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1 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 165, jan. 2008. EDITORIAL Q uando Freud afirma que sua atração pelas obras de arte está asso- ciada à tentativa de explicar a que se deve o efeito exercido por elas, faz a seguinte ressalva: “onde não consigo fazer isso, como, por exemplo, com a música, sou incapaz de obter qualquer prazer” 1 . Ainda que sublinhe sua pouca afinidade em relação à música, Freud aponta o que esta carrega de enigmático, indicando algo nela que resiste à compreensão. Desde diferentes perspectivas, muitos autores têm aproximado a psi- canálise da música. Nesta edição, dedicamos o Correio à discussão desta temática. A musicalidade da voz tem um papel fundamental no estabelecimento do laço entre o bebê e aquele que exerce a função materna. Nesta relação primordial, a pequena criança percebe na voz da mãe a musicalidade do significante, antes de compreender o sentido dos fonemas. A melodia da voz materna é um elemento necessário para que a inscrição significante possa operar e a criança venha a se constituir enquanto sujeito desejante. A partir daí, surgem diferentes interrogações. O que, na música, “toca” a um sujeito? A que marcas de nossa constituição psíquica ela remete para que nos capture e afete do modo como faz? Estas são algumas das ques- tões abordadas na seção temática dessa edição. Iniciemos este novo ano, então, a partir da musicalidade! 1 FREUD, S. “O Moisés de Michelangelo” (1914)

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1C. da APPOA, Porto Alegre, n. 165, jan. 2008.

EDITORIAL

Quando Freud afirma que sua atração pelas obras de arte está asso-ciada à tentativa de explicar a que se deve o efeito exercido porelas, faz a seguinte ressalva: “onde não consigo fazer isso, como,

por exemplo, com a música, sou incapaz de obter qualquer prazer”1 . Aindaque sublinhe sua pouca afinidade em relação à música, Freud aponta o queesta carrega de enigmático, indicando algo nela que resiste à compreensão.

Desde diferentes perspectivas, muitos autores têm aproximado a psi-canálise da música. Nesta edição, dedicamos o Correio à discussão destatemática.

A musicalidade da voz tem um papel fundamental no estabelecimentodo laço entre o bebê e aquele que exerce a função materna. Nesta relaçãoprimordial, a pequena criança percebe na voz da mãe a musicalidade dosignificante, antes de compreender o sentido dos fonemas. A melodia da vozmaterna é um elemento necessário para que a inscrição significante possaoperar e a criança venha a se constituir enquanto sujeito desejante.

A partir daí, surgem diferentes interrogações. O que, na música, “toca”a um sujeito? A que marcas de nossa constituição psíquica ela remete paraque nos capture e afete do modo como faz? Estas são algumas das ques-tões abordadas na seção temática dessa edição. Iniciemos este novo ano,então, a partir da musicalidade!

1 FREUD, S. “O Moisés de Michelangelo” (1914)

2 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 165, jan. 2008.

NOTÍCIAS

CARTEL PREPARATÓRIO DO CARTELÃO(LEITURA DAS LIÇÕES DO SEMINÁRIO ANGÚSTIA)

Periodicidade: semanal, às quintas-feiras, das 18h30min às 20h.Contato: Laura Rangel (fones: 51 9697.1333 / 3019.7508)E-mail: [email protected] ou com a Secretaria da APPOA.

INSTITUTO APPOA

Informamos que o próximo encontro do Cartelão do Instituto será dia14 de janeiro, segunda-feira, às 20h30min, na sede da APPOA.

NÚCLEO DE PSICANÁLISE DE CRIANÇAS

O núcleo de psicanálise de crianças da APPOA é um espaço dediscussão, com reuniões mensais, que se propõe a trabalhar as especifici-dades levantadas pelo trabalho psicanalítico com a infância.

No próximo encontro, dia 12 de janeiro, contaremos com a presençade Alfredo Jerusalinsky, para dar continuidade ao debate sobre a angústiana infância.

As reuniões do núcleo de psicanálise de crianças têm freqüência men-sal, com encontros sempre no segundo sábado do mês, das 10h às 12h.

RELENDO FREUD 2008

Mais uma vez Freud nos convoca a relê-lo. Neste ano o texto escolhi-do para provocar a discussão é “Fetichismo”. Texto escrito em 1927, ondeFreud discute essa forma particular de escolha de objeto, recomendando oestudo do fetichismo a todos aqueles que ainda duvidam da existência docomplexo de castração.

Estamos convidando a todos os interessados a dar inicio ao cartel depreparação para a atividade do Relendo Freud. Nosso primeiro encontro serádia 08/01/2008, às 20h.

Coordenação Fernanda Breda e Maria Angela Bulhões.

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NOS PRELÚDIOS DA VIDA

Ana Paula Melchiors Stahlschmidt

De que magia a música retira este poder de nos transportar de umestado para um outro? Do ponto em que estávamos antes de pegaresse meio de transporte, eis-nos em outro ponto, após uma estra-

nha viagem (...)”1.Sobre o estudo deste “poder” da música, evocado pelo autor, vem

sendo realizados estudos que datam de muitos séculos antes de Cristo. Jáno Egito Antigo os efeitos da música sobre o ser humano eram discutidos,tema que ocupou também filósofos como Sócrates, Pitágoras e Platão.

Ao mesmo tempo, o enfoque sobre este tema, a partir da psicanálise,vem se dando há várias décadas, abordado por autores como Richard Sterba,Heinz Kohut, Donald Winnicott e Jacques Lacan, entre outros, a partir deângulos diversos.

Discutindo a experiência musical e os processos nela implicados,Kohut, por exemplo, talvez um dos primeiros psicanalistas a abordar a ques-tão, considera que a música pode ser entendida como uma “forma artísticaaltamente desenvolvida, e que por isso envolve como um todo a personalida-de do músico, seja ele compositor, instrumentista ou ouvinte”2 (p.390).

Tecendo articulações entre a psicanálise e a música, encontramostambém autores que estabelecem similaridades entre a experiência musicale a experiência psicanalítica, como Alexander Stein3, que as articula a partirda concepção de escuta.

Já outros psicanalistas discutem relações entre obras musicais e ahistória de vida de seus compositores, sempre enfatizando, em suas discus-

1 DIDIER-WEILL, Alain. Nota Azul: Freud, Lacan e a arte. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1997.2 KOHUT, Heinz. Observations of the Psychological Functions of Music. Journal of theAmerican Psychoanalytic Association. v. 5, n. 3, p. 389-407, 1957.3 STEIN, Alexander. On Listening in music and psychoanalysis. Journal for the Psychoanalysisof Culture & Society. V. 5, n. 1, p. 139-144, 2000.

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sões, a célebre aversão, ou ambivalência, de Freud em relação à música, eelaborando hipóteses sobre suas causas. Andréa Sabbadini4, por exemplo,considera que tal fato é especialmente significativo se observarmos a valori-zação da música na família de Freud e em Viena, onde residiu a maior partede sua vida. A tradição musical vienense, como sabemos, incluía composi-tores importantes e a cidade era considerada, na época, capital mundial damúsica. A autora lembra ainda que o pequeno Hans era filho de um eminentemusicologista, vindo, na vida adulta, a trabalhar no contexto operístico. EFreud teve contatos com músicos como Bruno Walter e Gustav Mahler, cujasessão única é comentada por inúmeros autores.

Abordando alguns aspectos que podem ter representado obstáculopara as discussões de Freud sobre a arte, Alain Didier-Weill5 observa que,para o fundador da psicanálise, o artista seria um introvertido, proposiçãoque, no seu entender, desconsidera o aspecto do sublime para centrar-se nasublimação. Nesta abordagem, a arte seria como um sedativo, relacionadaao princípio do prazer e, logo, volátil. O autor salienta ainda que Freuddesconsidera a relação da arte com seu contexto social e cultural, apresen-tando uma abordagem sobre o tema bastante defasada em relação às con-cepções de artistas de seu tempo, que percebiam como explosão imaginá-ria a produção do sublime.

Também concordando com as proposições sobre a arte, estabelecidaspor Freud, e relacionando a experiência artística à ilusão, Cyro Martins6 lem-bra que “a arte sempre reinou pelo poder de ilusão” (p. 21), demonstrando arelação existente entre esta e a magia. Entretanto, para a psicanálisewinnicottiana, como ressalta Marie-France Castarède7, a arte possui um caráterconstrutivo e, neste sentido, a música seria o apogeu do objeto transicional,

4 SABBADINI, Andrea. On Sound, Children, Identity and a “quite unmusical” man. BritishJournal of Psychoterapy. London, v. 14, n. 2, p. 189-195, 1997.5 Idem nota 1.6 MARTINS, Cyro. Criatividade. Revista Brasileira de Psicanálise. São Paulo, v. 5, n. 1/2, p.14-42, 1971.7 CASTARÈDE, Marie-France. La Voix et ses Sortilèges. Paris: Les Belles Lettres, 2000.

