. Quer dizer, é sempre com nossacarne que devemos acertar as contas. Carne que nunca foi posta em jogo,tem função de resto, tem função de zona sagrada, a qual podemos articularcom a idéia de “cepa”, de cepa onde ali algo sobrevive. Um resto que semprevoltará: enquanto cepa, enquanto vida que se renova, enquanto racismo quese reacende, enquanto lutas que se perpetuam, enquanto drogas que se nosconsomem.

Porém, para a psicanálise, a estrutura do objeto não se detém no limiteonde devemos encontrá-lo como separado. Não devemos falar da experiên-cia narcisista, nem falar da imagem de corpo pleno, mas sim do espelho en-quanto que é esse campo do Outro onde deve aparecer pela primeira vez oobjeto, ou ao menos seu lugar. Vai aparecer não como projeção, senão comoo que há do eu mesmo no exterior, ali está como separado de mim, sem queeu o veja.

Trata-se da constituição deste objeto, chamado objeto a, que nada maisé do que uma letra. Esta deixa de ocupar um lugar positivo enquanto objetoimpróprio, possibilitando sustentar o desejo do sujeito, enquanto separado dodesejo do Outro, enquanto disjunção entre desejo e gozo. A constituição des-te objeto separável está em relação com a constituição do sujeito. Trata-se,então, da castração na qual o objeto deve ser perdido, uma segunda vez, na

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operação significante que inscreve no campo simbólico este corpo que atéentão era carne. Ou, como escreveu Ovídio (1983) em seu conto Orfeu, trata-se de Eurídice duas vezes perdida.

É a criança que se desmama, é a criança que se separa do peito namedida em que se constitui sujeito. Ao se constituir sujeito, ao ocupar lugar nodiscurso, o falante vai esvaziar o objeto. A direção de uma cura aponta para oesvaziamento do lugar dos objetos nos cortes da castração significante, onde,no dizer de Lacan (1962/1963), a tragédia vira comédia.

O psicofármaco, o analista, ou o terapeuta vão ocupar inicialmente umlugar de ideal, cujo fim da análise é justamente esvaziá-lo. Quer dizer, umacura é poder se defrontar com o vazio do lugar do objeto. Defrontar-se com ovazio de pedaços do Real. Isto é a castração, no corte do nó borromeano,onde se amarram os registros do Simbólico, Imaginário e Real.

É o corte do nó que vai possibilitar a caída do objeto, até então presonos enlaces, nas leis, nas alianças, nos compromissos, nos efeitos que res-pondem num sujeito a uma determinada demanda.

Na direção do tratamento: trata-se de inscrever este Real do corpo es-crevendo-o em uma terceira volta que é proporcionada por uma análise, umavez que nos ocupamos de reinventar a roda, ou seja, reinscrever o sujeitodesejante. É ao que Lacan (1974/1975) se refere quando fala do espaço naterceira dimensão. E é por isso que não há auto-análise.

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RESUMOEste artigo é parte de uma investigação sobre o ressentimento, em que buscoentender como essa forma de mal-estar se manifesta nas estruturas clínicas.No trecho aqui publicado, investigo a função da queixa ressentida na estrutu-ra histérica e a relação entre o ressentimento, a inveja e a falta de objeto nahisteria feminina.PALAVRAS-CHAVE: feminino; ressentimento; inveja; histeria

THE HYSTERIA AND THE RESENTFULNESSABSTRACT

This article is part of an investigation on resentfulness, in which I aim atunderstanding how this form of discontent manifests itself in clinical structures.In the present segment, I inquire about the function of the resentful complaintas it is framed in the hysterical structure and about the relationship betweenresentfulness, envy, and the lack of object in feminine hysteria.KEYWORDS: feminine; resentfulness; envy; hysteria

A HISTERIA E ORESSENTIMENTO*

Maria Rita Kehl**

* Esse artigo é parte do livro Ressentimento, de minha autoria, que será publicado em final de2003 pela Casa do Psicólogo, São Paulo.** Psicanalista, membro correspondente da APPOA, Doutora em Psicologia Clínica (PUC/SP),autora de:, A Mínima Diferença (Imago,1996), Processos primários (Estação Liberdade, 1996),Deslocamentos do feminino (Imago, 1998), Ficções fraternas (org.) (Record, 2000) e Sobre Éticae Psicanálise (Companhia das Letras, 2001). E-mail: [email protected]

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Oressentimento não é uma categoria da clínica psicanalítica. Faz partedo senso comum e pertence ao campo dos afetos. Neste campo, o que

o diferencia de outros afetos é a possibilidade de ser acionado por um ato devontade ligado ao domínio do eu. O ressentido tem um apego todo especialem relação ao que o faz sofrer: apego que se manifesta em lamentos e acu-sações repetidas, dirigidas não contra si mesmo (como na melancolia) mascontra um outro, supostamente mais poderoso que ele, responsável por seumal.

A insistência na repetição da queixa ressentida não me parece ter ocaráter compulsivo do ciúme, por exemplo, com seu componente persecutório,que o sujeito não consegue evitar. Também não é um afeto espontâneo, comoa ira e a alegria, nem inominável, como a angústia. Embora as queixasrepetitivas do ressentimento não escapem à determinação inconsciente, ser-vem acima de tudo aos mecanismos de defesa do eu. Isso significa que, emum processo de análise, as queixas ressentidas trabalham contra a associa-ção livre e, acima de tudo, impedem a implicação subjetiva do analisando. Oressentido reconhece seu sofrimento, mas atribui toda a responsabilidade aum outro. Dirige ao analista um lamento monótono contra uma injustiça, umagravo, uma ofensa da qual teria sido a vítima inocente.

Bem depressa o analista percebe a impossibilidade de conduzir umaanálise com alguém que se instala nessa posição: ainda que a ofensa tenhade fato ocorrido, ainda que um outro tenha de fato responsabilidade quantoao dano que o ressentido denuncia, a atitude queixosa conduz o processoanalítico a um beco sem saída. Se o sujeito está convicto de que sofre porquenão pode esquecer o mal que lhe fizeram, o que pode fazer o analista a nãoser admitir que ele tem razão? Isto é o que o ressentido quer, do ponto devista do narcisismo do eu. Mas não é o que o conduziu a demandar a escutade um analista.

Quanto mais os motivos da queixa encontrem validação na realidadesocial a que pertence o sujeito ressentido, mais difícil é fazer com que ele sedesloque do lugar de vítima para começar a indagar-se sobre sua responsa-bilidade quanto ao que o faz sofrer. Foi o que Freud (1905) percebeu ao escu-tar as queixas de sua paciente Dora; se ele aceitasse, em consonância com amoral da época, a posição de vítima a partir da qual a adolescente se queixa-va ao médico, qualquer possibilidade de investigação analítica ficaria bloque-ada. Foi preciso que Freud desconfiasse, de maneira tanto ingênua quantobrutal, das acusações de Dora contra o Sr. K. – seria “normal” que uma moçasentisse repulsa ante a manifestação do desejo de um homem? – e lhe per-guntasse se ela não teria alguma participação como beneficiária do complô

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masculino do qual se imaginava vítima, para que Dora se engajasse, aindaque precariamente, em uma proposta de análise.

Na clínica contemporânea, isso fica mais evidente nos casos de pes-soas que pertencem a grupos reconhecidos socialmente como vítimas deinjustiças e discriminações. É o caso das vítimas de racismo e de persegui-ções étnico-religiosas, das minorias sexuais ou políticas. É o caso de mulhe-res que se valem das denúncias compartilhadas pelos grupos de militânciafeministas. As identidades grupais, tão caras à cultura contemporânea, criamum campo de crenças socialmente compartilhadas que fortalecem a consis-tência imaginária do ponto de vista do queixoso e encobrem as manifesta-ções do sujeito do inconsciente.

Os sintomas não funcionam como enigma para o ressentido; não ser-vem de ponto de partida para uma atitude investigativa, mas como ponto deancoragem de sua pretensa inocência. O ressentido apresenta-se, tanto di-ante do analista como de si mesmo, como alguém “coberto de razões”. Não éfácil abrir mão de um sofrimento tão justificado: daí decorre o que denominei,de início, ato de vontade que sustenta o ressentimento. A repetição da queixaé veículo de gozo, como toda repetição, mas trabalha também em defesa daintegridade narcísica do eu. A possibilidade de retificação subjetiva dependede que o analista não se deixe impressionar demasiadamente pelas acusa-ções que o candidato à análise dirigirá a um malfeitor qualquer, por piores queestas lhe pareçam. Depende também de que ele não se iniba, diante da “justacausa” de que se lamenta o ressentido, para que possa lhe dirigir algumasindagações simplórias capazes de abrir uma brecha na feroz convicção quesustenta sua posição de vítima passiva.

A COVARDIA MORAL DO NEURÓTICONenhuma expressão se aplica tão bem ao ressentimento quanto esta.

O neurótico é covarde, escreve Freud, porque se recusa a arcar com a res-ponsabilidade pelo seu desejo. Isso não é o mesmo que dizer que ele não écapaz de satisfazer seu desejo, já que a impossibilidade de satisfação estáinscrita na própria natureza do desejo, que só se realiza através de suas ex-pressões significantes. Aquilo de que o neurótico abre mão não é de satisfa-zer seu desejo, mas de comprometer-se com ele. A expressão “covardia mo-ral” pode ser entendida de duas maneiras, que não se excluem. Primeiro:sendo uma covardia, é no plano moral que vamos avaliá-la. Segundo: é umaespécie de covardia que se justifica com argumentos morais.

O neurótico recua de sua condição desejante, não exatamente de seudesejo. Este, sendo por definição inconsciente, não lhe é acessível. Recua

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em nome de uma submissão aos imperativos do supereu, instância psíquicaherdeira do complexo de Édipo. Que imperativos são estes, e por que seformaram no atravessamento do complexo de Édipo? São imperativos de gozo:gozo que a criança perdeu pela intervenção da Lei. Que o sujeito reponhacomo puder essa parcela de gozo perdido, é isto o que lhe exige o supereu.Mesmo que o sujeito tenha acedido à castração simbólica, ele mantém umadívida para com esse gozo perdido: dívida para com o supereu, que é outraversão da dívida em relação à aposta de perfeição empreendida por seuspais. Nesse caso, é possível que o sujeito reponha uma parcela desse gozoperdido, como sugere Freud (1914) na Introdução ao narcisismo, através dossucessos que for capaz de obter no plano dos ideais, ou pelo prazer dosinvestimentos libidinais correspondidos, tentando “voltar a ser seu próprio idealuma vez mais”. Mas o acesso à castração simbólica é justamente o oposto dacondição do neurótico. Ela é a via de acesso do sujeito à falta, ou seja: à suacondição desejante. É por outros caminhos, que não o da dívida simbólica,que o neurótico vai buscar atender aos imperativos do supereu.

Um desses caminhos, que pode nos ajudar a compreender o ressenti-mento, é a submissão, não à Lei, que a essas alturas já terá feito, bem ou mal,sua intervenção, e sim, na direção inversa, ao suposto desejo de um outro – éa tentativa de fazer-se objeto para o desejo de um outro na esperança derecuperar o tal gozo perdido. Até aqui estou apenas repetindo a lição: o neu-rótico abre mão do desejo porque ainda aposta no gozo, mas como já estáseparado do gozo pela intervenção da Lei, só lhe resta gozar através dassoluções de compromisso próprias do sintoma. A renúncia a que Freud serefere quanto à covardia moral do neurótico não é a renúncia ao narcisismoprimário, que é o mesmo que dizer: às pretensões incestuosas da primeirainfância. A covardia é a renúncia a se fazer representar como sujeito de umdesejo. Em troca, o neurótico procura obedecer ao que supõe atender aodesejo de um outro. Ou de um Outro, para nos mantermos mais próximos àsinstâncias de poder, encarnações imaginárias do Outro no espaço públicoonde transitam, bem ou mal, os adultos.

O histérico faz isso empenhando seu corpo – ou um representantemetafórico dele – para satisfazer, eroticamente ou não (há histeria na vidaintelectual, por exemplo) os desejos de um Mestre que será destituído e subs-tituído assim que lhe revelar sua falta, ou seja, seu desejo. Se a histeria éequiparada tão freqüentemente na psicanálise à feminilidade, é porque suamanifestação mais evidente em relação à falta de objeto é a inveja – típica darelação imaginária estabelecida pelas mulheres com o pênis na condição defalo.

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A inveja parece o ressentimento – e podemos considerar se não sealia a ele –, mas não é a mesma coisa. Ela se origina da constatação de umafalta no sujeito, por comparação com um outro, supostamente possuidor doobjeto. Ela inaugura um movimento para diante, tanto no sentido de tentarobter o que falta quanto no de destruir o que pertence ao outro, de forma aeliminar, pelo menos, a dor da comparação. Aqui já se observa uma importan-te diferença em relação ao tipo de atividade psíquica do ressentimento, quese caracteriza por uma recusa da ação e um lamento referido a um danoocorrido em um tempo passado que o ressentido não cessa de rememorar.Se a histérica sofre de reminiscências recalcadas, o ressentido, como bempercebeu Nietzsche (1887), é incapaz de se esquecer.

A inveja – tomemos mais uma vez o caso da menina em relação a suafalta de pênis – é a reação a um dano imaginário que impôs a falta de umobjeto real. É quando a menina vê o órgão masculino, e se compara com ele,que ela passa a se considerar prejudicada; mas para isso é preciso que opênis tenha o sentido imaginário do falo. O interessante na hipótese freudianasobre a inveja na feminilidade é que não é a menina que interpreta a diferençasexual como atestado de que ela teria feito algo errado para merecer o casti-go da perda do órgão: esta é a versão do menino, movida pela angústia decastração, na esperança de encontrar um lugar seguro para si. No caso damenina, a inveja inaugura outra forma de esperança: a de que, conquistandoo amor do pai, ela algum dia venha a receber um “faz pipi” tão bonitinho quan-to o de seu irmão. Ou um bebê que servisse como prêmio de consolação. Ouentão, por efeito de contigüidade, a menina passa a apostar no próprio amor– o amor, falo da mulher.

Se há ressentimento na menina em função da inveja do pênis, ele vaise manifestar na relação com a mãe, não com o pai. Em Algumas conseqüên-cias psíquicas da diferença sexual anatômica, Freud (1925) sugere que aprimeira conseqüência da constatação da diferença sexual, para a menina, éo sentimento de inferioridade; mais tarde, ao perceber que a falta de pênis écomum a todas as mulheres, a menina pode desenvolver uma espécie demisoginia, aliando-se aos homens como se estivesse mais identificada comeles do que com as outras mulheres. A segunda conseqüência seria o ciúme:Freud retoma aqui as fantasias analisadas no texto Bate-se em uma criança(1919) e sugere que o ciúme tenha um papel mais importante na vida dasmulheres do que na dos homens, porque é reforçado por um deslocamentoda inveja. O ciúme talvez jogue um importante papel na vida afetiva das mu-lheres porque o amor sexual, por deslocamento e contigüidade, tem valorespecial entre os vários desdobramentos metafóricos do falo.

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Ainda em Algumas conseqüências psíquicas…, Freud escreve (p. 2900):Uma terceira conseqüência da inveja do pênis parece ser um afrouxa-

mento da relação afetuosa da menina com seu objeto materno. A situaçãocomo um todo não é clara, contudo pode-se perceber que, no final, a mãe damenina, que a enviou ao mundo assim tão insuficientemente aparelhada, équase sempre considerada responsável por sua infelicidade.

Neste caso, o ressentimento não se confunde com a inveja, mas surgecomo conseqüência dela. Observem que a posição da menina ressentida emrelação à mãe é passiva: ela responsabiliza a mãe por tê-la “enviado ao mun-do insuficientemente aparelhada”. Mas a corrente do ressentimento me pare-ce menos determinante da resolução do complexo de castração da meninado que a da inveja. Em primeiro lugar, porque essa mesma mãe contra a qualela se ressente fornece a base identificatória para que ela constitua sua pró-pria versão da feminilidade, na esperança (se é que é assim) de obter outrorepresentante metafórico do falo, um bebê filho de seu pai.

Além disso a inveja, a exemplo do que ocorre com a menina, inauguratoda uma série de atividades de afirmação e de conquista, e associa-se àsconstelações afetivas do rancor, mas também da esperança. Não faço comisto uma defesa da inveja; procuro diferenciá-la do ressentimento e pouparessa modalidade de mal-estar da contaminação moral do cristianismo, que asitua entre os sete pecados capitais. A face amarga da inveja, a destrutividade,que sugere a presença da pulsão de morte avançando sobre o terreno daspulsões eróticas, só se apresentam quando o invejoso sente que não dispõede recursos para continuar a luta. Até que se veja definitivamente derrotado,o invejoso não se confunde com o ressentido; talvez lute mal, dada aambivalência de sua relação com a falta de objeto – mas ainda assim, é umlutador. A inveja não deixa de ser uma manifestação mais agressiva – e cer-tamente mais sofrida – da ambição.

Se a inveja está na origem das configurações subjetivas próprias dahisteria, o ressentimento está na linha de chegada, bem onde Freud imaginouque a histérica – neste caso, quero particularizar a histeria nas mulheres –tenha solucionado, bem ou mal, seu problema. Na clínica, encontramos oressentimento justamente nas mulheres que representam a “terceira via”freudiana para a feminilidade: aquelas que renunciaram a todas as reivindica-ções fálicas em nome do amor. É quando a histérica consegue fazer-se “toda”objeto para o desejo de um homem e mal suporta o terror de perceber queseu ser está na dependência do amor; é quando, na relação amorosa, elacede de seu desejo para fazer-se a senhora fulano de tal, tributária das con-quistas fálicas do homem que a tomou por esposa. Quando os bebês viram

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adultos – os bebês, este prêmio de consolação das mulheres que aceitaram acondição da castração infantil como se fosse a versão da verdadeira fem ini-lidade – e as mães perdem sua nobre função de sacrificarem -se pelo bemestar da fam ília, as mulheres vêm falar aos psicanalistas de seu ressenti-mento.

A famosa “mulher de trinta anos” que parecia tão envelhecida aos olhosde Freud quando ele escreveu sua conferência sobre A Feminilidade (1932),“como se a árdua conquista da feminilidade tivesse consumido todas as suasforças”, talvez expresse o estado de espírito dessas que, tendo feito umaaposta que as colocou na dependência completa de um outro, depararam-seprecocemente com o fim da linha. A observação de Freud data de 1932, masainda encontramos, na clínica, mulheres relativamente jovens que chegampara a análise e dizem, como já escutei mais de uma vez: “tenho trinta e cincoanos, sou casada, tenho um filho...(pausa)...e não sou nada”.

O ressentimento, nesse caso, não é o arrependimento por uma esco-lha que não conduziu ao fim desejado: é a recusa de implicar-se com a esco-lha feita. Se a mulher apostou todas as fichas na vida amorosa na esperançade que o dom do amor pudesse reparar o dano imaginário, é do homem queela vai cobrar a responsabilidade por sua frustração. O “domínio das exigên-cias desenfreadas e sem lei” a que Lacan (1956-57) se refere no SeminárioIV, a respeito da frustração, transforma-se, quando a relação amorosa revelaseus limites inevitáveis, no domínio das acusações silenciosas, da desespe-rança e das fantasias de “vingança adiada” a que se refere Nietzsche ao tra-tar do ressentimento. A mulher que se subjetiva como imaginariamente cas-trada – esta a equivalência, a que me refiro, entre a castração feminina e acastração infantil, daquele que depende do outro para fazer valer sua vontadee sua palavra – cede de seu desejo para fazer dele uma demanda dirigida aohomem; o ressentimento é a cobrança do engodo presente nessa negocia-ção quando as compensações se revelam insuficientes.

“Só quando ele me perder é que vai me dar valor”: qual psicanalistanunca escutou uma frase assim? A intervenção mais produtiva nesse casoseria pedir à analisante que explique, então, de que valor se trata, desfazen-do a fantasia de que existe entre ela e o analista um pressuposto sobre aevidência deste valor. Com isto, o analista consegue manejar seu lugar natransferência, frustrando a demanda de que seja ele o próximo a reconhecernela o valor – ou seja, o falo – pelo qual ela não teve que trabalhar. O que oanalista desfaz com sua pergunta sobre o valor é a coincidência que a histé-rica constitui, na fantasia, entre o falo e o ser. Fazer reconhecer o falo, sejaisso o que for, depende de que a analisante fale – o que já implica risco. A

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pergunta serve também de gatilho capaz de fazer disparar a dúvida, ali ondeparecia existir uma certeza: será o outro que não lhe confere valor ou ela quenão faz valer ... o quê? sua palavra; seu desejo; sua diferença; e assim pordiante.

É possível que o analista receba, como resposta à sua pergunta sobreo valor, uma enumeração das qualidades não dessa mulher, mas de seu par-ceiro. Possivelmente, será uma enumeração coberta de despeito e de tenta-tivas de desqualificação; isto indica que o ressentimento terá cedido lugar àretomada da inveja, que rapidamente se deslocará para o analista, suposto“dono do falo”, na expressão de Juan-David Nasio (1999). Este é um bomponto de partida para a atualização, na transferência, do complexo de Édipo.A clássica acusação “você tem, mas não me dá” permite refazer o caminho devolta até chegar – por efeito da renúncia do analista em satisfazer ou consolarsua analisante – à possibilidade de (re)simbolização da diferença sexual. Quaisas conseqüências clínicas da simbolização da diferença sexual? Embora aresposta a essa questão pareça tão evidente aos analistas, ela ainda encobreuma confusão entre o campo da teoria psicanalítica e o das teorias sexuaisinfantis de onde Freud extraiu suas observações.

Penso que nós, analistas, poderíamos experimentar pensar a diferen-ça sexual anatômica como a que ocorre entre um órgão que se dá a ver eoutro que não se dá a ver. Enunciada a diferença dessa maneira, estaremosmantendo claramente suas implicações imaginárias, tributárias da visibilida-de, ao mesmo tempo em que fica indicado que não há nenhuma outra diferen-ça essencial entre a anatomia sexual de homens e mulheres. Assim se evita-ria a contaminação dos enunciados psicanalíticos pelas teorias sexuais infan-tis – o que não é tão simples quanto parece. Toda vez que, na teoria, escreve-mos sobre a “inferioridade do pequeno órgão sexual da mulher”, ou sobre “afalta que caracteriza a anatomia feminina”, etc., estamos inscrevendo a dife-rença sexual no conjunto de significações imaginárias próprias das teoriassexuais infantis. Mais, ainda: estamos alinhando automaticamente a falta (sim-bólica) de objeto, base de todas as relações de objeto para a teoria psicana-lítica, à falta (real) de pênis na mulher, com todas as implicações (imaginári-as) de inferioridade de um sexo em relação ao outro. No entanto sabemosque se um objeto falta, desde a origem, aos humanos, este objeto está muitoalém, ou muito aquém, do pênis, que não passa de mais uma expressãometafórica – privilegiada, não nego – deste objeto que é simbólico porquenão há.

Imaginar a diferença sexual como evidência de superioridade de umsexo sobre outro só é possível se o sujeito organiza o mundo, à maneira

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infantil, como sendo administrado por um Outro que distribui os dons e asfaltas de acordo com suas preferências, o que é o mesmo que dizer: de acor-do com quem se identifica mais, ou menos, com Ele. Isso não nos faz lembrara imagem de Deus Pai do Velho Testamento, ou de seus substitutos terrenos,os monarcas e os tiranos que ainda regem as relações de poder do ponto devista da fantasia? Simbolizar a dialética das visibilidades sexuais como dife-rença, sem qualquer sinal de valor positivo ou negativo, implica destituir aface imaginária do Outro: a face do amor, das preferências (maternas/pater-nas), dos apelos à identificação. Implica também aceitar a condição mais ra-dical de nosso desamparo: essa que decorre do fato de que vivemos sim emuma ordem simbólica,mas uma ordem que é impessoal. Ninguém está acimadas relações entre os homens, distribuindo prêmios e castigos, organizandoos dons conforme os méritos e os deméritos, fazendo justiça por nós. A saídado ressentimento para a mulher histérica depende de ela se fazer irmã dohomem em sua orfandade comum – o que é quase impossível em uma análi-se se o analista não souber intimamente que esta também é sua condição,seja homem ou mulher.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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RESUMOO autor aborda neste artigo a questão do ensino e transmissão da psicanálisee da formação do analista, bem como a questão do passe, à luz do texto deLacan sobre “A Direção do Tratamento e os Princípios de seu Poder” e da Atade Fundação da APPOA.PALAVRAS-CHAVE: formação do analista; transmissão; Psicanálise

THE DIRECTION OF THE TRANSMISSION – PASSES ANDIMPASSES IN THE PSYCHOANALYTICAL TRAINING

ABSTRACTIn the present article the author approaches the question of the teaching andtransmission of psychoanalysis in psychoanalytic training along with thequestion of the pass, in reference to Lacan’s paper The Direction of Treatmentand the Principles of its Power and the Foundation Minute of the AssociaçãoPsicanalítica de Porto Alegre.KEYWORDS: psychoanalytic training; transmission; Psychoanalysis

A DIREÇÃO DA TRANSMISSÃOEM PSICANÁLISEPASSES E IMPASSES NAFORMAÇÃO DO ANALISTA

Jaime Alberto Betts*

* Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre; membro do Comitê Técnicodo Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar do Ministério da Saúde (2000a 2003); fundador e ex-Vice-Presidente do Instituto da Mama do Rio Grande do Sul. E-mail:[email protected]

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Falar em direção da transmissão em psicanálise faz alusão direta ao títulodo escrito de Lacan sobre “A Direção do Tratamento e os Princípios de

seu Poder” (Lacan, 1958). Três questões se colocam imediatamente: O quetransmitimos? Qual é a direção da transmissão? Quais são os princípios deseu poder? Outro texto de referência das considerações que se seguem é aAta de Fundação da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Ata de Funda-ção, 1990).

