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Favelas: Uma Pesquisa Para Pensar
A SAGMACS – Sociedade de Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicadas ao Complexos Sociais – reuniu, nos anos 1950, sob a coordenação do Padre Lebret e a direção de José Artur Rios, um importante grupo de pesquisadores que realizaram exaustivos estudos sobre as favelas do Rio de Janeiro. Funcionava tendo como referência a PUC. Este trabalho, realizado ao final dos anos 50, foi publicado no jornal O Estado de S. Paulo em abril de 1960.
Nesta sua 143ª edição, o Rio-Estudos apresenta apenas o Capítulo III – Delinqüência. Trata-se de uma pesquisa de campo com centenas de entrevistas, que nos permite ver a reprodução de uma série de situações que, em menor ou maior medida, se mantém até hoje: crianças e adolescentes no crime, chefes do morro, cotidiano de tiros, banalização da vida, violência sexual, violência policial etc.
Mas, certamente, a importância maior desta publicação é permitir conhecer um quadro de violência intra-favela (entre os próprios favelados), violência no sentido mais amplo – muito, muito maior, impressionantemente maior do que a situação atual. Se comparada, a violência hoje é acoplada à favela através da presença de traficantes e dos pontos de venda de drogas. A violência dos malandros e bandidos – a desintegração dos hábitos, a violência por e contra menores, a violência sexual, a percepção do delito no cotidiano etc. – mostra um quadro de dilaceração de gravidade incomparavelmente maior nos anos 50. E, com isso, permite avaliar a situação atual e os inúmeros avanços conseguidos, que são muito maiores do que a percepção média registra.
No final, este capítulo propõe uma inviável e equivocada extinção, e confunde o ambiente social da época, nas favelas, com a existência delas em si. Mas esta é apenas uma opinião. A leitura deste trabalho – e a avaliação de cada um – é peça fundamental e imprescindível para todos os que atuam nas favelas, os que fazem a cobertura jornalística das favelas, os que escrevem sobre as favelas e para as forças policiais que nelas agem e que, desde aquela época, eram criticadas por sua presença esporádica e não permanente.
FAVELAS: UMA PESQUISA PARA PENSAR
Capitulo III
A delinqüência
1. Os Caminhos do Crime
O comportamento do delinqüente é a resultante de inúmeros fatores que,
articulados, geram o fenômeno social do crime. As favelas são, geralmente,
apresentadas como matrizes da delinqüência, focos do crime, valhacoutos de
criminosos. Já pudemos verificar, em capítulo anterior do nosso trabalho, que a
generalização não é exata. Não há dúvida, porém, que a incidência de delinqüentes
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nas favelas é considerável e que há uma associação entre esses aglomerados
proletários e subproletários e certo tipo de delinqüência. Nosso estudo ficaria, assim,
incompleto, se não considerasse esse aspecto da vida na favela. Pela importância
numérica desses agregados, pela sua distribuição na geografia da cidade, pela
proximidade em que se acham de zonas residenciais estáveis, com as quais se
encontram em verdadeira relação simbiótica, pelo número de pessoas que abrigam,
sobretudo crianças e adolescentes, a freqüência da conduta delinqüente nas favelas
assume enorme significação.
O crime, de todos os aspectos da patologia social, é o que mais caracteriza,
numa dada sociedade, o extremo da desintegração. A freqüência do crime assinala
uma instabilidade social que se transmite às instituições fundamentais e, por estas,
às personalidades dos moradores. A incidência do crime, por outro lado, é um
indício de alta instabilidade emocional que provoca tensões entre as pessoas, rompe
o equilíbrio interno dos grupos e destrói a coesão social. Assim, quer se encare o
problema pelo aspecto social ou pessoal, sua gravidade é evidente.
A presença dessas condições sociais ou psicológicas, que, tanto uma como
as outras, vêm a ter, afinal, a mesma significação, não indica apenas a presença na
favela de uma delinqüência endêmica, mas de uma delinqüência potencial. Esta só
tende a crescer, desfechando em atos criminosos que apenas representam o último
ato de um drama de remotas origens. O importante, na favela, é verificar a
existência de condições criminógenas, atuando permanentemente no sentido de
formar delinqüentes em potencial que só esperam o momento oportuno para
realizar-se. A análise do crime, em si, de grande interesse para o criminalista é,
neste caso, de importância secundária para o sociólogo. Este vê no ato criminoso a
comprovação individual de uma situação coletiva permanente, onde se refletem,
como num microcosmo, a precariedade dos grupos e instituições.
Infelizmente, para esse estudo, poucos elementos encontramos que nos
permitam um levantamento completo das características criminais das favelas. Nem
a Polícia, nem as secções especializadas das Casas de Correção, nem a
Procuradoria do Distrito Federal, nenhuma entidade pública ou particular que lida
com criminosos, procura sistematizar os dados recolhidos, aperfeiçoar os métodos
de coleta, analisar as informações recebidas diariamente, para o esclarecimento
sociológico do problema do crime.
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Essa lacuna é mais de lamentar no setor da delinqüência infantil e juvenil,
onde o problema assume aspectos de suma gravidade e onde cumpre aperfeiçoar
os métodos de prevenção. Nenhuma das instituições que se dedicam ao problema,
apesar da dedicação dos seus funcionários, conhece de fato sua extensão, suas
condições geradoras, e nenhuma se acha, portanto, em situação de controlar
efetivamente o crime. Nem o Juízo de Menores, nem o SAM, nem a Fundação Leão
XIII, possuem sequer o embrião de uma hipótese, o esquema de uma teoria que
explique ou justifique seus métodos de ação.
Por toda parte, hoje, o crime é objeto de um sistema rigoroso de prevenção.
O mecanismo repressivo seria insatisfatório nas dimensões de uma cidade moderna.
Pior ainda em uma cidade onde se encontram verdadeiros quistos do
subdesenvolvimento, que outra coisa não são as favelas cariocas, em contacto
permanente com bairros residenciais, zonas industriais e comerciais, onde se
misturam seus elementos. A prevenção torna-se essencial em aglomerados onde a
delinqüência faz parte do clima da vida cotidiana. Essa prevenção não pode limitar-
se aos aspectos criminais da vida social, não se pode restringir, por exemplo, ao
policiamento ostensivo, no qual certas autoridades policiais depositam tantas
esperanças.
Nas favelas, a prevenção deve confundir-se com a própria educação, ser uma
atividade eminentemente educativa. A presença de crianças e adolescentes em
número elevado caracteriza uma população de hábitos plásticos, pronta a receber
quaisquer influências. E a situação social em que se acham perante os adultos e as
instituições que representam já constitui um poderoso incentivo ao crime. Num
estudo, onde resumiu suas observações de favelas do Rio de Janeiro, o antropólogo
Andrew Pearson teve ocasião de publicar respostas de crianças de 11 anos a um
questionário que lhes aplicou esse pesquisador da UNESCO.
Num grupo de 19 crianças do Esqueleto, Pearson perguntou se já haviam
presenciado algum tiroteio. Três responderam “não” – mas as outras 16
responderam afirmativamente. Vale a pena transcrever algumas dessas respostas:
“Sim, muitas vezes. Ontem mesmo quase acertaram meu pé. Isso é muito
cacete”.
“Ouvi, mas nunca vi um”.
“Muitas vezes, perto de casa. Hoje mesmo. Era contra dois; um morreu”.
“Sim, um bando de gente começou a atirar, não sei por que”.
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“Já, no Esqueleto. Eu fugi. Estavam atirando no meu tio que ajudou a matar
uma porção deles”.
“Já, perto de minha casa”.
“Já, muitas vezes, no Esqueleto. Uma vez eles estavam brigando, um atirou
e o outro morreu”.
O que impressiona nessas declarações de crianças não é o fato de terem
presenciado cenas de violência, crimes de morte. Mas o fato de as encararem com
naturalidade, como um fato cotidiano. É sob esse aspecto que a vida, em certas
favelas, constitui uma educação para o crime. Esse fato só por si já seria de extrema
gravidade.
Neste trabalho, procuramos compreender a delinqüência como um meio de
vida, uma forma de sobrevivência, um tipo de conduta que as crianças e
adolescentes defrontam normalmente nas favelas. Cohen, estudando grupos de
delinqüentes juvenis nos Estados Unidos, chegou à seguinte conclusão: “... a
delinqüência não é uma disposição inata, nem ato para o qual a criança contribuiu
por si mesma;... as crianças aprendem a tornar-se delinqüentes ingressando em
grupos nos quais a conduta delinqüente já se firmou e constitui o que se tem de
fazer”.
Nas favelas cariocas, o contacto com os delinqüentes é constante e essa
freqüência torna difícil, senão impossível à criança, estabelecer uma distinção entre
a conduta delinqüente e a conduta normal. Em seis favelas que estudamos, a
delinqüência chega a (ter implantação ecológica?), isto é, caracteriza, para os
próprios moradores, várias áreas desses agregados. No morro de São Carlos, por
exemplo, os locais chamados “Querosene”, “Grotão” e “Mina do Padre” são
considerados perigosos. No “Grotão”, os malandros se escondem, ninguém os vê.
Na “Mina do Padre” não receiam ser vistos e passeiam a qualquer hora. No
Jacarezinho, a parte considerada mais perigosa é o chamado “Morro Azul”, situado
no local mais alto da favela. A Rua da Glória, que dá acesso a esse morro, é
considerada também perigosa, como a Ponte, onde ficam malandros que esperam a
passagem de mulheres. Aí assaltam-nas e as carregam para um matagal vizinho.
No morro dos Telégrafos, a “Candelária”, a parte mais alta, é também a mais
perigosa, como o “Eucalipto”, seu prolongamento, ou o “Buraco Quente”, onde os
malandros se reúnem para jogar. No Salgueiro, os maus elementos se concentram
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no “Sumaré”, onde há um resto de mato. No Cantagalo, o “Quebra-Braço” é a pior
parte. “Uma família quando é decente não gosta de ficar morando no Quebra-
Braço”. Na Barreira do Vasco, a Rua do Expedicionário, o “Flit” são considerados os
locais mais perigosos.
Muitas vezes, os informantes nos esclarecem que a favela é calma. “Nos
Telégrafos, a favela era perigosíssima. Muitas famílias saíram para outras favelas.
Ainda existem malandros, mas, desde a prisão do Mauro Guerra, a coisa melhorou”.
No Salgueiro, asseguram-nos, o morro é calmo. Do Cantagalo, nos afirmam o
mesmo, graças ao policiamento pelos guardas municipais. Mas, no Jacarezinho,
encontra-se de tudo. Na Rua da Glória e no morro Azul não é recomendável ir-se
sozinho. No São Carlos, embora informantes de fora considerem a favela calma, os
moradores nos dizem: “De dia não há perigo, mas de noite nós não saímos”.
A delinqüência é, portanto, nessas favelas, um fato normal que já chegou a
marcar, mais nitidamente, determinadas zonas ou recantos. Mas outros fatores,
além dos ecológicos, influem, impelem à delinqüência, constituem sua motivação
permanente. Podíamos afirmar que, na conduta delinqüente, defluem todos os
elementos da vida familiar e educacional que estudamos até aqui. Todo o processo
de desintegração familiar que analisamos constitui um elemento importante na
formação dos criminosos. Os casamentos repetidos, as separações e re-uniões, os
abandonos de lar não só têm efeitos imediatos sobre os principais protagonistas,
mas atingem em cheio os filhos, as crianças e adolescentes. As formas de punição e
disciplina familiar, os espancamentos e expulsões, impulsionam a crianças a
atitudes de revolta e estimulam sua agressividade, já exacerbada pelos valores e
padrões da favela, que valorizam o adulto, o homem, o “macho”. D. Z., do São
Carlos, tinha raiva do filho porque parecia com o pai que a abandonara. Espancava
o menino com um pau. Aos 13 anos, o menino já tinha uma amante. Foi diversas
vezes fichado por denúncias feitas pela própria mãe. Era comum encontrá-lo
fumando maconha. Para conseguir sair de casa, arranjou uma mulher. A técnica de
controle familiar é, via regra, primitiva. A fim de evitar que as crianças saiam à rua
amarram-nas com uma corda ao pé de um móvel ou prendem-nas no banheiro, ou
ainda tiram as calças aos meninos, o que não evita que fujam. Ouvimos casos
dolorosos. Uma mulher, na Barreira, mandou buscar a filha no Norte e trouxe-a para
o barraco onde vivia com um homem, a fim de cuidar do filho mais novo. A menina
era muito parada. A mãe tomou-lhe ódio. Acorrentou-a. A criança era doente. A mãe
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não lhe dava remédios, levava-a a sessões espíritas. Aparentemente, devia sofrer
sevícias e mutilações porque um dia a visitadora da Fundação Leão XIII encontrou-a
sem um pedaço do braço. “Que foi?” “O Santo só cura com pedaços de criança”
respondeu. Conseguiram interná-la, levaram-na para o Hospital do Engenho de
Dentro. Quando comia dava pontapés violentos. “Era um verdadeiro bicho”. É um
caso extremo como o da criança espancada e expulsa de casa pelo primo e tutor e
que vagueia pedindo comida aos vizinhos ou catando-a nas latas de lixo. Mas
revelam o limite de uma situação generalizada. No Salgueiro, o menor A., de 14
anos – embora de família organizada, porque o pai é construtor, e mora num barraco
bem construído – foi expulso de casa pelo pai e passou 24 horas no Distrito Policial.
O barraco, pela sua exigüidade, não funciona como lar, como residência
familiar permanente e impele as crianças para a rua, onde ficam entregues ao acaso
dos contactos e à inspiração dos exemplos.
Muitas crianças andam soltas, inteiramente abandonadas pelas ruas da
favela. Os pais trabalham, às vezes não têm com quem as deixar, outras vezes as
pessoas encarregadas de vigiá-las se descuidam. No morro dos Telégrafos, uma
funcionária da Fundação Leão XIII, em contacto diário com os favelados, informou-
nos: “Uma das saídas para a família é tentar logo internar o menor. Há muitas
famílias que tomam conta de crianças mediante pagamento. Muitas mães trabalham
de noite, fazem serão e não têm com quem deixar os filhos. Essas mães que
trabalham nas fábricas próximas, Kibon, Red Indian, São Platino, são justamente as
mais pobres. Não podem manter os filhos nas escolas e, logo que podem, mandam-
nos para as fábricas, pois têm necessidade do salário do filho”. E uma visitadora do
Cantagalo nos diz: “As mães não conseguem dominar os filhos. Eles ficam
vadiando, jogando”. Há crianças que voltam para casa de madrugada. A conversa é
livre, as crianças ouvem tudo. Nas bicas, são freqüentes as brigas. Começa o bate-
boca, jorram palavrões e às vezes detalhes da vida íntima vêm à tona com absoluta
crueza. As mulheres e moças disputam o seu “homem”, na frente de todos.
O volume de pessoas por cômodo cria situações de promiscuidade que, para
muitas crianças e jovens, é sinônimo de família. Encontramos diversas situações de
promiscuidade, algumas já atingindo a perversão e o incesto. No morro do São
Carlos, o menor Y., de 13 anos, tem relações sexuais com a mãe, ébria contumaz.
D. X. também no São Carlos, foi abandonada pelo homem com quem vivia há 10
anos e arranjou outro com quem já tem uma filha. As duas filhas do primeiro vão
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buscar uma pensão com o pai e, de uma feita, ele tentou aproveitar-se delas. No
barraco onde mora d. X. vivem oito pessoas. A menor W. tinha dois anos quando a
mãe arranjou um amante. Quando cresceu, tornou-se também amante do mesmo
homem que vive com as duas, de quem tem filhos que freqüentam a escola
Fundação Leão XIII, no morro de São Carlos. A., ainda moço, vive com a mulher e a
sogra. Esta tem dois filhos do genro. A má alimentação e a necessidade do trabalho
precoce tendem a tornar a criança independente numa idade em que ainda não
constituiu definitivamente sua personalidade e não possui uma tábua definida de
valores.
O menino A. B., de 11 anos, freqüentava a Escola da Fundação Leão XIII, no
morro de São Carlos. Sua freqüência era muito irregular. Sua mãe bebia muito e ele
vinha, muitas vezes, para a escola sem ter comigo migalha.
O controle das famílias mais organizadas sobre as crianças torna-se difícil.
Os pais lutam para impedir que as crianças brinquem na rua, escapem à sua
vigilância, misturem-se às más companhias. Essa vigilância é quase impossível e,
insensivelmente, as formas de recreação se transformam em tipos de conduta
delinqüente. A plasticidade da personalidade infantil torna-a especialmente
vulnerável aos exemplos. É sabida a importância da imitação no comportamento da
criança. E a imitação é o processo educativo por excelência na vida da favela.
Além desses fatores de ordem familiar, a escola, de certa forma, contribui
decisivamente para a conduta anti-social. Já pudemos verificar que as escolas não
estão aparelhadas para enfrentar o problema. Podemos afirmar, depois de
entrevistar professoras e diretoras, que nem sequer compreendem o problema. A
criança favelada é encarada como proveniente de um meio semelhante à classe
média, o filho de famílias desorganizadas como o de famílias estáveis. Não há
preocupação de situar a criança em seu meio natural de vida, a família, a
vizinhança, os companheiros de brinquedo, a favela. A escola funciona como molde
cuja principal finalidade é imprimir na personalidade de todas as crianças
indistintamente as mesmas marcas. Atende-se mais ao conhecimento que à
personalidade, à informação sem a formação. A escola, portanto, não supre as
deficiências sociais do meio familiar. A distância social entre as professoras e os
alunos cria equívocos que tivemos a oportunidade de analisar. Preocupada com a
transmissão de conhecimentos, a escola se ausenta cada vez mais, do problema da
recreação, que é fundamental, ignora as atitudes fundamentais que se plasmam no
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recreio, não na sala de aula, esta, de certa forma, uma situação artificial e efêmera.
A recreação se processa nas ruas e praças, nos fundos de terreno ao acaso da hora
e dos encontros.
A dificuldade de continuação dos estudos provoca o aparecimento nas
favelas de uma porção de crianças que já estão na escola e não podem ainda
arranjar trabalho por serem menores já bastante crescidos para não se cingirem às
disciplinas familiares e sem uma independência econômica que sustente essa
autonomia biológica e social. Antes do serviço militar, o adolescente fica sem fazer
nada, numa permanente vagabundagem. Um morador da Barreira descreve bem
essa situação: “Nesse período de espera, antes de servir no exército, fica
vagabundeando. É jovem, tem vontade de fazer farras, de vestir bem, andar com as
moças. É a época das aventuras. Quer ser o tal. Não tem quem o vigie, quem o
oriente”.
Nessa fase, não encontra quem o encaminhe a uma atividade construtiva ou
quem o ajude a prossegui nos estudos. Na Barreira, são raros os casos de crianças
que, terminando o primário, puderam seguir o curso ginasial. Apuramos apenas dois
casos, o dos filhos do jogador de futebol D., que se suicidou há alguns anos, e que
tem seus estudos custeados pelo dr. Guilherme da Silveira, da Fábrica Bangu. O
outro caso é das filhas do sr. X., barbeiro, que fizeram o primário no Grupo Escolar
da PDF, o artesanato na Fundação e agora fazem o ginásio no SENAC. São casos
raros.
Ao lado dessas micro-situações familiares e educacionais, é preciso levar em
conta a situação global da favela e a condição social e econômica dos favelados.
Antes de tudo, a instabilidade dos indivíduos e das famílias, sua extrema mobilidade,
a qual se manifesta na dificuldade de adquirir local para moradia e criar raízes, a
precariedade das habitações e a insegurança geral com todas as suas repercussões
emocionais.
Forças exteriores à favela repercutem ainda diretamente na vida interna
desses agregados, motivando a delinqüência, na mesma proporção em que
agravam as condições de vida. A primeira é a pressão inflacionária, a alta constante
do custo de vida, criando problemas cada vez mais sérios de subsistência. A outra é
a demagogia, cujos processos já tivemos ocasião de analisar, a infiltração da
politicagem na vida das favelas. A politicagem não só cria favelas, como estabelece
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um controle paternalista dos favelados, que só confiam no cabo eleitoral e no político
para melhorar sua situação.
