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1 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 172, set. 2008. EDITORIAL A ssim como Flaubert enunciou a seus contemporâneos o enigmático “Emma sou eu” e Proust tira um mundo de dentro das memórias (involuntárias) de uma xícara de chá, a ficção machadiana narra um mundo que se aborda desde um ângulo muito particular: é desde um “olhar oblíquo e dissimulado”, ao modo de sua Capitu, que Machado escreve e o leitor avança sobre um tempo e um espaço também transversos. A entrada na modernidade com os contrastes e choques das passagens (aqui, Benja- min entra no diálogo), do rural x urbano, da Monarquia à República, do clás- sico à polca, do Rio dos cortiços à aspiração de cidade de avenidas largas e arejadas (ao exemplo da transformação de Paris), e, em especial, do con- traste entre um contexto de origem colonial e escravocrata que busca, em alguma medida, o alinhamento com a metrópole européia, ao mesmo tempo em que trata de pensar a saída do modelo. Pelas passagens que Machado vai construindo, a fantasia, os ele- mentos que percorrem o imaginário social vão encontrando lugar e constitu- indo travessias e vertigens, via a ironia que, por sua vez, também configura uma escrita da obliqüidade. O “sentido em lampejo” do chiste (à vizinhança da ironia), a dimensão da surpresa e o prazer do jogo neste movimento impli- ca o sujeito, o inconsciente e o Outro. Constelação de elementos solidários com os caminhos não lineares e diagonais do dizer de Lacan – de que o inconsciente só se entrega assim “meio de lado”. Celebramos com este número do Correio a profunda marca que Ma- chado de Assis inscreve em nossa cultura, ao seu modo de “saber fazer com o vazio”, e que ele compartilha com seus leitores produzindo assim nova passagem, transmissão que um escritor pode realizar para muito além do tempo de sua escrita.

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1C. da APPOA, Porto Alegre, n. 172, set. 2008.

EDITORIAL

Assim como Flaubert enunciou a seus contemporâneos o enigmático“Emma sou eu” e Proust tira um mundo de dentro das memórias(involuntárias) de uma xícara de chá, a ficção machadiana narra um

mundo que se aborda desde um ângulo muito particular: é desde um “olharoblíquo e dissimulado”, ao modo de sua Capitu, que Machado escreve e oleitor avança sobre um tempo e um espaço também transversos. A entradana modernidade com os contrastes e choques das passagens (aqui, Benja-min entra no diálogo), do rural x urbano, da Monarquia à República, do clás-sico à polca, do Rio dos cortiços à aspiração de cidade de avenidas largas earejadas (ao exemplo da transformação de Paris), e, em especial, do con-traste entre um contexto de origem colonial e escravocrata que busca, emalguma medida, o alinhamento com a metrópole européia, ao mesmo tempoem que trata de pensar a saída do modelo.

Pelas passagens que Machado vai construindo, a fantasia, os ele-mentos que percorrem o imaginário social vão encontrando lugar e constitu-indo travessias e vertigens, via a ironia que, por sua vez, também configurauma escrita da obliqüidade. O “sentido em lampejo” do chiste (à vizinhançada ironia), a dimensão da surpresa e o prazer do jogo neste movimento impli-ca o sujeito, o inconsciente e o Outro. Constelação de elementos solidárioscom os caminhos não lineares e diagonais do dizer de Lacan – de que oinconsciente só se entrega assim “meio de lado”.

Celebramos com este número do Correio a profunda marca que Ma-chado de Assis inscreve em nossa cultura, ao seu modo de “saber fazer como vazio”, e que ele compartilha com seus leitores produzindo assim novapassagem, transmissão que um escritor pode realizar para muito além dotempo de sua escrita.

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

CONGRESSO DA APPOA

ANGÚSTIA

Dias: 14, 15 e 16 de novembro de 2008Local: Centro de Eventos Plaza São RafaelEndereço: Avenida Alberto Bins, 514 – Porto Alegre, RS - Brasil

É impossível desconhecer a angústia. Ela se enlaça com o mais pre-cioso do sujeito: a vida ou a morte, o mais íntimo e o mais incompreensível.Há muito que nossa cultura lida com ela, representando-a desde as artes,passando pela religião, a filosofia e as ciências mais diversas. Sem falar naliteratura, na qual o “Estranho” (Das Unheimliche) é uma de suas figuraçõesmais fortes. Nesta, a ficção nos traz narrativas em que o estrangeiro e ofamiliar põem em questão todas as dimensões de certeza. A conhecida an-gústia, assim, revela sua face indecifrável.

A psicanálise, por sua vez, buscou encontrar uma forma singular deescutar e interpretar este “afeto que não engana”, onde a palavra silencia àfalta de uma simbolização possível. O próprio Freud transformou sua teoriada angústia ao longo de mais de 30 anos, em um trabalho de permanenteatualização. Ele começou por considerá-la como um afeto e reação naturalfrente a uma situação real de perigo, passando por situar a angústia decastração, até sua derradeira tese de 1926, na qual considerava a angústiacomo sinal de alerta do Eu: um aviso interno de que algo não vai bem, ame-açando sua estrutura.

Jacques Lacan, para conceituar o objeto do desejo em seu retorno aFreud, subverte a posição do analista e afirma que este afeto primordial temum objeto: ele é o mesmo que organiza o desejo. Porém, enquanto o objetosempre falta no desejo, na angústia é a falta simbólica que falta. Assim,desejo e angústia enlaçam-se na trama do sujeito.

Trabalhar a temática da angústia e suas implicações na clínica e nacultura nos possibilitou dois anos de leituras e discussões – que passaram

pela literatura psicanalítica, médica, filosófica, literária, assim como por es-tudos de casos clínicos, das políticas públicas, da história e da sociedadeatual. A preparação do tema, em grupos de estudos, jornadas diversas epublicações de textos, culminam, enfim, com este Congresso. Nosso obje-tivo é ampliar o debate, dialogando com outras áreas da ciência e da arte,com psicanalistas de outros estados e países e com todos os que deseja-rem participar.

PROGRAMA

Sexta-feira 14/11/20088h30 – Credenciamento e inscrições

9h - AberturaMESA 1Coordenação: Ligia Gomes VíctoraConferência: “Actualidade” da angústia. Robson de Freitas Pereira (APPOA/RS)

MESA 2Coordenação: Liz Nunes RamosAngústia de castração e inveja do pênis pós-maternidade. Julieta Jerusalinsky(APPOA/SP)Angústia na psicanálise de crianças. Alba Rita Flesler (EFBA/BsAs-ARG)

14h – MESA3Coordenação: Liliane FroemmingAprendizado, cooperação e competição no trabalho. Paul Singer (SENAES/DF)A psicanálise na economia solidária. Jorge Broide (APPOA/SP)Cultura, economia e política. Enéas Costa de Souza (APPOA/RS)

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

MESA 4Coordenação: Carmen BackesUma carta perdida. Maria Cristina Poli (APPOA/RS)Angústia e desejo: afinidades eletivas. Sidnei Goldberg (APPOA/SP)As depressões e a experiência do tempo. Maria Rita Kehl (APPOA/SP)

Lançamentos de livros

Sábado – 15/11/20089h – MESA 5Coordenação: Rosane Monteiro RamalhoA potência iconoclasta do objeto a: psicanálise e utopia. Edson Luiz AndréSousa (APPOA/RS)“Esta velha angústia”. Maria Ida Baptista Fontenelle (APPOA/DF)“É não sem e não é sem”. Charles Elias Lang (APPOA/AL)

MESA 6Coordenação: Fernanda BredaRasura e angústia: a função do velamento do corpo. Ana Costa (APPOA/RS)Frida Kahlo: pincel da angústia. Eliana dos Reis (APPOA/NY-EUA)

14h – MESA 7Coordenação: Diana Lichtenstein CorsoAngústias contemporâneas. Rosane Monteiro Ramalho (APPOA/RJ/RS)Angústia: Sujeito e Grupo. Jorge Valadares (FIOCRUZ/RJ.)A angústia da dança adolescente. Ângela Lângaro Becker (APPOA/RS)

MESA 8Coordenação: Nilson SibembergIsso é suportável? A clínica psicanalítica diante dos estados extremos deangústia. Mário Eduardo Costa Pereira (UNICAMP/SP)Angústia e cérebro: há algum diálogo possível entre psicanálise e neurociências?

Benilton Bezerra Júnior (Medicina Social/UERJ)

MESA 9Coordenação: Ester TrevisanConferência: Relação da angústia com o gozo sexual. Gérard Pommier (FEP/Paris-FR)

Domingo – 16/11/20089h - MESA 10Coordenação: Lúcia Alves MeesDo Resto ao Lixo – a corrosão do desejo na era da reprodutibilidade técnica.Jaime Betts (APPOA/RS)O homem sem qualidades, mesmo. Élida Tessler (Artes/UFRGS)A banda de Mahler e o violino sinistro. Elaine Starosta Foguel (APPOA/BA)

14h – MESA 11Coordenação: Lucy Linhares da FontouraA economia da angústia. Roséli Maria Olabarriaga Cabistani (APPOA/RS)Reflexões sobre a inibição. Ricardo Goldenberg (APPOA/SP)

MESA 12Coordenação: Marieta Luce Madeira RodriguesVértigo: fascínio e perturbação na ficção machadiana. Lúcia Serrano Pereira(APPOA/RS)Figuras da angústia em Borges. Luis Augusto Fischer (Letras/UFRGS)Criaturas imperfeitas procuram um pai. Mário Corso (APPOA/RS)

MESA 13Coordenação: Robson de Freitas PereiraConferência: A angústia e a orientação do sujeito. Isidoro Vegh (EFBA/BsAs-ARG)

Encerramento: Lúcia Serrano Pereira (Presidência/APPOA)

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

INSCRIÇÕES E INFORMAÇÕES:NO SITE OU NA SECRETARIA DA APPOA.

Datas-limitep/ inscrição:

Até dia 15/09c/ desconto

Até dia 15/10c/ desconto

Em três parcelas:15/09; 15/10 e 15/11

Após dia 15/10

INFORMAÇÕES E INSCRIÇÕES:

• * Estudantes de graduação e formados até dois anos, mediante apresenta-ção de certificado ou comprovante de matrícula em curso superior na Secre-taria da APPOA.• Horário de funcionamento da Secretaria da APPOA: de segunda a quinta-feira, das 13h30min. às 21h30min e às sextas-feiras, das 13h30min às 20h• Inscrições mediante depósito bancário, para Banco Itaú, agência 0604,conta-corrente: 32910-2. Neste caso, enviar, por fax, o comprovante de paga-mento devidamente preenchido, para a inscrição ser efetivada.• Inscrições pelo site www.appoa.com.br após efetuar a inscrição pelo site,enviar por fax ou por e-mail o comprovante de pagamento devidamente pre-enchido.  • As vagas são limitadas. 

Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOAEndereço: Rua Faria Santos, 258 – Bairro Petrópolis – Porto Alegre – RSTelefones: 51 33332140 e 33337922 Site: www.appoa.com.br

Apoios:Plaza EventosPresenta multimídiaLe BistrotGráfica Metrópole

AssociadosAPPOA

Estudantes eRecém-formados*

Profissionais

120,00 130,00 170,00

140,00 150,00 180,00

3 X 50,00 3 X 60,00 3 X 75,00

180,00 190,00 250,00

Agência de turismo:BMZFone: 51 3321 1133www.bmztur.com.br

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SEÇÃO TEMÁTICA

SUBVERSÕES MACHADIANAS

Enéas Costa de Souza

Machado não é um revolucionário e nem um reacionário. Ele é umsubversivo. O que significa ser um subversivo? Alguém que revolve,que revira, que desmancha, que arruína, que perturba, que transtor-

na, que desordena, que destrói, que corrompe algo do social. Age com apuroe se infiltra com primor nas idéias, na moral, nas instituições, nos ideais,nas tradições, nos gêneros literários. Neste artigo, num desenho ligeiro, pro-curamos evidenciar algumas das suas subversões, tratamento aplicado, quasecomo serpente, no plano de múltiplas realidades sobre as quais colocou oseu veneno. Só que subversivo para Machado não é aquele que faz alarde dasubversão, não é aquele que é uma dinamite. A sua subversão se sabe a umácido que lentamente faz desabar a solidez de uma estrutura consolidada.Pode-se dizer que ela tem um método inigualável que se chama ironia. Enesse sentido, o ato irônico é algo muito mais poderoso do que o ato de umagitador e de um terrorista. Machado está longe destes tipos e destas sub-versões. Sua subversão é outra. A eficiência do seu gesto não é imediata,tem parte com a duração, conduz a um efeito mais retardado e avança como espichar do tempo.

Machado usa como arma a pólvora da palavra. Vem dela as nuancesda narrativa, a transformação de um gênero, o sublinhar de alguns persona-gens, a fustigação de diversos comentários. Seus gestos são sutis e maci-os, mas prolongados, como os dos gatos que dormem ao sol de uma varan-da. Provocam deliciosas frutas de humor como se anunciadas por um refina-do gourmet. Só que são gestos tão comuns que se fazem estranhos, quesalientam nas coisas o mais estrangeiro e que incitam, de repente, a uminsólito mal-estar. Quase sem se sentir, acusamos instalada a subversão.Machado faz do romance um atrevimento experimental. E nos deixa comoherança um ponto final exemplar: há que dar-se conta sobre o sentido davida, há que alcançar uma renovação do pensar sobre o mundo. E sempre,

sempre, viajando no ritmo sacudido de sua prosa onde resplandece a ale-gria. Contra o fixo, o movimento; contra os ideais, a sua desmontagem;contra o velho, a metamorfose: contra a tradição, a ironia.

O ROMANCE COMO METAMORFOSEO gênio de um artista é introduzir no repertório de sua arte um

deslizamento que perturba a normal formatação histórica. Convém que sediga que é mais precisamente uma ruptura, uma ambicionada transmutação.Quando, na literatura, o romancista é um criador, a forma tem que ver com omodo de narração; com os personagens; com o desenvolvimento e encade-amento dramático das cenas; com a continuação e ruptura destas e doscapítulos. O romance forma um todo, mesmo que devorado por uma abertu-ra, ou por fissuras que rompem a unidade por todos os lados. As suas partesse canalizam para um desdobramento através de um jogo, de uma constru-ção e de um ritmo de palavras que alimentam a melodia das frases e aarquitetura dos capítulos. Percebemos, no que toca a Machado, toda essacontundência criativa em “Brás Cubas”, em “Quincas Borba”, em “Dom Cas-murro”, em “Esaú e Jacó” e no “Memorial de Aires”.

A forma se traduz num efeito diferente, ela navega no inabitual e seenvolve no incômodo – no Unheimlich nos falaria Freud. Com isso libera odetonador de uma obra estrangeira – que altera ou põe em causa, redimensionaou dinamiza, imediatamente, os padrões estéticos dos seus leitores. Foi oque fizeram, entre outros, Cervantes, Balzac, Stendhal, Baudelaire,Dostoievsky, Proust e Joyce, por exemplo. Neste travelling de gênios, cabeo nome de Machado. Mas atenção: saímos da literatura brasileira, temosque ler Machado em face da história da literatura. Não devemos nos deixarapequenar “pelo nosso complexo de vira-lata”, imagem crítica de NelsonRodrigues, e reduzir os nossos autores à faixa diminuta da praia da literaturabrasileira. Guimarães Rosa, por exemplo, entra neste time. Carlos DrummondAndrade também. Porque eles se confrontam com outros cimos de grandeza.

E se vocês lerem Machado minuciosamente, verão com quem ele semede a cada estágio de seus romances. Fala com Luciano de Samósata,

SOUZA, E. C. DE. Subversões machadianas.

