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Texto sobre o Contestado, Por LizAndréa Dalfré

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  • LIZ ANDRA DALFR 2

  • Outras narrativas da nacionalidade: o movimento do Contestado 3

    LIZ ANDRA DALFR

    Coleo Teses do Museu Paranaense

    Volume 8

  • LIZ ANDRA DALFR 4

    Este livro foi diagramado e produzido pela EDIO POR DEMANDA, uma encomenda do autor, que detm todos os direitos de contedo, comercializao, estoque e distribuio dessa obra.

    Diagramao: Equipe da Edio por Demanda ISBN: 978-85-67310-17-6

    IMPRESSO NO BRASIL/PRINTED IN BRAZIL

    Dalfr, Liz Andra

    D141 Outras narrativas da nacionalidade : o movimento do Contestado / Liz Andra Dalfr. Curitiba : SAMP, 2014.

    236 p. : il. (Coleo Teses do Museu Paranaense ; v.8). ISBN 978-85-67310-17-6

    1. Brasil Histria Campanha do Contestado, 1912-

    1916. 2. Campanha do Contestado, 1912-1916 - Nacionalidade. 3. Campanha do Contestado, 1912-1916 Imprensa Paran. 4. Campanha do Contestado, 1912-1916 Militares - Narrativas pessoais. I. Ttulo. II. Srie.

    CDD (20.ed.) 981.62 CDU (2.ed ) 981.076

  • Outras narrativas da nacionalidade: o movimento do Contestado 5

    LIZ ANDRA DALFR

    Primeira Edio

    CURITIBA 2014

    Sociedade de Amigos do Museu Paranaense

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  • Outras narrativas da nacionalidade: o movimento do Contestado 7

    Crditos Governador do Paran Beto Richa Secretrio de Estado da Cultura Paulino Viapiana Diretora-Geral da SEEC Valria Marques Teixeira Coordenadora do Sistema Estadual de Museus Christine Vianna Batista Diretor do Museu Paranaense Renato Augusto Carneiro Junior Capa Raquel Cristina Dzierva e Adriana Salmazo Zavadniak Editorao Roberto Guiraud Designer Foto da capa Prstito da chegada do corpo de Joo Gualberto. 1912. Autor no identificado. Acervo Museu Para-naense, Curitiba-PR. Sociedade de Amigos do Museu Paranaense SAMP Marionilde Dias Brepohl de Magalhes Presidente

    Este livro foi impresso com recursos da Lei Rouanet.

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  • Outras narrativas da nacionalidade: o movimento do Contestado 9

    Sumrio

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  • Outras narrativas da nacionalidade: o movimento do Contestado 11

    Apresentao

    Renato Carneiro Jr. Diretor do Museu Paranaense

    O Museu Paranaense, fundado em 1876, sendo uma das instituies museolgicas mais antigas em funcionamento no Brasil, possui uma histria de grande relevncia cientfica, com publicaes, principalmente nas dcadas de 1940 a 1960, de artigos cientficos nos campos da zoologia, entomologia, botnica, geografia, arqueologia e antropologia, entre outras.

    Com o tempo, a instituio perdeu este lugar de destaque, assumido pela Universidade Federal do Paran, onde vrios departamentos foram criados ou fortalecidos a partir da ao de pesquisadores ligados ao Museu Paranaense, mais fortemente, mas no apenas, nos anos em que esteve frente da instituio o mdico e professor Jos Loureiro Fernandes.

    No entanto, o Museu Paranaense no deixou de fornecer subsdios para se "fazer cincia" em pesquisas de campo ou no fornecimento de fontes para a elaborao de trabalhos acadmicos em diversos nveis, desde monografias de concluso de curso a dissertaes, teses e artigos cientficos. Nossos arquivos, biblioteca e o acervo museolgico em geral tm contribudo h geraes para se conhecer mais da cultura, da histria e at da pr-histria dos que viveram e vivem neste pedao de territrio brasileiro a que hoje chamamos de Paran.

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    Assim, ao lanar esta coleo de livros com teses e dissertaes geradas a partir de nosso acervo, ou com a participao de pessoas ligadas ao Museu, queremos fazer uma homenagem queles que buscaram entender mais o que esta sociedade paranaense e que ainda tm seus estudos inditos, por fora de um mercado editorial que no privilegia a produo local. A coleo Teses do Museu Paranaense traz ao pblico, no formato impresso e em edio eletrnica, os estudos que permitiram qualificar a equipe do Museu, atual ou mais antiga, como um importante grupo de pesquisadores no interior da Secretaria da Cultura do Paran, mostrando seu valor e esforo.

    Agradecemos Sociedade de Amigos do Museu Paranaense e aos apoiadores, como a Companhia Paranaense de Energia Copel, pelos recursos destinados a esta publicao, a partir da Lei Rouanet, do Ministrio da Cultura do Governo Federal.

  • Outras narrativas da nacionalidade: o movimento do Contestado 13

    Apresentao da obra

    Liz Andra Dalfr Doutora em Histria

    Este livro resultado da dissertao de mestrado defendida em 2004 no curso de histria da Universidade Federal do Para-n, sob a orientao do professor Dr. Luiz Carlos Ribeiro. O interesse pelo tema do Movimento do Contestado nasceu ainda na graduao e foi desenvolvido, primeiramente, em minha monografia de final de curso, em 2001.

    No ano de 2012 completaram-se 100 anos do incio do pri-meiro conflito que culminou no que conhecemos como Guerra do Contestado. Nesta ocasio, diversos eventos e palestras foram realizados na regio sul do Brasil, possibilitando o encontro e fomentando o debate entre pesquisadores de diferentes reas voltados a temas ligados ao conflito, como a peregrinao e atuao dos monges, curandeiros e videntes, a participao do Exrcito Nacional, os diferentes grupos sociais envolvidos no conflito, entre outros enfoques. Esses encontros evidenciam a relevncia deste assunto como parte importante da histria do Brasil republicano.

    O trabalho por hora apresentado tem como objetivo analisar os discursos sobre a Guerra do Contestado construdos pelo jor-nal paranaense Dirio da Tarde. Durante o perodo do conflito, que se estendeu de outubro de 1912 a janeiro de 1916, diversas

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    notcias e notas foram publicadas neste peridico, demonstrando o grande interesse das elites paranaenses na resoluo da questo de limites entre o Paran e Santa Catarina.

    Neste trabalho tambm analiso o discurso de militares que participaram das investidas contra os redutos sertanejos e deixaram suas impresses registradas em obras publicadas posteriormente e que representam, no somente seus testemu-nhos, mas tambm, um dos primeiros conjuntos historiogrficos sobre o tema. Imbudos de diferentes intenes e olhares, esses grupos construram uma representao sobre o movimento e seus participantes.

    No Museu Paranaense encontrei vrios documentos referen-tes ao Movimento do Contestado, como fotografias, quadros e objetos, alm de farto material bibliogrfico. Algumas imagens referentes atuao de Joo Gualberto, coronel enviado pelas foras paranaenses para Palmas com o intuito de conter o monge Jos Maria e seus seguidores, demonstram o interesse e o com-prometimento dos paranaenses com a questo do Contestado.

    Espero que esse trabalho possa ensejar novos debates e inves-tigaes sobre o tema em nosso Estado. Poucas alteraes foram realizadas nesta reviso, pois procurei manter o sentido original do trabalho de dissertao.

    Agradeo ao diretor do Museu Paranaense, Renato Augusto Carneiro Junior, que por meio deste projeto est viabilizando o conhecimento e a difuso de pesquisas sobre diversos temas e fontes da historiografia paranaense.

  • Outras narrativas da nacionalidade: o movimento do Contestado 15

    1 INTRODUO

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    O objetivo deste trabalho consiste em realizar um estudo referente a algumas representaes produzidas sobre o Movimento do Contestado, buscando analisar de que forma, no conjunto de uma comu-nidade de imaginao1 datada do incio do sculo XX, esse evento foi representado, localizando as categorias recorrentes, as definies quanto aos participantes e os interesses imediatos assumidos pela imprensa pa-ranaense e pelos militares que classificaram e deram seu parecer sobre o conflito. Procuramos saber de que forma essas anlises estiveram pauta-das em uma necessidade de constituio da nao brasileira.

    Este evento, convencionalmente delimitado entre os anos de 1912 a 1916, ocorreu na regio ento disputada judicialmente pelos es-tados do Paran e de Santa Catarina e envolveu a populao sertaneja que vivia no interior catarinense e em parte do territrio paranaense, bem como as foras militares enviadas ao local para conter os revoltosos.2 Durante esse perodo e nos anos posteriores a ele, diversos indivduos tentaram entend-lo e defini-lo, criando imagens sobre os seus partici-pantes, fossem estes favorveis ou no ao novo regime republicano.

    1 Utilizamos a noo de comunidade de imaginao conforme o sentido atribudo

    por Baczko: de um grupo social que compartilha do mesmo imaginrio. BACZKO, Bronislaw. Imaginao social. In: Enciclopdia Einaudi. v. 5 Anthopos-Homem. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. 1985, p.321.

    2 A regio onde ocorreu o conflito estende-se ao meio-oeste, ao planalto central e ao norte do estado catarinense. A parte paranaense envolvida no conflito estava loca-lizada margem direita do Rio do Peixe, onde hoje se encontram os municpios de Rio Negro, Unio da Vitria e Palmas, regio disputada judicialmente pelos dois estados no perodo em que ocorreu o conflito. O Movimento no se estendeu para o oeste paranaense.

  • Outras narrativas da nacionalidade: o movimento do Contestado 17

    Considerado um dos maiores movimentos sociais que ocorreu em territrio nacional,3 o Contestado foi objeto de estudo de inmeros cientistas sociais que elaboraram representaes referentes ao conflito, cada qual o relacionando e observando a partir de uma determinada viso de mundo e de um posicionamento poltico especfico, compro-metidos com o seu tempo, tornando-se, por sua vez, narradores da nacionalidade, de um pensar o Brasil, mesmo que seja na singularida-de de um movimento social inscrito no tempo e no espao.