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sendo o espaço sonoro uma ilusão, mas ilusão necessária. E, poderíamosdizer, constituinte. A autora cita ainda convergências entre a psicanálise e aexperiência do canto, considerando a voz e a música como elementos próxi-mos de puro afeto, não representáveis e relacionados aos laços iniciais dobebê com a mãe.

Como Castarède, outros autores buscaram desenvolver aspectos daexperiência musical, articulando-os aos processos envolvidos na constitui-ção subjetiva. É fundamental, neste sentido, a contribuição de DonaldWinnicott8, ao vincular a arte aos fenômenos transicionais e estes ao brincare ao relacionamento inicial da mãe com seu bebê.

Finalmente, outros autores têm contribuído para o estudo da relaçãodo ser humano com a música através de articulações com as proposiçõesde Jacques Lacan. Entre estes, encontramos as concepções de Paulo Cos-ta Lima9, que caracteriza a música como uma tentativa “de se fazer entendi-do no mais além da palavra” (p. 42) e desenvolve a questão da música nocampo do Outro e Alain Didier-Weill10, que enfatiza, além desta articulação,a importância da voz e da pulsão invocante na constituição subjetiva. Lem-bra, neste sentido, que esta não é uma pulsão parcial, o que resulta em umprocesso no qual o “sujeito invocado torna-se invocante sem o suporte de umobjeto parcial” (p. 253), advindo então “o sujeito invocante”.

Para Lacan11, a invocação tem como pressuposto a dependência dodesejo do sujeito em relação a um outro ser, que é convidado a entrar na viado desejo de modo incondicional, processo que implicaria em um apelo àvoz, enquanto sustentação da fala para o sujeito que a porta. Neste contex-

8 WINNICOTT, Donald W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.9 LIMA, Paulo Costa. Música e Psicanálise: Uma bibliografia preliminar com 100 trabalhos dereferência. ART 023, Revista da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federalda Bahia. Salvador, p. 39-51, 1995.10 DIDIER-WEILL, Alain. Os Três Tempos da Lei: O mandamento siderante, a injunção dosupereu e a invocação musical. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.11 LACAN, Jacques. O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed., 1999.

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to, a invocação estaria relacionada ao apelo evocando esta voz, em confor-midade com o desejo. Didier-Weill12 a diferencia da demanda, considerandoque, se esta é dirigida a um Outro presente, a primeira visa um Outro queexiste apenas como por vir. Conclui, assim, que a pulsão invocante estárelacionada à transferência no tempo e, com base nestas observações, con-sidera, sobre a música, que o sujeito descobre que não a escuta, mas é, aoinvés disso, escutado por esta13: “a música o ouve, ouve nele um apelo doqual ele não sabia nada e do qual podemos dizer que é, para ele, apelo a quese torne o que ele não é ainda” (p. 252), apelo que só pode escutar graças àfalha no inconsciente que não pode esquecer, falha no Outro onde tem ori-gem a demanda de amor e que o torna permeável à música enquanto ouvin-te.

O que experimentamos ao escutar uma música, está relacionado aoponto enigmático em que “a mensagem do Outro torna-se nossa própriaPalavra” (p. 81), diz o autor. A partir destas idéias, aborda a experiência deconjugação de gozo e nostalgia propiciada pela “Nota Azul”, descrevendo-acomo aquela “nota de música que em nós acertará na mosca” (p. 58), relaci-onada à repetição mas, paradoxalmente, capaz de produzir sempre um efei-to idêntico a si mesmo e proteger o sujeito do tédio e da monotonia.

Estas proposições, abordando a relação do ser humano com a músi-ca e enfocando, especialmente, as funções da atividade musical naestruturação psíquica e no estabelecimento de laços entre o bebê e seuscuidadores, vêm sendo objeto de interesse e estudo ao longo de minha for-mação profissional, levando-me a desenvolver, sobre o tema, projetos e pes-quisas que deram origem a trabalhos de mestrado e doutorado. Neste últi-mo, observando e coordenando grupos compostos por bebês e seuscuidadores, cujo objetivo era oferecer-lhes experiências musicais iniciais, eentrevistando mães, familiares e monitores de instituições, foi possível co-

12 DIDIER-WEILL, Alain. Nota Azul: Freud, Lacan e a arte. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1997.13 Idem nota 10.

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nhecer um pouco as idéias destes sujeitos sobre as funções da atividademusical para o bebê. De forma geral, se poderia dizer, a partir do discursodestes sujeitos, em articulação às proposições sobre o tema, elaboradaspor autores diversos a partir da psicanálise, que os efeitos da música para obebê, no contexto de uma atividade estruturada, poderiam ser sintetizadosem três grupos de aspectos enfocados: lúdicos, “preventivos” e estruturantes.Considera-se nesta perspectiva não apenas a música como forma artísticaelaborada, mas como toda a sonoridade que envolve a relação mãe-bebê,em especial a musicalidade da voz, que a partir do “manhês”, do choro e dosbalbucios, vai adquirir formas elaboradas como o canto e a palavra.

Mães ou outros sujeitos exercendo, em relação aos bebês acompa-nhados nos grupos, a função materna, relatam a importância que creditamàs atividades musicais que vivenciam nos encontros, enfatizando seus efei-tos sobre os bebês e sobre si mesmos. Com freqüência, mencionam queestas atividades são “terapêuticas”, por proporcionarem momentos nos quaispodem dedicar inteiramente sua atenção aos bebês. Este aspecto da ativi-dade musical com bebês é enfatizado também por diversos autores14 15, queressaltam que, de fato, tais vivências podem constituir-se em elementos deestreitamento dos laços do bebê com sua mãe ou substitutos maternos.Ana Lúcia Jorge16, por exemplo, descreve as funções das canções de ninarna relação mãe-bebê e ressalta que estas permitem, aos sujeitos envolvi-dos, a elaboração da separação que o dormir representa. Nesta mesmalinha, estudos desenvolvidos em laboratório demonstram que, aproximada-mente aos seis meses de idade, os bebês respondem de modos diversos àaudição de canções de ninar e instrumentais, reagindo às primeiras com

14 Idem nota 7.15 ROGERS, S. Theories of child developmental and musical ability. In: WILSON, Frank;ROEHMANN, Franz (ed) Music and Child Development: the biology of music making.Proceedings of the 1987 Denver Conference. St. Louis, MMB Music, p. 1-10, 1990.16 JORGE, Ana Lúcia. O Acalanto e o Horror. São Paulo: Escuta, 1988.

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comportamento mais autofocado e que, poderíamos pensar, facilita o ador-mecer, e às segundas com maior atenção ao mundo externo17.

Ao mesmo tempo, não podemos esquecer o contraponto, observadonas canções de ninar, entre textos muitas vezes agressivos e melodias sua-ves, o que permite à mãe expressar a ambivalência inerente à relação com obebê. Aspecto discutido por Donald Winnicott18, que cita, por exemplo, aletra de uma canção inglesa, sobreposta a uma melodia terna, mundialmen-te conhecida, cuja tradução diz: “Balance o bebê, no topo da árvore, quandoo vento soprar o berço vai balançar, quando o galho quebrar, o berço cairá, eo bebê vai cair, com berço e tudo” (p. 352).

A contribuição de Winnicott à compreensão da importância da rela-ção dos bebês com a música também está relacionada à sua conceituaçãode objetos e fenômenos transicionais e, particularmente, de espaço potenci-al. Poderíamos pensar que as atividades musicais, quando desenvolvidascom bebês em conjunto com seus cuidadores, auxiliam na criação desteespaço, proporcionando um momento lúdico em que pode ser experimenta-do o agir criativo e estabelecidas trocas significativas entre mãe e bebê.

Relatos sobre a importância da música na relação mãe-bebê, ou subs-tituto-materno-bebê, estabelecendo momentos que podemos relacionar aoespaço potencial, aparecem repetidas vezes nas entrevistas concedidas pormães e monitoras das instituições. Como diz uma das mães: “Era um mo-mento tão curtido, da semana, que eu pensava: ‘E lá vamos…’ Que era sómeu e dela, entende?”, discurso em que podemos perceber dois aspectosimportantes relativos ao espaço potencial: o prazer compartilhado e o fatode ser uma experiência vivenciada como particular daquela relação especí-fica.

17 TREVARTHEN, Colwyn; AITKEN, Kenneth. Infant Intersubjectivity: Research, Theory, andClinical Applications. Journal of Child Psychobiology and Psychiatry and Allied Disciplines.Cambridge University Press, v. 42, n. 1, p. 3-48, 2001.18 WINNICOTT, Donald W. Textos Selecionados: da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro:Francisco Alves Editora, 1993.