O “caminho do crime” começa assim, na descrição de uma visitadora social
da Barreira: “Com 13, 14 anos, as crianças largam a escola. Procuram arranjar
emprego para auxiliar os pais. Quando conseguem, são mandadas embora, depois
de 9 ou 10 meses porque os patrões não desejam pagar férias a menores. Muitas
dessas crianças vêm-nos procurar e pedem: “Eu quero que a senhora me arranje
um emprego, para que eu não seja apanhado pela polícia. Não deixe que isso me
aconteça”. “Creio que a fase aguda da adolescência em que ocorre o maior número
de adesões ao crime”, assevera uma informante especializada, “é a época em que o
rapaz é despedido do seu emprego para não terem de lhe pagar um mínimo e
quando, desempregado, fica esperando o momento em que será chamado para
servir ao Exército. Às vezes, após 18 anos, essa chamada é adiada e somente aos
19, o menor é engajado. Durante esse período de inatividade é que o rapaz sofre
toda sorte de solicitações do meio ambiente”.
São raros os casos de crianças que terminaram o primário e cursam o
ginasial. São raros exatamente na medida em que o tipo de família organizada,
capaz de custear a educação secundária para os filhos ou bastante relacionada para
conseguir um internamento ou uma gratuidade, também, é raro na maioria das
favelas. Por isso, é enorme o número de adolescentes desocupados. Entram num
emprego e logo saem, vagueando de trabalho em trabalho com longos intervalos de
“chomage”.
As atitudes pré-delinqüentes, habituais no comportamento infantil e juvenil,
encontram, no meio ambiente um estímulo e um fator constante de cristalização. A
agressividade alimentada e fortalecida por diversos tipos de controle familiar, já se
revela desde a mais tenra infância, no culto da violência. É sabido que praticamente
todas as crianças praticam atos socialmente reprováveis e que, em idade mais
amadurecida, são caracterizadas como delinqüentes. É numa escola, um menino
que corta o braço de outro à gilete, é a briga, entre crianças e adolescentes, nos
campos de futebol, nas ruas, como processo de decidir os dissídios e que chega a
extremos de derrame de sangue. É a pedrada na cabeça do companheiro ou na
vidraça da escola. É, muitas vezes, a miséria, a fome, simplesmente. O menor Z., no
Morro de São Carlos, só roubava comida. Entrava nos barracos onde sabia que
tinham sido feitas compras recentes de alimentos e roubava. Expulsaram-no do
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morro. Não se pode chamar a essa atitude propriamente delinqüente, porque não há
uma deliberação, mas uma compulsão de fatores ambientais sobre uma
personalidade imatura, à qual não se oferece outra solução senão o roubo.
A precocidade sexual e a independência econômica, sem o equilíbrio e a
maturidade emocional, produzem reações surpreendentes. O caso da menina V.,
por exemplo, do morro de São Carlos, que, aos 8 anos, tendo brigado com o irmão,
tentou suicidar-se, ateando fogo às vestes. Sobreviveu, com as marcas do ato,
ficando com a pele do corpo repuxada. Hoje, com 14 anos, já tem um filho. Um dia,
embriagada, tentou enforcar o filho.
Nesse meio, a vida sexual é muitas vezes uma forma de afirmação, de
expressão pessoal, às vezes de independência. As meninas com 9, 10 anos já têm
namorado. Aos 14 já são mães. As mais novas, querem logo desfazer-se das
crianças. Dão-nas com grande facilidade. “Chegam a nós”, conta uma visitadora da
Fundação Leão XXIII, e dizem: “Ah, d. F., tenho de me cuidar e ainda vou cuidar dos
filhos?” As visitadoras, indiretamente, concluem que o número de abortos é grande
porque, inúmeras vezes, são elas que chamam a ambulância para atender a casos
graves. São ainda elas que enviam as gestantes à maternidade. Pensam que os
filhos vão reter o amante, quando, muitas vezes, sucede exatamente o contrário.
Há casos de precocidade sexual impressionantes. O menor J., de 10 anos, já
tinha relações com uma mulher de 32 anos... Os adolescentes de 14 anos já se
consideram homens. Na linguagem da favela, ser homem é reunir uma série de
possibilidade e prestígio. Brigar, ser valente, abotoar o paletó de alguém (matar),
arranhar (ferir), ter mulher e não dar importância à família.
Eis como um adolescente se inicia no caminho do crime. A história de J., de
15 anos, filho de d. E., da Barreira, contada por sua mãe, é expressiva: “J. sempre
foi um menino impossível”, conta-nos d. E., “sempre me deu trabalho. Apanhava
muito. Dei-lhe muitos castigos. Dava-lhe surras de matar e não deixava que ele
saísse de casa. Não queria estudar. Só queria viver de “rodinhas” com os
companheiros. Com 10 anos de idade, foi encontrado nas ruas do meretrício, no
Mangue. A polícia o pegou e levou para o Juizado de Menores. Fui lá buscá-lo. É
cheio de luxo. Em casa não fazia nada. Tinha vários malandros como companheiros.
Eu continuava a dar-lhe surras, sem resultado. Vivia inventando coisas. Namorava
as pirralhas, as cabrochinhas que se rebolavam para ele. Brigava na rua. Sempre
recebia reclamações dos vizinhos porque o menino batia nos filhos deles. Era
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metido a valentão. Saía de casa e não dizia para onde ia. Quando voltava, entrava
na surra. Eu já o esperava na porta do barraco de chicote. Não queria explicações.
Uma vez, fiz uma roupa para ele. O paletó foi feito com uma abertura nas costas,
perto dos quadris. Não quis aceitar a roupa, enquanto não foi costurada. Disse que
não era “amulherado” para usá-lo. Vendo que não dava jeito arranjei emprego para
ele na Tecelagem Moderna. Era cabineiro. Foi despedido, porque não queria vestir o
uniforme da casa. Coloquei-o noutro emprego, numa colchoaria. Saiu de lá porque
tinha muita poeira, não queria ficar tuberculoso e andar sujo. Não queria era
trabalhar. Andava na companhia de maus elementos. Começou uma amizade, com
d. L., mulher de vida irregular. D. L. não gosta de homens pretos e feios. Só gosta de
rapazes novos. Já tem mais de 30 anos, e seduz adolescentes. Foi abandonada, há
alguns anos, pelo homem com quem vivia. Não sei se era casada, ou não, com ele.
J. ia para a casa dela para conversar. Levava coisas de minha casa para dar a ela.
Numa ocasião ela veio me pedir para deixar J. ir com ela a um pique-nique na praia.
Achei meio esquisito, mas como iam outras pessoas, deixei. J. voltou tarde, depois
de uma hora da manhã. Perguntei porque tinha chegado tão tarde. Ele me
respondeu que vinha apanhar suas coisas, porque ia morar com d. L. e que tinha
dormido com ela. Disse-lhe que ia dormir mas era com o chicote e se depois
quisesse ir podia, mas não voltava mais para casa. Dei-lhe uma boa surra e ele
ficou. Vi que ele estava à beira do abismo. Fui, no outro dia, falar com minha
comadre que morava em Copacabana e que já cuida do meu filho mais velho, que é
cego. Ela aceitou Mandei-o logo para lá. Minha comadre não dá sopa. Ele agora
está estudando de noite e ajudando-a de dia, fazendo o trabalho da limpeza de
casa. Ela está arranjando um lugar para ele na Marinha. Ele respeita muito a minha
comadre. Quero que vá para a Marinha. Lá, vai saber o que é a vida e vai ter um
futuro. Não é um menino ruim. Estava em más companhias aqui. Não quero nem
que venha passear por aqui”.
Para muitos outros adolescentes, a história não termina com esse happy end. É preciso esclarecer que d. E., mãe de J., tem 4 filhos, um de 18 anos, cego,
outros dois de 9 e 7 anos, respectivamente. Mora num barraco de sala e quarto, na
Barreira, e vive de lavar a roupa. Casou-se aos 15 anos em Pernambuco e separou-
se do marido aos 17 anos porque era afeminado. Ligou-se a um rapaz com quem
veio tentar a vida no Rio. Após 11 anos de união, seu “homem” abandonou-a por
outra e ela veio bater na Barreira.
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As crianças sabem tudo, vêem tudo. Sua iniciação é o princípio verbal.
Aprendem cedo a dizer palavrões. As primeiras fases de comportamento sexual
desenrolam-se na rua. Os informantes que residem fora da favela se escandalizam,
mas nos favelados pareceu-nos que o escândalo era apenas formal. No fundo,
acham graça. A iniciação sexual é precoce. Conta d. M. M., da Barreira, “um menino
que mora na sua rua fez uma casinha de madeira perto do barraco dos pais e levava
para lá meninos e meninas, que brincavam de “coisa feia”. Uma das meninas foi
deflorada e ficou grávida. A mãe não ligou. A menina foi para o Pronto Socorro.
Tinha abortado. Essa menina é filha de uma mulher da vida desregrada. Vive
mudando de homem”. O irmão menor de d. M. C., de 15 anos, da Barreira, deu-lhe
aborrecimentos porque, na sua ausência, trazia para o barraco uma menina filha de
uma vizinha. Essa menina fora deflorada aos 10 anos por um homem que
freqüentava a casa de sua mãe. Esta não deu importância ao caso e a menina
passou a viver solta, no meio dos malandros e os garotos da vizinhança “se serviam
dela”.
No morro de São Carlos, o sr. R. leva meninas de 6 a 10 anos para o seu
barraco. Ficam brincando de roda, dançando, todas nuas. Ele dá guaraná, doces,
balas e biscoitos. Quem nos contou o fato foi a mãe de uma delas. Estranhamos,
mas ela nos respondeu: “Não tem importância, ele não faz nada, só fica olhando e
depois elas se divertem e comem”.
D. A., da Rocinha, quer sair da favela. Há pouco tempo, no chamado
“Ferreirão”, lugar mal freqüentado, uma vagabunda perguntou à filha dela quantos
anos tinha. A menina disse que já ia fazer 10 anos. E a mulher disse-lhe, então, que,
dentro de dois anos estava boa para pegar homem. A menina, em casa, perguntou à
avó o que era isso. “É como você carregar seus irmãos no colo, daqui a pouco você
vai poder carregar até o seu tio”. Ao que a garota respondeu: “Eu não, não vou ter
força para isso”.
No Parque, colhemos inúmeras histórias semelhantes. “Aqui”, diz uma
moradora antiga, d. M., “tem havido muitos casos de meninas se perderem. Tenho
uma vizinha que, com 13 anos, já está grávida. A menina continua com os pais que
não tomaram providência nenhuma”. Na Barreira, d. J., conta a história de suas
sobrinhas. “Vivo sozinha em meu barraco. Meu marido já morreu. Não tenho
ninguém. Tinha três sobrinhas, mas todas deram para ruim. Primeiro foi a L. Quando
a mãe morreu, ficou em companhia da avó e eu fiquei com as outras duas. Quando
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eu vi a L., completar 9 anos e começar naquele desassossego, entrando e saindo de
casa, nessa idade perigosa, procurei guardá-la e trouxe para cá. Um dia ela fugiu e
voltou para a casa da avó. A avó bebia muito. Levava- a para passar uns dias em
Nova Iguaçu na casa de um compadre, padrinho de L. Este deflorou a menina. Ela
teve uma filha dele. Depois, abandonou o padrinho e viveu com outro. Depois,
arranjou um pau de arara e vive há nove anos com ele. Ela levava os homens para
dentro de casa, em pleno dia. Minha outra sobrinha N., me fez sofrer muito. Ainda
hoje choro, mas longe dela, para não ver como sofro. Vivia em minha companhia
quando um dia eu soube que ela se tinha perdido. Depois começou a querer trazer
os homens para aqui, para fazer coisa feia, e eu não consenti. Ela passava o dia e a
noite em companhia dos homens e ia para casa dessas mulheres. Depois arranjou
um guarda e passou a viver com ele. Um dia brigaram, ela foi para Caxias para uma
casa de mulheres. Eu e o guarda fomos buscá-la e ela só voltou porque a polícia
obrigou. Agora tem 19 anos e já teve 10 filhos, tendo perdido todos. Ela não
sustenta filhos. Somente o primeiro conseguiu nascer vivo, mas morreu depois.
Muitos dos parentes de d. N. morreram tuberculosos; ela é muito magra e tosse
muito”.
O desregramento é favorecido pela existência de inúmeros becos e vielas
sem luz. Quando há um ou outro poste, os malandros jogam pedras nos globos.
Devido às facilidades e às próprias condições do ambiente, muitas meninas perdem
a honra muito cedo. “Aqui, diz d. A., moradora da Barreira, é uma sujeira. As
mocinhas vivem soltas. As mães não se importam. À noite, é uma vergonha. Só
vendo os casais agarrados pelos becos, encostado nas paredes. Moças perdem a
virgindade muito cedo. O muro do Vasco, à noite, é uma vergonha. Quando uma
pessoa passa e olha, eles xingam, dizem nomes feios. Dão sempre carreira nas
crianças. Algumas moças enganam os pais. Dizem que vão trabalhar à noite e vão
para a vida. Os pais estão pensando que as filas são direitas. Vivem enganados.
São umas doidinhas”.
Essa atitude de indignação, entretanto, não é generalizada. Ela transparece
nas camadas mais organizadas que vêem na delinqüência um perigo à própria
estabilidade. Nas camadas desintegradas ou desorganizadas, esses fatos são
olhados com naturalidade ou indiferença.
As biroscas são pontos de convergência e encontro de delinqüentes. Aí eles
se exibem aos moradores, comentam suas façanhas diante das crianças e
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adolescentes. É difícil fechar as biroscas porque prestam muitos serviços aos
favelados, principalmente facilitam a compra de pequenas quantidades de comida,
isto é, permitem-lhes subsistir com pouco dinheiro. Muitos birosqueiros vendem
cachaça clandestinamente. A cachaça não aparece no balcão, mas é distribuída
com abundância. A polícia chega, apreende a mercadoria, fecha a birosca e prende
o birosqueiro. Mas no dia seguinte estão soltos e retornam ao seu comércio. Às
vezes empregam menores, seus próprios filhos e filhas que, no balcão, entram em
contacto com delinqüentes e ouvem suas conversas. Na Barreira, o birosqueiro
velho viúvo, “que tomou moça nova”, coloca a mulher seminua vendendo cachaça.
“A desgraça da Barreira é a cachaça”, afirma um morador. Os botecos são
focos de desordem. Todos vendem cachaça. Só a birosca de d. X., vende cerveja. O
sr. J., birosqueiro, tem um filho de maus costumes, que faz mal à meninas. A polícia
freqüentemente surpreende menores trabalhando no balcão das biroscas.
Os bailes são um tipo de recreação habitual na favela, onde surgem
desavenças e crimes. Em geral, são aos sábados e domingos e as brigas que
ocorrem têm por causa a disputa do homem ou da mulher. Os malandros, às vezes,
dão bailes em seu barraco. Assim o “Perna de Pau”, na Barreira. Eram os “bailes de
Noel”. Aí tudo podia acontecer. A polícia acabou com esses bailes, prendendo o
“Perna de Pau”, ladrão e assassino perigoso.
Por trás da perdição de meninos e meninas, encontramos a desintegração
familiar causada pela migração, a miséria ou a doença. A menor M., de 13 anos, já
freqüentava uma casa de prostituição no morro de São Carlos. Já perdeu muitos
parentes tuberculosos. A pobreza e a insegurança trazem a necessidade do
“homem”. As mães preferem até, nesses extremos da desintegração familiar,
sustentar um homem a passar sem ele. “Se não tiver um homem em casa, todos
querem bancar o valentão e pintam o sete com a gente. Não respeitam as mulheres”
– diz uma informante do Parque. “Somos obrigadas a ter um homem pra nos
proteger”, afirma uma moradora da Barreira. É comum encontrar-se senhoras de
idade vivendo com rapazes. Trabalham para sustentá-los. No morro de São Carlos,
apontaram-nos o caso de uma mulher de mais de 60 anos que sustenta um rapaz de
20. Nos Telégrafos, d. X., de 40 anos, aleijada, lavadeira, sustenta um amante de 23
anos. A mulher suporta grosserias, maus tratos, agressões. Cenas como esta são
freqüentes: “Outro dia”, conta d. J., da Barreira, “eu vinha vindo da rua, já no escuro,
quando vi um grupo de vizinhas na esquina da rua. Parei para saber do que se
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tratava me disseram que um casal estava brigando, que o rapaz tinha cortado a
ponta do dedo da moça, porque ela tinha faltado a um encontro. A moça chorava
muito. Ele dava-lhe murros, pontapés. Ninguém se atrevia a ir socorrê-la. Não se
sabia quem eram”.
Entre os elementos pré-delinqüentes da conduta do favelado, temos de
acrescentar os conflitos permanentes, as brigas entre os vizinhos. Para
compreender bem a causa desses conflitos é preciso ressaltar que, na favela, como
em outras áreas proletárias ou subproletárias, o indivíduo se acha extremamente
preso ao contexto de vida ambiente, sua existência se articula intimamente com a
dos vizinhos. A vida é pública, tudo se saber. “Quando se dá um caso aqui, todo o
mundo sabe, junta gente na rua. Aqui, se a gente bate com um chinelo dentro de
casa num filho, a porta fica assim de gente. Até as crianças pequeninas vêm espiar”.
Daí, ser da maior importância sua reputação, o conceito de que desfruta. Esse fato é
fundamental na compreensão da vida da favela, nas relações do favelado com os
delinqüentes, com a polícia, com o mundo exterior.
A situação de solidariedade social coexiste muitas vezes com uma absoluta
falta de intimidade. Muitas vezes não conhecem o nome do vizinho, mas isso não
exclui as obrigações de solidariedade. Uma das ameaças à vida na favela é o
mexerico, a calúnia, o diz-que-diz-que. É uma das causas freqüentes de brigas. Na
Barreira, d. T. P., dona de uma casa de prostituição, também é um foco permanente
de “fuxicos”, que criam mal-estar e brigas entre os vizinhos.
Os vizinhos brigam por mulher, ou pelo “homem”. Por barraco, por causa de
crianças. Eis uma cena típica, na Barreira, contada por d. E.: “Outro dia briguei com
uma vizinha por causa do filho de 17 anos. Ela se chama B. Tem uma cabrocha de
11 anos. Meu filho estava brincando em frente ao barraco, ia correndo e topou na
cabrocha. Esta deu no menino. Ele veio correndo para casa chorando. Fiquei
danada. Fui lá onde estava a negra. Dei-lhe uns conselhos, chamei de mal-educada,
falei das obrigações de mãe. Uns molecotes que estavam por perto foram dizer à B.
Ela chegou. Estava toda suja, rasgada, com a saia levantada de um lado. Estava
com o filho menor no braço. Veio toda se rebolando para o meu lado. Veio
acompanhada de uns molecotes e querendo brigar. Minhas vizinhas se jogaram
contra ela. Disseram que não tinha razão, que não era para ir na conversa dos
moleques. Ela disse muito nome feio. Eu já estava com o sangue na cabeça, mas os
vizinhos não deixaram que eu me agarrasse com ela. Me levaram para casa,
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dizendo que ela era sem educação, não dava educação aos filhos, era uma p.
Vendo que os vizinhos estavam contra, ela foi embora.
Às vezes, a atitude pré-delinqüente, a agressividade latente, a imitação das
reações adultas levam diretamente ao crime. É o caso da menor X., do Parque, que,
aos 9 anos, matou um velho. O velho estava sentado na porta de casa e ela disse-
lhe um gracejo. O velho zangou-se. Ela pegou um pedaço de pau com um prego na
ponta e bateu na cabeça do velho que morreu pouco depois.
O mais freqüente, porém, é surgir a conduta delinqüente nos grupos de
jovens. Os grupos de recreação ou de brinquedo tendem a transformar-se, dentro
das condições da favela, em grupos de delinqüentes, em quadrilhas, em gangs. Um
assistente da Fundação Leão XIII, convidado a classificar os grupos de adolescentes
que encontrara na Barreira, dividiu-os em três tipos:
1 – os grupos constituídos por moradores da favela com jovens de ruas ou
bairros próximos;
2 - os constituídos por jovens de famílias organizadas, mas que se
misturaram com maus elementos após o trabalho, em reuniões noturnas, e,
finalmente;
3 - os grupos de desocupados que tendem fortemente a se transformar em
grupos delinqüentes.
