nogueira e bernardo - trabalho sofrimento e as narrativas de alguns psicanalistas

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    Trabalho, sofrimento e as narrativas

    de alguns psicanalistas1

    Francisco Ronald Capoulade Nogueira

    Mrcia Hespanhol Bernardo

    Resumo

    O presente artigo derivado de uma pesquisa que teve o objetivo de

    apresentar como psicanalistas de orientao lacaniana escutam e lidam compacientes que tm algum tipo de queixa relacionada ao mundo do trabalho.

    Partindo de um olhar da Psicologia Social do Trabalho, a pesquisa teve como

    pressuposto que o contexto social capitalista e as formas de organizao do

    trabalho podem ter consequncias para a sade mental dos trabalhadores.

    Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com cinco psicanalistas, com

    foco na narrao de experincias no tratamento com pacientes acometidos por

    algum tipo de sofrimento mental relacionado ao trabalho. Observou-se queos entrevistados privilegiaram, nos tratamentos que empreenderam, mais os

    aspectos das dinmicas da histria familiar do que as dinmicas do mundo do

    trabalho, reavivando um antigo debate entre o individual e o coletivo.

    Palavras-chave: Trabalho; Psicologia social; Sofrimento; Psicanalistas;

    Narrativas; Individual/Coletivo.

    Introduo

    Partimos da tese de que o trabalho a atividade central em nossa

    sociedade. Todos ns, cada um sua maneira, organizamo-nos a partir das

    dinmicas do trabalho. Quando precisamos ir ao mdico, ou marcamos fora

    1 Artigo derivado da dissertao concluda no Programa de Ps-Graduao em Psicologia da PUC Campinas,com o financiamento da CAPES.

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    do horrio de trabalho, ou justificamos a ausncia; quando queremos viajar,

    organizamo-nos ou em fins de semanas e feriados ou nas frias; at mesmo

    para a realizao de prticas religiosas, necessrio encontrar horrios que

    sejam compatveis com nosso trabalho. Em suma, nossos desejos, nossoscompromissos, nossas devoes organizam-se tambm em torno do trabalho;

    ou melhor, em torno dessa dimenso da realidade chamada trabalho.

    possvel encontrar nos textos de Karl Marx (1867/2006) uma teoria que

    busca compreender o trabalho como uma ao humana que visa produo

    de riqueza social. Ele (o trabalho), dentro dessa perspectiva, cria e sustenta

    a vida social humana; isto , gera o ser social. Por isso, sempre lugar de

    investimento, seja afetivo, emocional, produtivo ou econmico. Pelo mesmovis, Georg Lukcs (1979) aponta para a centralidade do trabalho e estabelece,

    em padres tericos, que o papel dessa atividade humana essencial para a

    constituio da sociedade. Contudo, ao longo dos sculos especialmente sob

    o modo capitalista de produo , o trabalho vem sendo utilizado de forma

    distorcida, pelo menos na viso desses autores, prevalecendo, na maioria das

    vezes, o poder de poucos contra a necessidade de muitos.

    Atualmente, existe certo consenso de que o mundo do trabalho maiscomplexo do que h algumas dcadas (Antunes, 2008; Zizek, 2006). As

    caractersticas desse novo contexto so discutidas por autores como Antunes

    e Zizek. Porm, muitos dos seus antigos atributos permanecem. Dentro do

    ambiente laboral, existem obrigaes e deveres que precisam ser realizados

    em um determinado tempo, em um determinado local e de uma determinada

    maneira, respondendo sempre organizao do trabalho. bem verdade

    que alguns tipos de atividades no exigem mais que seu empregado oucolaborador, conforme a linguagem da gesto empresarial atual esteja

    em um lugar especfico (um escritrio ou uma empresa, por exemplo), nem

    que cumpra um horrio fixado previamente, ainda que o modelo tradicional

    exista para diversos trabalhadores. Muitas vezes, esses sujeitos trabalham em

    suas casas, e eles mesmos fazem seus horrios, tendo somente que cumprir o

    que lhes foi estipulado. Assim, relativamente comum encontrarmos pessoas

    trabalhando com seus laptops e tablets em lugares, que, em princpio,

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    seriam apenas para o lazer, como parques, praias, clubes etc. No entanto,

    essa flexibilidade parece ser ilusria. O fato de haver algumas mudanas no

    discurso empresarial e na maneira como se realiza o trabalho no significa

    que seja isso um ganho, podendo, inclusive, ser o oposto (Bernardo, 2009).O que vale destacar que, atualmente, o trabalhador continua no sendo

    dono de seu tempo nem de sua vontade, assim como Marx havia constatado

    ao analisar o contexto capitalista. As funes exigidas despendem cada vez

    mais o seu tempo. Para isso, o trabalhador dispe apenas de uma flexibilidade

    que, na maioria das vezes, resume-se ao discurso capitalista que engendra

    e ao mesmo tempo desfavorece a formao do lao social contemporneo,

    tornando a relao com o outro apenas um meio para se chegar a um fim(Lustoza, 2009). Nesse sentido, o trabalho pode gerar intenso sofrimento,

    desviando-se de seu propsito inicial.