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com Aristóteles, com Voltaire, com Pascal, com Montaigne, com Rabelais,com Diderot, com Goethe, etc. Ou seja, ele se quer dialogando, refletindo,produzindo cenas, pensamentos e reflexões, em conversa com autores docenário mundial. O seu intertexto voa pelo ambicioso. Seguramente tambémtrata de autores que escrevem em português, Alencar, Almeida Garret, oumesmo Eça de Queiroz. Mas ele sai e se afasta desta pequena idéia deAntonio Cândido que fala da literatura brasileira como um ramo da portugue-sa que é uma literatura pobre da Europa. Ora, que me perdoe nosso excep-cional Antonio Cândido, mas isso vem do complexo citado acima. Ou seja, épensar a literatura na hierarquia do poder histórico e na sua expressão soci-ológica. Como se a compreensão e a dimensão do humano fossem somenteefeitos destes aspectos. Não, o que importa, o que se deseja, é olhar aliteratura dos grandes autores, enfrentar o grande prêmio, encarar a FórmulaUm. E Machado sempre disputou a Fórmula Um. Basta só ver “Dom Cas-murro”. Seu parâmetro é “Otelo” de Shakespeare e se sai brilhantemente.Vamos nos deter só num personagem, Desdêmona, por exemplo. Ela nãotem a mesma envergadura que Capitu, nem em termos de sofrimento e deinfortúnio, nem nos moldes de solução e de resultado. E mais, o infinitosilêncio de Capitu, vindo do seu ostracismo europeu, fulmina Bentinho numeterno luto. A densidade humana daquilo que rasga Capitu e Bento Santiagoé mais dilacerante – pelo prolongamento dos destinos dos dois persona-gens, embora com menos impacto – do que o efeito do estrangulamento deDesdêmona e do suicídio de Otelo. No mínimo ao apresentar uma outra facetado tema, Machado é ouro na análise da trágica brasilidade do século XIX.

DO FRAGMENTO COMO A NOVA FORMAMachado é uma espécie de Calder, aquele escultor dos móbiles. De

um modo geral, o que se percebe, nos trabalhos dos dois artistas, é que háum fio que articula e passa por núcleos, peças e fragmentos, compondo umtodo cosido com pedaços singulares, mas dando feição de desatado. Poisolhemos qualquer romance da maturidade de Machado, de “Brás Cubas” ao“Memorial de Aires”. Vemos lá aquela leveza estrutural que vem dos capítu-

los pequenos, da frase ágil na armação de idéias, de sugestões, de metáfo-ras, de citações, de pequenas histórias agregadas. Ou seja, umdesnucamento do romance realista, que busca a identificação do leitor comuma história grudada à ação dos personagens; um romance continuado,ação puxando ação, dourada de descrição de cenas e espertezas de co-mentários, no mais das vezes na posição divina, como diria Sartre.

Em Machado, ao contrário. Uma tentativa sempre de romper com osenlaces e, principalmente, com os enlaces narrativos do drama. Surgem eformam os interstícios e as entrelinhas, vêm então os comentários, as refle-xões metodológicas, as sentenças filosóficas, que às vezes até são neces-sárias à história. Não que os ditos machadianos não estejam absolutamenteintegrados no romance, mas eles não estão integrados de modo necessárioà intriga. Muitos contemporâneos como o historiador Capistrano de Abreu –e Machado registra isso em Brás Cubas – externaram a estranheza, a su-posta desconfiança crítica, a dúvida literária, perguntando se o autor teriaescrito um romance. Mas quem sabe estas manifestações significam outracoisa, a estupefação pela audácia daquele que inova e inventa.

O romance desajeitado de Machado pára em pé, se sustenta, defor-mando a forma tradicional do romance, com a estrutura internamente rompi-da, fingidamente quebrada em fragmentos, mas que tem um liame quaseinvisível que a comanda. Para inventar o novo romance, Machado fulminou aestrutura compacta, praticamente sem furos, sumamente unitária, retorcen-do a ordem temporal das cenas e introduzindo comentários colados à intri-ga. Sua opção pelo fragmento foi indispensável para expressar a profundida-de do seu pensamento, absolutamente moderno, atingindo duradouramenteo contemporâneo, mas também intempestivo, por isso propositadamenteocidental, com validade universal.

DA FILOSOFIA E DO ROMANCESe olharmos pelos cânones ocidentais, e vermos Machado dentro da

sua obra, descobre-se uma audácia mais velada do artista. Ele não se querapenas romancista de um país afastado do centro do mundo. Muito pelo

SOUZA, E. C. DE. Subversões machadianas.

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contrário. Sua audácia é total. Primeiro, quer cumprir a tarefa política decolocar na arte, o país, tornado independente, no rol dos países civilizados.Essa é a sua tarefa de escritor. A tarefa da emancipação política é com asclasses sociais. E os romances mostram uma decepção, a melancolia emverdade, que é a falência na idealização dos homens e da sociedade. Só queele responde com a ironia e a alegria. Segundo, e por conseqüência, inaugu-rar neste país uma literatura que seja mais que uma literatura de uma socie-dade e de uma nação, que seja uma literatura universal, que seja uma litera-tura inventiva no contexto das outras literaturas, que adentre a história doshomens. Terceiro, ao encenar o Segundo Império e o início da República,Machado faz uma análise crítica da sociedade, como a história da épocatalvez não tenha sabido vislumbrar. A melhor interpretação histórica talvezseja o romance. Quarto, na tradição histórica portuguesa, onde a pobreza decultivo da filosofia é a de uma parreira sem uvas, o pensar das condiçõesantropo-ontológicas do homem vem por meio da arte. Atravessa a poesia, oromance, o ensaio, etc. A audácia de Machado, ponto altamente renovador,o rebentar de uma onda, é reivindicar explícita, mas inaudivelmente para amaioria dos críticos, que o seu vôo é pilotar o romance, mas também afilosofia. Uma filosofia no estilo do aforismo. Por isso, se temos Xavier deMaistre, Sterne, no entanto temos também Pascal, Montaigne. E a sua filo-sofia é herdeira do campo dos autores do fragmento, herdeira dos pré-socráticos, herdeira do teatro de Luciano, herdeira da filosofia de Pascal eMontaigne. Assim, o romance de Machado é filosofia. E a sua filosofia sótem uma condição: expressar-se como romance. Estamos antes de Borgescom ele, a filosofia é uma forma de literatura.

DA ORDEM E DAS DIMENSÕES DO PENSAR Tive um amigo das cercanias do mundo filosófico que me dizia: uma

obra é o que dá o sentido às coisas. Sempre pensava: a arte se ilumina emcima do vazio, na vizinhança do abismo. Assim fala Nietzsche através doseu vasto bigode secular. Pois, um escritor romancista põe em marcha umpensamento no modo como consuma a ordem na sua obra. Só que quando

digo ordem não estou querendo dizer rigidez, um bloco de pedra, pois podeexistir nesta ordem uma certa indisciplina, um tal desmanchar que lembrauma busca de associações livres. E é aí que um texto pode ser subversivo,revolucionário. Não falo de um engajamento direto como arte política, masuma política de arte que faz da decomposição da ordem a sua sugestão, asua proposição, o seu “fármacos”, palavra grega que se pode traduzir porremédio e veneno. Machado é isso, o seu pensar como romancista (e comofilósofo), ao construir a forma do romance, inocula tanto o veneno como oremédio.

Inocula o veneno porque ele corrói as entranhas do romance tradicio-nal e destapa a natureza da classe dominante brasileira – patrimonial, capi-talista, escravista, hipócrita, isolacionista, ociosa, burladora. Uma socieda-de dedicada ao esporte da predação. Pense o leitor no que foi feito de Marcela,de Rubião, de Capitu, de Dona Plácida, de Flora. Mas, inocula o remédio,porque encarando a traição humana como dimensão social, busca o cômicono interior do trágico. Fertiliza com a flor hilária a melancolia que eventual-mente traz o cinismo ou o ceticismo. Porque Machado pensa através doromance a condição antropológica e ontológica dos homens – a de um serseparado, logo em desamparo, sobretudo no seu horizonte subjetivo e histó-rico. As palavras da narração levam à construção de imagens que realçamseu pensamento. São imagens tecidas de frases, que embora simbólicasexpandem um tônus forte do imaginário, porque se as palavras são feiticei-ras, as imagens são intensas e marcantes. A dialética do Simbólico e doImaginário, balizada pelo Real, provocam na sua dosagem em fragmentos,em poções, o seu verdadeiro poder mágico. Lê-se, então, um romance quepensa e que faz pensar. Mas, só para quem quer, porque Machado escondeo veneno na carapaça da fluência prazenteira e vistosa.

O QUARTETO DA NARRAÇÃO Há um tema que pode interessar muito aos psicanalistas. Trata-se

da relação de Machado com o leitor. Como sempre ele tem uma estratégiaardilosa, um giro sutil, para expor a posição do problema no contexto do

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romance. O começo é a certeza de que há um quarteto nesta relação. Naproposição da escrita está intimamente inscrita uma diferença original,marcada pelo contraste entre o autor e o narrador. Com esta distinção, oromancista revela que narrar é como olhar o mar, narrar é partir de um pontode vista que não é o seu. Ou seja, o narrador é um personagem integrado àhistória, que tem a sua visão, a sua concepção, a sua relação com os de-mais personagens. Mesmo um narrador em terceira pessoa, na sua aparen-te imparcialidade, não consegue superar esta notória divergência entre asduas figuras em exame.

Instalado o narrador como figura inaugural do romance, há um segun-do ponto a notar: a sua relação com o leitor. A posição de Machado é notávelnesse ponto. Em primeiro lugar, há um quesito substancial: o leitor estágeralmente explicitamente colocado dentro da história. O narrador, com umaarte de generosa especiaria, o atrai constantemente para o primeiro plano dahistória. Sob certo ponto de vista, ele é um personagem extremamente im-portante, porque é sacudido, mexido, zombado, maltratado, jogado furiosa-mente como um personagem, diríamos assim preconceituoso. Preconceituosopor ser um leitor comum, aquele que acredita num romance tradicional, aqueleque tem as idéias da sociedade dominante.

Sintetizando tudo o que já dissemos sobre Machado e sua arte e suafilosofia e a posição do leitor, não podemos deixar de registrar essa passa-gem, que nos atinge como um vôo de águia. “(...) Veja o leitor a comparaçãoque melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só porqueainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creioque prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, eacho que faz muito bem. Pois lá iremos. Todavia, importa dizer que este livroé escrito com pachorra, com a pachorra de um homem já desafrontado dabrevidade do século, obra supinamente filosófica, de uma filosofia desigual,agora mesmo austera, logo brincalhona, cousa que não edifica nem destrói,não inflama nem regala, e é todavia mais do que passatempo e menos queapostolado” (Memórias Póstumas de Brás Cubas, Obras Completas, I, Rio,Editora Nova Aguilar, 1979, pág. 516).

Com essa passagem, pomos na roda um outro leitor, o leitor implícito,o leitor real, aquele que está lendo o livro, que se mete em múltiplas posi-ções de identificação na obra. É ele quem se identifica com a história, como personagem principal, com personagens secundários, que tem a crençaque o narrador estabelece para ele. Um leitor que assina um contrato com onarrador, definido por este próprio narrador (e pelo autor). E que de um modogeral cumpre regularmente. Trata-se de um leitor confiável, fiel, um leitorsubmisso, sem nenhuma capacidade de distanciar-se. E aqui chegamos aoponto decisivo: o modo como o leitor se relaciona com o livro, o mergulhosem mais recuo no mundo criado pelas palavras do romance.

CONTRA A LEITURA EMBEVECIDA Queremos, então, como um rastreador, detectar a suprema arte de

Machado. O que ele faz é exatamente isso: através do seu método exem-plar, a ironia, vai provocando uma progressiva distância do leitor real aonarrador, uma viagem para soltar as identificações múltiplas e possíveis dotexto. É por isso que, ao final de “Brás Cubas”, o leitor pode ter uma distân-cia do personagem principal e achá-lo cínico. Diante da sagacidade narrativada história de Bentinho, que começa o texto como Dom Casmurro, o leitorpode ter uma possível diferença com as opiniões do narrador e vê-lo como oadvogado competente que tenta narrar astutamente uma história onde ele éum criminoso legal. E com essa manobra maravilhosa, Machado provoca noleitor implícito um choque brutal, uma sacudida eficaz, um efeito dedistanciamento (Verfrendungeffeckt) que ficaria célebre com Bertold Brechtno teatro.

Mas, não se pense que a narrativa do romance falseie a lógica doromance. Pelo contrário, o domínio de Machado é de tal ordem que o desen-volvimento dramático é perfeitamente plausível, iluminado, com a diferençaque seu método sendo a ironia, o que ele introduz na narrativa é a forçabásica da vida: a ambigüidade. Ou seja, essa impossibilidade de saber averdade das situações, porque elas contêm sempre um grau de incerteza,de mistério, de obscuridade, de hesitação, de dúvida. O leitor é como um

SOUZA, E. C. DE. Subversões machadianas.

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motorista que dirige um carro e que acaba de encontrar a verdadeira estrada,o ambicionado sentido destas realidades. Então, o método narrativo de Ma-chado fica plenamente exposto: de um lado, um narrador que vem submetidoà potencialidade da ironia, e de outro, um narrador que, como efeito dessaironia, expressa fortemente na narrativa, a diferença entre autor e narrador,que fala para um leitor explícito sobre as nuances da intriga que narra. Põe ahistória em termos de ambigüidade e tenta atingir o leitor real para provocaraquilo que é próprio do homem, o dar-se conta das armadilhas da ilusãoromanesca. Este método tem uma eficácia fantástica, articula a tentativa deprovocar uma desmontagem na construção imaginária que a sociedade, queos homens (narrador, personagem, leitores, etc.), constroem e tentam sim-bolizar, para anular o impacto do efeito do Real.

E o que Machado nos traz por intermédio de sua façanha narrativa é airrupção deste Real, sobre os múltiplos efeitos da morte, do desastre amoro-so, das fraturas pessoais, das crises que ele provoca nas consolidaçõesideológicas da sociedade brasileira, como já dissemos, capitalista, mercan-til, patrimonial, escravista. O notável nesta arte é que a ironia permite traçara trajetória do romance e conduz a narrativa vertiginosamente tanto para aemergência do Unheimlich, do estranho, do lado estrangeiro das coisas,como para a exigência de perceber a presença desta coisa opaca, sempalavras, que é o Real. Nesse sentido, o rumor das palavras assopra outraexpressão para ele, uma expressão que os gregos nomeavam como trágico.O Real é o trágico, com a única diferença que na Grécia está unido aosdeuses e ao divino; e no trágico contemporâneo está vinculado simplesmen-te a sua inexorável irrupção. Machado se coloca diante da devastação desteemergir, quando apela metaforicamente para a deusa Pandora, com a suacesta de bens e males. E deste destroçar faz do seu romance um conjuntode subversões, das quais a principal navega inexoravelmente para abalroar oato de leitura. O desejo de escrever leva a um ato de subversão que ejeta oleitor do ambiente embevecido pelas palavras e pela ficção. O tiro é mortal:no quarteto autor/ (narrador), (leitor interno)/leitor real, abre-se a distância dofogo que queima: a hora do pensar crítico.

QUINCAS BORBA: “SOU LIVRE,DEVO TUDO AO DOUTOR”1

Luís Augusto Fischer2

Para os que começam a conhecer a extraordinária obra de Machadode Assis, os romances mais importantes parecem ser “Memóriaspóstumas de Brás Cubas” (1881) e “Dom Casmurro” (1900). O ro-

mance “Quincas Borba” (1891) figura num modesto segundo plano, comoque à sombra dos dois mais famosos, junto com “Esaú e Jacó” (1904) e“Memorial de Aires” (1908), senão junto com o restante da obra, encobertopor um “etc.” irremediável.

É uma injustiça. De fato, a história de Rubião merece figurar entre asmais interessantes criações do gênio da literatura de língua portuguesa quefoi Machado de Assis. Como nos mais famosos romances, também aqui ascoisas se complicam para o leitor iniciante ou ingênuo, aquele que querresumir o comentário a uma frase e parece querer sempre responder a ques-tões simples e diretas como “Qual é afinal a história?”. A história é a deRubião (contada num ritmo brincalhão que se aproxima das “Memórias pós-tumas de Brás Cubas”, se bem que pode ser a história de um negocianteinescrupuloso e sua parceira, unidos para trapacear um cidadão honesto eingênuo – num esquema muito próximo de “Dom Casmurro”!); mas todo umuniverso de personagens será analisado, toda uma época brasileira seráexaminada. Para perceber isso, porém, é preciso entender alguns detalhes,que vamos agora comentar.

1 Publicado aqui apenas em parte, este texto pode ser encontrado na íntegra no livro “Macha-do e Borges e outros ensaios sobre Machado de Assis”, de Luís Augusto Fischer. PortoAlegre: Arquipélago Editorial, 2008.2 Doutor em Letras e professor de Literatura Brasileira na UFRGS. É autor de “LiteraturaBrasileira - Modos de usar” (ensaio), “Quatro negros” (novela) e “Dicionário de porto-alegrês”, entre outros.

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UM – O NARRADORMachado de Assis, como se sabe, foi um revolucionário. Ele teria

chegado ao ponto mais alto do romance brasileiro apenas com seu domíniode linguagem e talvez com alguns bons personagens; mas foi na técnicanarrativa que ele realmente deixou sua marca na renovação do panorama desua geração.