As atividades dos grupos “normais” se resumem em encontros noturnos, para
conversa ou jogos de azar, basquete de bolso, baralhos etc. ou pelejas esportivas.
Esses grupos de pré-delinqüentes ou para-delinqüentes obedecem a certa liderança.
Já vimos o papel do dono da bola, nos grupos infantis. Nos grupos juvenis, ainda
segundo o assistente Carlos Frederico Pinto da Silva, que os observou de perto e
tentou organizá-los em tarefas construtivas, o líder é o que mais se destaca pela
iniciativa, força física, proteção aos mais fracos, capacidade de direção. “No caso da
Barreira”, conta Pinto da Silva, “tive a oportunidade de observar um jovem que se
destacava dos demais pela sua atuação e pelas opiniões sobre este ou aquele ponto
que eu lançava. Era muito vivo. Trabalhava e estudava”. A condição para pertencer
ao grupo é “ser homem’. Nesses jovens, o assistente observou certa desconfiança e
submissão, certa passividade diante de estranhos que não excluía a coragem. Não
havia disputa da liderança, que surgia do convívio e não era contestada sem um
motivo superveniente. Cada um dos rapazes já tinha sua amásia e havia respeito
entre eles pelas companheiras uns dos outros.
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Esse tipo de grupos, aparentemente inocente e “normal”, pode transformar-
se, entretanto, ou melhor dissolver-se em grupos propriamente delinqüentes.
Passaremos a descrevê-los, naqueles característicos menos difíceis de apreensão,
que colhemos, via de regra, por informação indireta.
2 – Malandros, Grupos de Atividades
A delinqüência na favela se concentra em torno de um tipo social de
características nítidas e tradição firmada que é o malandro. Já produziu seus tipos
famosos, sua literatura e seu folclore. Está intimamente ligado à vida da favela e às
suas peculiaridades. É impossível imaginar esse tipo de delinqüente em outras
áreas urbanas e em outras camadas sociais, onde teria de adotar traços diferentes.
A malandragem, na favela, não é apenas uma atividade episódica, é também
uma carreira e, como tal, constitui para as crianças e adolescentes, uma opção, um
ideal de vida e um valor social.
É uma carreira com sua iniciação, suas gradações, seus títulos. A criança
começa a iniciar-se nos mistérios da malandragem prestando serviços aos
malandros, dando recados, vigiando as entradas da favela, escondendo armas,
munição, fazendo compras de alimentos, servindo de elemento de ligação entre os
malandros e os receptadores. Às vezes prestam serviços especiais: provocar um
inimigo do malandro para que se irrite e, ao ameaçar a criança, seja eliminado, a
título de defesa, pelo delinqüente. Os malandros tratam bem as crianças, oferecem-
lhes guaraná, mandam-nas comprar sanduíches e oferecem-lhes a metade; depois
passam a convidá-las para tomar cerveja e, por fim, dão-lhes maconha.
Uma das preocupações do malandro é trazer novos elementos para o grupo.
O bando está sempre precisando de gente. Morrem muitos e há sempre lugar para
novos membros. A iniciação se faz muito cedo. Cada malandro tem seu pequeno
séqüito de admiradores, serviçais, cúmplices e, às vezes, o pivete. D. F., da
Barreira, viu o malandro S. ensinando um menino de 10 anos a fumar maconha. É
uma das formas de iniciação no crime. Quando há jogo no Estádio do Vasco, os
malandros da Barreira instruem crianças de 8 a 10 anos a roubar peças de carros,
que enchem as redondezas.
Para o malandro a malandragem é que é a “vida certa”. Errado é ser honesto,
ter um trabalho, uma profissão, uma família, mulher e filhos. Quando alguém segue
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o caminho normal, chamam-no de “maricas”, “mulherzinha” etc., fazendo a coação
social pesar sobre o que o favelado mais preza, sua condição de homem, de macho.
Costumam convidar outros rapazes para participar dos roubos. Abordam-nos
com o pretexto de oferecer cigarros, puxam a conversa e acenam com os lucros.
Usam, às vezes, as companheiras para essa função e também para a de iscar os
incautos que são atraídos para lugares ermos e roubados e mortos.
O delinqüente adulto estimula a criança dizendo-lhe: “Você vai ser como F.,
um bamba da favela”. Ensinam-lhe a atirar, a jogar facas, utilizam-na como pivete.
As crianças assistem aos crimes e assaltos porque vivem a maior parte do tempo na
rua e só usam o barraco para dormir. Trabalham também em biroscas, em contacto
constante com os malandros. Nessa ordem singular, o menino da favela, estréia
como pivete para se tornar capanga e depois ingressar no bando. O revólver de pau
é cedo substituído pelo calibre 38, símbolo da maioridade.
Os mais famosos delinqüentes da Barreira, I., R. B., C., G., A., W. saíram
todos da quadrilha chefiada por L. G., homem feito.
Eis uma história de iniciação progressiva no crime. Um menor de 17 anos, na
Mangueira, começou atirando mamona nos transeuntes, do alto de uma barreira.
Passou, depois, a atirar pedras. A polícia prendeu-o, advertiu-o e soltou-o. Passou a
dar tiros de revólver do alto da barreira. A polícia persegui-o e foi recebida a bala. O
menor conseguiu fugir. Seu nome começou a sair nos jornais. Atuava sob o efeito da
maconha. Foi preso num matagal ao qual a polícia ateou fogo por diversos lados.
Preso, algemado, foi entregue ao SAM, saiu ao cabo de três anos. Alistou-se no
Exército e, trinta dias depois, cometia um roubo de armas. Seu nome: Lilico.
Em bandos ou isoladamente cometem os primeiros delitos. Roubam objetos
de carros estacionados. Pedem esmolas. Com esse dinheiro iniciam-se no jogo.
Aprendem a jogar com os malandros. Passam a ter dinheiro e a freqüentar a roda
dos delinqüentes da favela, por quem nutrem grande admiração. Quando chegam a
adolescentes, já conhecem o ofício. Já trabalham, irregularmente, para ajudar os
pais. Fazem biscates na feira. Sabem como fugir do rapa. Às vezes encontram-se
num emprego, satisfeitos, mas são despedidos pelo patrão. Ficam esperando a hora
de servir no Exército sem ter o que fazer. É o momento crítico.
Na espera, acabam desanimando, gostando da vida solta e fogem do serviço
militar. Passam o tempo no baralho, na ronda, fumando maconha, conquistando as
moças da favela. É fácil ter mais de uma mulher. Saem da casa de uma para outra.
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Elas brigam, disputando os amantes, eles não se incomodam. Se qualquer moça se
perde na favela, a notícia logo corre e os malandros dão em cima. Se qualquer
mulher fica sozinha, os malandros logo a cercam. É fácil obter armas, revólver,
calibre 38, ou mesmo 45, a navalha. Muitas vezes, nós os vimos, cuidando das
armas, ao ar livre, limpando-as, carregando-as.
É a fase em que se formam os grupos de delinqüentes, tão difíceis de
penetrar. Reúnem-se à noite, em certos lugares da favela. São 6, 8, às vezes até 11
indivíduos. De dia são pacíficos e bonzinhos, à noite perigosíssimos. T., por
exemplo, de 13 anos, chefe de uma quadrilha de menores no Jacarezinho, pertencia
a aulas de recreação e era ótimo aluno. De dia era bonzinho, de noite tornava-se um
perigoso assaltante. A idade varia entre 20 e 25, mas há sempre menores entre eles
e também há notícia de grupos constituídos unicamente por menores. Os adultos, ou
os maiores iniciam os menores. Já houve casos de se prenderem grupos com 7, 8
menores e apenas 2 maiores. A polícia numa batida encontra às vezes oito, dez
malandros jogando cartas. Prende-os. São todos menores. No outro dia, solta-os,
eles voltam a jogar no mesmo local. As crianças e mulheres servem de alcagoetes.
As mulheres funcionam também como auxiliares nos assaltos ou são exploradas no
meretrício.
Esses grupos possuem sempre um chefe ou mandão, que se destaca pelos
números de assaltos praticados, pela habilidade, pelo sangue frio. Nem sempre é o
mais forte, o mais audaz, o que menos teme a polícia e a justiça. O líder se impõe:
traça os planos. Os outros devem-lhe obediência. Prestam-lhe contas. Suas ordens
são acatadas. É ele quem reparte o produto do crime. Seu prestígio aumenta com a
covardia dos demais. O respeito ao chefe é uma decorrência da própria fraqueza.
Raro assaltarem isolados. Juntam-se aos grupos para perpetrar seus crimes.
Quando o chefe é preso, procuram substituí-lo com vantagem. A prisão do chefe
abre possibilidades a novas carreiras. Surgem novos astros que, às vezes,
constituem revelações para seus antigos vizinhos e conhecidos: “Ora, quem diria! O
J. C. sempre quietinho, está o maior!” Não é certo que todo o bando possua um
lugar-tenente definido, mas existe sempre um substituto potencial para o chefe, que
o substitui numa emergência ou quando vai preso. O segundo procura sempre
suplantar o chefe com audácia ou crueldade. Às vezes surgem conflitos quando o
chefe retorna. Quando fazem um assalto, somem. Se alguém do grupo é preso, os
outros desaparecem. Têm medo que o companheiro os denuncie. É uma época de
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tensão na favela, porque ninguém sabe o que vai acontecer. Dormem durante a
manhã, aparem à tarde, reúnem-se em certos lugares para jogar futebol, baralho ou
fumar maconha. À noite praticam seus crimes.
Na Barreira, os malandros não têm ponto certo para se reunirem. Planejam os
assaltos, em qualquer lugar, nas áreas onde costumam ficar. Esses pontos não são
escondidos. Os moradores passam e os vêem, mas não se aproximam e não sabem
o que conversam. “A tática deles é essa, explica um informante, porque, a qualquer
hora podem ver a chegada da polícia e o campo está livre para fugirem. Se ficassem
trancados numa casa, podiam ser apanhados de surpresa”. Costumam ficar à
vontade nos becos, nas biroscas, ao lado e atrás da Fundação. A qualquer aviso,
correm. A polícia nunca pode apanhá-los, a menos que os surpreendam em
flagrante cometendo um roubo ou atacando uma moça.
Não procuram vestir-se bem, nem ostentam riquezas. Usam blusão, chinelos,
calça coringa, óculos escuros. Geralmente, gostam de exibir um anel, relógio com
cordão de ouro com uma figa grande, um dente ou um crucifixo. O chefe anda tão
mal vestido como os outros. Se prendem o grupo, é difícil identificá-lo. Não se
revela, nem os outros denunciam. Os assaltos não o enriquecem, nem os levam a
abandonar a carreira. Acabam presos ou mortos, pela polícia ou pelos próprios
companheiros, numa rixa, por causa de mulher ou partilha do roubo. Dos malandros
famosos na Barreira, C. morreu aos 16 anos, J., com 17, W. e R. B., com 16, todos
assassinados por companheiros. Motivo: partilha ou mulher. Quem enriquece
mesmo, são os que exploram jogo, maconha ou mulheres.
Os malandros mais perigosos foram mortos por elementos do próprio grupo.
O malandro A., estava certo dia, na Barreira, em frente ao posto da Fundação,
discutindo baixinho com outro elemento do bando que dizia: “Quero minha parte,
quero minha parte, se você não me der, eu o mato”. No outro dia, A. apareceu
estirado com um tiro no coração. Era muito ágil e a polícia jamais conseguiu pegá-lo.
J., do grupo do P. de P., da Barreira, foi morto estupidamente por companheiros. Era
arruaceiro, ladrão, gostava de fazer despesas para que os outros pagassem. Certa
ocasião, no morro do Tuiuti, pediu o dinheiro de alguns companheiros que jogavam
baralho. Após tomar o dinheiro, deu um pontapé nas cartas. Um dos parceiros sacou
da navalha, outro do revólver e deram cabo dele.
Esses grupos não agem sempre nos mesmos locais, mas seu ponto de
reunião é sempre na favela. Assaltam nas primeiras horas da madrugada, quando
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as pessoas estão voltando de cinemas, bailes ou aniversários. Nos sábados,
domingos e feriados, a incidência de crimes aumenta. Fazem o “serviço”
individualmente ou em grupos, mas o produto do roubo é sempre repartido.
Reconhecem logo um estranho e o depenam. O produto do roubo é entregue ao
intrujão. O grupo tem sempre um encarregado ou intermediário que leva ao intrujão
o produto do roubo. É ele quem empresta também dinheiro aos delinqüentes. É tido
por eles como um amigo. As lojas dos intrujões espalham-se pela Praça 11, São
Cristóvão e Pavuna. “Enquanto houver intrujões, declara-nos o Guarda J., haverá
ladrões”.
Os “serviços” são de vários tipos. Às vezes, não passam de simples vigarice.
Há poucos meses, uma turma de malandros, disfarçados em guardas e
investigadores apresentaram-se na Barreira com uma lista, angariando donativos.
Diziam que era para melhorar as instalações da Policlínica. P., um cabo eleitoral da
favela, telefonou para a Policlínica e verificando que se tratava de vigarice, chamou
a polícia. Os malandros foram avisados e fugiram. Foram presos no Jacarezinho,
com muito dinheiro. Mas, geralmente, a atividade é mais grave. Assaltam biroscas,
destelham barracos e entram pelo telhado para roubar. No Carnaval, o malandro B.
organiza, todo ano, um bloco, cujo fim é roubar. Ele é o único adulto, os outros
elementos são adolescentes, moças e rapazes. Reúne-se e dá-lhes instruções.
Fazem um cordão de isolamento e, na cidade, convidam outros foliões a entrar no
bloco. Quando saem estão de bolsos vazios.
Depois do “serviço”, afastam-se do lugar do assalto e vão-se reunir em outra
favela. Procuram a parte alta do morro, a menos habitada, onde se escondem
melhor e vêem a polícia chegar. Comemoram o sucesso com farras, bebedeiras,
onde esbanjam o dinheiro do roubo e às vezes são presos. “O dinheiro que entra sai
logo. Quando roubam jóias, não apuram um terço do valor. Quando são presos, já
gastaram todo o dinheiro. Só enriquecem os intrujões e contraventores, os
assaltantes, nunca”.
Costumam converter o produto do roubo em dinheiro e dividi-lo em partes
iguais, quaisquer que sejam as tarefas. “Muitas vezes”, depõe uma informante dos
Telégrafos, “assistimos à divisão do roubo. Faziam-na atrás da Escola. Eram
canetas, anéis, dinheiro que passava de mão em mão, enquanto cada um contava
como tinha realizado o assalto. Os mínimos detalhes eram lembrados: “Ele me pediu
para não matar, chorava de mãos postas, titubiei um pouco, mas depois, matei”. As
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discussões por causa da divisão ou por causa da maconha que fumavam acabavam
sempre em briga”.
A distribuição esgota rapidamente o produto do roubo. É preciso logo
recomeçar. Quando L. ainda vivia solto na Barreira, um dos companheiros foi preso.
L. desencadeou, então, uma onda de assaltos, a fim de arranjar dinheiro para pagar
um advogado e retirar o colega da prisão.
A partilha acaba, muitas vezes, em sangue. P., da Barreira, brigou com dois
irmãos. Para vingar-se, mais tarde, anavalhou os dois. Conhecem-se pela fama,
porque vivem fazendo comentários constantes sobre suas atividades. Não têm
palavra, mas temem-se mutuamente. Cumprem o prometido, mais por temor do que
por ponto de honra.
Quando um malandro de fama chega à favela, a notícia corre, todos
comentam e ficam aguardando seus feitos. As crianças, mais que os adultos.
“Homem é aquele”. Porque, explica-nos um morador, para as crianças, ser homem é
ser como os malandros”.
Dentro do bando, as tarefas são dividias entre os mais fortes e os mais
fracos. Estes ficam reservados para as posições e iniciativas menos perigosas. Os
mais fracos e covardes, se fossem presos, delatariam. Por isso, os que “agem” são
os mais audaciosos, nos quais o bando deposita mais confiança. Os assaltos, tanto
dentro como fora da favela, são cometidos individualmente ou em grupo, de acordo
com a oportunidade. Em geral, ocorrem à noite e poucas vezes durante o dia,
dependendo, no entanto, a hora da oportunidade, da intensidade do policiamento, da
presença de um incauto etc. Às vezes, há discrepância entre bandos quanto ao local
dos assaltos. Na Mangueira, por exemplo, atuam dois bandos: o dos Telégrafos e da
Candelária. Este acha que os assaltos só devem ser praticados fora da favela com
os “ricos”. O grupo dos Telégrafos assaltou, em dada época, um caminhão do Gás-
brás e lançou a culpa sobre o bando da Candelária. Daí seguiu-se um atrito e um
tiroteio entre membros de cada bando. O bando dos Telégrafos perdeu um homem e
retirou-se do morro. O bando da Candelária chega a proteger os favelados contra
assaltantes estranhos ou moradores da própria favela, mas que não respeitam a “lei”
do bando.
É difícil ser alguém do grupo. Quando isso acontece, tem de sair também do
local e desaparecer. Passa a saber demais. Nos Telégrafos, o malandro B. matou
um companheiro dentro do posto da Fundação porque se regenerara.
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Se o malandro tiver coragem sai do grupo. Mas para poder continuar vivo,
tem de sair da favela para um lugar onde seja inteiramente desconhecido. Quando
diz que quer sair, ou os companheiros vêm a saber, dão-lhe surras, castigam-no e
ameaçam-no de morte. Na Barreira, um rapaz de 18 anos foi assassinado por causa
disso. Outro que fugiu foi apanhado e surrado. Outro foi furado de faca e voltou para
o grupo. “Eles só têm um regulamento”, diz o informante H., “aquele que for desleal,
se não fugir, é morto”.
Em regra, o malandro não tem favela fixa. Não se pode dizer que pertença a
esta ou aquela. Saem do Esqueleto, vão para a Mangueira, depois para a Barreira
ou Lacraia. C. S., malandro que chefiava uma quadrilha nos Telégrafos, não morava
ali, mas no Bairro do Vintém, entre Padre Miguel e Realengo. No entanto, vivia nos
Telégrafos durante o dia e sua turma era também toda de fora da favela.
O delinqüente tem seus “chapas”, suas ligações, dentro e fora da favela.
Entre esses elementos, estão muitas vezes os birosqueiros. Os malandros
costumam impor aos birosqueiros a venda do que desejam. Nos Telégrafos, o sr. A.
tem muito medo, serve o que quiserem sem exigir pagamento. Já sr. T., dono de um
grande armazém, é amigo deles, mas não lhes dá muita confiança. Quando conhece
o malandro, deixa que pague mais tarde. Normalmente, quando compram, não
gostam de pagar. Já houve um o caso com birosqueiro B., que reagiu, puxou
revólver para o malandro. Este estava sozinho, não era elemento de importância e
não aceitou o desfio.
A situação varia um pouco de favela para favela. Da hostilidade ou
indiferença, o birosqueiro ou botequineiro pode passar à complacência, à amizade
até à aliança declarada com os malandros. Muitas vezes, a birosca é o ponto de
reunião habitual dos malandros, dos maus elementos. Na Rocinha, as biroscas são
obrigadas a fechar às 20 horas, para que não vendam muita cachaça. Há uma
proibição de vender cachaça, mas os guardas têm de fazer vista grossa, porque
“vendem mesmo com ou sem proibição”. Toleram, então, para que haja abuso. No
Ferreirão, na Rocinha, na birosca de d. E. vendem-se cachaça, joga-se com a
tolerância das autoridades. É um ponto de encontro e reunião de marginais.
Na Barreira, há alguns anos, os malandros tentaram exigir dinheiro dos donos
das biroscas. Os menos avisados se acomodaram e passaram a contribuir. Outros
resolveram reagir, porque verificaram o perigo do precedente. Houve uma reunião
de todos os birosqueiros, na qual ficou deliberado que apelariam para os guardas
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para um policiamento rigoroso, não dariam dinheiro a malandro, resistiriam às suas
ameaças. Assim, puseram fim às exigências dos delinqüentes.