    Buscando compreender algumas dessas representaes, pro-curamos analisar o imaginrio social do perodo, evidenciando uma rede comum de significaes que deram origem a um pensamento sobre o Movimento e seus participantes. Para isso, selecionamos dois grupos de memrias que foram fundamentais para a transmisso de um conhecimento sobre o Contestado: a imprensa paranaense do per-odo e os militares que participaram do evento. Cada um a sua maneira, elaboraram uma viso acerca dos acontecimentos, do homem sertanejo e do local onde este morava, por ele denominado serto. Partindo des-ses documentos, da bibliografia pertinente ao tema e ao perodo, algumas dvidas surgiram quanto s representaes edificadas sobre o Movimento do Contestado por essas instituies: Quais foram as no-es que ocuparam o lugar central nesse pensamento? Como foi cons-truda, nestes textos, a ideia do conflito? Qual a relao dos discursos

    3 Como apontam DECCA, Edgar Salvadori de. Quaresma: um relato de massacre

    republicano entre a fico e a histria. In: ; LEMAIRE, Ria. (orgs.). Pelas mar-gens: outros caminhos da histria e da literatura. Campinas, Porto Alegre: Ed. da Unicamp, Ed. da Universidade UFRGS, 2000, p.141; HARDMAN, Francisco Foot. Tria de taipa: Canudos e os irracionais. In:. (org.). Morte e progresso: cul-tura brasileira como apagamento de rastros. So Paulo: Unesp, 1998, pp.130-131; MONTEIRO, Duglas Teixeira. Os errantes do novo sculo: um estudo sobre o surto milenarista do Contestado. So Paulo: Editora da USP, 1993, entre outros.

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    proferidos sobre o Contestado com o momento scio-poltico brasilei-ro do incio do sculo XX? Qual foi o lugar ocupado pelo Paran nes-se debate? Quais foram as imagens de homem e de lugar produzidas e idealizadas por esses indivduos?

    Estamos entendendo como representao o processo pelo qual determinados grupos sociais constroem um sentido, realizando classificaes, excluses e edificando imagens referentes a si prprios e queles que consideram seus inimigos. Nessa perspectiva, pretende-mos analisar alguns recursos simblicos utilizados pelos narradores do Contestado, traduzidos por meio das categorias e conceitos emprega-dos com o intuito de nomear o outro, evidenciando uma identidade social tal como pensam que ela , ou como gostariam que fosse.4

    Mostraremos como essa elaborao de sentido foi fundamen-tal para que os narradores do Contestado pudessem justificar suas es-colhas e condutas, assim como refletiremos acerca do lugar ocupado por esses indivduos na hierarquia social, elementos imprescindveis para a compreenso dos discursos por eles proferidos. O levantamento desses itens ser importante para a percepo de uma vinculao des-ses grupos a uma comunidade de imaginao que marcou sua presena no incio do sculo XX por meio da produo de reflexes referentes constituio da nao brasileira.

    4 CHARTIER, Roger. O mundo como representao. In: Revista Estudos Avana-

    dos. So Paulo: Editora da USP, v. 11, n 5, 1991, p.19.

  • Outras narrativas da nacionalidade: o movimento do Contestado 19

    Essas representaes sobre o Movimento do Contestado, du-rante a dcada de 10, estiveram inseridas em um contexto mais amplo, constituindo parte do pensamento social brasileiro.5 Pensar o Brasil, sua especificidade em relao civilizao ocidental, seus problemas e as solues possveis ou desejveis para a resoluo do seu atraso e das tenses associadas a essa noo, fizeram parte das narrativas que figuraram em jornais e textos produzidos durante o perodo do Movi-mento e logo aps a ele. Nesse sentido, apresentar algumas caracters-ticas do imaginrio social que vigorou entre os intelectuais e/ou pen-sadores que escreveram nesse momento se torna fundamental, uma vez que ele mobiliza desejos e emoes, orienta prticas e atribui sentido s aes.

    A tradio intelectual racionalista e cientificista que herda-mos do ocidente europeu nos dois ltimos sculos criou uma distino entre aquilo que faria parte da realidade e aquilo que pertenceria ao mundo da iluso. Neste trabalho, entendemos que o mundo da imagi-nao, dos desejos, das utopias, faz parte da sociedade na qual vive-mos. E assim, da mesma forma como as guerras, as mortes e o traba-lho, tambm as tradies, os pensamentos, o imaginrio de uma cole-tividade se constituem como objetos passveis de passarem pelo crivo do historiador.

    5 Entendemos por pensamento social os textos nativos que possuem como eixo cen-

    tral o tema da nacionalidade, conforme definiu Candice VIDAL E SOUZA. Quando e onde comea a existir o Brasil e por quais caminhos tem evoludo a formao nacional so as temticas de inspirao para se construir modelos expli-cativos do pas. Por esse ncleo de preocupao, distribuem-se as obras que ex-pem descries-pareceres da situao brasileira, as quais podem ser desenvolvi-das sob perspectivas diversas de construo da realidade pensada. VIDAL E SOUZA, Candice. A ptria geogrfica: serto e litoral no pensamento social bra-sileiro. Goinia: UFG, 1997, p.21. Mesmo quando utilizam ideias estrangeiras es-ses textos esto subordinados ao tema principal: a nao.

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    As noes racional e cientfico e suas contraposies irracional e senso comum constituem o prprio imaginrio de uma sociedade, no caso a ocidental, que encontrou nesses e em muitos outros termos definies para si prpria e para outros grupos sociais, evidenciando as alteridades e as relaes de poder inerentes formu-lao de conceitos representativos. por meio de seu imaginrio soci-al que uma colectividade designa a sua identidade; elabora uma certa representao de si; estabelece a distribuio dos papis e das posies sociais; exprime e impe crenas comuns; constri uma espcie de cdigo de bom comportamento.6

    Essas questes se tornam importantes, uma vez que a forma como o Movimento do Contestado veio a ser conhecido relaciona-se com o momento em que as elites intelectuais e polticas do pas proje-taram um ideal de nao influenciada por noes apropriadas do dar-winismo social, do positivismo e do evolucionismo. Entre os princi-pais representantes desse modo de pensar o Brasil, apontamos os mais citados nos estudos temticos sobre pensamento social do final do sculo XIX e incio do XX: Euclides da Cunha, Silvio Romero e Nina Rodrigues. Partindo da ideia de civilizao como principal projeto nacional, esses intelectuais forneceram os caminhos que consideraram necessrios para alcan-la. Nesse sentido, entre os muitos elementos constitutivos desse pensamento, o espao e o homem representaram objetos de estudo, anlise e classificao privilegiados.

    Muitos desses pensadores, ao discutirem sobre as questes da nacionalidade, tambm elaboraram um parecer referente ao ser brasi-leiro. Tendo a Europa como modelo, construiu-se uma viso acerca

    6 BACZKO, op. cit., p.309.

  • Outras narrativas da nacionalidade: o movimento do Contestado 21

    daqueles que aqui moravam, dos que conseguiriam ou j estariam bem prximos a esse ideal civilizatrio e, de forma dualista, deixando bem claro quem eram os civilizados, denominaram a barbrie brasileira, classificaram-na, encontrando para ela um lugar geograficamente de-terminado. Dessa forma, no litoral estariam aqueles mais aptos a con-quistar o lugar reservado para os civilizados, enquanto o lugar de br-baros coube populao que morava no interior, no serto, onde os narradores da nacionalidade apontavam a predominncia do analfabe-tismo, da ignorncia e do fanatismo.

    Por outro lado, essa populao na maioria das vezes designa-da por esses pensadores como brbara e inculta, conferiu, para o pen-samento do perodo, a autenticidade para uma nao em vias de for-mao, em um momento em que se buscava a identidade do povo bra-sileiro. Nesse sentido, a literatura do final do XIX e incio do XX, ao utilizar-se do termo nacional, reportou-se, geralmente, populao interiorana e nativa porm, pobre e mestia. O Brasil, nessa perspec-tiva, constitua-se como um territrio formado por pobres, analfabetos e brbaros.

    Como alcanar a civilizao e o progresso em um pas onde a populao nativa era atrasada? Essa constatao no foi sentida sem angstias pelos pensadores do perodo, que definiram o ser brasileiro a partir daquilo que lhes faltava. Na construo desse pensamento, esses estudiosos no viam sua imagem refletida no espelho quando se volta-vam para o Ocidente, mas percebiam-se como um povo que ainda no havia alcanado os mnimos elementos necessrios para embarcarem em direo ao progresso, ao futuro de uma nao desejada. Ao olhar para o Ocidente, somente encontravam a alteridade. Esta, marcada pela misria, pela miscigenao, por um passado de senhores e escravos, de ndios e

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    bastardos. Suas reflexes giraram em torno de ideias opostas como civilizao/barbrie, progresso/atraso, elite/povo, litoral/serto.7 En-fim, esses idealizadores, pensavam como europeus e sentiam como brasileiros.8

    Convivendo com essas ideias pessimistas em relao ao Brasil e aos brasileiros, o modelo europeu de civilizao foi alvo de diversas crticas referentes, sobretudo, inadequao das ideias vindas de fora quando aplicadas para a compreenso da realidade brasileira.9 Segundo Nicolau Sevcenko, os primeiros anos do regime republicano foram mar-cados por crises, pela especulao, pela desestabilizao social, fatores que culminaram em diversos conflitos, como o Movimento de Canudos, a Revolta da Vacina e a Guerra do Contestado. Entre essas transforma-es, encontra-se tambm a desiluso de intelectuais brasileiros em rela-o Repblica e o carter missionrio que atribuem a suas atividades.10 Essa misso consistia na afirmao de um conhecimento da realidade social em bases cientficas que orientasse o processo de consolidao do Estado nacional e seu papel pedaggico de construtor da nao.11

    7 Essas questes so discutidas principalmente por NAXARA, Mrcia Regina Cape-

    lari. Estrangeiro em sua prpria terra: representaes do brasileiro 1870/1920. So Paulo: Annablume, 1998, pp.15 et seq.

    8 Ibidem e LIMA, Nsia Trindade. Um serto chamado Brasil: intelectuais e repre-sentao geogrfica da identidade nacional. Rio de Janeiro: Revan: IUPERJ, UCA, 1999, p.13.

    9 Euclides da Cunha, Araripe Jnior e Silvio Romero elaboraram importantes refle-xes em relao perspectiva que condenava as ideias vindas de fora, considera-das inautnticas ao passo que elegiam o homem do interior como o verdadeiro representante da nacionalidade brasileira. Cf. ABREU, Regina. O enigma de Os Sertes. Rio de Janeiro: Funarte: Rocco, 1998, pp.215 et seq.

    10LIMA, op. cit., p.45; SEVCENKO, Nicolau. Literatura como misso: tenses soci-ais e criao cultural na Primeira Repblica. So Paulo: Brasiliense, 1999 e. O prel-dio republicano, astcias da ordem e iluses do progresso. In: Histria da vida pri-vada no Brasil. V.3. So Paulo: Companhia das Letras, 1998, introduo. pp.7-48.

    11 LIMA, op. cit., p.49.

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    As dificuldades scio-polticas que atingiam o Brasil foram uma constante preocupao dos narradores do Contestado. A crise do regime poltico, nesse perodo, se fez sentir tanto por meio da voz da imprensa paranaense, quanto atravs dos textos dos militares.