A razão de ser de uma instituição psicanalítica gira em torno da ques-tão da formação do analista. Questão que é fonte de variados tipos deimpasses, cisões ou burocratizações, segundo a concepção instituída deabordá-la. Os impasses decorrem principalmente do fato de que a psicanálise(e sua transmissão) tem como pedra angular um impossível, assim como,segundo Freud, o educar e o governar. No caso da psicanálise, o impossíveldiz respeito, de um lado, aos limites do simbólico, aos limites do que é possí-vel simbolizar, e, de outro, ao fato de que o recorte significante do real quedivide o sujeito é sempre singular, analisante por analisante. Diante do real,as certezas egóicas se perdem, dando lugar ao sem sentido do significante eao fora de sentido do objeto (Lacan, 1958). O sujeito se descobre só, e osilêncio se impõe com angústia, pois não há um significante que torne possí-vel a relação sexual entre seres falantes.

Nas instituições, facilmente estabelecemos os nomes de alguns mes-tres como aqueles significantes com o poder de eliminar o real, que pode sertão incômodo. Nomes como Freud, Lacan, ou tantos outros, tornam-se sinto-mas institucionais, cujas teorias desenvolvidas por eles se sobrecarregam desentido a ser repetido por todos, fusionando e confundindo saber e verdade,fazendo crer que a verdade pode ser dita toda se os significantes dos mestresforem corretamente recitados. No texto mencionado acima, Lacan (1958) in-terroga a posição dos analistas que entendem que o ato analítico vise a elimi-nar o real do sintoma, propondo, pelo contrário, uma ética do encontro com odesejo do Outro. O que fazemos com os significantes do ensino desses mes-tres?

Se é possível falar em sintoma social e sintoma institucional – na medi-da em que alguns S1 são compartilhados pelos sujeitos que se reúnem emtorno dos mesmos em sua articulação de sentido de recobrimento do real –, oque nos interessa é como os mesmos se singularizam em cada um, indican-do, portanto, que os efeitos de formação de uma análise serão sempre singu-lares. Também a transmissão se dá um por um. Nesse sentido, não há gene-ralização ou modelo universal possível de formação dos analistas. O modeloideal da revolução industrial de produção em série não é compatível com uma

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trajetória que necessariamente é marcada pelas questões subjetivas que con-vocam cada sujeito ao trabalho de um percurso sempre singular pelo campoda psicanálise.

Nesse sentido, o alvo de uma instituição psicanalítica é permitir efeitosde formação de analista naqueles que inscrevem seu percurso no campo dapsicanálise, sendo de cada sujeito a responsabilidade de sustentar sua inser-ção na teoria psicanalítica no efeito mais vivo da sua experiência de analisante.Também deve “garantir a qualidade analítica da prática dos seus membrosque ela reconheça como analistas”, bem como “sustentar a produção e adifusão do discurso psicanalítico em todas as situações que não comprome-tam as condições de sua enunciação – ou de seus efeitos” (Ata de Fundação,1990).

Quais são as condições de enunciação do discurso analítico, que de-vem estar presentes na produção e difusão da psicanálise? Como garantir aqualidade analítica da prática dos seus membros? Como reconhecer um mem-bro como analista?

Lacan, posicionando-se contra a distinção entre análise didática e aná-lise pessoal, afirmava que toda análise levada até seu fim forma um analista,quer ele venha a exercê-la ou não, por sua vez, como tal. Ou seja, uma aná-lise revela-se didática só depois, pelos seus efeitos. Isso não pode ser decidi-do de antemão, assim como um pedido de formação deve ser tomado comoqualquer outro, até que o trabalho da análise revele o desejo que o mesmooculta.

Ele enfatiza também que todo ensino da psicanálise digna desse nomeé ao mesmo tempo transmissão da psicanálise, nos efeitos mais vivos daexperiência analítica. Quer dizer que o ensino da psicanálise, além de infor-mar, ou mesmo levar à produção de conhecimento, deve antes e sobre tudocolocar o sujeito em causa, permitindo que ele se confronte com os significantesque o dividem e então produzir a partir da falta que lhe faz questão (Ata deFundação, 1990). Dizer isso pode até parecer óbvio, mas o ideal pedagógicoque permeia o discurso do mestre moderno, isto é, o discurso universitário,faz com que a expressão “ensino da psicanálise” seja capturada na inclina-ção da afirmação de um sujeito do conhecimento (egóico e paranóico) defini-do de antemão pela exclusão do desejo estrangeiro que o divide.

A direção do tratamento e a direção da transmissão em psicanálisefundam-se sobre os mesmos princípios, de onde advém sua eficácia simbóli-ca na clínica e na formação do analista. “O ensino não obedece a uma éticadiscursiva diferente daquela que comanda a fala do analista na cura.” (Ata deFundação, 1990) A formação do analista se dá pela articulação entre efeitos

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da análise pessoal e efeitos de transmissão no ensino da psicanálise e análi-se de controle. Tratamento analítico e transmissão da psicanálise mantêmentre si uma relação moebiana, no sentido de que ambas inscrevem um per-curso significante da borda do real em cada sujeito, fazendo a travessia dovéu imaginário do fantasma e redução das instâncias persecutórias do Outroao registro do significante, com a diferença de que se dão em tempos diferen-tes e em posições transferenciais distintas.

“A transferência que sustenta uma instituição psicanalítica é uma trans-ferência de trabalho” que se desdobra nas múltiplas instâncias e espaços davida institucional (funções de direção, responsabilidades administrativas, co-missões, cartéis, preparação de jornadas, publicações, atividades de ensino,prática clínica, etc.). O efeito de formação se dá quando nessa transferênciade trabalho se sustenta a “circulação de interrogações que voltam para otexto ou a fala que as produz” (Ata de Fundação, 1990), fazendo com que oamor (e às vezes o ódio) de transferência se desate numa produção com qua-lidade analítica. Isso implica que os lugares que os membros ocupam na ins-tituição possam se modificar de tempos em tempos lógicos, renovando oslaços da transferência de trabalho e sustentação do discurso do analista.

Tendo em vista que uma instituição se funda num duplo movimento – omovimento simbólico instituinte de um determinado campo de saber ou práxise o movimento de afirmação do instituído, que recalca tudo quanto possaproduzir outros sentidos ou modos distintos de fazer que aqueles instituídos ecompartilhados na instituição, produzindo o efeito imaginário da identidade euniformização das práticas – o desafio de permitir a formação do analista é ode suportar que o saber instituído seja questionado pelo semi-dizer da verda-de desejante (Brasil, 1990). Para se situar uma conjuntura subjetiva, é preci-so interrogar a posição singular que o sujeito tem em relação aos discursossociais dominantes pelos quais é atravessado – rede simbólica e imaginárianas quais sua subjetividade encontra-se alienada e também determ inada. Issoim plica apreender num só movimento problem as clínicos individuais e sociais.

Transm itir o mais vivo da experiência analítica depende da disponibili-dade de escuta dos analistas tanto ao discurso do analisante quanto aos dis-cursos dom inantes no social, que circunscrevem e inscrevem cada sujeito nacultura. A dificuldade é que o encontro com o real implica abandonar o confor-to subjetivo de um saber instituído. Difundir a psicanálise é tocar nos proble-mas cruciais de uma determinada comunidade de linguagem , é tocar nos nósdiscursivos em que a subjetividade e o social se articulam em torno de umreal inapreensível, delim itado por um consenso discursivo m ínimo necessá-rio, sem o qual irrompe o caos.

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Um ensino sem transmissão caracteriza a posição do mestre modernono discurso universitário, no qual o significante S1 que o representa comosujeito está recalcado, e o sujeito posiciona-se como agente do saber, que sedirige ao outro como objeto depositário desse saber suposto capaz de produ-zir um sujeito. E, de fato, produz um sujeito cognitivo comportamental, o indi-víduo moderno, ego supostamente autônomo que não deve nada a ninguém.O mais vivo da experiência psicanalítica se transmite no ensino e na difusãoquando a fala de quem transmite encontra um verdadeiro interlocutor, isto é,quando o passe do mais vivo da experiência analítica de quem fala encontrano outro uma escuta que interroga a ambos no après-coup, produzindo efei-tos de divisão subjetiva.

Isso ocorre quando no ensino a função de analista se faz presentecomo terceiro entre o par imaginário mestre/aluno. Nos momentos em quehá transmissão da experiência analítica, seguimos passando o passe da po-sição de falante (analisante) que demanda amor à de desejo de analista quesustenta a retomada da experiência analítica com outros. Também há trans-missão na passagem do mestre, que demanda amor do discípulo, o qualama ao mestre em função do saber que lhe supõe e quer receber, ao semi-dizer da verdade da castração de ambos e da responsabilidade de cada umpara com o próprio desejo. Sustentar uma transferência de trabalho em queo amor encontre seu desenlace numa produção, permitindo como efeito otrabalho de formação do analista, implica essa função terceira do discursodo analista que remete cada sujeito à sua relação singular com a psicanáli-se.

No ensino/transmissão da psicanálise, o desafio é conjugar e renovaros meios pelos quais um conhecimento mínimo necessário dos textos e con-ceitos fundamentais seja trabalhado e sistematizado com a colocação emcausa do sujeito em seu percurso de formação, seja na posição de professor,seja na de aluno. É bom lembrar que quem demanda aprender a teoria psica-nalítica deseja também interpretá-la. E que quem ensina psicanálise, antesde tudo, segue passando seu passe pela experiência da divisão subjetiva eencontro com o real do desejo.

Mas o que é que se transmite a outro de uma experiência que é singu-lar e irreprodutível enquanto tal? Trata-se de transmitir significantes? De trans-mitir Freud, Lacan ou outros?

Um aspecto fundamental na transmissão da psicanálise e na formaçãodo analista é a posição do sujeito frente à questão da dívida simbólica. Oreconhecimento pelo sujeito de sua dívida simbólica é correlata à experiênciade divisão subjetiva que vai se operando progressivamente em sua análise.

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Uma (experiência de divisão subjetiva) não se aprofunda sem que a outra(dívida simbólica) se consolide.

O discurso do analista tem como produção um novo S1 (ou de um S1em nova posição) que representa um (novo) sujeito para outros significantes.A experiência da divisão subjetiva diz respeito a esta experiência do intervaloentre S1 e S2, à suspensão das certezas egóicas imaginárias que isso impli-ca e ao confronto com a falta, com o objeto causa do desejo. É a experiênciado desejar no intransitivo, sem objeto definido. É efeito posterior da lingua-gem a idéia de que desejo é desejo de alguma coisa.

O desejo do analista que autoriza o ato analítico é desejo da “puradiferença entre dois significantes” (Lacan, 1958, p. 574). A interpretação, agre-gando um significante ao que está constituído como bateria, como conjunto,faz surgir a pura diferença. Pensar que aquilo que se trata de transmitir seja oS1 deste ou daquele mestre é efeito do discurso do mestre que se faz amo,demandando que seus significantes sejam repetidos por todos. O que se tratade transmitir é a própria falta operante na linguagem, o intervalo, a barra quesepara significante de significado; em outras palavras, a instância da letra. Oque se trata de transmitir é o operar do discurso do analista e não o seu pro-duto (um S1).

A dívida simbólica se constitui para com o Nome-do-Pai, que tornoupossível ao sujeito ter um lugar de onde falar ao interditar tanto o gozo mater-no quanto o gozo do filho de permanecer como o objeto fálico imagináriosuposto à mãe primordial. Ao barrar o gozo do Outro materno, o significanteNome-do-Pai torna operante o intervalo entre S1 e S2, intervalo de onde osujeito do inconsciente fala. Essa falta introduzida na cadeia significante pelametáfora paterna sustenta a estrutura do desejo como tal, dando lugar e vozao sujeito. O Nome-do-Pai recorta, assim, os significantes mestres que pro-duzem o sujeito como desejante. Isso torna possível ao sujeito traçar suasraízes e re-situar-se em relação à sua herança transgeracional (seu mito indi-vidual) (Lacan, 1980) abrindo-se a possibilidade de fazer algo mais interes-sante a partir de suas determinações simbólicas. É dispensar o pai mediantea condição de servir-se dele.

Ocorre que o confronto com a falta e com a dívida que a sustenta impli-ca, para o sujeito, defrontar-se com a inconsistência de seu fantasma emrecobrir com suas novelas imaginárias a falta que o pai simbólico instaura. Asdiferentes formas do recobrimento imaginário da dívida simbólica ocultam aosujeito os significantes que o determinam, impedindo seu acesso aos mesmos.

Encontramos na cultura contemporânea diferentes modos de recobri-mento, formas de desconhecimento da dívida simbólica que merecem ser

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destacadas. Entre outras, temos a inocência, a culpa, o cinismo e a delin-qüência. Diz a inocência: “Eu, dívida? Eu não sabia que tinha que pagar, euachava que era de graça.” Na culpa, os pensamentos recriminatórios e ritosexpiatórios ocultam ao sujeito os desejos que subjazem aos mesmos. A ra-zão cínica diz no fundo: “Dívida? Eu não devo nada a ninguém, eu me basto.E se devo, pago se quiser.” Na delinqüência, a apropriação indébita do objetofracassa na busca de um reconhecimento simbólico que lhe designe um lugarde enunciação válido. Outra forma da delinqüência se mostra no querer levarvantagem em tudo, não pagar o preço. No campo analítico, isso pode tomar aforma do delírio de autonomia do sujeito que se auto-nomeia analista ou dainstituição que declara a formação do analista acabada pelo cumprimento dospré-requisitos.

O discurso do capitalista impõe a noção de que o consumidor develevar um objeto que lhe traga plena satisfação em troca do pagamento. Osujeito (consumidor) que procura uma análise ou até mesmo uma formaçãoanalítica traz consigo esse conceito que deve levar algo em troca do paga-mento. Se o analista paga com palavras, são palavras que retiram do sujeitoseus objetos de fixação imaginária e lhe deixam em troca um nada, um con-junto vazio, uma falta. E ele paga por isso, paga para obter uma falta de obje-to, mas que lhe permite desejar.

O que está em jogo na direção do tratamento e na transmissão dapsicanálise é a divisão subjetiva, a falta, o fora de sentido do objeto que causao desejar e da dívida simbólica que a constitui. Transmitimos falta e dívidasimbólica. Passar de uma dívida neurótica (imaginária ou real) para uma sim-bólica permite fazer do sintoma algo mais interessante. Permite dispensar opai sob a condição de servir-se dele (ou seja, servir-se do Nome-do-Pai, dis-pensando suas formações imaginárias ou encarnações reais). Servimo-nosdos significantes de Freud, Lacan e outros, para dar conta da clínica do real,mas é necessário que eles possam retornar após o ato analítico, em outraposição ou como novo S1. Cada analista reconstrói a teoria analítica em seupercurso de formação nunca acabado, sendo interrogado a esse respeito pelaclínica, caso a caso. Freud sempre teve predileção pelos casos que contradi-ziam abertamente a teoria estabelecida.

A transmissão da falta e da dívida na formação dos analistas implicatambém permitir que cada sujeito possa confrontar-se com sua posição dedívida simbólica que articula sua relação aos significantes que traçam suafiliação no campo da psicanálise. Significantes tanto da história pessoal quan-to do plano geral das diferentes linhas teóricas e recortes institucionais e suasdiferentes composições teórico-políticas.

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É verdade que transmitimos os significantes de Freud e Lacan, entreoutros. Mas o princípio do poder do tratamento analítico e da transmissão dapsicanálise está no operar da posição do analista como semblante da falta naprodução da divisão subjetiva, isto é, do S1 em nova posição, produzindonovas significações. A teoria viva é referente simbólico que opera antes edepois do ato analítico, permitindo que o tempo de compreender da escutapossa se abrir para o novo e singular. Nesse terreno, o instante de vercorresponde à teoria constituída do analista e, após o tempo de compreendero que escutou, o momento de concluir, que diz respeito ao trabalho do analis-ta de dar conta em sua produção teórica, dos efeitos singulares do que escu-tou, o qual modifica a teoria. A transmissão da falta na formação do analista éo que permite o desejo do analista tomar seu lugar na prática de quem éconvocado por ele.

A questão não é opor o real da transferência ao artifício do dispositivoda análise; a questão é explicar sua dialética (Lacan,1958). Para abordá-la,ele propõe diferenciar três planos, que aqui irei transpor para a questão datransmissão na instituição psicanalítica: a política da transmissão, a estraté-gia da transmissão e sua tática. É no nível da tática que somos mais livres natransmissão, como, por exemplo, deixar que os efeitos de formação, trans-missão e de passe encontrem seus lugares nos diferentes âmbitos da vidainstitucional, mediante a condição de que isso esteja ligado a uma estratégia.Esta está ligada à transferência de trabalho, da qual os analistas não sãoamos. Trata-se de permitir as formações do inconsciente, mas de forma que ojogo significante das diversas produções possam retornar como interrogantespara aqueles que as produziram ou falaram. Por isso, os analistas devemsaber para onde vai a transmissão, e essa é a sua política. “O analista estámenos livre ainda em sua política que em sua estratégia ou tática, na qualfaria melhor em se situar pela carência de ser que por seu ser” (Lacan, 1958,p. 569). É por isso que ele diz que ninguém é analista, mas que há algo deanalista nos analistas (Lacan, 1960-61). O analista não procura transmitir peloseu ser, mas se desembaraçar do que suportou na transferência de trabalhoao longo de um percurso de transmissão. A partir dessa política, os analistassabem que devem levar o ser da posição de analisantes no curso da trans-missão à sua falta em ser, sendo que é isso que deve organizar o recorrido dadireção da transmissão.

A direção da transmissão toca na questão do passe, da posição deanalisante ao de analista e do reconhecimento dessa passagem. Há váriosproblemas de se instituir um dispositivo de passe. Primeiro, porque, comoalgo instituído, um dispositivo inevitavelmente adquire uma inclinação de

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recalcamento. Segundo, porque induz à demanda de reconhecimento, o queentra em contradição com o princípio de que o analista, em seu ato, se auto-riza de si mesmo, com outros. Quando Lacan acrescenta “com outros’”, indicaque o analista não é um self-made man que se autoriza por sua própria von-tade supostamente autônoma e que o reconhecimento da qualidade analíticados atos clínicos praticados pelos analistas se dá por outros e não é algo quepossa ser demandado. Terceiro, porque institui a noção imaginária de queessa passagem de analisante a analista se dê de uma só vez e de formadefinitiva (Lacan dizia que seguia passando o passe). Quarto, porque restrin-ge as possibilidades de reconhecimento das manifestações dos efeitos detransmissão do discurso do analista nos membros da instituição em outrosâmbitos que o do dispositivo de passe instituído.

Na vida institucional, são inúmeros e até mesmo inesperados os luga-res e momentos em que o desejo do analista dá testemunho de sua presençanos membros da instituição. O passe, a rigor, não é um dispositivo. Ele éefeito de análise, sobretudo dos efeitos e questões que os finais de análisecolocam, e de como se dão as passagens moebianas de analisante a analis-ta. A lógica do passe é da ordem do não-todo. Instituir um mecanismo depasse tende a reduzir o passe ao dispositivo, perdendo-se dessa forma a ri-queza das passagens que um dispositivo não consegue abarcar. Nesse sen-tido, um dispositivo de passe precisa ser múltiplo.

Se a responsabilidade da inserção no campo da psicanálise nos efeitosmais vivos da experiência analítica é de cada um, cabe a todos estarem aten-tos aos diferentes lugares de sua expressão dentro e fora da instituição. En-tretanto, é preciso que ela possa responder por essa qualidade analítica daprática de seus membros. Na APPOA, a responsabilidade de estar suficiente-mente informado para reconhecer essa qualidade na prática em intensão eextensão dos membros da instituição e nomeá-los é da Comissão de Analis-tas Membros.

Assim como “a formação é permitida, nunca garantida, e nunca sancio-nada como acabada” (Ata de Fundação, 1990), passar o passe é permitido,nunca é algo que possa ser garantido, e nunca é sancionado como tendo sidopassado definitivamente de forma acabada. Trata-se de seguir passando opasse na rede de transferência de trabalho que se desenrola na instituição,assim como no contexto mais amplo do movimento psicanalítico.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ATA DE FUNDAÇÃO. Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Ale-gre, ano I, n. 01, março de 1990.BRASIL, Maria Ângela. O Porquê da Instituição. In: Boletim da Associação Psicanalíti-ca de Porto Alegre. Porto Alegre, ano I, n.3/4, novembro de 1990LACAN, Jacques. La Dirección de la Cura y los Principios de su Poder (1956). In:Escritos. México: Siglo Veintiuno, 1984.LACAN, Jacques. O Mito Individual do Neurótico. Lisboa: Assírio e Alvin, 1980.LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 8. A Transferência (1960-61). Rio de Janeiro: J.Zahar, 1992.

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Sàndor Ferenczi (1873-1933), psiquiatra e psicanalista húngaro, é citado porFreud como valendo por uma associação inteira no momento em que elerepresentava seu país no movimento psicanalítico.Freud que, na ocasião,parece-nos por demais efusivo, à medida que a psicanálise se desenvolve,passa a ter reservas quanto às atitudes e à própria obra de Ferenczi. Enfati-zando a demasiada importância que tomara seu desejo de curar, Freud nãodeixa de valorizá-lo veementemente nas homenagens que lhe prestou emseu cinqüentenário (1923) e em seu necrológio (1933).O que leva um sujeito a buscar um mestre? Quais as relações transferenciaisentre Ferenczi e Freud? Ferenczi fez-se analisar em três ocasiões pelo mestre,entre 1914 e 1916. Freud se posicionou com autoridade, insistindo para queFerenczi tomasse determinadas atitudes em sua vida pessoal e profissional.Ferenczi dedicou-se intensamente ao Movimento Psicanalítico, participandoda fundação da IPA e da Sociedade Psicanalítica de Budapeste, de congres-sos psicanalíticos, além de acompanhar Freud em várias viagens, como àItália e aos Estados Unidos.Desde que ingressou na psicanálise, em 1908,manteve-se constantemente escrevendo artigos e estabeleceu, com Freud,uma vasta correspondência (mais de mil cartas), nas quais revelava uma in-quietação teórica abundante.“Autor da primeira geração a questionar com mais pertinência o que se exigeda pessoa do psicanalista, sobretudo quanto ao fim do tratamento”, escreveLacan, ao citar o luminoso (sic) artigo sobre a “Elasticidade da Técnica Psica-nalítica”. Destaca aí, a condição sine qua non da análise do analista e mesmode seus retornos à análise.Ferenczi nos deixa a lição de que, se por um lado houve transferência econtratransferência (ele foi o descobridor desse conceito) com Freud, poroutro, manteve os efeitos subjetivos de nunca poder separar-se do S1 dodiscurso do mestre.

ELASTICIDADE DA TÉCNICAPSICANALÍTICA* (1928)

Sàndor Ferenczi

* Conferência pronunciada na Sociedade Húngara de Psicanálise (Ciclo 1927/28). In: EscritosPsicanalíticos 1909-1933. Rio de Janeiro: Taurus.