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Se tais aspectos são importantes para a estruturação psíquica dequalquer bebê, uma atenção aos mesmos torna-se ainda mais relevante quan-do nos deparamos com situações em que os laços entre o bebê e a mãepodem estar em risco, como ocorre na depressão materna. Uma das mãesentrevistadas comenta este aspecto, enfatizando a importância da atividademusical no resgate de seus laços com o filho, fragilizados pela depressãopuerperal. Não podemos esquecer, como ressalta Maria do CarmoCamarotti19, que a musicalidade da voz, essencial à constituição subjetivado bebê, é um dos aspectos alterados na depressão. Nestes casos, portan-to, as atividades musicais podem funcionar como um meio de auxiliar noresgate à “musicalidade perdida” da mãe e no re-estabelecimento de seuslaços com o bebê, contribuindo, de certa forma, para a minimização de ris-cos de instauração de futuras patologias psíquicas.

Tendo em vista estas proposições, as atividades musicais podem serestruturantes especialmente para os bebês institucionalizados, que muitasvezes são encaminhados aos grupos pela dificuldade de estabelecer laçoscom seus cuidadores ou por apresentarem déficits em termos do desenvolvi-mento esperado para sua faixa etária. Para estes bebês, a atividade musi-cal, enquanto um “momento de exlcusividade, em que é possível se concen-trar só neles”, como refere uma monitora de abrigo entrevistada, torna-separticularmente importante.

Finalmente, ao abordar os efeitos da música sobre o bebê, é impor-tante lembrar a relação entre a música e a musicalidade da voz materna, o“manhês”, tradução para nosso idioma do fenômeno denominado por AnneFernald, uma das fundadoras da psicolingüística, como Motherese ou InfantDirected Speech. Este modo de falar, que Didier-Weill20, citando Quignard,descreve como “sonata materna”, é caracteristicamente empregado pelas

19 CAMAROTTI, Maria do Carmo. “Que olhar tão triste o de mamãe” – O bebê diante dadepressão materna. In: CAMAROTTI, Maria do Carmo (org). Atendimento ao Bebê: umaabordagem interdisciplinar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.20 DIDIER-WEILL, Alain. Invocations: Dionysos, Moïse, Saint Paul et Freud. Paris: Calmann-Lévy, 1998.

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mães para se dirigirem aos bebês e, como sabemos, utiliza, em relação àforma de expressão observada nas interações entre adultos ou crianças maisvelhas, tons mais agudos, tempos mais lentos e pronúncia mais curta21.Marie-Christine Laznik22 lembra ainda que o “manhês” “apresenta uma sériede características específicas de gramática, de pontuação, de escansão, euma prosódia especial” (p. 89), na qual estão presentes estupefação e ale-gria, mostrando-se uma forma de dirigir-se ao bebê que é essencial para queos sons sejam percebidos por seu registro sensorial. Trevarthen e Aitken23

ressaltam ainda que este modo de comunicação é não referencial, uma vezque a especificação de qualidade dos objetos não é seu principal objetivo,mas sim responder e afirmar o interesse do bebê na protoconversação,engajando sua atenção, comunicando afeto e facilitando a aquisição da lin-guagem.

A musicalidade da voz é, portanto, aspecto indispensável à constitui-ção subjetiva, mostrando-se um alicerce imprescindível para que outrossignificantes possam se inscrever e para que a criança venha a, no futuro,fazer-se portadora de uma palavra própria, apresentando-se como sujeito dodesejo.

Em determinados momentos, porém, é muito possível que este sujei-to se depare com situações que evocarão as experiências de comunicaçãoprimordial com sua mãe e, então, a música poderá constituir-se em umaforma de fazer-se compreendido “no mais além da palavra”, como diz PauloCosta Lima24. Buscar a música como forma de expressão, portanto, podeser um modo de re-evocar experiências anteriores à possibilidade de repre-sentação, extremamente “primitivas” do ponto de vista da relação do bebêhumano com a mãe, ou substituto materno, enquanto Outro primordial.

21 Idem nota 17.22 LAZNIK, Marie-Christine. A voz como primeiro objeto da pulsão. Estilos da clínica. SãoPaulo, USP-IP, vol.1, n° 1, p. 80-93, 1996.23 Idem nota 17.24 Idem nota 9.

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Nestes pressupostos encontramos, talvez, uma das explicações paraa importância atribuída às atividades musicais pelos sujeitos entrevistados,onde se evidenciam casos de mães, pais e monitoras que, através das can-ções, estabelecem com seus bebês momentos importantes. Sempre res-saltando que “não são músicos”, ou que “não entendem nada de música”, emuitas vezes quase se desculpando pela relevância que creditam à músicaem suas vidas. Estes sujeitos evocam, em relação a esta forma artística,experiências que poderiam ser relacionadas à “Nota Azul”. Algo que faz comque determinada música “entre na gente”, como diz uma das monitoras en-trevistadas, ou se torne parte fundamental da “trilha sonora” de uma dasmães. Como diz outra mãe escutada, a atividade musical estruturada permi-te “novas formas de ver velhas coisas”, talvez por possibilitar que possareapropriar-se de melodias e canções que, em determinado momento de suavida, tiveram importante significado, e depois foram “esquecidas”, para se-rem relembradas quando do nascimento da filha.

Neste processo de “reapropriação”, “coisas que estavam nawinchester”, como conta uma das mães, são resgatadas, e elementos datradição cultural, sentimentos da mãe em relação ao filho e, em especial, odesejo e o lugar simbólico ocupado por este em sua família, são veiculados,tendo como efeito um processo que permite a inserção do bebê na rede designificantes construída e legada pelos pais e seus antecedentes. A “músicafamiliar”, imprescindível para que esta criança venha a, no futuro, compor suaprópria música, se assim se pode dizer. Da sonoridade inicial da voz àscanções escolhidas para o bebê, as mães ou substitutos maternos, se apre-sentam a este, lhe apresentam seu mundo e o apresentam a sua comunida-de e cultura.

STAHLSCHMIDT, A. P. M. S. Nos prelúdios da vida.

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SEÇÃO TEMÁTICA

MÚSICA E LETRA

Maria Beatriz Alencastro KallfelzMaria Elisabeth Tubino

Otrabalho com a música e os bebês é um tema que despertou onosso interesse, a partir do projeto “Sinfonia de bebês”, o que noslevou a pensar sobre os efeitos que a música pode ter para os be-

bês que ainda não adquiriram a fala. Didier-Weill nos diz que: “o poder damúsica é poder de comemoração do tempo primordial em que o sujeito,antes de receber a palavra, recebe previamente uma base, uma raiz sobre aqual poderá, em segundo lugar, germinar a palavra...”

Pois é nesta relação primordial que a pequena criança percebe navoz da mãe esta nota musical, antes de compreender o sentido dos fonemas.

Sabemos que para quem trabalha com música, é evidente que a vozé o primeiro instrumento musical, sendo as mãos o instrumento de percus-são mais antigo. Desde os povos primitivos, tais instrumentos, por meio dosmovimentos e da voz, permitem a expressão direta de emoções.

Buscamos na origem da música a voz e as mãos, por serem considera-das os primeiros instrumentos, justamente por identificar o quanto é fundamen-tal para o bebê o contato e a voz materna nos primeiros momentos de vida. Vozque, através de palavras ritmadas e cadências sonoras, constrói um estilomusical, o “mamanhês”, que reconhecemos nesta melodiosa fala materna.Que, ao mesmo tempo, acalanta e inscreve marcas no corpo do bebê, asquais a mãe, ao exercer sua função de dar sentido às manifestações corpo-rais do filho, torna significantes. E pode, então, supor que este está lhe enten-dendo e dar-lhe o espaço necessário para que possa manifestar seu desejo.

Esta forma de comunicação inicial da mãe com seu bebê desdobra-se, posteriormente, nos jogos orais, que darão origem às brincadeiras deinfância, onde se cruzam, mais uma vez, movimento e linguagem.

Ouvimos sempre falar de Freud como alguém avesso à música, em-bora um admirador das artes. Mas não podemos tomar isso ao pé da letra,

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pois basta acompanhar a construção da sua obra, onde faz uma leiturana dimensão sonora de todas as palavras, nomes e expressões, orien-tando sua escuta mais além do olhar, ou seja, num mais além do senti-do. Freud deixava falar para escutar e falar para se escutar. A linguagemcomo determinante das representações de palavra e coisa despertouseu interesse onde a imagem acústica desempenha um papel funda-mental.

Vimos, então, que a acústica pré determina e condiciona toda a re-presentação, compreendida como visual, tátil e acústica, onde o ouvido, oolho e a mão são, por conseguinte, três sentidos interessados pela escritu-ra e sua leitura. Podemos então dizer que há uma íntima relação entre apalavra e a música. Sendo que a mesma melodia pode ser empregada comos mais diversos textos, no que podemos observar uma tênue relação entreo som musical e o som articulado. Palavras que, com alternância de acen-tos tônicos, se desmancham em fonemas, em puros sons, que requerem asutileza de uma escuta, considerando as escansões, as entonações, osilêncio ou mesmo as múltiplas seduções sonoras.