    No pensamento social que vigorou nessa poca, prevaleceu a ideia de que a construo da nao brasileira deveria ocorrer a partir dos elementos verdadeiramente nacionais, e no com a importao e adaptao de teorias europeias. Com o objetivo de valorizar os aspectos nacionais, os intelectuais elegeram o homem do interior como o autntico brasileiro, pois ainda no havia sido contaminado pelas ideias e hbitos vindos de fora, ao contrrio dos habitantes do litoral. Os narradores do Contestado demonstraram a vinculao a essas noes ao criticarem, por exemplo, o acolhimento de imigrantes no territrio brasileiro, em detri-mento do elemento nativo.

    A alma da nossa ptria origina-se dos elementos tnicos, espar-sos e ainda no bem caldeados que concorrem para a formao da nossa raa. O caboclo representa ahi um fator preponderan-te, que, entretanto, despresado e, muitas vezes, perseguido e esmagado em beneficio do extrangeiro que vem exactamente, (...), destruir a alma nacional. Como uma dolorosa antithese, o colono extrangeiro, tem todas as regalias; occupa as terras que de direito pertencem ao nacional, recebe do Estado toda a sorte de auxlios, tornando-se, com os elementos de superiorida-de intellectual que j traz do seu pais, um competidor, a que o sertanejo ignorante, supersticioso, fatalista, tem de submetter-se,

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    por se encontrar isolado e sem apoio moral e material de seus patrcios.12

    Esse interesse pelo homem do interior, conforme aponta N-sia Trindade Lima, foi objeto de estudos de cunho sociolgico durante um perodo que compreende a segunda metade do XIX at 1964, con-solidando uma tradio de anlise do Brasil que tende a remet-lo ao dualismo litoral/serto, perpassando inclusive a fase de institucionali-zao universitria.13 Este item torna-se importante em nosso estudo, uma vez que entre as obras clssicas14 sobre o Movimento do Contes-tado, duas provm desse perodo: o trabalho de Maria Isaura Pereira de Queiroz e o de Maurcio Vinhas de Queiroz, os quais sero analisa-dos adiante.15

    As ideias que remetem necessidade de construo de uma identidade nacional no incio do sculo XX tiveram grandes represen-tantes no Brasil, cujo pensamento tornou-se paradigmtico nas ques-tes relativas histria do povo brasileiro, a sua constituio e a sua

    12 DIRIO DA TARDE, Curitiba, 07 de janeiro de 1915, p.1, c.1-2. 13 LIMA, op. cit., p.14. 14 Compartilhamos da ideia de obras clssicas conforme definiu VIDAL E SOUZA

    A produo social de uma obra clssica da anlise sociolgica se faz pela consa-grao e reproduo no mbito acadmico. Um clssico no uma construo vo-luntarista, mas requer o concurso de agentes e espaos sociais de instituio e vali-dao de sua reputao. Ver VIDAL E SOUZA, Candice; BOTELHO, Tarcsio Rodrigues. Modelos nacionais e regionais de famlia no pensamento social brasi-leiro. Revista de Estudos Feministas. Florianpolis, v. 9, n 2, 2001. Disponvel em: www.scielo.com.br. Acesso em: 20/11/03. No caso das obras expostas acima, com certeza se tornaram clssicos pela comum referncia daqueles que estudaram o Movimento do Contestado.

    15 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O messianismo no Brasil e no mundo. So Paulo: Dominus, 1965; QUEIROZ, Maurcio Vinhas de. Messianismo e conflito social: a guerra sertaneja do Contestado (1912-1916). 2 ed. So Paulo: tica, 1977.

  • Outras narrativas da nacionalidade: o movimento do Contestado 25

    geografia. Nomes como Nina Rodrigues, Silvio Romero e Euclides da Cunha se tornaram portadores autorizados e reconhecidos de um pen-sar o Brasil e os seus habitantes.16 Eles elaboraram representaes fundamentadas em um imaginrio no qual o progresso era o fim lti-mo e inevitvel da humanidade.

    Essa discusso fundamental para esse trabalho uma vez que o conjunto dessas representaes traduzido principalmente pela figu-ra de Euclides da Cunha , poder nos auxiliar a compreender a forma de pensar dos escritores que se debruaram sobre o Movimento do Contestado, onde tambm podemos observar tentativas de construo de uma identidade nacional.

    luz desse imaginrio, alguns jornalistas, militares e intelec-tuais construram, cada um a seu modo, uma viso acerca do conflito, dos seus participantes e do local onde ele ocorreu. Ao escreverem so-bre o Movimento tambm pensaram a respeito do Brasil, refletindo acerca dos impasses e indefinies que permearam o projeto de for-mao de uma identidade nacional durante a dcada de 1910. Nessa perspectiva, os discursos sobre o Movimento do Contestado, elabora-dos no incio do sculo XX, podem ser considerados narrativas da nacionalidade.

    Buscando construir uma reflexo em torno dessas questes, selecionamos algumas fontes com o intuito de realizar leituras referen-tes ao imaginrio social formado a partir do conflito, refletindo acerca

    16 Esses autores, entre outros, estabeleceram discusses fecundas para o pensamento

    social brasileiro, na ltima dcada do sculo XIX e na primeira dcada do sculo XX. Cf. HERMANN, Jacqueline. Canudos sitiado pela razo: o discurso intelectual sobre a loucura sertaneja. In: Revista Histria: Questes e Debates. Curitiba, v. 13, n 24, pp.126-150, jul./dez. 1996, pp.128-129 e NAXARA, op. cit., pp.78 e 89.

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    da importncia desse acontecimento para a consolidao de um pen-samento relativo aos problemas e aos destinos do pas.

    Para tal, o jornal paranaense Dirio da Tarde foi um dos dis-cursos que mais nos chamou ateno. Durante o perodo do conflito, esse peridico da capital paranaense se voltou para o Movimento emi-tindo opinies e pareceres, evidenciando claramente a tentativa de convencimento da opinio pblica. Foram muitas pginas de textos sensacionalistas, controversos e irnicos, que demonstraram a relao existente entre um pensamento regional e a forma como outros intelec-tuais pensavam a questo da nacionalidade brasileira. O Dirio da Tarde tambm se mostrou regionalista, defendendo os interesses do Paran por meio de contundentes crticas ao governo federal, tendo sempre como fio condutor a questo de limites territoriais entre este estado e Santa Catarina. Essas generalidades e especificidades foram pouco abordadas na bibliografia sobre o tema, apesar deste peridico ter sido citado por diversos autores.17

    Uma exceo foi a obra de Marilene Weinhardt, que no so-mente analisou o Dirio da Tarde como tambm teceu um comentrio crtico sobre o desinteresse da academia paranaense principalmente na rea de letras em relao temtica do Contestado. Esse foi um dos motivos que a levou a considerar esse evento uma ferida cultural.

    17 O Dirio da Tarde consta da bibliografia e em algumas citaes nas obras de: MON-

    TEIRO, Os errantes...; PEREIRA DE QUEIROZ, op. cit, e QUEIROZ, op. cit.

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    importante apontar que essa dor moral foi muito forte na constitui-o da historiografia paranaense, a ponto de ser silenciada como obje-to de estudo da histria.18

    Apesar de analisar o Dirio da Tarde de uma forma bastante detalhada, o objeto de estudo de Weinhardt se diferencia do nosso uma vez que sua reflexo se concentra na tentativa de compreender alguns aspectos dos romances histricos baseados na temtica da Guerra do Contestado. Para trilhar esse caminho, a autora lanou mo dos textos militares, jornalsticos e bibliogrficos produzidos no decorrer do s-culo XX. Essas obras serviram, no trabalho de Marilene Weinhardt, ao propsito de possibilitar a busca por elementos que evidenciem sua potencialidade para a criao dos textos de fico.19 Dessa forma, a leitura que teceu sobre os documentos histricos no ficcionais foi necessria em seu trabalho para o alcance de uma compreenso refe-rente aos textos de fico.

    Devido a essa ausncia de abordagens histricas mais espec-ficas, acreditamos na necessidade de dispensar uma ateno maior ao Dirio da Tarde, quem tanta nfase deu ao Movimento, tentando

    18 Weinhardt inova ao romper com o silncio sobre o tema na academia curitibana

    nas ltimas dcadas. No que se refere a dissertaes e teses, existe uma ausncia de trabalhos sobre o Movimento do Contestado na Universidade Federal do Pa-ran, na rea de Humanas. Ainda assim, seu trabalho no se caracteriza como uma concluso de mestrado ou doutorado, mas como uma tese para o ingresso na cadeira de Literatura Brasileira da UFPR.

    Anotamos aqui a nossa dvida para com a obra desta autora, que iluminou nossa reflexo relativa s fontes sobre o Movimento. A ideia de buscar uma especifici-dade no discurso, tanto em relao questo da construo de uma identidade regional como em relao ao Movimento enquanto nico, apontada por ela. Ver WEINHARDT, Marilene. Mesmos crimes, outros discursos? Algumas narrati-vas sobre o Contestado. Curitiba: Ed. da UFPR, 2000, pp.11-23.

    19 Ibidem, p.23.

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    perceb-lo a partir do imaginrio que o informava e das representaes que atribuiu aos diversos personagens desse conflito, a si prprio e aos outros, fossem estes catarinenses, sertanejos ou cabecilhas.20 Ao escreverem notcias e artigos, traduzindo suas impresses sobre os acontecimentos, posicionaram-se demonstrando parte do pensamento da sociedade paranaense do perodo. Portanto, a questo da identidade regional e nacional tambm so elementos possveis de serem apreen-didos por meio da anlise dos peridicos, principalmente se pensarmos que esse era o principal meio de comunicao na poca. Nele, parte da sociedade paranaense tambm retratou a forma como se imaginava. Enfim, a utilizao desses documentos servem ainda ao propsito de tentar preencher uma lacuna relativa ausncia de trabalhos sobre o discurso paranaense relativo ao Contestado, exaltando suas caracters-ticas e seu comprometimento com as ideologias e utopias de uma capi-tal em vias de modernizao.

    H que se considerar ainda, em relao a esse corpo docu-mental, que a construo de um sentimento regionalista sofreu um grande impulso no incio do perodo republicano, tanto devido des-centralizao administrativa iniciada com a nova poltica do princpio federativo, como pela efervescncia cultural que sofreu a capital do estado paranaense, propiciada pela ascenso da economia ervateira. Neste momento de formao de um sentimento republicano, no imagi-nrio da elite paranaense, prevaleceram elementos relacionados a um anticlericalismo exacerbado e um positivismo radical, onde estiveram presentes as noes de progresso e cincia, em contraposio ideia

    20 Cabecilhas foi um termo utilizado correntemente pelo Dirio da Tarde, referenci-

    ando, na maioria das vezes, os polticos e coronis catarinenses.