    No entanto, tendo em vista as caractersticas do contexto contemporneo,

    Antunes (2007) aponta a necessidade de ampliar o conceito classe

    trabalhadora, incorporando todos os que vendem sua fora de trabalho

    de modo a produzir a mais-valia, sejam aqueles que produzem diretamente

    bens materiais ou os trabalhadores chamados de improdutivos, isto ,aqueles cujas formas de trabalho so utilizadas como servio, seja para

    uso pblico ou para o capitalista, e que no se constituem como elemento

    diretamente produtivo (p. 103). Assim, Antunes pretende ampliar a noo

    contempornea de classe trabalhadora. No entanto, como nosso objetivo

    aqui no apresentar uma distino e categorizao da noo de classe

    trabalhadora, tendo em vista que tal empreitada, por mais relevante que seja,

    demandaria um outro artigo, apossamo-nos, ento, de uma noo propostapor Zizek (2006) de que a classe trabalhadora divide-se entre os que tm e

    os que no tm emprego (p. 183). Dessa forma, o que nos importa nesse

    momento que no h, nas relaes de trabalho, somente o predomnio do

    sofrimento humano, mas que tal sofrimento provm da indiferena (Honneth,

    2008); indiferena e sofrimento que muitas vezes levam trabalhadores a um

    sofrimento extremo. Alm disso, deve-se ressaltar que a prpria atividade de

    trabalho em si, na maioria das vezes, geradora desse sofrimento.

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    Dito isso, no difcil inferir as consequncias. bem provvel que os

    problemas de sade mental relacionados ao trabalho nunca tenham tido tanto

    destaque como em nossos dias (Druck & Franco, 2011; Bernardo, Nogueira,

    & Bll, 2011). E justamente nesse ponto que este artigo se aproxima de seuncleo. Tendo em vista o mundo do trabalho e sua configurao contempornea,

    ou seja, sua precariedade, possvel observar seus efeitos muitas vezes

    desastrosos (Menezes, 2010). Sendo assim, informaes epidemiolgicas

    nos so de imensa valia para a compreenso do quadro atual. Os dados do

    INSS, por exemplo, apontam que a prevalncia de determinados distrbios

    mentais em professores, policiais, motoristas, bancrios, trabalhadores rurais,

    atendentes de telemarketing, empregadas domsticas, executivos e outrastantas categorias maior do que se observa na populao em geral (Jacques,

    2006 & Brasil, 2001). Segundo Lima (2003), essas categorias so acometidas

    por distrbios mentais como estresse, depresso, sndrome do pnico e de

    burnout, transtornos psicticos, transtornos mentais relacionados ao uso de

    lcool etc. importante ressaltar que cada um desses distrbios possui uma

    relao maior com determinadas categorias profissionais.

    A legislao brasileira, ainda que no seja a ideal, tem avanado no quetange ao estabelecimento do nexo causal entre doena e trabalho. Segundo

    dados do Ministrio da Sade, os critrios para tais relaes so a natureza

    da exposio, histria ocupacional, grau ou intensidade da exposio, tempo

    de exposio, tempo de latncia, evidncias epidemiolgicas e tipo de relao

    causal com o trabalho (Brasil, 2001, citado por CREPOP, 2008, p. 37). Isso no

    se resume a doenas de carter fsico e/ou biolgico, mas engloba tambm

    os transtornos psquicos que, tendo em vista seu carter subjetivo, so maisdifceis de terem sua relao com o trabalho demonstrada.

    A relao entre trabalho e doena tem sido objeto de estudo de muitos

    pesquisadores e, h pelo menos duas dcadas, tem ganhado fora no Brasil.

    Contudo, tal relao muitas vezes desconsiderada por profissionais da

    sade e da chamada rea psi, na qual se incluem os psicanalistas. Tendo

    isso em vista, realizou-se uma pesquisa com o objetivo de verificar como os

    psicanalistas lidam, em suas clnicas, com pessoas que relatam algum tipo

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    de sofrimento no qual as relaes de trabalho se apresentam como uma das

    fontes possveis. primeira vista, esse objetivo pode parecer sem razo, j

    que alguns autores consideram que o campo de atuao da Psicanlise

    estreito, limitando-se apenas histria singular do indivduo e, no mximo,ao seu universo familiar (Merlo, 2002; Lima, 2003, 2005). Nessa perspectiva,

    uma anlise macrossocial no estaria no foco clnico de um psicanalista. Em

    certa medida, isso verificvel, at porque faz parte de sua formao uma

    viso singular do sujeito dentro de uma ordem simblica (Martins, 2009).

    Mas tambm faz parte da formao um olhar que no dicotomiza o social do

    particular (Freud, 1930/1996), ou pelo menos deveria fazer. Afinal de contas,

    seria possvel ouvir um sujeito sem levar em considerao suas relaessociais e o contexto em que est inserido?

    Uma leitura superficial dos textos de Sigmund Freud nos daria a impresso

    de que o tema trabalho teria sido negligenciado pelo Psicanalista de Viena,

    mas uma busca mais criteriosa revela-nos que em seus textos possvel

    encontrar elementos importantes que aludem a esse tema de maneira indireta

    como, por exemplo, nas Notas psicanalticas sobre um relato autobiogrfico

    de um caso de paranoia (1911/1996) (caso Schreber), no qual a profissode Schreber aparece como um dos elementos para o desencadeamento de

    sua doena ou de maneira direta no texto Introduo Psicanlise e as

    neuroses de Guerra(1919/1996), no qual so analisados os chamados casos,

    como o prprio nome diz, de neuroses de guerra ou neuroses traumticas

    (atualmente muito conhecido como transtorno de estresse ps-traumtico)2.