No Jacarezinho os malandros atacavam os comerciantes. Mas havia
birosqueiros que tinham malandros para os defender. Na Mangueira, um negociante,
proprietário de uma grande birosca, dormia com a casa aberta e a mercadoria do
lado de fora. As paredes tinham caído. Apesar disso, nada sofria. Muitos moradores
fazem-se amigos dos moradores para obter proteção. A estes nada acontece. Sr. de
J., por exemplo, protegia as famílias locais. Se via uma criança rindo de um velho,
castigava-a, dava-lhe lições de respeito. Não gostava de injustiças, ajudava muitas
famílias pobres. O mesmo acontecia a B. J., morto pela polícia, e cujo velório foi
concorridíssimo.
Mas às vezes, os assaltos se repetem a qualquer hora do dia. No
Jacarezinho, houve época em que os malandros agiam à luz do dia. Às 3h30 da
noite havia assaltos. Às 3h da tarde, invadiram uma birosca e levaram todo o
dinheiro. Vários negociantes se coligaram, fizeram uma lista e instalaram guarda-
noturno. Quem pudesse pagar, pagava. Mantiveram também um policiamento
diurno.
As atitudes perante os moradores são muito diversas das que inspiram
pessoas de fora. Se o grupo de Mauro Guerra na Mangueira assaltava os próprios
moradores, o da Candelária não o faria. Uma das causas da dissidência entre esses
grupos foi exatamente esse fato. Mauro Guerra assaltava os próprios favelados,
moças e senhoras. Em geral, o malandro respeita o morador. E quando sabe que há
malandro de fora agindo na favela, perseguem-no e matam-no ou expulsam. Os
malandros do morro do Tuiuti não pode entrar nos Telégrafos.
A atitude dos favelados ante malandros é curiosa. De um modo geral, parece
que os malandros nunca atuam na favela onde moram, onde têm seus parentes e
amigos, onde vêm esconder-se quando procurados pela polícia. Os malandros do
Parque residem, em geral, com suas famílias. Não costumam mexer com os
moradores, mas roubam e atacam mulheres. De qualquer forma, porém, moradores
ou não brigam, lutam com concorrentes ou desafetos, roubam para comer e atacam
moças e mulheres indefesas. No Parque, presenciamos tiroteio entre os malandros
M. e S. que se desavieram no jogo de cartas. S. estava armado de revólver e
disparou sem atingir ninguém. São mocinhos que não trabalham. S. vive com um
menino de 12 anos que desencaminhou. Os assaltos continuam a se perpetrar com
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grande intensidade, repetem-se as violências sexuais, mas os moradores insistem
em afirmar que os malandros locais são inofensivos e que as desordens são
cometidas por malandros de outras favelas. “Agora a coisa melhorou. Fazem as
mesmas coisas, mas em outros lugares. Não mexem com os moradores. Às vezes
os malandros de outras favelas vêm fazer bagunça aqui. Como a polícia não os
identifica diz o jornal que foram os da Barreira. Mas estes, quase sempre, respeitam
os moradores. Há sempre alguns que têm índole mais ruim, roubam, assaltam e
matam os próprios moradores”. Essas declarações contraditórias de um morador da
Barreira refletem a atitude ambivalente do favelado em relação ao malandro. Ora
dizem que “o ambiente é muito ruim”, ora que está “muito melhor”. Dizem que a
favela é calma e logo a seguir contam histórias tenebrosas. Estamos tipicamente
ante reações de defesa, mesmo porque a polícia é tão temida, sob certos aspectos,
quanto os malandros.
A situação do favelado é realmente desesperadora. Ele está praticamente nas
mãos do delinqüente. “Não podemos fazer nada, porque temos que continuar
morando na favela. Os recursos que temos não nos permitem morar em outro local”.
A convivência com o malandro é constante, o contacto com a lei episódica. Há
relações até cordiais com os malandros, companheiros de brinquedo, colegas de
infância e de escola de muitos moradores. “No São João, diz uma moradora da
Barreira, os malandros fazem balões muito bonitos. São os que fazem os mais
bonitos. O povo gosta de ver quando eles vão soltar os balões”.
Por outro lado, as batidas policiais indiscriminadas, podem envolver
inocentes, comprometê-los, tirar-lhes o emprego, prejudicá-los economicamente.
“Quando a polícia resolve dar batida, informa d. A., do Parque, pega só quem não
deve. Ontem mesmo levaram um senhor direito, nosso vizinho, que tinha saído sem
a carteira. Os malandros, esses, se escondem no morro e de lá ficam gozando a
polícia. Parece até que eles são avisados da batida”.
Geralmente, as batidas ficam nas tendinhas, nos locais de mais fácil acesso,
até onde o carro chega. Nas biroscas, prendem quem estiver armando. Para prender
M. D., o investigador P. passou três dias na favela, como se fosse morador.
Prendeu-o bebendo em uma tendinha. “Sempre que querem prender alguém”, diz
um morador, “eles vêm à paisana”. É o reconhecimento tácito de exterritorialidade
do favelado e da fragilidade das coações legais nesse labirinto de becos e velas.
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Ninguém quer servir, por isso, de testemunha ou delator. Há uma
solidariedade, feita de medo e coação, entre os malandros e os moradores. Na
Barreira, alguns rapazes estavam jogando futebol no campo da rua Alegria. Tinham
tirado as roupas e estavam de calção. Uma das pessoas que observavam o jogo viu
aproximar-se um grupo de malandros. Deu o alarma para que apanhassem seus
objetos e fugissem. Um dos malandros, E., para assustá-los, deu um tiro que atingiu
um dos do grupo. O fato causou alarma nos próprios malandros que apanharam o
ferido e o levam imediatamente à Fundação, a fim de providenciar assistência
médica até que chegasse a ambulância. O ferido não queria ir para o Pronto Socorro
para não ter que prestar esclarecimentos, mas como o tiro atingira lugar delicado
teve que ir. Quando a ambulância chegou já tinham inventado uma história. Estavam
limpando a arma e o tiro saiu sem querer. Ninguém tinha visto nada. Depois que a
ambulância saiu, o chefe que era o famoso I. mandou que E. fosse castigado por ter
errado o tiro. Mandou que o picassem todo de faca. O rapaz passou muito mal, ficou
todo inchado e a família teve que tratá-lo em casa. Não podiam chamar médico com
medo de que a notícia chegasse a polícia e fossem castigados pelos malandros.
Quando os malandros são soltos, vêm vingar-se e matam o informante. Quando
inquirido pela polícia, o favelado diz invariavelmente: “Não conheço não”. Pode até
ser seu filho. Quando se pergunta alguma coisa sobre um delinqüente, respondem:
“Está bem melhor”. Essa solidariedade se reforça quando se trata de algum parente
ou amigo, o que é muito comum.
Com pessoas de fora, não faveladas, que exercem qualquer profissão na
favela, a atitude, em geral, é amistosa, ou pelo menos de respeito distante. Com os
funcionários da Fundação Leão XIII, por exemplo, a atitude é de respeito. Anos
atrás, no Salgueiro, os funcionários marcavam hora para subir todos juntos. Vários
malandros moravam perto da Fundação. Nos Telégrafos, a Fundação teve de
suspender dois anos o trabalho de visitação, porque passaram a ameaçar as
visitadoras. “A situação não está boa. É bom não continuar”. “Até então”, conta-nos
uma funcionaria, “éramos respeitadas”. Só tínhamos de cumprimentá-los e tratá-los
como pessoas de vida normal. Uma colega que tinha muito medo deles foi obrigada
a sair do serviço porque não os tratava bem e passou a ser maltratada e ameaçada.
D. X., antiga visitadora da Fundação, passava às 20 horas pela favela da Barreira do
Vasco quando viu dois malandros prostrados no caminho, mais atrás um sozinho e
dois bem no fundo da rua. Resolveu passar “senão eles pensavam que estávamos
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com medo”. Quando ia passando, sua filha disse que um dos malandros tinha
mexido nela. Foi quando um deles disse: “É d. X. deixa passar”. No dia seguinte
soube que, no mesmo local, tinham assaltado uma moça e um deles fora preso.
“Provavelmente, no grupo havia alguém que tinha sido meu aluno”, concluiu d. X.
Uma visitadora do Jacarezinho conta fato idêntico. “Eles sempre nos
respeitam”. Uma vez tive que ir a um lugar perigoso da favela a fim de preencher
algumas fichas. Fui até o barraco e bati na porta. Disse quem era perguntei: “Qual a
sua profissão?”. A resposta foi: “A senhora está vendo”. Estavam todos no chão,
fumando e descansando.
Para o sr. J. da Barreira, por exemplo, é arriscado fornecer informações sobre
os malandros que conhece bem porque é pobre e não deseja mudar-se da favela.
“Se vierem a saber poderão liquidar-me”. Todos os informantes, mesmo sujeito
aqueles que, por sua posição num serviço ou numa entidade exterior à favela,
deveriam estar a salvo desse receio, olham em torno antes de falar, vão até a porta
e só arriscam algumas observações depois de se certificarem de que estão
sozinhos. “Quando pedimos a d. E. para que nos mostrasse quem era o X., conta
um pesquisador, ela baixou a voz e pediu-nos que com todo o cuidado, olhássemos
para a rua. X. estava sentado com dois companheiros no batente da Escola de
Artesanato da Fundação. D.E. pediu-nos que não olhássemos mais, pois podíamos
chamar a atenção. São todos grupo do T., todos viciados e perigosos”. Se isto
ocorre com funcionarias e profissionais liberais, não é de se espantar que aconteça
a humildes moradores da favela, submetidos constantemente à essa atmosfera de
coação e pavor. A insegurança é permanente. O sr. J. modesto artífice, explica-nos
que não sai de casa, não por falta de dinheiro, mas porque teme deixar a casa
sozinha. Sua loja fica próxima à uma birosca que vive cheia de desocupados.
Para muitos moradores a situação é de permanente pavor. “Vivia apavorada,
conta d. M. M., da Barreira, receava sempre que um malandro entrasse em minha
casa para se aproveitar de mim. É comum acontecer isso. Quando ia deitar-me,
colocava nas portas cadeiras, panelas, bacias, para fazer barulho caso alguém
forçasse a porta. Só não me mudava de lugar porque não tinha aonde ir, não tinha
recursos para alugar um barraco melhor”.
O receio é tão grande que muitas vezes se comunica o crime à polícia, ainda
que presenciado por muitas pessoas à luz do dia. “Há mais de um ano vi M. e outro
malandro assaltando em pleno dia a casa de um morador, que tinha ido à cidade.
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Um dos malandros ficou na esquina, enquanto o outro arrombava o teto do barraco
e entrava. Roubaram jóias. Nós vimos tudo, mas não tivemos coragem de avisar.
Mais tarde, minha vizinha avisou em segredo ao morador, mas ele teve receio de
comunicar o fato à polícia. As jóias foram para o meretrício”.
Esse receio aparece estranhamente ligado à convivência diurna com os
malandros. Os moradores os conhecem, aponta-nos, conversam com eles como
fariam qualquer vizinho. Da loja do sr. J., da Barreira, víamos um perigoso
delinqüente, o S., de perto de 17 anos, que já tem movimentada folha corrida:
assaltos, maconha, delitos sexuais. Os moradores denunciam às vezes o malandro
que não são da favela. O de dentro jamais. Se “cagoetar” (denunciar) vai ter”.
As histórias de malandros que recolhemos confirmam essas informações e
observações gerais. Impressionam, muitas vezes, o fato de pertencerem à famílias
organizadas. É o caso de E., dos Telégrafos, cujo irmão também é malandro. A mãe
é viúva, muito religiosa, ajuda a Fundação. Os outros filhos são casados. Ela não
toca no assunto, tem muito medo do filho. Quando sabe de qualquer coisa, chora
muito. O famoso Mauro Guerra nasceu na boa família Minas. Foi aluno da Escola da
Fundação, mas andou sempre com maus elementos. Anda na malandragem desde
os 17 anos. Chefiou um grupo dos Telégrafos que chegou a ter 30 elementos.
Matou, de uma feita, dois comparsas porque denunciaram seu grupo. Tinha várias
mulheres e muitos filhos. M., o irmão do L., é muito desconfiado. Ninguém pode
olhar para ele. Elemento perigoso, já roubou armas do Exército. P. ficava sempre na
porta do Posto da Fundação, nos Telégrafos. Tinha 18 anos. Servia de isca. Quando
a polícia chegava, avisava os outros. B., do Jacarezinho, era o filho de uma operária.
O menino vivia solto. Não vinha à escola. Vivia preso. X. também é do Jacarezinho,
de 14 anos, fugia muito de casa. Os pais devam-lhe surras tremendas, mas não
adiantava. Mandaram-no para o interior, no Estado do Rio, para a casa de um
parente. Foi quando melhorou. No Jacarezinho atuou: a quadrilha de menores de 12
a 16 anos, chefiada por R. Assaltavam e matavam. As moças se empregavam em
casas de família e depois de um certo tempo davam o “serviço” aos malandros.
Certa vez, uma das moças foi assediada por um trocador de ônibus. Um dos
elementos do grupo matou-o. L., da Barreira, nasceu de família numerosa. O pai
morreu atropelado, a mãe ficou cuidando dos 8 filhos. Desde pequeno gostava de
imitar os filmes de mocinho. Foi aluno da Escola da Fundação. Depois da primeira
prisão, tentou se empregar. Não conseguia emprego. Pedia aos conhecidos que
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esquecessem seu apelido, que o tratasse pelo nome, como no SAM, onde passou
três anos. Mas não conseguia. Ficou aguardando a convocação para o serviço
militar. Os outros começaram a chamá-lo de “mulherzinha”. Não resistiu e votou à
vida do crime, acabando novamente preso. No entanto, dos seus irmãos, só um é
criminoso. Os demais são honestos e trabalhadores.
A história de L. é bastante expressiva porque revela como é difícil ao jovem
delinqüente desprender-se das ligações que o retêm ao mundo do crime, a começar
pelo apelido. A coação do grupo delinqüente se faz pelo remoque e pela força.
Nessas condições sem o amparo do mundo normal, do mundo exterior à favela. O
malandro precisaria de auxílios sobrenaturais para liberar-se das poderosas
influências do meio ambiente.
Há malandros que já revelam suas tendências muito cedo. Conseguimos, em
certos casos, colher informações sobre a vida escolar de alguns delinqüentes. A. e
J., por exemplo, freqüentaram com 9 e 8 anos – hoje têm 16 e 15. O primeiro era
viciado, tinha atitudes indecorosas, dizia imoralidades, puxava as meninas por baixo
das carteiras para encostar nelas. Algumas se mantinham caladas, outras choravam
e contavam à professora. Hoje, a tendência desse malandro, é atacar mulheres.
Havia épocas, lembra a professora, em que davam para furtar objetos: canetas,
dinheiro, material escolar. Eram rápidos na ação e, quando revistados, não se
encontrava mais nada. “Achavam natural tirar coisas noção da propriedade alheia”.
J. S. atualmente tem 13 anos. Abandonou a escola e já foi preso várias vezes por
furto. Quando ainda na escola, cometeu um roubo. Ausentou-se das aulas muito
tempo, mas quando saiu da prisão voltou à escola com toda naturalidade. A., de 15
anos, raspou a cabeça em certa época e começou a ser chamado de “careca” pelos
colegas. Terminou a brincadeira a murros. Já foi preso por roubo. Na aula
costumava furtar lápis, borracha, dinheiro dos colegas: “Achava isso natural, dizia
que estava dando sopa”. M. F., aos 8 anos, já cursava a Escola, onde demonstrava
más tendências. Era agressivo e covarde, só atacando os de menos idade. Fugia
quando um maior o atacava. Fazia desordens na sala de aula, jogava lápis nos
outros, chutava objetos.
Já a história de Lilico é muito diversa, é a de uma verdadeira “conversão” de
um introverso mal compreendido ao mundo do crime. “Quando pequeno era um
bobo, muito calado, conta-nos um companheiro de escola. Era um menino igual aos
outros. “Sua professora nos informou que foi ele um dos poucos alunos de
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comportamento normal na escola. Cursou até o 3º primário. Vivia sempre limpo, bem
arrumado, cumpria os deveres escolares, era assíduo. Falava pouco, reservado,
gostava de ficar só. Tinha bom comportamento. Era filho de uma família numerosa.
Dois dos seus irmãos trabalhavam numa organização assistencial, as duas irmãs,
casadas, só um irmão deu também para a malandragem. A família é considerada
muito distinta. O pai, operário, morreu imprensado entre dois trens. A mãe vive em
casa trabalhando. Ambos sofriam muito pela vida desregrada do filho.
“No entanto, diz d.N., sua ex-professora, talvez tivessem culpa na carreira do
menino. Batiam muito, castigavam, mas sem jeito. Ele tinha nesse tempo 12 para 13
anos (hoje tem uns 26). O menino deu para roubar, passava noites fora de casa. Os
pais, vendo que não podiam dar jeito, botaram-no para fora de casa”. A expulsão
parece que teve exatamente o efeito de consolidar os laços que prendiam I. ao
grupo de malandros. Julgando-se sozinho, procurou-se mais vezes, encontrou nesse
grupo o natural amparo e proteção. Foi morar com eles num barraco. Entrou para o
Exército, mas aí descobriram que roubava armas e as vendia. Fugiu do Exército e
passou muitos anos foragido. Sua prisão foi espetacular, pois L., armado com uma
metralhadora não deixava a polícia aproximar-se. Era muito desconfiado. Ninguém
podia olhá-lo muito tempo. “Diz logo o que quer ou lhe dou um tiro no pé”.
As influências do meio são invencíveis quando se concentram e transmitem
na própria família. É o caso de C. e M., malandros da Barreira, atualmente presos
por roubo. Em sua família todos são ladrões. S. é doente mental. Ele e seu irmão M.
viviam, desde meninos, na malandragem, roubavam e voltaram para casa de
madrugada. Tinham amantes, que surravam. Em sua casa, havia sessões de
macumba. Há noites em que vizinhos não dormem com a gritaria. É d.V., mãe de M.
e C., lavadeira, que está recebendo o “Santo”. Em certa época, ela teve de internar-
se num hospital e os filhos passaram a alugar as camas, por hora, a outros
malandros e seus amantes. M. começou também a expulsar mulheres. À noite,
faziam farras ou distribuíam o dinheiro e objetos roubados. Tinham um colega que
guardava os objetos. A polícia, certa vez, apanhou-se antes que tivessem vendido o
produto de roubo. Prendeu-os. Soltos, voltaram à mesma vida. C. de uma feita,
roubou jóias de uma senhora que o viu, mas não teve coragem de denunciá-los à
polícia. Um parente de C., foragido da Ilha Grande, delinqüente perigoso, passou
alguns dias na favela. Depois desapareceu e, segundo soube, teria ido para São
Paulo.
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Muitas vezes, o individuo é arrastado à delinqüência por todo o peso da
família A., de 9 anos, da Barreira, lidera um grupo de meninas delinqüentes. O pai
está preso por furtar uma bicicleta. Seu irmão é também, aparece associado a
grupos delinqüentes. Quando o pai se achava foragido, foi visto que lhe gritou: “Pai
nome está falado, teu couro está tratado” – Isto é “os tiras têm o seu nome, a
borracha te espera”.
A filha do malandro S. foi escolhida por d. R., professora que teve pena da
menina. Imediatamente, esta roubou-lhe da bolsa Cr$ 1.000,00, dizendo que os
tinha achado na rua. A menina voltou para a casa da mãe, que não se importou. O
pai , S., está preso por roubo.
A cadeia do crime na favela assume gravidade porque seus elos não são os
indivíduos. A delinqüência não se transmite de indivíduo a indivíduo, mas se
propaga pela família desorganizada ou desinteressada com a complacência
conivência ou tolerância da vizinhança, seu meio próprio da cultura. J.C., assassino
e ladrão, autor do assassínio da mulher com a cumplicidade da amante, foragido da
polícia, têm diversas mulheres e vários filhos. Um deles, P., tem 14 anos, não
trabalha, não estuda e diz que recebe o “Santo”. Dizem que, além disso, é invertido.
Passa o dia inteiro vadiando, só volta em casa altas horas da noite. Fuma maconha
e já foi visto desencaminhando menores no barraco. Como sempre, os vizinhos
sabem de tudo, mas não informam à polícia.