Entre os grandes romances, os da chamada segunda fase, predomi-na a narração em primeira pessoa, estratégia evidente em “Memórias póstu-mas”, em “Dom Casmurro” e em “Memorial de Aires”. Em “Esaú e Jacó”, setrata de uma história contada pelo mesmo Conselheiro Aires do último ro-mance, que comparece ali como personagem, mas o enunciado do relatoaparece em terceira pessoa – o que resulta numa equação complexa e inte-ressante, que não seguiremos.

Finalmente, o caso de “Quincas Borba”. Aqui temos a única narraçãopuramente feita em terceira pessoa, por uma voz que não participa da histó-ria. Mas esta voz narrativa se identifica claramente como o autor das “Memó-rias póstumas de Brás Cubas”, isto é, o próprio Machado de Assis, comoaparece na abertura do capítulo 4. Tem cabimento isso?

É uma das tantas brincadeiras, das invenções de Machado de Assis. Oque ele ganha com isso? Num nível simples, a resposta é: o leitor se obriga alembrar ou até a consultar o romance anterior, que conta uma parte anterior dahistória de Joaquim Borba dos Santos, o Quincas. Num nível mais sofisticado,pode-se verificar outro ganho, outro rendimento estético: é que fazendo essaidentificação explícita, Machado causa o que se chama de “estranhamento”.

Para nossos efeitos, pode-se definir “estranhamento” como o efeitode desacomodar o leitor mediante a alteração de uma das regras combina-das para o jogo. No caso de um romance do século 19, espera-se que a voznarrativa que se apresenta em terceira pessoa mantenha a ilusão de reali-dade que o leitor vai criando ao penetrar na história narrada. Ao mudar essaespécie de pacto com o leitor, a narração produz um sentido de desconfian-ça, de dúvida, até de perplexidade – de estranhamento: aquilo que era paraser familiar e convencional vira uma esquisitice.

Machado joga esse jogo com muita freqüência. Vejamos o exemplo aabertura do livro, primeiras linhas do primeiro capítulo, exemplarmente con-vencionais da manutenção deste pacto com o leitor:

“Rubião fitava a enseada – eram oito horas da manhã. Quem ovisse, com os polegares metidos no cordão do chambre, à ja-nela de uma grande casa em Botafogo, cuidaria que ele admira-va aquele pedaço de água quieta;”

E logo após esse trecho já o narrador altera um pouco essa placidez:“Mas, em verdade, vos digo que pensava em outra coisa. Cotejava o

passado com o presente. Que era, há um ano? Professor. Que é agora?Capitalista.”

A alternância entre uma narração objetiva, focada no assunto e nospersonagens, e uma narração não-objetiva, dispersiva e brincalhona, será atônica de todo o romance “Quincas Borba”. Isso já deve nos alertar para atensão entre a terceira pessoa, que domina sintaticamente o relato, e essaintromissão da voz narrativa: uma tensão entre objetividade e dispersão, quedesacomoda o leitor o tempo todo.

Vejamos outro exemplo. No capítulo 28, depois daquele longo flashbackque se inicia no capítulo 4 ao 27, Rubião está pensando no quanto sofre porgostar de Sofia, que é casada, se dá bem com o marido e, portanto, pareceinacessível a ele, e vai soltar o cachorro que herdou do falecido filósofo. Obrincalhão Quincas fica feliz com a chegada de amigo, e o narrador transitade um relato “sobre o cachorro” para o relato “a partir do ponto de vista docão”:

“Aqui fareja, ali pára a coçar uma orelha, acolá cata uma pulgana barriga, mas de um salto galga o espaço e o tempo perdido,e cose-se outra vez com os calcanhares do senhor. Parece-lheque Rubião não pensa em outra coisa, que anda agora de umlado para outro unicamente para fazê-lo andar também, e recu-

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perar o tempo em que esteve retido. Quando Rubião estaca, eleolha para cima, à espera; naturalmente, cuida dele; é algumprojeto, saírem juntos ou coisa assim agradável. (...) A vida alinão é completamente boa nem completamente má. Há ummoleque que o lava todos os dias em água fria, usança do dia-bo, a que ele não se acostuma.”

Não é usual que um cachorro seja protagonista de cena, em romancede registro realista; mas Machado inventa até isso, fazendo seu narradorpenetrar na percepção do próprio Quincas Borba.

Mais um exemplo ainda, do capítulo 69, o narrador volta a nos surpre-ender, causando aquele efeito de estranhamento por um outro motivo. Comose sabe, uma das regras da narração realista daquele tempo é a onisciência,a capacidade de saber tudo o que se passa em toda parte e em todos ostempos (passado, presente e futuro), com todo e qualquer personagem, sejaem suas ações ou em sua intimidade psicológica. O narrador realista deterceira pessoa sabe mais do que cada personagem, porque pode dizer oque vai acontecer com ele dias depois e pode relatar o que se passa emsuas reações ainda nem compreendidas pelo próprio personagem. Pois bem:Machado faz seu narrador “não saber” coisas que ele, pela convenção realis-ta, “deveria saber”.

A cena é aquela em que Carlos Maria está declarando seu (pseudo)amor por Sofia, enquanto os dois valsam lindamente, à vista do enciumadoRubião e da prima Maria Benedita. Sofia, manejando aquela hipocrisia bur-guesa de quem sabe que está sendo cortejada, mesmo sendo casada, emantém a pose, é surprendida por uma declaração explícita do conquistadorCarlos Maria. Sofia só consegue murmurar um “Oh!”, nada mais. Aí vem onarrador dizer o seguinte, sobre o jeito da cortejada mulher:

“Com espanto? Com indignação? Com medo? São muitas perguntasa um tempo.”

Quer dizer: estamos na mão de um narrador de terceira pessoa masnão onisciente, que parece gostar de causar espanto no leitor, de vez em

quando brincalhão (como no capítulo 112). Um narrador pouco confiável, emsuma, ainda que não seja tão espalhafatoso quanto a voz de Brás Cubasnem tão obsessivo quanto a lógica fria de Bento Santiago.

DOIS – O TEMPOOutra fator de interesse em “Quincas Borba” é o modo como o tempo

é relatado no romance. Em termos bastante amplos, a história contada man-tém uma trajetória linear, que começa em 1867 e acaba em 1871. Os fatosrelatados respeitam essa ordem. Mas há uma série de peculiaridades.

Uma delas, que não é invenção de Machado mas pertence ao maisantigo legado da arte de narrar, é aquilo que ficou conhecido pela expressãoinglesa flashback , que literalmente significa “iluminar para trás”, e se popu-larizou por causa do cinema. Trata-se daquela interpolação de um relato dopassado no meio do fluxo do presente da história. O narrador de “QuincasBorba” usa bastante esse expediente. Às vezes se trata de um longo trecho,como o que foi mencionado antes, entre os capítulos 3 e 27; e às vezes setrata de um simples recuo para explicar algum antecedente da cena emcurso, como no capítulo 57, que conta a história de Camacho. Um flashbackimportante acontece no capítulo 47, que relembra o episódio já antigo, de umenforcamento a que Rubião assistiu, depois de hesitar bastante (e que adi-ante será retomado, para comentário).

Mais inventivo ainda é outro aspecto do tempo, o ritmo. Ao longo dorelato, o leitor fica meio atordoado com a sucessão das ações, em parte porcausa delas mesmo, em parte porque o ritmo da narração é muito variado,oscilando de maneira assustadora. Começa que os capítulos apresentamtamanho enormemente diferente entre si. Há capítulos de uma frase, como o114 (com apenas 15 palavras), mas há outros com páginas e páginas.

O ritmo da passagem do tempo em si também varia bastante. Docapítulo 1 ao 50, tudo se passa no mesmo dia, o domingo em que Rubião fitaa enseada e pensa em Sofia, com aquele longo flashback mencionado; emoutros momentos, o narrador simplesmente avisa que se passou um largotempo – 15 dias, no capítulo 54, ou 8 meses, no capítulo 69. Em outros

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momentos ainda, o tempo é psicológico: os capítulos 74 e 75 se passamquase exclusivamente na memória de Carlos Maria, quando ele rememora adeclaração feita a Sofia.

Assim, pode-se dizer que o estranhamento que o narrador causa noleitor é reforçado por este manejo oscilante do tempo, que anda meio aossolavancos, com intensidades diferentes em variação aleatória, reforçando odesconforto e obrigando, por isso mesmo, à desacomodação do leitor.

SOBRE ESAÚ E JACÓ

Ana Costa

Esaú e Jacó” é o penúltimo romance escrito por Machado de Assis,que joga com seu “narrador incerto” – como se expressa Lucia Pereira –, entremeando lugares e tempos. Supostamente o narrador é o

Conselheiro Aires, sendo anunciado no início do romance de que o mesmoteria deixado sete cadernos, descobertos depois de sua morte, e que com-punham seus diários: os seis primeiro numerados em romanos e o sétimocom a designação de “último”. Na abertura de “Esaú e Jacó” se anuncia queo romance que se começa a ler é este “último”, escrito por Aires. Primeiroparadoxo proposital: o que era último foi publicado primeiro, porque na reali-dade o último romance de Machado será o “Memorial de Aires”, compostopela construção das memórias do Conselheiro – o que seriam os seis cader-nos iniciais. No entanto, o narrador de “Esaú e Jacó” não é o mesmo de“Memorial de Aires”: o relato deste último é como uma escrita de memórias.Em “Esaú e Jacó” o narrador é um terceiro – “testemunha dos fatos”, como oautor gosta de propor – que toma também Aires como personagem. Ou seja,o suposto autor (Aires) é também personagem que está sendo narrado, du-plicado numa condição de testemunha dos acontecimentos. Pode-se aven-tar a hipótese de que Machado tenta brincar com seu próprio destino, desdo-brando seu último ato literário em dois tempos: no primeiro (“Esaú e Jacó”),o lugar de testemunha, um dos efeitos que sua literatura produz, tanto emrelação aos costumes, quanto à História do Brasil; no segundo (“Memorialde Aires”), a memória como ficção. Pensando na função de testemunha, nãoconcordo com algumas análises que propõem que o romance “Esaú e Jacó”seria resultante da indecisão política de Machado. Mesmo que se o possapensar calcado na própria experiência, a obra ultrapassa em muito as esco-lhas individuais, ou mesmo as idiossincrasias do autor.

A alusão direta do título do romance diz respeito a uma história bíbli-ca, do Antigo Testamento, que envolveu o casal Isaac e Rebeca. Como Rebeca

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era estéril, Isaac implorou a Jeová que lhe concedesse filhos. Concebendogêmeos e sentindo-os lutar em seu útero, ela interroga a Deus que respon-de: “duas nações há no teu ventre, dois povos nascidos de ti, que se dividi-rão; um povo será mais forte do que outro e o mais velho servirá ao maismoço”. Na história bíblica, o ponto da disputa envolve a progenitura. Esaú –o mais velho – era preferido do pai. Foi assim que Rebeca e Jacó (que era opreferido da mãe) trapacearam e a progenitura acaba sendo dada a Jacó, oque provoca ódio e disputas.

Como na Bíblia, o romance também trata da história de gêmeos rivais,que disputam e brigam desde o útero. No entanto, o que se ressalta não dizrespeito à briga pela progenitura. O que se ressalta é o tema do duplo, doidêntico. Nesse “idêntico”, Machado vai aproximá-los da mãe, mantendo opai como provedor, à distância. E aqui se desenrola um palco de “entre ce-nas”: os amores privados se entrelaçam às paixões públicas. A ironiamachadiana explode com as razões públicas, nessa “imixção” com o priva-do. Os gêmeos Pedro e Paulo defenderão, respectivamente, o Império –Pedro, seu defensor, permanece no Rio de Janeiro – e a República – de cujadefesa se incumbirá Paulo que, por seu turno, receberá sua formação emSão Paulo, para onde se desloca, na história de nosso País, um eixo dopoder. Como não poderia deixar de ser, Pedro se forma em medicina e Pauloem direito. Como também não poderia deixar de acontecer, apaixonam-sepela mesma mulher. Machado relata com ironia a antecipação desse eventopor uma suposta leitora que o estaria interpelando:

“Eis aqui entra uma reflexão da leitora: “Mas se duas velhas gravurasos levam a murro e sangue, contentar-se-ão eles com a sua esposa? Nãoquererão a mesma e única mulher?”

O que a senhora deseja, amiga minha, é chegar já ao capítulo doamor ou dos amores, que é o seu interesse particular nos livros... Franca-mente, eu não gosto de gente que venha adivinhando e compondo um livroque está sendo escrito com método.” (p. 910)

Com esse preâmbulo, o autor vai introduzindo a personagem Flora,

que, como as principais personagens femininas machadianas, é capturante.Começa descrevendo os pais de Flora, para situá-los como políticos de oca-sião. A mulher cuidando de que o marido estivesse sempre no poder, nãointeressando convicções políticas. Machado parece sugerir que a indecisãode Flora resulta um pouco dessas posições de seus pais:

“Quem a conhecesse por esses dias, poderia compará-la a umvaso quebradiço ou à flor de uma só manhã... Já então possuíaos olhos grandes e claros, menos sabedores, mas dotados deum mover particular, que não era o espalhado da mãe, nem oapagado do pai, antes mavioso e pensativo, tão cheio de graçaque faria amável a cara de um avarento. Põe-lhe o nariz aquilino,rasga-lhe a boca meio risonha, formando tudo um rosto compri-do, alisa-lhe os cabelos ruivos, e aí tens a moça Flora.”

A imagem “a flor de uma só manhã” – que também faz referência aonome próprio “Flora” – contrasta com outra: “a flor eterna” que Aires carrega-va na lapela. Machado parece compor nesses personagens um certocontraponto, que se arma como trama, que se arma como enredo, mas quecoloca em causa o trabalho de um impossível. Esse impossível Machado vaidesdobrando na construção dos costumes e histórias do Brasil, na passa-gem Império/República. Cada personagem realiza como imagem – logo, comonarrativa de vida – algo que nesse momento problematizou os lugares eideais sociais. Eles são construídos para transmitirem ao leitor muito maisque as impotências cotidianas, que resultam das indefinições subjetivas decada um em relação ao seu desejo. Eles são construídos para transmitiremo ponto no qual se conjugam sujeito e laço social.

A instabilidade da amarração do laço social, que se traduzia comoinstabilidade político-institucional na sociedade narrada, parece ter dadomargem ao que de pior as fragilidades humanas podem produzir. Em condi-ções assim evidencia-se um certo retorno do que em psicanálise se designacomo “originário”, onde o sujeito fica confrontado com absolutos, sem medi-

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ação. Esse retorno diz respeito não tanto aos dramas e querelas que nosinibem, ou mesmo angustiam, dentro do desenrolar normal do cotidiano,mas às condições mesmas de enunciação. Ou seja, diz respeito às condi-ções necessárias para que cada um de nós possa tomar a palavra falandoem nome próprio. Tentemos desdobrar um pouco isso.

Pode parecer tão evidente e natural nossa ação corriqueira de tomar apalavra, mas esse ato é bastante complexo e determinado por questões dasquais não temos consciência. Por exemplo: para que falemos o princípiobásico é o de supormos que seremos escutados. Mesmo que não sejamosescutados por nosso interlocutor da ocasião, precisamos falar em nome dealguma coisa – esse “algo” que nos dá a certeza de que podemos falar,mesmo quando não somos escutados num determinado momento qualquer.Se essas condições antecipadas da necessidade de falar não estiveremconstituídas (psiquicamente) podemos emudecer, nas diferentes formas demutismo sintomático. Então, falar em nome de “algo” é um ato de afirmaçãoque nos permite tomar a palavra, dirigindo nossas escolhas. E aqui aconteceuma coisa curiosa: originariamente, na nossa infância de exercícios de re-presentação – na nossa infância de palavras – o ato de afirmação se dá porum movimento de negação. Isso porque, na nossa infância de palavras, nósas deixamos entregues ao nosso Outro cuidador, esse que nos ensinou afalar. Assim, o movimento de diferenciação, em relação a esse Outro, se dáprimeiro como negação, como um primeiro “não é eu”. Então, veja-se comoé curioso, para afirmar “eu”, precisamos dizer primeiro “não é eu”.

Estas questões de relações com a linguagem trazem as possibilida-des de compartilhar diálogos entre psicanálise e literatura. Ou seja, a psica-nálise – tal como a entendo – não se propõe a analisar psicologias, nem doautor, nem dos personagens. É pelos jogos de linguagem e posiçõesenunciativas – o narrador, por exemplo – que poderemos tecer nossos diálo-gos.