    Encontra-se tambm o tema do trabalho em textos ditos culturais, em

    particular no Mal-estar na civilizao (1930/1996), no qual o trabalho componente importante para as relaes humanas e para a prpria sade

    do indivduo. Contudo, evidente que o trabalho, como ao humana que

    visa manuteno da vida e seus modos de produo, no a tnica da obra

    de Freud (e ele nunca se props a isso); e, assim, muitas indagaes surgem

    quando tentamos relacionar tal tema Psicanlise.

    2 Meshulam-Werebe, Andrade e Delouya (2003) comentam, em seu artigo, a contribuio da Psicanlise ao

    termo TEPT e a importncia do trauma na obra freudiana.

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    Mtodo da pesquisa

    O presente artigo procura apresentar os resultados de uma pesquisa que

    priorizou as narrativas de alguns psicanalistas de orientao lacaniana, pautando-se na busca de uma compreenso de como esses psicanalistas escutam e lidam

    com pacientes que tm algum tipo de queixa relacionada ao seu trabalho.

    No que se refere aos sujeitos da pesquisa, preciso, inicialmente, esclarecer

    a opo por psicanalistas de orientao lacaniana. Considerando a afirmao

    de Birman (1991) de que existe uma verdadeira Babel na Psicanlise (p. 13),

    entendemos que seria mais interessante delimitar o grupo de sujeitos queles que

    se identificavam com uma orientao terica especfica. A escolha da abordagemlacaniana se deu pelo fato de um pesquisador que conduziu as entrevistas

    ter formao em Psicanlise nessa orientao. Desse modo, seria mais fcil

    compreender a linguagem utilizada pelos sujeitos ao narrarem sua prtica clnica.

    As entrevistas foram realizadas entre os meses de abril e junho de 2010,

    sendo uma em instituio psiquitrica e todas as outras nos consultrios

    dos respectivos psicanalistas. Foram cinco entrevistados, sendo um homem

    e quatro mulheres. Optamos por cham-los pelos seguintes codinomes:Marcelo, Clara, Roberta, Eullia e Justina. Suas idades vo de 32 a 51 anos.

    Entre eles, uma pedagoga e os outros so psiclogos. Todos fazem ou

    fizeram sua formao em uma escola de Psicanlise de orientao lacaniana

    no estado de So Paulo. Obviamente, esse nmero de entrevistados no

    pode ser considerado uma amostra representativa dos psicanalistas, ou

    mesmo dos psicanalistas lacanianos, e nem era esse o objetivo da pesquisa.

    O que se buscou foi aprofundar a compreenso de alguns psicanalistas sobrea temtica proposta, considerando que a anlise dessas narrativas pudesse

    contribuir para uma reflexo crtica sobre a relao entre a atuao clnica

    psicanaltica e questes sociais, destacando, aqui, o trabalho.

    Para esta pesquisa, assumimos uma postura crtica, mais especificamente

    da Psicologia Social do Trabalho, que busca compreender os fenmenos

    organizativos a partir de seus determinantes sociais (Sato, Bernardo, &

    Oliveira, 2008), isto , procura estudar as relaes de trabalho e seus

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    aspectos subjetivos vividos no cotidiano (Bernardo, Sousa, & Garrido, 2013),

    bem como as consequncias negativas que a organizao do trabalho pode

    trazer ao trabalhador (Bernardo, 2009). Assim, tomamos como base uma

    orientao terico-filosfica marxiana, que se prope, segundo a distinofeita por Raymond Aron (2005), a utilizar-se do pensamento de Karl Marx sem

    necessariamente pertencer a uma interpretao ortodoxa do marxismo

    principalmente daquelas empregadas pelos Estados autoritrios.

    Assim sendo, o acesso a esse contedo foi realizado por meio de

    entrevistas em profundidade. Esse tipo de entrevista, muito usado em

    pesquisas qualitativas, inclusive de inspirao etnogrfica, visa a ser um

    importante instrumento para a construo de conhecimento acerca dossujeitos, de modo que possa sempre ser levado em considerao o fato de

    que eles esto contextualizados em suas realidades (Sato & Souza, 2001). Tal

    proposta permitiu compreender melhor, por meio das narrativas, como os

    sujeitos da pesquisa vivenciam suas prticas clnicas e como as representam.