Didier-Weill, no seu estudo da pulsão, descreve seu circuito, que sedesdobra em diferentes torções entre o sujeito e o grande Outro. É da or-dem da pulsão invocante e seu retorno em pulsão de escuta. Processo quepodemos ilustrar através do mito de Ulysses e as sereias, onde se eviden-cia esse tempo primordial que aqui discutimos.

Vejamos então o mito: Para escutar o canto das sereias, Ulyssestampona os ouvidos de seus marujos com cera. Como compreender isso?Ulysses se dispõe a ouvir a pulsão invocante, o canto das sereias. Mas aoque ele se dispõe? Porque quando vai ouvir o canto das sereias, a históriaque ele conta é que, ao gritar aos seus marujos, ele diz: “Parem! Fiquemosaqui com as sereias!”. Mas ele toma suas precauções. Ele sabe que nãoserá escutado. O mito ilustra como Ulysses se colocou em posição depoder escutar, na medida em que se assegurou que não poderia falar: ele seassegurou de que não teria esse retorno da pulsão. Que não teria um sujei-to suposto ouvir, por causa dos tampões de cera.

KALLFELZ, M. B. A. E TUBINO, M. E. Música e letra.

14 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 165, jan. 2008.

SEÇÃO TEMÁTICA

Se a música tem efeito, é porque é como se ela, de fato, trouxesseuma resposta, fazendo surgir uma questão no sujeito. Há uma inversão, amúsica agora se torna uma questão que o determina enquanto sujeito aresponder.

Logo, o inconsciente é originariamente constituído de letras, as quaissão acústicas, podendo a imagem secundariamente dar-lhe figuração, ondea letra, fazendo uma borda, circunscreve e dá sentido ao puro som.

Estas são algumas considerações iniciais, pois ainda resta muito aser investigado sobre que efeitos tem a música, ou a musicalidade da voz,na relação do sujeito com o Outro primordial.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DIDIER-WEILL, Alain. Os Três Tempos da Lei: O mandamento siderante, a injunçãodo supereu e a invocação musical. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

15C. da APPOA, Porto Alegre, n. 165, jan. 2008.

JAM SESSION

Roberto Henrique Amorim de Medeiros

“Raspas e restos me interessam”Cazuza.

De todas as manifestações artísticas produzidas pelo homem a músi-ca é a mais perfeita. Assim falou Schopenhauer. Como o vinho, elatem o dom de entorpecer e de fazer os homens felizes. Mas, você já

viu um músico realmente entorpecido de felicidade?Em muitas ocasiões tocar música pode ser apenas uma obrigação,

um ofício. Em outras, uma forma de lazer solitário, quando se dedilha, sesopra ou se percute descompromissadamente um instrumento. Mas, se al-guém usa esse instrumento para livremente criar e harmonizar com um ou-tro, e mais outro, e ainda outro e outros tantos quanto possíveis, dedilhados,soprados e percutidos por mais músicos, você encontra aí um músico quechamou seus amigos para brincar. Essa brincadeira é muito séria e temnome. Chama-se Jam Session.

O momento mais descontraído e prazeroso para um músico duranteum ensaio ou mesmo uma apresentação ao vivo é certamente quando ocorreuma jam. Em inglês o termo pode ser traduzido como confusão, situaçãodifícil. No contexto musical, fazer uma jam significa sair tocando inesperada-mente qualquer frase ou acorde e ser seguido instantaneamente pelos ou-tros músicos, sem combinações prévias. Ou seja, levar uma banda a tocarjunto aquilo que deu “na telha” e na hora. É um momento de improvisação, noqual todos seguem um tema musical, vindo de algum lugar que acaba to-mando toda a banda e que não tem hora para acabar.

Para quem está imaginando uma confusão sonora, como o termo po-deria sugerir, posso dizer que uma jam passa bem longe disso. É bem verda-de que nem sempre qualquer banda sai fazendo uma jam, pois essa moda-lidade depende de algum percurso na prática musical, uma “estrada”, como

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no melhor jargão do ramo se diria. Para que a música advenha desse proce-dimento, depende de que se saiba tocar um instrumento e de que haja habi-lidade para se deixar levar pelo que está acontecendo musicalmente entretodos os integrantes do grupo. De modo paradoxal, parece também depen-der de um desprendimento das normas e convenções da linguagem musicale, ao mesmo tempo, de uma profunda ligação com o outro. Daí, simples-mente, faz-se o som. E ele é eterno enquanto dura.

Mas, por que tocar em grupo uma música que não se sabe bem deonde veio e para onde vai, pode ser mais prazeroso que apresentar uma peçaensaiada, bem executada e sem erros perante um público? Sim, porque najam session ocorre o erro, a possível desafinação, a nota dada “na trave” poralguém, fatos que abalam os ouvidos do amante da boa música. Mesmoassim ninguém parece se incomodar e o final da sessão normalmente se dácom uma nota em uníssono, muito barulho da bateria, um olhar cúmpliceentre os músicos enquanto esperam o som de seus últimos acordes esvaí-rem-se e, após o silêncio momentâneo, as gargalhadas, os abraços e asconfraternizações. Aliás, essa cena final é praticamente o selo de autentici-dade de que você presenciou uma genuína jam session.

Se você acha que nunca teve esta experiência, pode apenas não terpercebido, pois há uma certa cumplicidade entre os músicos que a dissimu-la quando realizada em público. Mas o sorriso final entre eles é indefectível.Porém, há uma jam registrada no CD intitulado Puro Êxtase (WEA), lançadoem 1998 pela banda de rock Barão Vermelho. Escute até o final – a faixaestá escondida – e ouça a reação dos músicos para comprovar os efeitos.

É só para isso que serve essa tal jam session? Para um bando – ouuma banda – de músicos ficar brincando no estúdio ou no palco? Grossomodo, sim. A maioria das produções de uma jam se perde. O objetivo da jamparece se cumprir apenas pelo ato de sua realização. Ao mesmo tempo, éum instante sublime de transcendência e transitoriedade o que parece uniros seus integrantes.

Entretanto, uma boa idéia pode surgir de uma jam. Discos inteirospodem sair a partir de jam sessions. O maior entrosamento entre os inte-

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grantes do grupo e a aprendizagem pessoal de cada músico sobre novastécnicas, escalas, jeitos de tocar e aprender a tocar com o outro, tambémpodem ser resultados da prática da jam session.

Pois bem, o que essa sessão jam interessa ao psicanalista?No tempo deste ensaio escrito pretendo apenas deixar que alguns

dos elementos daquele ensaio musical surjam como disparadores de futuraspesquisas. Inspiro-me, assim, na própria condição aprés cup da possibilida-de de produção e aprendizagem a partir de uma jam session.

Minha experiência como músico, que toca com outros músicos, mos-trou-me que, por mais ensaios que se façam para que uma apresentaçãosaia bonita e sem surpresas desagradáveis, duas coisas fatalmente sempreacontecem. Uma: embora os ensaios sejam exaustivos e todos os proble-mas de execução da banda sejam resolvidos antes da apresentação, sem-pre alguma coisa não planejada ocorre durante o show. Duas: é impressio-nante que, por mais horas de ensaio que se tenha levado para a bandaexecutá-la com perfeição, uma música só vai amadurecer depois de sertocada para valer no palco e ao vivo. A partir disso apresentam-se duasevidências, uma estendida ao método científico e outra sobre os efeitos daexperiência na aprendizagem: o controle das variáveis sempre falha e a apren-dizagem do músico, assim como do grupo, se dá no “só depois”.

Em termos psicanalíticos, a jam session poderia ser assim descrita:durante a sessão onde se executa uma peça musical, subitamente um dosmúsicos faz uma variação supostamente improvisada na música – umaassociação advinda de um registro pré-consciente – e a dirige à banda, exe-cutando-a com seu instrumento. Os outros, captados por esta produção doinconsciente que venceu a primeira barreira do recalque (Ics-Pcs), acompa-nham-na instantaneamente e seguem associando outros elementos a ela,produtos, agora, do seu pré-consciente (Pcs-Cs).

Parece claro que estamos diante de um surgimento do inconscientede um sujeito, que capta no mesmo lance o inconsciente dos demais. Ofenômeno que se dá na situação da jam session teria a mesma estrutura dochiste?

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É o ouvido que sustenta a sessão através da qualidade da sua funçãode escuta. Numa sessão jam há o músico. Um músico tem ouvido musical.Numa sessão psicanalítica há o psicanalista. Um psicanalista tem ouvidopsicanalítico. O músico escuta notas. O psicanalista escuta palavras. Emambos os casos, sons e, portanto, significantes.

Mas um psicanalista não é um músico e um músico não é um psica-nalista. Nem uma coisa é condição para a outra. O que quero evidenciarnesse paralelismo pouco convencional é um aspecto que se faz presentenos dois tipos de sessão – a musical e a psicanalítica – e que aparenta otipo de escuta que aparenta sustentar ambas. Trata-se do que Freud repre-sentou com o termo Einfälle (Freud,1974).