Retomando o romance, desde o ponto em que o deixamos, temosFlora e Aires como contrapontos. E contrapontos na questão fundamentalque acabo de situar: os caminhos tomados por cada um a partir da impossi-

bilidade de afirmação da própria posição. É dessa maneira que Machadocaracteriza os dois personagens. Aires resolve a impossibilidade pela artede corresponder ao que o outro espera: ou seja, afirma desde a imagem dooutro do espelho. É reconhecendo em Flora algo de sua irresolução que elea observa e lhe dá o adjetivo de “inexplicável”. E aqui nos encontramos coma personagem Flora, que surge como uma resolução literária da impossibili-dade de afirmação. Flora, apaixonada pelos gêmeos, vê o mesmo no duplo eo duplo no mesmo. Impossibilitada de escolher, aprisionada no vazio de simesma, que a ausência de diferenciação provoca, ela sucumbe e morre.Todo esse movimento de ausência de centro, de indiferenciação, do excessodo “duplo”, da afirmação pelas bordas e da dupla negação como índice deafirmação, é o movimento de construção dessa obra por Machado. Assim, aleitura da obra nos leva à experiência da impossibilidade de afirmação, colo-cada nas próprias construções da linguagem machadiana. Ou seja, a obranão usa a linguagem como uma ferramenta de observação de uma realidadeque quer demonstrar e fazer surgir perante nós. Na obra, a linguagem é aprópria experiência da situação que está sendo transmitida. Assim, apesarda “cor local”, do contexto específico de um tempo histórico, do drama sin-gular das personagens, a obra de Machado é atemporal e universal. É aprodução da linguagem como produção da experiência que ela visa.

Por esse caminho vamos encontrar inúmeras pérolas. Uma delas en-carnada por Natividade, cujo nome já nos indica a redução à sua função – serA MÃE. Natividade, diferente de Flora, mesmo que complementar, não preci-sa escolher entre Pedro e Paulo. Pelo contrário, ela trata sempre de uní-los,consternando-se com qualquer índice de discordância entre ambos. É assimcom a leitura de uma carta de Paulo louvando a abolição da escravatura,quando ela acha uma frase que pode ofender ao imperador: “emancipado opreto, resta emancipar o branco”. Machado expressa essa ausência de cen-tro de referências com a seguinte construção:

“Não atinou que a frase do discurso não era propriamente dofilho; não era de ninguém. Alguém a proferiu um dia, em discur-

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so ou conversa, em gazeta ou viagem de terra ou de mar. Ou-trem a repetiu, até que muita gente a fez sua. Era nova, eraenérgica, era expressiva, ficou sendo patrimônio comum.Há frases assim felizes. Nascem modestamente, como a gen-te pobre; quando menos pensam, estão governando o mundo, àsemelhança das idéias. As próprias idéias nem sempre conser-vam o nome do pai; muitas aparecem órfãs, nascidas de nada ede ninguém. Cada um pega delas, verte-as como pode, e vailevá-las à feira, onde todos as têm por suas.”

Nesse trecho encontramos o fundamento da reversão da experiênciaque a escrita do romance vai propor. Isso se coloca na passagem de um“Esaú e Jacó” da tradição bíblica, que trazia a referência da progenitura, oque implicava falar em nome do pai a partir de um patriarca, para odescentramento, na nossa experiência, das referências da fala. É a experi-ência desse descentramento que Machado transmite, trazida pelas constru-ções de linguagem. Uma delas é a enunciação pelas bordas, nunca afirman-do de forma direta, como na descrição de Flora: ao escrever “alisa-lhe oscabelos ruivos”, ele contrasta pelo menos duas imagens – liso e ondulado –que ali permanecem na definição do cabelo da personagem. Ou mesmo naexperiência do duplo, quando o que se expressa é essa soldagem do “dois”,definindo-se mutuamente por contrastes. Nesse sentido, cada um não sedefine senão a partir do outro. Também se expressa na dupla negação, ondea colocação de dois “não”s, relativos a uma mesma questão, permite umaafirmação. Essas construções encontram seu ápice a partir da personagemFlora e sua “fusão, difusão, confusão” na relação com os gêmeos, nas suasalucinações:

“Esse fenômeno não creio que possa ser comum. Ao contrário,não faltará quem absolutamente me não creia, e suponha in-venção pura o que é verdade puríssima. Ora, é de saber que,durante a comissão do pai, Flora ouviu mais de uma vez as

duas vozes que se fundiam na mesma voz e mesma criatura...Quando ouvia os dous, sem os ver, a imaginação acabava afusão do ouvido pela da vista, e um só homem lhe dizia palavrasextraordinárias.Tudo isto não é menos extraordinário, concordo. Se eu consul-tasse o meu gosto, nem os dous rapazes faria um só mancebo,nem a moça seria uma só donzela. Corrigiria a natureza desdo-brando Flora. Não podendo ser assim, consinto na unificaçãode Pedro e Paulo.”

Mais adiante, o delírio se faz poesia e o que era negação da experiên-cia, na impossibilidade de afirmação de uma escolha, torna-se afirmaçãopoética na narrativa:

“Dito o fenômeno, é preciso dizer também que Flora, a princí-pio, achava-lhe graça. Minto; nos primeiros tempos, como es-tava longe, não lhe achou nada; depois, sentiu uma espécie desusto ou vertigem, mas logo que se acostumou a passar dedous a um e de um a dous, pareceu-lhe graciosa a alternação,e chegava a evocá-la com o propósito de divertir a vista. Afinalnem isto era preciso, a alternação fazia-se de si mesma.”

Para finalizar, deixo-os com o início do romance. Duas irmãs sobemum morro para consultar uma adivinha – a cabocla do Castelo – a respeito dodestino dos gêmeos. Seus nomes: Natividade e Perpétua. Ou poderíamosdizer Vida e Morte? Na mediação de ambas – vida e morte – a sabedoria dooráculo, na descrição da cabocla Bárbara, como ponto de enunciação deenigma do feminino. Nisso Machado também foi brilhante: deixa-nos a expe-riência do prazer e da vertigem na maravilhosa descrição do feminino comoenigma. Bárbara, ou mesmo Flora, não chegam a ser uma Capitu, mas, emtodo caso, nos fazem a vida como poesia:

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“Bárbara entrou... Era uma criaturinha leve e breve, saia borda-da, chinelinha no pé. Não se lhe podia negar um corpo airoso.Os cabelos, apanhados no alto da cabeça por um pedaço defita enxovalhada, faziam-lhe um solidéu natural, cuja borla erasuprida por um raminho de arruda. Já vai nisto um pouco desacerdotisa. O mistério estava nos olhos. Estes eram opacos,não sempre nem tanto que não fossem também lúcidos e agu-dos, e neste último estado eram igualmente compridos; tãocompridos e tão agudos que entravam pela gente abaixo, revol-viam o coração e tornavam cá fora, prontos para nova entrada eoutro revolvimento. Não te minto dizendo que as duas sentiramtal ou qual fascinação.”

SINGULAR OCORRÊNCIA (A NOSTALGIA DA LAMA)1

Lucia Serrano Pereira

Dois amigos conversam perto da Igreja da Cruz; um aponta ao outro amulher de preto que entra na igreja, e trata de narrar-lhe o episódio.Agora, diz ele, ela deve estar pelos quarenta e seis; conservada,

comentam. Hoje deve chamar-se Maria de tal, na época florescia com onome de Marocas... Linda, “não era costureira, nem proprietária, nem mes-tra de meninas; vá excluindo as profissões e lá chegará”2 .

Andrade, ele segue, um rapaz de 26 anos na época, seu amigo, era“meio advogado, meio político”, casado com uma mulher bonita, afetuosa (eresignada). No diálogo, o outro pergunta “– Apesar disso, a Marocas...?” Aoque o personagem-narrador responde rapidamente: “É verdade, dominou-o”3 .E conta como se deu o encontro: Marocas vinha pela rua, no Rocio4 , Andradese alvoroça com a aproximação da mulher bonita; ela faz como quem procu-ra algo na rua, parando e olhando. Detém-se perto de Andrade e, com vergo-nha e medo, estende a ele um pedacinho de papel, perguntando onde ficavao número que ali estava escrito; Andrade deu as explicações, “ela cortejoucom muita graça; ele ficou sem saber o que pensasse da pergunta”5 (assimcomo eu estou, comenta o amigo que escuta a narrativa).

Era simples, Marocas não sabia ler, mas Andrade não se deu conta,na ocasião. À noite foi ao Ginásio, estava dando a “Dama das Camélias”, ele

1 Fragmento da tese de doutorado em Letras-Literatura Brasileira, UFRGS, 2008; texto a serpublicado no livro “O conto machadiano: uma experiência de vertigem, psicanálise e ficção”, em edição da Cia de Freud, setembro 2008.2 ASSIS, Joaquim M. Machado de. “Singular ocorrência”. In: ASSIS, Joaquim M. Machado de.Obra Completa. Volume II. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1997. p. 390.3 Ibidem, p. 390.4 O Rocio era como se chamava, familiarmente, a atual Praça Tiradentes no Rio de Janeiro.5 ASSIS, Joaquim M. Machado de. “Singular ocorrência”. In: ASSIS, Joaquim M. Machado de.Op. Cit., p. 390.

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vê Marocas que chora como criança, no último ato. Foi o suficiente, ao finalde quinze dias amavam-se loucamente; ela dispensa os outros namorados(e havia “alguns capitalistas” bem bons); passa a viver para ele. Andrade, porsua vez, se faz professor, ensinando Marocas a ler e escrever. Nosso narradorconvive com o casal, mas vai aos feriados com Andrade e, claro, com afamília do amigo.

Marocas, ao despedir-se, recordou a comédia que ouvira algu-mas semanas antes no Ginásio – Janto com minha mãe – edisse-me que, não tendo família para passar a festa de S. João,ia fazer como a Sofia Arnoult da comédia, ia jantar com umretrato; mas não seria o da mãe, porque não tinha, e sim o doAndrade.6

Andrade, presente ao comentário, “Pegou-lhe na cabeça com ambasas mãos, e, paternalmente, pingou-lhe o beijo na testa”7 .

Dela só tem elogios, diz da modéstia da moça que só aceita o neces-sário para suas despesas, pensa até em encontrar uma casa para ela “emalgum arrabalde” assim que tenha dinheiro. O amigo reforça a idéia – já ouviufalar que ela andou empenhando as jóias para pagar a costureira. Ora, oamante fica comovidíssimo. Volta do feriado, Andrade deixa a família na Lapae vai ao trabalho. Pouco depois do meio dia, ele encontra Leandro, um tipomeio reles e vadio, ex-agente de outro advogado. Leandro lhe pede um di-nheiro, Andrade cede, nota que Leandro está muito risonho e resolve pergun-tar o motivo. “O Leandro piscou os olhos e lambeu os beiços”8 .

Aqui a narrativa do episódio faz um pequeno break , volta ao presente,os dois (o narrador-personagem e o amigo atual) vendo Marocas (agora Ma-

ria) saindo da Igreja, elogiam sua beleza, seu porte de duquesa. O que narracomenta “–Não olhou para cá; não olha nunca para os lados. Vai subir pelaRua do Ouvidor...”9 . Volta à narrativa: Leandro diz a Andrade dizendo doacontecimento extraordinário da noite anterior; o encontro no Rocio comuma dama vestida com simplicidade, bonita, vistosa de corpo, que caminhaatrás dele, e que “ao passar rentezinha a ele fitou-lhe muito os olhos, e foiandando, devagar, como quem espera”10 . Leandro achou que, apesar da sim-plicidade, ela era demais para ele, mas ela insistiu, “Foi andando; a mulher,parada, fitou-o outra vez, mas com tal instância, que ele chegou a atrever-seum pouco; ela atreveu-se o resto...” Ah! Um anjo! E que casa, que sala rica!Cousa papa-fina. E depois, o desinteresse...”11 . Leandro diz ainda: “–Era naRua do Sacramento, número tal...”

Andrade se desespera, não acredita, Leandro afirma a veracidade dosfatos, Andrade, ferido, propõe pagá-lo em vinte mil-réis para ir à casa damoça e confirmar tudo em sua presença. Vão, acontece a cena, Marocasempalidece ao ver Leandro que confirma ser aquela a moça, “com voz sumi-da, porque há ações ainda mais ignóbeis do que o próprio homem que ascomete”12 . Andrade fica fora de si, “ela rojou-se-lhe aos pés, agarrou-lhe asmãos, lacrimosa, desesperada, ameaçando matar-se; e ficou atirada ao chão,no patamar da escada; ele desceu vertiginosamente e saiu”13 .

Voltando ao diálogo dos dois amigos: “Na verdade, um sujeito reles,apanhado na rua; provavelmente eram hábitos dela? – Não. – Não?”14 .

Andrade procura o amigo, tenta fugir à realidade, mas esta vinha a ele,a palidez de Marocas, a sinceridade de Leandro. O narrador-personagem diz“Quanto a mim, cogitava na aventura, sem atinar com a explicação. Tão

6 ASSIS, Joaquim M. Machado de. “Singular ocorrência”. In: ASSIS, Joaquim M. Machado de.Op. cit., p. 391.7 Ibidem, p. 391.8 Ibidem, p. 392.

9 Ibidem, p. 392.10 ASSIS, Joaquim M. Machado de. “Singular ocorrência”. In: ASSIS, Joaquim M. Machado de.Op. cit., p. 392.11 Ibidem, p. 392.12 Ibidem, p. 393.13 Ibidem, p. 393.14 Ibidem, p.393.

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modesta! Maneiras tão acanhadas!” O outro responde: “–Há uma frase deteatro que pode explicar a aventura, uma frase de Augier, creio eu: ‘a nostal-gia da lama’. – Acho que não, mas vá ouvindo”15 .

O conto caminha para a conclusão, Marocas desaparece, a criadapede ajuda a Andrade, por fim a encontram no outro dia profundamente aba-tida em um hotelzinho barato. Caíram nos braços um do outro, nada seexplicou, Andrade a instalou em uma casinha no Catumbi, ainda tiveram umfilho que morreu aos dois anos. Depois de algum tempo, morre Andrade,Marocas pôs luto, se considerou viúva. Passam-se os anos e os dois ami-gos terminam o diálogo:

– Pois senhor, é curioso. No meio de uma paixão tão ardente,tão sincera... Eu ainda estou na minha; acho que foi a nostalgiada lama.– Não: nunca a Marocas desceu até os Leandros.– Então porque desceria naquela noite?– Era um homem que ela supunha separado, por um abismo,de todas as suas relações pessoais; daí a confiança. Mas oacaso, que é um deus e um diabo ao mesmo tempo... Enfim,cousas!16

Singular ocorrência, o título do conto, se diz como algo de certa ma-neira trivial, como uma curiosidade, mas que ao mesmo tempo, no recorte,vai circunscrever um enigma que envolve os dois homens – o Outro sexo,suas hipóteses, e uma interrogação que não se resolve preto no branco. Écomo um comentário en passant que a cena se arma, na circunstância dever a mulher que entra na igreja, enquanto “se joga conversa fora”, na rua.Fala-se de Andrade e Marocas.

A lembrança vai ao tempo em que Andrade além de “meio advogado,meio político” (o que já chama atenção sobre uma certa vacilação das posi-ções às quais ele responde) é apresentado, pela lógica que Machado impri-me, como “meio casado” – tinha uma mulher bonita, afetuosa e, aí o detalhediscreto no contraste: “resignada”. Por que resignada? Machado nos leva aadicionar mais um elemento na série dos meios, lógico, “meio mulherengo”.