    As entrevistas desenvolveram-se a partir de um roteiro norteador. Apesar

    disso, durante sua realizao, no houve uma preocupao em segui-lo de forma

    rgida, possibilitando, assim, a manifestao das peculiaridades da prtica clnicamediante as narrativas de cada um dos sujeitos, e isso permitiu uma fala livre

    sem que se perdesse o foco da pesquisa. Ademais, as perguntas mais especficas

    que visavam a acessar um possvel reconhecimento, por parte dos analistas,

    do sofrimento de seus pacientes nas relaes de trabalho, foram apresentadas

    de modo indireto, enviesado. Tal propsito pautava-se pela no-obteno de

    respostas politicamente corretas. O escopo era propiciar ao entrevistado uma

    fala, sem entraves tericos, baseada apenas em sua experincia clnica.As falas dos psicanalistas foram classificadas como narrativas, amparadas

    nas supervises clnicas de Freud e no pensamento de Lukcs. De Freud,

    tomamos a experincia no caso do Pequeno Hans encontrado no texto

    Anlise de uma fobia em um menino de cinco anos(1909/1996) , pois suas

    consideraes sobre o caso s foram possveis devido ao relato do pai de

    Hans, j que este era o analista em questo. Ou seja, Freud utiliza-se de um

    relato de uma experincia de anlise que, proferido por um analista, segue

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    uma ordem histrica (no necessariamente cronolgica), com fatos distintos.

    De Lukcs, apropriamo-nos de seu estudo sobre Narrar ou Descrever?

    (1936/1965), no qual o autor afirma que a narrativa constituda sempre de

    uma experincia humana que tem como funo implicar o sujeito naquiloque conta. Desse jeito, entende ele, utiliza uma alegoria pictrica, a descrio

    como uma natureza morta, como algo inumano, diferenciando, desse modo,

    a narrao da descrio. Por isso, a opo pela narrativa.

    Em vista disso, dois aspectos foram pensados inicialmente para guiar a anlise

    das narrativas dos psicanalistas, a saber: o reconhecimento ou no de que pode

    haver relao entre adoecimento e trabalho e a compreenso do tratamento

    empreendido junto ao paciente. A partir delas, procuramos examinar de queforma os psicanalistas compreendem as queixas vindas do mundo do trabalho

    e como tratam os pacientes que as expressam. Todavia, no aprofundamento

    deste exame, pudemos observar que esses dois aspectos esto compreendidos

    em uma nica categoria, que diz respeito s tenses entre social e individual,

    que perpassou todas as narrativas. Tal categoria se apresenta como central

    na temtica tratada neste artigo. Sendo assim, buscamos discutir os aspectos

    propostos inicialmente a partir dessa nica categoria.Antes de prosseguir, preciso ressaltar que falar como psicanalista e falar

    em nome da Psicanlise so duas posturas muito diversas, provavelmente

    incompatveis (Ayouch, 2009, p. 89). preciso salientar que a Psicanlise,

    como um corpo terico-tcnico, no tem um representante que fale em seu

    nome. Dessa forma, entendemos aqui que os psicanalistas entrevistados

    falaram no em nome da Psicanlise, mas a partir de suas experincias como

    analistas na escuta daqueles pacientes que decidiram relatar os casos. Eisso o que nos interessa, tendo em vista que ser a prtica, e no a teoria

    psicanaltica, que poder efetivamente intervir na vida dos pacientes.

    Consideraes acerca das narrativas

    Pudemos observar, nas narrativas dos psicanalistas que participaram da

    pesquisa, diversos temas inerentes Psicanlise, que no necessariamente

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    esto relacionados ao foco da pesquisa aqui apresentada. No entanto,

    conforme apontado, a categoria que versa sobre a polarizao entre o universal

    e o particular possibilitou a discusso buscada na pesquisa. Trata-se da maneira

    como os aspectos sociais e individuais esto implicados nos processos deanlise, mais especificamente em que medida essas dimenses da realidade

    dentro de um contexto, primeira vista, singular so consideradas pelos

    psicanalistas entrevistados. Nessa perspectiva, eles falaram sobre a liberdade de

    seus pacientes diante das determinaes pessoais e sociais, bem como sobre as

    (im)possibilidades e os sofrimentos que cada um deles carrega consigo. Todos

    esses assuntos emergiram atrelados polarizao universal/particular.

    Dito isso, um dos primeiros pontos a se ilustrar a relao quealguns psicanalistas entrevistados estabeleceram entre nossa poca

    e determinadas psicopatologias. Nas narrativas de Justina e Eullia,

    possvel observar que a nossa poca se caracteriza por uma demanda

    desenfreada de gozo. importante esclarecer que essa noo, abstrada da

    obra de Jacques Lacan, foi muito referida pelos entrevistados e utilizada de

    maneira muito peculiar, na medida em que diz respeito a uma vivncia que

    busca uma satisfao desenfreada, contrariando o lao social definido pelocontrato, o acordo e a partilha (Goldenberg, 2006, p. 27). Assim, segundo

    as duas entrevistadas citadas, atualmente essa forma de gozo to peculiar

    encontrada, frequentemente, em qualquer tipo de relao social, causando

    danos, muitas vezes, irreversveis. Esse seria o principal trao chamado por

    Eullia de imperativo de gozo daquilo que foi definido como nossa poca.