O ouvido do analista em uma sessão de análise busca uma formaçãodiscursiva específica, pois é surdo para os “blablablás” do cotidiano sobre asmazelas mundanas de seu paciente, mas é “todo ouvidos” para um surgimentoespontâneo, de ruptura, de súbitos e transitórios ressurgimentos, ou seja, aEinfälle. O psicanalista as busca e faz o analisante trabalhar; o músico, seas escuta, pode trabalhar a partir dela e fazer o grupo produzir.

Através da Einfälle opera-se com método psicanalítico. Método detratamento, de supervisão, de estudo (o cartel é um exemplo) e método deformação permanente do analista enquanto aquele que trata, supervisiona eforma(-se), pelas formações do inconsciente. E para operar, basta ter à mãoum dispositivo de fala, escuta e escrita.

Mas esse método presta apenas à psicanálise? Considerando o quese costuma valorizar sob a alcunha de método científico, essa é uma per-gunta que se transforma rapidamente em afirmação. Pensemos, contudo.Longe da presença de um psicanalista o ser humano esquece em casa osujeito que o constitui? Não há transferência a menos que se avise previa-mente que no encontro o que vai rolar é psicanálise? Não se enunciando apalavra mágica “psicanálise” ninguém mais sonha, erra e ri?

Em caso de negação a todas as perguntas acima, como admitir –junto com o discurso científico – essa clivagem no lugar da divisão dosujeito, para ficarmos só com a parte que pensa que sabe tudo? E deixar-

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mos de fora a parte que pensa quem pensa que sabe tudo?O psicanalista escuta um sujeito no divã. Acredita no (bem)dito saber

insabido, trabalha com o (mal)dito e com o dizer, com o Real, com o semsentido (mas desde já, sentido!). É mesmo um fora de discurso (da ciência,do mestre, da histérica)! Atua na adversidade e produz com o resto, com assobras do discurso (Lacan, 1988).

Em nome da racionalidade, uma parte significativa da experiência dosujeito vai fora: os achados do saber inconsciente. Em minha opinião, é o típicocaso do bebê com a água do banho indo ralo abaixo. Descuido que o métodode pesquisa comemorada com o adjetivo “científica” comete diariamente.

O filme Dogma (View Askew Productions, 1999), tem como foco acrítica sarcástica e inquietante sobre os princípios e axiomas da igreja cató-lica. Num cenário povoado por anjos decaídos e seres humanos, uma daspersonagens que se encontra banida do paraíso e vivendo mundanamente éa Musa Inspiradora, uma dançarina de bordel que se lamenta por não conse-guir inspirar a si mesma e ficar rica. Na versão dublada em português, osdemais personagens a chamam simplesmente de Musa e omite-se o seunome original: Serendipity. Essa omissão repete o que aconteceu com otermo no âmbito do discurso da ciência, tendo em vista que ele significa oque se forcluiu da metodologia científica e que curiosamente tem relaçãopróxima ao método inaugurado por Freud. A serendipidade designa as des-cobertas ocasionais e fortuitas, de caráter acidental e não intencional. Apsicanálise, entretanto, nos auxilia a relativizar essa definição na medida emque comprova com seu método que não se trata apenas de boa sorte etampouco falta de intenção, se está em cena o sujeito do inconsciente (Caon,1994). Mesmo comprovando-se a intencionalidade, a serendipidade é umconceito deixado de lado no discurso da ciência, do mesmo modo que secostuma qualificar como bobagens ou idéias de somenos importância tudoaquilo que não advenha da razão.

Vivemos em pleno elogio da racionalidade. Ora, se ainda encontra-mos com facilidade resquícios de epistemes arcaicas na nossa cultura pós-moderna como a atribuição do estatuto de coisa a certas palavras – experi-

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mente dizer com convicção a palavra “câncer” ou invocar o nome “daqueleque não deve ser nomeado” em certos locais – porque não estaria tambémaí, na recusa da Einfälle como achado valoroso, o medo dos maus espíritosque corrompem o corpo? – preocupação metódica de Descartes. Aonde foiparar o espírito do “ousar saber”, resgatado por Kant?

A questão tem importância porque em nosso tempo o que a ciênciadespreza também costuma ficar em segundo plano no interesse e na produ-ção da cultura. Assim como uma jam session, escondida e sem créditos noCD da banda de rock, o filme “8 Miles -Rua das Ilusões”, (Universal, 2002),que retrata uma parte da vida de um rapper norte-americano chamado Eminem,esconde nos “extras” talvez o que mais interessante tenha no filme. O roteirofoi montado para evidenciar como este rapper, branco, ganhou seu espaço erespeito participando das batalhas de rap no gueto onde nasceu. Nessasbatalhas o rapper mostra sua habilidade na rima improvisada e sai vencedorse conseguir humilhar o oponente com sua verve repentista. Um desafiomuito próximo da “trova” gaúcha ou da “embolada” nordestina. No filme,Eminem, tal qual um Rocky Balboa, apanha no início e vai à forra nas últimascenas. Você desconfia dessa história, sabe que tudo foi armado para criar oefeito do herói tragicômico hollywoodiano: horror e piedade no início e triunfoapoteótico no final. Entretanto, há os “extras” do DVD. No cinema, não háacesso do público a uma brincadeira que o diretor do filme resolveu fazer:nos intervalos das gravações convidou rappers de verdade da redondeza – eque participaram como coadjuvantes no filme, para uma batalha de rap pravaler contra O rapper, Eminem. Este simplesmente “finaliza” um por um dosdesafiantes e desmente a impressão de artificialidade gerada pelo filme. Porque isso ficou só nos “extras”? Afinal, se a relação de Eminem com seusaber inconsciente tem esse vigor, pra que deixar isso velado, em segundoplano, nos “extras”? Acredite, para mim, foram eles que deram substânciaao filme. Alugue o DVD, não vá ao cinema.

Assim como esse, multiplica-se os exemplos no mundo da arte naépoca de sua reprodutibilidade técnica e nos modernos processos desubjetivação.

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Num mundo onde a racionalidade científica mostra sua astenia paralidar com a complexidade, penso que cabe aos psicanalistas sustentar, semqualquer ordem de constrangimentos, o “discurso do método” freudiano napesquisa científica. Em qualquer contexto, seja no acadêmico, artístico oude outras instituições. O inconsciente freudiano é também o nosso.

A jam session é trazida aqui como um dos encontros onde a produ-ção ou a pura aprendizagem a partir do inconsciente tem lugar. Como produ-ção, há a música tocada e a composição musical. Como aprendizagem, háuma gama de possibilidades para o músico e para o grupo. Banda que nãofaz jam session não tem Outrosamento1. Aceitar, ainda que por pouco tem-po, a alienação ao desejo do outro não é algo comum hoje em dia. Saberrespeitar o tempo do outro e cooperar, com a própria singularidade, para umprojeto comum também se aprende nas práticas onde o sujeito está incluí-do.

Observe-se que na jam está bem à mão o dispositivo necessário defala, escuta e escrita: fala-se com o instrumento (e muitos músicos sabemfazê-lo como ninguém), escuta-se com o ouvido musical e escreve-se umamúsica. Se você já foi escutar aquela gravação que recomendei, já consta-tou o gozo, o “puro êxtase”, proporcionado pelo exercício, a descoberta e aaprendizagem com o inconsciente. Uma brincadeira. Mas muito séria, comose dizia. Como num chiste, o resultado pode ser a good idea or just a goodtime! You live, you learn!

Por que mesmo as crianças não parecem mais se divertir com a Es-cola?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

8 MILES-RUA DAS ILUSÕES. Direção de Curtis Hanson, Estados Unidos: Uni-versal Home Vídeo, DVD, 110 min, 2002.

1 Significante-mestre produzido pelo colega de cartel Ubirajara Cardoso que assinala o papeldo outro (e do Outro) como fundamental para o trabalho em grupo.

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SEÇÃO TEMÁTICA

CAON, J. L. “O pesquisador psicanalítico e a situação psicanalítica de pesquisa”,In Psicologia: Reflexão e Crítica, 7, 145-174, 1994.

DOGMA. Direção de Kevin Smith, Estados Unidos: View Askew Productions, DVD,130 min, 1999.

FREUD, S. (1901). “Sobre a psicopatologia da vida cotidiana” In: Obras Psicológi-cas Completas Edição Standard Brasileira, vol VI; Rio de Janeiro: Imago Edi-tora, 1974.

LACAN, J. “A psiquiatria inglesa e a guerra” In: Escritos; Rio de Janeiro: JorgeZahar Editor, 1998.