  • Outras narrativas da nacionalidade: o movimento do Contestado 29

    de monarquia e figura do Imperador.21

    Dentre os diversos textos publicados durante a dcada de 1910 sobre o Movimento, tambm selecionamos os relatrios e livros escritos pelos militares que estiveram presentes no local. Primeira-mente, por apresentarem uma forma de abordagem diferente daquela a que teremos acesso com os peridicos. Mas, principalmente, pelas preocupaes que demonstraram quanto formao da nao brasilei-ra e ao lugar ocupado pelo homem do interior nesse processo.

    Os militares que se dedicaram a relatar os acontecimentos fo-ram pessoas que percorreram a regio do conflito e buscaram conhecer o inimigo de guerra. Ao descreverem a forma de vida do homem do campo, tambm construram uma viso idealista de como deveria ser o brasileiro, de como teria que viver e se portar frente nao. Por outro lado, tambm refletiram acerca de como a nao deveria trat-los, j que representavam a verdadeira essncia nacional. A forma de vida e o local onde habitavam os carolas impenitentes ou semibrbaros expresses bastante utilizadas para a designao dos rebeldes foram objeto de anlise, classificao e definio por parte dos militares.

    Assim como os jornalistas, os militares tambm estavam informados pelo imaginrio de sua poca e, em muitos aspectos, seu pensamento confluiu com aquele dos pensadores sociais do perodo, re-produzindo, por meio das representaes que criaram, noes evolucio-nistas e, principalmente, positivistas.22 Ao elaborarem representaes 21 Essa questo amplamente discutida por PEREIRA, Luis Fernando Lopes. Para-

    nismo: cultura e imaginrio no Paran da I Repblica. Curitiba-PR, 1996, 215 f. Dissertao (Mestrado em Histria) Curso de Ps-Graduao em Histria, Uni-versidade Federal do Paran.

    22 Segundo Schwarcz, a doutrina positivista teve sua penetrao, sobretudo nos mei-os militares. Ver: SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das raas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil, 1870-1930. So Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.15.

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    referentes ao homem sertanejo, mostraram-se preocupados com os rumos tomados pela nao brasileira, bem como com os impasses que a impediam de se tornar civilizada.

    O primeiro texto militar fundamental na construo de uma viso sobre o Movimento foi publicado em 1916 e consiste em um relatrio de guerra, apresentado por Fernando Setembrino de Carva-lho,23 comandante das tropas que derrotaram os ltimos redutos rebel-des.24 Tambm utilizaremos a obra de Herculano Teixeira DAssumpo,25 bastante rica por enfatizar as diferenas culturais existentes entre os moradores do interior e das capitais e, principal-mente, por situar-se na confluncia do discurso militar com as leitu-ras interpretativas do Brasil.26 Nesse mesmo vis de abordagem, inclumos o livro de Demerval Peixoto27 o qual durante o conflito, em 1915, anotou diversos detalhes dos acontecimentos, enfatizando os aspectos culturais e geogrficos da regio do Contestado. Esses trs autores enalteceram a nao brasileira e delegaram aos sertanejos o lugar da ignorncia, do fanatismo e da barbrie. Mas, assim como boa parte dos pensadores sociais do perodo, no culparam os habitantes do interior pelas condies nas quais viviam, mas sim queles que

    23 CARVALHO, Fernando Setembrino de. Relatrio apresentado ao General de

    Diviso Jos Caetano de Faria, Ministro da Guerra. Rio de Janeiro. Imprensa Militar, 1916.

    24 Reduto constitui as vilas que os sertanejos construram para aguardar o retorno de Jos Maria. Para eles, era o local sagrado e sob ele fundaram as Cidades Santas. Durante o Movimento, existiram diversos redutos de tamanhos variados e que ocupavam lugares estratgicos na mata, no podendo ser caracterizadas, no entan-to, como fortalezas. "Taquaruss um logar aberto, pois o sertanejo emprega a pa-lavra reducto para designar uma aldeia habitada por homens em armas e no uma obra fechada, de fortificao. D'ASSUMPO, op. cit., pp.259-260

    25 D'ASSUMPO, Herculano Teixeira. A campanha do contestado: as operaes da columna do sul. Bello Horizonte: Imprensa Official, 1917.

    26 WEINHARDT, op. cit., p.72. 27 PEIXOTO, Demerval. Campanha do Contestado. Curitiba: Fundao Cultural, 1995.

  • Outras narrativas da nacionalidade: o movimento do Contestado 31

    decidiam sobre os rumos tomados pela poltica no pas. Aproximando-se da crtica euclidiana, apontaram os governantes da Repblica como responsveis pela guerra nos sertes, devido ao abandono e ao descaso com o qual a populao interiorana era obrigada a conviver.

    Portanto, a partir dessas fontes mostraremos nesse trabalho o que estes relatos possuem de singular e de comum em relao ao ima-ginrio do perodo. Perceber a forma como o Contestado e os seus participantes foram representados, sobre o governo republicano e so-bre os prprios militares, bem como o posicionamento ideolgico de-fendido por esses indivduos, constituem itens fundamentais para compreendermos como o conflito foi pensado no interior de uma re-flexo mais ampla sobre os futuros da nao e as (im)possibilidades para se chegar l. Muito mais do que respostas, pretendemos buscar questionamentos referentes s representaes sobre o Contestado e maneira de se pensar o Brasil por grupos que estavam vinculados a uma elite dominante, seja ela ligada aos militares, aos intelectuais ou aos jornalistas. Mais importante do que saber qual foi a ideia de ho-mem e de lugar no imaginrio sobre o Contestado, cabe-nos indagar os motivos que levaram determinadas noes a serem apropriadas para a explicao desse conflito.

    Para analisarmos esses documentos, que constituem representaes sobre o Contestado, mas tambm sobre o imaginrio social do perodo, foram de fundamental importncia os apontamentos presentes na bi-bliografia produzida sobre o tema nas dcadas posteriores.

    Muitos estudiosos do Contestado indicaram a inadequao de algumas teorias explicativas sobre os participantes do Movimento e sobre o prprio conflito presentes no incio do sculo XX, sem se de-terem mais atentamente sobre essa questo. Dessa forma, esses textos

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    possibilitaram o surgimento de nossa problemtica ao tecerem crticas quanto s representaes que pesaram sobre os sertanejos do Contes-tado, bem como ao local onde moravam.

    No primeiro captulo, buscamos verificar a forma como os pesquisa-dores contemporneos observaram o Contestado. Para isso, selecio-namos obras vinculadas Academia, devido ao fato desses trabalhos se apresentarem de forma mais analtica e por estarem apoiados em orientaes metodolgicas, evidenciando a necessidade dos cuidados referentes ao estudo de um grupo social, localizado em um tempo e em um espao distinto.

    Enfatizamos nosso respeito por todos esses estudiosos que se debrua-ram sobre o Contestado, lembrando que o objetivo deste trabalho no o de criticar vises que j no so correntes atualmente ou verses que, terica ou metodologicamente, diferenciam-se de nossa forma de trabalho, mas sim desenvolver reflexes na premissa de que se um autor pode oferecer algo o trabalho de reflexo que ele suscita no leitor que absorve o seu texto.

    A opo pelo termo Contestado, utilizado no decorrer deste trabalho para definir o acontecimento do qual tratamos, tambm ser explicado no primeiro captulo. Tentaremos ainda, encaminhar o leitor a perceber que o Movimento do Contestado constitui uma expresso polissmica designando inmeras representaes.28 Definir como cada 28 A importncia de apresentar uma explicao quanto aos caminhos adotados por

    aqueles que se debruaram sobre o tema consiste ainda em uma tentativa de apre-sentar aos leitores leigos no assunto anlises que conferiram ao Contestado status de um movimento social. Sua amplitude e especificidade confundem-se, muitas vezes, com a questo de limites, obscurecendo os lugares ocupados pelos atores sociais nesse conflito. Enfim, acredito que a Academia paranaense (da capital, principalmente) desconhece o Contestado e o primeiro capitulo , sobretudo, uma tentativa de apontar alguns caminhos percorridos, por pensadores de diversas -reas, na tentativa de conhec-lo.

  • Outras narrativas da nacionalidade: o movimento do Contestado 33

    autor construiu uma reflexo em torno dos acontecimentos, geralmen-te utilizando o mesmo corpo de fontes alm de ampliar nossa com-preenso a respeito do tema, possibilita percebermos que um movi-mento social definido como objeto de estudo tambm passvel de inmeras interpretaes. Lembramos que para ns, estudantes de His-tria, foram essas representaes que deram corpo e forma ao que co-nhecemos hoje como Movimento do Contestado.29

    Estabelecemos um recorte para analisar algumas representa-es referentes ao Contestado em sua relao com o pensamento soci-al do incio do sculo XX. Assim, no segundo captulo, nos dedicare-mos ao caso especfico do discurso paranaense, por meio do peridico Dirio da Tarde. Desde o comeo do conflito, a imprensa da capital paranaense deu incio a numerosas publicaes sobre a questo, co-mentando, noticiando e opinando. Podemos observar nesse jornal nar-rativas referentes posio tomada pelos governos do Paran, de San-ta Catarina e da capital brasileira, demonstrando tentativas de construir e manipular a opinio pblica no que concerne s representaes em torno da questo de limites, dos sertanejos e dos militares.

    Indicaremos, nesse momento, a relao desse discurso com o imaginrio social do perodo, tentando mostrar at que ponto o Dirio da Tarde compartilhava das noes e olhares que estiveram presentes entre os grupos que pensaram o Brasil e os brasileiros.

    Ao refletir sobre os rumos do Movimento, este peridico tam-bm construiu representaes sobre os moradores do Brasil, almejando alm de um ideal de nao, um ideal de estado. Portanto, refletiremos em

    29 Isso vale principalmente para os trabalhos de PEREIRA DE QUEIROZ, op. cit.;

    QUEIROZ, op. cit., e MONTEIRO, Os errantes...

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    torno das questes relativas construo de uma identidade nacional e regional, presentes nos discursos do Dirio da Tarde, principalmente, ao abordarmos a participao e morte do militar Joo Gualberto.

    Os autores que pensaram o Contestado partiram desse acon-tecimento para compreender o pas. Ao pretender dar uma definio da realidade, as interpretaes sobre o conflito estiveram permeadas por noes como ptria, civilizao e progresso em contraposio a fanatismo, barbrie e analfabetismo, evidenciando o carter evolucio-nista e positivista do imaginrio do perodo e das representaes que dele fizeram parte. Constitu a tese central do terceiro captulo tentar compreender de que forma se consolidou essa busca por uma identi-dade nacional, chamando a ateno para as imagens construdas pelos militares, pautadas, principalmente, pela definio do homem e do espao. Essas noes foram acionadas com o intuito de explicar o con-flito, classificar o sertanejo, bem como o lugar serto.