Às vezes, além das relações de vizinhança, laços de parentesco unem os
delinqüentes e reforçam a cadeia do crime. Há dinastias e famílias do crime. J.,
malandro perigoso do morro do Tuiuti, tinha dois irmãos, um vagabundo arruaceiro e
outro mais calmo. Bêbedo contumaz. J. V., assassinado no Buraco da Lacraia, era
sobrinho de B., elemento perigosíssimo. A carreira de L. V. é bastante característica:
“Desde pequeno, conta um informante, não queria nada com a vida. Foi internado
num colégio, mas a instituição não pôde mantê-lo. Era muito danado. Vivia
perambulando pela favela. Era malcriado, batia nos colegas, fumava, bebia, jogava.
Era também pervertido. Convocado, foi servir o Exército. Todos pensavam que ela ia
tomar jeito. Quando saiu, não queria nada com o trabalho. Chegava em casa
embriagado, batia no pai, roubava. Seus pais botaram as mãos para o céu – quando
souberam de sua morte”. J. V. tem um irmão que vai pelo mesmo caminho, como a
irmã que já anda pelos cantos com meninos”.
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A família de M., outro malandro perigoso da Barreira, é toda de delinqüentes.
M. tem todos os vícios: fuma, bebe, joga, rouba, assalta etc. Todos os vizinhos o
temem. “Quando a mãe caiu doente, de câncer, poucas pessoas iam visitá-la. Iam,
mas se demoravam pouco. No velório foi a mesma coisa. Os vizinhos iam lá,
passavam um bocadinho de tempo, mas procuravam logo ir embora. Falavam com a
família, mas não queriam conversa”. Toda família é viciada em maconha. Vivem com
as portas do barraco trancadas.
M. é prima de L., outro malandro, T., tem dois irmãos, D., é irmão de L. E. P.,
o terror da Barreira, não tinha quem prestasse na família. Eram todos desregrados.
As cinco irmãs são vagabundas. O pai é preto, a mãe de origem italiana, dava
escândalos na rua, não respeitava ninguém. Não faziam nada. Viviam às custas dos
roubos do filho, que, além de ladrão, era assassino. Os três irmãos vão pelo mesmo
caminho, S. juntou-se a uma mulher que o deixou para fugir aos espancamentos e
foi morrer assassinada, em Campo Grande. S. é ladrão e malandro, o segundo, “age
por fora” e G., o terceiro, ainda é pequeno. As irmãs vivem trocando de homem. Só
uma não tem ainda par fixo, mas vive no meio dos malandros, bebendo e fumando.
Durante o dia dormiam: à noite o barraco se transformava em casa de
meretrício. Tocavam violão, ouviam rádio, comentavam desordens que tinham feito,
bebiam e fumavam maconha. Quando fazia muito calor, tinham relações no quintal,
irmãos e irmãs com os respectivos companheiros. Os vizinhos que não quisessem
ver, tinham de trancar-se em suas casas.
Há malandros que mantêm ligações com políticos. A natureza exata dessas
relações não é bem conhecida. É mais fácil identificar a natureza do serviço que o
político presta ao malandro do que vice-versa. O vereador A. da F. pagou certa vez
a fiança a um famoso delinqüente da Barreira, L. Isso causou indignação a muitos
favelados, porque um dos crimes de que o acusavam era ter tocado fogo numa
criança. L. da Barreira, perigoso, negociante de maconha, é funcionária da Prefeitura
e tem conseguido livrar-se da polícia graças a seu pai que é cabo eleitoral do
vereador G. M. Os filhos de J. da C., também da Barreira, elementos perigosos,
presos todos os meses, acusados também de negociar com maconhas, estão
procurando emprego através do mesmo vereador.
Entre as atividades preferidas do malandro está o fumo de maconha. Nas
favelas, a maconha não é mais um vício, é um hábito tolerado. Os moradores
passam junto aos fumantes, fingem que não vêem. “A maconha aqui é muito mais
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usada e já é natural”, diz-nos um rapaz de 17 anos, na Barreira. Fuma-se a erva em
pleno dia. Conhecem-se os fumantes e traficantes. Os moradores declaram,
unanimemente, não saber se processam as transações. Têm medo de informar. “Os
maiores negociantes da erva, diz um morador, não se encontram na favela. Estão na
alta sociedade”. A erva, de fato, é produto caro. Os malandros nunca dispõem de
grades quantias para estocá-la. Fumam cigarros em troca de objetos roubados, de
pequenas quantias. Os informantes foram unânimes em asseverar que os
malandros não negociam com a erva. Os moradores da favela são mais
consumidores do que vendedores. Há quem cite a frase de um traficante: “ Maconha
é pra cavalo”.
O fumo da erva parece dar uma sensação inebriante. Os fumantes sentem
prazer, ficam semi-embriagados. O abuso da erva pode produzir paroxismos,
estados próximos à loucura, em que é preciso muita força para dominar o fumante.
Às vezes acrescentam álcool para aumentar seu poder inebriante. O preço é bem
caro. Os vendedores procuram aumentar a freguesia iniciando crianças e
adolescentes. Oferecem cigarros de graça. O cigarro tem o aspecto igual aos
comuns e é colocado num maço ou carteira junto com outros. O iniciado passa a
procurar o vendedor que se oculta. Como o cigarro é caro, corre de mão em mão.
Parece que o uso da maconha tem dupla finalidade, o gozo direto da erva e como
substituinte do álcool, como estimulador ou encorajador em certos momentos.
Um adolescente nos disse: “Sou a criatura mais formidável quando estou com
a ação da maconha. Pode me pedir tudo que eu faço”. O malandro A, do grupo de
L., da Barreira, entrava maconhado nas casas para roubar. Encontramos, também, a
crendice, cuja veracidade não pudemos apurar, e que o fumo da maconha é
introduzido, à noite, pelos malandros através das gretas dos barracos para
entorpecer os moradores e facilitar roubos, estupros e toda sorte de violência.
Pudemos apurar que alguns traficantes iam buscar a erva em São Paulo, que
funciona como uma espécie de mercado central da maconha. Viria do Norte, nos
caminhões que trazem paus de arara em malas e grandes embrulhos. Daí chega ao
consumidor em pequenos pacotes, em quantidades de 250 gramas, por meio de
meninos que servem de portadores. Colhemos também informações de que há
plantações domésticas de maconha dentro da favela, mas não conseguimos
localizá-las.
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Os fumantes se reúnem em certos pontos preferidos e ficam saboreando os
cigarros e jogando. “Sente-se o cheiro da erva de longe”. O malandro S., da
Barreira, recebia pacotes de um traficante. Escondia em casa enterrando no chão. A
maconha é um valor, provoca paixões, crimes. “Uma vez o traficante que negociava
com S. deixou uns pacotes com ele. Quando voltou, não o encontrou em casa.
Parece que ele vendeu a mercadoria. O vendedor puxou o revolver e disse que, se o
pacote ou o dinheiro não voltassem a suas mãos, matava o rapaz. S. arranjou o
dinheiro assaltando várias pessoas. O sujeito não voltou”.
Conhecemos um traficante na Barreira, “magrinho e fino”. Não gosta de
assaltos e procura criar uma atmosfera de simpatia e proteção ao seu redor. Afirma
que é o protetor das crianças, que não as inicia no vício. Com isso, conseguiu
muitas amizades. Tempos atrás, foi acusado de roubo. Muitas famílias fizeram um
abaixo-assinado para o Distrito declarando não se tratar de um assaltante. Anda
bem vestido, sem paletó e gravata, mas de calça e camisa sempre bem passadas,
sapatos brilhantes. Vive exclusivamente da venda da maconha. Fez mal a uma
moça de quem tem dois filhos. Não vive com ela, mas dá-lhe tudo de que necessita.
Visita-a durante o dia ou à noite. De noite, anda pela favela com um rádio portátil
muito baixinho para só chamar a atenção dos fregueses. Geralmente, ficado parado
num vão. Ninguém o vê.
Parece ser um traço do maconheiro ser quieto, não atrair a atenção sobre sua
pessoa e atividades. X., do morro da Mangueira, era, na opinião unânime, “delicado,
maneiroso e calmo”. Andava com roupa de taifeiro da Marinha e usava revólver.
Todos os dias, às 18 horas, pedia licença para acender uma velinha na imagem de
N. S. das Graças no Posto da Fundação. “A sra. quer dar licença para eu acender
essas velinhas para nossa Mãe? Ajoelhava e rezava. Devia agir só, nunca era visto
em grupos. Tinha menos de trinta anos e parece que nunca foi perseguido pela
polícia. Sua especialidade era também assaltar delinqüentes. “Acompanhava-os
quando estavam em ação e depois tomava-lhes o roubo. Foi assassinado na porta
da Escola da Fundação”.
Os viciados, por sua vez, iniciam crianças. Os malandros o fazem para terem
também cúmplices. “Vi uma vez, o malandro S.”, conta D. F., “ensinando um menino
de 10 anos a fumar maconha. O menino era filho de um nortista. O pai e a mãe iam
para o trabalho e o menino ficava aos cuidados de uma vizinha que, tendo muitos
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filhos, não podia tomar conta de todos. Quando passei, olhei bem seria para ele,
mas ele não se incomodou. Riu e foi saindo”.
O círculo da maconha é impenetrável ao não viciado. “No grupo deles, as
pessoas que não fazem parte não entram. Eles não falam. Tudo é muito escondido”.
A delinqüência feminina se expande com a mesma intensidade ao lado da
malandragem. Na turma dos malandros há sempre meninas e mocinhas.
Acompanham os malandros, fumam maconha, roubam, participam às vezes dos
assaltos, bebem. “Devido às facilidades que os pais dão, diz uma informante da
Barreira, e o ambiente, as moças perdem a honra muito cedo. Uma menina está
atualmente com 15 anos; sua mãe morreu muito cedo. O pai tem uma quitanda.
Vende cachaça. Reúnem-se lá maus elementos. A menina vive abandonada. Tem 4
irmãos menores. Ela cuida deles e da casa. O pai sempre sai. Ela fica sozinha. Os
irmãos vão brincar na rua. Os vizinhos falam dela. Dizem que um namorado a
deflorou. Vive mudando de amante. O pai não liga. Ela põe homens dentro de casa.
Numa ocasião dessas a Rádio Patrulha veio apanhá-la”.
Recolhemos várias histórias de mulheres, quase meninas, que seguem as
mesmas peripécias: indiferença materna ou paterna, más influências, vida sexual
precoce, associação com malandros e crime. É o caso de L., por exemplo, que aos
10 anos engravidou na Escola da Fundação. Procuraram interná-la na Casa da Mãe
Solteira, mas ninguém a suportou lá. Tinha sido deflorada aos 9 anos pelo seu
padrinho, homem já idoso. Voltou à favela e hoje vive com um malandro, T. Apanha
do amante quando este a encontra em companhia de outro homem. Mora com a
mãe que facilita suas relações com outros homens. Deu agora para roubar.
Freqüentemente, diz que vai dar uma voltinha na Sears ou pelas Lojas Americanas.
Traz colar, brincos, vende e “está feita”. Vive descabelada, mal vestida. Tem hoje 19
anos e costuma desencaminhar meninas de 8 a 12 anos. Quando as encontra
brincando de roda, mete-se no meio e vai brincar também. As meninas gostam do
seu ar infantil e ela as bota no mau caminho. “De vez em quando, aparece
embriagada”.
I. recebeu influências diretas da malandragem através do seu irmão, o
malandro O., que foi morto em um tiroteio com os comparsas. I. vivia como homem,
calças compridas, cigarro na boca, sempre no meio dos malandros. A casa da mãe
de I. era visitada por muitos homens. Era uma mulher de má vida que na expressão
dos vizinhos quer dizer “queria ser a tal porque a sua casa era freqüentada pelo
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delegado do posto polícial”. Sentia-se protegida e dava escândalos tremendos. Sua
filha aos 11 anos já se prostituía. Vive com os moleques na favela. A mãe não se
importava. “Pode-se danar, perder tudo, menos a virgindade”. “Esta é para o
casamento”. A menina iniciou namoro com um malandro do Caju. Ficou grávida. A
mãe internou-a alguns anos num colégio e, quando voltou, propiciava-lhe encontros
com homens. Voltou à vida. Não queria trabalhar. Associou-se aos malandros.
Ajudou a matar um homem, para roubá-lo. Foi processada. Pegou pouco tempo de
prisão. Parece que teve consciência do perigo que corria ao participar de um assalto
na Barra da Tijuca. Não “fez o trabalho” direito e os malandros a espancaram
deixando-a quase sem vida. Sempre apanhava deles nos botequins. Foi percebendo
que acabaria morta algum dia. Procurou um emprego numa fábrica. Deixou o filho
com a avó e passou a trabalhar. Após dois anos de conhecimento, um rapaz nortista
pediu que se casasse com ele. Mas só casaria depois que tivesse dois anos de
experiência com ela, devido ao seu passado. Caso se regenerasse, casariam.
Montaram casa, foram viver juntos. Passado algum tempo, resolveram casar.
Mudaram da Barreira. Tiveram de mudar, principalmente, para fugir à influencia
perniciosa da mãe de L., que continuava molestando a filha. Dizia que tinha ficado
“besta” com o casamento. L. , hoje tem 26 anos, mas não consegue ter filhos, é
muito doente.
Identificamos nas favelas casas de prostituição e focos de
desencaminhamento de menores. No Jacarezinho, no São Carlos, nos Telégrafos,
no Salgueiro. No São Carlos, havia uma casa de tolerância freqüentada por meninas
da favela com 12, 13 anos. Entre elas, havia M., de 13 anos, que recebeu várias
propostas de emprego da parte de funcionários da Fundação Leão XIII e que as
recusou. Perdera muitos parentes tuberculosos, mas continuava na má vida. Isso
sem fala nas mulheres que praticam a prostituição fora da favela e levam e dinheiro
a algum malandro com quem vivem. Quando não trazem a quantia desejada,
apanham.
Na Barreira, há uma casa onde três moças vivem fazendo vida de prostitutas.
A mãe separou-se do marido há alguns anos. Tinha cinco filhos: quatro moças e um
menino. Uma das meninas morreu pequena. As outras foram-se perdendo e caindo
na vida, com 12, 14 anos. A mãe não se importava. Trazia homens para dentro de
casa na ausência do marido e as filhas faziam a mesma coisa. Passaram a associar-
se com malandros e a ter filhos de paternidade ignorada. “Um tal de C. P., narra d.
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D., da Barreira, vizinho meu, aqui nos fundos, botou agora uma casa de mulher
errada. Ele está ganhando um dinheirão com o aluguel dos quartos para os casais
que vão aí. Mas é até calmo, até agora não deu confusão. Aqui tem aquelas casas,
como na cidade. Tem a dona da casa. Tem a casa da T. P. mais adiante tem a da
X., perto de d. S., que dá colégio (é professora). A X. que não vi com meus olhos,
mas tem um bar em cima e outro embaixo. A T. P., eu tenho certeza, porque minha
sobrinha P. ia lá e muitas vezes fui tirar ela de lá. Ela tinha treze anos. Quando as
donas dessas casas cabem que alguma mocinha ficou estragada botam o olho
nelas”.
E não faltam mocinhas nessas condições. “Antigamente”, afirma d. D., “havia
mais defloramentos”. Soube de alguns casos de malandros que pegavam crianças.
Hoje há menos desses casos. As moças se perdem porque querem. Há muitas que
se perdem com malandros, e passam depois, a seduzir menores. “Vivem se
rebolando, fumando, com vestido apertado ou de calças compridas. Os locais e as
oportunidades de sedução não faltam. Na Barreira, o centro de Artesanato da
Fundação Leão XIII é o ponto preferido para os encontros noturnos”. Ali, informa
uma moradora, muitas moças perdem a virgindade”. No Parque, os pares passeiam
até altas horas perante as crianças que também perambulam pelas ruas até 11
horas da noite. As crianças são muitas vezes atraídas com balas e dinheiro. Sabem
de tudo. “Outro dia, ouvi uma criança contando a outra: “mamãe tava tendo criança,
tirou um menino”. Há barracos em que todos dormem juntos, muitas vezes, as
crianças na mesma cama dos pais.
O aliciamento se faz com grande naturalidade. T. P., por exemplo, que reside,
na Barreira, num lugar conhecido como “beco do pecado”, “beco do maconheiro” ou
“beco do manicômio”, e aí mantêm uma casa de prostituição, visita as novas
vizinhas que vivem sós e procura estabelecer com elas relações de amizade. D. M.
C. S., entre outras foi procurada por T. P. que lhe disse: “Você é uma moça
simpática e não pode viver sozinha. Você precisa da companhia de um homem”.
T.P. inventou que um senhor já meio idoso que freqüentava sua casa estava
querendo conhecê-la melhor, estava apaixonado por ela. Diante da recusa de M. C.,
T. P. iniciou uma campanha de difamação contra ela. Uma das suas técnicas é
intrigar a pessoa com os malandros que freqüentam sua casa. O barraco de M. C.
foi assaltado três vezes. T. P. convida mulheres para ir à sua casa e as induz a
servir os homens que a freqüentam. Vive embriagado e usa a sua calúnia como
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arma de desmoralização das vizinhas sérias. T. P. acha que as famílias direitas
perturbam o movimento da sua casa e procura criar um clima de inquietação e
mexericos separando casais.
T. P. também seduz mocinhas para a má vida. Quando se recusavam a
aceitar os homens que ela trazia, xingava e baita nelas. Além disso, dispõe de
outros poderes: é macumbeira e todos a temem. Ninguém tem coragem de ir à
polícia para denunciá-la. Quando um vizinho ameaça tomar uma atitude, T. P.
anuncia que vai pôr feitiço e liquidar com a paz da família ou fazer morrer os filhos.
“Já fez um trabalho para uma família e fez os dois filhos falecerem”, conta uma
vizinha. Tem a mania de jogar água com sal nas costas das pessoas e em frente às
casas. Calunia as moças direitas da favela, espalhando que prostituem fora, que
fazem aborto etc.
A casa de d. A., na Barreira, é outro antro de prostituição. É uma mulher já
idosa, fraca do pulmão. Guarda roubo de malandros. Tem três filhos que vivem uma
vida irregular. Uma menina de 15 anos foi viver com a avó, fora da favela. Um dos
filhos era malandro, fumava maconha, roubava. Acabou fugindo para o Estado do
Rio, depois de um roubo, para escapar à polícia. Outro filho é doente mental, é
camelô, vende objetos roubados pelos malandros e é também ladrão. D. A. tem
ainda uma filha adotiva, com 12 ou 13 anos. Aos 10 anos foi deflorada por um
freqüentador da casa. A mãe não se incomodou e a menina passou a viver com os
malandros. Os vizinhos tiveram pena e levaram o caso à polícia. A menina foi
submetida a exames, mas o homem conseguiu escapar. O delegado resolveu levá-
la para sua casa para criá-la. Hoje, ela mora fora da favela com a família do
delegado.
Esses casos são freqüentes. Quando acontecem, todo mundo sabe. O caso
de P. é expressivo; P. tinha sido adotada por d. J., sua tia, que nos conta a história:
“P. tinha sido estragada e eu não sabia de nada. Citava ela como moça em minha
casa. Moça é coisa muito fina, mas depois eu comecei a desconfiar. Rapaz não
queria namorar com ela e moça depois que se perde entra em qualquer lugar.
Apertei P. e ela acabou confessando. Levei o caso ao advogado, só a sra vendo, P.
era pequenina ainda, de vestido curto, por aqui e não tinha nada de moça ainda. O
Juiz quando viu disse: “ainda há pouco tive o caso de sua irmã e agora já vem
você?”. Tentei botar ela no SAM, na casa das Irmãs Cristo Redentor, queria internar
ela. Ninguém queria. Então experimentei ficar com ela aqui em casa. Chegava até a
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amarrar ela aqui dentro para ela não ir para as tais casas. Quando ela tinha 13 anos
fui buscar ela muitas vezes na casa de T. P. Ela se danava a rasgar a roupa.
Arranjei vários empregos para ela, mas ela ia para a vida. Só queria fazer coisa feia.