Marocas, por sua vez, é dita econômica e suficientemente em umapalavra: ela “florescia”. Flor que rapidamente se alinha no suposto sugeridoda camélia; assim como Margarida Gautier, a Dama das Camélias, ela tema origem na promiscuidade e na prostituição: “...vá excluindo as profissões elá chegará”. Esses poucos traços destacados de um e de outro são suficien-tes para dar o tom do encontro; fica claro que Andrade já se apresentou, emseu alvoroço, antecipando a aproximação daquela mulher bonita, na rua,como aquele que estaria sensível à abordagem, e, nesse sentido, é ele quemse oferece à Marocas; ela, nesse primeiro momento, faz o exercício de seuofício, mapeia, e, mais do que se oferecer, efetivamente o escolhe. O dramadentro do conto. Encena-se a Dama das Camélias, no teatro do Rio, ambosassistem, ele a observa: ela chora, se identifica. A história se delineia, Marocasserá devotada a Andrade como Margarida a Armando, com todos os sacrifíci-os, dispensando os bons capitalistas que a sustentam, merecendo a purezado beijo na testa. É como Margarida que empenha todos os seus bens, osdiamantes, devolve os cavalos comprados a crédito, vende sua linda capa,tudo para pagar suas dívidas e deixar a “vida anterior”. Marocas, por sua vez,penhora suas jóias para pagar a prosaica conta da costureira, também emsilêncio, sem queixa. Margarida, apesar de todas as renúncias, sabe muitobem o seu lugar: “[...] quero tomar-lhe o coração, nunca hei de lhe tomar onome. Há coisas que uma mulher não apaga de sua vida, Nichette, e quedariam ao marido o direito de censurá-la”17 . A “Dama das Camélias”, impor-

15 Ibidem, p. 393.16ASSIS, Joaquim M. Machado de. “Singular ocorrência”. In: ASSIS, Joaquim M. Machado de.Op. cit., p. 395. 17DUMAS FILHO, Alexandre. A dama das camélias. São Paulo: Brasiliense, 1965. p. 56.

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tante lembrar, estreou em Paris em 1852, e fez sucesso no Rio de Janeiro,em 1856. Segundo Gledson18 , a regeneração por amor da cortesã MargaridaGautier suscitou, na época, vários contra-ataques, dos quais a peça de ÉmileAugier foi um dos mais conhecidos. Em Augier19 , ”la nostalgie de la boue”tem a ver com a personagem Olympe Taverny, ex-cortesã, que casa com umconde, mas que por tédio ou “nostalgia da lama”, retoma seus antigos rotei-ros.

Duas posições antagônicas, marca João R. Faria, em seu texto “Sin-gular ocorrência teatral”20 , onde examina o conto na relação às três peçasem movimento, na intertextualidade. Em Dumas, a virtude que pode ser en-contrada e resgatada da “lama”; em Augier, se trata da posição conservado-ra, com a qual Machado não concorda21 , enunciada na peça pela voz domarquês que afirmará que um pato levado a um lago de cisnes inevitavelmen-te sentindo falta de seu charco, voltará a ele. Otto Maria Carpeaux faz tam-bém o assinalamento da diferença entre Dumas e Augier; dizendo que esteprevine os pais contra o perigo das aventuras eróticas para os filhos, o quepoderia corromper a família, enquanto Dumas Filho fazia a defesa da “liber-dade erótica dos filhos contra as convenções rigorosas da família francesa,das quais a ’prostituta virtuosa’ se torna a vítima”22 .

Em “Singular ocorrência”, um elemento a mais: a moça não era umacortesã nos moldes europeus, ligada à riqueza e ao luxo que circulam nasaltas rodas, e sim uma prostituta pobre em sociedade de origem colonial eescravocrata. Os lugares na circulação social estão bem delimitados, é pa-cífico que o feriado de Andrade é com a família; Marocas aceita o fato comhumor – vai jantar com o retrato – e sem nenhuma reivindicação. Ele como-ve-se com a situação de Marocas, apontada pelo amigo (em conversa, con-fortavelmente entre os seus, nas festas da família, bem claro), ali aparece asolução devida, o lugar merecido a ser coroado com... uma casinha noarrabalde.

O bom equilíbrio se perde quando irrompe a simultaneidade dos funci-onamentos, as “faces” bem separadas apresentam o moebiano de seu movi-mento: repentinamente tudo se desorganiza. O que era da ordem da promis-cuidade estava confinado pela ordem temporal, era coisa do passado; reapa-rece ali no tempo onde nada é reivindicado por Marocas, mas que produz umintervalo, o tempo do feriado, uma volta a mais que permite que o avessoentre em cena.. Os lugares ocupados por cada um entram em vertigem:Andrade que era tão amoroso e protetor (dentro dos contornos possíveis desua circunstância) não economiza na crueldade; Leandro representado nosumidouro da voz que atesta o efeito da ação que o confirma em um lugarreles; Marocas em desespero se desgarra pela cidade, como se deixandomorrer de dor, indo para um lugar qualquer em abandono, depois de ter sedeixado tomar pelo circuito de um gozo que a fez repetir pontualmente opasseio pelo Rocio. Disso, do gozo, não se tem dúvida, Marocas escolheLeandro porque não pode escapar disso que acontece disparado por umolhar, pelo “olhar intenso”, nada a ver com romance. Leandro fica perplexo,abalado com o desinteresse dela ao final. Não se tratava mesmo de Leandro,mas sim de “um” Leandro, um que permitisse que algo outro emergisse,essa face que se supunha “separada” do mundo de Marocas com Andradepor um abismo.

Machado realiza no conto a experiência da coexistência, e nisso adesarticulação da suposta dupla face. Ela reúne a mulher pura que o amor

18 Nota de John Gledson. In: ASSIS, Joaquim M. Machado de. Contos: uma antologia. Vol. II.São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 51.19 A peça de Augier, em questão, se intitula Le marriage d’Olympe, tendo sido traduzida parao português em 1857. A partir da pesquisa realizada por John Gledson sabemos que a peçafoi proibida pela censura naquela época; mais adiante, em 1880, foi representada no Rio,com sucesso.20 FARIA, João. “Singular ocorrência teatral”. In: Revista da USP de junho, julho, agosto de1991, p. 161.21 Segundo João Roberto Faria o Casamento de Olympia foi comentado por Machado deAssis em uma crônica escrita em 8 de janeiro de 1860, onde ele estabelece diálogo entreesta e as idéias de Dumas filho.22 CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental, vol. V. Rio de Janeiro: Alhambra,1978. p. 2124.

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cristão propõe, amorosa, modesta e, sobretudo, casta, ou seja, idealizada;e a mulher degradada que “retorna”, “desce” e transgride; o enigma que deixao narrador e o amigo na rua ainda com um ponto de interrogação e algumashipóteses. Mulher idealizada, mulher degradada são as posições para asquais Freud chama a atenção, no mesmo final de século, como uma distri-buição de lugares que não raro um homem supõe, para desde ali poderabordar uma mulher: a idealizada, que se aproxima da mãe e que, portanto,fica um tanto intangível ou para fora do desejo sexual, a esposa – mãe dosfilhos; e a mulher degradada, algo de prostituta, com quem se pode ter oprazer do sexo, o trato do objeto sexual. Uma para o amor; outra, para osexo.

Machado dá a fisgada: pelo detalhe do endereço (genial, pois endere-ço, afinal de contas, é o lugar de cada um), “Rua do Sacramento númerotal...” faz coincidir na mesma mulher as duas posições: afinal, o “endereço”é o mesmo... A ironia do acaso junto com a complexidade das posições queatravessam a subjetividade. Estamos perto, aqui, do moebiano na estrutura.

Cito o clássico de Jankélévich a propósito da ironia, ela mesma, notrato da simultaneidade do par virtude/pecado; o autor discorre sobre a cons-ciência irônica:

[...] c’est là sa force, mais aussi sa faiblesse; elle est consci-ente à l’extrême, avec des vastes zones d’inconscience; sensibleau dehors, anesthésiée au-dedans, elle ressemble à ces gransmoralistes que devore soudain une violente fièvre de vertu etqui n’ont jamais d’yeux pour leur propre bassesse.23

Deus e o diabo no mesmo movimento.Por onde se deu a passagem, qual o objeto que recortado produz

como resto o dar-se à mostra do funcionamento moebiano? O objeto que serecorta em “Singular ocorrência” nos devolve para o olhar. O olhar de Andrade,que se prepara para a aproximação de Marocas, na rua, alvoroçado; o olhardela que o escolhe; o olhar para Leandro, intenso, insistente, o olhar que sevolta e fita outra vez, convida, chama e se atreve; por último, o olhar dos doishomens que acompanha “Maria” em seus trajetos, da igreja ao Ouvidor. Olharesque sustentam o enigma, a nostalgia da lama.

A nostalgia da lama24 pode ser lida como esse “vício” pelo viés dadiscussão dos valores em pauta no contexto, que as peças teatrais e seusautores, convocados por Machado, tratam de interrogar e que os persona-gens debatem. Mas a leitura do conto permite também uma possibilidade amais, aproximando a expressão “nostalgia da lama”, da maneira pela qualMachado posiciona a sua inclusão no conto, como um saber do funciona-mento do humano para além das intenções, algo que Freud vai formular maisadiante, por ocasião da virada importante em sua própria obra, abordando otema da compulsão à repetição: o que se repete e está além do princípio doprazer, o gozo vicioso que acena sempre com algo do mortífero, da “lama”, afantasia que organiza a posição de cada um como um objeto entregue aogozo do Outro, cena da fantasia primordial que implica o risco da queda –vertigem, mesmo que fugaz, da condição de sujeito (para ocupar o lugar deobjeto, tomado irresistivelmente no circuito da repetição). Não poderíamosconsiderar que Marocas encena, na ficção, para além da prostituta virtuosaou não do fim de século, a irrupção dessa espécie de areia movediça querecém iniciava o caminho de sua formulação?

24 Devo ao professor Flávio Loureiro Chaves, com suas observações e notas de leitura, odesdobramento das vias de cruzamento que envolvem a “nostalgia da lama”.

23 JANKÉLÉVITCH, Vladimir. L’ironie. France: Flammarion, 2005. p. 24.“[...] aqui está a sua força, mas também a fraqueza; ela é consciente ao extremo, comvastas zonas de inconsciência; sensível ao fora, anestesiada no interior, ela parece comesses grandes moralistas que de repente devora uma febre violenta de virtude e que nuncatêm olhos para a sua própria baixeza.”

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literatura, sempre atenta ao detalhe destas gotas de infinito, soube indicar,com o texto de pesquisa que produziu, um desenho delicado e contundenteao mostrar a ferida que se abre nos contos do grande Machado de Assis.Esta imagem, portanto, já nos fala de algo essencial: onde situar os litoraisdo espaço literário de Machado de Assis? Por que estes litorais nos fasci-nam? Qual a equação de gozo estético que estes textos permitem deduzir?Antes de atravessar a rua, o olhar, como se fosse possível se salvar doatropelamento. Tarde demais!

“Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde aágua e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro,longo, longo, interminável”.3

Para quem leu o parágrafo seguinte da Cartomante sabe que o naufrá-gio é iminente . Esta, sabemos, é também a experiência de escrever, lançar-se no texto de um grande autor como Machado de Assis e poder destepercurso trazer um testemunho de ascensão e queda. Escrever é a puraexperiência da perda, de um errar, e por isto que Eduardo Milan, em suacoletânea de Ensaios, traz logo no primeiro ensaio a imagem do mar e dodeserto. Diz ele que no deserto a única possibilidade é insistir, e insistir éestar em estado de absoluta disponibilidade. “Não é possível clamar no mar,mas é possível reclamar no deserto. Reclamar: estar em estado de escuta.Estado de escuta é também estado de alerta.” 4

Entramos neste deserto convictos de que a arte ainda pode nos pre-servar da estupidez. É neste ponto que, no meu entender, há um diálogo ricoe possível, entre literatura e psicanálise, pois o que Lucia chama do efeitovertigem é a própria condição de possibilidade de um sujeito que ainda pos-sa imaginar, pensar, transpor, criticar e assim arriscar-se a atravessar algu-ma avenida central. Resistimos, é claro, produzindo os objetos em sua pró-

3 ASSIS, Machado. A cartomante. In: Contos de Machado de Assis, Editora Movimento, PortoAlegre, 2000, p. 264 MILAN, Eduardo. Resistir: insistências sobre el presente poético, Fondo de Cultura Econô-mica, Cidad de México, 2000, p.15

BREVES NOTAS A PARTIR DE ALGUMASVERTIGENS MACHADIANAS 1

Edson Luiz André de Sousa

1. VERTIGEM

“Às vezes recebemos em gotas o infinito”Robert Musil

Tonka 2

Atese de Lucia Serrano Pereira inicia com uma imagem. Logo depoisdo título, surge uma carta fora de lugar, necessariamente fora delugar, já que sua proposição inicial, indicada no título, nos aponta o

horizonte de perturbação: uma experiência de vertigem. Avenida Central doRio de Janeiro: eixo de movimentos, de travessias. O tempo pulsa diante dasede do texto: fazer o leitor atravessar, fazê-lo transitar nos circuitos desco-nhecidos de seus fantasmas. Esta avenida poderia, portanto, ser vista emseu avesso, ou mesmo nas pequenas sombras que se fazem presentes narua. Este mapa inicial da pesquisa abre-nos caminho para o espírito mesmomachadiano, que é de nos virar do avesso e assim inverter a perspectiva,exatamente como propõe o pintor uruguaio Torres-Garcia com seu potentedesenho de uma América de cabeça para baixo. Qual o caminho que per-correremos? Agora não mais do sul ao norte, nesta equação contemporâ-nea, símbolo geográfico de uma ascensão, mas da queda vertiginosa de umnorte que não mais se sustenta. Lucia, psicanalista, apaixonada por arte e

1 Anotações feitas para a argüição da tese de doutorado de Lucia Serrano Pereira no Pós-Graduação em Letras da UFRGS intitulada “O conto machadiano: uma experiência de verti-gem”. Tese defendida em junho de 2008 e orientada pelo Prof. Dr. Luis Augusto Fischer2 Um dos contos do livro “As três mulheres “ de Robert Musil.

SOUSA, E. L. A. DE. Breves notas...

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pio, em aplaudir e odiar, foram enormes. Junta a isso as revolu-ções, as anexações, as dissoluções e as invenções de todacasta, política e filosóficas, artísticas e literárias, até asacrobáticas e farmacêuticas, e compreenderás que é um sécu-lo esfalfado”

2 . A ESCRITA COMO FERIDA: ACROBACIAS FARMACÊUTICASLucia mostra em sua apresentação e nos quatro grandes capítulos

que se seguem, a condição da ferida da escrita, desdobrando uma série deconceitos, em movimento de esgrima e rimas, a partir dos contos machadianosque escolhe para analisar. Percorre conceitos e reflexões como: narrativa epassagem, outra cena, a função do real e seus efeitos, o lugar do duplo, alógica do desejo, a ironia e obliqüidade, o engodo da sedução, os enganosda imagem, as torções do sujeito e, sobretudo, como fio condutor do texto,a experiência de vertigem.

Torce o texto e revela suas feridas, um pouco no espírito com queJean Genet escreve sobre Rembrandt:

“Agradável ao olhar ou não, a decrepitude é real. E, por conse-guinte, bela. E rica de... Você já teve uma ferida no cotovelo,por exemplo, que tenha infeccionado? Ela ganha uma crosta.Com a unha, você a levanta. Debaixo, vê os filamentos de pusque apodreceriam essa crosta se a infecção se prolongasse.Na verdade, todo o organismo trabalha para esta ferida” 8

A tese é exatamente este organismo, mas que funciona para o leitorcomo uma espécie de farmácia, que tem a consciência de que toda obra dearte é um curativo do vazio que jamais cicatriza. Algumas crostas se formam

8 GENET, Jean. Rembrandt, Editora Jose Olympio, Rio de Janeiro, 2004, p.22

pria queda, como aponta Lucia na citação inicial de Roger Caillois. 5 pegamo-nos ao corrimão, à pequena pedra no chão, à lembrança de infância, àspalavras de alguma cartomante para evitar a queda no abismo e o pontofinal. Mas é este justamente o ponto onde é preciso saber parar e apontar oequador: assim o sul pode sonhar com o norte e o norte buscar as seduçõesdesconhecidas do sul. Do céu do sul, do céu do seu eu, céu meu, seumeu... 6 Como indica Susan Sontag um querer saber sobre a dor do outro. 7

Creio ter encontrado este estilo nesta tese que soube apontar os pontos decorte, de queda, de avessos, mostrando a potência de um diálogo consisten-te entre literatura e psicanálise.

O saber que nos interessa é aquele que nos dissolve, e é por isto quea literatura sempre fascinou e ensinou muito a Freud e Lacan. Lucia Pereirarecupera um Machado de Assis atento a esta dissolução: com seu humor,ceticismo, atento às obscuridades que os constituem e implacável na lógicade suas narrativas.