    Partindo da anlise dos relatrios militares e do Dirio da Tarde, s noes presentes no imaginrio sobre o Contestado constituem um item importante neste momento, especialmente quando analisadas luz do Movimento de Canudos. Nesta parte do trabalho, evidenciamos o carter fundador da obra euclidiana e a forma como ela foi apropriada por aqueles que se voltaram para o Movimento do Contestado.

  • Outras narrativas da nacionalidade: o movimento do Contestado 35

    2 CONTESTADO: UM TERMO POLISSMICO

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    Consideramos que o termo contestado tornou-se polissmico desde o momento em que o conflito recebeu esse nome, em 1912. Nesse perodo, contestado se referia a uma regio disputada judicial-mente pelo Paran e por Santa Catarina. O termo Contestado foi asso-ciado ao conflito armado que recebeu a denominao de Movimento ou Guerra do Contestado, devido ao fato dessa regio ter constitudo parte do palco onde se deu esse evento envolvendo sertanejos e foras militares.

    No entanto, a polissemia em relao palavra contestado no se encerra na associao questo de limites. Refere-se a um termo que sugere imagens referentes a um acontecimento real. Ao utilizar-mos essa palavra evocamos nossas lembranas, nossa memria, e logo associamos a palavra ideia de um movimento social, talvez ligado a questes territoriais, talvez o aproximando ao Movimento de Canudos para facilitar a visualizao. Atualmente, entendemos o termo como uma construo discursiva que pelo seu uso costumeiro foi sendo na-turalizada, caracterizando uma representao das diversas experin-cias que constituem o evento Contestado.30

    Optamos por apresentar nesse item como diversos autores abordaram os elementos constitutivos do pensamento social do in-cio do sculo XX, chamando a ateno para o uso, generalizador e

    30 Para Susan Aparecida de Oliveira, essa representao assimiladora e consensual.

    Devido enorme quantidade de interpretaes sobre o conflito, cada qual seguindo uma direo singular e mesmo ao desconhecimento por parte do pblico acadmi-co curitibano sobre o Movimento, discordamos dessa afirmao no que se refere capital paranaense. OLIVEIRA, Susan Aparecida de. Contestado: vises e proje-es da modernidade. Florianpolis-SC, 2001, 215 f. Dissertao (Mestrado em Teoria Literria) Curso de Ps-Graduao em Literatura, Universidade Federal de Santa Catarina, p.3.

  • Outras narrativas da nacionalidade: o movimento do Contestado 37

    classificatrio, de determinadas noes. A confluncia e/ou divergn-cia das consideraes feitas por esses indivduos, direta ou indireta-mente, suscitaram o surgimento da presente pesquisa.

    Ao realizarmos esse percurso tambm tentaremos apontar a maneira como o Contestado foi erigido como movimento social, evi-denciando como diferentes estudiosos construram uma representao referente ao conflito, bem como sua relao com a questo de limites. Alguns questionamentos permearam o levantamento dessas represen-taes, tais como: quais autores buscaram romper com as classifica-es elaboradas durante as primeiras dcadas do sculo XX? A partir de quais parmetros sustentaram seus argumentos? De que forma compreenderam os conflitos?

    Diversos caminhos foram percorridos na definio do Movi-mento do Contestado. Nilson Thom identificou muito bem os impasses relativos a esta questo ao sintetizar a diversidade de representaes re-ferentes ao conflito: Para religiosos, ocorreu uma Guerra de Fanti-cos; para socilogos, houve um Movimento Messinico: para polti-cos, aconteceu uma Questo de Limites; para militares, tratou-se de uma Campanha Militar; para marxistas, foi uma Luta pela Terra.31 O autor enfatiza que a histria aceita estas atribuies, acrescentando, entretanto, que, isoladas, constituem definies fragmentadas. Por sua vez, Thom acredita que o Movimento do Contestado foi um destacado evento histrico, resultante da revolta da populao regional ordem vigente, ou seja, uma insurreio da populao cabocla.32 31 THOM, Nilson Os iluminados: personagens e manifestaes msticas e

    messinicas no Contestado. Florianpolis: Insular, 1999, p.13. 32 Idem. Nilson Thom pode ser considerado um importante estudioso do assunto.

    Alm de possuir um grande nmero de publicaes referentes ao tema morador da regio onde ocorreu o conflito e travou conhecimento com muitos habitantes do

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    2.1. A Guerra do Contestado ou o territrio contestado?

    A prpria definio contestado tornou-se objeto de uma plu-ralidade de significaes. Isso ocorreu, principalmente, porque os in-divduos que relataram ou estudaram o Movimento ora associaram o conflito questo de limites, ora enfatizaram que um evento no teve relao com o outro. Para Duglas Texeira Monteiro, por exemplo, os problemas gerados com a questo de limites deram origem a diversos conflitos armados, mas nenhum desses conflitos, entretanto, tomou as propores do que costuma ser chamado de Guerra do Contestado e que, com a questo de limites, manteve uma conexo apenas inciden-tal.33 Essa hiptese tem sido utilizada por diversos pesquisadores, sem que pese uma observao mais apurada da forma como cada gru-po que morava na regio esteve envolvido no conflito.

    Desde 1853, a disputa territorial entre o Paran e Santa Catarina vinha se arrastando e, j no incio do sculo XX aps a Proclamao da Repblica e o princpio de autonomia dos estados da Federao constituiu motivo de discusses acirradas entre as instn-cias de poder desses estados brasileiros, contando, em diversos momen-tos, com as opinies de representantes polticos de outras regies do pas. Diversos foram os pareceres emitidos pelo poder federal, ora dando ganho de causa a um, ora a outro. O litgio somente foi resolvido em

    local, remanescentes do Movimento. No livro citado, o autor retrata as figuras ms-ticas que percorreram o territrio antes, durante e depois do Movimento (de 1840 a 1980).

    33 MONTEIRO, Duglas Teixeira. Um confronto entre Juazeiro, Canudos e Contesta-do. In: FAUSTO, Boris (dir.). Histria Geral da Civilizao Brasileira: Tomo III, o Brasil Republicano, 2 vol.: Sociedade e Instituies (1889-1930), 5 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p.71.

  • Outras narrativas da nacionalidade: o movimento do Contestado 39

    1916, devido presso exercida pelo governo federal e pela opinio p-blica contra os representantes estaduais em funo do conflito.34

    Croquis. Croquis da Zona Contestada, 1912. Autor: Romrio Martins. Acervo Museu Paranaense.

    Tornou-se comum a atribuio do Movimento questo de limites entre os dois estados. No entanto, a importncia da disputa entre Paran e Santa Catarina interessava, principalmente, queles que moravam prximos divisa territorial, s margens do Rio Negro e Iguau, como evidenciou o historiador Paulo Pinheiro Machado, em

    34 Na diviso territorial de 1916, os dois estados cederam parte das terras que esta-

    vam reclamando como suas, sendo que o Paran ficou com 20.000km do territrio contestado enquanto Santa Catarina ficou com 28.000km. Assim, o Paran cedeu a parte norte, compreendendo os municpios de Itaipolis, Papanduva e Canoinhas, e Santa Catarina cedeu o sudoeste, compreendendo Palmas e Clevelndia.

    Antes da ltima definio de limites, as lideranas polticas que moravam no terri-trio Contestado se articularam no sentido de criar um estado prprio, independen-te. O Estado das Misses foi um projeto que, apesar de no ter entrado em vigor, contou com um governo provisrio constitudo em Unio da Vitria. Cf. WA-CHOWICZ, Ruy Christovam. Histria do Paran. 7 ed. Curitiba: Editora e Gr-fica Vicentina, 1995, pp.190-192.

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    sua tese.35 O historiador evidenciou o fato de terem existido grupos de sertanejos e proprietrios envolvidos no conflito devido a interesses relacionados questo litigiosa, questionando assim, a vertente defen-dida por Monteiro. Tal associao tambm est relacionada ao fato de se ter elegido o territrio paranaense palco do estopim do conflito, devido ao fato do monge Jos Maria e de seus seguidores terem se instalado na regio de Palmas em 1912, possibilitando o confronto com as foras militares paranaenses.36

    Mediante essas questes, ao nos referirmos ao Movimento do Contestado no podemos entend-lo como sinnimo da questo de limites, uma vez que a maioria da populao conflagrada morava em um territrio distanciado dessas disputas e possua outras prioridades como as aspiraes religiosas, por exemplo embora estas tambm estivessem relacionadas a questes de posse territorial.37 Por esses motivos, assumimos a definio do Movimento do Contestado com-preendendo o conflito que ocorreu entre sertanejos do interior (tanto catarinense quanto paranaense) e as foras do governo (federal e lo-cal). A questo de limites, a nosso ver, constitui um elemento a mais para a compreenso desse acontecimento.

    35 MACHADO, Paulo Pinheiro. Um estudo sobre as origens sociais e a formao

    poltica das lideranas sertanejas do Contestado, 1912-1916. Campinas-SP, 2001, 497 f. Tese (Doutorado em Histria) Departamento de Histria do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade Estadual de Campinas, p.127. A tese deste autor foi publicada pela editora da Unicamp.

    36 Essa discusso ser retomada no segundo captulo. 37 Cf. MACHADO, op. cit., p.127.

  • Outras narrativas da nacionalidade: o movimento do Contestado 41

    2.2. A polissemia do termo continua: as direes seguidas

    neste sentido que utilizamos a noo de polissemia para o Movimento do Contestado. As representaes sobre o conflito fazem parte da sua histria. O Contestado somente existe como fato histrico-social porque foi eleito como tal, porque socilogos, religiosos, polticos, jornalistas e, mais recentemente, historiadores pensaram sobre ele. E cada qual construiu uma imagem sobre esse evento, vinculada a vises de mundo e questes tericas especficas, prprias de cada tempo e lugar.

    Descartando a ideia que nos remete questo litigiosa propri-amente dita,38 optamos por abordar a temtica Contestado a partir das construes discursivas que lhe atriburam a caracterstica de conflito, movimento ou guerra, evidenciando a elaborao de representaes legitimadoras de uma ordem social, uma vez que os idealizadores des-sas narrativas so considerados, ao menos por alguns segmentos da sociedade, portadores de uma determinada verdade, principalmente por se pronunciarem de um lugar autorizado.

    Provavelmente impulsionada pela criao das Faculdades de Filosofia,39 a partir da dcada de 50 a Academia voltou-se para o estu-do do Movimento do Contestado visando explicar e entender os moti-vos que levaram tantos indivduos a questionarem a ordem vigente. Foi no confronto desses olhares que surgiu a necessidade de uma

    38 Como j afirmamos, a questo de limites territoriais entre o Paran e Santa Catari-

    na constitui um importante elemento para a compreenso do conflito e ser abor-dada na medida em que auxiliar na anlise das narrativas selecionadas para este trabalho.