Depois arranjou um guarda. Às vezes, ela trazia ele para cá e chegaram a até dormir
juntos aqui. Depois eu mandei que saíssem. Ele alugou um quarto para ela. Quando
ela aparece grávida, ele bate nela para ela ir tirar o filho. Ela ficou grávida várias
vezes. Só nasceu o primeiro que morreu. Os outros ela tirou com uma mulher que
mora numa loca que se chama d.C. Ela é doida para ter um filho”.
Nos Telégrafos havia um núcleo de transviados que agiam em dormitórios de
uma mulher, M. B. Andavam como mulheres, pintados, com requebros. Eram uns
dez. Alguns viviam com M. B. e seu companheiro, outros vinham de fora. Os
favelados não reagiam contra eles. Saíram do morro somente porque o companheiro
de M. B. assassinou um operário.
O traço importante da malandragem na favela é não haver praticamente
nenhuma segregação entre o mundo do crime e o mundo normal, cujas fronteiras se
obscurecem. Essa indistinção acarreta forçosamente confusão de atitudes e
expectativas de comportamento. O criminoso não vive retirado da sociedade, da
qual marcadamente se aparta pelo tipo de vida, pelo meio social, pela discrepância
da conduta, estigmatizada pela reprovação dos demais, pela sanção moral, pela
ética do grupo. Na favela, o criminoso, o perigoso assaltante ou estuprador nas
horas vagas noturnas é o vizinho amável do dia, o freguês assíduo da birosca, o
companheiro das peladas, o bom bate papo, o parceiro do carteado da esquina.
Nada reflete melhor esse indistinção do que a história do malandro S., contada por
uma vizinha, a birosqueira d. E., da Barreira do Vasco. A família de S. mora na
favela. O pai morreu há algum tempo, a mãe é doente, paralítica, vive quase sempre
deitada. São fregueses da birosca de d.E. “São todos muito pobres”, diz d. E. “Não
tenho nada que dizer deles. Nunca nos fizeram mal”. O próprio S. não parecia um
ladrão. Parece ser um rapaz calmo, quase não fala. Já vendi muito a ele. Só não
vendia fiado. Ele também não se zangava. Nada fazia. Parece que compreendia que
sou pobre e tenho filhos. Conversava sempre comigo. Parava aqui na birosca. Eu
sempre tinha receio e botava meus filhos para dentro, mas fazia de conta que não
tinha medo. Às vezes eu lhe dava conselhos, ele ficava calado”.
Os vizinhos se dão com a família de S., sua mãe, seus três filhos e quatro
irmãs. A família compra a crédito na birosca e paga corretamente todas as semanas
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ou quinzenalmente. As despesas atingem Cr$ 1.000,00 ou Cr$ 2.000,00. Os
vizinhos se dão com a família, só não se aproximam muito porque sempre receiam
alguma coisa. “A família, conta d. E., demonstra ser muito honesta. Numa ocasião,
eles ficaram me devendo uns Cr$ 1.500. Passaram mais de um mês par pagar. Eu
não cobrei. Um vizinho me disse que a família estava passando muita fome e estava
sem dinheiro para pagar a dívida. Por isto, envergonhados, estavam passando por
outro caminho. Assim que as coisas melhoraram para eles, vieram pagar a conta”.
D. E. conhece bem a vida de S., acompanha-o desde menino. “Era um
menino bom. Foi colega de meu marido quando estavam na escola. Fugia muito da
aula para fazer traquinadas na rua, jogar futebol, baralho, pagar carona. Não queria
nada com os estudos. Faltava muito também. Os pais o castigavam. Davam-lhe
surras a vale, mas, qual, não tinha jeito não. Quando ele tinha 11 para 12 anos mais
ou menos, inventou de apanhar ferro numas barreiras que ficam no Caju. Ia apanhar
ferro para vender. Dizem que aquilo lá é um lugar onde vivem muitos malandros.
Eles cavam um buraco na terra, tapam o buraco com uma folha de zinco e ainda
põem terra por cima. Quem é que vai dizer que tem gente morando embaixo da
terra? Os malandros se reúnem aí para fazer planos, jogar, fumar a erva e guardar
objetos roubados. Os pais de S. acham que foi lá que o menino se perdeu. Vendo a
vida que os malandros levavam deve ter achado bonito (ou então já tinha alguma
queda) e aos acompanhou. O pai, quando sabia que ele tinha feito alguma coisa,
levava o para casa e dava-lhe surras de matar. Prendia em casa, ele fugia. Tornava
a bater, arranjava um ofício. Botou para trabalhar com um amigo numa sapataria.
Não adiantava. O menino não aceitava conselhos de ninguém. Finalmente, o pai o
expulsou de casa, isso depois que ele já tinha sido preso algumas vezes. Mas, S.
nunca deixou totalmente a família. Quando saia da prisão, voltava para casa. Vivia
perseguido pela polícia”.
D. E. relata uma das prisões de S. pelo roubo de um automóvel. “Ele estava
em casa fazendo o jantar da mãe, quando a polícia chegou. Não reagiu. A Polícia é
que fez espalhafato. Eu tenho muita pena dele. Às vezes, dava cigarro, pão e
sabonete, quando ele estava sem dinheiro. A família não quer que eu faça isso.
Pedem para eu só dar comida. Uma vez ele foi preso por assalto. Quando saiu,
disse que não ia mais continuar nessa vida. Arranjou um emprego numa construção,
mas a Polícia não o deixava em paz. Vivia perseguindo-o. Aborrecido, deixou o
trabalho e voltou para a malandragem. Tornou a roubar e a fazer desordens”. E a
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informante concluiu: “Ele não perturba a favela, faz seus roubos fora. Uma vez, uma
vizinha estava com o filho doente e estava precisando comprar um remédio na
farmácia. Não podia sair. Não tinha com quem deixar o filho. Pediu para ele comprar
o remédio. Deu Cr$ 1.000, 00, ele foi, comprou o remédio e trouxe o troco”.
Para se ter uma idéia da importância de S. é preciso frisar que a imprensa –
O Dia, A Notícia etc. – numa das suas prisões, abriu manchetes: “Preso o rei dos
ladrões”, “Chefiava perigosa quadrilha na Barreira do Vasco”, “Assaltante de casais
em São Cristóvão”. Em poder do bando foram apreendidos objetos diversos, rádios,
relógios, bicicletas, ferros de engomar, roupas e ferramentas, tudo no valor de cem
mil cruzeiros. A prisão ocorreu no morro do Tuiuti e C. foi apanhando com outros
três meliantes. No entanto, para d. E., que o viu crescer – ele tem hoje 25 anos –
que conhece os apertos da sua família, que conversa com ele e lhe dá cigarros, ele
inspira pena.
Outro fato singular da delinqüência na favela é que o malandro pode ter duas
personalidades, uma dentro, outra fora da favela. Pode ser um delinqüente perigoso
dentro da favela e um provecto funcionário no mundo de fora. É o caso de B.,
malandro muito conhecido na Barreira, perigoso, já preso por assassinato, que,
segundo os moradores, “mata por prazer” e que é funcionário da Prefeitura. O
mesmo ocorre com Z., perigoso militante da Barreira, mulherengo, valentão, que
vive sempre armado e negocia com maconha. É funcionário do SAPS. Z. é
protagonista de uma história tragicômica. Apaixonou-se por d. C., mulher casada,
moradora da favela e resolveu juntar-se a ela. Uniu-se a outros malandros, cercou o
marido de d. C. e intimou-o a largar a mulher. Com o revolver na barriga, o marido
não teve escolha e desapareceu. Mas d. C. resolveu não ira para a companhia de Z.
porque quem manda nela é ela mesma. Arranjou emprego, colocou os filhos na
Prefeitura e mudou de rua. Z. Descobriu-a e, de madrugada, embriagado, bate na
porta, xinga, manda abrir. D. C. treme de medo, mas não abre. Z. dá tiros na rua,
acorda os vizinhos, mas d.C. continua inexpugnável.
Nesse caso, a personalidade do delinqüente se engrandece com o papel que
representa no mundo de fora. Tem a força do crime e o poder do pistolão, do
homem que consegue coisas. Mesmo sem esta aura, porém, o malandro da favela,
é, antes de tudo, um vizinho e este papel social tem primazia sobre os demais. Daí
os tipos de relações que se estabelecem entre favelados e os malandros e, que nos
parece, à primeira vista, paradoxais. Os vizinhos vão a seus velórios ou a velórios de
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parentes, acompanham seus enterros, como aconteceu com Y., que assaltava
moradores no Buraco da Lacraia, até que um deles o matou. “O enterro, conta-nos,
foi riquíssimo. Mandaram coroas muito bonitas. Todos os malandros compareceram,
vestidos com blusões cinza e azul. O caixão era de primeira. Muitos carros
acompanharam o enterro”.
Os malandros carecem de auxílios sobrenaturais. Carregam cruzes, figas,
bentinhos. Muitas vezes, esses auxílios são fornecidos pela própria família. A mãe
recebe o santo. No barraco onde se reúnem para planejar os assaltos ou dividir o
produto do roubo, realizam sessões espíritas. Às vezes, são eles próprios que
recebem o “santo”, caem em transe, espumando. As mães rezam por eles fazendo
esconjuros especiais. A mãe de J. e N., malandros perigosos da Barreira, não se
esquecia de jogar um copo de água atrás das costas para deles quando saíam, para
que nada lhes acontecesse, para que não fossem apanhados.
Vários malandros perigosos estão presos, mas o número dos que estão
soltos ainda é grande. Maior ainda é o número dos que estão se iniciando na
malandragem, nos seus costumes, nos seus desvios. São rapazes novos de 14, 15,
16, 17 e 18 anos. Passam o dia à toa. Sentam-se nas biroscas, bebem, fumam
maconha, jogam carta, dizem obscenidades às mulheres que passam, brigam uns
com os outros, dão tiros, facadas, navalhadas. Nos becos onde se ajuntam, sente-se
o cheiro da erva. Os moradores quando os vêem assim, tomam um desvio. Na
vadiagem, surgem discussões, corre sangue. M. foi morto assim, à toa. Veio do
Espírito Santo com 18 anos e arranjou um emprego numa fábrica. Com dinheiro no
bolso, fazia amizades com malandros. Arranjou um quarto na casa de d. D., na
Barreira. Chegava em casa e d. D. brigava com ele, dava-lhe conselhos. M. tocava
violão, gostava de cantar. Ficou conhecido na favela. Todos gostavam dele. Ia aos
bailes mais conhecidos, baile de malandros como os de N. e E. onde havia grandes
farras. Uma noite, depois de jantar, M. foi se sentar na birosca de um amigo. Foram
chegando companheiros e um deles, o N., pediu que pagasse umas cervejas. M.
disse que não tinha dinheiro. N. insistiu. Discutiram. N. puxou da navalha e golpeou-
o profundamente nos intestinos. M. saiu se arrastando e foi cair num beco. Os
vizinhos carregaram-no para um barraco, chamaram a ambulância que o levou para
o Pronto-Socorro, onde morreu. N. avisou ao birosqueiro e à mulher que, se o
denunciasse, daria cabo deles. No Distrito inventou uma história. Pegou 12 anos de
prisão, cumpriu 9 e voltou à favela, mas não encontrou mais nenhum componente
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do seu bando. Todos tinham sido mortos ou estavam presos. N., sem as ligações
antigas no mundo do vício, acalmou, ficou pacato. “Dizem que está regenerado, diz
um morador, mas é porque não encontrou mais o grupinho dele”.
3 – Tipos de delinqüência
A fim de precisar a caracterização da delinqüência infantil e juvenil na favela,
fizemos um estudo de todos os processos referentes a menores, durante os anos de
1957 e 1958, no Juizado de Menores do Distrito Federal, relativos a menores
procedentes de favelas ou aí residentes. Incluíam, em 1957, 67 processos, num total
de 214, e, em 1958, 51, num total de 222. Ao todo em dois anos, 118 casos num
total de 436. Os dados desses processos estão longe de ser completos, embora o
formulário a ser preenchido pelos funcionários inclua a caracterização rigorosa do
delinqüente. A ausência de muitos dados, pedidos no formulário, mas deixados em
branco, torna a informação lacunosa e, muitas vezes, insuficiente.
O encaminhamento da menor delinqüente se faz seguinte forma:
O menor pratica um delito. A delegacia local toma as providências imediatas
(prisão, flagrante, apreensão do furto, caracterização do delito). Desta delegacia
local comum o menor é entregue à Delegacia de Menores (há apenas uma para todo
o Distrito Federal). Por lei esta só pode deter o menor por 24 horas, mas
freqüentemente este fica lá a mais tempo. A Delegacia de Menores faz o inquérito
policial comum, apenas adaptado ao menor, que é remetido para o Juízo de
Menores, com um ofício. Por lei, o juiz de menores deve imediatamente ouvir o
menor. Contudo, como o juiz não dispõe de tempo, que faz isso é outro (ou outros)
funcionário. (O sr. comissário não quis mencionar exatamente qual ou quais
funcionários).
Feito isso, junta-se o ofício às declarações do menor nos autos e é designado
um comissário para as investigações. No mesmo dia, o menor é enviado ao SAM ou
entregue ao responsável, mediante um termo de guarda e responsabilidade
provisória. Este termo é concedido se o delito não é grave, se o menor não é
reincidente e se o responsável é realmente “responsável”. Nessa condição o menor
é obrigado a comparece ao SAM, para a realização de exames psicotécnicos e ao
Juizado de Menores, sempre que convocado, sob pena de o responsável perder o
“termo da guarda”.
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Antes de 1940, o Juizado de Menores atendia apenas uns 200 casos por ano,
portanto média de 1 por dia. De lá para cá a situação se agravou muito. Foi criado o
Laboratório de Biologia Infantil, diretamente ligado e subordinado ao Juizado de
Menores, como seu órgão colaborador. Seu âmbito era exclusivamente o Distrito
Federal. Em 1941, foi transformado no SAM de âmbito nacional e independente do
Juizado de Menores. Os funcionários do Juizado de Menores reconhecem que, de
um modo geral, é preferível entregar o menor à própria família em lugar de recorre
ao SAM, por estar este desaparelhado técnica e moralmente para receber o menor.
Atualmente apenas 10 a 15 por cento dos moradores são remetidos ao SAM, isso
porque não há mais estabelecimentos próprios do Juizado de Menores e só podem
mandar para o SAM.
O menor delinqüente (preferimos dizer transviado, ou melhor ainda
desajustado) que responde a processos é o de 14 a 18 anos. O menor de 14 anos é
apresentado ao juiz, através de ofício, e no mesmo dia é feita a audiência
(“julgamento de plano” – de acordo com o decreto 6.026), resolvendo-se o caso.
Quando o menor é da classe de 14 a 18 anos não há tampouco julgamento
propriamente dito: o comissário após as investigações que faz, apresenta-se e
opina; o curador lê e opina; o Juiz de Menores “julga” através de uma “sentença”,
que é antes, uma prescrição. Por exemplo, interne-se o menor tanto tempo em tal
local (sempre estabelecimento do SAM) com tal tratamento. Normalmente, uma vez
internado o menor no SAM a espera do julgamento do Juiz, lá fica uns três meses,
aguardando a “sentença”.
Quando o Juiz não prescreve a internação, costuma prescrever a liberdade
vigiada, sob vigilância do Juiz de Menores. Essa “liberdade vigiada” também é
concedida por bom comportamento do menor, internado em prescrição.
Classificando, a grosso modo, os processos por tipo de delito, verificando que
eles se ordenam em importância decrescente, da seguinte forma: furto, agressão,
crime sexual, uso de entorpecentes, assassinato e porte de arma. É interessante
assinalar a semelhança entre essa série e a que se revela no estudo realizado pelo
coronel Milton Dias Moreira, no Presídio Federal, em 4.644 presos, durante o
período entre 1955 e 1956. Entre as categorias de ilícito penal cometido,
encontramos em primeiro lugar o furto, depois os atentados contra a vida, as lesões
corporais, o uso de entorpecentes, a prática do jogo do bicho, o roubo e o desacato.
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Quanto ao sexo, os delinqüentes eram preponderantemente masculinos em
todos os tipos de delito, figurando pequena proporção de mulheres nos casos de
furto e agressão. A maioria dos delinqüentes, no total dos casos, é preta, vindo em
seguida os pardos e por últimos os brancos, o que não ocorre no Distrito Federal.
Quanto à idade, preponderam os indivíduos entre 16 e 18 anos, depois os de 13 a
15 anos e finalmente os de 10 a 12. Nos processos de furto, a maior proporção se
situava entre 13 e 15 anos, entretanto, menores de 10 e 12 que participavam de
furtos, delitos sexuais, porte de entorpecentes, armas e assaltos. Quanto à
instrução, eram, na grande maioria alfabetizados.
O número reduzido de processos não permite um tratamento estatístico
elaborado. O histórico dos casos, entretanto, que acompanha cada processos
embora demasiado ou sucinto ou lacunoso, comprova grande número de
observações e informações colhidas por nós diretamente nas favelas.
Às vezes, o local do delito é registrado com imprecisão, “no interior do trem”,
“no interior da delegacia”, ou simplesmente, “na rua” ou “na Lagoa”. Às vezes, a
causa da detenção e do processo é ridícula. F., menor de 15 anos, alfabetizada,
preta, dizendo-se doméstica, órfã de pai, filha de doméstica, residente no Parque
Proletário do Caju, é presa por dizer nomes feios em público. O menor X., de 14
anos, do Jacarezinho, é acusado de ter dado uma rasteira em um outro menor. A
menor X., de 16 e a menor Y., de 15, a primeira parda, a segunda preta, ambas
domésticas, ganhando a primeira Cr$ 600,00, a segunda Cr$ 500,00 por mês, órfãs
de pai e residentes no Salgueiro, foram presas por briga. A segunda já havia brigado
com uma colega ferindo-a com dentadas e unhadas. Há mesmo o processo
instaurado contra o menor X., de 15 anos, branco, analfabeto, nascido no Distrito
Federal, órfão de pai, residindo com a mãe e 7 irmãos, que foi preso por estar
vendendo balas num trem da Central. Da segunda vez, já o motivo da prisão foi mais
grave: tentava roubar o feixe de molas de um caminhão segundo declarou, a mando
de um desconhecido.
É considerável o número de casos em que o menor surge como intermediário
de adultos: o menor X., de 15 anos, branco, analfabeto, que trabalha numa pensão,
residente com a mãe no Esqueleto, foi preso por transportar lista de jogo do bicho a
pedido de um desconhecido. O menor X., de 14 anos, branco, analfabeto, com
entrada no SAM por vadiagem, tendo trabalhado como entregador de marmitas, hoje
desempregado, órfão de pai, residente no morro do São Carlos com a mãe, foi
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detido enquanto tomava conta de um embrulho de maconha “a pedido de um
senhor”. Y, 18 anos, branco, alfabetizado, cearense, residente no morro do São
João, foi detido por ter recebido de um desconhecido a incumbência de raptar uma
criança num colégio em troca de Cr$ 30,00. O menor Z, de 11 anos, de cor preta,
órfão de pai, de residência ignorada, foi detido quando dormia no banco de uma
estação tendo ao lado um embrulho de maconha. O menor X., de 12 anos,
procedente de Pernambuco, sem ocupação certa, residente em uma favela da Ilha
do Governador, foi acusado de pivete em arrombamento. Y., de 12 anos, analfabeto,
de cor preta, sem poder trabalhar por ser portador de defeito físico, residente no
Parque Proletário do Caju, foi preso ao apanhar metal no Cais do Porto, a mando de
um adulto. X., de 16 anos, pardo, tendo cursado Escola por pouco tempo, tendo
trabalhado numa barraca de peixe na Boca do Mato, depois fazendo biscates e
ainda como marmiteiro, ganhando Cr$ 50,00 por dia contou, na polícia, a seguinte
história: “Fui tomar banho no rio e lá um marinheiro me pediu para segurar um
embrulho enquanto ele também tomava banho. Quando ele saiu foi preso por um
polícia e o embrulho continha maconha”. A menor Y., de 14 anos, parda, que mal
sabe assinar o nome, e trabalha como doméstica, filha de pai ignorado e órfã de
mãe, residindo com a cunhada, foi presa roubando um relógio da camisa de um
banhista a mando de uma colega.