    As formas de sofrimentos mentais que advm das relaes de trabalho

    foram includas pelas entrevistadas nesta categoria (nossa poca),porm nem sempre de maneira direta. De modo geral, nenhuma narrativa

    apresentou em seu momento inicial quaisquer consideraes acerca

    das amarguras ocorridas no mundo do trabalho. Foi possvel observar que

    todos os psicanalistas entrevistados, ao falarem de suas experincias clnicas,

    citaram predominantemente formas de padecimento dos sujeitos que, na

    maioria das vezes, correspondiam ao percurso de formao empreendido por

    eles prprios. Tais sofrimentos foram compreendidos em diagnsticos como

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    neuroses, bulimia, anorexia, psicoses e drogadico. Todavia, as agruras do

    mundo do trabalho s apareceram, em suas narrativas, na medida em que

    se realizaram as perguntas indiretas previstas no roteiro de entrevista ou, em

    alguns casos, por meio de indagaes diretas.Dos entrevistados em questo, Marcelo, Justina e Eullia procuraram

    salientar, com um caso cada um ainda que Eullia e Justina tivessem afirmado

    ter outros , os efeitos da organizao do trabalho e/ou das relaes do trabalho

    na vida de seus pacientes. Apesar de no adotarem termos especficos, os fatos

    relatados indicam que eles se referiam ou s caractersticas da organizao do

    trabalho, ou s das relaes de trabalho. O caso do Sr. Y, paciente de Eullia,

    o mais elucidativo, pois sua queixa era s do trabalho. Segundo Eullia, asituao familiar do paciente estava muito bem, muito ok; o problema estava

    no relacionamento com seus colegas de trabalho. Devido a uma tomada de

    posio que desagradou muitos dentro da empresa em que trabalhava, o Sr.

    Y acabou ficando isolado e sendo hostilizado, daquele momento em diante,

    por todos da empresa. As consequncias desse evento foram danosas para a

    manuteno e o estabelecimento de novas relaes com outros funcionrios da

    empresa, e isso foi extremamente impactante e traumtico.Aps iniciar sua terapia com Eullia, o Sr. Y ainda permaneceu por

    dois ou trs anos naquela empresa. Nesse perodo, Eullia o escutava, e a

    queixa era sempre do trabalho. Segundo ela, ele tinha uma fantasia de abrir

    o prprio negcio na busca de se livrar daquele ambiente hostil; porm, a

    queda do padro financeiro no permitiu faz-lo. Finalmente, ele conseguiu

    uma colocao numa outra empresa. Mudou-se de cidade com a famlia e

    encerrou o primeiro perodo de anlise, pois a distncia no permitia suapresena semanalmente s sesses.

    Tempos depois, ele retornou analise. Sobre esse segundo perodo,

    Eullia afirma que at aqui foi falado apenas da vida profissional do Sr. Y.

    Para ela, sua anlise outra coisa; a anlise dele outra histria, paralela.

    Retomando uma srie de associaes do Sr. Y., Eullia compreende que, a

    partir do momento em que o Sr. Y comea a associar os eventos insuportveis

    que teve na antiga empresa com eventos da infncia, nos quais foi ignorado

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    tanto por amigos como pelo prprio pai, ele comea de fato sua anlise, e os

    efeitos se tornam, segundo ela, visveis.

    [...] a hiptese de que aquela vivncia de ter sido solenemente ignorado naquele

    momento foi revivida pela situao de ter sido, no s solenemente ignorado, mashostilizado quando ele tomou partido errado na poltica da empresa e que aquiloera uma repetio do anterior porque a descrio que ele faz dessa cena de garotoera a descrio de muito sofrimento para o qual ele no soube, ele no tinharecursos para dar conta. Ele apelou pros adultos e o pai no disse nada.

    Nessa perspectiva, o trabalho analtico de Eullia teve como meta oferecer

    a esse sujeito a possibilidade de construir seus prprios recursos que faltaram na

    infncia. Ao poder falar dessa intensa angstia, materializando-a por intermdio

    das palavras, o Sr. Y pde ressignificar tanto o passado como o presente.Segundo Eullia, pode-se perceber isso no movimento que o Sr. Y tem realizado

    em sua vida profissional. Atualmente, suas escolhas no tm um padro nico

    que seguem o formato do medo de ser solenemente ignorado, mas permite-

    se uma flexibilidade de escolha possvel a partir do que seu, do seu desejo.

    Na narrativa de Eullia, esse momento a travessia do fantasma, pois, para ela,

    ao fim e ao cabo, voc s consegue a cura quando voc volta l e possibilita ao

    sujeito atravessar o fantasma, como a gente diz em psicanlise lacaniana.Em resumo, pode-se observar que as condues dos tratamentos,

    especialmente o que foi conduzido por Eullia, pautaram-se sempre por

    solues nas quais as questes individuais eram tomadas como de maior

    importncia. No entanto, essa perspectiva pode ser bastante criticvel do

    ponto de vista da Psicologia Social. Na medida em que toma o indivduo como

    um ser abstrato, a-histrico e descontextualizado de sua vida social (Spink,

    2006), relativiza (ou mesmo minimiza) a importncia das dinmicas sociais davida adulta e seus efeitos sobre a sade.

    Por sua vez em sua fala, Marcelo chegou a afirmar, recorrendo a um dito

    de Lacan, que o psicanalista tem que estar altura de sua poca, para assim,

    poder intervir de modo eficaz na anlise do sujeito. Entretanto, ao comear

    a contar de seu paciente que se queixava do trabalho, destacou como, em

    um momento de anlise, tal paciente, ao falar por meio de um processo de

    associao livre, ligou o significante que usava para falar de sua me com o

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    que usou para falar de sua supervisora (chefe no trabalho). interessante

    observar a ligao estabelecida entre uma dimenso familiar e uma dimenso

    do mundo adulto do trabalho, sendo que a primeira enfatizada de modo a

    suplantar a segunda. relevante notar, ainda, que, segundo o prprio Marcelo,essa associao ocorreu logo aps sua interveno, indicando, de certa

    maneira, a participao que teve nesse momento especfico do tratamento.