    39 Cf. WEINHARDT, op. cit., p.21.

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    anlise acerca das noes constitutivas do pensamento social sobre o conflito, durante a dcada de 1910, ou seja, as obras acadmicas nos auxiliaram na delimitao do tema, pois, direta ou indiretamente, de-monstraram algumas permanncias, suscitando o interesse em anali-sarmos os elementos presentes no imaginrio sobre o Movimento do Contestado durante o perodo do seu acontecimento.

    Para realizar esse percurso, procedemos com uma diviso de ordem cronolgica quanto bibliografia sobre o tema, visando apontar aquelas que indicaram, de alguma forma, elementos referentes ao pen-samento social do incio do sculo XX no que concerne a classificaes sobre o Movimento do Contestado e sobre os seus participantes. Muitos autores apontaram os pressupostos cientficos, as noes vigentes, a viso de mundo que orientou as narrativas sobre o Contestado, na maioria das vezes tecendo crticas. Partimos para a busca dessas refle-xes, fundamentais para a constituio deste trabalho, na medida em que deram origem a questionamentos relativos s representaes exis-tentes naquele momento. Essas representaes encontraram um lugar para o meio serto e para o homem sertanejo, embora nenhum desses trabalhos tenha se detido de forma mais minuciosa sobre esta questo.

    Vinculados a um pensamento predominante nas reflexes te-ricas do seu tempo, mas tambm associados a uma viso de mundo particular, cada um desses autores seguiu um caminho, embora seus trabalhos revelem pontos de confluncia em vrios aspectos, uma vez que constituem reflexes dinmicas que se apropriaram de uma ampli-tude de temas e explicaes, muitas vezes se contradizendo e se ques-tionando como tal. Nesta perspectiva, selecionamos alguns percursos que podem ser importantes no sentido de trilharmos os caminhos percorridos pelo pensamento social em torno do Movimento do

  • Outras narrativas da nacionalidade: o movimento do Contestado 43

    Contestado. Assim como os pensadores do incio do sculo, aqueles que escreveram posteriormente tambm parecem estar preocupados com a brasilidade e com os rumos do pas, fator que parece ser ineren-te queles que se dedicam, no Brasil, a pensar a sociedade.

    2.2.1. Especificidades da polissemia: os clssicos

    Os trabalhos acadmicos que comearam a ser escritos a par-tir da dcada de 1950 inauguraram uma nova forma de abordagem referente ao Movimento e aos personagens que nele estiveram envol-vidos. Os sertanejos, a partir desses estudos, passaram a ser conside-rados de um ponto de vista mais antropolgico. A alteridade ganhou novos contornos, no situando mais o outro na esfera do inculto ou do incivilizado, at mesmo porque a sociedade ocidental demonstrou, por meio de duas grandes guerras, que o ideal de progresso e modernidade tambm trouxe em seu encalo morte e misria. A noo de barbrie, to comum nas explicaes sobre os iletrados do incio do sculo, per-deu seu sentido anterior, podendo ser utilizada para designar outros grupos, j no to incultos.

    Datam desse perodo trs obras acadmicas que se tornaram referncia para os estudos sobre o Movimento do Contestado: O mes-sianismo no Brasil e no mundo, de Maria Isaura Pereira de Queiroz; Messianismo e conflito social, de Maurcio Vinhas de Queiroz e Os errantes do novo sculo, de Duglas Teixeira Monteiro.40 O primeiro

    40 PEREIRA DE QUEIROZ, op. cit., QUEIROZ, op. cit., MONTEIRO, Os erran-

    tes... Esses autores, por meio de suas reflexes sobre o Movimento, tambm elabo-raram um parecer e tentaram caracterizar a realidade brasileira, portanto, tambm

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    desses trabalhos foi o da sociloga Maria Isaura Pereira de Queiroz.41 A obra desta autora inaugura uma mudana em relao aos estudos sobre os movimentos sociais religiosos que at ento localizavam os participantes destes conflitos, com certa frequncia, nos limites da patologia social.

    Sua anlise, influenciada pela ideias socioculturais do orien-tador Roger Bastide, pauta-se na importncia de encontrar definies cientficas necessrias para enquadrar, em caracterizaes comuns, diversos movimentos sociais localizados em tempos e locais distintos. Partindo de uma reflexo weberiana, na qual o messias classificado como lder carismtico, os movimentos messinicos para Maria Isaura Pereira de Queiroz teriam sempre a mesma forma, precedida pela figu-ra do messias. No caso do Contestado, a denominao de messias foi atribuda figura dos monges.

    Apesar desta noo de messianismo ter sido adotada por v-rios estudiosos na anlise do Movimento do Contestado, a obra de Pereira de Queiroz foi revisada por diversos autores, ora sendo questi-onada quanto forma como utilizou as fontes,42 ora em relao

    podem ser considerados narradores da nacionalidade, embora suas obras datem de um perodo posterior. Sobre outros momentos da narrativa histrica ver: BUR-MESTER, Ana Maria de Oliveira. A (des)construo do discurso histrico: a historiografia brasileira dos anos 70. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1998. A autora se concentra em escritos produzidos durante a dcada de 70.

    41 Alm da publicao do livro Messianismo no Brasil e no mundo, Pereira de Queiroz defendeu em 1955, na cole Pratique des Hautes Etudes, na Frana, sua tese intitula-da La Guerre Sainte au Brsil: Le mouvement messianique du Contestado.

    42 Conforme Mrcia Janete Espig, a sociloga utilizou uma gama ampla de fontes de natureza diversa, porm, ao optar por uma ou outra viso, no explcita os motivos que a levaram a tal escolha. Outra questo se refere utilizao generalizada de outros contextos na explicao de aspectos referentes ao Movimento do Contesta-do. Ver: ESPIG, Mrcia Janete. A presena da gesta carolngia no movimento do Contestado. Porto Alegre-RS, 1998, 179 f. Dissertao (Mestrado em Histria) Departamento de Histria, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, p.31.

  • Outras narrativas da nacionalidade: o movimento do Contestado 45

    maneira como desenvolveu o conceito de messianismo. Segundo Pau-lo Pinheiro Machado, por exemplo, seria pouco til a utilizao dessa categoria da forma como emprega a sociloga. Para ela, a sociedade sertaneja do Contestado se encontrava em processo de anomia e o conflito possua um carter conservador, evidenciando uma crise estrutural. Portanto, na opinio da autora, o Movimento do Contestado no foi nem subversivo, nem revolucionrio, mas sim reformista. Ao indicar como fator provocador do conflito o estado de anomia so-cial, de perda de identidade como consequncia de transformaes sociais/culturais e econmicas, Pereira de Queiroz estaria nomeando de outra forma a patologia da populao sertaneja.43

    A nosso ver, alm destas questes apontadas por trabalhos re-centes, o maior problema quanto obra de Pereira de Queiroz reside no fato da autora tentar encontrar um denominador comum para diver-sos movimentos sociais localizados em diferentes tempos e espaos.

    Em relao ao nosso objeto de pesquisa, Pereira de Queiroz indica um importante caminho ao criticar determinados aspectos pre-sentes na definio do homem sertanejo, existentes entre os pensado-res do final do sculo XIX e incio do XX, principalmente no que se refere dicotomia litoral-serto. Conforme um pensamento consolida-do a respeito, essa diferenciao simboliza a oposio progresso-atraso, afirmao contestada pela sociloga que enfatiza o fato de nem sempre podermos utilizar a noo de atraso para designar o surgimen-to dos movimentos messinicos rsticos.

    Considera ainda incorretas as afirmaes de Euclides da Cu-nha e de Nina Rodrigues, quando estes indicaram que o estilo de vida 43 Cf. MACHADO, op. cit., pp.5-7.

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    do homem sertanejo se encontrava ameaado pela invaso de uma cultura estranha, ocasionando a insurreio rebelde.44 Conforme as teses em vigor no incio do sculo XX, a melhor forma de aniquilar esse tipo de reao seria levando o progresso aos moradores do interi-or, por meio da criao de escolas e da abertura de estradas, possibili-tando a alfabetizao e maior contato com os centros civilizados do pas. Na perspectiva desses estudos, o messias seria o inimigo do pro-gresso, chegando ao ponto de queimar objetos de luxo, definio essa decorrente da imagem de Antnio Conselheiro. Como principal argu-mento na defesa de seu ponto de vista, Pereira de Queiroz enfatiza que, ao contrrio da afirmao desses cientistas sociais, muitos messi-as buscavam elevar o nvel de vida dos seus adeptos, desenvolvendo o comrcio, abrindo estradas, construindo casas, como no caso de Padre Ccero, por exemplo, que no s possua uma educao letrada como tambm buscou transformar sua regio em um grande centro econ-mico. Em relao ao grupo de Antnio Conselheiro, a sociloga afir-ma que queimavam objetos de luxo e no novidades, o que no contra-ria o progresso, mas sim, a riqueza.45

    Contraditoriamente, Pereira de Queiroz demonstra uma certa permanncia do pensamento que atribuiu lugares distintos aos brasilei-ros. Isso ocorre, por exemplo, quando divide a sociedade brasileira em trs sees scio-culturalmente distintas: a primitiva, a rstica e a urbanizada.46 A rstica seria aquela onde ocorreu o Movimento do Contestado. A autora contrape a sociedade do serto litornea, co-mentando que nesta ltima existia uma estabilidade estrutural e uma

    44 Ibidem, p.343. 45 Ibidem, p. 344-346. 46 PEREIRA DE QUEIROZ, op. cit., p.331.

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    organizao social tal que, diferentemente das sociedades rurais, permitiu o desenvolvimento do Brasil como nao em relativa ordem e equilbrio, sem grandes abalos interiores.47 A historiografia das ltimas dcadas demonstra que essa afirmao pode ser contestada, uma vez que diversos movimentos populares e polticos ocorreram em solo litorneo, demonstrando que a populao desses locais nem sem-pre se sentiu parte integrante de uma mesma nao.

    Apesar dessa perspectiva que define diferentes sees para a sociedade brasileira, Pereira de Queiroz sugere a hiptese de que a seo rstica estabeleceu contato tanto com a sociedade que vivia nas zonas urbanas como com os indgenas, e enfatiza a carncia de estudos que se detenham na anlise das relaes entre a sociedade rstica e a urbana, para verificar a existncia ou no de isolamento.

    Portanto, o estudo realizado por Maria Isaura Pereira de Queiroz foi o primeiro de cunho acadmico sobre o conflito, no qual os aspectos scio-culturais dos moradores do interior foram considerados no como elementos depreciatrios, mas como uma forma de vida especfica que deveria ser compreendida a partir de sua lgica interna.

    A segunda obra que analisaremos, Messianismo e conflito so-cial, do socilogo Maurcio Vinhas de Queiroz, apesar de no apontar questes referentes ao pensamento social existente no incio do sculo XX ou s terminologias utilizadas na definio dos sertanejos que estiveram envolvidos no Movimento do Contestado, possui uma diviso de captulos que nos remete estrutura da obra euclidiana. Iniciando pelo ttulo A terra e o homem, assim como Euclides da Cunha em Os Sertes, o autor tece, de forma bastante detalhada, 47 Ibidem, p.322.