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Os esforços para tornar acessível a outros a técnica que habitualmenteutilizo em minhas psicanálises levaram-me freqüentemente ao tema da

compreensão psicológica em geral. Seria verdade, muita gente o afirma, quea compreensão dos processos que se passam na vida psíquica do outro de-pende de uma aptidão particular que se chama conhecimento dos homens,aptidão que, como tal, seria inexplicável e, assim, intransmissível: todo esfor-ço para ensinar algo dessa técnica estaria condenado de antemão. Felizmen-te não é assim. Desde que Freud publicou suas “Recomendações sobre atécnica da psicanálise”, temos os primeiros elementos de uma pesquisa me-tódica sobre o psiquismo. Quem não temer o esforço de seguir as instruçõesdo Mestre estará apto, mesmo não sendo um gênio da psicologia, a penetrarnas profundezas insuspeitadas da vida psíquica do outro, seja esta sadia oudoente. Pela análise dos atos falhos da vida cotidiana, dos sonhos, e sobretu-do das associações livres, pode-se aprender, sobre o semelhante, muitascoisas que anteriormente somente os seres excepcionais eram capazes decaptar. A predileção dos homens pelo maravilhoso faz com que desagradeessa transformação da arte do conhecimento dos homens numa espécie deprofissão. Os artistas e os escritores vêem isso principalmente como umaintromissão em seu mundo e, após se interessarem de início pela Psicanáli-se, em geral largam-na, como método de trabalho mecânico e pouco atraen-te. Essa antipatia nada nos surpreende; a ciência, de fato, é uma desilusãoprogressiva: no lugar do que é místico e singular, ela põe sempre essa lega-lidade incontornável que, por sua uniformidade, facilmente provoca o tédio e,pelo percurso cheio de obrigações, o desprazer. Para acalmar um pouco osespíritos, acrescentemos que, como em qualquer outra profissão, tambémaqui haverá artistas excepcionais, dos quais esperamos os progressos e no-vas perspectivas.

Do ponto de vista prático, no entanto, é um progresso que a análisetenha, pouco a pouco, posto nas mãos do médico e do cientista médios uminstrumento para uma exploração mais sutil do homem. É como em cirurgia:antes da descoberta da anestesia e da assepsia, apenas uns poucos tinhamo privilégio de exercer a “arte da cura” cirúrgica e podiam trabalhar, cito, tuto ejucunde2”. Claro, hoje em dia ainda há artistas da técnica cirúrgica, mas osprogressos permitiram a milhares de médicos medíocres estenderem sua ati-vidade útil, que freqüentemente salva uma vida.

Claro, falava-se também da técnica psicológica fora da análise do psi-quismo; entendia-se com isso os métodos de medição dos laboratórios de

2 “Rapidamente, com segurança e alegria”.

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psicologia. Essa “psicotécnica” está hoje em dia ainda em moda, pode inclu-sive bastar em certas tarefas práticas simples. Na análise, trata-se de algobem mais elevado: captar a tópica, a dinâmica e a economia do funcionamen-to psíquico, e isso sem o aparelho impressionante dos laboratórios mas comuma sempre crescente pretensão de certeza e sobretudo uma capacidade derendimento incomparavelmente superior.

Houve, todavia, e ainda há, no interior da técnica psicanalítica, muitascoisas que se tinha a impressão de serem individuais, pouco definíveis compalavras; logo de início o fato de, neste trabalho, a importância que pareciaser atribuída à “equação pessoal” era bem maior que o que se podia aceitarna ciência. O próprio Freud, em suas últimas comunicações sobre a técnica,deixava livre o campo para outros métodos de trabalho em psicanálise, para-lelos ao dele. É bem verdade que essa declaração é anterior à época dacristalização da segunda regra fundamental da Psicanálise, de que quem querque queira analisar os outros deve ser antes ele próprio analisado. Desde aadoção desta regra, a importância da nota pessoal do analista esmorece cadavez mais. Qualquer pessoa que foi analisada a fundo, que aprendeu a conhe-cer completamente e a controlar suas inevitáveis fraquezas e particularida-des de caráter, chegará necessariamente às mesmas constatações objeti-vas, no decorrer do exame e do tratamento de um mesmo objeto de investiga-ção psíquica e, conseqüentemente, tomará as mesmas medidas táticas etécnicas. Tenho, na verdade, a sensação de que, desde a introdução da se-gunda regra fundamental, as diferenças de técnica analítica estão desapare-cendo.

Se tentarmos agora nos dar conta desse resto ainda não resolvido daequação pessoal, e se tivermos uma posição que nos permita ver muitosalunos e pacientes já analisados por outros, mas sobretudo se tivermos queenfrentar as conseqüências dos nossos próprios erros cometidos anterior-mente, poderemos então nos permitir um julgamento global dessas diferen-ças e erros. Tenho a convicção de ser antes de mais nada uma questão detato psicológico, o saber quando e como se comunica algo ao analisado, quan-do se pode declarar que o material fornecido é suficiente para se tirar conclu-sões; que roupagem dar à comunicação se for o caso; como reagir a umareação inesperada ou desconcertante do paciente; quando se deve calar eesperar outras associações; em que momento o silêncio é uma tortura inútilpara o paciente, etc. Vêem, com a palavra “tato” consegui exprimir em umafórmula simples e agradável a indeterminação. Mas o que é o tato? A respos-ta não é difícil. O tato é a faculdade de “sentir com” (Einfühlung). Se conse-guirmos, com a ajuda do nosso saber, tirado da dissecação de muitos psi-

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quismos humanos, mas sobretudo da dissecação do nosso Eu, se conseguir-mos, então, tornar presentes as associações possíveis ou prováveis do paci-ente, associações que ele ainda não percebe, podemos – não tendo, comoele, que lutar com resistências – adivinhar não só seus pensamentos retidosmas também suas tendências inconscientes. Permanecendo-se simultanea-mente, o tempo todo, atentos à força da resistência, não será difícil tomar adecisão quanto à oportunidade de uma comunicação e da forma a dar a ela.Esse sentimento nos evitará estimular inútil ou intempestivamente a resistên-cia do paciente; claro, não cabe à psicanálise afastar todo e qualquer sofri-mento do paciente; de fato, aprender a suportar um sofrimento é um dos prin-cipais resultados da psicanálise. Uma pressão nesse sentido, no entanto, senão houver tato, simplesmente dá ao paciente a oportunidade ta desejada noinconsciente, de se subtrair à nossa influência.

Todas essas medidas de precaução, em seu conjunto, dão ao analisa-do uma impressão de bondade, mesmo que as razões dessa sensibilidadevenham unicamente de razões intelectuais. No que se segue, tentarei justifi-car, todavia, essa impressão do paciente. Não há qualquer diferença de natu-reza entre o tato que se exige de nós e a exigência moral de não fazer aooutro aquilo que, em circunstâncias análogas, não gostaríamos que nos fizes-sem.

Apresso-me em acrescentar desde já que a capacidade de exerceresse tipo de “bondade” não significa senão um aspecto da compreensão ana-lítica. Antes do médico se decidir a fazer um comunicado, deve primeiro reti-rar por um instante sua libido do paciente, pesar friamente a situação: emhipótese alguma deve se deixar guiar só pelos sentimentos.

Nas frases que seguem, apresentarei num resumo aforístico algunsexemplos ilustrando essas considerações gerais.

É conveniente conceber-se a análise como um processo evolutivo quese desenvolve sob nossos olhos, e não como o trabalho de um arquiteto queprocura realizar um plano preconcebido. Que não nos deixemos levar, emcircunstância alguma, a prometer mais do que isto ao analisado: submeten-do-se ao processo analítico ele acabará se conhecendo melhor, e se perse-verar até o fim, poderá melhor se adaptar às dificuldades inevitáveis da vida,e com uma divisão de energia mais justa. Podemos, a rigor, dizer a ele quenão conhecemos melhor tratamento para as perturbações psiconeuróticas oudo caráter, nem mais radical. Não esconderemos absolutamente existiremoutros métodos que prometem esperanças de cura muito mais rápida e segu-ra, e secretamente nos alegraremos de ouvi-lo dizer que já seguiu, duranteanos, tratamentos por métodos sugestivos, ergoterapia e outros métodos

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reforçadores da vontade; ou então, deixamos ao paciente a escolha de tentarum desses tratamentos tão promissores, antes de se entregar a nós. Mas nãopodemos deixar passar a objeção freqüentemente levantada pelos pacientes,de não acreditarem em nosso método ou em nossa teoria. Explicamos desdeo início que nossa técnica renuncia inteiramente ao imerecido prêmio de qual-quer confiança antecipada; o paciente só precisa acreditar se as experiênciasdo tratamento o autorizarem. Mas não podemos cancelar uma outra objeçãoque consiste em dizer que deixamos, assim, a priori, a responsabilidade deum eventual fracasso por conta da impaciência do paciente e devemos deixá-lo decidir se quer ou não, nessas condições difíceis, assumir o risco da cura.Se essas questões parciais não forem consideradas, desde o início e nestesentido, oferece-se à resistência do paciente temíveis armas, que ele nãodeixará, mais cedo ou mais tarde, de utilizar contra o tratamento e contra nós.Não nos deixemos desviar dessa base por nenhuma questão, por mais as-sustadora. “O tratamento então pode tanto durar dois, três, cinco ou dez anos?”,perguntarão certos pacientes, com visível hostilidade. “É possível”, será nos-sa resposta. “Mas, é claro, uma análise de dez anos equivale praticamente aum fracasso. Já que não podemos nunca apreciar de antemão a importânciadas dificuldades a se superar, não podemos prometer um resultado certo econtentamo-nos com o fato de que em muitos casos bastam períodos maiscurtos. Mas como você provavelmente tem a crença de que os médicos gos-tam de fazer prognósticos favoráveis e, além disso, como certamente já ouviumuitas opiniões desfavoráveis sobre a teoria e a técnica da Psicanálise, oucomo em breve ouvirá, mais vale que considere esse tratamento como umaexperiência ousada que lhe custará muitos esforços, tempo e dinheiro; seapesar de tudo, quiser tentar essa experiência conosco, deve deixa-la depen-dente do seu grau de sofrimento. Reflita, em todo caso, antes de começar:começar sem a séria intenção de perseverar apesar dos agravamentos inevi-táveis acrescentará mais uma decepção às que já sofreu.”

Creio que essa preparação pessimista é entretanto a mais adaptada àfinalidade; corresponde, em todo caso, às exigências da regra do “sentir com”.Pois a fé excessiva do paciente, muitas vezes exageradamente estampada,quase sempre esconde uma boa dose de desconfiança, cuja voz o doentetenta encobrir, exigindo de nós promessas de cura. Uma pergunta caracterís-tica muitas vezes feita, mesmo depois de nos termos esforçado durante qua-se uma sessão inteira a persuadir o paciente de que no seu caso considera-mos a análise indicada, é: “O senhor acredita, doutor, que o tratamento real-mente me ajudará?” Seria um erro responder a pergunta com um simples“sim”. Mais vale dizer ao paciente que nós próprios nada esperamos de uma

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confiança sempre renovada. Inclusive o elogio muitas vezes repetido no trata-mento não consegue na verdade fazer desaparecer a secreta desconfiançado paciente, de que o médico é um homem de negócios querendo vender oseu método a qualquer preço, a sua mercadoria. A incredulidade disfarçadafica ainda mais transparente quando o paciente pergunta, por exemplo: “Osenhor não acha, doutor, que o seu método pode também em fazer mal?”Respondo em geral com uma outra pergunta: “Qual é a sua profissão?” Aresposta é, por exemplo: “Arquiteto”. “O que você responderia a quem lheperguntasse, na apresentação dos planos de um novo edifício, se a constru-ção não vai desabar?” As exigências por outras garantias em geral se calam,e isto é sinal de que o paciente se deu conta de ser preciso, para todo traba-lho, dar um voto de confiança ao profissional, não se excluindo, é claro, aspossibilidades de decepção.

Acusa-se freqüentemente a Psicanálise de se preocupar demasiadocom questões financeiras. Acho que não nos preocupamos ainda o bastante.O homem mais abastado reclama de dar seu dinheiro ao médico; algo em nósfaz-nos considerar a ajuda médica – inicialmente fornecida na infância pelaspessoas encarregadas da criança – como natural; ao fim de cada mês, quan-do os pacientes recebem suas contas, a resistência do doente só cessa quandoaquilo que está escondido, o ódio despertado inconscientemente, a desconfi-ança ou suspeita foram de novo trazidos a se exprimir. O exemplo mais ca-racterístico da distância entre o consentimento consciente ao sacrifício e odesprazer oculto, foi dado por um paciente que, no início da entrevista com omédico, declarou: “Doutor, se me ajudar lhe darei toda minha fortuna”. Res-ponde o médico: “Contentar-me-ei com trinta coroas por sessão”. “Não achamuito?”, foi a resposta inesperada do doente.

Durante a análise, é sempre bom manter o olho aberto para as mani-festações ocultas ou inconscientes que demonstram a incredulidade ou recu-sa, e discuti-las sem medo. É compreensível, de fato, que a resistência dopaciente não desperdice nenhuma ocasião que se lhe ofereça. Todo pacien-te, sem exceção, nota as menores particularidades do comportamento, daaparência externa, da maneira de falar do médico, mas nenhum toma a inici-ativa, sem prévio encorajamento, a nos dizê-lo de frente, faltando inclusivegravemente para com a regra fundamental da análise; resta-nos apenas adi-vinharmos nós mesmos, na base do contexto associativo do momento, quan-do, espirrando ou nos assoando ruidosamente, ferimos eventualmente o pa-ciente em seus sentimentos estéticos, quando impressionou-se com a formado nosso rosto, ou quando precisou comparar nossa estatura com a de ou-tros, muito mais imponentes. Em muitas ocasiões já tentei mostrar como o

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analista, no tratamento, deve se deixar, durante semanas às vezes, no papelde títere, sobre quem o paciente experimenta seus afetos de desprazer. Senão só não nos protegermos mas também o encorajarmos a isso, a cada vez,cedo ou tarde recolheremos a bem merecida recompensa por nossa paciên-cia, com uma nascente transferência positiva. Todo indício de despeito ou desentimento de constrangimento por parte do médico, prolonga a duração doperíodo de resistência; e se o médico não se defende, pouco a pouco o paci-ente se cansa do combate unilateral; tendo já se descarregado suficiente-mente, ele não poderá deixar de reconhecer, mesmo com reticências, os sen-timentos amistosos ocultos por trás da defesa ostensiva, o que permitirá aeventual penetração mais a fundo no material latente, particularmente nassituações infantis em que se basearam certos traços de caráter maldosos(em geral por tutores incompreensivos).

Nada mais nocivo em análise que uma atitude de mestre-escola oumesmo de médico autoritário. Todas nossas interpretações devem ter umcaráter de proposição ao invés de asserção, e isto não só para não irritar opaciente como também porque podemos efetivamente nos enganar. O antigocostume dos comerciantes de acrescentar ao final de cada fatura a marca“S.E..” (salvo errore), isto é, “salvo erro”, deveria também ser mencionadapara cada interpretação analítica. Do mesmo modo, a confiança em nossasteorias só pode ser condicional, pois o caso em questão talvez seja a famosaexceção da regra, ou talvez a necessidade de se modificar algo na teoria emvigor até então. Já aconteceu comigo de um paciente sem cultura, perfeitamen-te ingênuo na aparência, ter levantado, contra minhas explicações, objeçõesque eu estava pronto a rejeitar; um exame melhor mostrou-me que não era eumas o paciente quem tinha razão, e que a objeção dele inclusive me ajudavaa compreender melhor aquele assunto. A modéstia do analista não é pois umaatitude que se aprenda, mas a expressão da aceitação dos limites do nossosaber. Notemos de passagem que talvez seja este o ponto onde, com a ajuda daalavanca psicanalítica, comece a se realizar a mudança da atitude anterior domédico. Que se compare nossa regra de “sentir com” e a enfatuação com que omédico onisciente e todo-poderoso costumava até hoje encarar o doente.

Claro que não acho que o analista deva ser mais que modesto; templeno direito de esperar que a interpretação, apoiada pela experiência, cedoou tarde se confirme na maioria dos casos, e que o paciente ceda diante daacumulação de provas. Mas, de qualquer forma, é preciso esperar paciente-mente que o doente tome a decisão; toda impaciência do médico custarátempo e dinheiro ao paciente, e uma quantidade de trabalho, ao médico, queele poderia perfeitamente evitar.

ELASTICIDADE DA TÉCNICA...

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Aceito tornar minha a expressão “elasticidade da técnica analítica” for-jada por um paciente. Deve-se, como um elástico, ceder às tendências dopaciente, mas sem abandonar a pressão na direção de suas próprias opini-ões, enquanto a inconsistência de uma dessas duas opiniões não estiver ple-namente comprovada.

Em hipótese alguma deve-se ter vergonha de reconhecer, sem restri-ções, os erros passados. Que nunca se esqueça que a análise não é umprocedimento sugestivo, em que o prestígio do médico e sua infalibilidadedevem ser preservados a todo custo. A única pretensão levantada pela análi-se é a da confiança na franqueza e sinceridade do médico, e a esta, o reco-nhecimento sincero de um erro não ameaça.

A posição analítica exige do médico não só o rigoroso controle do seupróprio narcisismo mas também o controle de diversas reações afetivas. Acha-va-se antigamente que um grau excessivo de “antipatia” podia constituir umacontra-indicação à condução de um tratamento analítico, mas devemos, comuma melhor compreensão das circunstâncias, excluir a priori essa contra-indicação e esperar de um analista analisado que o auto-conhecimento e oauto-controle sejam fortes o bastante para não se curvarem diante deidiossincracias. De fato, esses “traços antipáticos”, na maioria dos casos nãosão senão fachadas, dissimulando outros traços de caráter. Se o psicanalistaaceita, é como se ele deixasse ganhar o paciente; ser excluído é freqüente-mente a finalidade de um comportamento intolerável. Sabê-lo nos permite,com conhecimento de causa, aceitar a pessoa mais desagradável como umpaciente que se precisa curar e, como tal, não lhe recusar nossa simpatia.Aprender essa humildade mais que cristã é uma das tarefas mais difíceis daprática psicanalítica. Se conseguirmos, a correção pode ser bem sucedidamesmo em casos desesperados. Chamo a atenção mais uma vez que sóuma verdadeira posição de “sentir com” pode ajudar; os pacientes perspica-zes rapidamente desmascaram qualquer pose fabricada.

Damo-nos conta, pouco a pouco, do quanto o trabalho psíquico do ana-lista é, na verdade, complicado. Deixamos agirem sobre nós as associaçõeslivres dos pacientes e ao mesmo tempo deixamos nossa própria fantasia jo-gar com esse material associativo; no meio-tempo, comparamos as novasconexões com os resultados anteriores da análise, sem deixar, nem por uminstante, de levar em conta e criticar nossas tendência próprias.

Quase se poderia, de fato, falar de uma oscilação perpétua entre “sen-tir com”, auto-observação e atividade de julgamento. Esta última se anuncia,de vez em quando, bem espontaneamente, sob a forma de sinal que natural-mente, de início, como tal apenas deve ser avaliada; apenas baseando-se

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num material justificativo, suplementar, pode-se afinal se decidir por uma in-terpretação.

Economizar interpretações, em geral, nada dizer de supérfluo, é umadas regras mais importantes da análise; o fanatismo pela interpretação fazparte das doenças infantis do analista. Quando as resistências do paciente seresolvem pela análise, consegue-se às vezes, em análise, que o próprio paci-ente realize todo o trabalho de interpretação quase sozinho, ou com umaajuda mínima.

Voltemos uma vez mais à minha “atividade” tão elogiada e tão criticada.Acredito, afinal, estar apto a dar a indicação precisa, justamente exigida poralguns, concernindo ao momento dessa medida técnica. É sabido que origi-nalmente eu estava inclinado a prescrever, junto com a associação livre, cer-tas regras de comportamento, desde que a resistência as permitisse. Maistarde, a experiência ensinou-me que não se deve nunca dar ordens nem co-locar proibições mas, no máximo, aconselhar certas mudanças na maneirade se conduzir, mantendo-se sempre pronto a retirá-las se se mostrarem comoum obstáculo ou se provocarem resistências. A opinião, que desde o iníciosustentei, de que é sempre o paciente, e nunca o médico, que pode ser “ati-vo”, levou-me afinal à constatação de que devemos nos contentar em inter-pretar as tendências à ação, ocultas ao paciente, para apoiar as fracas tenta-tivas de superação das inibições neuróticas que ainda subsistem, sem insistirde início na aplicação de medidas de constrangimento, nem mesmo aconselhá-las. Se formos suficientemente pacientes, o analisado cedo ou tarde acabarápor si próprio perguntando se pode arriscar uma ou outra tentativa (por exem-plo, ultrapassar uma construção fóbica); e, é claro, não recusaremos nemnosso acordo nem nosso apoio e obteremos com isso todos os progressosesperados da atividade, sem irritar o paciente e sem estragar as coisas, entreele e nós. Em outras palavras, cabe ao paciente determinar, ou pelo menosindicar sem mel-entendido possível, o momento da atividade. Mas está bemestabelecido que tais tentativas provocam variações de tensão nos sistemaspsíquicos e se revelam plenamente como um instrumento da técnica analíti-ca, junto com as associações.

Num outro trabalho técnico3, já chamei a atenção para a importância datranslaboração, falei todavia num sentido um pouco unilateral, como de umfator puramente quantitativo. Penso, entretanto, que a translaboração temtambém um lado qualitativo, e que a reconstrução paciente do mecanismo da

3 “O problema do fim da análise” (1927).

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formação do sintoma e do caráter deve se repetir, a cada novo progresso daanálise. Cada nova compreensão das significações exige a revisão de todo omaterial precedente, o que pode demolir partes essenciais do edifício que sepensava já concluído. É tarefa de uma dinâmica da técnica, entrando em to-dos os detalhes, constatar relações mais finas entre essa translaboração qua-litativa e o fator quantitativo (descarga de afeto).

Uma forma especial do trabalho de revisão parece reincidir em cadacaso. Penso na revisão das experiências vividas durante o próprio tratamentoanalítico. A análise, pouco a pouco, se torna ela própria um fragmento da his-tória do paciente, que ele passa mais uma vez em revista antes de nos deixar.No decorrer dessa revisão, ele vê com um certo distanciamento e maior obje-tividade as experiências do início do encontro conosco, as peripécias conse-qüentes de resistência e de transferência que, por um tempo, lhe pareceramtão atuais e vitais, e desvia depois o seu olhar da análise para dirigi-la a tare-fas reais da vida.

Gostaria, enfim, de arriscar algumas observações concernindo à me-tapsicologia da técnica4. Em vários textos meus, entre outros, a atenção foichamada para o fato do processo de cura consistir em boa parte no pacientecolocar o analista (o novo pai) no lugar do verdadeiro pai que ocupa tantolugar no superego, e continuar a viver com esse superego analítico. Não negoque esse processo efetivamente ocorra em todos os casos, admito inclusiveque essa substituição possa trazer importantes sucessos terapêuticos, masquero acrescentar que uma verdadeira análise de caráter deve pôr na gaveta,pelo menos provisoriamente, qualquer tipo de superego, inclusive o do analis-ta. Pois o paciente deve afinal estar livre de qualquer laço emocional, na me-dida em que o laço ultrapassa a razão e suas tendências libidinais próprias.Apenas essa espécie de desconstrução do superego pode trazer uma curaradical; resultados que consistiriam na substituição de um superego por outrodevem ainda ser designados como transferenciais; não correspondem certa-mente à finalidade do tratamento: livrar-se também da transferência.

Levanto aqui um problema que até o presente nunca foi colocado, o deuma eventual metapsicologia dos processos psíquicos do analista, no decor-rer da análise. Seus investimentos oscilam entre identificação (amor objetalanalítico), de um lado, e auto-controle ou atividade intelectual, de outro. Du-

4 Por “metapsicologia” entendemos, como se sabe, o somatório das representações que pode-mos fazer concernindo à estrutura e à energética do aparelho psíquico, com base na experiênciapsicanalítica. Ver os trabalhos metapsicológicos de Freud no volume V das Gesammelte Werke.

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rante o seu longo dia de trabalho, ele não pode nunca se entregar ao prazerde dar livre curso a seu narcisismo e a seu egoísmo, na realidade; e mesmono fantasma, apenas por curtos momentos. Não duvido que uma tal sobrecar-ga – que afora aí não se encontra ma vida – cedo ou tarde exigirá a elabora-ção de uma higiene particular do analista.

É fácil reconhecer os analistas não analisados (silvestres) e os pacien-tes parcialmente curados, pois sofrem de uma espécie de “compulsão à aná-lise”; a mobilidade livre da libido após uma análise terminada permite, pelocontrário, que se deixe governar, se necessário, o conhecimento de si e odomínio de si, analíticos, mas sem que se impeça, afora isso, de forma algu-ma, o simples gozo da vida. O resultado ideal de uma análise terminada épois precisamente essa elasticidade que a técnica exige igualmente do psi-quiatra. Um argumento a mais a favor da absoluta necessidade da “segundaregra fundamental da Psicanálise”.