Comemoramos, neste ano, 100 anos da morte de Machado de Assise é impressionante o quanto seu texto ecoa ainda de forma precisa, atualida-de que Lucia menciona na apresentação de sua tese. Em uma pequenacrônica, publicada em 28 de fevereiro de 1897, Machado de Assis dizia oseguinte:

“(...) este século acabou por deitar todos os nomes no mesmocesto, misturá-los, tirá-los sem ordem e cosê-los sem escolha.É um século fatigado. As forças que despendeu, desde o princí-

5 Segue a citação de Roger Caillois que Lucia menciona: “Y es para el insecto el resplandorde la llama, para el pájaro los ojos fijos de la serpiente, y el vacio para el hombre. Pero esteúltimo, más desgraciado, posee además uma imaginación que sabe hacer surgir objetos devértigo em que la realidad no suministra nada que deba confudirle” Vértigos (Instintos ySociedad)6 Dialogo aqui com um dos fragmentos de Fernando Pessoa do Livro do Desassossego ondealude a este “céu meu”.7 Ver SONTAG , Susan. Diante da dor dos outros, Companhia da Letras, São Paulo, 2003

SOUSA, E. L. A. DE. Breves notas...

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ainda não sabe. Mas ele sonha, ele imagina, ele quer ir além. Este viajantemachadiano não se contenta com os guias de viagens e nem com os rotei-ros antecipados. Ele se lança ao acaso, ele quer errar, se perder, cair, viver oexílio da língua que indica algo sobre sua origem. Ela vai buscar esta origemaonde menos espera. Esperanças e desesperos...

Lucia continua seu percurso/viagem desde seu mestrado em 2003 emque tive o prazer de também compartilhar o momento de conclusão e queresultou no belíssimo livro “Um narrador incerto entre o estranho e o familiar:a ficção machadiana na psicanálise”.

3. CONTATOS E DESCONTINUIDADESOutro ponto central diz respeito à lógica do que faz contato e como as

descontinuidades vão surpreendendo o leitor. Aqui, a literatura machadianase aproxima do ato analítico rompendo sem piedade a paixão da ignorânciaque nos constitui quando queremos ser como o semelhante. Voltando aCaillois, em outro texto que poderia até ter sido citado,“o semelhante produzo semelhante”. 11 Machado veste as repetições, as compulsões, o humanodemasiadamente humano para, no momento preciso, fazer com o fio de sualetra, de seu nome cortante, o ato que reposiciona o leitor diante do Outro.Corte como ato criativo e que aciona as descontinuidades que Lucia lembroumuito bem em inúmeros momentos do seu texto. Esta descontinuidade nosremete, como sabemos, aos limites do dizível. Duchamp, em seu Ato Cria-dor, lembra que no processo de criação , este que passa da intenção àexpressão, falta um elo. Ali se aloja o pensamento que resiste, ali Machadovai buscar seu norte ou seu sul. O elo que falta. Tantas imagens surgemneste ponto. Pensei na função do silêncio, nos filmes de Antonioni sobre aincomunicabilidade ( A noite, A aventura, O eclipse).

11 Referência ao texto de Roger Caillois “O mimetismo e a psicastenia legendária”. In: Lemythe et l’homme, Gallimard, Paris, 1938

e vem a unha a arrancar sua aparente resolução. Há, neste sentido, umasintonia entre a estilística da reflexão conceitual e condução do pensamentoe algo do ritmo machadiano que pulsa no texto da tese, em um mimetismoque eu nomearia como necessário e saudável. Não sei exatamente compro-var esta percepção, mas me permito repartir minhas impressões e vertigensna condição de leitor privilegiado neste trabalho. Fiquei pensando se nãoteria sido oportuno (e fica aqui como outra janela possível) a convocaçãomais enfática do conceito de objeto a – segundo Lacan, sua única invenção– como operador potente da trama machadiana. O objeto a como objetocausa do desejo vem a desalojar a crosta dos desejos que se esvaziam emhábitos e assim fazem o sujeito acordar no momento mesmo de sua queda:a queda (de uma imagem) como salvação. Mas à queda do sonho 9 cumprea função crucial do despertar. Ali podemos rir com Machado do engodo comque vestimos desesperadamente nossos pequenos objetos. Esta reflexãoestá, mesmo assim, presente no texto. Como aponta na página 39 de suatese, ao evocar Roland Chemama que diz que Machado “sabe muito bemque não podemos ir diretamente até o objeto que nos fascina”. Uma outravertente possível neste desenvolvimento poderia eventualmente ser tambéma potência política desta reflexão em torno do objeto a, já que esta espéciede descontrução do castelo de cartas mostra que é nos escombros quepodemos encontrar o que ainda resta de sujeito. Assim, Machado interpelaas ideologias vorazes, a lógica dos valores, e deixa uma espinha na gargantado viajante, que como lembra Musil, na última frase de sua conferência sobrea estupidez feita em Viena em 1937: “E agora, com o pé sobre a fronteira,confesso-me incapaz de ir mais longe: bastava um passo em frente, comefeito, e deixaríamos o domínio da estupidez que permanece, mesmo queabordado teoricamente, tão variado, para entrar no reino da sabedoria, regiãodeserdada e geralmente evitada pelos viajantes” 10 . O viajante, portanto,

9 Ver por exemplo o conto “Uma férias” de Machado de Assis.10 MUSIL, Robert. Da estupidez, Editora Relógio D’água, Lisboa, 2000, p. 36

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bém cumpre uma função interpretativa de seu tempo e dos tempos quevirão!

Vertigem utópica deste encontro rico que tenho tido a chance decompartilhar com minha colega e amiga Lucia, que soube me conduzir tãobem a este ponto limite, como leitor, e que me permite mergulhar neste marmachadiano com segurança, já que construímos há tanto tempo laços deconfiança, admiração e diálogos. Fico aqui com a esperança de que estasbreves pontuações possam nos ajudar a avançar um pouco mais neste de-serto, que, por sorte, ainda podemos escutar.

A proposição em torno da Banda de Moebius abre a vertigem quepode ser enunciada da seguinte forma: o que vemos não é aquilo que ve-mos. O que parece ter duas faces tem uma só. Trata-se, portanto, como fioda navalha, de saber cortar o contínuo e nisto Lucia é cristalina quandoaborda, no contexto da tese, a interpretação e o ato analítico. Lembra Luciana pg. 91:

“ Nesta operação, a do corte, Lacan sustenta duas noções fun-damentais da prática analítica, a interpretação e o ato analítico.Esse corte é a interpretação, é o ato: o corte, no tempo em queele se realiza , mostra a superfície da banda e ao mesmo tem-po vai destruindo-a – o espaço se apresenta, se revela ao desa-parecer, se “esfumaçar” enquanto tal... O corte faz com que oinconsciente seja produzido como um avesso”.

Impossível para mim não evocar neste ponto o trabalho da artista plás-tica Rosangela Rennó em suas séries de imagens projetadas em finas pelí-culas de vapor que aparecem como sístoles e diástoles, como uma respira-ção, mostrando que sem fundo não vemos nada, e que toda imagem perdeo foco quando seu fundo/anteparo não faz mais função de muro.

O quinto capítulo, que discorre sobre cada conto, funciona para mimcomo instantâneos de máquinas fotográficas, que Rosangela Rennó usoupara uma última imagem e depois as lacrou para sempre. Texto/imagem quese renova, contudo, na leitura e não na técnica. Por isto, Lucia tem razão emapontar a potência da obra em sua condição de resistência às interpreta-ções que querem soldar qualquer fresta. Texto vivo, texto unha, texto ferida.

4. UTOPIASAs verdadeiras utopias são, portanto, iconoclastas. Dissolvem ima-

gens e se recusam a fixar sal de prata na folha em branco. Machado, nesteponto, foi apresentado em sua cortina de fumaça, que me faz procurar outrosares, abrir janelas, buscar imagens, produzir pensamentos. Aqui a obra tam-

SOUSA, E. L. A. DE. Breves notas...

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Após a gritaria, soam apenas os talheres e, em seu calar, Inácio pro-cura aqueles que são o alento dessas últimas cinco longas semanas emcasa estranha: os braços de Dona Severina.

“Inácio ia comendo devagarinho, não ousando levantar os olhosdo prato, nem para colocá-los onde estavam no momento emque o terrível Borges o descompôs. Verdade é que seria agoramuito arriscado. Nunca ele pôs os olhos nos braços de D.Severina que se não esquecesse de si e de tudo.”

O conto então conta sobre D.Severina: tem, lembremos, vinte e seteanos, está casada há muito tempo com Borges; nem bonita nem feia, nemgrossa nem fina, penteado simples. “No pescoço, um lenço escuro; nasorelhas, nada.” Os braços trazidos à mostra unicamente porque todos osseus vestidos de mangas compridas estavam já gastos. “De pé era muitovistosa; andando, tinha meneios engraçados; ele, entretanto, quase que sóa via à mesa, onde, além dos braços, mal poderia mirar-lhe o busto”.

Inácio ficava assim restrito às curvas femininas que se vêem na situa-ção comportada da mesa, de onde ele podia admirá-las sorrateiramente,dissimuladamente. Demorava-se no café, pois assim não perdia a vista doscheios braços. Sendo dispensado da mesa pelo doce Borges, aos brados de“Homem, você não acaba mais?”, foi ter consigo mesmo no quarto. Deses-pera-se com aquela vida enfadonha e silenciosa.“- Deixe estar – pensou ele-, um dia fujo daqui e não volto mais. Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentadopelos braços de D. Severina. Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos. Aeducação que tivera não lhe permitia encará-los logo abertamente, pareceaté que a princípio afastava os olhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, aover que eles não tinham outras mangas, e assim os foi descobrindo, mirandoe amando. No fim de três semanas eram eles, moralmente falando, as suastendas de repouso. Agüentava toda a trabalheira de fora, toda a melancoliada solidão e do silêncio, toda a grosseria do patrão, pela única paga de ver,três vezes por dia, o famoso par de braços.”

UNS BRAÇOS, UMA LEITURA(OU: UNS BRAÇOS, UMA MOSCA, UM SONHO)

Marieta Madeira Rodrigues

Inácio estremeceu ouvindo os gritos do solicitador, recebeu o prato queeste lhe apresentava e tratou de comer, debaixo de uma trovoada de nomes: malandro, cabeça de vento, estúpido, maluco.”

Assim Machado de Assis inicia Uns Braços, conto datado de 1896.Visto o presente texto pretender uma leitura do conto, inicia-se, portanto, domesmo modo. O acontecido se passa no Rio de Janeiro de 1870, temposidos nos quais lá ainda vivia o Bruxo do Cosme Velho. Inácio tinha sidoenviado pelo pai para trabalhar com o solicitador (e gritão) Borges, na espe-rança de que o rapaz transitasse entre fóruns e procuradores. Como eracomum naquela época, disso decorria que o rapaz vivesse na casa de Borges,convivendo com ele e sua esposa, D.Severina, senhora que contava vinte esete anos “floridos e sólidos”.

No almoço narrado no início do conto, o amigável Borges queixa-se deInácio a D.Severina, ressaltando-lhe um traço do rapaz que a Borges muitoirrita: o sono (sabe-se que com o sono vem o sonho, e parece-nos que Borgesjá perdeu a capacidade de sonhar, endurecido pela vida, veremos em segui-da que o mesmo não aconteceu a D.Severina ou a Inácio).

“D. Severina tocou-lhe o pé, como pedindo que acabasse, Borgesespeitorou ainda alguns impropérios, e ficou em paz com Deuse os homens.Não digo que ficou em paz com os meninos, porque o nossoInácio não era propriamente menino.Tinha quinze anos feitos ebem-feitos. Cabeça inculta, mas bela, olhos de rapaz que so-nha, que adivinha, que indaga, que quer saber e não acaba desaber nada. ”

RODRIGUES, M. M. Uns braços, uma leitura.

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SEÇÃO TEMÁTICA

silenciosa e teimosa. Mas o leitor sabe que uma mosca dessas é muitopoderosa...

Severina começa, ela mesma, a mirar Inácio, e conclui que é amada.Um descobrir desses não é via de mão única, não é sem conseqüências...Adescoberta do homem no menino faz descobrir uma mulher na antes severaD.Severina, e esse nome queda incerto. Ela oscila entre severa e meiga, àsvezes muito meiga com ele. Inácio inquieta-se, confuso. Quer ir embora,mas, de novo, não vai: “Os braços de D. Severina fechavam-lhe um parênte-ses no meio do longo e fastidioso período da vida que levava, e essa oraçãointercalada trazia uma idéia original e profunda, inventada pelo céu unica-mente para ele.”

(Vale evocar aqui a leitura feita por Roland Chemama a respeito desteconto. Ele ressalta precisamente os parênteses, esse sinal tipográfico que,surgindo em par, lembra o par de braços que no mesmo movimento abre efecha um intervalo, permitindo uma abertura e um abraço. Os parênteses,num texto, permitem a inclusão daquilo que não pode deixar de ser mencio-nado, de algo que emerge às vezes inusitadamente, mas que é invariavel-mente imprescindível, ainda que descompassado da fluência do discurso emcurso. Difícil não associar à fala em análise, quando é interrompida por algoque irrompe, como vindo do nada, daquele nada que tanto diz do sujeito eque a atenção flutuante do analista pesca sem piscar. O analisando, surpre-so pela idéia intempestiva que força caminho, abre parênteses como quemabre os braços, desarmando-se. O analista a recebe de braços tambémabertos e ouvidos atentos, pois isso que irrompe é da ordem do desejo dosujeito que ali se enuncia. Não é de admirar, voltando ao nosso Inácio, oquanto os braços-parênteses de D. Severina o acolhiam. Não raro o amor éna vida algo assim entre parênteses, uma experiência silenciosa e emsuspenso, um intervalo não compartilhado na oração, uma idéia insistente epulsante, aquela mosca teimosa que retorna...)

A agitação de Inácio aumenta, não está bem em parte alguma.D.Severina é evocada em cada mulher que lhe cruza o caminho. Dorme malà noite a pensar nela. Até que chega um domingo...Machado provoca: um

“Descobrindo, mirando e amando”, nos diz Machado. Os braços sãodescobertos por Inácio, descobertos não só por carecerem de mangas, masporque ganhavam outro vislumbrar. Ao perderem a noção anatômica de bra-ços, ganhavam a erotização de braços outros, com cor, textura e recheio. Aoserem descobertos, passam a ser mirados e mirados, à exaustão, miragemque leva o jovem Inácio a lugares nunca antes visitados, como o amor. AssimInácio se faz homem, nesse preciso movimento que nos aponta Machado:da descoberta para o olhar, do olhar para o amor. O amor por sua vez tam-bém descoberto a partir desse pequeno traço do outro, traço-gatilho quedesperta o homem. O homem desperto será, por sua vez, descoberto pelamulher...é o que se segue.

“D.Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantare, pela primeira vez, desconfiou alguma coisa. Rejeitou a idéialogo, uma criança! Mas há idéias que são da família das mos-cas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam epousam. Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre onariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço.Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita?” Aincredulidade vai sendo substituída por uma doce redescobertade sua própria beleza. A severidade vai dando lugar a uma diva-gação benevolente sobre si mesma... mas o devaneio é brusca-mente interrompido por Borges, que, em sua ignorante sutile-za, compartilha com o leitor a leitura do que se passa: “O que éque você tem? (...) Parece que cá em casa anda tudo dormin-do!”

Borges percebe a distração da dupla, mas sem nada perceber. D.Severina, que agora convive com a mosca teimosa, tenta em vão harmoni-zar-se com ela: deveria dizer a Borges o que se passa? Mas, afinal, o que sepassa? É só uma idéia, uma mosca...Machado coloca a todos, leitor e per-sonagens, numa zona de desconforto causada por uma idéia, uma idéia

RODRIGUES, M. M. Uns braços, uma leitura.

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Aqui o sonho coincidiu com a realidade e as mesmas bocasuniram-se na imaginação e fora dela.”

D. Severina resta incomodada com o que fez. Teme que Inácio apenasfingisse dormir...no entanto, ele estivera mesmo dormindo. Acordou-se “lépido”,Inácio desperta satisfeito com seu sonho. Também, pudera! D.Severina eBorges, durante o jantar, estavam como de hábito: ele ríspido e ela severa.Mais severa que antes, visto que a cabeça dava voltas a recriminar-se, a nãocrer no beijo que dera, a duvidar que o menino estivesse mesmo dormindonaquele momento de deslize... tinha calafrios, estava vexada, atormentada,aborrecida com tudo. Inácio, no entanto, não notava nada, ainda perdido navisão paradisíaca do beijo do sonho. Tão perdido e lépido estava que nãoreparou em D.Severina, que nesta noite jantou com um xale encobrindo osbraços.