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    consideraes de cunho geogrfico referentes paisagem da regio contestada para, em seguida, abordar aspectos sobre a ocupao terri-torial e adentrar, de forma bastante minuciosa, no conflito propriamen-te dito. A partir de elementos fsicos do meio, procura mostrar algu-mas especificidades do Contestado em relao ao Movimento de Ca-nudos. Talvez esse recurso tenha sido utilizado pelo socilogo com o objetivo de diferenciar os dois eventos. No entanto, ao assumir o mesmo ttulo que o autor de Os Sertes na definio de seus captulos, Maurcio Vinhas de Queiroz o consagra.48

    Em sua anlise, Vinhas de Queiroz percorreu um caminho que posteriormente foi assumido por diversos estudiosos do Contesta-do: a questo agrria. Embora a referncia terra no seja determinan-te em seu texto, j na introduo afirma que ...pela primeira vez em nossa Histria as massas camponesas manifestaram a clara conscin-cia da necessidade de garantir o seu direito de terras.49 Devido ao anseio pela terra, por bem-estar e segurana, a populao que vivia no territrio contestado teria sofrido uma crise estrutural, acumulada ao longo dos anos. Apesar de enfocar a ideia de conscincia em relao terra, seu trabalho cai em contradio quando afirma, pginas depois, que os sertanejos possuam uma falsa conscincia dos problemas exis-tentes no interior de sua sociedade, problemas esses responsveis pelo acmulo de tenses.50 Uma outra questo passvel de ser apontada quando nos referimos falta de conscincia daqueles que participaram do conflito: 20 mil pessoas teriam aderido uma guerra sangrenta e

    48 O impacto da obra O Serto, de Euclides da Cunha, no pensamento social brasilei-

    ro do incio do sculo XX, ser abordado no terceiro captulo deste trabalho. 49 QUEIROZ, op. cit., pp.13-14. 50 Ibid, pp.13-14 e 249.

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    longa, impulsionadas por uma falsa conscincia dos problemas?51 Uma falsa conscincia seria capaz de levar tantos indivduos a coloca-rem em risco suas vidas e a de seus filhos, abandonarem suas casas, abrirem mo da convivncia com parentes e amigos, declararem como inimigos antigos vizinhos que no compartilhavam de suas crenas?

    Em relao permanncia de algumas representaes sobre os sertanejos, datadas do incio do sculo passado, percebemos que, embora Vinhas de Queiroz embora assuma um discurso bastante relativizante e enfatize as singularidades culturais dos rebeldes, ainda no rompe com um pensamento bastante caracterstico entre os inte-lectuais na virada do XIX para o XX, o qual situava em lugares opos-tos letrados e iletrados. Essa questo perceptvel quando afirma que o messianismo uma revolta alienada que confia na transfigurao supranaturalstica do mundo, negando completamente a realidade compreendida como satisfao dos mnimos vitais.

    O socilogo acredita que os sertanejos do Contestado acor-daram do sonho quando perceberam as vicissitudes da guerra, pas-sando por uma desalienao que os teria levado a formular reivindi-caes de teor secular. No final do Movimento, entretanto, com a dis-soluo da solidariedade comunal e o acirramento das tenses inter-nas, o Movimento teria sofrido uma espcie de regresso no sentido do autismo, se inserindo, portando, no terreno da patologia social.52 Ao vincular as aes dos rebeldes doena, no estaria o autor demonstrando uma permanncia do pensamento do incio do XX representado, sobretudo, pela figura de Nina Rodrigues? A atribuio

    51 Essa questo apontada por GALLO, Ivone Ceclia DAvila. O Contestado: o

    sonho do milnio igualitrio. So Paulo: Ed. da Unicamp, 1999, p.13. 52 Ver QUEIROZ, op. cit., pp.252-255.

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    de doena (mental) s atitudes assumidas pelos sertanejos nos movi-mentos sociais representam, a nosso ver, uma permanncia, e demons-tram uma interiorizao de um conjunto de referncias culturais que evi-denciaram a necessidade de classificar, localizar e diferenciar o outro.53

    Para Maurcio Vinhas de Queiroz, a idealizao monrquica pode ser considerada um sonho, um momento de alienao interrom-pido pelas agruras da guerra e pela percepo da morte, responsvel por trazer os sertanejos de volta realidade. Essa separao entre real e irreal, conforme Bronislaw Baczko, corresponde a uma tradio inte-lectual racionalista que se consolidou em meados do sculo XIX, per-passando todo o sculo XX. O livro de Vinhas de Queiroz, publicado em 1966, conserva caractersticas oriundas desse momento em que a cincia e a razo, noes apropriadas em seu extremo, tornaram poss-vel o desprezo e o esquadrinhamento dos costumes e do modo de vida alheios ou estranhos, fator que conjugava-se perfeitamente com o sonho colectivo de uma sociedade e de uma histria finalmente trans-parentes para os homens que as constituem.54 Nesse sentido, a opera-o cientfica serviria como fio condutor para desvendar a histria, desmistificar o que estava oculto, buscar a lgica para aquilo que no tinha explicao a partir de uma concepo racionalista do homem e da sociedade.

    Essas reflexes visam demonstrar que mesmo entre os estu-dos acadmicos sobre o Movimento do Contestado, realizados a partir

    53 Segundo Jacqueline Hermann a atribuio de loucura e doena aos movimentos

    sertanejos, ganhou legitimidade a partir da publicao da obra Loucura Epidmica, do mdico baiano Nina Rodrigues, em 1897. O livro tinha como objetivo explicar as origens da loucura coletiva que teria conduzido os sertanejos de Conselheiro formao de Canudos. HERMANN, op. cit., pp.128-137.

    54 BACZKO, op. cit., p.297.

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    da dcada de 50, ainda permaneceram tentativas de incluso do outro em um espao caracterizado pela anormalidade. Os sertanejos conti-nuaram sendo considerados diferentes no somente pela sua singulari-dade cultural, mas tambm pelas caractersticas que os tornavam autistas, portadores de uma patologia social.

    Diversos pesquisadores, em trabalhos posteriores, questiona-ram esse posicionamento racionalista frente s crenas e ao imaginrio dos homens comuns, priorizando aspectos fundamentais na concepo de mundo dos habitantes do interior do Brasil. Em uma vertente que procurou respeitar o olhar daqueles que romperam com uma determi-nada histria, a espera do messias e de So Sebastio com seus cava-leiros, a idealizao monrquica e a crena na vitria, fizeram parte da realidade dos sertanejos tanto quanto a guerra, as mortes e as doenas.

    O terceiro trabalho que abordaremos neste item, do socilogo Duglas Teixeira Monteiro, seguiu esse percurso e ainda apontado como um dos mais analticos sobre o Movimento. Em Errantes do novo sculo, o autor enfatiza que para alcanarmos um entendimento em rela-o ao conflito necessrio, antes de mais nada, compreendermos como os sertanejos pensaram e construram sua nova realidade.55

    Sua reflexo orientada pela sociologia da religio, por meio da qual intenciona analisar o comportamento social do grupo sertanejo durante o Movimento do Contestado partindo de uma viso interna, uma vez que um acesso privilegiado para a interpretao dado pelo universo de significados elaborado pelos que a enfrentam.56 55 Ibidem, pp.13-15. 56 MONTEIRO iniciou sua pesquisa sobre o Movimento do Contestado dez anos antes

    da publicao do seu livro. Para uma pequena biografia do autor ver: GALVO, Walnice Nogueira. Duglas Teixeira Monteiro, um intelectual a contracorrente (1926-78). Sexta-feira: utopia. So Paulo: Editora 34, n 6, 2001, pp.189-198.

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    As expresses desencantamento do mundo e reencanta-mento tornaram-se conhecidas daqueles que se voltaram para a tem-tica do Contestado devido obra deste autor. Conforme Monteiro, desencantamento se refere ruptura da estrutura vigente entre os mo-radores da regio e estaria vinculado prpria crise do coronelismo e penetrao das empresas capitalistas ocupando diversificados ramos de trabalho, o que teria ocasionado o rompimento entre o consenso e a coero e teria levado ao conflito propriamente dito. Antes de isso ocorrer, o autor acredita que existia uma estratificao das relaes sociais, baseada em normas tradicionais onde as representaes mate-riais e simblicas caminhavam juntas e cuja unidade encontrava-se no fator religioso. Sua estabilidade mantida pela juno entre um con-senso que encobre os aspectos coercitivos e uma coero que garante a continuidade consensual.57

    Essa crise das relaes existentes entre os habitantes do local ocasionadas pelas mudanas que apontamos acima conduziu-os, segundo Monteiro, a um reencantamento do mundo, propiciado a par-tir dos valores ameaados por essa crise. Os consensos foram elabora-dos, deste momento em diante, enquanto a coero foi sancionada por elementos mtico-religiosos.

    Apesar de seu trabalho ser considerado um dos mais impor-tantes por aqueles que estudam o tema, recentemente Duglas Teixeira Monteiro foi criticado por priorizar, como motivo da ecloso do con-flito, a crise do mandonismo local e a insero das empresas capitalis-tas no territrio contestado. Segundo Ivone Gallo, essa explicao constitui uma necessidade racionalista de tipo acadmico. Seu livro, O Contestado: o sonho do milnio igualitrio, caracteriza-se por

    57 MONTEIRO, Os errantes..., p.13.

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    inmeras problematizaes, onde o posicionamento de Duglas Teixei-ra Monteiro questionado a partir da afirmao de que o universo cultural dos sertanejos era completamente diferente do qual vivencia-mos na academia.58

    Apesar de ser alvo de algumas crticas, Monteiro foi o primeiro pesquisador desse tema a fazer consideraes a respeito das anlises que seguiram o caminho do determinismo do meio e da raa. Segundo o so-cilogo, as explicaes sobre o Contestado caracterizaram-se

    Pelo emprego de explicaes que recorrem a poderosos deter-minismos geogrficos ou biolgicos na anlise dos fanatis-mos religiosos brasileiros. Na vigncia dessa voga, falava-se nas condies da terra, no clima, na composio tnica das populaes envolvidas. Ou ento, de modo menos generaliza-dor, na ocorrncia de loucuras ou delrios coletivos.59

    A utilizao dos opostos serto e litoral, elementos fundamentais no pen-samento social at a dcada de 1930, tambm foram apontadas por este autor como princpios existentes nos estudos sobre esse tipo de conflito:

    58 Para desenvolver seus argumentos Ivone Gallo elabora uma reflexo em torno de

    alguns elementos presentes no imaginrio dos sertanejos do Contestado, como o Apocalipse de So Joo e a noo de monarquia. Ver GALLO, Ivone Ceclia DAvila. O Contestado e seu lugar no tempo. Tempo. Rio de Janeiro: 7Letras, v. 6, n 11, pp.143-156, jul. 2001 e _____, O Contestado: o sonho..., pp.14 et. seq.