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PSICANÁLISE: ALGUMAS NOTAS

Heloisa Helena Marcon

Fiquei muito feliz ao saber que esse número do Correio da APPOAtrataria das interfaces entre psicanálise e música e ainda mais felizde poder contribuir com este pequeno ensaio.Uma interface é aquela que aproxima a psicanálise da música através

da musicalidade dos significantes – aquela que se sente quando se experi-menta ler, ou melhor, escutar, James Joyce.1

Uma outra, mas que, seguramente, tem relação com a interface re-cém citada diz respeito à música em geral, isto é, enquanto uma canção que

* O que diz na tira do Snoopy é: “é incrível o efeito de Chopin sobre certas pessoas”.1 Ver “Estranha vagância na língua” de Marta Pedó in: Revista da Associação Psicanalítica dePorto Alegre – n.31, 2006, p.106-114.

MARCON, H. H. Psicanálise: algumas notas.

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é escutada por um sujeito e que lhe toca de uma maneira particular – comona tira do Snoopy acima. É disso que trata esse pequeno ensaio. Assimsendo, é uma retomada do artigo “Notas da Pulsão” que preparei para aJornada da APPOA “Fundamentos da Psicanálise2“.

Que coisa é essa que tem a música que lhe permite tocar de umaforma muito forte e muito intima um sujeito? E por que isso interessa àpsicanálise?

Essa coisa é um poder, um poder de afetação, poder esse que épróprio à música pela sua intraduzibilidade. É impossível traduzir uma músi-ca, isto é, falar uma música; ela nos afeta e é disso que podemos falar. E, sefalamos disso numa análise, provavelmente seja uma experiência fecunda eespecial. Por que? Porque a musica, quando verdadeiramente toca um sujei-to a ponto de lhe fazer falar disso, traz à tona a base da palavra sobre a qualestá fundado esse sujeito falante, ou seja, traz à tona o traço unário. O traçounário é essa “inscrição primordial, sem mediação do imaginário, do simbó-lico no real”. (Didier-Weill, 1997, p.240) Diz respeito a um tempo primordialda relação do sujeito com o Outro antes de receber a palavra como represen-tação. O que está ali é essa dimensão da palavra enquanto música, enquan-to puro real, portanto, enquanto um certo excesso quanto à possibilidade designificação. E é justamente “o que excede a possibilidade de ser assumidopela palavra [que] persiste na música”. (Didier-Weill, 1997, p.243)

A música, portanto, pode propiciar a um sujeito que é verdadeiramen-te tocado por ela de sentir a existência dessa marca primeira: o traço unário.A música é uma comemoração dessa marca! Essa marca que tem algo deexcessivo real (por isso intraduzível), mas que funda a base da palavra en-quanto representação. Como efeito do recalcamento primário, o traço unárioresta como marca. Mas como marca que resta, se faz sentir. Faz-se sentirna dimensão musical da linguagem.

2 Ver “Notas da Pulsão” in: Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – n.31, 2006,p.68-75.

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Sabemos que uma das fontes de sintoma e de sofrimento para umsujeito é o excesso de sentido. Excesso de sentido – presente na dimensãode representação ou de palavra da linguagem – que o eu (moi) se encarregade produzir para evitar, justamente, de ser afetado por algo desse real exces-sivo e intraduzível. Mas a música tem o poder de afetar e de propiciar aosujeito tocado com ela de conectar-se com a existência do traço unário, deconectar-se com a dimensão musical da linguagem, fazendo comparecertambém um outro eu (je) nessa fala e com isso produzindo movimentos nacadeia significante, movimentos, por excelência, psicanalíticos!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DIDIER-WEILL, Alain. Os tres tempos da lei: o mandamento siderante, a injunçãodo supereu e a invicação musical. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 1997, p.235-265.

PEDÓ, Marta. “Estranha vagância na língua”, in: Revista da Associação Psicana-lítica de Porto Alegre – n.31, 2006, p.106-114.)

MARCON, H. H. Psicanálise: algumas notas.

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SEÇÃO DEBATES

“2 FILHOS DE FRANCISCO”E MEU GOSTO PELA MÚSICA SERTANEJA1

Contardo Calligaris

Confesso que sempre gostei de música country.Na trilha sonora da minha infância, na Itália do começo dos anos 50,destacavam-se duas músicas do grande Roy Acuff: “Night Train to

Memphis” (o trem noturno para Memphis), que é uma invitação à viagem, e“That’s what Makes the Jukebox Play” (é isto o que faz tocar a jukebox), queé uma arranca-lágrimas. Penei para transcrever as letras; depois disso, can-tava junto (para desespero de meus familiares).

Mais tarde, gostando do cinema western, fui tomado de paixão porGene Autry. Traduzir western por bangue-bangue é péssimo: na temáticawestern, como na country, o que importa não são os tiros, mas a vontade decolocar o pé na estrada, as insídias do caminho (bandidos, neve e sol dodeserto) e, é claro, a saudade.

Depois de um período em que preferi a canção italiana e o pop, desco-bri Bob Dylan, em 1964, com “The Times They Are A-Changin’” (os temposestão mudando), primeiro hino da contracultura. Bob Dylan não é só umcantor country, mas foi graças a ele (e a James Taylor -”Sweet Baby James”ainda é um de meus discos preferidos) que voltei à minha paixão da infância.Desde então, sou fã de Willie Nelson.

Logicamente, uma vez instalado no Brasil no fim dos anos 80, a músi-ca sertaneja me conquistou. Mas meu gosto era inconfessável: nos meiosque eu freqüentava, escutar Leandro e Leonardo e, logo depois, Zezé diCamargo e Luciano era considerado um sinal de extrema vulgaridade musi-cal. Minha simpatia pelo country americano era aceitável, mas gostar dossertanejos nacionais, isso era outra história.

1 Texto publicado no jornal Folha de São Paulo em 01 de setembro de 2005.

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Ora, o Brasil, que eu saiba, é o único país que produziu e produz umamúsica country (a sertaneja) que rivaliza com o country norte-americano. Hárazões para isso: o tamanho e a diversidade do território (que ainda comportaáreas selvagens), o passado bandeirante, a origem de larga parte do povo nasaudosa viagem do imigrante e a urbanização acelerada, que acarreta umabrutal mobilidade geográfica e social (mais viagens e mais saudades). Esserepertório temático country encontrou, no Brasil, o gênio musical que todosverificam na riqueza da MPB.

Aposto que, se nossas duplas sertanejas cantassem em inglês, elastriunfariam em Nashville como triunfam em Barretos. Mas sempre encontroalguém para me “explicar” que a música sertaneja é “caipira”, ou seja, nãotoca aquelas cordas universais do sentimento que fazem a grandeza do countryamericano.

Pois bem, os que acreditam na “inferioridade” da música sertaneja deve-riam assistir a “2 Filhos de Francisco”, o esplêndido filme de Breno Silveira.

A história de Zezé di Camargo e Luciano não é apenas comovedora:ela é a quinta-essência do espírito country (ou sertanejo, tanto faz). Há aroça da infância, que, na saudade da lembrança, aparece como paraíso per-dido, embora fosse pobre e obcecada pela vontade de ir embora (é o desejo“louco” de Francisco para seus filhos). Há, na dureza da vida, o constanteconsolo da música, não como ocasião de devaneio, mas como vontade dedar à experiência a intensidade de um vibrato. Há a estranheza do encontrocom a cidade, a dor de uma mudança que troca a miséria tranqüila do campopela inquieta miséria urbana. Há a errância do menestrel pelo mundo, quecobra um preço, às vezes, fatal. Há a dificuldade de amar e a obstinadapermanência dos afetos básicos, familiares.

Em suma, a história da dupla é um repertório quase completo dostemas de sempre da música country, que canta os sentimentos dos dester-rados, ou seja, de todos nós, que vivemos na viagem entre a saudade e aesperança.

Mais uma questão: na história de Zezé e Luciano, é crucial o desejode Francisco que os filhos se tornassem músicos e que a música os levasse

CALLIGARIS, C. 2 filhos de Francisco...

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SEÇÃO TEMÁTICA

longe, na vida e no mundo. É um pai que tem precedentes ilustres -entreeles, o pai de Mozart, o qual tinha uma vantagem: podia pagar as aulas parao filho. Francisco trocou um porco, uma colheita, sei lá quantos queijos eseu revólver por um violão e uma sanfona para os filhos. Será que ele era“doido”, como pensava o sogro?

Em geral, não se aconselha os pais a terem um desejo tão definidosobre o futuro dos filhos. No entanto, o drama de muitos pais é que nãoconseguem transmitir aos filhos nem sequer a capacidade de desejar (sejalá o que for). E o fato é que Francisco conseguiu passar sua paixão paraMirosmar (Zezé), Emival e Welson (Luciano). Foi um fardo para eles? Pois é,desejar não é de graça.

Enfim, é banal ler, em textos de auto-ajuda, que, à força de desejar, agente consegue: quem não larga o osso é recompensado um dia. Aviso: nãoé verdade. A “loucura” de Francisco e a paixão que ele transmitiu a seusfilhos não garantiam nada: eles poderiam fracassar. A intensidade do desejonão leva necessariamente ao sucesso.