Dada a grande importância, creio, de qualquer conselho técnico, nãome decidi a publicar esse artigo sem antes tê-lo submetido à crítica de umcolega.

“O título (Elasticidade) é excelente”, declarou este crítico, “e mereceriareceber uma maior aplicação, pois os conselhos técnicos de Freud eram es-sencialmente negativos. O que a ele parecia mais importante, era realçar oque não se devia fazer, assinalar as tentações, que vinham em contra-corren-te da análise. Quase tudo que se deve fazer de positivo, ele deixou ao “tato”que você menciona. Mas o resultado que se obteve foi que sujeitos obedien-tes não perceberam a elasticidade dessas convenções e se submeteram comose fossem leis-tabus. Era preciso rever isto um dia, claro que sem anular asobrigações.

“Embora o que você diga a respeito do “tato” seja verdadeiro, parece-me perigoso aceitar isto sob esta forma. Todos que não têm tato verão nissouma justificativa para o arbitrário, isto é, para o fator subjetivo (influência doscomplexos próprios indomados). Na verdade, empreendemos a medição, aum nível que permanece essencialmente pré-consciente, dos pesos das dife-rentes reações que esperamos de nossas intervenções; o que conta primei-ramente é a avaliação quantitativa dos fatores dinâmicos na situação. Natu-ralmente, não se pode dar regras para essas medições. A experiência e anormalidade do analista terão que decidir. Mas dever-se-ia assim despojar otato da sua característica mística”.

Concordo inteiramente com a opinião do meu crítico, de que essa indi-cação técnica levará, como todas as precedentes, e apesar da maior prudên-cia em sua formulação, a falsas interpretações e a abusos. Sem dúvida algu-

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ma, muitos serão aqueles que – não só entre os iniciantes mas também entretodos aqueles que têm tendência ao exagero – aproveitarão minhas idéiasacerca da importância do “sentir com” para colocar, no tratamento, o principalacento sobre o fator subjetivo, isto é, sobre a intuição, e que desprezarão ooutro fator que sublinhei como decisivo, a apreciação consciente da situaçãodinâmica. Mesmo repetidas advertências provavelmente não terão efeito contratais abusos. Inclusive vi certos analistas utilizarem minhas tentativas de ativi-dade – prudentes, e cada vez mais – para se entregarem a um inclinaçãopessoal para a aplicação de medidas constritivas, perfeitamente não-analíti-cas, às vezes com uma ponta de sadismo. Não me surpreenderia então ouvirdentro de algum tempo ter alguém tomado minhas considerações quanto àindispensável paciência e tolerância do analista como base para uma técnicamasoquista. Entretanto, a elasticidade que aplico e recomendo não equivalecertamente a ceder sem resistência. Buscamos, é óbvio, nos colocar no mes-mo diapasão do doente, sentir com ele todos os seus caprichos, humores,mas nos mantermos firmes, até o fim, em nossa posição ditada pela experiên-cia.

Privar o “tato” do seu lado místico era justamente o motivo principal queme levava a escrever este artigo; mas admito ter simplesmente abordado oproblema, sem tê-lo absolutamente resolvido. No que concerne à possibilida-de de formular também conselhos positivos para a avaliação de certas rela-ções dinâmicas típicas, sinto-me talvez um pouco mais otimista que meu crí-tico. Aliás a exigência dele relativa à experiência e à normalidade do analistaequivale mais ou menos à minha, de que a única base confiável para uma boatécnica analítica é a análise concluída do analista. É claro que num analistabem analisado, os processos do “sentir com” e da avaliação, por mim exigi-dos, se desenvolverão não no inconsciente mas ao nível do pré-consciente.

As muitas advertências feitas acima levam-me manifestamente a preci-sar um outro ponto de vista já exposto neste artigo. Trata-se da passagem emque se diz que uma análise de caráter suficientemente aprofundada, deve selivrar de todo tipo de superego. Um espírito de rigor demasiado zeloso pode-ria interpretar isto dizendo que minha técnica quer privar as pessoas de qual-quer ideal. Na verdade, meu combate se volta apenas contra a parte dosuperego tornada inconsciente e, por isso, ininfluenciável; naturalmente, nãofaço qualquer objeção a que um homem normal continue a conservar em seupré-consciente uma quantidade de modelos positivos e negativos. É verdadenoentanto que não precisará obedecer como um escravo ao seu superegopré-consciente, como, anteriormente, à imago parental inconsciente.

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Cinco anos já se passaram desde o falecimento de Maud Mannoni, a qualfundou, em setembro de 1969, a Escola Experimental de Bonneuil-sur-

Marne, dedicada a oferecer uma educação para crianças excluídas da rederegular de ensino.Ela cunhou a noção de “instituição estourada” (éclatée) para dar conta daespecificidade do trabalho nessa escola terapêutica. Um lugar que não é to-tal, que não pode e não deve oferecer tudo, como seria o caso de uma mãepsicotizante. É por este viés que podemos pensar a particularidade destelugar de vida, onde toda a prática é fundamentada na psicanálise; não sendo,contudo, análise propriamente dita. Este é um dos pontos desenvolvidos aseguir, na reprodução do encontro que se realizou na APPOA, em maio de2003, com um grupo de colegas de Bonneuil, representado pelas psicanalis-tas Marie José Lérès e Carole Dubus.Mannoni se foi, mas sua criação continua viva, e foi graças a uma verdadeiratransmissão que ela soube fazer em vida que sua equipe dá seguimento aesse trabalho no campo da psicanálise de crianças e adolescentes com gra-ves problemas psíquicos.

CONVERSA COMCOLEGAS DE BONNEUIL

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MARIE JOSÉ LÉRÈS: Alegro-me por estar hoje aqui com minhascolegas, encontrando vocês para termos uma experiência comum de in-tercâmbio de transmissão, muito mais do que qualquer aplicação. É esseo sentido que vejo em nossa vinda a Porto Alegre.

MARTA PEDÓ: No trabalho do cartel preparatório, colocamos aquestão sobre a importância do trabalho institucional na formação do ana-lista e de seu papel, enquanto tal, no trabalho da instituição.

MARIE JOSÉ LÉRÈS: É uma questão muito vasta, porque ela colo-ca vários problemas: o problema da psicanálise, o problema da institui-ção, ela mesma, o problema de saber de que instituição se trata, o proble-ma da formação dos analistas e o problema da função dos analistas den-tro da instituição. No caso de Bonneuil, não há a função do analista nainstituição. Em contrapartida, há o sofrimento psíquico; na prática não sepode fazer a economia do sofrimento psíquico no trabalho que é realizadodiretamente com as crianças psicóticas e autistas que encontramos ali.

A escuta em Bonneuil não é o primeiro ponto, é mais um fazer, umencontro.

Esta questão me toca muito porque trabalho nessa instituição hámuitos anos e também tenho uma prática de consultório. Evidentemente,este percurso em Bonneuil fez toda uma diferença no trabalho que pudefazer com as crianças autistas e psicóticas no consultório.

É preciso sair de uma certa passividade com a criança psicótica eautista; não se pode ficar na espera, e é isso que torna a psicanálise tãocomplicada na instituição. Freud dizia que é um trabalho impossível. É porisso que quero deixar claro que em Bonneuil não há analista que exerça apsicanálise.

A psicanálise intervém na instituição na medida em que nós todoslá fomos analisados. Certamente não é uma palavra de ordem para boaparte das pessoas que trabalham com as crianças. Todo esse efeito daanálise no trabalho depende do que cada um fez no divã, na sua análise.Num primeiro tempo é disso que se trata: de trabalhar com os efeitos desua própria análise; e num segundo tempo isso pode servir para que hajauma leitura mais fina dos efeitos imaginários desse trabalho em grupo. Etambém no sentido de colocar nosso inconsciente ao encontro do que sepassa com a criança e com aquele coletivo que ali está. Com as criançaspsicóticas, trata-se, freqüentemente, de fazer agir nosso recalcado.

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MARIA MARTA HEINZ: Um ponto no qual Maud Mannoni insistia bas-tante que está no modelo da escola de Bonneuil, que é sobre o fato de que aanálise da criança precisava ser feita sempre fora da escola. Esse dispositivoque ela preconizava era para evitar um mal-estar do lado da criança. Entre-tanto, tanto na França quanto aqui, há muitas instituições que trabalham deoutra forma, tem um trabalho social e escolar, eventualmente escolar, enfim,institucional e tem o tratamento clínico no mesmo lugar. Eu trabalho numainstituição onde eu mesma exerço o trabalho clínico e que, para os outrosdispositivos de trabalho dessa instituição, o trabalho que passa pelo enqua-dre analítico serve de referência para aquilo que se vai fazer com a criança.

Me questiono sobre esse trabalho paralelo que se faz entre o clínico eo educativo e digo para mim mesma, às vezes, que isso não pode funcionarporque há a dimensão do segredo que é um problema muito delicado estarnuma equipe discutindo o trabalho que a criança faz em análise. Mas, aomesmo tempo, por vezes essa mesma dificuldade faz com que alguma coisase movimente na equipe em relação àquela criança, principalmente, com ascrianças que não falam, para construir significações.

MARIE JOSÉ LÉRÈS: Há dois pontos nesta questão que colocas, de-pende de se estamos do lado dos adultos ou do lado da criança. A questão daanálise fora da instituição, que Mannoni preconizou e que Bonneuil até hojeguarda esse dispositivo, é principal para que isso faça um efeito de palavranegativa sobre a instituição, para que a criança possa vomitar a instituiçãonum outro lugar, para que ela possa, realmente, dizer tudo de mal da institui-ção sem que isso produza um mal-estar para ela. É preservar um lugar íntimoda fala numa cura e que se trate de uma criança que fale ou que não fale,esse é um ponto importante. Com relação aos adultos, há efeitos para a crian-ça do fato de que seu analista esteja ali naquele coletivo, naquele ambienteinstitucional, no qual ela se encontra. Talvez numa clínica isso possa ser dife-rente, mas certamente tem seus efeitos. Depende da instituição da qual sefala, porque se se trata de uma instituição de cuidados que acolhe o sintomada criança para se ocupar dele ou se pensamos em uma instituição comoBonneuil é muito diferente, porque os efeitos sobre a criança são muito dife-rentes. Os adultos freqüentemente se sentem culpabilizados, e conforme olugar onde se está e a partir do qual se fala, pode recair ou na dimensão dosegredo ou na dimensão da legitimidade daquilo que se faz.

ALFREDO JERUSALINSKY: Quando Marie Jose fala da posição edu-cativa, considerando minha curta passagem por Bonneuil, penso que não se

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trata de uma posição pedagógica, mas sim de uma posição educativa nosentido clássico do termo. Esse detalhe me parece importante, porquedeixa um intervalo necessário para que o sujeito tenha lugar. O fato de aspessoas que ali trabalham serem analisadas, me parece essencial. A psi-canálise trabalha ali, não é bem assim que ela ali não tem função.

MARIE JOSÉ LÉRÈS: Não é apenas a psicanálise que prevaleceem Bonneuil. A presença, por exemplo, dos professores é muito impor-tante, destacados pela Educação Nacional, é a presença do exterior emBonneuil, o fato de eles estarem ali. É um olhar vindo do exterior e quenão deixa de ser um olhar terceiro. A “instituição estourada” também fazfunção de terceiro, então é um terceiro que também recebe intervençãodo exterior e que intervém dentro dela de um lugar terceiro.

CAROLE DUBUS: Sobre o quanto a psicanálise conta ou não nainstituição, Mannoni já dizia que em Bonneuil tudo é fundado sobre a psi-canálise, embora não se faça a psicanálise. Isso para evitar um discursoúnico totalizante, que cortaria toda a possibilidade para as crianças e paraos adultos de Bonneuil de respirar e de criar.

ALFREDO JERUSALINSKY: Certamente essa posição de Mannonié muito valiosa, porque quebra a univocidade da versão que a instituiçãogeralmente tem do Outro.

ÂNGELA LÂNGARO BECKER: Nós tendemos a comparar a escolade Bonneuil com a escola tradicional. Sabemos que Bonneuil não temesta proposta, ao contrário, está no meio do caminho entre a clínica e aescola. Mas quando Maria Marta propõe a questão da possibilidade de sefazer o atendimento psicanalítico dentro da instituição, eu penso que aífica mais evidente a diferença entre uma instituição pedagógica e umainstituição educativa no sentido amplo, como refere o Alfredo. As propos-tas de atendimento clínico dentro das escolas tradicionais, elas têm umacondição transferencial muito diferente daquela que tem uma proposiçãode trabalhar numa linha analítica, quando é uma escola que não é umaescola. Só não entendo bem quando Mannoni afirma que, apesar de tudo oque se faz estar fundamentado na psicanálise, isso não seria psicanálise.

MARIE JOSÉ LÉRÈS: O que presidiu a fundação de Bonneuil foi aintenção de criar ali um lugar de vida, e um lugar de vida não são consultas.

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Quando se começou a experiência, estávamos no ponto de pensar quea prática iria interrogar a teoria. No entusiasmo, no engajamento do trabalhoque tivemos, em um primeiro momento, estávamos na prática, no fazer, nopraticar; depois, tratou-se de se interrogar a prática a partir dela mesma. E, defato, o que se passou para muitos de nós nesse segundo tempo de leitura dotrabalho que fazíamos ali foi que a prática mostrou que não inventamos ou-tros conceitos da psicanálise, mas ao contrário, que reencontramos essesconceitos com uma experiência que os legitimava enquanto teoria. Efetiva-mente, creio que essa formação que passa pela experiência pessoal da pró-pria análise torna possível desenvolver um trabalho com tato e arte em nossaprática com as crianças. Existe ali a arte do encontro, a arte de apreendercomo é a criança. Há uma posição fundamentalmente diferente no trabalhocom a criança psicótica quando se parte da teoria e quando se trabalha coma criança não partindo da teoria, mas a teoria ali fazendo retorno a partir daprática. É uma das razões pelas quais não se pode falar de aplicação dapsicanálise nem na proposta nem na atitude em Bonneuil.

EDA TAVARES:Talvez tenhamos que considerar que não vamos to-mar a psicanálise no viés clínico ou de uma teoria no sentido de uma aplica-ção e sim do discurso psicanalítico, ou seja, de um espaço de falta, pois se secoloca a teoria em primeiro lugar não há esse espaço.

CAROLE DUBUS: Não é um discurso, é mais um modo de ser, porquecada um ali foi atravessado pela experiência psicanalítica. Tua questão enviaao estatuto da interpretação e é isso o que em Bonneuil é diferente do que sepassa numa cura. Os efeitos terapêuticos que acontecem quando se estátrabalhando com uma criança é partilhado pelo coletivo, não é um discursosobre mas um modo de estar com os outros.

ALFREDO JERUSALINSKY: A repetição da experiência de Bonneuillamentavelmente tem sido muito problemática, muito difícil de reproduzir emoutro lugar. O que me parece lamentável, porque é uma experiência de umresultado inestimável. Além do mais, os que tivemos a chance de ficar umpouco perto de Bonneuil aprendemos muito. A pergunta é: por que a dificulda-de de se transmitir? Eu acho que há nessa experiência coisas que acontecemque não são ditas, não pela retenção de um direito de autoria, não se trata denenhuma suposição de egoísmo, mas sim da dificuldade de formalizar umaexperiência que não cessa de se renovar. Mas não se trataria exatamentedisto na posição do analista, ou seja, não impor seu discurso para permitir

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que o sujeito fale numa posição infinitamente variável ou a mais variávelpossível? Me parece que há em Bonneuil uma prática de atravessamentopsicanalítico maior que a que se supõe.

MARIE JOSÉ LÉRÈS: Estou completamente de acordo, só querodizer que o fato de Bonneuil não ser modelizável, copiável talvez tenha aver com o fato de que desde a sua fundação esse grupo, que ainda hojeestá trabalhando, tenha sido muito sensível ao meio onde ela está inserida,a história e a política que estão implicadas nesse meio. Para as pessoasque estavam ali engajadas para viver essa experiência, o tempo, o espa-ço e o lugar em que essa experiência se passa são fundamentais, sãomuito importantes evidentemente para a sua fundação. Se essa experi-ência tivesse sido posta em prática na campanha ou no centro de Paris,provavelmente não seria a mesma invenção com os mesmos efeitos.

Eu destaco as pessoas que criam o trabalho institucional no senti-do de que não é a instituição que vai cavar essa experiência, mas aspessoas mesmas que são autoras da experiência. Hoje em dia o contextosócio-político é muito importante; não se trata de ficar numa posição pas-siva e sim ativa. Atualmente não se combate mais em Bonneuil aquilo quese combatia na época de sua fundação. A política de saúde mental mu-dou muito na França. A educação nacional está em queda livre, a igualda-de e a justiça para todos, a escola da república não existe mais. A Françaestá submetida à política do neoliberalismo, sem valores outros que os demercado. Todos esses elementos são extremamente importantes na ex-periência do trabalho, na experiência da vida e de como se analisa o tra-balho e como ele funciona. Por isso daqui a 50 anos talvez a escola deBonneuil continue sendo a única ainda original, apesar de sermos de umclassicismo excepcional, porque não se prega ali métodos nem modas.Aliás, escutando as crianças de Bonneuil a gente observa a riqueza cultu-ral que elas têm na cultura em que estão inseridas, fazendo-nos notar queelas têm mais riqueza cultural que nossos próprios filhos, que são massa-crados pela nossa cultura e quase aprisionados nela. Lembro da frase deum psicótico que, saindo de lá, contou que em Bonneuil ele havia apren-dido a hipocrisia social. Ele dizia: “Aprendi lá que quando eu não estavabem bastava eu telefonar para a clínica privada e me separar dos outrosalguns dias e quando eu retornava me sentia melhor”. Por isso é muitoimportante que, na dificuldade de viver, possa haver também espaços derecolhimento.

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CAROLE DUBUS (A ALFREDO JERUSALINSKY): Sua questão, se enten-di, é a de saber por que não transmitimos a experiência, por que não há reprodu-ção de experiências como a de Bonneuil em outros lugares, não é mesmo?

ALFREDO JERUSALINSKY: Quero precisar um pouco mais minhaquestão. De fato o discurso psicanalítico é o único que não diz nada. De fatosua colocação em ato obriga o outro a falar, na medida em que o outro seja oOutro do outro. A dificuldade com as crianças psicóticas e autistas é em quemedida elas são o Outro do outro. Justamente, efetivamente, com o discursopsicanalítico não há errância, não é suficiente, o silêncio, não havendo o Ou-tro do outro, é silêncio mesmo, não há intervalo. Esse é o problema clínico aabordar numa instituição. Na minha experiência, quando a instituição não sedeixa atravessar pela psicanálise, o Outro do outro não vinga nunca.

CAROLE DUBUS: Acho que alguma coisa verdadeiramente se trans-mite, sim. Mas, para retomar a questão de por que não se transmite a repro-dução do idêntico, penso que não poderia haver outra instituição idêntica àoriginal. Há uma transmissão possível, existem experiências que se inspirammuito em Bonneuil, não são idênticas, mas têm bastante a ganhar comBonneuil. Digo isso porque ouvi sua questão da seguinte forma. Como é quepode, se tudo deu tão certo, como é que não há várias Bonneuil. Tenho sau-dades muito fortes da fundadora que também é única, não há outra igual.Marie Jose mesmo, que atualmente, depois de toda essa experiência deBonneuil, cria um lugar outro, que é a continuidade, mas que não é um lugaridêntico a Bonneuil.

MARIE JOSÉ LÉRÈS: E na continuidade da minha própria experiênciaem Bonneuil, não na continuidade da experiência de Bonneuil, essa é a dife-rença. É um outro lugar, outra estrutura, um lugar de acolhimento em tempoparcial para crianças de 3 a 6 anos, em um tempo de escolaridade, quer dizer,em contextos muito diferentes, mas é claro, mantenho meu estilo.

Em Bonneuil eu sou encarregada da formação dos estagiários, de fa-zer reuniões e discutir o trabalho com eles. Também neste lugar que crieiformo estagiários. Mas o principal é que estamos verdadeiramente lutandopara deixar de ser agentes para sermos atores de uma história, pois é isso oque somos quando criamos alguma coisa. E assim, a especificidade aconte-ce a partir daí; é a experiência mesma que vai movimentar as coisas. Isso, nomeu entender, é da ordem da transmissão, mas uma transmissão que se dánum outro lugar, de outro modo.

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MARIA MARTA HEINZ: Talvez vocês tenham escutado aqui emPorto Alegre sobre inclusão escolar. Fala-se muito disso atualmente.

MARIE JOSÉ LÉRÈS: Na França chamamos “integração”, é sobreas crianças psicóticas que vão à escola normal. Sim, escutei falar dissoaqui em Porto Alegre.

MARIA MARTA HEINZ: Fico pensando sobre aquilo que se chamaem Bonneuil o trabalho externo e tem a ver com um movimento em dire-ção à comunidade, ao social e me parece fazer mais sentido, até mesmona palavra “inclusão”, mais sentido do que o movimento que se faz aquipara a inclusão escolar.

MARIE JOSÉ LÉRÈS: Voltamos ao ponto de partida. O exterior, emBonneuil, não estava desde o início. Foi somente três ou quatro anosdepois de sua fundação, a partir da palavra de uma criança que disse”estou farto dessa escola de loucos, quero sair!”. No início, no tempo dafundação de Bonneuil o que estava em jogo era o tema da anti-segrega-ção. Ora, esse tema da anti-segregação já era falado fora de Bonneuil.

Era maio de 1968, havia todo um fórum de discussões sobre a lou-cura, sobre a sociedade, sobre saber se era a sociedade que enlouqueciaos indivíduos, enfim, tratava-se de interrogar tudo isto. É preciso ter umaancoragem que ultrapasse a simples boa vontade ou o simples delírio depensar “Ah! Isso vai ser perfeito!”, etc. É preciso mais do que isso, senãocaímos igualmente na simples consumação, na mesma da sociedade quecriticamos.

ALFREDO JERUSALINSKY: Penso no movimento benfeitor espa-nhol encorajado pelo patronato da coroa, visando a igualar as criançasdeficientes e psicóticas a todo mundo, abrindo a elas o direito de entrarnas escolas. Os pais do mundo todo se encorajaram a demandar essedireito e transformaram a questão da inclusão num princípio jurídico, ouseja, segregam pelo pior. E aqui é isto o que está acontecendo, assimcomo na maior parte da América Latina. Então se impõe às escolas acei-tar as crianças e as escolas não têm a mínima idéia do que fazer comelas, o que acaba num desastre e numa exclusão.

MARIE JOSÉ LÉRÈS: Enquanto isso na França se deu um movi-mento inverso, partiu dos asilos para introduzir a escola na saúde. Acon-

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tece também que, na França, não existe um número suficiente de instituiçõesque possam acolher essas crianças. Então, freqüentemente, elas estão naescola, mas não é exatamente uma inclusão. Elas entram na escola, e a es-cola apela ao serviço de saúde para acompanhá-las. Na maior parte do tem-po, quando as crianças são muito difíceis, elas são excluídas da escola evivem com seus pais, em casa ou na rua, ou seja, lá temos mais ou menos osmesmos resultados, mas com uma história diferente.

CAROLE DUBUS: Na França há muitas associações de pais.

MARIE JOSÉ LÉRÈS: Essas associações de pais têm uma dupla viaporque, por exemplo, no caso do autismo, atualmente, na França, elas apói-am que esteja sendo passado para o estatuto de deficiência. Ora, esse esta-tuto serve para evacuar a dimensão do sofrimento psíquico sobre todos ospontos, porque assim fica menos caro para a saúde pública. Enfim, trataressas crianças como deficientes, é todo esse trabalho das associações depais que acaba desembocando nesse tipo de coisa. Com esse estatuto seevacua o sofrimento psíquico, e o sofrimento psíquico é muito mais caro doque a deficiência bem repertoriada, bem classificada, bem tratada. Para oestado, o tratamento do sofrimento psíquico é muito mais caro em seu acom-panhamento clínico.

O que torna tudo mais difícil é que essas associações de pais estãomuito contentes que exista este estatuto de deficiência, porque assim elasestão livres disso. Atualmente é um combate importante para se levar na Fran-ça. Agora, com as escolas de pais que estão surgindo lá, precisamos ter mui-ta atenção. Tem uma associação que se chama “escola de pais”, que fazcoisas interessantes para os pais. Mas, no que diz respeito aos pais de autistas,se cai sempre na mesma problemática de que eles não querem, não supor-tam escutar o sofrimento psíquico.