    Clara, em sua narrativa, tambm apresentou a mesma inclinao. Segundo

    ela, o movimento da anlise sempre para as questes familiares. Acreditar

    que tudo e tudo aqui pode ser entendido como o ncleo de todos os

    conflitos est na relao com o pai e com a me, que, dentro desse contexto

    narrativo, ganha um statusde verdade absoluta, salvo apenas que quem temque saber[disso] o paciente, pois, para Clara, o analista j sabe. Fica-nos,

    ento, a pergunta: seria esse um saber do qual o analista pode se apropriar e

    aplic-lo a qualquer tratamento?

    Vale lembrar que aspectos semelhantes podem ser encontrados na

    narrativa de Eullia sobre o Sr. Y, na medida em que ela acredita que a

    anlise outra coisa, pois nunca uma queixa do trabalho deixaria de estar

    intrinsecamente ligada com a histria do sujeito, entendendo essa histriacomo um conjunto de experincias marcadas pelas relaes parentais.

    Justina, falando de uma paciente, tambm afirma que a queixa do

    trabalho[entra] no circuito do sintoma. Ou seja, a partir dessas afirmaes,

    poder-se-ia inferir que o sujeito possui certa pr-disposio simblica,

    adquirida na infncia, que determinaria uma tolerncia s dificuldades do

    presente, apoiado primordialmente nas experincias pretritas. Assim, esse

    tipo de tratamento se orientaria apenas por uma incurso vida pregressado sujeito, de modo que, resolvendo as questes esquecidas da infncia,

    se resolveriam as questes pungentes de agora. Aparentemente, isso

    responderia indagao: por que uns adoecem e outros no?

    Desse modo, Roberta acredita que o que est na raiz do problema do

    sofrimento/adoecimento no trabalho e no s no trabalho, mas em outros

    aspectos sociais tambm a condio histrica do sujeito, relacionada

    s experincias parentais. A forma como o sujeito lidou e lida com seus

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    complexos familiares, que, em geral, so sempre ambivalentes, determina

    certo parmetro em sua concepo de mundo; ou seja, sua relao com o

    mundo se d por meio do resultado das experincias infantis. Ento, haveria

    um sofrimento (ou desprazer) fundador. Novamente, isso responderia aoporqu de alguns, em condies adversas, sofrerem, e outros no.

    No mesmo movimento, segundo Clara, sempre h possibilidade de

    escolhas, e o sofrimento est relacionado diretamente ao que se faz dessas

    escolhas. Contudo, possvel inferir a partir das premissas dela que o

    sofrimento advm de uma escolha do sujeito; ou seja, ele o responsvel.

    Nessa perspectiva, os constrangimentos sociais, entre eles os do trabalho,

    parecem ser colocados como algo no passvel de mudana, aos quais, assimcomo os fenmenos da natureza, caberia apenas ao sujeito adaptar-se.

    Destarte, a liberdade individual est posta pelos psicanalistas entrevistados

    como a grande questo para o sofrimento/adoecimento do sujeito, o que

    perfeitamente plausvel. No entanto, os critrios de limite para essa liberdade

    parecem no corresponder s experincias de uma gama incalculvel de

    trabalhadores que tm uma margem de escolha muito limitada. Nesse

    contexto, os modelos de organizao do trabalho, as constantes mudanas nasformas de produo, o subemprego, o desemprego e outros tantos aspectos

    que no esto sob controle dos trabalhadores so apresentados por autores da

    rea de Sade Mental Relacionada ao Trabalho (Franco, Druck, & Seligmann-

    Silva, 2010; Jacques, 2006; Sato & Bernardo, 2005) como elementos que

    desempenham um importante papel para o aumento do sofrimento mental

    e dos distrbios psicolgicos. Todavia, os psicanalistas entrevistados parecem

    reduzir o sofrimento humano aos aspectos da liberdade individual ou smarcas mnmicas das relaes familiares. Evidentemente, esses aspectos

    so fulcrais para a psicanlise, mas compreender todos os aspectos da vida

    a partir deles , no mnimo, bastante limitado, pois no possibilita analisar

    as situaes concretas vivenciadas por coletivos humanos como fatores

    geradores de adoecimento.

    Na perspectiva da Psicologia Social do Trabalho, mister entender que o

    contexto social amplo interfere significativamente na vida do ser humano. Se

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    considerarmos a centralidade do trabalho no mundo social e o movimento que

    compe as relaes sociais como pode ser percebido por meio dos trabalhos

    de Marx (1867/2006), Lukcs (1979) e Antunes (2008) , podemos supor que o

    trabalho tambm interferir de modo peremptrio na vida de todos os sujeitosque compem a sociedade. Dessa forma, o contexto social determinante para

    a vida do sujeito, e tal sujeito s pode ser compreendido medida que est

    contextualizado. Assim, a liberdade do sujeito possvel, porm, recoberta de

    um (im)possvel. Culpabilizar somente o sujeito por seu sofrimento no parece

    ser a melhor maneira de se colocar em uma posio de quem escuta.