Há delinqüentes que já demonstram uma carreira amadurecida no crime. São
reincidentes. A agressividade do delito vai aumentando. O menor X., de 17 anos,
branco, procedente do Estado do Rio, residente no Pavãozinho, morro do
Cantagalo, foi preso nas pedras do Arpoador com peças de roupas que roubava, em
companhia de outro menor, aos banhistas. Trazia também consigo pacotes de
maconha. Os dois menores alegaram ter praticado o roubo induzido por Y., de 22
anos, comerciário desempregado. O primeiro menor praticara o ofício de sapateiro
numa oficina do Parque da Gávea, depois como lanterneiro e, aos domingos,
ajudava um jornaleiro. Já passara pelo SAM de onde fugira. Seus pais vivem
separados. Vivera com a mãe, depois com a irmã, e voltara a residir com a mãe.
Seu roteiro de residência indica uma grande mobilidade, conseqüência provável da
desintegração familiar: morou em Nova Iguaçu, depois no Parque da Gávea e na
Estrada do Guandu, em Caramujos, no Estado do Rio, na Estrada Bambuí, em
Queimados e numa favela na Piedade. O outro menor era reincidente, tinha 17 anos,
era branco, trabalhava numa fábrica de colchões no Encantado, depois fizera
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biscates e vivera de expedientes como vendedor em barraca de feira-livre. O
primeiro, em 1954, fora acusado de ter roubado a importância de Cr$ 700,00 do
interior de um lotação parado na rua Ataulfo de Paiva, depois de ter furtado Cr$
500,00 de uma senhora que viajava num bonde. Dessas duas vezes, nada foi
encontrado em seu poder. Foi internado no SAM de onde fugiu, em 1957, para
morar com a sua mãe em Caramujos, no Estado do Rio. Mais tarde, veio residir com
a irmã no Parque da Gávea. Foi acusado de roubar revistas do jornaleiro com quem
trabalhava, mas negou o fato. O segundo menor, com 14 anos em 1956, já roubara
uma bicicleta na rua Fagundes Varela, tendo alegado que estava desempregado e
necessitado de dinheiro. Daí pretender vendê-la.
Os processos do Juizado estão cheios de histórias de pequenos furtos. X., de
14 anos, preto, tendo freqüentado escola, sem nenhum proveito, biscateiro e
aprendiz de cartonagem, órfão de pai, foi acusado de roubar Cr$ 50,00 de um
colega num bloco de carnaval. X. e Y., de 11 e 12 anos respectivamente,
analfabetos, órfãos de pais, residentes no Parque Proletário da Penha, foram presos
tentando roubar canos de uma casa abandonada. X., Y., de 17 e 15 anos, ambos
pretos e órfãos, foram detido tentando roubar uma caixa de tomates. Os furtos
muitas vezes se dão em local de trabalho. Z., de 16 anos, analfabeta, ganhando Cr$
500,00, roubou dinheiro da patroa.
A mãe é viúva, vive com outro homem, ganha Cr$ 600,00 mensais e sustenta
4 filhos. X., de 16 anos, cursando a 2ª série primaria do curso noturno, tendo
trabalhado como entregador e faxineiro, filho de um operário e de uma lavadeira não
casados, residentes no Parque Proletário da Gávea, roubou meias da casa onde
trabalhava. Z., de 14 anos e Y., de 16 anos, roubaram peças de uma oficina onde o
segundo trabalhava como serralheiro.
Muitos desses menores não têm pouso certo. Acompanham os pais na
mobilidade de residência que, já por si, é um indício de desorganização familiar e
instabilidade econômica. Y., por exemplo, envolvido no roubo das peças do torno,
residiu nos seguintes locais: no Parque Proletário da Gávea, no S.O.S. do Caju, na
favela do Esqueleto, na favela da Alegria, no morro da Quinta do Caju e hoje no
Parque Araxá. Às vezes, moram praticamente ao relento, num terreno baldio, num
caminhão.
Do descuidismo, os menores vão passando a delitos graves ao furto com
arrombamento, ao assalto a mão armada. Primeiro, furtam relógios, bolsas de
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senhoras, pedaços de cano, carteiras, pequenas importâncias em dinheiro. Depois,
assaltam lojas, como os menores X., L. e Z., de 12 e 11 anos, que foram convidados
a participar do roubo de uma loja por um desconhecido. Este partiu a vitrina e os
menores penetraram na loja, retirando as peças. O menor Z, de 17 anos, cor parda,
residente na favela do Esqueleto, depois de beber um litro de cachaça com três
companheiros, resolveu atacar uma pessoa no ponto do bonde, na rua São
Francisco Xavier. Z. era o único que tinha uma arma de fogo e atacou um homem
que esperava o bonde. Este reagiu e foi baleado, falecendo no dia seguinte.
Em certos casos, o motivo da detenção é secundário, mas revela uma
carreira completa de delinqüente. É o caso de Y., de 12 anos, detido no estribo do
bonde por trazer uma peixeira. O menor, natural de Pernambuco, reside com a mãe
no morro do Almirante, na Ilha do Governador. Não tinha emprego e vivia em
completa ociosidade. Já havia praticado furto em residências da ilha. Já tinha duas
entradas por furto e era usado por ladrões como pivete em arrombamento. Nesta
fase, o menino já chefia um grupo como é o caso de Z, de 15 anos, pardo,
analfabeto, filho de pais separados, biscateiro em um mercado, onde trabalha em
carga e descarga. Morador num barraco, em Barros Filho, foi preso no Mercado de
Madureira quando mandava dois outros menores, um branco de 8 anos, e um preto
de 11, roubar duas caixas de cocos.
Embora não seja possível apurar, do reduzido histórico dos casos, a
motivação completa do crime, há furtos que manifestam uma tendência agressiva
nítida. É o caso do menor Y., de 11 anos, preta, que roubou vários objetos da casa
do patrão por vingança, porque a patroa não a quis levar para passear. Era órfã de
pai e mãe, morava com um tio operário.
A agressividade latente se exprime em brigas, conflitos, atos de depredação e
violência. Os delinqüentes portam armas, navalha, às vezes revólver. Y., por
exemplo, de 16 anos, empregado em uma pensão, já agrediu várias pessoas a
navalhada. Os conflitos são às vezes familiares. O menor Z., de 15 anos, mora com
os pais. É aprendiz de lustrador numa fábrica de móveis. O pai é carpinteiro e ganha
Cr$ 100,00 por semana. O filho ganha Cr$ 500,00. O menor deixou a escola no 3º
ano primário para trabalhar. Estava dormindo em seu quarto quando foi acordado
pelo pai que o queria pôr para fora, argumentando que o quarto não era dele.
Desentenderam-se e o menor avançou para o pai com um machado. A mãe
conseguiu desarmá-lo e a irmã chamou a Radio Patrulha, Y., de 16 anos, branco,
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alfabetizado, trabalhou como grampeador, hoje não tem emprego. Estava na porta
de um café, conta ele, quando um conhecido começou a me desmoralizar, me
chamando de “mulherzinha”. O menor sacou do revólver e a bala foi atingir uma
pessoa que tentava proteger o ameaçado, matando-a. X., de 15 anos, biscateiro em
mecânica, ganha Cr$ 200,00 por semana, isso quando trabalha, o que não é
freqüente. Foi preso portando navalha. Já no caso do menor Y., de 12 anos, preto,
morador de um barraco da Favela e que vende churrasquinho na Av. Getulio
Vargas, a arma foi pedra, em revide a agressão. X., de 17 anos, preto, natural do
Espírito Santo, órfão de pai alfabetizado, que mora com a irmã casada, porque a
mãe vive com outro homem, agrediu a pedra o passageiro de um trem que também
o teria agredido. Z. agrediu outro menor em disputa de um ponto de engraxate.
Tinha 10 anos e mora no morro da Caixa D’água, em Jacarepaguá. O outro tinha 18
anos.
A arma tem uma enorme atração para esses meninos e adolescentes. Para
obtê-la não hesitam em roubar, como o menor X., de 17 anos, sem profissão, natural
de Pernambuco que mora no morro Santa Marta e que roubou dólares de um
americano num bonde para adquirir uma pistola com três balas, que lhe ficou em
três mil cruzeiros. O menor Y., de 14 anos, preto, alfabetizado, que mora com a avó
a quem ajuda nos afazeres domésticos, já roubou pares de meia da barraca de uma
feira, mas só foi preso mesmo por portar uma garrucha, que adquiria por Cr$ 300,00,
quantia que lhe fora dada por sua mãe para comprar camisa.
Certos furtos revelam a existência de bandos, de quadrilhas. Certos roubos
são feitos a mando. O produto é vendido e repartido. O menor Z., de 12 anos, preto,
que mora com os pais no morro do Querosene, furtou de um lotação a quantia de
Cr$ 800,00. Seus dois colegas conseguiram escapar. De roubo, Z., só recebeu Cr$
120,00. Y., de 11 anos, preto, morador da favela do Mangue de Caxias, furtou Cr$
200,00 do interior de um lotação na companhia de um colega. X., de 14 anos,
pertencia a uma quadrilha de pivetes, composta de mais três menores, de 10, 12, 14
anos, chefiada por um indivíduo de 18 anos, de cor preta. Foi preso quando roubava
a bolsa de uma senhora, a mando de chefe de quadrilha.
Mais importante que as desculpas, quase mentirosas, com que explicam o
delito, são as circunstâncias que o acompanham e, ainda que insuficiente, o
histórico do delinqüente. O caso de Z., é típico: “Menor de 14 anos, pardo, natural de
Sergipe, mora com o pai, separado da mãe. Fugiu do SAM para a casa do pai. Dois
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dias depois fugiu daí. Na rua, encontrou um enfermeiro do SAM, que o levou para
sua casa, a fim de recambiá-lo ao SAM. Aí, o menor, remexendo uma gaveta
encontrou um revolver e experimentou-o. A arma detonou indo o projétil atingir o
rosto de uma sobrinha do enfermeiro. O menor já havia fugido da Escola João Luiz
Alves e do Instituto Padre Severino, passando a pernoitar nos trens da Central e
vivendo de esmolas. Sabe ler, mas apenas assina seu nome. Desconhecia o
paradeiro do pai e da mãe, apenas sabendo que esta vive em N., com outro filho,
Nunca foi visitado pelos pais enquanto esteve internado”.
Por trás desses casos, percebe-se nitidamente uma onda de desintegração
ou desorganização familiar que, às vezes, remonta à zona rural, ou no Estado onde
procede o grupo familiar do delinqüente. O menor X., de 16 anos, mora com a mãe
debaixo de uma ponte, em Parada de Lucas e agredia um homem que, segundo
declarou, queria obrigar uma moça a ter relações com ele. Y., de 16 anos, mora no
Jacarezinho com a mãe, viúva, doméstica, analfabeta. O pai era alcoólatra. Brigou
com o cunhado porque não permitia que a menor andasse na rua com malandros. Z,
de 17 anos, vive com a mãe, preta, viúva, analfabeta que vive maritalmente com um
homem, biscateiro do Cais. Vivem, há 10 anos, num barraco coberto de telha,
assoalho, dois cômodos, sem banheiro, água ou luz, pagando Cr$ 200,00 de
aluguel. X.,de 10 anos, é filho de um casal que se separou. O pai já não sustenta
mais a mãe e foi viver em outro morro. A mãe, com quem ficou o menor, vive com
outro. Não dá assistência ao filho, deixando-o solto. Este menor já tinha três
entradas na Delegacia de Menores, por abandono, vadiagem e furto na feira. São
diversos os casos de filhos de pai desconhecido, ou de paradeiro ignorado. Y., de 15
anos, preso por tentativa de furto, mora com a mãe. O pai não está nesta capital. A
mãe está grávida. O menor não trabalha nem estuda. Não tem emprego, porque tem
pé defeituoso.
Muitas vezes são os próprios pais ou responsáveis que vêm pedir a
internação do menor no SAM.
Z., de 14 anos, residente no morro do Macaco, natural do Estado do Rio,
pardo e analfabeto, morava com os pais em Petrópolis onde trabalhava com o pai.
Faz um ano e meio veio para o Rio, morar com a tia. Costuma sair de casa e passar
dias na rua. Dorme nas praças públicas, de preferência na Cinelândia, com outros
menores. Foi preso roubando uma bicicleta. Y., de 17 anos, morava com os pais na
roça, em Minas Gerais. Teve relações sexuais com o namorado e fugiu de casa,
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vindo morar com uma tia, no morro da Formiga. Empregou-se como doméstica e ao
mesmo tempo arranjou um homem com quem vivia. Foi acusada de roubo. Z., de 15
anos, vivia com a mãe que trabalhava como doméstica e deixava os filhos
abandonados. Foi preso com uma lista de bicho. Pai ignorado. Pelo mesmo delito,
foi preso Y., de 17 anos, filho de bicheiro. Aprendeu o vício em casa. O pai estava
preso e a mãe doente. Quando o pai estava em liberdade, o menino vendia laranja e
fazia biscate. Preso o pai, ele foi fazer jogo para tentar conseguir mais dinheiro.
A família se desmorona antes de seus representantes chegarem ao Rio. As
crianças ficam entregues a parentes ou à mera sorte. X., de 17 anos, preto, órfão de
mãe, natural de Minas Gerais, veio com ela para o Rio. O pai, professor primário em
Minas Gerais, casou em segundas núpcias. Após a morte da mãe, passou a vive
com uma tia. Esta sofre das faculdades mentais. O menino se empregou como
aprendiz de sapateiro, depois biscate, capinando quintais. Ganhava Cr$ 50,00 que
entregava à tia. Foi preso como cúmplice num roubo.
O delito sexual, muitas vezes, é propiciado pela promiscuidade em casa. A
menor X, de 17 anos, órfã de mãe, ficava durante o dia entregue a vizinhos, porque
o pai trabalha fora no Cais do Porto. Desde os 14 anos tinha vida livre. O pai era
amasiado com diversas mulheres, inclusive uma menor. Praticou atos sexuais com
um menor de 17 anos. Quando soube, o pai, expulsou-a de casa e mandou-a para a
casa do menor. O menor Y., de 17 anos, natural da Paraíba, residente no Cantagalo,
caixeiro de armazém, responsável pelo defloramento de uma menor, veio para o Rio
há cinco anos com os pais que se separaram. Às vezes, o deflorador quer reparar o
crime, quer casar com a vítima, mas não esta em condições econômicas para fazê-
lo. Impressiona, às vezes, a precocidade do delito. A menor Z., foi presa por furto
numa casa de prostituição. Tinha 13 anos. Sua mãe, doméstica, reside a favela
Baixa do Sapateiro. Assim também, a menina U., de 14 anos, natural de Minas
Gerais, parda, órfã de pai e mãe, residente com uma colega na Praia do Pinto e que
costuma empregar em casa de família como arrumadeira ou babá, foi detida por
furto e declarou que fora deflorada depois que chegara ao Rio.
Certas histórias dão a idéia exata do tipo de encadeamento que pode levar ao
crime. O menor X., de 14 anos, residente no Buraco Quente, no morro da
Mangueira, branco, alfabetizado, natural da Paraíba, viu-se sozinho no Rio, pois o
pai morrera e mãe ficara na Paraíba. Há três anos, veio para o Rio com seu tio.
Começou a furtar e punguear e, em 1956, foi preso e internado no SAM. Depois, foi
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enviado para o Patronato Delfim Moreira, em Minas Gerais. Lá passava fome e frio e
resolveu fugir, com outros quatro menores. Conseguiu chegar ao Rio pegando
carona na estrada. Aqui chegando, foi procurar o tio e não o encontrou mais.
Continuou furtando e pungueando carteiras. Com o dinheiro desses furtos, comprou
um barraco no morro da Mangueira. Furtando a bolsa de uma senhora, na rua do
Ouvidor, foi preso. Em seu poder, encontrou-se uma faca.
O menor X., de 17 anos, acusado por crime de sedução a uma menor,
começou a trabalhar aos 12 anos como lavrador em Minas e no Estado do Rio. Seu
pai é lavrador, sua mãe doméstica, ambos já idosos. Mora num barracão, no
Realengo. O menor, veio para o Rio, trabalhou em uma fábrica de vidro, durante
cinco meses, ganhando Cr$ 40,00 por dia; depois 10 meses como aprendiz de
bombeiro hidráulico e ultimamente trabalhava na Cervejaria União. A vítima residia
no Vintém.
A pressão econômica, agindo nas condições em que vive o favelado, pode
impelir o menor ao crime. É o caso de Z., de 17 anos, residente na favela do
Esqueleto onde mora com a mãe, separada do pai. Trabalhava numa indústria de
blusas e foi despedido porque a fábrica diminuiu a produção. Passou, então, a viver
de biscates, como carregador, vendedor em barraca de feira. Foi envolvido no tráfico
da maconha. Y., de 17 anos, natural do Espírito Santo, não tem emprego fixo
atualmente por estar em idade de servir o Exército. Filho único, quando trabalhava
dava parte do ordenado para o pai, ferroviário da Leopoldina, com Cr$ 5.200,00 por
mês. Moram num barracão de cinco peças. O menor já freqüentou escola particular
e já trabalhou como aprendiz de marceneiro, ganhando Cr$ 280,00 por semana. Foi
preso quando tentava furtar uma bicicleta.
Muitos desses delinqüentes ajudavam em casa, entregando aos pais, parte
do seu salário. O menor Y., de 18 anos, único caso de homicídio que encontramos
nessa lista de processos, trabalhava em biscates de instalação de antes de televisão
e fazia Cr$ 2.400,00 mensais. Dava a maior parte do ordenado à mãe. Numa briga,
atacou um colega com um instrumento cortante e causou-lhe a morte. Muitos
menores apanhados em flagrante de furto, têm emprego estável e ajudam os pais. É
o caso de Z.,de 17 anos, do Jacarezinho, que trabalha em uma metalúrgica como
aprendiz de montador e ganha Cr$ 60,00 por dia.
Outro fato que impressiona, na história dos delinqüentes, é a passagem de
muito deles pela escola primária. Alguns fizeram até o 4º ano primário. Outros
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tiveram de deixar a escola para trabalhar e ajudar os pais ou responsáveis.
Aprendem a ler, a escrever e contar e, depois com esse modesto equipamento, vão
para a vida, para os contactos indiscriminados da fábrica, da rua, do emprego. Sua
escola passa a ser exclusivamente o cinema, o futebol e a praia. Seus mestres, os
companheiros de brinquedo ou de trabalho, os desconhecidos que encontra ao
acaso, nas ruas. Muitos freqüentam a escola, sem o menor proveito. Culpa do aluno
ou da escola? São freqüentes as declarações! “Freqüentou a Escola X, mas não
aprendeu nada”. “Nenhum aproveitamento”.
Estaria errado quem interpretasse essa caracterização tipológica da
delinqüência infantil ou juvenil como uma explicação causal. Não é o fato de ser
analfabeto ou desempregado, ou de passar por vários empregos que torna o menor
criminoso. Grande número de exceções poderia ser aduzido, destruindo qualquer
teoria que se construísse sobre tão frágil base. Não se pense, porém, que essa
inconsistência dos fatos resulta unicamente do número reduzido de casos,
neutralizando qualquer correlação, qualquer analise estatística mais pormenorizada.
Seria uma falsa pista imaginar que essas correlações nos dariam a chave do
processo que leva o menor da normalidade à delinqüência. Afora certos casos
extremos em que um desajustamento psicológico nítido se casa perfeitamente às
motivações do meio ambiente, na maioria das histórias, pelo menos no nível de
analise que nos permitem, torna-se difícil estabelecer relações de causa e efeito.
O que as histórias nos demonstram é que o ato delinqüente radica num
determinado meio, numa situação social, onde todos clementes, por nós isolados e
descritos, vêm-se somar num resultado que é o crime. O criminoso como tipo não
existe. Existem situações que encaminham à delinqüência e indivíduos cuja
marginalidade social e econômica os predispõe à criminalidade. Encontramos uma
série de condições, cuja presença aumenta a probabilidade da delinqüência: a
desintegração familiar, por exemplo, o que não quer dizer que esta seja a causa, no
sentido absoluto e exclusivo do termo. Se causa houver é a própria favela, com seu
tipo de população e habitação, a insegurança de vida que oferece, a mobilidade
física e a instabilidade emocional de seus moradores, os hábitos e padrões de
comportamento que estabelece. Nela é que devem ser procurados os focos de
delinqüência, para ela é que se devem voltar os esforços de prevenção.