A confusão entre sonho e realidade que Machado nesse conto nosoferece fala por si. O sonho invade a vida e a vida invade o sonho, e numdelicado momento é tudo o mesmo...não é possível dizer onde um começaou outro termina, e, como diria Freud, “o eu não é sujeito em sua própriacasa” (que o diga D. Severina!). E assim rumamos para o final, para asconseqüências inevitáveis...

Em uma semana, Borges dispensa Inácio. Não foi desagradável comode costume, tratou- o bem, até. Inácio não entendeu nada: nem a dispensa,nem o xale. Mas concluiu que não importava, pois “levava consigo o sabor dosonho. E através dos anos, por meio de outros amores, mais efetivos elongos, nenhuma sensação achou nunca igual à daquele domingo, na Ruada Lapa, quando ele tinha quinze anos. Ele mesmo exclama às vezes, semsaber que se engana:

- E foi um sonho! Um simples sonho!”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHEMAMA, Roland. Parênteses. In: Association lacanienne internationale. A clí-nica do especular na obra de Machado de Assis. Paris: Association lacanienne

dia lindíssimo, “não era só um domingo cristão; era um imenso domingouniversal.” Após o almoço, provavelmente recompensado pela vista dos bra-ços em tão estupendo domingo, Inácio se põe a ler na rede, em seu quarto.Não entendia por qual razão as heroínas dos livros que lia tinham as caracte-rísticas de D.Severina...adormece e vê sair da parede do quarto sua bem-amada que, sorrindo, anda em sua direção...

D. Severina andava, mesmo. Andava por perto da janela, observando omarido se perder ao longe pela rua. Ela fica a errar pela sala, a arrumar umvaso, depois sentar-se, levantar-se... inquieta, muito inquieta. Vai até o quar-to e vê o lindo moço adormecido na rede.

“D. Severina sentiu bater-lhe o coração com veemência e re-cuou. Sonhara de noite com ele; pode ser que ele estivessesonhando com ela. Desde madrugada que a figura do mocinhoandava-lhe diante dos olhos como uma tentação diabólica. (...)E mirou-o lentamente, fartou-se de vê-lo, com a cabeça inclina-da, o braço caído; mas, ao mesmo tempo que o achava crian-ça, achava-o bonito, mais bonito que acordado, e uma dessasidéias corrigia ou corrompia a outra. (...) Que não possamos veros sonhos um dos outros! D. Severina ter-se-ia visto a si mes-ma na imaginação do rapaz, ter-se-ia visto diante da rede, riso-nha e parada; depois inclinar-se, pegar-lhe nas mãos, levá-lasao peito cruzando ali os braços, os famosos braços. Inácio,namorado deles, ainda assim ouvia as palavras dela, que eramlindas, cálidas, principalmente novas-, ou, pelo menos, perten-ciam a algum idioma que ele não conhecia, posto que o enten-desse. Duas, três e quatro vezes a figura esvaía-se, para tornarlogo, vindo do mar ou de outra parte, entre gaivotas, ou atraves-sando o corredor, com toda a graça robusta de que era capaz.E, tornando, inclinava-se, pegava-lhe outra vez das mãos, ecruzava ao peito os braços, até que, inclinando-se, ainda mais,muito mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um beijo na boca.

RODRIGUES, M. M. Uns braços, uma leitura.

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SEÇÃO TEMÁTICA

MACHADO E CARTOLA – ACADEMIA E ESCOLA

Robson de Freitas Pereira

Esboço de modesta homenagem aos centenários: morte e nascimen-to de dois “pais da pátria” no que esta denominação pode ter de valorsimbólico no seu mais amplo sentido.

Um, Joaquim Maria, nasceu pobre, mulato (invenção brasileira paraos mestiços. Ver “O trato dos viventes”, de Luís Felipe Alencastro), filho depai mulato e mãe portuguesa, ambos pobres – classe média baixa em lin-guagem de hoje. Morreu branco, segundo seu atestado de óbito. Outro,Angenor, nasceu preto, pobre, morou quase toda sua vida no morro e nosubúrbio do Rio de Janeiro. O reconhecimento, a gravação do primeiro discosolo, veio depois dos sessenta anos de idade. Ambos pouco saíram de suacidade natal, não foram muito longe geograficamente, mas, em termos decriação artística, expandiram nossas fronteiras, consolidaram a invenção doBrasil.

Duas vertentes de criação diferentes e próximas. Um pela escrita, notexto escrito, notabilizado pelo ensaio e pela ficção. Outro pela canção, estaforma de articular letra e música que no Brasil tomou um lugar singular eoriginal em nossa cultura. O samba, de marginal e expressão dos excluídos,dos descendentes dos escravos, transformou-se em referência, traçoidentificatório. “O mínimo que se pode dizer é que a canção é um dos meiosatravés dos quais o país vem inventar e entender si mesmo” 1 (1)

Curioso e surpreendente, mais uma vez, trabalho da letra. Letra dotexto, letra de música. Letra veiculada pela voz que marca o corpo, inscre-vendo o inconsciente.

1 Nestrovski, Arthur org.. “Lendo música - 10 ensaios sobre 10 canções”, São Paulo. Publifolha,2007.

internationale, 2002. p.51- 59 , Ed. bilingue. La clinique du spéculaire dansl’oeuvre de Machado de Assis (francês)

MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Obra Completa . Rio de Janeiro: Nova Aguilar,1992, v2.

PEREIRA, R. DE F. Machado e Cartola...

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SEÇÃO TEMÁTICA

ESCOLACartola – Angenor de Oliveira.Compositor, cantor, instrumentistaNasceu no Rio de Janeiro, 11/10/1908, e faleceu na mesma cidade

em 30/11/1980.Estação Primeira de Mangueira fundada por ele e um grupo de amigos

em 28 de abril de 1928 (há oitenta anos) 2 [1].Trecho de depoimento sobre a fundação:A sede foi instalada na travessa Saião Lobato, 7, no Buraco Quente. A

diretoria, por sua vez, tinha os seguintes nomes: presidente, Saturnino Gon-çalves; vice-presidente, Angenor de Castro; primeiro secretário, Jorge Perei-ra da Silva; segundo secretário, Pedro dos Santos; tesoureiro, FranciscoRibeiro; diretor de harmonia Angenor de Oliveira; comissão de frente, ManuelJoaquim, Camilo e Narciso; comissão de bateria, Gradim, Maciste, Martins,Ismar e Lúcio.

Em uma entrevista a José Carlos Rego, Cartola lembrou que, no pri-meiro carnaval depois da fundação, a escola chegou à Praça Onze reunindocerca de 60 pessoas, com um grande número de mulheres, umas vestidasde homem e outras com fantasias feitas de papel crepom. Disse ele: “Aimportância da Estação Primeira foi a de promover a união dos diversosblocos do morro. Passou a ser de todos. Antes, cada bloco tinha o seudono.”

Esta declaração nos auxilia a trabalhar nas possíveis respostas auma interrogação sobre a importância de que uma escola seja fundada, emesmo uma academia. Por ora, vamos deixar de lado a discussão sobresuas diferenças e aproximações. Nos dois exemplos citados, os persona-gens de nossa história estão separados no tempo e no espaço. Só paraexemplificar; quando a Academia Brasileira de Letras é fundada, Machadode Assis era um escritor consagrado, seus pares eram a elite das letrasnacionais. Cartola nasceu no mesmo ano da morte de Machado e a funda-ção da escola acontece num momento em que sua carreira como composi-tor ainda não está consolidada. Lutava com dificuldades para sustentar-se e

Neste texto, vamos ressaltar a inscrição de uma forma institucional:Machado de Assis funda a Academia Brasileira de Letras. Angenor de Olivei-ra – Cartola – organiza com seus pares amantes do samba a Estação Pri-meira da Mangueira, iniciativa que reuniu os blocos existentes no morro.Reorganizando o carnaval, deu outro estatuto para uma comunidade.

ACADEMIADiscurso de Machado de Assis, na abertura da primeira sessão.20 de julho de 1897

Senhores,Investindo-me no cargo de presidente, quisestes começar a Acade-

mia Brasileira de Letras pela consagração da idade. Se não sou o mais velhodos nossos colegas, estou entre os mais velhos. É símbolo da parte de umainstituição que conta viver, confiar da idade funções que mais de um espíritoeminente exerceria melhor. Agora que vos agradeço a escolha, digo-vos quebuscarei na medida do possível corresponder à vossa confiança.

Não é preciso definir esta instituição, iniciada por um moço, aceita ecompletada por moços, a Academia nasce com a alma nova, naturalmenteambiciosa. O vosso desejo é conservar, no meio da federação política, aunidade literária. Tal obra exige, não só a compreensão pública, mas ainda eprincipalmente a vossa constância. A Academia Francesa, pela qual esta semodelou, sobrevive aos acontecimentos de toda casta, às escolas literáriase às transformações civis. A vossa há de querer ter as mesmas feições deestabilidade e progresso. Já o batismo das suas cadeiras com os nomespreclaros e saudosos da ficção, da lírica, da crítica e da eloqüência nacio-nais é indício de que a tradição é o seu primeiro voto. Cabe-vos fazer comque ele perdure. Passai aos vossos sucessores o pensamento e a vontadeiniciais, para que eles o transmitam aos seus, e a vossa obra seja contadaentre as sólidas e brilhantes páginas da nossa vida brasileira. Está aberta asessão.

Machado de Assis faleceu em 29 de setembro de 1908.

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SEÇÃO TEMÁTICA

Sinthoma de cada um, como a instituição é sinthoma do psicanalis-ta? Questões que ficam em aberto. De qualquer forma, há muito trabalhopela frente para desdobrar estas afirmações de Lacan de que a psicanálise ésintoma do mal-estar na cultura e o psicanalista o sinthoma da psicanálise.

Uma das considerações possíveis pode levar em conta os efeitos detransmissão, o desejo de transmitir algo às gerações futuras e reconhecerque outros podem levar adiante o que foi instituído. Nas palavras do compo-sitor, uma síntese poética do ideal de uma instituição e da possibilidade detransmitir:

“Todo o tempo que eu viver/Só me fascina você, MangueiraGuerreei na juventude,/Fiz por você o que pudeMangueira.Continuam nossas lutasPodam-se os galhos, colhem-se as frutasE outra vez se semeia/E no fim deste laborSurge outro compositorCom o mesmo sangue na veia.Sonhava desde menino,/Tinha um desejo felizDe contar toda tua históriaUm dia a lira empunhei/Este sonho realizeiE cantei todas tuas glóriasPerdoa-me a comparação,/Mas fiz uma transfusãoEis que Jesus me premeiaSurge outro compositor/Jovem de grande valorCom o mesmo sangue na veia.”

Muitas são as associações, uma delas refere-se à transmissão deum lugar, ou as possibilidades de transmitir-se um saber. Sob que condiçõesisto se torna possível? Certamente por um ato de amor. Qualquer psicanalis-ta sabe que o engano amoroso da transferência é o que permite a experiên-cia da análise. Assim como a nominação do sintoma e, se tiver sorte, a

estamos ainda numa fase de sua vida em que vendia composições (práticausual naquela época onde quem fazia o samba recebia no máximo umaparceria como reconhecimento) que se tornaram sucesso na voz de canto-res de rádio.

O que interessa ao psicanalista esta fundação? Um ato de instaura-ção, de inscrição na cultura. Uma inscrição que marca tanto o sujeito, quan-to seu tempo e lugar, sua comunidade. Estes atos reúnem, agregam umgrupo de pessoas instituindo uma comunidade – fazendo frente à dispersãodos moradores do morro e dos escritores, mesmo que as diferenças econô-mico/culturais sejam evidentes. A elite na academia e os moradores do mor-ro na escola. Há uma nova moldura que faz com que a escrita e a músicapossam sair de um lugar marginal; pois, guardadas as devidas proporções, aficção ainda luta para garantir um lugar de valor na nossa cultura. Em outraspalavras, passando de simples entretenimento para uma recepção de inter-pretação e invenção de um tempo. O samba também enfrentou toda sorte depreconceitos e, talvez tenhamos que reconhecer que esta valorização nãoestá feita de uma vez por todas. Ainda encontramos, na complexidade denossa cultura, bolsões de conservadorismo que justificam os versos de Nel-son Sargento; “o samba agoniza mas não morre”. Ou seja, a persistência énecessária.

A relação com uma origem marginal direta (caso do samba), ou comum estatuto não hegemônico de reconhecimento (caso da escrita de ficção)interessa sobremaneira aos psicanalistas. Afinal arte e psicanálise escre-vem e se inscrevem nas margens. Ou melhor, perfazem as margens do litoralonde decidimos nossa vida. Nas margens da vida, a literatura inscreveu aterceira margem do rio de nossa existência. Este ato, a psicanálise reconhe-ce uma referência que articula simbólico e imaginário. Nestes tempos dereferências tão esparsas e frágeis a dificuldade de se lidar com a complexi-dade pode levar a um apelo ao saudosismo de uma autoridade. O ato defundação renova a aposta na solidariedade e na comunidade, além de lançaruma possibilidade de transmissão. Lacan um dia afirmou que a elaboraçãode um saber depende mais da comunidade do que do coletivo.

PEREIRA, R. DE F. Machado e Cartola...

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SEÇÃO TEMÁTICA

tamente utilitarista, ou pragmática no seu sentido mais estreito, implica umaresponsabilidade com o patrimônio cultural. Responsabilidade que é assu-mida a despeito das vicissitudes do corpo e da história pessoal, ou melhor,sabendo fazer algo interessante com estas formações. Para os psicanalis-tas, ou para quem passou pela experiência de análise, há um reconhecimen-to de que o inconsciente é um dos nossos patrimônios de saber e que ele serealiza nas invenções de Machado e Cartola.

 NOTAS INDICATIVAS E BIBLIOGRÁFICAS(1) Nestrovski, Arthur org.. “Lendo música - 10 ensaios sobre 10 canções”, São

Paulo. Publifolha, 2007.(2) Kehl, Maria Rita. “Sala de recepção”, in “Lendo música - 10 ensaios sobre 10

canções”.(3) Barboza da Silva, Marília e Oliveira Filho, Arthur. “Cartola os tempos idos”, Rio

de Janeiro, FUNARTE, 1983.(4) Fischer, Luís Augusto. “Machado e Borges e outros ensaios sobre Machado

de Assis”. Porto Alegre, Arquipélago Editorial, 2008.(5) Sites: Academia Brasileira de Letras; www.academia.org.brEscola de samba Mangueira: www.mangueira.com.brCentro Cultural Cartola: www.cartola.org.brNesses endereços relacionados acima, podem ser encontrados todos os ro-

mances de Machado disponíveis para leitura e armazenamento. No CentroCultural Cartola além da história do compositor e dos objetivos do CentroCultural, músicas podem ser escutadas e baixadas.

(6) “CARTOLA – música para os olhos”, direção Lírio Ferreira e Hilton Lacerda,DVD Europa Filmes, 2007.

(7) Nota para uma seqüência do trabalho sobre questões em aberto: Qual dife-rença entre sinthoma e sublimação? O que fizeram James Joyce, E. Clapton,Cartola e Machado pode ser considerado uma forma de sublimação e/outambém caracterizar-se como um sinthoma, este quarto enlace que permiteo funcionamento da propriedade borromeana.

identificação com um sinthomem, um sintoma do homem e de sua articula-ção com o mundo. Em nosso caso com o grande Outro, barrado para quepossamos insistir na descoberta, ou mesmo invenção de um significante desua falta. Sempre a abertura. Sempre? Talvez a única possibilidade de per-manência seja o reconhecimento desta falta. Esta que permite desejar, apartir da irrupção de uma ordem irredutível. Não o imperativo do gozo, ao qualestamos submetidos e que, para evitá-lo, reduzi-lo, contorná-lo, fazer mar-gens a ele, buscamos formas de socialização.

Nos dois exemplos citados, nas duas homenagens (modestas), es-tes gênios, “antenas da raça” fizeram frente à barbárie com sua obra e comseu ato de fundação de uma instituição. Uma academia, nos moldes daacademia francesa, seguindo os ditames da cultura do século XIX. Outro,uma escola, que organiza os grupos carnavalescos e, com este ato, trans-cende à simples organização da folia momesca. Organiza uma escola desamba que passa a ser referencia de valor para a comunidade. “Projeto insis-tente de uma sociabilidade generosa e desprendida, em que os prazeres doconvívio e da música valiam mais do que os louros da glória.” (2)

A cultura como um valor.Machado com escrita, Cartola com a canção. Ambas referidas à letra.

Letra da ficção e do ensaio. Letra da música que se torna canção; uma dasoriginalidades brasileiras. A questão é como estas criações, transcendem oindividual e tornam-se referência para um traço de identificação do social.