IEDA PRATES DA SILVA: Embora o quadro geral da inclusão seja esteque o Alfredo descreveu, eu tenho acompanhado algumas experiências bas-tante interessantes de crianças nesse processo de entrada na escola. Crian-ças bastante comprometidas, muitas delas psicóticas, e que a entrada naescola, a forma como essa criança é recebida pelos professores, lhe possibi-lita ter um lugar de circulação com outras crianças, se deparar com situaçõesque lhe fazem algum limite, alguma questão. Há uma certa modificação nafamília, do lugar dessa criança, uma modificação de discurso com relação aela. Crianças que antes estavam vivendo somente dentro de casa. Eviden-

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temente que quando estas experiências são bem sucedidas. São poucas,que, inclusive, produzem modificações estruturais, isso porque a escola semodifica, não toda a escola, mas pelo menos uma parte da escola. Os profes-sores vão em busca, não só de atendimento para a criança, vão trabalharcom a família para que isso seja possível. E eles próprios se interrogam decomo vão trabalhar com aquela criança, vão em busca de formação, vão embusca de estudo, de supervisão. Então, eu vejo algumas transformações, como passar do tempo, na vida dessas crianças que encontraram estas possibili-dades nas escolas, que nos fazem pensar que é preciso pensar cada caso,tanto com relação à criança como com relação à escola, aos professores.Enfim, a possibilidade de a escola se abrir para um movimento diferente. Alémde ver cada caso com relação às crianças, temos que ver cada escola, pro-fessores também.

MARIE JOSÉ LÉRÈS: É um pouco o que se passa na experiência dojardim de infância terapêutico. Tem todo um trabalho com as equipes dasescolas, com professores, com os analistas que se ocupam da criança, enfim.É evidente que se o quadro da escola é flexível, e que as pessoas que estãoinscritas naquele quadro de trabalho aceitam essas coisas, as outras crian-ças aceitarão e haverá uma dinâmica de integração positiva, certamente, e émais fácil para as crianças e para os pais. Mas é claro que, nesse domínio,toda a sistematização tem um efeito nefasto. Nessas situações são importan-tes as construções dos laços transferenciais, para que o trabalho de constru-ção de laços ali seja levado adiante, e não se encontra isso em todos os casos.

ALFREDO JERUSALINSKY: Acontece que certamente a circulaçãosocial da criança psicótica introduz uma interpelação do sujeito que é neces-sária. O problema é quando esta circulação se estabelece sob a base darecusa da dificuldade desse laço. Quero dizer que não é a mesma coisa arecusa e lhe propor uma relação com o outro, a recusa é a falsificação desseoutro. Por isso o risco de imposição jurídica como obrigação: leva, geralmen-te, salvo casos aleatórios, a uma falsificação. É grave!

ÂNGELA LÂNGARO BECKER: Eu queria lembrar, com relação à trans-missão do modelo de Bonneuil, que a própria Maud Mannoni, numa entrevis-ta de 1985, respondeu a essa pergunta no seguinte sentido: ela disse que aclínica de Bonneuil não seria uma clínica-modelo a ser copiada. Mas sim parafuncionar como interrogante para os outros modelos institucionais existentes.Me parece que esta é a melhor transmissão.

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MARIE JOSÉ LÉRÈS: Sim, exatamente. Foi uma das razões pela qual,dois anos depois do início de Bonneuil, eles começaram a ir para o exterior,dar palestras, falar sobre a experiência, em clínicas, hospitais, instituições, aquestionar os médicos e os trabalhos. Inclusive, esse nome oficial de Boneuil,“Centro de Pesquisa em Psicanálise e Pedagogia”, situado na dimensão dapesquisa, descentraliza qualquer idéia de um discurso que estaria situadosobre o clínico, sobre uma única via.

MARTA PEDÓ: Achei interessante que nesta tarde, ao falar de quandofundaram a escola, Marie Jose Lerès dizia que sabiam tudo o que não queri-am fazer.

MARIE JOSÉ LÉRÈS: A única coisa que se sabia era que não se que-ria tal e tal coisa.

MARTA PEDÓ: Parece que a idéia de um projeto permanente respeita,de alguma forma, inclusive a questão de poder se perguntar, assim comoLacan vai falar em variantes do tratamento analítico, se isso ainda é psicaná-lise.

MARIE JOSÉ LÉRÈS: Sim, isso é psicanálise.

MARIA ÂNGELA BRASIL: Eu gostaria de comentar o quanto me agra-dou este encontro, porque toca num tema com que nós na APPOA estamosnos ocupando, e nos ocupamos sempre, que é a questão da transmissão.Quer dizer, como transmitir a experiência analítica? Da mesma forma comoouvia vocês falando de Bonneuil, que não há uma estrutura burocrática a sercopiada, da mesma forma uma instituição analítica se faz com seus mem-bros, com essa troca com a comunidade, com essa troca com outras institui-ções. Muitas vezes somos questionados fora do Rio Grande do Sul, como aAPPOA consegue ter uma vasta produção de publicações, por exemplo, ou daqualidade das suas publicações, das suas intervenções, e nos perguntam qual éa fórmula, e nós não temos uma fórmula, trabalhamos exatamente com a ques-tão de cada um, que é convidado então a falar desse seu atraves-samentopela psicanálise. E nesse sentido, então, que um encontro como este é pre-cioso para nós. Podemos falar das nossas dificuldades nas instituições emque nós trabalhamos, e ouvir também as experiências de outros lugares. Euagradeço bastante a Marie Jose Lerès, a Carole e a Nicole, que estão aquiconosco, e, também, ao cartel que preparou com tanto cuidado este evento.

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CAROLE DUBUS: Eu também, a partir desse encontro, vou retomarvários pontos de reflexão sobre meu trabalho.

MARIE JOSÉ LÉRÈS: Isso também vai acrescentar muito no nossotrabalho. Agradeço bastante; foi muito bom ter feito essa troca. Vamos termuitas coisas para transmitir à equipe de Bonneuil quando voltarmos paraFrança.

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Uma das reivindicações da psicanálise em seu favor é, indubitavelmente,o fato de que, em sua execução, pesquisa e tratamento coincidem...”

(Freud, 1912, p.152). A psicanálise nasce de uma clínica, de uma prática. Nofinal do século XIX, o fenômeno histérico estava na ordem do dia. Pacienteseram apresentadas pelo Dr. Charcot a uma seleta platéia de médicos, para alidar a verem suas crises. Diante de tão nobre assistência, e orquestradas peloseu médico, produziam uma série de sintomas, como paralisias, cegueira,náuseas, vômitos e tantos outros, que intrigavam a comunidade científica daépoca por resistirem à concepção de uma causação orgânica. Entre os médi-cos que assistiam às apresentações de pacientes estava Freud, que, nassuas pesquisas, pôde introduzir um giro importante na abordagem deste qua-dro. Do acento no dado a ver, Freud deslizou para o escutar. Interessou-sepelo que essas pacientes tinham a dizer sobre o que lhes acontecia. “Naformação médica os senhores estão acostumados a ver as coisas. (...) Napsicanálise, ai de nós, tudo é diferente. Nada acontece em um tratamentopsicanalítico além de um intercâmbio de palavras entre o paciente e o analis-ta” (Freud, 1916-17, p.28-29).

Freud lançou-se corajosamente no campo da produção de uma novaintervenção para abordar os quadros histéricos, a saber, a escuta analítica, e,a partir de sua escuta mesma, viu-se na necessidade de elaborar um campo

ESCRITA DA CLÍNICA ETRANSMISSÃO DA PSICANÁLISE

Simone Rickes*

* Psicanalista, membro da APPOA, Doutora em Educação, Professora da Faculdade de Educa-ção da UFRGS. e-mail:[email protected]

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conceitual que permitisse sustentar o que ele experienciava na relação comos pacientes. Assim se tecem os primórdios da relação teoria/prática clínicano campo da psicanálise. Primórdios que constituíram o fazer clínico comolugar de investigação por excelência. Investigação marcada por uma interes-sante peculiaridade, a saber, se por um lado é possível, e a história da psica-nálise nos mostra isto, construir uma teoria capaz de aportar operadores quepossam guiar o analista no terreno árido da prática clínica, ou seja, se é pos-sível construir generalizações teóricas, por outro, essas generalizações, quan-do adentram o terreno da intervenção propriamente dita, necessitam sofrerum processo de reconstrução, tendo em conta a transferência singular que seatualiza na situação clínica em questão. Não é possível derivar da generaliza-ção teórica uma padronização da técnica; isso porque:

“a extraordinária plasticidade de todos os processos mentais e ariqueza dos fatores determinantes opõem-se a qualquer mecani-zação da técnica; e ocasionam que um curso de ação que, viade regra, é justificado, possa, às vezes, mostrar-se ineficaz, en-quanto outro que habitualmente é errôneo possa, de vez em quan-do, conduzir ao fim desejado” (Freud, 1913, p. 164).

A lembrança destas palavras de Freud quer acentuar a impossibilidadede uma generalização da técnica, bem como a necessidade de que as inter-venções sejam construídas singularmente ao longo de cada sessão de análi-se, uma vez que são, elas mesmas, produtos e produtoras do desdobrar datransferência.

Há um tensionamento importante entre o “mesmo” que o campo con-ceitual inscreve como sustentador da clínica e o “novo” que a transferênciaatualiza. Desdobremos um pouco mais esta tensão.

No trabalho clínico, a teoria sustentadora da prática serve de abrigo àsdesarmonias do cotidiano. Busca-se nela o entendimento necessário paraaparar as arestas que sobram na experiência de escuta. Tal experiência seinsurge, a cada passo, como resistência ao conhecimento estruturado emteoria. A clínica não se enquadra sem rebeldia. Como pensar, então, em umaescrita da clínica que possa, no mesmo gesto, articular um saber passível detransmissão e não fazer a recusa das arestas que a experiência atualiza?Como pensar a escrita como possibilidade de transmitir os impasses que ali-mentam a Psicanálise e não como exibição de um conhecimento que, aoinvés de carregar em si uma potência formadora, produza a formatação dohumano e reduza a dimensão revolucionária da clínica?

Como um primeiro desdobramento destas questões, faz-se interessan-te pontuar que a própria noção de experiência inclui a noção de endereçamento.

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É no endereçamento que encontra e inscreve o Outro que uma experiênciaadquire tal estatuto. “É no ato de testemunhar, ou de narrar, ato de fala ende-reçado a um outro, que o vivido se constitui como experiência. Esteendereçamento atesta a insuficiência do indivíduo, ao mesmo tempo em queatualiza, e confirma, a insuficiência do Outro” (Kehl, 2001, p. 22). A insuficiên-cia funciona como motor da transmissão, aquilo que não se obtura, no buracoem que se refunda e relança o circuito pulsional. “Se o Outro fosse pleno, nãohaveria brechas por onde o sentido pudesse escapar” (Idem, p. 22) e se pro-duzir enquanto diferença.

Vale aqui tomarmos um pequeno desvio no intuito de fazer trabalhar aindagação sobre a escrita da clínica. Muitos são os autores que incluem osurgimento da imprensa ao descreverem os presentes na sala de parto dosujeito moderno. Como sabemos, a imprensa, como forma de popularizar osescritos e propiciar-lhes uma maior circulação, abriu espaço para a produçãode uma experiência individual com o conhecimento. Manguel (1997), ao tra-çar Uma história da leitura, enfatiza a transformação que a leitura silenciosaoperou na relação dos sujeitos com o texto e com o saber.

“Um livro que pode ser lido em particular e sobre o qual se pode refletirenquanto os olhos revelam os sentidos das palavras não está mais sujeito àsorientações ou esclarecimentos, à censura ou condenação imediata de umouvinte. A leitura silenciosa permite a comunicação sem testemunhas entre olivro e o leitor“ (Manguel, 1997, p. 65) e, por isso, representava, para a IgrejaMedieval, a abertura de um espaço de interpretação que poderia se ver atra-vessado pelos ruídos da carne. Não é de se espantar que, assim como lersilenciosamente se constituía em pecado, ler na cama era uma afronta àmanutenção da pureza do espírito. De qualquer sorte, o que importa para aconstrução de nosso percurso é que a relação individualizada de um sujeitocom o texto e a liberdade de interpretação que ela traz consigo, acompanha-da do desamparo que tal liberdade atualiza, é paradigmática da relação dosujeito, dito moderno, com o saber produzido coletivamente.

A imprensa contribuiu para a passagem de um tempo reiterado e circu-lar, característico das sociedades que se calcam em uma transmissão oral,para um tempo linear e cumulativo, em que as mudanças das condições deexperienciar o mundo vêem sua velocidade acelerar. A quebra da noção deuma verdade imutável e transcendente, que deveria ser alcançada pela leitu-ra dos textos sagrados, em voz alta e na presença do mentor espiritual, tem,por outro lado, o estranho efeito de engendrar a busca pelas condições desua produção. O saber científico, no senso comum de sua acepção, objetivaa produção de um enunciado que não esteja sujeito ou marcado pelas suas

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condições de enunciação. O homem como ponto de origem da interpretação– ou da produção de uma verdade –, entra no centro da cena para, paradoxal-mente, no mesmo momento, ser dela expulso. De um lado, é ele, sozinho,isolado de seus pares, quem deve construir um caminho, um destino, nãomais garantido por aquilo que a tradição lhe resguardaria, de outro lado, osaber que produz acerca do mundo deve estar isento de sua marca – a verda-de deve ser produzida de forma independente daquele que a comunica.

O isolamento e o desamparo que atravessam essa passagem de umaidade à outra de nossa história, são tematizados por Hanna Arendt (2001) emtermos de um declínio da esfera pública na vida dos homens modernos e suaassimilação pelo que hoje denominamos de campo do social. Tal assimilaçãonão teve como efeito um redimensionamento somente das condições de exer-cício no espaço público, mas também produziu uma reconfiguração da esferaprivada.

A esfera pública, no dizer da autora, não constitui propriamente aquiloque concebemos como social, como lugar que supostamente deve se inclinarna direção da produção do bem comum, mas antes é lugar de exercício polí-tico, lugar onde tudo pode ser visto e ouvido por todos em um compartilhamentoque confere força de realidade ao compartilhado.

Para nós, a aparência – aquilo que é visto e ouvido pelos outros e pornós mesmos – constitui a realidade. Em comparação com a realidade quedecorre do fato de que algo é visto e escutado, até mesmo as maiores forçasda vida íntima vivem uma espécie de existência incerta e obscura, a não serque, e até que, sejam transformadas, desprivatizadas e desindividualizadas,por assim dizer, de modo a se tornarem adequadas à aparição públicas. Amais comum dessas transformações ocorre na narração de histórias, e demodo geral na transposição artística de experiências individuais. Toda vezque falamos de coisas que só podem ser experimentadas na privatividade ouna intimidade, trazemo-las para uma esfera na qual assumirão uma espéciede realidade que, a despeito de sua intensidade, elas jamais poderiam ter tidoantes. “A presença de outros que vêm o que vemos e ouvem o que ouvimosgarante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos” (Arendt, 2001, p. 59-60– grifos nossos).

As palavras de Arendt estabelecem o encontro da narrativa e do compar-tilhamento, da narrativa e do endereçamento, conferindo a esse encontro afunção de produzir uma experiência de consistência, seja do narrador, danarrativa ou da própria coletividade que acolhe e testemunha o argumento. Énesse ponto de encontro que os elementos trazidos pela autora nos permitemcomplexificar a indagação sobre a escrita da experiência clínica ao mesmo

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tempo que podem nos remeter a um lugar de compartilhamento, caro à Psi-canálise, a saber, a sessão de supervisão.

A sessão de supervisão constitui-se num espaço importante de cons-trução deste endereçamento que permite dar densidade à experiência de trans-ferência da qual o analista se faz suporte. Pierre Fedida (1991), ao tematizara sessão de supervisão, pergunta-se sobre aquilo que nesse espaço se ela-bora. Em seu texto, encontramos elementos interessantes para pensar a pró-pria construção do conhecimento em psicanálise. Relancemos uma instigantequestão colocada por Fedida acerca do que se produz na supervisão: “trata-se de reconstruir uma história que seria a história do caso ou tratar-se-ia an-tes de construir singularmente o lugar psíquico que é o lugar da constituiçãode qualquer acontecimento?” (Fedida, 1991, p. 224).

Seu questionamento abre espaço para pensarmos que aquilo de quese trata na produção de um testemunho sobre a experiência clínica não dizrespeito somente ao que se constitui como produto de uma narração, seja elaoral ou escrita, mas também aos efeitos produzidos sobre o sujeito que tomaa palavra. Esses efeitos se conjugam no sentido de produzir um lugar psíqui-co distinto, um lugar psíquico com contornos diferentes daqueles constituídosantes que o sujeito tenha endereçado sua fala/escrita ao supervisor ou à co-munidade analítica. É a construção desse lugar que sustenta as possibilida-des de significação de uma experiência, assim como de acolhimento daquiloque o paciente endereça a seu analista. Não deixemos de sublinhar o cons-truir, pois aquilo que se diz em supervisão, ou que se escreve sobre a experi-ência clínica, tem efeito construtor. Não é mero relato de acontecido. É cons-trutor de um lugar psíquico.

Lembremos Freud:“Sou incapaz de fornecer um relato puramente histórico ou pura-mente temático do meu paciente; não posso escrever um históri-co nem do tratamento nem da doença, mas sinto-me obrigado acombinar os dois métodos de apresentação. É sabido que nãose encontram meios de introduzir, de qualquer modo, na repro-dução de uma análise o sentimento de convicção que resulta daprópria análise. Exaustivos relatórios textuais dos procedimen-tos adotados durante as sessões não teriam certamente qual-quer valia” (Freud, 1918, p. 27).

Em suas palavras, a escrita da clínica está longe de ser um relato minu-cioso de cada passo dado durante o transcurso de uma sessão. Aquilo sobreo que os seus textos se propõem a discorrer não está do lado de uma restitui-ção da história do paciente, mas sim de uma versão do que teria sido a histó-

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ria do tratamento, daquela cura, o que é bastante diferente, pois carrega emseu cerne uma reflexão sobre a transferência e seus impasses.

Cabe aqui uma reflexão sobre a diferença que podemos situar entre ochamado estudo de caso ou história do caso, tão comum a alguns campos dosaber “psi”, e o que chamaremos de construção do caso (Fedida, 1991) ouescrita do caso (Costa, 2003). Do lado do estudo de caso nos encontramoscom uma escrita que pretende reproduzir de forma espelhada a situação clíni-ca, pretensamente tal qual ocorreu – abundantes são as páginas que se utili-za para reconstituir o percurso da fala do paciente e do terapeuta através dofamoso procedimento das entrevistas dialogadas. Tais entrevistas queremdar a ver ao supervisor ou à comunidade analítica o momento da sessão daforma mais isenta possível, numa suposição de que seria possível transpor,para a escrita, o transcurso da sessão sem perdas, sem restos. Interessanteobservar que este dispositivo preconiza que aquele que escreve pode tomaruma posição de exclusão em relação a seu escrito.

A construção do caso ou escrita do caso, por sua vez, coloca-se comoveículo de uma construção – construção na medida em que parte daquilo quena transferência não pode ser elaborado pelo analista e que precisa encon-trar outros lugares de trabalho psíquico que não aquele propiciado pelo lugarde escuta do analisante. É a partir do que surge como impasse na transferên-cia que aquele que escuta se põe a falar, seja no espaço de supervisão, sejaatravés da escrita. Coloca-se a trabalhar no sentido de construir um lugarpsíquico capaz de sustentar este endereçamento que na transferência o lan-çou em direção a um impasse. Nesta medida, não se pede daquele que es-creve o caso que se coloque numa posição de exclusão em relação a seuescrito, mas, ao contrário, é desde dentro da experiência e de seus impasses,e somente desde aí, que o sujeito pode articular o ponto desde o qual é pos-sível falar/escrever. Aquele que escreve o caso está empenhado em transmi-tir os impasses da clínica como propulsores de indagação e trabalho e nãoem ocupar o lugar de comunicar a superação triunfante que por ventura tenhaoperado.

Fedida (1991), retomando o debate sobre a possibilidade ou não de seconstruir a “história do caso”, ou o estudo de caso, aponta para os impassesgerados pela disparidade existente entre a temporalidade transferencial doprocesso psíquico e a linearidade de um discurso, escrito ou falado, que seempenhe em comunicar os resultados de um tratamento. A temporalidadeque opera na transferência não está submetida ao constrangimento temporalque a escrita situa ao fazer com que tenhamos que nos adequar a umalinearidade em que somente é possível dizermos uma palavra depois da ou-

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tra. A passagem, por si só, de uma temporalidade à outra nos impediria depensarmos em termos de uma transposição especularmente fidedigna, semperdas, e nos inclinaria na direção de tomar a escrita como uma (re)construção.Nas palavras de Fedida:

“Nossa hipótese é a seguinte: na psicanálise, o caso é uma teo-ria em gérmen, uma capacidade de transformação metapsi-cológica. Portanto, ele é inerente a uma atividade de construçãotal como a análise de supervisão seria capaz de construir. Emoutros termos, o caso é construído. Enquanto tal, ele não podeproceder de um relato. Não existe história do caso!” (Fedida,1991, p. 230).

Não existe estudo de caso, mas escrita, construção do caso e, nestaconstrução, produção de um lugar psíquico que objetiva ser capaz de susten-tar o endereçamento da transferência.

O analista se constitui ao testemunhar de seu ofício, ao constituir ocaso em análise. Esta construção não equivale a uma história do caso, umavez que o eixo daquilo que se narra não está no caso, mas implica a própriacondição de narração de quem o faz. Nesse sentido, narrar a história de umtratamento na linearidade que o discurso comporta requer incluir nesta narra-tiva uma resistência temporal. Resistência que se vê duplicada ao pensarmosque aquilo que se produz como um “foi isso que aconteceu” fecha possibilida-des a uma série de outros acontecidos que se fizeram mais ou menos percep-tíveis, mas que não puderam ganhar lugar na narrativa.

Porque algo se apresenta na experiência como resistindo à apreensão,é que o sujeito se coloca no caminho de construir os elementos para fazê-lo,de forma a restabelecer a continuidade entre seu pensamento e o objeto quelhe faz resistência. É porque algo na fala do analisante resiste a ser incorpo-rado pela “história ficcional” (Sousa, 2000, p.17) do analista que ele seembrenha na direção de construir o caso, na tentativa de harmonizar-se como que lhe resiste.

Retomemos agora um outro elemento que forma parte deste endereça-mento presente na construção do caso, na escrita do caso: a comunidadeanalítica. Aquilo que se produz em termos de testemunho acerca da experi-ência clínica inclui a comunidade analítica. Toda experiência pressupõe umcompartilhamento que se realiza a partir de um endereçamento daquele quenarra/fala/escreve sobre o vivido. A comunidade analítica se constitui em ho-rizonte de endereçamento daquele que escreve o caso:

“(...) talvez duas pessoas sejam suficientes para produzir o tes-temunho do inconsciente, mas para que este testemunho tenha

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efeitos analíticos são necessárias três: o analisando, o analista eo Outro, que no caso é a própria psicanálise. (...) o analista tam-bém não detém o saber que o autoriza a ocupar este lugar; estesaber se constitui sempre no contato com a teoria, com a práticade colegas e mestres e, sobretudo, pela experiência do próprioinconsciente pela sua análise pessoal. A qual por sua vez fezlaço transferencial com outro analista que, também ele, estavainserido de um modo particular no campo simbólico da psicaná-lise etc, etc.” (Kehl, 2001, p. 21).

Ao testemunhar de sua experiência para a comunidade analítica, oanalista se coloca no caminho de construir o lugar psíquico necessário à aco-lhida e ao trabalho de/em uma transferência que lhe foi endereçada, ao mes-mo em tempo que busca tecer o fio que faz de sua narração um elo a mais deuma corrente que se desdobra desde muito antes dele e, pretende-se, paramuito além de seu ato de fala/escrita. Ao contar a singularidade de sua expe-riência no campo simbólico da psicanálise, o analista coloca em cena as ope-rações que lhe permitem contar-se como um em referência aos outros, à co-munidade analítica. Tomemos agora, em nossas incursões, o rumo que noslevará a refletir sobre as condições dessa contação/contagem.

Lacan, ao longo do Seminário da Identificação (1961/62), retomará deFreud a proposição de uma identificação ao traço unário como passaporte dosujeito para as terras do simbólico. O traço como pura marca inaugural, mar-ca capaz de “ser substituído por todos os elementos que constituem a cadeiasignificante, a suportar essa cadeia sozinho e simplesmente ser o mesmo”(Lacan, 22/11/61, p.10). Suporte da pura diferença em que se constituem ossignificantes, o traço unário é aquilo que, igual a si mesmo, mantém-se comoponto de ancoragem do ser, sem contudo lhe ser atribuível uma significação.

A fundação do um que constitui este traço não é em nenhuma partetomada noutro lugar senão em sua unicidade: como tal não se pode dizerdele outra coisa senão que ele é o que tem de comum todo o significante deser antes de tudo constituído como traço, ter este traço por suporte (Idem, p.10).