Mesmo assim, há uma boa razão para desejar com força: quase sem-pre, quem não se atreve a querer “doidamente” sofre da única culpa que agente nunca se perdoa, a culpa de não ter ousado viver segundo nosso dese-jo.

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RESENHA

SARGENTO PIMENTA FOREVER

PEREIRA, Robson de Freitas (org.). Sargento PimentaForever. Porto Alegre : Libretos, 2007. 120p.

Foi lançado recentemente um livro home-nageando os 40 anos da aparição do long-play dos Beatles, Sgt. Pepper’s Lonely

Hearts Club Band, marco na historiografia dorock, trombeta que viria anunciar o ano que nãoterminou (como diria Zuenir Ventura sobre 1968).

Sargento Pimenta, organizado por Robsonde Freitas Pereira, editado pela Libretos, com107 páginas, é um feliz encontro textual de quin-ze psicanalistas convocados para escreveremsobre quinze letras.1

Robson inicia a cruzada pedindo a litlle help from his friends. O pedidofoi emoldurado: “Tomar as canções e escrever algo sobre seus efeitos”. Qual-quer gênero de escrita que seguisse uma dupla inscrição: “o que foi feito denós pela música e pelo discurso analítico” (p. 6). Aqui, o diferencial dessaempreitada me parece já desenhado. Os analistas, ao falarem de seu objeto,não deveriam fazê-lo de um lugar externo, mas incluídos como sujeitos emsua própria pesquisa. Os artigos ainda deveriam ser concisos, como umacanção.

De saída, vemos o idealizador submetido à sua proposta. Ele contadois atos falhos cometidos: uma letra foi esquecida e, para uma mesmafaixa, dois convidados. Dois erros que, ao invés de serem corrigidos, foram

1 Quando se traduz Lacan para o português, um dos pontos de encontro com o impossíveldessa missão é quanto à tradução do termo lettré, importante conceito em sua obra para oqual não temos uma palavra que dê conta simultaneamente do duplo sentido inerente emfrancês – carta e letra. Letra no contexto musical talvez seja a melhor aproximação.

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RESENHA

incluídos (exemplo do que se diz a respeito de um sujeito se responsabilizarpelos efeitos do inconsciente2). Outra questão é entregue de bandeja notítulo. Quinze letras apresentam o livro (Sargento Pimenta), no disco eramtreze; foram convocadas duas faixas extras (Penny Lane e Strawberry FieldsForever) para acomodar todos os convidados para a ajuda.

Tomemos o borgeano título de Caleidoscópio que Ana Costa dá à suaintervenção e pensemo-lo como instrumento para a leitura do próprio livro.3 Acada giro se observam formas, estruturas, matizes possíveis de leitura. Osvieses vão sendo tecidos: teóricos (estudamos Lacan, Freud, Goethe, Mallarmée tantos outros via Beatles), críticos (conhecemos mais sobre os Beatles,as razões de seu alcance, de seu fim, seus movimentos, descobertasestilísticas, sonoras), políticos (as ditaduras, argentina e brasileira, perpas-sam a ambientação representando o lado cinza-chumbo daqueles tempos) eclínicos (fragmentos de discurso analítico em que seus autores passam porum mergulho associativo sob a pauta dos Fab Four). Os textos passeiampor esses registros com ênfases diversas. Girando arbitrariamente o calei-doscópio, obteremos alguns instantâneos. Vejamos:

O livro abre com um artigo “prá cima” de Osvaldo Arribas trabalhandoa faixa título do disco, Sgt. Pepper’s lonely hearts club band. Em versãobilíngüe, o autor nos leva a passear e conhecer os meandros do surgimentodo rock argentino sob a influência dos Beatles. Ilustra com uma equivalênciaentre Sargento Pimenta e Patrício Rey e seus redondinhos de ricota (PatrícioRey y sus redonditos de ricota). “Perguntar quem é, ou quem foi, PatrícioRey, é quase como perguntar quem é o Pink de Pink Floyd, ou quem é oPepper, se John ou Paul” (p.17). Antes de nos deixar, lembra a simultaneida-de do disco com a proposição de 9 de outubro de Lacan “que sem sargento,mas com muita pimenta, sem dúvida comoveu as hierarquias da instituiçãopsicanalítica...” (p.18).

2 Também se pode dizer reconhecer-se como sujeito nos efeitos do inconsciente, wo es war,soll ich werden.3 Marcus do Rio nos chamará a atenção aos olhos caleidoscópicos de Lucy.

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RESENHA

Luciano Elia nos provê com uma versão brasileira (“versão brasileiraHerbert Richers”) de Lovely Rita, que se torna “uma adorável (e gostosa)flanelinha que lhe ensina sobre a inexistência da relação sexual”. Com elarevisitará o ano de 1967, em suas palavras uma viragem em sua vida e nomundo: “o que foi Sgt. Pepper’s? A dobradiça de quem veio de antes e passaao depois” (p.78). Depois de protestar o abandono de Freud pelos Beatlesque não o convidam para a festa-capa, conclui que ele (Freud) estava lájustamente por sua ausência. Outro que não se conforma com a substitui-ção da foto de Freud pela de Jung é Oscar Cesarotto, com a diferença de quelivra a cara do quarteto de Liverpool apontando-nos a insidiosa Yoko como aresponsável por tal heresia. Em seu escrito sobre Sgt. Pepper’s lonely heartsclub band (reprise), Oscar cria um divertidíssimo relato, com detalhesinimagináveis, da passagem de Freud por terras americanas, bem como dosBeatles em Monterey.

Giram em torno de buracos4 – feito elepês – três intervenções. De RicardoGoldenberg (A day in the life), de Edson Luiz André de Souza (Fixing a hole) ede Roberto H. Amorim de Medeiros (Being for the benefit of Mr. Kite).

Ricardo interpreta a imagem da capa como a expressão, quase onírica,da dissolução dos Beatles. Eles estariam ali assistindo seu próprio enterro:“Ninguém queria saber, embora todo mundo soubesse, que a Lonely HeartsClub Band tinha vindo enterrar os Beatles” (p.90). Comenta a célebre versãoparanóico-conspiratória da morte de Paul como mais uma expressão dessesaber que não se quer saber, para o qual os próprios rapazes estariam cola-borando. Diz, comentando a capa do álbum seguinte, Abbey Road: “os ca-ras continuavam brincando de assistir ao próprio funeral” (p.92). Maneira pró-xima da experiência lúdica infantil de se esconder e observar sua própriafalta no olhar do outro que o procura.

Edson viaja sobre o furo, produz um escrito analítico-poético. Fala de“uma inundação que abre um deserto” mostrando algo do processo de cria-

4 Noção tão cara à psicanálise, já em Freud com o aspirante umbigo do sonho e central emLacan, de cabo a rabo.

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RESENHA

ção em relação “a consertar um furo que nos constitui”. Consertar, preparar efixar, possibilidades que aponta para to fix. Segue viagem com Mallarmé,lendo trechos da letra como alarmes. Waly Salomão e Duchamp acompa-nham-no até o final: “Fixing a Hole continua a nos perturbar, lembrando dotempo que não temos para as coisas importantes e do quanto nossa parali-sia funciona como obstáculo ao novo” (p.43).

O que teria levado Lennon, a partir dos escritos de um cartaz comanúncio de um circo, a compor uma música? Roberto desenvolve uma teoria(ficção) em que o tal cartaz funciona como uma Madeleine proustiana. Le-vando John a uma viagem ao infantil que o circo evoca em todos nós, mistu-rando os ingredientes de medo, desejo, prazer, mistério e susto. “Não sesabe ao certo quanto tempo se passou até que o menino John voltou de suaincursão através da parede e desenhou uma canção” (p.54).

Ainda no tema do infantil como constituinte em cada um de nós, Marcusdo Rio Teixeira considera a versão que interpreta Lucy in the sky with diamondscomo a descrição de uma viagem lisérgica (LSD) possível, mas simplista.Aposta suas fichas numa polissemia de determinações. Através do estudode cada uma destas (determinações), chega a apontar quem seria Lucy.Apoiado em Lewis Carroll e sua pequena Alice, mostra Lucy como umafigura que condensa pelo menos quatro personagens femininas. As quatro(duas imaginárias e duas reais) orbitando ao redor de uma quinta, que cons-tituiria um ideal feminino prévio a todas elas. É possível fazer aqui uma asso-ciação com o sonho de Freud do Tio Josef, em que ao redor de um traço, abarba amarela, surgem condensados, como nas fotos de Galton, Freud, seupai e o irmão deste.

Dois estrangeiros fazem parte dessa coletânea – auto-definidos comonão-beatlemaníacos. Algum problema nisso? Nenhum, já que é justamentedesde esse ponto que analisam o que é ser nascido num mundo pós-beatles.E a estrangeiridade é o tema que norteia os dois escritos.