Há aproximações e diferenças entre a ficção e a canção. Porém, noBrasil, ambas conseguiram superar o antigo estatuto que fazia diferençaqualitativa entre arte popular e erudita. Entre arte engajada e de puro entrete-nimento. Elas conseguiram interpretar sua realidade; fazendo a análise daconjuntura de seu tempo e espaço, criticando os problemas de estrutura eformação. Porém, simultaneamente, tiveram a grandeza de ultrapassar oslimites de seu tempo histórico, estabelecendo um valor que se transmite,além do contingencial. Além do valor de mercado ou do fetiche inerente aosnossos tempos modernos e pós qualquer coisa. Pois apropriar-se das pro-duções culturais, incorporá-las como um bem que transcenda a lógica estri-

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SEÇÃO DEBATES

to de recursos tecnológicos (próteses, medicamentos, técnicas, treinamen-tos...) para atender estas crianças desde a perspectiva de um aparelho quefalha. O indivíduo é dividido em partes e atendido por vários profissionais quese ocupam cada qual com seu fazer, visando ao distúrbio em si. De quesujeito se trata? Os profissionais não indagam sobre seu desejo, seus so-nhos, seus sentimentos, seus projetos de vida? Quem sabe ele não temdesejo?

Um diagnóstico, que deveria ser o primeiro passo para um projetoterapêutico, pode tomar outra direção quando o saber do especialista passaa representar uma verdade absoluta sobre o sintoma, excluindo o sujeito dodesejo ou a possibilidade de vir a ser. Isto seria oferecer um diagnóstico quefecha qualquer possibilidade de intervenção terapêutica, restando ao sujeito,neste caso, carregar a designação que lhe foi dada (síndrome “tal”,hiperatividade, distúrbio “x”) e somente existir nessa perspectiva, pois, afi-nal, ele só existe a partir deste olhar. Não são raras as vezes em que pais decrianças com alguma deficiência, ou até com hiperatividade, apresentamseu filho a partir do diagnóstico: “Este é o fulano, ele é hiperativo por isso eleé assim!”. O que resta para esse sujeito senão repetir o dito?

O desejo que conta é sempre o desejo do outro: os pais, o médico, aprofessora... Desejos que sempre apontam para a deficiência, o distúrbio, odesvio. Que espaço há para trabalhar esta criança, este adolescente quandonão são investidos como sujeitos?

Mannoni em sua obra “A criança atrasada e a mãe”3 questiona a edu-cação em geral, psiquiatria e demais áreas e suas especificidades a partirda psicanálise, apontando a ausência de lugar para o sujeito do desejo,exatamente nos lugares que foram criados para recebê-los.

O conceito de sujeito também foi desenvolvido por Lacan, entendidocomo sujeito do inconsciente, sujeito este constituído a partir de um desejo

1 MANNONI, Maud. A criança atrasada e a mãe. Portugal: Moraes Editores, 1981.

DEFICIÊNCIAS, DISTÚRBIOS, DESVIOS:E O SUJEITO DO DESEJO?

Marcele T. Homrich1

[...] Quando a mãe pata nadava com os filhos,todos os animais olhavam para eles:

- Que pato tão grande e tão feio!Os irmãos tinham vergonha dele e gritavam-lhe:

- Vai-te embora porque é por tua causa quetoda a gente está a olhar para nós! [...]

(Hans Christian Andersen – O patinho feio).

Ao analisarmos a história da infância, percebemos que este períodocompreendido entre o nascimento e a adolescência é uma constru-ção cultural e, através da obra de Ariès2 , podemos notar como a

infância esteve sempre vinculada à escola. É assim que o significante “crian-ça” faz pensar o significante “escola”. Em meados do século XVII, inicia-se osurgimento de propostas pedagógicas que possibilitam encaminhar esseinfans para o convívio em sociedade. Ariès nos permite ainda, em sua obrasobre a história da infância, perceber os modelos criados para legitimar olugar da criança, bem como sua normalidade. É justamente aqui que surgeuma questão: e a criança que apresenta uma diferença que produz um des-vio no curso do que é reconhecido como “normal”? E a criança que quebracom os ideais sociais, qual o seu lugar?

Crianças com deficiências, distúrbios, desvios... São inúmeros osnomes que elas recebem! Acompanhamos, nos últimos anos, um incremen-

1 Psicóloga, especialista em educação infantil, mestranda em educação (Unisinos) - SantoÂngelo/RS.2 ARIÈS, Philippe. A história social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 2006.

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para elementos primitivos constitutivos do sujeito, todos submetidos aorecalcamento cujo enfrentamento real produz reações apontando para a ne-gação.

Ficam as possíveis reflexões (no momento), em que, a partir da psica-nálise, o nomeado “deficiente”, “diferente”, “portador do desvio ou distúrbio”possa reconhecer seu nome (Aline, Mariana, Felipe...) e assim ocupar umlugar do desejo. Cabe ao profissional sair do lugar de total competência,regido por uma posição de mestre todo sabedor, possibilitando a aberturapara a surpresa, o acolhimento, e assim o novo e singular possa surgir.

parental, requerendo uma antecipação e logo um diálogo cênico ficcional esimbólico (LEVIN, 1997)4 . Assim, a criança constitui-se e posiciona-se nomundo e na trama familiar como um sujeito falante, sujeito desejante, mar-cado por um fantasma familiar.

Essa “cena louca” que inscreve o sujeito, proporcionando a marca daletra, se dá a partir de um desejo familiar que é singular, e que somente épossível quando os pais “autorizam” seu desejo emaranhar-se no “corpo-coisa” que nasce sem sentido. Pode-se afirmar que a diferença entre a mãede um gato e mãe de um ser humano é que a mãe do gatinho lambe o filhotepercorrendo seu corpo igualmente, toca a perna ou o abdômen sem diferen-ça. A mãe humana, por sua vez, banha seu filho inscrevendo marcas, a formacom que lava as pernas é diferente da forma com que lava seu órgão genital.Essas marcas dizem de um desejo, de uma trama familiar em que o sujeitoestá se posicionando.

Tudo isso tem um “mas”... Mas é necessário que esse sujeito sejareconhecido como tal, a partir de um espelhamento. Suponhamos: e a mãede um bebê que nasce com uma síndrome, como é possível se reconhecernesse corpo se o que fala é a sintomatologia da síndrome. O que dá nome éa “anormalidade”, portanto o que pode se inscrever para além de tal nomea-ção? Como essa mãe traduz tais marcas biológicas? Isso se inscreve...

O problema em questão é que no momento do anúncio da deficiênciaa criança afasta-se do lugar de falo materno; ao invés de resgatar a promes-sa edipiana de recuperação da falta vivida, vem apontar e enfatizar essa falta.A deficiência produz estranhamento, e como se refere Freud5 , o estranho éalgo secretamente familiar já recalcado. O encontro com o estranho aponta

4 LEVIN, Esteban. A infância em cena: a constituição do sujeito e desenvolvimento psicomotor.Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.5 FREUD, S. (1974d). O estranho. In: S. Freud, Edição Standard brasileira das obras psico-lógicas completas de Sigmund Freud. (J. Salomão, trad., Vol. 2, pp. 273-318. Rio de Janeiro:Imago. (Trabalho original publicado em 1919)

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RESENHA RESENHA

“MACHADO E BORGES”:A PACIÊNCIA DA LEITURA1

FISCHER. Luis Augusto MACHADO E BORGES e outrosensaios sobre Machado de Assis. Porto Alegre: Arquipé-lago Editorial, 2008. 258p.

Acrítica literária bem realizada aproximao leitor da obra literária. O bom crítico,leitor experiente, ilumina possibilidades

de leitura. Como mediador, descobre novo viéspara olhar a obra e mobiliza o leitor para chegarà experiência direta de leitor. No juízo preciso,crítico mostra o quanto um novo autor vale àpena. Na reavalização da tradição, redescobre

cos, os dois constituem o sistema literário de seus países, mas desconfiamda possibilidade de sua existência na periferia, de onde olham para o mundo.

O segundo ensaio, desdobramento do primeiro, aproxima Edgar AllanPoe de Machado de Assis e Jorge Luís Borges. Um problema central sedestaca: como a obra de autores americanos penetra na Europa? No casomachadiano, a barreira do português deixou-o isolado.

Nos quatro ensaios seguintes temos diferentes abordagens da obrade Machado. Ao final de “A invenção de distâncias”, Fischer estabelece vetores,que localizam os contos machadianos: atividade interpretativa do narrador,tom, tema, forma e elementos metanarrativos. O ponto articulador está nadesconfiança de Machado de Assis quanto à representação realista da rea-lidade, que aparece nos primeiros contos e se fortalece nos últimos.

Na seqüência, Fischer se volta para um dos romances menos lidos deMachado. Em “Quincas Borba: ‘sou livre, devo tudo ao Doutor’”, parte daanálise da peculiaridade desse narrador e chega ao núcleo do romance, aambivalência, em que a liberdade não resulta de conquista pessoal, mas éconcessão do “doutor”. O quinto ensaio traz uma leitura detida e pontual de“O alienista”. E o livro finaliza com o resgate e interpretação das crônicasescritas pelo jovem e combativo Machado de Assis, em 1859, quando, aos20 anos, aparentemente já organizava um projeto de obra.

SOBRE A FORMA SINGULAR DO LIVRORetomando “Machado e Borges”, por outro ângulo, descobrimos mar-

cas estilísticas, que tornam reconhecível a presença do crítico. Pelas esco-lhas recorrentes, sabemos quem está escrevendo. É uma forma ensaísticaque traz a marca de Luís Augusto Fischer. Comecemos pela aproximaçãoentre Borges e Machado. Antonio Candido, em “Literatura e subdesenvolvi-mento”, fez a indicação, Fischer desenvolveu. À medida que percorremosesse primeiro ensaio, vão se descortinando traços comuns: autores ameri-canos dialogam com a Europa em pé de igualdade; da periferia, olham parao centro; na virada dos quarenta anos, passam a ironistas com gosto clássi-co; desvelam aspectos convencionais da forma realista... E assim outras1 Resenha publicada no Jornal Zero Hora de 12/07/2008 – Porto Alegre.

um autor esquecido ou um texto considerado menor. Na leitura de grandesautores, mostra o que eles ainda têm a dizer. Um bom ensaio crítico, então,potencializa a fruição da obra literária.”Machado e Borges”, de Luís AugustoFischer, está nessa linhagem.

SOBRE A ABORDAGEM DOS ENSAIOSO livro de Fischer, um conjunto de seis ensaios, abre com “Machado

e Borges, clássicos e formativos”. Nesse texto, ele constrói uma ambiciosaaproximação entre os dois escritores. Cada um está no momento máximode superação da tradição local, quando o sistema literário nacional se com-pleta. Borges e Machado completam a formação da literatura nacional. Aomesmo tempo, em sua obra madura, eles põem em xeque o próprio sistemaformado. A autoridade do autor é minada; a representação realista é postasob suspeição; a posição do leitor é desestabilizada; as tradições local eocidental são lidas de forma aparentemente arbitrária. Distanciados e irôni-

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RESENHA RESENHA

relações vão sendo construídas. Na linguagem simples, os achados vão flu-entemente sendo postos que parecem evidências. O aspecto nuclear estáem Machado e Borges serem ponto de chegada da formação do sistemaliterário em seus países.

O que estamos tentando dizer é que o leitor está frente à forma doensaio, marcado pela aventura intelectual e pelo prazer da descoberta, semperda do rigor intelectual. Está no detalhe da frase, está na construção doconjunto. O andamento não é linear, do maior ao menor, da causa ao efeito,do primeiro ao último, do simples ao complexo. As seções de cada ensaiotêm certa autonomia e desvela diferentes facetas de cada obra.

A conversa bem informada e culta deixa o leitor à vontade para acom-panhar o andamento do raciocínio, rigoroso no olhar dedicado à obra, semcair na formulação de grandes teorias. Os inúmeros parênteses põem o lei-tor frente a digressões aparentemente menores que abrem, no entanto, ou-tros veios importantes de leitura.

Não se pode deixar de mencionar uma marca bem peculiar. A primeiraversão de “Invenção de distâncias” (de 1997) passou por releitura e pelaincorporação da descoberta de Abel Barros Batista. Fischer acolhe o novoviés, do crítico português, desconstrucionista, sem deixar de lado sua linhade leitura, de ordem materialista. Esse detalhe (mediado por dez anos) trazo amadurecimento de leitura. Fischer mostra o valor de um crítico, que nosqualifica no modo de ler a obra.

Há em tudo isso um esforço reflexivo, presente na paciência com quede se debruça sobre o objeto e desvenda suas particularidades. Nesse sen-tido, um traço forte do crítico é a tendência de ordenar uma matéria dispersae de buscar o princípio organizador. Em cada caso, vemos desentranhar daobra, na aparentemente dispersão de textos particulares, um princípioordenador.

DAS VÁRIAS QUESTÕES QUE FICAMNesse comentário sobre “Machado e Borges”, ficaram de fora várias

anotações, questões e interrogações, postas nas margens do livro de Luís

Augusto Fischer. Fecho com a reação gerada pela leitura de seu livro: ir àestante e buscar as obras de Machado e Borges: o “Aleph” e o “Delírio deBrás Cubas”; “Emma Zunz”; o narrador de “Quincas Borba”... Fica posto,então, o convite para que o leitor faça o mesmo. Leia “Machado e Borges” evá – novamente ou pela primeira vez – às obras de Machado, Borges e Poe,para ficar apenas nas principais referências, e dialogue com os achadoscríticos de Fischer.

Antônio Marcos V. Sanseverino2

2 Prof. de Literatura Brasileira / UFRGS.

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AGENDA

SETEMBRO – 2008

PRÓXIMO NÚMERO

Reunião da Comissão de EventosDia Hora Local Atividade

Reunião da Comissão de Aperiódicos

Sede da APPOA

Reunião da Comissão da Revista

ANGÚSTIA

Reunião da Comissão do Correio

19h30min

14h30min

Sede da APPOA

Sede da APPOA

Reunião da Mesa DiretivaSede da APPOA21h8h30min

20h30min

04

04, 11,18 e 25

08 e 22

05, 12,19 e 26

05 e 19 Sede da APPOA

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ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREGESTÃO 2007/2008

Presidência: Lucia Serrano Pereira1a Vice-Presidência: Lúcia Alves Mees2a Vice-Presidência: Nilson Sibemberg

1a Secretária: Lucy Linhares da Fontoura2a Secretárias: Maria Elisabeth Tubino e Ana Laura Giongo

1a Tesoureira: Ester Trevisan2a Tesoureira: Maria Beatriz de Alencastro Kallfelz

MESA DIRETIVAAlfredo Néstor Jerusalinsky, Ana Laura Giongo, Ana Maria Medeiros da Costa

Ângela Lângaro Becker, Beatriz Kauri dos Reis, Carmen Backes,Emília Estivalet Broide, Fernanda Breda, Ieda Prates da Silva, Maria Ângela Bulhões,

Maria Ângela Cardaci Brasil, Maria Cristina Poli, Maria Lucia M. Stein,Otávio Augusto Winck Nunes, Robson de Freitas Pereira, Siloé Rey e Simone Kasper

Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.)Criação da capa: Flávio Wild - Macchina

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CONTAR MACHADO DE ASSIS(PEQUENA HOMENAGEM AO CENTENÁRIO)

N° 172 – ANO XV SETEMBRO – 2008 ISSN 1983-5337

S U M Á R I OEDITORIAL 1NOTÍCIAS 2

SEÇÃO TEMÁTICA 8

SUBVERSÕES MACHADIANASEnéas Costa de Souza 8QUINCAS BORBA: “SOU LIVRE,DEVO TUDO AO DOUTOR”Luís Augusto Fischer 17SOBRE ESAÚ E JACÓAna Costa 23SINGULAR OCORRÊNCIA(A NOSTALGIA DA LAMA)Lucia Serrano Pereira 31BREVES NOTAS A PARTIR DE ALGUMASVERTIGENS MACHADIANASEdson Luiz André de Sousa 40UNS BRAÇOS, UMA LEITURAMarieta Madeira Rodrigues 48MACHADO E CARTOLA – ACADEMIAE ESCOLARobson de Freitas Pereira 55

SEÇÃO DEBATES 62DEFICIÊNCIA, DISTÚRBIOS, DESVIOS:E O SUJEITO DO DESEJOMarcele T. Homrich 62

RESENHA 66MACHADO E BORGES:A PACIÊNCIA DA LEITURA 66

AGENDA 70

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RESENHA RESENHA