Em Psicologia de grupo e análise do ego (1921), Freud deter-se-á notrabalho com a identificação, desdobrando, no capítulo que dedica a este tema,os três modos como essa pode articular-se. É nesse texto que Lacan irá bus-car os elementos, em seu retorno a Freud, para trabalhar o lugar do traçounário – einziger Zug – na constituição do sujeito. Vale a pena, então, reto-marmos o trabalho de Freud, detendo-nos nas três modalidades de identifica-ção por ele propostas. A primeira delas deriva do Complexo de Édipo. Como

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exemplo, o autor nos remete à menininha que, na intenção de tomar o lugarda mãe junto ao pai, identifica-se com um sintoma desta, a tosse, expressan-do sua ambivalência em relação a ela – quer tomar seu lugar e, ao mesmotempo, culpa-se por isso, quer manter-se no lugar da mãe à custa do apaga-mento daquela. Temos então a identificação que se atualiza em sua versãodevoradora e assimilante. Como segunda modalidade – aquela que Lacanrecupera prioritariamente em seu trabalho –, Freud apresenta a identificaçãoque não advém da relação àquele de quem se quer ocupar o lugar frente aoobjeto amado, mas da relação ao próprio objeto amado, como foi o caso deDora que se identificou à tosse de seu pai. Como forma mais primitiva de laçoao outro, a identificação pode vir no lugar da escolha de objeto, quando estase vê impossibilitada. Tem-se, nesse segundo modo de identificação, algoque Freud denominou de uma regressão da escolha de objeto para a identifi-cação. Em ambos os casos “a identificação é parcial e extremamente limita-da, tomando emprestado apenas um traço isolado da pessoa que é objetodela” (Idem, p. 135 – grifo nosso) É desta noção de uma identificação a umtraço do objeto, uma identificação parcial, que parte o trabalho de Lacan aopensar a estruturação do sujeito alicerçada no traço unário. Interessante apon-tar que, se o sujeito se identifica parcialmente a um traço do objeto, é porqueesse traço é o que permite, ao mesmo tempo, manter o objeto e tambémperdê-lo, apagá-lo.

Freud, além da identificação ambivalente proveniente do complexo deÉdipo e da identificação parcial regressiva, situa uma terceira modalidade deidentificação em que o desejo está no centro. Aqui, refere como exemplo umamoça que, secretamente enamorada, recebe uma carta que desperta seuciúme, fazendo com que ela reaja com uma crise histérica. As outras moças,colegas suas no pensionato, passam a apresentar os mesmos sintomas, numaespécie de “infecção mental. O mecanismo é o da identificação baseada napossibilidade ou desejo de colocar-se na mesma situação” (Freud, 1921, p.135).

Lacan elabora o conceito de traço unário, tecendo aquilo que Freuddelimita como identificação ao einziger Zug – a identificação regressiva aotraço –, à noção de significante que deriva de sua leitura de Saussure. Osignificante aparece como aquilo que é pura diferença1, que se define comonão sendo o que os outros são. A identificação, enquanto identificação aosignificante, sustentada por um traço unário, distancia-se em muito do que

1 A diferença a que Lacan se refere não é a diferença qualitativa. O significante se define comonão podendo ser todos os outros significantes; “deste fato depende esta dimensão: que tambémé verdade que ele não poderia ser ele mesmo” (Lacan, 6/12/61, p. 8).

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poderíamos supor como identidade, como inscrição de um lugar unificadopara o sujeito. A marca inicial do ser é o traço e não uma esfera ou círculo quepoderiam representar uma unificação. A configuração do lugar desde onde osujeito fala tem por característica estar em constante mutação. O “sujeito éalgo que só existe à medida que o significante o representa, à medida na qualfala, e é justamente à medida na qual fala que ele desapareceu. Porque derepente não é mais ele, é o significante que o representa, então este sujeito éuma pulsação” (Caligaris, 1991, p.180 – grifo nosso).

A impossibilidade de o significante ser igual a si mesmo, ainda quandorepetido, constitui sua propriedade fundamental. Quando Freud (1920) nosfala da compulsão à repetição, ele não nos está dizendo propriamente de umeterno retorno do mesmo, pois, ainda que haja repetição, é porque o significanteé sempre outro, no qual podemos situar algo do novo a marcar o mesmo.Embora o sujeito se empenhe em reencontrar o objeto, a cujo traço ele seidentificou, sua busca não terá fim na medida em que o traço unário, enquan-to traço de um objeto, é aquilo que o faz subsistir, mas também o que o man-tém apagado.2

Conforme Costa (1998), a identificação traz em seu mecanismo uminteressante paradoxo. Ao mesmo tempo que necessita manter o outro emum lugar de espelho capaz de sustentar o eu, capaz de manter o traço sobreo qual esse eu se edificou, precisa anular este outro, tomando dele o traçoque unariza o sujeito e dando a tal traço um destino próprio. Assim, aquilo queo traço unário revela de paradoxal, ao manter a memória do objeto no mesmomovimento que o apaga, estende-se ao mecanismo da identificação.

“(...) ao automatismo de repetição enquanto nos ocupa é isso: éque se um ciclo determinado que só foi aquele, portanto, que sedesigna por um certo significante que sozinho pode suportar oque nós aprenderemos em seguida a definir como letra, a instân-cia da letra no inconsciente, este grande A, o A inicial enquanto énumerável, que aquele ciclo – e não um outro – equivale a umcerto significante, é a este título que o comportamento se repetepara fazer ressurgir que o é como tal, este número que o funda”(Lacan, 13/12/61, p.13).

A inscrição do traço unário possibilita que o sujeito aceda à função dacontagem, função que se estabelece cedo em sua vida – mesmo quando ele,

2 Segundo Freud, “a identificação, na verdade, é ambivalente desde o início; pode tornar-se ex-pressão de ternura com tanta facilidade quanto um desejo do afastamento de alguém” (1921, p.133).

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em termos epistemológicos, ainda não tem construída a noção de número.Primeiro, situado apenas na posição do contado, o sujeito se incluirá na con-tagem, por exemplo, dos irmãos que tem. “Tenho três irmãs: Adriana, Lucianee eu” – parafraseando o famoso exemplo de Lacan no Seminário XI. Numsegundo momento, lembrando que nos estamos reportando a tempos lógi-cos, o sujeito poderá tomar-se também como aquele que conta e, a partir daí,excluir-se da série que enumera. No primeiro tempo, vemos preponderar umaoperação de alienação ao Outro na qual, ao mesmo tempo que o lugar deenunciação do sujeito diz respeito a uma posição de primeira pessoa, eviden-ciada pelo “eu tenho”, ele procede à contagem, colado ao lugar do Outro e,com isso, inclui-se na adição que faz. O momento de sua exclusão da conta-gem nos remete ao tempo da separação. Como uma operação não subsistesem a outra, falamos sempre de alienação/separação, “‘contar-se’ faz alusãotambém à inclusão-exclusão do sujeito no seu ato. (...) Coloca também emcausa a pergunta sobre o que pode ser considerado como autoria” (Costa,1998, p.17). Desde onde fala aquele que conta?

A identificação ao traço unário como ato inaugural do sujeito no Simbó-lico o inscreve na posição daquele que conta. A ambigüidade desta palavranão passa despercebida ao autor que joga com ela. Estar na posição daqueleque procede a uma contagem é ao mesmo tempo habitar o lugar daquele queconta naquilo a que esta palavra pode remeter-nos a fazer diferença. É por-que o sujeito pode aceder à dimensão do significante e desfrutar do que oqualifica como morada da diferença que ele, sujeito, pode ver-se na posiçãodaquele que faz diferença na referência ao Outro. Por outro lado, a idéia docontar nos remete diretamente à dimensão da narrativa. Contar no sentido deconstituir uma série, mas também de narrar, de produzir uma ficção na qual épossível contar-se – ser um, com uma história. Contar no sentido seqüenciale narrativo se condensam no dito popular: quem conta um conto aumenta umponto.

A escrita da experiência clínica pode aí inscrever-se como um contar-se enquanto sujeito a sustentar o trabalho no laço transferencial. Sem dúvida,tal escrita pertence a um dos desdobramentos desse contar; outros tantossão possíveis. O contar, da forma como é desdobrado por Lacan (1961), dávisibilidade ao paradoxo que opera no tensionamento entre as posições deinclusão e exclusão do sujeito nesse ato. Falamos do que vivemos numa dis-tância que permite tematizar o vivido e, ao mesmo tempo, sofremos os efeitosde nosso dito que nos inscreve em determinada posição de nossa contagem:

“Em toda e qualquer enunciação o sujeito é, ao mesmo tempo,aquele que conta e aquilo que é contado. (...) Para que alguém

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possa enunciar qualquer coisa, precisa de um movimento deapropriação da linguagem. Ou seja, ele precisa estar na posiçãode ser o mestre de sua fala. Ao mesmo tempo, no argumentoque ele constrói, ele é objeto dessa mesma fala, mesmo que nãose reconheça nessa condição” (Costa, 1998, p. 90).

Contamos como forma de dar desdobramento ao impossível de nossarelação ao Outro, ou ainda, poderíamos dizer, com Lacan (1972-73), por efei-to da impossibilidade da relação sexual, colocamo-nos a escrever, contamos.É a partir de uma dissimetria, de uma impossibilidade de relação, que inventa-mos, que criamos, que contamos e nos contamos em uma ficção que tem porobjetivo fazer a borda de nosso lugar nessa impossibilidade.

“(...) entre o Sujeito e o Outro existe uma tensão constante. Essatensão é responsável por uma diferença de lugares – umadissimetria – criando-se, assim, a necessidade de uma versão.O sujeito é construído por essa versão em que ele tematiza, semsaber, sua ligação com o lugar do Outro” (Costa, 1998, p. 49).

A dissimetria entre os lugares do sujeito e do que constitui sua alteridade,a radical heterogeneidade em que se situam, não produzem uma indiferença.Ao contrário, é a origem da marcação de uma diferença cujos contornos sereeditam a cada novo passo num incessante recriar. Recriar do lugar do sujei-to na sua ligação ao Outro, a esse campo alter que não lhe é complementar,mas radicalmente Outro.

Escrever para fazer borda neste impossível da relação, para constituirnosso lugar na ligação tensionada que temos com o Outro. Tensionada poruma dissimetria irredutível, por uma heterogeneidade radical. Heterogeneidadeque nossa estruturação faz por onde encaminhar, ao recriar o abismo quenos é fundante, a perda do objeto que deixou marcada sua memória no traçoao qual nos identificamos.

O trabalho que Freud teceu em torno da cena primária, notadamenteem sua narrativa da análise dos Homem dos Lobos (1918), permite-nos avan-çar em nosso percurso pelos caminhos que nos levam à produção ficcionalcomo forma de fazer operar uma produção que toma seu ponto de sustenta-ção em um impossível. Retenhamos, para nosso trabalho, uma pequena cro-nologia, recriada na análise: observação da relação sexual dos pais por voltade um ano e meio – data que Freud propõe após um trabalho exaustivo de(re)construção. Aos quatro anos, o sonho com os lobos, o que marca a entra-da na fobia. No intervalo, algumas lembranças sexuais atravessadas porameaças de castração. É no trabalho desta análise que Freud retomará umaantiga questão, a saber, sua pergunta sobre a realidade das lembranças ou

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3 Diz Freud ao amigo: “Não acredito mais em minha neurótica/teoria das neuroses/. (...) A surpre-sa de que, na totalidade dos casos, o pai, sem excluir o meu, tinha que ser acusado de pervertido– a percepção da inesperada freqüência da histeria, com predomínio precisamente das mesmascondições em cada caso, muito embora, certamente, essas perversões tão generalizadas contraas crianças não sejam muito prováveis”(Masson, 1986, p. 265).

fantasias dos sujeitos. Aquilo que ele parecia haver abandonado, como dámostras em sua carta a Fliess, de 21 de setembro de 18973, retorna, agorainterrogando a visão que o Homem dos Lobos, ao longo das construçõesempreendidas na análise, revela ter tido: havia presenciado a relação sexualdos pais, material de sua memória reatualizado e transcrito pelo sonho.

No trabalho com as fantasias, Freud se encontrará com repetições in-cessantes. Fantasias que, por sua recorrência, fazem com que nos pergunte-mos sobre a necessidade de sua presença na vida psíquica dos sujeitos,sobre seu poder constituinte. Entre elas destacam-se: “observação do coitodos pais, sedução por um adulto e ameaça de ser castrado” (Freud, 1917,p.430). A primeira delas representa a que se usou designar por cena primária.A pergunta do sujeito pelos determinantes de sua origem, pelo lugar que odesejo do casal parental lhe reservou, leva-o a um movimento de (re)construçãode uma cena da qual busca pinçar os elementos de sua determinação comosujeito. Cena que se constrói como ficção, como fantasia, na tentativa de(de)cifrar, de escrever o texto de sua origem. O sujeito constitui a cena fazen-do-se presente ali onde não poderia estar, pois ainda não adveio como ser.Em sua fantasia, escreve um impossível. Impossível correlato ao que Lacandesigna como o impossível da relação sexual, em cuja fenda a escrita acodecomo cicatriz – constituindo o traçado que marca a impossibilidade de umarelação.

O fato de ser impossível para o sujeito ter contato com o momento quemarca sua origem, com a cópula dos pais que o trouxe à vida, não impedeque ele teça aí um trabalho de fantasia, algo da ordem de uma rede ficcional,para dar conta de sua pergunta. Fantasia que, como diz Freud, possui “reali-dade psíquica, em contraste com a realidade material, e gradualmente apren-demos a entender que, no mundo das neuroses, a realidade psíquica é arealidade decisiva” (1917, p.430). O impossível conjugado na cena primária éparente próximo das lembranças que temos de nossa infância em que, nacena que nos vem à mente, vemos uma criança que reconhecemos comosendo nós mesmos, com a estranha peculiaridade de ocuparmos, em nossarecordação, ao mesmo tempo, o lugar de observados e de observadores. Éclaro que não estamos, assim, tendo acesso a uma repetição exata da primei-

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ra impressão, mas a uma elaboração posterior, pois no momento da cena nãopoderíamos ter desdobrado nosso lugar no daquele que age e daquele quese observa agindo desde fora. Lembranças dessa ordem podem “ser toma-das como prova de que a impressão original foi elaborada” (Freud, 1899,p.286) e constituem o que Freud denominou de lembranças encobridoras, ouseja, rememorações submetidas ao trabalho do inconsciente, assim comosão submetidos os restos diurnos, elementos a compor nossos sonhos. Pro-vocadora é a indagação: “pode-se questionar se temos mesmo alguma lem-brança proveniente de nossa infância” (Idem, p.286).

A cena primária surge como tentativa de escrever, através da ficção, olugar de origem do sujeito, numa construção que se conjuga em um tempoimpossível no qual o sujeito constrói um lugar inaugural representando-se alionde ainda não estava – na intimidade do quarto dos pais, no momento quelhe foi originário. Este é, por excelência, o lugar ao qual se endereça a escrita:(de)ciframento de nosso lugar de origem. Um endereço retroativo, um ende-reço que busca constituir hoje os elementos de uma origem, de um primeirotempo para sempre perdido. De um primeiro tempo fundado por retroação.

Uma vez que tenhamos atravessado algumas paisagens juntos nestepequeno percurso sobre a experiência, a escrita e a clínica, nada parece ca-sar melhor com o momento em que nos despedimos levando nas mãos, nãoas respostas que sossegam o espírito, mas as palavras que refundam per-guntas, que reabrem impasses, que recolocam questões... Nesse sentido “éde se lembrar, como Freud, que em sua matéria o artista sempre o precede eque, portanto, não lhe cabe bancar o psicólogo ali onde o artista lhe abrecaminho” (Lacan, 1965, 81). Assim, sigamos de braços com Pessoa (1994)“E eu que digo isto – por que escrevo eu este livro? Por que o reconheçoimperfeito. Calado seria a perfeição, imperfeiçoa-se; por isso escrevo”.

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VARIAÇÕES

“É isto que sinto quando começo um novo quadro: a tela branca,lisa, ainda sem preparo, é uma certidão de nascimento sem preencher,

onde eu julgo que poderei escrever datas novas e filiaçõesdiferentes que me tirem, de vez, ou ao menos por hora,

desta incongruência de não nascer”.José Saramago1

Aoferta da arte como ferramenta de intervenção tem crescido em clínicas,instituições psiquiátricas e, principalmente, nos projetos sociais. É inte-

ressante verificar que algumas destas organizações conseguem atingir resul-tados importantes, como o desenvolvimento global dos sujeitos com os quaistrabalham, possibilitando que sejam agentes em um processo de (re)cons-trução de sua cidadania e inclusão social. Para algumas crianças e jovensatendidos é como se a vida passasse a emitir outros sons em um balançoritmado. A relação com sua origem se transforma e, ao som dos atabaques, acadência passa a ser outra. Percebe-se que, a partir da beleza do que produ-

ESCRE-PINTANDO A CLÍNICA*

Luciana Leiria Loureiro**

* Referência ao livro de José Saramago, Manual de Pintura e Caligrafia. Este texto é um fragmen-to da monografia apresentada para obtenção do título de especialista pela CAP/UFRGS.**Psicóloga, especialista em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia/UFRGS e especialistaem Atendimento Clínico com ênfase em psicanálise pela CAP/UFRGS. Psicóloga Clínica no Cen-tro Clínico Thiago Würth, pertencente ao Instituto Pestalozzi de Canoas e na Associação Comu-nitária Sagrada Família, também em Canoas. E-mail: [email protected] SARAMAGO, J. Manual de Pintura e Caligrafia. SP: Companhia das Letras, 1992.

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zem, passam a ser vistos com outros olhos, assim como se estende o limitede seu olhar· sobre si. Em outros locais, no entanto, é possível verificar que otrabalho realizado fica no campo do passatempo2, não produzindo nenhumadiferença no sujeito. Como diferença toma-se aqui a possibilidade dele sairde uma posição subjetiva enrijecida e produzir novos espaços de vida.

São estas questões que se pretende examinar neste artigo, ou seja,como viabilizar esse trabalho de forma que produza esta diferença nos sujei-tos atendidos? Como isso se dá para não ficar no campo do passatempo?Qual é a diferença? O que é preciso que aconteça para que esta intervençãotenha a força de um outro olhar sobre si?

Acredita-se que o trabalho com a arte pode ser como uma alternativade intervenção clínica, se concebido como a obra de arte. Os artistas e teóri-cos da criação trazem contribuições fundamentais para se analisar o uso daarte em atividades terapêuticas devido à estrutura do ato criativo. Conformeveremos a seguir, para eles só existe arte se existe o ato de criação.

A Psicanálise, no que diz respeito ao seu campo teórico, também podecolaborar com algumas questões, pois, certamente, elas necessitam tambémdo saber de outras disciplinas para serem analisadas. Este é um campo quetem de ser pensado de forma interdisciplinar.

A análise será feita a partir do estudo do processo de criação, de comoeste acontece para aqueles que têm a arte como seu ofício, na medida emque, como define Rivera (2002), “ao investigar a criação artística a psicanáli-se pode ter a pretensão de ir além de uma compreensão estrita deste campo,recolocando em questão suas próprias noções e compreensão geral do sujei-to” (p.31).

Passeron (2000), escreve que “a estranha conduta de criar visaria, emúltima instância, a preencher esse buraco da memória, constituir uma memó-ria mítica do imemorial”. Ao se tentar dar conta deste imemorial, sucederia oque chamou de um “curativo no vazio”. Por ser sempre no vazio é que oartista, ao finalizar uma obra, iniciaria sem cessar uma nova obra, “tentandodar conta de uma insistência que derrapa” (p. 9).

É justamente a partir de um curativo no vazio, ou de uma certidão denascimento a ser preenchida, como escreve Saramago, que o sujeito em aná-lise tem condições de produzir uma outra forma de subjetivação que lhe per-mita uma nova relação com o seu desejo.

2 Referência ao termo usado por Liliane Froemming, quando escreve que o trabalho artísticomuitas vezes é oferecido em hospitais psiquiátricos , como um não –trabalho, esquecendo-seque neste há uma profunda implicação do sujeito

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Partindo destas colocações, o ato criativo também é um ato que colocao sujeito em posição de interrogação. Para isso algumas condições são ne-cessárias: para haver diferença é preciso que este tipo de proposta mais doque a expressão vise a criação.

Em outro texto Poïética e Patologia, (PASSERON, 2001) afirma queexpressar e criar são dois atos diferentes que, muitas vezes, são sobrepostosde maneira errônea, pois criar é mais do que expressar. Criar é tornar real umobjeto que vai ter uma vida independente para além do sujeito que a criou. Jáa expressão não tem como objetivo final a obra; ao priorizar a comunicação,ela passa a visar um sentido “exato”.

Duchamp (1975) propõe que, no ato criador, “o artista passa da inten-ção à realização, através de uma cadeia de reações totalmente subjetivas”(p.73), reações estas que implicam em uma série de sentimentos, como sofri-mentos, insatisfações, recusas e decisões que não são e não podem ser to-talmente conscientes. Por essa razão existe um elo que falha, que não permi-te ao artista expressar inteiramente sua intenção quando fala de sua arte.Propõe ainda que o ato criador não é efetuado somente pelo artista, pois,quando o público entra em contato com a obra e começa a dar seus significa-dos, ele contribui com este ato ocorrendo o fenômeno da transmutação: quandouma matéria inerte é transformada em obra de arte.

Estes aspectos são importantes para se entender que não existe umasintonia entre os conceitos de criação e expressão, pois entre a intenção e arealização da obra há um hiato cujo caminho trilhado não pode ser precisado.A condição de expressão também não basta para se pensar na questão deum outro olhar sobre si, pois é justamente, por este não saber por quais entra-nhas, no encontro da matéria com o corpo, que passa a criação. Ou seja, éesta impossibilidade de comunicar, que evoca perguntas e respostas quepodem produzir uma diferença revelando o que há de singular no sujeito. Apartir do olhar da Psicanálise sabe-se que a expressão, por mais que queiraser exata, nunca atinge seu objetivo, pois por sua condição de alienação aoOutro o sujeito expressa o que pode e não o que “quer”.

Posteriormente, após a execução da obra, estas interrogações conti-nuam, pois, como foi visto, para um objeto se tornar uma obra de arte, deman-dará que um Outro o reconheça neste lugar. Para isto, é mister que o públiconão encontre uma interpretação precisa, acabada, sobre a obra, pois destaforma ele poderá ser afetado produzindo os seus sentidos para assim darvalor e reconhecê-la como arte. No processo de análise esta diferença entreum antes e depois é também fruto de uma interrogação. Se o analista tentarinjetar os seus sentidos, ou devolver ao paciente uma interpretação exata do

ESCRE-PINTANDO A CLÍNICA

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que este produziu, também não estará dando espaço para que este crie umaficção acerca de seu eu.

Como se vê, somente é possível reconhecer e confirmar este ato no aposteriori. Assim também, o ato analítico como Freud já postulou em sua obra,diferentemente do que muito se aludiu em relação à Psicanálise, também éefeito de um fazer. Kon (1996), escreve que o psicanalista não “reproduz oaudível, ele faz audível” (p.29), em uma escuta que só é possível na relaçãocom Outro, onde o que se repete, do sintoma, se torna “verdade”, passa aexistir.

Concluindo, o sujeito pode construir um lugar de enunciação a partir dacriação, pois as condições de produção do ato criativo são semelhantes aosatos produzidos no processo de análise. Entretanto, é imprescindível que serespeite às condições para a existência deste ato. Fora destas premissas,propondo as atividades de uma maneira pedagógica, o terapeuta injetandoseus sentidos e com isso não abrindo espaços para que a criação possaincidir do desejo dos sujeitos com os quais trabalha, as atividades permane-cerão no campo da expressão e não da criação.

Na Oficina de Criatividade3, procura-se, através da proposição de ativi-dades que possibilitem aos participantes o encontro com o ato criativo, uma“quebra” (ou um desencontro?) no circuito onde estão inseridos, para queadvenham produções que tenham um reflexo seu. Ela é composta por jovensentre 17 e 22 anos com diagnósticos de autismo e psicose. Pelas questõesreferentes a tais diagnósticos o trabalho está inicialmente direcionado no sen-tido de construir a possibilidade deste ato.