    59 MONTEIRO, Os errantes..., p.13.

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    A partir de um certo ponto da evoluo das reflexes a respeito da cultura brasileira, comeam a surgir explicaes que, abandonado o recurso s causas naturais, tentam identi-ficar condies histrias, sociais e culturais. Esses surtos re-velariam o abismo cultural entre o serto e o litoral: smbo-los de duas civilizaes e de dois brasis. Um deles, eventual-mente apresentado como autntico e pouco conhecido o outro, postio e europeizado.60

    Alm de indicar as dificuldades relativas utilizao de con-juntos de termos opostos no estudo sobre o Movimento, o socilogo aponta algumas caractersticas presentes nessas abordagens, como o desconhecimento e a autenticidade atribuda aos habitantes do serto, questo que como j comentamos ganhou importncia nas narrativas que pensaram o Brasil, nas primeiras dcadas do sculo XX. Portanto, entre os autores citados at o momento, Monteiro foi aquele que mais teceu consideraes referentes ao nosso objeto de estudo.

    De forma geral, os trs socilogos indicam um problema es-trutural, que teria ocasionado o conflito armado. Sustentando suas argumentaes, privilegiam algumas variveis econmicas, seja para indicar que os lderes messinicos no eram culturalmente atrasados ou para explicar o esfacelamento das relaes de compadrio.61 O que nos interessa, mais especificamente nesses textos, consiste na verifica-o de que os apontamentos referentes aos termos serto-litoral, como

    60 Ibidem, p. 12. 61 Conforme Ana Maria Burmester, a perspectiva de anlise histrica reincidindo

    sobre conceitos explicativos do capitalismo teve maior campo durante os anos 60-70. BURMESTER, op. cit., p.103.

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    representaes opostas e utilizadas para a compreenso do Movimento do Contestado, foram levantadas h pelo menos meio sculo, sem que nenhum desses autores tenha se detido de forma mais detalhada sobre essa temtica.

    No nos interessa neste trabalho analisar a permanncia desse pensamento entre autores mais contemporneos, mas sim utilizar a persistncia de algumas dessas premissas no questionamento dos pres-supostos que lhe deram origem e resgatar algumas reflexes realizadas a respeito.

    2.2.2. Olhares de permanncia

    Embora alguns autores questionem a perspectiva de anlise sobre o Contestado que privilegiou a distncia scio-cultural entre litoral e serto, a partir da dcada de 50 essas ideias ainda persistiram nos escritos sobre o tema. Um exemplo dessa permanncia foi a publi-cao do artigo de Osny Duarte Pereira, em 1966. Neste texto, editado na revista Civilizao Brasileira em comemorao ao cinquentenrio do Contestado, prevaleceu a ideia de que os moradores desse local encontravam-se em estado de ignorncia e de misria e visitados tambm por monges, ascetas, curandeiros andarilhos, meninos-prodgios e outras criaturas dessa categoria, aptas para desencadear o fanatismo religioso.62 Para este autor, os sertanejos representavam uma gente analfabeta, obrigada a uma vida primitiva, quase igual

    62 PEREIRA, Osny Duarte. O cinqentenrio da guerra sertaneja do Contestado

    Paran-Santa Catarina. Revista Civilizao Brasileira. Rio de Janeiro, n 9/10, p. 235-246, set./nov., 1966, p.237.

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    do homem das cavernas, dirigida pelos seus curandeiros e puxadores de tro que os reuniam nas toscas e pobres capelas, levantadas em geral pelo bodegueiro vendedor de cachaa.63

    A referncia a esse autor torna-se interessante devido ao fato dele estar escrevendo um texto no somente em comemorao ao ani-versrio do conflito, mas tambm de apresentao da obra de Maurcio Vinhas de Queiroz, Messianismo e conflito social. Como j aponta-mos, o livro de Queiroz, apesar de em alguns momentos se referir ideia de patologia social, procurou romper com alguns preconceitos em relao aos sertanejos e ao papel exercido pelos monges. Essas questes no foram apropriadas por Pereira, que reproduziu, de forma bastante evidente, um discurso caracterstico das primeiras dcadas do sculo XX.

    Conforme o seu olhar, os caboclos pacficos, humildes e d-ceis repentinamente tornaram-se desafiadores, audazes, destemidos, de uma resistncia fsica inesperada, estrategistas inigualveis e ca-pazes das mais surpreendentes aes.64 A massa esfarrapada, famin-ta e oprimida estaria agindo por meio dos instintos e de uma intuio inexplicvel, devido ignorncia. De forma bastante diferenciada de Maurcio Vinhas de Queiroz, este autor, ao mesmo tempo em que cre-dita as prticas dos sertanejos sua ignorncia, delega o papel de he-ris aos soldados, os quais ressalta serem bravos e idealistas.

    Osny Duarte Pereira defende a perspectiva de que o intelectu-al possui um importante papel no processo de mudana social, enfati-zando a necessidade de se esquadrinhar os fenmenos, sua etiologia e

    63 Ibidem, p.242. 64 Ibidem, p.244.

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    seus prognsticos, compreendendo que assim poderia evitar os males que acometem a sociedade. Partindo do conhecimento dos fatos pas-sados os intelectuais poderiam planejar e organizar o futuro.65 Alm dessa perspectiva messinica em relao ao papel do intelectual, o autor tambm defende a ideia de que uma comparao entre a Guerra do Contestado e a Campanha de Canudos estava por ser escrita. Neste sentido, seu objetivo consiste em compreender em que medida os dois movimentos se assemelham e se diferenciam para o que seria necess-rio realizar o mesmo estudo que se fez com Canudos.66

    Esse texto utilizado como exemplo nos permite verificar que, mesmo aps a publicao das obras de Maria Isaura Pereira de Quei-roz e de Maurcio Vinhas de Queiroz, ainda persistiram anlises onde o modo de vida do homem do interior foi compreendido de forma es-tereotipada e preconceituosa, apesar desses socilogos serem citados na bibliografia. Portanto, percebemos que, se por um lado encontra-mos uma superao de posies estigmatizantes quanto queles que moravam no campo e viveram nos redutos sertanejos, por outro, di-versos aspectos desse posicionamento continuaram presentes, marcan-do amplamente a alteridade, enfatizando e nomeando as diferenas, muitas vezes apresentadas com outra roupagem, mas demonstrando a permanncia de uma necessidade de classificar o outro, indicando-lhe adjetivos, nomeando seu lugar e suas atitudes.

    65 Ibidem, p.245. 66 Ibidem, p.237.

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    2. 2. 3. A perspectiva da esquerda

    Todas as verses historiogrficas sobre o Movimento do Con-testado constituem o universo imaginrio referente a este aconteci-mento. Nessas representaes, esse evento foi nomeado e delimitado. O que sabemos sobre esse acontecimento hoje, ainda que informados pelo senso comum, vem da confluncia ou divergncia desses olhares, bem como das construes imagticas que esses autores nos relegaram a partir de suas obras. Devemos observar o lugar e o contexto em que esses textos foram pensados, pois, da mesma forma como ocorre com as fontes, a bibliografia est inscrita em um processo sem o qual ela no poderia ter sido concebida.

    Por isso, importante enfatizar que foi somente a partir da dcada de 90 que os historiadores voltaram-se para o conflito, e data deste perodo tambm o surgimento de trabalhos significativos do ponto de vista analtico. Desde ento, diversos historiadores vm refle-tindo sobre as narrativas e os termos recorrentes utilizados na constitu-io de um pensamento sobre o Movimento do Contestado, principal-mente no que se refere s primeiras dcadas do sculo XX. A apropri-ao de categorias como serto, litoral, sertanejo, ptria, entre outras, foi observada por alguns desses pesquisadores que questionaram a legitimidade de tal discurso. Ainda assim, esses trabalhos no tiveram como objetivo central analisar as narrativas sobre o Contestado em sua relao com o pensamento social do perodo, dispensando a essa tem-tica poucas pginas em relao ao total das obras. Levantando as discusses j estabelecidas sobre essa questo, apontaremos as indica-es desses autores quanto s imagens criadas sobre a populao que

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    participou do conflito e sobre os elementos que formaram esse pensa-mento, como a dicotomia serto-litoral.

    O primeiro autor que abordaremos, Eloy Tonon, realizou um trabalho privilegiando as estruturas polticas que influenciaram a eclo-so do Movimento, em uma perspectiva da luta pela terra. Apesar da atualidade de seu texto, sentimos a carncia de uma maior especifica-o em relao a alguns apontamentos histricos, os quais so aborda-dos de forma superficial ou absoluta, levando ao determinismo do poltico, sem considerar importantes trabalhos que levantaram outras hipteses e questionaram vises anteriores demonstrando a impor-tncia do universo simblico e religioso para os sertanejos envolvi-dos no conflito. Isso ocorre, por exemplo, quando o autor afirma que A expropriao e expulso dos sertanejos de suas posses levam-nos ao encontro das irmandades msticas.67

    Ainda na dcada de 70, Duglas Teixeira Monteiro props ou-tras hipteses, tentando dar conta da explicao do surgimento das irmandades. Segundo ele, o advento do capitalismo e a crise do siste-ma de compadrio teriam ocasionado a reunio desses indivduos.68 Particularmente, acredito que no podemos atribuir a construo das Cidades Santas somente expulso dos sertanejos de suas terras, uma vez que os sertanejos viviam relaes diferenciadas no interior de sua sociedade, sendo que diversos aspectos podem ser levantados quando nos reportamos constituio das irmandades religiosas. Ao atribuirmos essa criao expulso da terra, estaramos deixando de considerar os

    67 TONON, Eloy. O Contestado: uma interpretao da rebeldia sertaneja. Unio da

    Vitria, 2000. 192 f. Dissertao (Mestrado em Histria) Curso de Ps-Graduao em Histria, Universidade Estadual Paulista, p.12.

    68 MONTEIRO, Os errantes..., pp.13-14.

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    aspectos simblicos do Movimento no qual no possvel separar a questo fundiria do universo cultural e imaginrio vivido pelos morado-res do interior catarinense e paranaense. Pensando que um fator levaria a outro (a questo da terra levou questo religiosa) estaramos caindo na velha armadilha da causa-consequncia.

    Outra questo defendida por Tonon e que j deixou de ser ponto de impasse na prpria historiografia refere-se ao fato do autor buscar definir os sertanejos como vtimas dos acontecimentos: Os sertanejos, alm de excludos do pacto associativo entre o mandonis-mo regional e local com o capital transnacional, foram manipula