    Wnsch Filho (2002), ao debater o texto de Leny Sato intitulado Preveno

    de agravos sade do trabalhador: replanejando o trabalho atravs dasnegociaes cotidianas, afirma que a liberdade individual indispensvel

    para que os indivduos tenham livre expresso e possam agir de forma mais

    criativa (p. 1158). Porm, o prprio autor reconhece que isso algo a ser

    buscado. Sendo assim, ele destaca que a existncia de uma estrutura social

    extremamente coercitiva no pode ser relegada, muito menos quando se

    trata do mundo do trabalho. A questo de fato a dificuldade de tratar a

    liberdade individual como um modelo operacional para equacionar osproblemas de sade nos ambientes de trabalho, cuja lgica de organizao

    encontra-se definida pelos determinantes da produo capitalista (ibidem).

    nessa perspectiva que Seligmann-Silva (1994) afirma que o trabalho tanto

    poder fortalecer o sujeito como lev-lo a manifestaes de distrbios fsicos

    e mentais; isto , a liberdade individual nunca plena na medida em que se

    situa dentro de um contexto social. Isso no significa a sua inexistncia, muito

    menos a sua predominncia. Entendemos que a liberdade est tensionadadentro dos limites do social e do individual. medida que os psicanalistas

    entrevistados deixam de lado uma dessas dimenses, podem acabar por

    exercer um papel iatrognico, j que atribuem unicamente ao sujeito a

    responsabilidade pela sua condio social. o que acontece no caso focalizado

    quando se trata da condio de trabalho.

    Por outro lado, devemos observar, nessas narrativas, aspectos de

    extrema relevncia. Entre eles, destacamos a importncia da escuta, feita

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    de modo particular ou a chamada escuta de alcova. A clnica psicanaltica

    fundamentalmente escuta, mas no uma escuta qualquer, e, sim, uma

    escuta do inconsciente. Esse modo de escuta permitiu, segundo as narrativas

    apresentadas, que os pacientes ouvidos pudessem recontar, em certa medida,suas histrias ou faz-las de outra maneira, mesmo, muitas vezes, impedidos

    por situaes que no estavam sob seus controles. O caso do Sr. Y bastante

    representativo neste momento, tendo em vista que a parte inicial de seu

    tratamento exigia de Eullia muito mais escuta do que qualquer outra coisa

    o que talvez se possa chamar de escuta purgativa. Com o mesmo enfoque,

    Justina apresentou tal conduta quando, diante das dificuldades de manejo

    com a Srta. R, elegeu a escuta como o principal elemento da anlise, ainda que,evidentemente, uma conduta psicanaltica no seja feita apenas da escuta,

    mas de outros elementos tambm, como, por exemplo, a interpretao.

    Nessa perspectiva, lcito dizer que h um efeito teraputico decorrente

    de tal forma de produzir um saber, de refazer uma histria, de recuperar as

    escolhas de um sujeito segundo determinaes que lhe escapam. Contudo,

    uma Psicanlise no termina, mas comea neste ponto (Dunker, 2008, p. 45).

    Assim sendo, o que se pretende aqui propor ao leitor um questionamento,a partir das narrativas apresentadas, sobre essa dicotomizao vigente

    do universal e do particular; ou, em outras palavras, do individual e do

    coletivo. Ainda que se entenda que o drama da vida tenha sempre em seu

    centro um conflito (Lukcs, 1936/1965) e que esse conflito tenha como

    ncleo as relaes parentais, no se pode desconsiderar que a estrutura

    social imprima suas marcas no sujeito ao longo de toda sua vida mesmo

    antes. Dessa maneira, podemos admitir que nem o social nem o individualpodem ser reduzidos a relaes de causalidade (Ayouch, 2009, p. 80). Se a

    Psicanlise se ocupa precisamente dessa relao complexa entre individual

    e coletivo (Goldenberg, 2006, p.17), deve, ento, favorecer no analisante

    a possibilidade de amar e trabalhar, de construir sua autonomia nos limites

    de sua economia de gozo e de apropriar-se autenticamente de seu desejo

    (Dunker, 2009, p. 40). Todavia, as narrativas apresentadas demonstraram

    certa inexatido com tal proposta.

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    Consideraes finais

    A discusso das narrativas apresentada neste artigo no tiveram como

    escopo chegar a uma resposta final acerca das possveis dificuldades entrea particularidade de prticas clnicas de psicanalistas e a necessidade de um

    tipo especfico de tratamento para aqueles que sofrem devido s relaes

    de trabalho e/ou organizao do trabalho. Muito pelo contrrio. Nenhuma

    resposta foi ou ser dada a esse respeito. Porm, diante do que se apresentou,

    foi possvel observar algumas questes pertinentes que perpassaram o estudo

    apresentado aqui e que esto para alm e para aqum dele.