Para tanto, utilizou-se na constituição do grupo conceitos de Winnicotinerentes ao processo de constituição infantil. Eles são importantes na com-posição desta proposta, pois viabilizam que estes sujeitos, que por uma ques-tão estrutural não têm sua imagem corporal constituída, possam vivenciaressa experiência de pertencer a um grupo, que remete à idéia de fazer partede um todo que é formado por partes, de forma integradora. Utilizou-se então oconceito de espaço potencial como “lugar” para se desenvolver a experiência:

“Esta área intermediária de experiência, incontestada quanto apertencer à realidade interna ou externa (compartilhada), consti-tui a parte maior da experiência do bebê e, através da vida, éconservada na experimentação intensa que diz respeito às ar-tes, à religião, ao viver imaginativo e ao trabalho científico cria-dor” (WINNICOTT, 1975, p.30).

3 Atividade realizada no Centro Clínico Thiago Würth em Canoas.

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Além disto, também é neste espaço de ilusão e não de devaneio, con-forme escreve Kon (1996) acerca da teoria Winnicottiana, que podem serinauguradas novas realidades.

Está se marcando a questão da possibilidade da constituição do atocriativo, pois, como os integrantes da oficina tem suas produções remetidasao desejo do Outro, é necessário que se possa supor tal ato. As intervençõesbuscam abrir brechas para que os integrantes do grupo possam produzir algode sua autoria. Mas para isso é necessário que um Outro assim o legitime,tanto apostando na possibilidade que este ato aconteça como o reconhecen-do como criativo. Neste sentido, a posição de quem coordena, é a de desejarque algo ali se produza, através de intervenções ativas no sentido da constru-ção do espaço e da proposição de situações que possam instigar o grupo,mas também, de espera do tempo e da trajetória de cada um.

Bavcar (1994) no texto “A Luz e o Cego” discorre sobre como produzas imagens que lhe permitem fotografar. Essas imagens são produzidas apartir do verbo. É através das palavras de alguém sobre uma imagem que eleconsegue formar as suas próprias e fotografar. Conforme ele os limites davisão são semelhantes ao da língua, (assim) “quanto mais se desenvolve omundo visual, mais extenso fica o mundo invisível” (p. 20). Um dos caminhosno trabalho da oficina é, portanto, através da diversidade de situações e ativi-dades propostas, possibilitar a ampliação do mundo visual e emprestar o ver-bo para que os participantes possam colorir as suas imagens. E aqui cabelembrar de A. um jovem autista que confeccionando um painel em um dadomomento começou, como é de seu costume, a pintar sem tinta e a desenharno ar, não marcando suas imagens. Foi lhe oferecido então um pincel comtinta vermelha para que, se assim desejasse, colorisse seus desenhos. Nestedia foi possível compartilhar com ele as figuras de seu mundo invisível, poisaté então o que produzia eram apenas repetições dos desenhos dos outrosintegrantes.

A oficina, também possibilita a seus integrantes a convivência com seuspares, tirando o acento da questão da diferença como exclusão, mas respei-tando e valorizando as diferentes subjetividades. Aliás, no trabalho com aarte, as diferenças são muito bem-vindas, pois em suas fissuras pode dar-sea criação. Trabalhar com a arte permite a estes sujeitos a inscrição de ele-mentos da cultura em suas vidas, ao mesmo tempo em que amplia suas pos-sibilidades de inclusão, pois suas criações lhes introduzem em um discursoque é relativo às crianças e jovens com desenvolvimento dito normal.

É isto que propomos ao utilizar a arte como linguagem de intervençãoclínica. Estamos buscando que os sujeitos, beneficiados por este tipo de pro-

ESCRE-PINTANDO A CLÍNICA

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posta, tenham a possibilidade de, retomando Saramago, produzir novasfiliações. Almejamos que, pelos efeitos do ato criativo, outros sentidos pos-sam ser encontrados em seu olhar e no olhar daqueles com quem convivem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAVCAR, Evgen. A Luz e o Cego. IN: NOVAES, Adauto(org.). Artepensamento . SãoPaulo, Companhia das Letras, 1994.DUCHAMP, Marcel. O Ato Criador IN: BATTCOCK, Gregory. A Nova Arte. SP: Pers-pectiva, 1975, p.71-74.KON, Noemi. Freud E Seu Duplo. São Paulo: EDUSP, 1996.PASSERON, René. Poïética e Psicanálise. IN: SOUSA, Edson; TESSLER, Élida eOutros. A Invenção da Vida Arte e Psicanálise. Porto Alegre: Artes e ofícios, 2001,p.57-72.PASSERON, René. Por Uma Poïoanálise. IN: SOUSA, Edson; TESSLER, Élida eOutros. A Invenção da Vida Arte e Psicanálise. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2001, p.9-13.RIVERA, Tânia. Arte e Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.SARAMAGO, José. Manual de Pintura e Caligrafia. São Paulo: Companhia das Letras,1992.WINNICOT, D. W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago,1975.

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Por que mais uma revista de psicanálise?Porque não há leitores.”

Nunca conferi a veracidade desta resposta memorável porque me de-cepcionaria sabê-la apócrifa. Papel impresso para causar um desejo de leitorou, então, papel sujo digno da lixeira: alternativa inesperada que esta blagueou ato falho (pouco importa) de editor em noite de lançamento nos regala. Aoferta de “material de leitura” ao mercado editorial é menos simples do queparece, portanto.

Em tese, ninguém faz correr tinta para marcar território, qual urina decachorro; no entanto, certa produção constante e autofinanciada de publica-

PARA UMA INTERLOCUÇÃO(A PROPÓSITO DA CASTRAÇÃO)*

Ricardo Goldenberg **

* NOTA PRELIMINAR: Diferentes concepções de objeto, de falo e de cas-tração incidem na dire-ção das análises de modos que nem sempre são devidamente avaliados. Esta é a apresentaçãoparcial de uma pesquisa em andamento sobre tais incidências. Em particular, trata-se de umexame das sucessivas reelaborações de Lacan do conceito de falo e do complexo de castraçãodurante as décadas de 50 e 60, e de como foram lidas e entendidas pelos seus melhores discípu-los. Numa segunda parte, a ser publicada, serão examinadas as mudanças conceituais e clínicasda década de 70 (pós-Encore), especialmente depois da introdução das conhecidas fórmulassobre a relação sexual e sobre a mulher.* * Psicanalista. Membro correspondente da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e do Percur-so Psicanalítico de Brasília. Doutor pela PUC/SP. Autor de Ensaios sobre a moral de Freud (Ágalma,1994), No círculo cínico ou Caro Lacan, por que negar a psicanálise aos canalhas? (Relume –Dumará, 2002) e Goza! Capitalismo, Globalização e Psicanálise (org) (Ágalma, 1997)

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ções que engrossam as prateleiras de saldos leva a pensar nisso. E não merefiro apenas aos efeitos da queda de qualidade nos conteúdos e nas formasdevida ao imperativo acadêm ico conhecido como publish or perish, senão aoempuxo a obrar livros em pessoas que não estão sob a coação de uma car-reira universitária; que mal sabem escrever e pouco têm a dizer (será o prazerde ver o próprio nome em letra de forma?).

Parece arriscado pronunciar-se sobre o desejo dado a ler no a letter, alitter, de Joyce ou no poubellication, de Lacan, que lhe é devedor. Imagino,porém, que não deva ser o mesmo, no mínimo pelo fato de um segregar issocomo literatura e o outro, como psicanálise. Não me disponho a me alongarmais ainda sobre o estilo de Lacan, basta apenas deixar no ar uma perguntasobre o que esperava de sua produção escrita ao se comparar a Sollers ou aJoyce e evocar a ambição deste último de durar um século antes de finalmen-te ser digerido pela cultura. Nunca se sabe, mas não creio que escrevesseapenas para fazer a festa dos exegetas.

O que me parece dificilmente contestável é que contava com seucarisma pessoal para induzir possíveis consum idores a comprar o livro Es-critos e se empenharem na laboriosa empreitada de decifrado e exegeseque exige. (Isto me parece confirmado pela decisão da editora Seuil de fazerconstar apenas o nome de Lacan na revista da Escola Freudiana, Scilicet ,composta, por uma decisão teórica de formação, de artigos não assinados).Um epígono considerava a sua irritação durante a leitura como uma emer-gência transferencial da maior importância (sinal da presença de um desejodecidido. Milner, em A Obra Clara, não hesita em usar a oposição esotéricoe exotérico para analisar o estilo de Lacan. E Miller tem a desfaçatez depublicar uma coletânea de conferências em português e espanhol com osingelo título de Lacan Esclarecido.

Enfim, a idéia de publicar precisamente porque ninguém lê – idéia quese deixa “ler” na boutade citada acima – parece estar por trás de inúmerosartigos cujos autores abordam assuntos manjados e repisados centenas devezes como se fosse a primeira vez que se fala deles. Com efeito, redizertudo a cada vez implica supor que ninguém leu nada até então, e que quemagora escreve será o primeiro a ser lido, como a exceção que confirma aregra. Ilusão que não pode durar muito sem que se veja perfilar no horizontea lista dos autores-sem-leitor ou dos autores “esperando o leitor”. Com certe-za há de haver outras posições de autor, além da histérica, que se propõe afazer desejar, ou a obsessiva, empenhada em mostrar a natureza excremencialdo objeto precioso do desejo. Mas são estas duas que me interessa reteraqui, a propósito de dois recentes lançamentos (termo sintomático que mal

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consegue esconder a queda que pretende evitar invocando uma sublime eeterna ascenção aos céus) da nossa combalida literatura1 (Julien, 2000).

Não me proponho a resenhar estes livros, que merecem ser lidos pormérito próprio. Nem mesmo pretendo ocupar-me do que neles é essencialmas de algo lateral, acessório; a saber, do modo como apresentam ao leitorsuposto o complexo de castração com seus dois conceitos correlatos: o com-plexo de Édipo e o falo. É precisamente sobre esta suposição que me interes-sa refletir. Mais especificamente, sobre os pressupostos que os autores en-dossam ao leitor em relação a estas noções e cuja aceitação implícita e pré-via é imaginada quando não exigida dele. Ou seja, o que se espera que en-tendamos quando se nos fala de falo e de castração?

Como ambos livros pertencem à comunidade lacaniana de trabalhosobre a psicanálise, tais pressuposições revelam os sedimentos das sucessi-vas releituras feitas por Lacan ao longo dos anos. Eis o primeiro problema:conquanto os remanejamentos do texto freudiano não constituem uma sériehomogênea e progressiva, mas fazem parte das idas e vindas do movimentodo que se denomina “seu ensinamento” (mon enseignement), toda apresen-tação que se anuncie como canônica acaba fazendo passar de contrabandoum recorte do leitor que não é mostrado como tal2. Para testar este ponto,decidi confrontar o modo de recortar destes autores com um anterior, o deMoustapha Safouan, em 1974, num livro seu considerado um clássico denossa literatura. Falo de Estudos sobre o Édipo (Safouan, 1981).

Se o primeiro problema são as diversas leituras do mesmo conceito, osegundo é o complexo de castração em si, como conceito e como fenômenoda experiência clínica. Ou melhor, porque não me proponho a uma empreita-da epistemológica, o modo como certas conclusões presumidas passam si-lenciosas e obnubilam legítimos questionamentos, cuja insistência não deixade se fazer sentir nas análises e nas supervisões.

Julien (2000, p. 55), por exemplo, cujo estilo de leitura não costumaempurrá-lo a aparar as arestas do texto lacaniano, escreve com força deapotegma: “Não é nem tendenciosidade nem exagero dizer que o ensino deLacan terá sido um diálogo constante com Freud a propósito do complexo de

1 Por “nossa” entenda-se: psicanalítica.2 Não raro, por exemplo, toma-se o último Lacan como a palavra final sobre assuntos de doutrina,esquecendo sua lição de que às vezes a melhor chave de leitura para o último encontra-se noprimeiro.

PARA UMA INTERLOCUÇÃO...

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Édipo”. Alinhar o ensino de Lacan ao complexo desta maneira parece umadecisão não assumida de minimizar que em 1970 o édipo foi declarado umsonho de Freud que carece ser interpretado (declaração que levou J.-A. Millera intitular toda uma parte desse seminário, ao estabelecer o texto para publi-cação oficial, Além do complexo de Édipo).

Sem dúvida, para Freud nunca esmoreceu a importância atribuída ao“complexo nuclear da neurose”. O mesmo Julien se ampara numa nota acres-centada em 1920 aos Três ensaios:

Todo recém-chegado ao mundo humano recebe a incumbênciade dar conta do complexo de Édipo. [...] O reconhecimento dasua existência tornou-se o schibboleth que distingue os partidá-rios da psicanálise dos seus adversários.

Tampouco resta dúvida que Lacan se houve durante anos com o com-plexo de Édipo como pedra angular do edifício da psicanálise, “sem a qual elanão passa de um delírio a dois”. Julien retira esta observação do próprio Freudinterrogando-se pelas suas diferenças com o presidente Schreber e da “Pro-posição” de Lacan de 1967, em que este reserva ao complexo o elo simbólicoque sustenta a psicanálise em seu lugar (sendo os outros dois: a sociedadedos analistas, para o imaginário, e a segregação verificada pela política na-zista da solução final, para o real!).

Julien não esquece que o complexo de Édipo deve ser relacionadocom o de castração e que Lacan tentou racionalizar a relação entre ambostransformando pai Jacob numa função, no sentido lógico-matemático do ter-mo. Outras vezes, entretanto, o autor dá a impressão de dizer que o Vaterfreudiano e a função paterna lacaniana seriam intercambiáveis, o que de modoalgum pode afirmar-se sem desconsiderar que o famoso “retorno a Freud”está no bojo de uma mudança de discurso em relação ao freudismo4.

Certa cronologia. Freud cogita um complexo de castração a partir da“teoria infantil da universalidade do pênis”, que constata durante o tratamentode Herbert Graf (a) Pequeno Hans, em 1908. Mas é apenas em 1923 que ocomplexo passa a estar integrado à teoria do desenvolvimento sexual, ligadoao édipo e postulado como universal (cf. A organização genital infantil). É aquique se considera a hipótese de uma fase fálica caracterizada pela ausência

4 Mesmo declarando o modo lacaniano de apresentar a psicanálise uma purificação da verdadeiramensagem de Freud (os ecos religiosos são intencionais), não deixa de tratar-se de outro discur-so com leis próprias. A freqüente comparação entre Newton e Einstein para referir-se a um Freudque teria sido absorvido por um Lacan que ampliara o campo da experiência ao mesmo tempoque dera a racionalidade do campo restrito anterior, não deixa de ser problemática até para afísica.

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de representação de um sexo feminino em que “a oposição [dos sexos] éórgão masculino ou castrado”. Existem, claro, na vida de Freud, inúmeros de-senvolvimentos para referir estas operações à ordem cultural e à lei constitutivado humano, mas nada semelhante ao que aconteceria durante a adesão deLacan ao Estruturalismo nos anos 50.

No seminário decisivo de 1956/7, dedicado especificamente ao casoHans, Lacan distingue a castração da frustração e da privação, situando-asdo ponto de vista do agente e do objeto no quadro dos três registros da expe-riência. O falo é apresentado como o operador central. Nesse ano e nos doisseguintes, Lacan se ocupa de fundar a racionalidade do complexo de Édipocomo uma estrutura simbólica que deve servir para explicar tanto os trata-mentos analíticos como as observações do desenvolvimento infantil e de-monstra que as etapas sucessivas do complexo, tal como apresentado porFreud,5 não são homogêneas, pois privilegiam registros diferentes.

Nessa época, a política lacaniana toma o desvio estratégico de contes-tar o pós-freudismo anglo-americano, que arruinara a lógica freudiana intro-duzindo uma teoria da relação de objeto demasiadamente centrada nos da-dos da realidade. O procedimento inclui um fortalecimento tático do édipocom o intuito de demonstrar que este não pode explicar-se pela história dosujeito, senão o contrário. Ele parte, então, do desejo da mãe, deduzido comouma necessidade de estrutura, e não do desejo do filho, que é um dado daexperiência clínica. O desejo materno engendra o do filho segundo a lei quedistingue desejo de necessidade e que postula o desejo como uma função dodesejo do Outro6.

Cumpre fazer observar, antes de prosseguir, que, entre os psicanalis-tas das diversas escolas, nada é tão consensual como o falo. O falo nos uneenquanto grupo tanto quanto nos separa do resto da comunidade intelectual.

5 T1 A criança agarrada à mãe que não quer saber de pai nenhum (“incesto” + “parricídio”: desejosprimordiais esquecidos).T2 A agressividade contra o pai é vivida, por projeção, como medo dele(percepção da diferença entre os sexos + premissa universal descoberta na análise de Graf-Hans= angústia de castração). T3 Do lado do garoto, adoção dos brasões do pai (promessa de um diaser o senhor do castelo com direito ao usufruto do órgão) e, do lado da menina, esperança de umdia ter um filho de um homem (como equivalente simbólico da verga faltante).6 O Édipo revisitado por Lacan distribui os 3 tempos freudianos entre um T1 anterior e um T3

posterior ao triângulo descrito por Freud, mas que nada tem de pré ou de pós-edípico. O T1 seriao tempo do encontro com o desejo materno: a mãe como carretel, digamos (Fort, Da, etc). “Porque você vai embora?”, seria a pergunta. Sendo que a resposta só pode ser: “porque além demãe sou uma mulher... “ (as reticências indicam a presença implícita do falo no horizonte femini-no, o que constitui todo o problema a tratar aqui). O T2, o tempo freudiano propriamente dito,indicaria o pai como o mais apto para atender esta fêmea, deixando seu rebento fora do jogo ecom seus ciúmes. Finalmente, o desfecho, em T3, onde se consolidam as identificações propria-mente simbólicas.

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Separação que pode constatar-se no sarcasmo paternalista com que filóso-fos e cientistas se referem a nosso conceito-mor, considerado por eles umresíduo supersticioso que estraga nossas pretensas aspirações ao status ,não digo de cientistas, de modernos mesmo. Nem o inconsciente, que paraalguns (Althusser, por exemplo) caracteriza o objeto mesmo de nossa disci-plina, possui a unanimidade do falo e do seu conceito companheiro: o com-plexo de castração. Com involuntária ironia, uma colega encerrou uma dis-cussão sobre o status epistemológico deste último, assinalando que as difi-culdades para entender a noção de falo não se devem à teoria, mas aosconflitos inconscientes com o complexo: “teus problemas com o ‘complexo decastração’ devem-se aos teus problemas com o complexo de castração...”

Esta engraçada tautologia avança mais profundamente no círculo vici-oso que encontramos no recurso retórico de amparar-se na natureza comocritério de fundamentação de uma idéia abstrata que deveria dar conta dela7.Por exemplo, Laplanche e Pontalis (os grifos são deles, exceto o de “natural-mente”, que é meu):

“Na gênese empírica do complexo de castração, tal como Freuda descreveu, vêm desempenhar o seu papel dois dados de fato:a verificação pela criança da diferença anatômica dos sexos éindispensável para o aparecimento do complexo. Ela vem atuali-zar e autenticar uma ameaça de castração real ou [fantasística]8”(Laplanche e Pontalis, 1986, p. 112).

Ou:O complexo de castração é constantemente encontrado na experiên-

cia analítica. Como explicar a sua presença quase invariável em todos osseres humanos, quando as ameaças reais a que deveria a sua origem estãolonge de ser sempre encontradas (e ainda mais raramente seguidas de exe-cução!), quando é mais do que evidente que a menina não poderia sentir-seameaçada efetivamente de ser privada daquilo que não tem?

Ou, ainda:O complexo de castração não é redutível a uma situação real, à influên-

7 Critério de que Lacan tampouco se priva quando procura autorizar seu estágio do espelho naimaturação neurológica do bebê, ou a pulsão de morte na entropia dos organismos pluricelulares.Só que nele é uma estratégia retórica para introduzir conceitos difíceis de serem engolidos. Dou-rar a pílula, enfim.8 Verbete “Complexo de castração” no Vocabulário de Psicanálise de 1967, que resume aindahoje a leitura canônica da teoria psicanalítica.

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cia efetivamente exercida sobre a criança pelo casal parental. Ele retira a suaeficácia do fato de fazer intervir uma instância interditora (proibição do inces-to) que barra o acesso à satisfação naturalmente procurada e que ligainseparavelmente o desejo à lei.

Complexo é uma palavra importada de um psiquiatra alemão chamadoZiehen pelo grupo de Zürich (Jung e cia.) e que designa um dispositivo fixo decadeias associativas reveladoras (esta é a hipótese) de uma estrutura latentetipificada psicologicamente, “círculos de pensamento e de interesses dotadosde poder afetivo”, como se exprime Freud, separados da consciência e comação sobre esta. Ou seja, é um conjunto organizado de representações erecordações de forte valor afetivo que organiza traços pessoais. O fato deFreud ter limitado a existência de complexos ao número de dois dá subsídiospara identificar ali a estrutura e não apenas uma configuração psicológicaentre outras.

Castrar, para o dicionário, é uma palavra derivada do latim castratio,criada no fim do século XIV para designar a operação pela qual se priva umanimal das glândulas genitais, condição da sua reprodução. É sinônimo deemasculação (literalmente: privar da masculinidade), e a cirurgia modernaconstruirá o termo “ovariectomia” para referir-se à ablação dos ovários. Omito de que Freud se vale para inventar seu complexo origina-se em Cibele, adeusa frígia, responsável pela automutilação de seu filho e amante Attis, eestá na origem de um culto que chegou até a Roma imperial e que culminavana extirpação dos próprios testículos e da verga. O papa Leon I proibiu aspráticas de emasculação voluntária9. O século XVIII fez exceção com os castratipreparados para o bel canto, demanda cultural frente à qual a igreja fechouoportunamente os olhos. Na índia, esta prática continua a ter adeptos entreos Hijras até nossos dias. Em todo caso, é por essa origem que o sentidofigurado transmite a idéia de cercear, abortar; frustrar ou frustrar-se.

Sem nos amedrontarmos com injunções do tipo credo quia absurdum,como a da colega mencionada anteriormente, poderemos facilmente consta-tar que o consenso sobre o complexo de castração esconde um dissenso quenão se reconhece a si mesmo e que às vezes transparece no interior de ummesmo texto, não raramente separado por apenas alguns parágrafos. Dosentido de privar, interromper, desanimar (associado aos afetos de ódio e

9 Lacan, não Freud, para quem a ameaça de corte vem de fora do sujeito, faz valer estaautomutilação na origem mítica e carrega na vertente do sacrifício (a “libra de carne” que deve-mos ao Outro).

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medo e a condutas de segregação ou de fobia), passa-se, sem solução decontinuidade, a seu oposto: acrescentar, suplementar, complementar, pro-mover, prover, assumir (associado à tolerância e ao amor do próximo).

Assim, por exemplo, Safouan (1981) faz observar que nos juízos deimpossibilidade que podem ser deduzidos no discurso dos pacientes “se fazsentir o peso da castração, no sentido exato do termo”.10 E mais adiante:

“[…] o falo é, em nosso modo de ver, o significante do Outro namedida em que este Outro não poderia articular o significanteque garantiria a verdade do seu discurso, ou mais ainda, que eleé o ponto “menos fi”, no qual se indica, com a carência destemesmo significante, a falta em ser do sujeito. A paixão da Verda-de, na qual se arraiga a sexualidade do homem tanto quanto ada mulher, é paixão do Falo” (2001).

E no livro de Winter (2001), dedicado à histeria masculina:“Antes de ir mais longe, o que devemos entender aqui por cas-tração? Num primeiro tempo, esta designa a impossibilidade da-quele sonho de harmonia, partilhado por todo o gênero humano,baseado numa dupla recusa: a da diferença dos sexos e a dafiliação. A castração é a aceitação de um limite de si que é acei-tação, não só do que sou, mas sobretudo do que não sou. E,antes de mais nada, o que não sou é o Outro sexo11”.

Não critico as definições que cito, deixo constância apenas do espantode que isso tudo caiba dentro da classe “castração”, como se fossem merosesclarecimentos do que Freud disse que a castração é: a fantasia de que opinto me seja tirado. Isso sem mencionar a dificuldade suplementar introduzidapelo obscuro objeto do desejo de Lacan, o petit a, introduzido de supetãodepois do falo, sem que nada pareça justificar a sua presença ou a sombracom a qual eclipsa o conceito de Freud.

Winter, por exemplo, depois de situar o falo em relação ao narcisismo eafirmar uma falha identificatória narcisista no histérico (“que o teria preparadopara satisfazer [o homem e a mulher] em posição de objeto”), abandona o faloà própria sorte e começa a falar do objeto a: “[...] o histérico se identifica àverdade de que faz o objeto mesmo de sua pulsão [...]; o mestre quer produziro objeto a minúscula que o histérico se propõe a encarnar”. Não me interessaaqui entrar nos pormenores da teoria do j – e do objeto a –, mas fazer obser-var uma operação retórica que não por recorrente mostra melhor a que veio.