Sobre Within you, without you, Otávio Augusto Winck Nunes trabalhaa estrangeiridade sob uma ótica espacial. Os acordes dissonantes nessamúsica de George Harrisson lhe servem para discutir as polaridades do um e

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RESENHA

do outro, do indivíduo e do coletivo, as relações entre culturas colonizadora(aqui a inglesa) e colonizada (a indiana) apontando nesse plano o que chamade uma fronteira porosa.

Marieta Madeira Rodrigues, numa toada semelhante, enfatiza aestrangeiridade no tempo com When I’m 64. Quais as imagos que um jo-vem de 16 anos poderia projetar para si e sua amada 40 anos atrás, paraquando tivessem 64 anos? E qual a imago que temos hoje dos “sessentões”?Marieta analisa Paul a partir da letra, interpretando seus medos e questõesa respeito do tema da potência masculina e as relações entre homens emulheres quando estas últimas assumem dupla função de mãe e mulherem relação ao desejo e ao amor. Ao final sugere um brilhante jogo, a partirda melodia, entre McCartney pai e McCartney Paul.

When I’m 64 é tema também de Alfredo Jerusalinsky. Seu mote é osonho de mudar o mundo através de duas estradas diferentes: “The Beatlese Che Guevara caminhavam estranhamente juntos no nosso interior. A guer-rilha latino-americana e Woodstock juntavam essas linhas paralelas numponto que burlava todas as leis da geometria” (p.71). Demonstra que asperguntas feitas na música traçam um retrato de uma época com seussonhos projetados num futuro. Agora, quarenta anos depois, o mundo temoutras perguntas, respostas e configurações. Mas a idéia de um mundomelhor, ainda que não sejam claros os caminhos para isso, lhe parece umaaposta precisa.

Robson de Freitas Pereira lê Whith a little help from my friends comoverdadeiro manifesto de uma política da amizade. Opondo o cinzento mun-do dos militares à colorida contra-cultura representada (no sentido diplomá-tico do termo) aqui por um de seus expoentes, o Sargento Pimenta (treina-do nas fileiras de Brancaleone). Discute a (im)possibilidade de surgir, nummundo pós-patriarcal, “uma organização simbólica que propusesse umahorizontali-dade sem cair na anarquia5. Difícil? Muito. Impossível? Talvez.” (p.25)

5 Proposição muito próxima, diga-se de passagem, dos princípios de alguns anarquistashistóricos como Malatesta e Proudhon.

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RESENHA

Jaime Betts com Getting Better escreve um texto teórico. Teoriza apalavra (dada e escutada), o amor, o desejo e a separação... dos Beatles.Subvertendo a díade freudiana e seu parâmetro para a cura, amar e traba-lhar, propõe amar e desejar. “Desejar e amar não são a mesma coisa, mashá um ponto em comum, que tem a ver com dar a palavra e escutar” (p.36).Trabalha e joga luz sobre o notório e opaco aforismo lacaniano do amor.

Nympha Amaral narra uma história de amor. Também uma história dedesejo. Perfilam-se diante de nossos olhos as descobertas das novas posi-ções possíveis para homens e mulheres na geração pós-Beatles. A cena éuma festa à fantasia, um homem, uma mulher, sexo, sonhos, baseados,rock e desencontros. O desfecho se dá ao som de Strawberry fields forever.

She’s leaving home parece, no texto de Lúcia Serrano, a mais com-pleta tradução da mudança de posição que se deu para as mulheres noséculo XX. O voto, a pílula, a cidadania, o desejo. A menina saiu de casa. Amãe, na letra e na melodia, entoa um lamento de abandono. Lúcia realizauma meticulosa análise das nuances melódicas, paripassu com a letra, parametabolizar essa saída como uma separação e não como um abandono. “Dis-so depende que os ‘bilhetes’ escritos pelos filhos, pelos outros e por nós mes-mos possam ir ganhando mais palavras e talvez espaços de fala”. (p.50)

O texto de Ana Costa se dá como numa sessão analítica, em que asassociações reverberam em portais da Montevidéu dos anos 60 (significantessuper-condutores que funcionam como a máquina de teletransportar do he-rói sessentino Space Ghost.) que trocam abruptamente os tempos e osregistros, passando e jogando-nos do antigo ao moderno, de Montevidéu aPorto Alegre passando por Liverpool embalados ao som e ritmo de PennyLane.

Os autores alternam suas preferências oscilando entre John e Paul.Resta que, além dos quatro, havia ainda uma entidade criadora transindividualque no imaginário se figurava pelo quarteto (teria dado certo se fosse comPete Best?) e que assinava como Lennon-McCartney.

A questão sobre se o sonho acabou ou se nunca vai terminar pode, apartir da psicanálise, ter outra formulação. O importante talvez fosse o so-

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RESENHA

nho ser interpretado, para que, como numa análise, o sintoma se descen-trasse, e o discurso voltasse a escorrer por novas cadeias associativas.

Este livro é imprescindível a psicanalistas e beatlemaníacos. Reco-mendado à psicólogos, sociólogos, agrimensores, pessoas com rebaixa-mento de libido, início de calvície, sinusite, cefaléias... Falando sério:imperdível.

Sidnei Goldberg

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AGENDA

JANEIRO – 2007

PRÓXIMO NÚMERO

Reunião da Comissão de EventosDia Hora Local Atividade

Reunião da Comissão de Aperiódicos

Sede da APPOA Reunião da Comissão da Revista

JORNADA DE ABERTURA

Reunião da Comissão do Correio

19h30min

15h30min

Sede da APPOA

Sede da APPOA

Reunião da Mesa DiretivaSede da APPOA21h8h30min

20h30min

10

03, 1017 e 24

07 e 2111 e 2511 e 25 Sede da APPOA

Reunião da Mesa Diretiva Aberta aosmembros da APPOA

Sede da APPOA21h24

Data Local Evento

05/04/07 AMRIGS JORNADA DE ABERTURAPorto Alegre/RS

06, 07 e Hotel Laje de Pedra RELENDO FREUD:08/06/07 Canela/RS O fetichismo

01, 02 e Plaza São Rafael Encontro Brasileiro da

03/08/07 Porto Alegre/RS CONVERGÊNCIA LACANIANA

14, 15 e Plaza São Rafael CONGRESSO 200816/11/08 Porto Alegre/RS

EXPEDIENTEÓrgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre

Rua Faria Santos, 258 CEP 90670-150 Porto Alegre - RSTel: (51) 3333 2140 - Fax: (51) 3333 7922

e-mail: [email protected] - home-page: www.appoa.com.brJornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n0 3956

Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (51) 3318 6355

Comissão do CorreioCoordenação: Gerson Smiech Pinho e Marcia Helena de Menezes Ribeiro

Integrantes: Ana Laura Giongo, Ana Paula Stahlschmidt,Fernanda Breda, Márcia Lacerda Zechin, Maria Cristina Poli,

Marta Pedó, Mercês Gazzi, Norton Cezar Dal Follo da Rosa Júnior, Robson de Freitas Pereira e Tatiana Guimarães Jacques

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREGESTÃO 2007/2008

Presidência: Lucia Serrano Pereira1a Vice-Presidência: Lúcia Alves Mees2a Vice-Presidência: Nilson Sibemberg

1a Secretária: Lucy Linhares da Fontoura2a Secretárias: Maria Elisabeth Tubino e Ana Laura Giongo

1a Tesoureira: Ester Trevisan2a Tesoureira: Maria Beatriz de Alencastro Kallfelz

MESA DIRETIVAAlfredo Néstor Jerusalinsky, Ana Laura Giongo, Ana Maria Medeiros da Costa

Ângela Lângaro Becker, Beatriz Kauri dos Reis, Carmen Backes,Emília Estivalet Broide, Fernanda Breda, Ieda Prates da Silva, Maria Ângela Bulhões,

Maria Ângela Cardaci Brasil, Maria Cristina Poli, Maria Lucia M. Stein,Otávio Augusto Winck Nunes, Robson de Freitas Pereira, Siloé Rey e Simone Kasper

Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.)Criação da capa: Flávio Wild - Macchina

S U M Á R I O

EDITORIAL 1

NOTÍCIAS 2

SEÇÃO TEMÁTICA 3NOS PRELÚDIOS DA VIDAAna Paula Melchiors Stahlschimidt 3

MÚSICA E LETRAMaria Batriz Alencastro KallfelzMaria elisabetg Tubino 12

JAM SESSIONRoberto Henrique Amorim de Medeiros 15

PSICANÁLISE: ALGUMAS NOTASHeloisa Helena Marcon 23

SEÇÃO DEBATES 26“2 FILHOS DE FRANCISCO” E MEUGOSTO PELA MÚSICA SERTANEJAContardo Calligaris 26

RESENHA 29SARGENTO PIMENTA FOREVER 29

AGENDA 36

SOBRE NOTAS E LETRAS

N° 165 – ANO XV JANEIRO – 2007