    Apesar de existirem perspectivas tericas da Psicanlise que privilegiamuma interao dialtica dos aspectos sociais e individuais, nas narrativas dos

    entrevistados aferiu-se que as dinmicas particulares dos sujeitos tiveram

    primazia sobre quaisquer outras dinmicas inclusive quando o trabalho era

    a principal queixa. Assim sendo, estaria a Psicanlise condenada a intervir no

    mbito social somente pela via terica? Pois, como diz Enriquez (1990), se o

    tratamento analtico nem sempre pode dar conta da histria social, a menos

    que se transforme profundamente, a teoria pode faz-lo (p. 18).Sendo assim, consideramos legtima uma concepo de tratamento que

    leve em conta a histria familiar do sujeito, assim como tambm legtima

    uma concepo que leve em conta os desafios impostos, nas relaes de

    trabalho, ao mesmo sujeito. Dessa maneira, o que pode mancar nesse contexto

    quando qualquer uma das perspectivas abandona essa ambiguidade

    fundamental que compe o existir humano.

    Portanto, o que propomos, aps a incurso pelos campos da Psicanlise,da Psicologia Social do Trabalho e das experincias que foram narradas, a

    sustentao das diferentes concepes, a fim de lev-las no a um resultado

    nico, mas que cada concepo seja terica ou clnica revele ao seu oposto o

    valor necessrio para se avanar no conhecimento do ser humano; ou seja, uma

    prtica clnica com foco na sade mental que possa ter como verdadeiro objetivo

    favorecer ao sujeito uma autonomia, dentro dos limites da realidade, reforado

    por uma autntica identificao de seus desejos, para, enfim, amar e trabalhar.

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    Work and suffering: narratives told by psychoanalysts

    Abstract

    This article originated from a study on how psychoanalysts with Lacanianorientation listen to and deal with patients who have some type of complaint

    related to the world of work. The study, classified in the field of the Social

    Psychology of Work, is based on the pre-supposition that the capitalistic

    social context and the forms of organizing work may have consequences for

    the mental health of workers. Semi-structured interviews were held with

    five psychoanalysts and consisted of narrations of experiences with patients

    affected by some type of mental suffering related to their labor. It was clear

    that, when treating their patients, the analysts gave more emphasis to the

    dynamic aspects of family histories than to dynamics of the world of work. In

    the process, they brought to the fore a longtime debate about the contrast

    between the individual and the collective.

    Keywords: Work; social psychology; suffering; psychoanalysts; narratives;

    individual vs. collective

    Travail, la souffrance et les rcits de certains psychanalystesRsum

    Cet article est issu dune enqute qui vise fournir des conseils en tant que

    psychanalystes lacaniens coutent et traitent les patients qui ont une sorte de

    plainte sur le monde du travail . partir dun regard de psychologie du travail

    social , la recherche avait lhypothse que le contexte social capitaliste et formes

    dorganisation du travail peuvent avoir des consquences pour les travailleurs

    de la sant mentale . Des entrevues semi -structures ont t menes auprs

    de cinq analystes avec un accent sur relate les expriences dans le traitement

    de patients souffrant dune sorte de mental la souffrance lie au travail . Il a

    t observ que les rpondants favorisaient les traitements qui ont entrepris

    plusieurs aspects de la dynamique de lhistoire de la famille que la dynamique

    du monde du travail , relancer un vieux dbat entre l individuel et le collectif.

    Mots-cls:travail , la psychologie sociale , la souffrance , les psychanalystes ;

    Narratives , individuel / collectif.

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    Francisco Ronald Capoulade Nogueira

    Psicanalista e Filsofo. Doutorando em Psicologia Universidade

    Federal de So Carlos (UFSCar) e Psicanlise (Paris 7 - Fr).Mestre em Psicologia pela Pontifcia Universidade Catlicade Campinas. (PUC-Campinas) (Campinas, So Paulo, Br)

    [email protected]

    Mrcia Hespanhol Bernardo

    Docente do Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu emPsicologia. Pontifcia Universidade Catlica de Campinas.

    (Campinas, So Paulo, Br) [email protected]

    Recebido/Received: 16.10.2013/16.10.2013

    Aceito/Accepted: 30.10.2013/30.10.2013

    Trabajo, sufrimiento y los relatos de algunos

    psicoanalistas

    ResumenEste artculo se deriva de un estudio que tuvo como objetivo mostrar cmo los

    psicoanalistas lacanianos escuchan y atienden a los pacientes que presentan

    algn tipo de queja sobre el mundo del trabajo. Desde la perspectiva de la

    Psicologa Social del Trabajo, la investigacin tuvo el supuesto de que las formas

    capitalistas de organizacin del trabajo pueden tener consecuencias para la

    salud mental de los trabajadores. Se realizaron entrevistas semiestructuradas

    con cinco psicoanalistas, centradas en la narracin de la experiencia en el

    tratamiento con pacientes con quejas relacionadas con el trabajo. Se observque los encuestados, en los tratamientos que realizan, se comprometen ms

    con aspectos de la dinmica de la historia familiar de sus pacientes que con la

    dinmica del mundo laboral, reactivando un viejo debate entre lo individual

    y lo colectivo.

    Palabras-clave: Trabajo; Psicologa Social; Sufrimiento; Psicoanalistas;

    Narrativas; Individuales Colectiv.

    | Analytica | So Joo del-Rei | v. 2 | n. 3 | p. 101-122 | julho/dezembro de 2013 |

    Trabalho, sofrimento e as narrativas de alguns psicanalistas