10 Meu grifo.11 Meu grifo.

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Enfim, sempre com referência à histeria, mas desta vez da pena de Julien(2000), temos que: “o mestre e senhor (maître) é um homem castrado, já quea mestria exclui de si o gozo e se contenta com a mesura e a moderação queimpõe o princípio de prazer-desprazer” (p. 172).

Lacan, de sua parte, submete a uma constante variação as fórmulasdestinadas a definir a castração e as provas específicas dela que são neces-sárias para que uma análise alcance seu fim e seus fins. A assunção é umadelas, e sua nota religiosa não se perderá completamente quando a sua es-sência passe a ser a inexistência lógica da relação sexual. Temos, pois, acastração como condição e a castração como resultado de uma análise bemsucedida. E as referências universais se sucedem, de Freud a Lacan, comfundamento na natureza, na língua ou na lógica.

Pierre Winter (2001, p. 15, meu grifo e meu ponto de interrogação):“Antes de ir mais longe, o que devemos entender aqui por cas-tração? Num primeiro tempo, esta designa a impossibilidadedaquele sonho de harmonia, partilhado por todo o gênero hu-mano, baseado numa dupla recusa: a da diferença dos sexos ea da filiação. A castração é a aceitação de um limite de si que éaceitação não só do que sou, mas sobretudo do que não sou. E,antes de mais nada, o que não sou é o Outro sexo. Em suma,ser castrado, diferentemente de ser capado, que é da ordem daresignação, até mesmo do real [?], é renunciar por um ato psí-quico à identificação ao sexo que não se tem e substituir pelafiliação reconstituída o romance familiar, que era o preferido”.

Philippe Julien (2000, p. 101-102; grifos dele):1. A mãe não tem o falo

“[...] Se a criança recebeu da mãe a significação fálica de suacarência [manque], então pode fazer-se objeto fálico para elacomo imagem (Lacan o anota como fi minúscula: f). O sujeito,menino ou menina, é, mediante a imagem do seu eu [moi], o quefalta à mãe. Tal é a aposta para o não-psicótico. A mãe não temo falo, logo eu o sou...para ela!”

2. A angústia“[...] Como diz Lacan: E sempre a questão de saber por que via acriança dará [donnera] a sua mãe esse objeto de que ela carece.[...] Sim, mas como estar à altura do desejo da mãe?”

Da impossibilidade de responder nasce a angústia de castração. E bemporque Lacan dizia: “[...]A castração da mãe [...] implica para a criança a pos-sibilidade de devoração e de esfacelamento”.

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VARIAÇÕES

Ser o objeto fálico imaginário para preencher o desejo da mãe é a an-gustia mesma de ser engolido por ela.

3. A mãe tem o falo“Tal é a Verleugnung: [...] Lá onde nela o falo simbólico falta, osujeito coloca [pose: postula?] em seu lugar um fetiche como faloimaginário”.

Vale a pena ler de novo. Deixando de lado que a significação de umacarência tenha como resultado fazer-se “objeto fálico como imagem” (“ima-gem do eu”, escreve o autor – mas qual: minha figura no espelho?; a quedeveria figurar mas não figura12 ou, ainda, o conjunto de traços mais ou me-nos inapreensíveis que os psicólogos chamam de “personalidade” e que sóem sentido figurado poderíamos denominar um “quadro”?). Parece, em todocaso, que representar o supra sumo para a mãe – estar em posição de dar-lhe o que ela supostamente mais quer, ou seja, “eu próprio como objeto” –,longe de produzir qualquer contentamento, faz a criança mergulhar na maiorangústia. Em suma, não ter condições de preencher a carência devida à cas-tração materna angustia, e ter tais condições angustia mais ainda! Será ne-cessário ler com todo o cuidado os desenvolvimentos de Lacan sobre a “faltada falta” no seminário X para sair da aparente aporia lógica do complexo decastração quando passa sob silêncio a inversão operada no seminário IV,que desloca o motivo da angústia do menino Graf da possibilidade de serabandonado pela mãe, como Freud diz, à de ser sufocado pelo horror dacerteza de ser ele mesmo a resposta para seus anseios.

Poderíamos analisar os deslizamentos recíprocos entre ser e ter emjogo nesta passagem, mas o que me interessa é o uso que Julien faz dapalavra de Lacan: a castração da mãe implica para a criança a possibilidadede ser picada e devorada. Que pode querer dizer “castração da mãe” nestecontexto canibalístico (que transforma o pinto inicial, representação do falo,em “frango a passarinho”)?

Vejamos o que Lacan fez com o falo de Freud entre 50 e 7013

O significante instaura a falta-para-ser (manque à être) na relação deobjeto: releitura do objeto perdido de Freud a partir da repetição significante,

12 O homem branco que se declara preto, para acolher-se à lei de cotas da universidade e porantífrase faz valer a sua diferença com os pretos em questão (onde podemos ver, por sinal, comoesta tentativa de ação afirmativa para as minorias corre o risco de prestar-se antes para o discur-so do cínico: Goldenberg (2001). E o último romance de Phillip Roth, The Human Stain).13 No sucessivo me reporto sem citá-lo ipsis literis mas devendo-lhe tudo, ao magnífico livro deBalmès (1999) cuja leitura não pode deixar de recomendar-se.

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que Lacan (1958/59) denomina demanda (o objeto encontrado não é o bus-cado porque há diferença entre um significante e a sua repetição). O incons-ciente é repensado mediante as categorias de desejo e demanda, e a articu-lação entre ambos é feita pelo falo, indicador simbólico do ser que falta aofilho (o sujeito) e à sua mãe (o Outro).

A dificuldade para delim itar o status do falo é evidente para qualquerleitura atenta de “De uma questão preliminar...”. Em menos de dez páginas,ele aparece definido sucessivamente como imagem, objeto, significação esignificante. E estas dificuldades para situar o falo em relação aos três regis-tros devem-se às sucessivas e às vezes contraditórias funções teóricas queLacan o faz desempenhar. Por um lado, designa axiomaticamente o efeito daestrutura significante enquanto tal e pode ser referido como função da signifi-cação ao objeto metonímico ou ao significado em geral. Entretanto, por si só,esse lugar de estrutura não implica nem exige obrigatoriamente a denomina-ção de “falo”. Por outro lado, seria o elemento que permite ler o inconscientefreudiano como uma função dependente da linguagem, no cerne de uma ar-gumentação do sujeito enquanto falta. Falo seria o nome do significante deum sujeito tal que implica uma passagem pela dimensão imaginária.

Mais tarde, o objeto a e o gozo tomarão o relevo desta função, mas porenquanto é encomendada ao falo a tarefa de determinar o caráter sexual doque está em jogo no inconsciente e, notadamente, no conceito de desejo(aqui, o falo é um conector complexo da diferença dos sexos, que seria pura-mente significante, com a pulsão, que não o seria). A esse respeito, Lacanrelaciona a linguagem com o ser vivo falante e com a perda que o afeta porcausa da sua entrada na linguagem.

Para concluir, o falo conecta o conjunto com a estrutura edípica e a possi-bilidade de o sujeito situar-se na diferença dos sexos (amarração do pulsionalnão marcado pela diferença dos sexos com o que não é pulsional, mas concerneà diferença dos sexos e é significante: “O falo é o significante privilegiado des-sa marca em que a parte do logos se conjuga com o advento do desejo”).

Para algumas dessas funções, Lacan não procede já mediante a dedu-ção lógica da estrutura senão que invoca o que a experiência analítica impõe,procedimento epistemológico e retórico que se haveria de analisar com cui-dado, tanto nele como em Freud. Nesse sentido, o falo é apresentado comuma dupla articulação: como elemento que define um lugar na economiasignificante, suscetível de deduzir-se das proposições anteriores sobre a es-trutura e a topologia da cadeia (ou seja, o inconsciente: noção irrenunciável;palavra-chave; maître-mot do discurso da psicanálise, sem o qual a suaespecificidade se perderia, mas cujo referente, contra o que se poderia espe-

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VARIAÇÕES

rar, não é em absoluto metafísico, mas empírico), e como conteúdo que iráalojar-se nesse lugar.

Antes de relegá-lo a um segundo plano pelo objeto a, Lacan pôs o faloa funcionar realmente como pedra angular de toda a construção, coluna quesuporta diferentes partes da teoria freudiana, mal costuradas entre si, e quepossibilita que o axioma do inconsciente estruturado como uma linguagempermaneça ainda freudiano.

Vamos à referência aforística que está por trás do texto de Julien (1999)mas que ele não cita ipsis literis em lugar nenhum: Toda significação é fálica.Balmès propõe várias interpretações. Vamos a algumas delas:

1) SIGNIFICAÇÃO = OBJETO (COM ECLIPSE DO REFERENTE)Nos seminários IV e V, Lacan deduz essa equivalência da sua defini-

ção da estrutura e a fundamenta no gesto pelo qual reabsorve o referente nasignificação. Toda significação é fálica, então, por conta da metonímia, já quetanto o objeto como a significação são metonímicos. Mas, por que fálica e nãoapenas metonímica? Porque considera necessário que haja algo no imaginá-rio para representar o que sempre se subtrai, leia-se: o falo. Toda significaçãoé fálica no sentido em que o falo representa a significação como tal, em suaessência metonímica14. ‘É uma significação que sempre desliza, foge, se sub-trai, o que faz com que, no fim das contas, a relação básica do homem comtoda significação seja, em razão da existência do significante, um objeto deum tipo especial. Esse objeto o chamo objeto metonímico.’ Dupla posição dofalo, segundo seja abordado pelo lado do objeto (metonímico) ou pelo lado dosujeito (metáfora do que sempre se subtrai; leia-se: o que se subtrai sou eu).

2) FALO = S/s = SER-DO-SUJEITO = SÍMBOLO DO DESEJO DA MÃEO falo serve para pensar ao mesmo tempo, o objeto (metonímico), o

sujeito (metafórico) e a barra que separa o significante do significado e “barra”(risca) o sujeito e o Outro. A significação fálica, como nome da identificaçãofundamental do ser do sujeito deriva da metáfora paterna: releitura do Édipofreudiano. Neste raciocínio, o sujeito se identifica positivamente com o falo,não como se este lhe faltasse15. Por outro lado, quando se trata do -ϕ ou da

14 “Mas o que é o falo com respeito à metonímia?”, pergunta Balmès (1999), “Sua operação, oresultado dela, seu significado, sua causa, sua essência? Todas estas leituras são pertinentessegundo os contextos.”15 Novamente: que pode querer dizer isso, de fato, que ele se toma por uma banana? Certamentenão, portanto, estamos outra vez interpretando condutas ou imagens mediante uma chave sim-bólica.

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barra, deve-se concluir que o sujeito está identificado negativamente, comuma carência.

3) O SIGNIFICANTE DO SIGNIFICADO EM GERALApresentação axiomática. Postulado decorrente de necessidades in-

ternas do sistema dos significantes. Por um lado, simboliza o significado comofunção em si – não este ou aquele significado. Por outro, significa aquilo queé desejado no fim das contas, seja qual for a figura que tome. Ou seja, asignificação derradeira, a última palavra que, por definição, não há.

Apresentação deduzida segundo a lógica do significante. A fuga dosignificado é tematizada pelas relações complexas entre a demanda e o de-sejo de acordo com quatro determinações do falo:1a - Como símbolo do hiato entre a demanda e o desejo (exigência teórica). O“significado”, de certo modo, preexiste ao significante sob as espécies da ten-dência (termo usado para traduzir Trieb nos textos anteriores aos anos 50 etambém nos primeiros seminários), ou seja, daquilo que se tornará demandaao passar pela linguagem. O desejo se deduz da perda mesma que estapassagem engendra. (Se ele resulta da passagem, então, não preexiste aela.)2ª - Como distribuidor da diferença sexual (fálico/castrado).3ª - Como símbolo comum do desejo, válido para ambos os sexos.4ª - Como falta necessária que determina o valor do que se possui. Aquihaveria que incluir a discussão sobre a noção de valor para Saussure. Emtodo caso, trata-se da castração prospectiva. Lacan insiste que isto não édeduzido mas imposto pela experiência analítica (função da castração dadana experiência).

4) A PARTE MALDITA (CF. BATAILLE)A parte perdida, aquilo de que o sujeito se mutila e que serve para

pagar o preço pelo qual o que resta vale alguma coisa. Toda significação dodesejo (o que se significa, axiomaticamente, é sempre o desejo = o desejo éa sua interpretação) localiza o valor do “objeto desejado” na equivalência en-tre este e a parte perdida, denominada castração. A livra de carne sacrificadaé a castração freudiana. Em 1964, porém, Lacan porá a parte perdida naconta do objeto a.

Lemos, no seminário VI, que se sacrifica ao Outro a vida mesma, real.A mãe, doadora da vida, desencadeia um processo de neguentropia, que elanão controla, e que será corroído pela entropia vital, até a morte do organis-mo. Há não apenas uma falha simbólica ou imaginária, mas uma real, graduale irreversível perda que será tratada, desde 1960, como objeto a. “O objeto da

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fantasia, imagem e pathos, é esse outro que toma o lugar daquilo do qual osujeito está privado simbolicamente” (15 de abril de 1959). No aparato laca-niano, o objeto vai tomando o lugar daquilo de que o sujeito está privadosimbolicamente, ou seja, do falo, mas cujo verdadeiro referente é a perda realinerente à reprodução sexuada.

Em resumo. Antes e depois de 1964 há dois usos teóricos ou dois tem-pos diferentes da teoria. Antes, o falo concentra, como significante faltoso edo que falta, o ser que nunca chega devido, precisamente, ao significante.Depois, na fantasia, um objeto imaginário toma o lugar daquilo de que o sujei-to está privado. Problema: a relação do falo e do objeto na fantasia. Depois de1959 (e definitivamente em 1964, quando se trata da causa), o objeto a subs-titui o falo como significante do desejo do Outro (o desejo é sempre desejo deum desejo, etc.). Entra no jogo como fetiche: o desejo materno está fora doalcance da sua demanda. O objeto a designa aqui as formas que o falo tomana fantasia, não necessariamente o pênis, já que se trata primordialmentedos objetos ditos pré-genitais da pulsão parcial.

LAST, BUT NOT LEAST: O FALO COMO SIMULACRO (SEMBLANT).O falo como simulacro é um substituto real objetivo e pleno e coincide

com o órgão viril: “manifesta-se na vida como empuxo, turgência” (SeminárioV). A vida, o vital, que o pênis simboliza nos ritos órficos e que a psicanáliserecolhe das falas dos neuróticos, é significada como fluxo, seiva, veia... enfim,libido e pulsão. Constatamos em Lacan, porém, uma inversão pela qual o querepresenta a vida como potência de crescimento desenfreado (a ser barrado:câncer?) será escolhido para significar a castração como barra, limite e per-da. Sabor de círculo vicioso, já que o movimento da análise lógica postula, emprimeiro lugar, a barra como princípio de elevação ao significante. Mas, numsegundo momento, há que explicar por que se escolhe precisamente o sím-bolo peniano para desempenhar a função que o falo deve à castração, deci-frada esta última, de certo modo previamente, com ajuda da estruturasignificante. Círculo que se fecha quando se declara não haver significaçãoque não seja fálica (onde falo = barra = significante).

Enfim, para concluir, é bom fazer observar que o teorema “toda signifi-cação é fálica” se interpreta diferentemente se lido a partir do postulado: “nãohá relação sexual”, de 1970. Desde Encore, com efeito, o falo é o lugar-tenen-te dos obstáculos que a linguagem cria para a relação sexual (Freud, satiriza-do pelo pansexualismo, dizia que, no inconsciente, toda significação, inter-pretada devidamente, era sexual). Sendo o único significante (aqui: letra) deque dispomos para escrever a diferença, o falo é a prova de que a essência

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da diferença entre os sexos escapa. A Bedeutung (referência) do falo não éseu Sinn (sentido). A Bedeutung do falo é o obstáculo mesmo que ele cria àrelação (rapport) sexual e o suprimento dela em que ele consiste enquantooperador da função fálica. O seu Sinn, em compensação, são as figuras(ersatzen) que a psicanálise tem encontrado (e catalogado) nesse lugar emcada uma das análises, a começar pelo pênis.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BALMÈS, Ce que Lacan dit de l’être. Paris: PUF, 1999.GOLDENBERG, Ricardo. No Círculo Cínico ou Caro Lacan, por que negar a Psicaná-lise aos Canalhas? Rio: Relume – Dumará, 2001.LACAN, Jaques. O Seminário 6. O desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Zahar,1995._____ . O Seminário 17. O avesso da psicanálise (1969/1970). Rio de Janeiro: Zahar,1992.JULIEN, Philippe. Psychose, perversion, néurose. Paris: Érès, 2000.LAPLANCHE, J & Pontalis, J.-B. Vocabulário de Psicanálise. São Paulo: Martins Fon-tes, 1986.SAFOUAN, M. Estudios sore el edipo. México: Siglo XXI,1981.WINTER, Jean-Pierre. Os errantes da carne. Rio de Janeiro: Companhia de Freud,

2001.

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NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

I APRECIAÇÃO PELO CONSELHO EDITORIALOs textos enviados para publicação serão apreciados pela comissão

editorial da Revista e consultores ad hoc, quando se fizer necessário.Os autores serão notificados da aceitação ou não dos textos. Caso

sejam necessárias modificações, o autor será comunicado e encarregado deprovidenciá-las, devolvendo o texto no prazo estipulado na ocasião.

Aprovado o artigo, o mesmo deverá ser enviado para a APPOA, aoscuidados da Revista, em disquete, acompanhado por uma cópia impressa eassinada pelo autor, ou por e-mail.

II DIREITOS AUTORAISA aprovação dos textos implica a permissão de publicação, sem ônus,

nesta Revista. O autor continuará a deter os direitos autorais para futuraspublicações.

III APRESENTAÇÃO DOS ORIGINAISOs textos devem ser apresentados em três vias, contendo:

– Folha de rosto: título, nome e créditos do autor (em nota de rodapé), con-tendo títulos acadêmicos, publicações de livros, formação profissional, inser-ção institucional, endereço postal, e-mail, fone/fax; resumo (até 90 palavras);palavras-chaves (de 3 a 5 substantivos separados por ; ); abstract (versão eminglês do resumo); Keywords (versão em inglês das palavras-chaves).– Corpo do texto: deverá conter título e ter no máximo 15 laudas (70 toques/25 linhas); usar itálico para as palavras e/ou expressões em destaque e paraos títulos de obras referidas.– Notas de rodapé: as notas referentes ao título e créditos do autor serãoindicadas por * e **, respectivamente; as demais, por algarismos arábicos aolongo do texto.

IV REFERÊNCIAS E CITAÇÕESA referência a autores deverá ser feita no corpo do texto somente men-

cionando o sobrenome (em caixa baixa), acrescido do ano da obra. No casode autores cujo ano do texto é relevante, colocá-lo antes do ano da ediçãoutilizada.

Ex: Freud [(1914) 1981].As citações textuais serão indicadas pelo uso de aspas duplas. As que

possuírem menos de 3 linhas, deverão ser mantidas no corpo do texto. Apartir de 3 linhas, deverão aparecer em parágrafo recuado e separado, acres-cidas do (autor, ano da edição, página).

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V REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASLista das obras referidas ou citadas no texto. Deve vir no final, em or-

dem alfabética pelo último nome do autor, conforme os modelos abaixo:

OBRA NA TOTALIDADE

BLEICHMAR, Hugo. O narcisismo; estudo sobre a enunciação e a gra-mática inconsciente. 2. ed. Porto Alegre : Artes Médicas, 1987.

LACAN, Jacques. O seminário. Livro 20. Mais ainda. Rio de Janeiro : J.Zahar, [s. d.].

PARTE DE OBRA

CALLIGARIS, Contardo. O grande casamenteiro. In: CALLIGARIS, C.et al. O laço conjugal. Porto Alegre : Artes e Ofícios, 1994. p. 11-24.

CHAUI, Marilena. Laços do desejo. In: NOVAES, Adauto (Org). O de-sejo. São Paulo : Comp. das Letras, 1993. p. 21-9.

FREUD, S. Teorías sexuales infantiles (1908) In: _____. Obras com-pletas. 4. ed. Madri : Biblioteca Nueva, 1981. v. 2.

ARTIGO DE PERIÓDICO

CHEMAMA, Roland. Onde se inventa o Brasil? C. da APPOA, PortoAlegre, n. 71, p. 12-20, ago. 1999.

HASSOUN, J. Os três tempos da constituição do inconsciente. Revistada Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, Artes e Ofícios, n.14, p. 43-53, mar. 1998.

ARTIGO DE JORNAL

CARLE, Ricardo. O homem inventou a identidade feminina. Entrevistacom Maria Rita Kehl. Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 05 dez. 1998. CadernoCultura, p. 4-5.

NESTROVSKI, Authur. Uma vida copiada: prensa internacional reavaliamemórias fictícias de Beinjamin Wilkomirski. Folha de São Paulo, São Pau-lo,11 jul. 1999. Caderno Mais, p. 9.

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ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA

DE PORTO ALEGRE

MESA DIRETIVA

(GESTÃO 2003/2004)Presidência: Maria Ângela Cardaci Brasil1a Vice-Presidência: Mario Corso2a Vice-Presidência: Ligia Gomes Víctora1a Secretária: Marieta Madeira Rodrigues2a Secretária: Marianne S. Mendes Ribeiro1a Tesoureira: Grasiela Kraemer2a Tesoureira: Luciane Loss Jardim

Alfredo Néstor Jerusalinsky, Ana MariaMedeiros da Costa, Ângela Lângaro Becker,Carmen Backes, Clara von Hohendorff, EdsonLuiz André de Sousa, Gladys Wechsler Carnos,Ieda Prates da Silva, Jaime Betts, Liliane SeideFroemming, Lucia Serrano Pereira, MariaAuxiliadora Pastor Sudbrack, Maria Beatriz deAlencastro Kallfelz, Maria Lúcia Muller Stein eRobson de Freitas Pereira

COMISSÕESComissão de AcolhimentoDiana Lichtenstein Corso, Lucia Serrano Perei-ra, Maria Ângela Cardaci Brasil, MariaAuxiliadora Pastor Sudbrack

Comissão de Analistas-MembrosCoordenação: Maria Auxiliadora PastorSudbrackAlfredo Néstor Jerusalinsky, Ana MariaMedeiros da Costa, Lucia Serrano Pereira, Ma-ria Ângela Cardaci Brasil, Robson de FreitasPereira

Comissão de BibliotecaCoordenação: Maria Auxiliadora PastorSudbrack e Ana Marta Goelzer MeiraGladys Wechsler Carnos, Maria N. Folberg,Mercês S. Ghazzi

Comissão de EnsinoCoordenação: Lucia Serrano Pereira e EdsonSousaAlfredo Néstor Jerusalinsky, Ana MariaMedeiros da Costa, Eda E. Tavares, LilianeSeide Froemming, Ligia Gomes Víctora, LizNunes Ramos, Lúcia Alves Mees, Maria ÂngelaCardaci Brasil, Maria Auxiliadora PastorSudbrack, Mário Corso, Robson de Freitas Pe-reira, Rosane Monteiro Ramalho

Comissão do Percurso de EscolaCoordenação: Jaime Betts e Carmen BackesGerson Smiech Pinho, Liz Nunes Ramos, Si-mone Rickes, Valéria Machado Rilho

Comissão de EventosCoordenação: Ligia Gomes Víctora e MariaBeatriz de Alencastro KallfelzAna Maria Gageiro, Grasiela Kraemer, MariaElisabeth Tubino, Regina de Souza Silva

Serviço de Atendimento ClínicoCoordenação: Ângela Lângaro Becker e CarlosHenrique KesslerAlfredo Néstor Jerusalinsky, FranciscoSettineri, Grasiela Kraemer, Liz Nunes Ramos,Luciane Loss Jardim, Maria Cristina PetrucciSolé, Otavio Augusto W. Nunes, RossanaStella Oliva

Comissão de PublicaçõesCoordenação: Alfredo Jerusalinsky

Comissão de AperiódicosCoordenação: Ieda Prates da Silva e Liz NunesRamosLucy Linhares da Fontoura, Rossana StellaOliva, Maria Rosane Pereira Pinto, ValériaMachado Rilho, Charles Lang

Comissão do CorreioCoordenação: Robson de Freitas Pereira eMarcia Helena de Menezes RibeiroAna Laura Giongo, Fernanda Breda, GersonSmiech Pinho, Henriete Karam, Liz Nunes Ra-mos, Maria Lúcia Müller Stein, Rosane PalacciSantos, Rossana Stella Oliva

Comissão da RevistaCoordenação: Valéria Machado Rilho e LúciaAlves MeesBeatriz Kauri dos Reis, Inajara Erthal Amaral,Marieta Madeira Rodrigues, Otávio AugustoW. Nunes, Siloé Rey