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4 – Conclusões: Recuperação ou Repressão?
“O ambiente melhorou muito”, dizem os favelados. “Isto aqui já foi muito pior”.
“Tempos atrás, era maior o número de desordeiros na favela. Não tínhamos
sossego. A malandragem vivia espalhada por aqui, fazendo trapalhadas a toda hora.
O ambiente era de angústia. Todos os dias ouvíamos tiros, havia batidas policiais,
agressões etc. À noite ninguém podia dormir em paz. Os malandros daqui se
juntavam com os de outra favela e era tiroteio a noite toda. Atualmente o ambiente é
muito melhor. Há ainda muitos desordeiros perigosos, mas os que faziam maiores
desordens estão presos”. Essa declaração de uma moradora da Barreira é
confirmada pelos vizinhos. “Agora a coisa melhorou. Fazem a mesma coisa, mas em
outros lugares. Não mexem com os moradores”. Ou então, acham que “os
malandros agora estão vigiados pela polícia”. Ou ainda atribuem as ocorrências
policiais à intromissão de malandros de outras favelas, quer espontaneamente, quer
trazidos por malandros da própria favela para perpetrar assaltos.
No entanto, nem todos os moradores são tão otimistas. Todos são unânimes,
pelo menos, em afirmar que a favela está cheia de malandros desordeiros. Isso quer
dizer que o clima permanente da favela é de violência potencial. Tudo pode
acontecer. D. M. M., por exemplo, não quer que seus filhos venham morar na favela,
“por causa do ambiente”. Está fazendo economia para alugar uma casa noutro lugar.
Seu marido é aposentado da Ligth e trabalha como gari na Limpeza Pública. Ganha
uns Cr$ 15.000,00 ao todo e com isso d. M. pensa que poderá sair para um bairro
melhor.
A “batida” surgiu como forma de repressão adequada à favela e ao seu tipo
de delinqüência. Visam surpreender os delinqüentes nos seus valhacoutos. São
feitas, geralmente, de carro, o que restringe a área de alcance. Prendem-se muitas
pessoas sem documentos. Mas os malandros, alertados por seus sistemas de aviso,
são logo informados e fogem para as partes altas ou remotas da favela. Os
favelados não gostam de chamar a polícia. “Espancam muito”. Há policiais que têm
amantes na favela. Há os que mantêm mais de uma mulher. No São Carlos, um
polícia deflorou uma menor e o caso foi parar no Juizado de Menores. O chefe do
posto fez que todos os policiais andassem com a menina para demonstrar que era
de má vida.
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Os favelados já estão céticos quanto a esse tipo de ação policial, quando
desacompanhada de policiamento permanente e, principalmente, sem o ataque às
coisas da malandragem. “A polícia não resolve esse caso de malandragem. Só com
prisão e pancadaria não adianta. Se os malandros são unidos, eles arranjam
qualquer jeito para tirar o amigo da cadeia. Quando ele sai, volta à mesma vida”.
Colhemos diversas opiniões sobre a vida na favela e sobre delinqüência.
Essas opiniões ou sugestões ora se inclinam pela repressão, ora por soluções
educacionais. Perguntamos a diversas pessoas como pensavam que pudesse ser
resolvido o problema do crime e obtivemos respostas que representam também um
diagnóstico da situação geral da favela. “A polícia sabe de tudo e não toma
providências. Se eu fosse o chefe da polícia”, diz d. J. da Barreira, “punha todos os
malandros dentro de um navio, levava para bem longe e jogava um a um dentro da
água. Só deixava um, que trazia de volta para contar aos outros”. Essa solução
drástica parece trazer reminiscências de “batidas” efetuadas contra malandros.
“A gente aqui não tem a menor garantia. Em qualquer lugar, na rua, em casa,
corre-se o risco de ser assaltada. Como é que há gente que pensa em acabar com
as favelas? Poe policiamento no subúrbio que ninguém se nega a morar lá. Sem
polícia, as favelas vão continuar. O culpado disso é o governo e os jornais. O
primeiro porque não dá assistência, os jornais porque ensinam. Muita gente deixa de
morar no subúrbio, prefere morar aqui na favela por causa da Central. A Central é
outro motivo de pavor. Ninguém quer arriscar diariamente a sua vida. Enquanto
houver Central do Brasil, haverá favelas”.
Muitos moradores acusam a polícia e os comerciantes, birosqueiros, de
convivência com a malandragem. Apontam comerciantes que vivem de comprar
objetos roubados dos malandros para vendê-los. “Os comerciantes da favela são
mais malandros que os próprios malandros”.
Em favelas como a Rocinha, as ocorrências de crime e brigas tendem a
diminuir. Um dos motivos é o policiamento. “Qualquer coisa que acontece, trazemos
o culpado para o posto, chamamos a Rádio Patrulha e removemos o fulano para o
Distrito Policial mais próximo”. E o mesmo guarda que nos fez esta declaração
informou ainda: “Hoje a maioria das confusões é de sujeito bêbado, mulher que briga
por causa de homem”.
O policiamento permanente é um fator de segurança nas favelas. À medida
que a favela se estabiliza, quando seus moradores atingem certo nível de vida, a
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malandragem diminui, a própria organização social repele a delinqüência. No
entanto, por toda parte, mesmo na Rocinha e na Barreira há pontos e áreas
perigosas.
Os moradores percebem as vantagens do policiamento. “Para se acabar com
a malandragem dentro de favelas devia ter uma equipe de quatro ou cinco policiais
que fizessem um patrulhamento constante. Deviam morar num BARRACO: mas sei
que isso não é possível, porque não existem policiais bastantes, até em
Copacabana assalta-se em pleno dia”. “A favela devia se mais policiada”, declara
outro morador.
A tese de repressão sofre várias elaborações. D. C., doméstica da Barreira,
opina: “Se a polícia quando prende um malandro o castigasse e depois o mandasse
para um trabalho, as coisas mudavam. Ensinavam uma profissão. Trabalhar sem
ganhar dinheiro. Tinham a obrigação de produzir. Quando saíssem da prisão, seriam
encaminhados a um emprego. Depois de um período de observação ficariam livres.
Assim, eles se corrigiriam. Do modo como a polícia faz, ele não tem solução. Vão
para a cadeia. Apanham. Passam fome e maus tratos. Quando voltam, estão mais
revoltados e desejosos a fazer o mal”.
Na mesma linha pessimista, opina d. E., da Barreira: “O ambiente não ajuda.
Os recursos são precários. Com estas dificuldades, o rapaz resolve seguir a
malandragem. É mais fácil. Além disso, a polícia prende o malandro, com pouco
tempo, ele está solto. Quando está preso, não aprende uma profissão, não trabalha,
não faz nada. Quando é solto, volta ao roubo. Se não fizer isso, morrerá de fome. Os
malandros não se importam de praticar crimes, sabem que sairão da prisão, não há
policiamento. A favela está abandonada. Os moradores é quem têm que se
defender”.
No Parque, os moradores, evocando tempos passados, de melhor
administração, pedem uma pessoa enérgica, de pulso, que mantenha disciplina e
seja bastante severa com os malandros. Um elemento pernicioso deve ser
imediatamente afastado para não contagiar outros.
As causas permanentes da malandragem são percebidas com grande
acuidade pelos moradores. “Desemprego é a pior desgraça. Trabalhando, a pessoa
não tem tempo para fazer maluquices. A pessoa que não tem nada para fazer só
pensa em coisas que não prestam”. As outras coisas da malandragem, citadas por
diversos moradores são: “Chepa”, isto é, o fato de os garotos ainda muito cedo
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iniciarem contactos com a malandragem, apanhando restos de feiras, nos montões
de lixo, nos terrenos baldios. Esses lugares são antros de malandragem. As crianças
vendem o que apanham. Ficam com o dinheiro. Com os malandros se iniciam a
jogar, beber, fumar etc. A existência de comerciantes que compram material
roubado; o receio que os moradores alimentam de denunciar os malfeitores; o
desemprego, a falta de profissão certa, a falta de recreação sadia.
De vários favelados, ouvimos declarações semelhantes: “O desemprego, a
falta de uma profissão. Os rapazes e moças estão em idade de fantasias, de
desejos. Não têm dinheiro. Roubam, matam para consegui-lo”. “As crianças brincam
sozinhas, sem orientação. Os pais trabalham. Ficam soltas. Geralmente, as famílias
têm muitos filhos. Precisam botá-los cedo para trabalhar, fazer biscates. Por isso,
não estudam. Vão à escola para ler e escrever. Quando aprendem, juntam-se a
malandros. Não têm formação para saber o que não presta. Ficam seduzidos pela
aventura, pelo dinheiro fácil”. Essa declaração de uma atendente é confirmada por
sua vizinha: “As causas são a ignorância dos pais e a falta de responsabilidade de
formação e educação. Criam os filhos como bichos. Tendo o que comer, está tudo
bem. Não ensinam religião, nem se preocupam em mandá-los para as aulas de
catecismo. Quando o filho diz que aprendeu a desenhar não gostam, xingam a
escola e a professora. Chegam até a tirá-los de lá porque estão brincando de ler e
escrever. Os pais não compreender certas coisa. Acham que é granfinismo. Arrumar
o filho para ir à escola, calçar sapato, etc., é coisa de rico. Quando o filho faz uma
coisa mal feita, castiga. Se o menino repete, vai deixando de lado o castigo. Muitas
crianças gostam de tirar coisas dos outros. Chegam em casa com os objetos
roubados. A mãe ou o pai não se importam. Acham engraçado, ou pensam que não
tem importância”. E. cita o caso do malandro L., que começou assim. A mãe não se
importava. Ela mesma roubava galinhas dos vizinhos para comer. O filho via e
achava que estava certo.
Colhemos inúmeras declarações desse tipo de moradores que já transpõem o
problema do plano puramente repressivo para o educacional. “Os pais, em sua
maioria, não têm educação. Não sabem orientar os filhos. Alguns porque trabalham
fora ou por ignorância. Outros, por falta de vergonha. Ensinam o que não presta aos
filhos. Há mulheres que vivem trocando de homem, não põem os filhos na Escola e
se põem, não procuram saber como se comportando, se estudam as ligações etc.
Se o filho faz uma malcriação batem, mas depois deixam que passe o dia inteiro
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brincando na rua. Em casa, os pais dizem nomes feios na frente dos filhos, brigam
etc. As mulheres andam de roupas rasgadas, aparecendo o corpo. Os filhos não
podem ter respeito e educação. Na rua, encontram companheiros desviados. Só
podem seguir o mau caminho”.
O sr. A., homem idoso, deu-nos o sentido da mudança educacional de sua
geração para a de hoje. Principalmente do patriarcalismo geral para o individualismo
de favelas urbanas. “A educação dada aos meninos de hoje é muito diferente de
antigamente. Criança não se metia em conversa de gente grande. Não respondia
aos pais, porque sabia que se fizesse isso “a cana era dura”. Hoje em dia, o pai e a
mãe não podem mais bater no filho. Se batem, a criança fica com complexo. Eu
nunca suportei que meu filho fizesse mal-criação. Não brigava quando fazia
traquinadas, mas comigo, filho não falava primeiro. Qualquer mal-criação pegava
castigo e surra. Acho que o governo tem culpa pela má educação das crianças,
porque o pai hoje pode ser punido pela Justiça se vier a surrar um filho. Um pai que
venha ter um filho transviado, se procurar corrigir, dando umas pancadas, corre o
risco de ter de responder inquérito, pois o filho pode ir ao Juizado de menores fazer
reclamação contra o pai, ou então, os vizinhos fazem. Tem havido muito desses
casos aqui. Essa educação de hoje, de não bater nos filhos, não é boa. A criança se
cria fazendo todas as vontades e quando cresce, não presta – Nem tudo na vida é
feito como a gente quer. – Eu sou do tempo em que os bondes do Rio eram puxados
a cavalo e burro e a iluminação da cidade era feita por lampião. Referiu-se que seu
neto já é malcriado. Quando não quer uma coisa, não aceita de jeito nenhum. É
preciso que a mãe lhe dê umas palmadas para poder endireitar. Acho que a criança
deve ser castigada. É para saber decifrar o que presta do que não presta. Eu
sempre quis muito bem aos meus filhos, sempre fiz tudo por eles, porém, tive de ser
enérgico, a fim de encaminhá-los para o bom caminho”.
Procuramos indagar dos sistemas atuais de controle que as famílias
empregam para impedir o desencaminhamento dos filhos. É preciso deixar bem
claro que, em toda a favela, há uma gradação entre as famílias, que se colocam
umas diante das outras conforme a maior ou menor escala de desintegração. Uma
forma de defesa das famílias organizadas é o distanciamento, a ruptura de contactos
e relações com as outras. Marcam-se as famílias desintegradas. “As famílias
honestas não se aproximam das famílias que levam vida desregrada. Apenas
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cumprimentam: bom dia, boa tarde”. Esse distanciamento é uma forma, ainda que
negativa, de controle social. É uma imunização de contactos.
Esse controle se exerce, sobretudo, na esfera das relações entre os sexos.
“As mães que desejarem que suas filhas sejam guardadas dessas coisas
(defloramento etc.) têm que andar com elas no calcanhar. O ambiente é muito ruim e
perigoso. De uma hora para outra, pode acontecer muita coisa. Há muitos elementos
maus que procuram seduzir as crianças. Eu previno a meus filhos para que não
dêem conversa a ninguém na rua. Levo-os à escola, vou buscá-los. Para qualquer
coisa, eu os acompanho. Às vezes, certas coisas acontecem às crianças porque os
pais não ligam. Deixam os filhos soltos na rua. Aprendem tudo o que é bom e o que
é ruim. Na maioria das vezes, só aprendem o que não presta”.
As pessoas que adotam esses métodos de controle familiar, geralmente, já
aspiram a sair da favela. “Não desejo criar minhas filhas aqui”. “Às vezes, tenho
vergonha de morar na favela”. “O ambiente aqui é ruim”. Quando digo que moro
aqui, as pessoas arregalam os olhos e dizem: “Lá é perigoso, não é?”. D. G., do
Parque, não gosta do local. “Tenho vontade de me mudar. Só mesmo por
necessidade é que a gente mora aqui. Tenho vergonha de dizer que moro aqui.
Minha filha também não suporta isto. Já mora aqui há seis anos”.
Outra forma de controle é obter emprego para os filhos. Pela importância que
isso representa, não só como arrimo econômico, mas como meio de salvação dos
filhos, os favelados se agarram aos patronos, aos políticos; que acenam exatamente
com essa possibilidade. D. F., da Barreira, está muito preocupada porque seu filho
andou meses desempregado. Dava tudo a ele. Reparou que ele gostava de
conversar com “esses elementos que vivem por aí”. Abri os olhos dele e fiz o
possível para colocá-lo o quanto antes no emprego. Ele próprio compreendeu que o
caminho dos malandros não presta. Minha filha não pára aqui. Não tem muitas
amizades. Estuda e trabalha. Não tem tempo. Fez o curso de enfermagem. Graças a
Deus parece que tem juízo”.
A residência na favela é uma imposição econômica, o que muitos percebem
claramente. “Só vivemos aqui porque não temos recursos para morar em outro local.
A carestia de vida não permite. Vivemos sempre assustados”. Diante disso, o temor
da represália faz com que não se esboce nenhuma reação ao delinqüente. A defesa
é a retração. “Não sou de muita conversa com os vizinhos. Cumprimento, mas não
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saio de minha casa para conversar. Não me importo com a vida de ninguém, cada
qual vive como quer. Deixando a minha casa em paz é o que me interessa”.
No São Carlos, encontramos uma curiosa tentativa de solucionar o problema
de delinqüência infantil. O sr. A., morador da favela, tinha uma filha que, certa vez,
ao voltar do trabalho, foi encurralada num beco por seis homens que a violaram.
Essa moça, no entanto, casou mais tarde e saiu da favela. O sr. A., homem de 60
anos, resolveu fundar um grupo de escoteiros. Sua finalidade é recolher crianças
abandonadas e interná-las em seu barraco. Já tem uns 40 meninos. Aos poucos, foi
construindo outros barracos de zinco, de construção pobre. Veste-os de escoteiros.
É uma verdadeira Escola de Escotismo. Recebe ajuda da Fundação Leão XIII, que
lhe dá leite e material escolar. Recebe as sobras da comida do SAPS e do Hospital
da Polícia. Qualquer criança abandonada, ele a traz para casa. Veste, limpa,
alimenta, ensina. Arranjou uma máquina de datilografia para ensinar aos meninos.
Já encaminhou três dessas crianças a cursos secundários, com o auxílio da
Fundação. Um dos meninos foi encontrado por ele numa barca entre Rio e Niterói. Ia
agredir um homem com uma garrafa para roubá-lo. Trabalhava para o C. S., que
tinha, para isso, um banco de meninos. Hoje esse menino é o tesoureiro da escola.
Nas férias leva os meninos a acampamentos. Aceita também tomar conta de
crianças quando as mães trabalham fora. Quando podem, pagam, não é obrigatório.
Encontramos nas favelas alguns casos expressivos de recuperação humana,
mostrando que o fato não é impossível. O sr. G., da Barreira, por exemplo, sofreu
aos 14 anos uma mudança radical na sua orientação de vida, como ele próprio nos
contou.
Mora há 15 anos na favela. Foi para lá ainda garoto. Estudou o curso primário
na Fundação Leão XIII. Era menino muito levado. Não dava folga as professoras.
Sua mãe o surrava muito por causa da sua danação. Desde que se tornou rapaz
saiu das “curriolas’. Aos 14 anos começou a trabalhar. Saiu da companhia de um
grupo de colegas, onde cada um tinha um apelido. Enquanto estava com eles não
ligava ao seu, mas depois que saiu do meio deles brigou diversas vezes com os
companheiros, porque o chamavam pelo apelido. O seu era “bem feio”. Depois que
começou a trabalhar e a sentir o peso da responsabilidade, mudou de vida. Não quis
mais saber de brincadeiras. Começou a namorar com uma prima, pensa em casar e
organizar sua casa. Já a comprou de um colega e a está reconstruindo. Comprou-a
por Cr$ 17.000,00, estava caindo aos pedaços, precisou derrubá-la e reconstruí-la.
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Ainda não pensou nos móveis. “Quando se aproximar o casamento vou mandar
fazer os móveis. Na favela conheço uns colegas que têm uma marcenaria. Vou
mandar fazer a meu gosto. Antes de casar vou fazer um balanço da minha situação
financeira, examinar em quanto vão as despesas do mês e ver o que poderei fazer
com o dinheiro de que disponho. Estou ganhando Cr$ 4.000,00, mas vou passar a
ganhar salário mínimo”. São atitudes construtivas de integração familiar, que nem
todos os rapazes, com o mesmo passado, conseguem adquirir.
O único plano organizado de recuperação, ainda é a Fundação Leão XIII, hoje
em fase de reorganização de seus métodos de trabalho. Pouco a pouco, a
Fundação está evoluindo de um tipo tradicional de Serviço Social para técnicas mais
modernas que envolvem educação de adultos e o serviço social de grupos.
O plano parte de certas diretrizes no que se diz respeito a:
a) definição de programa da obra;
b) orientação quanto ao trabalho existente;
c) organização de agências de Serviço Social em cada CAS
d) instalações apropriadas; e
e) limites dos serviços prestados quanto à área geográfica e
quanto aos recursos da Obra.
A Fundação Leão XIII preocupou-se desde o seu início em dar apoio aos
moradores dos morros e, nesta base, foram delineados seus programas. Estamos
hoje, há dez anos do início desta experiência, a Fundação reconhece à presença de
outros fatores tais como a modificação do nível de vida e o Serviço Social. “A base
do trabalho da Fundação foi assistencial, reza o Plano, por diversos fatores achamos
que este programa é hoje obsoleto, deseducativo e sem diretrizes certas para
atingir, dentro da realidade brasileira”.
Em abril de 1958, uma comissão de técnicos estudou e debateu novas
perspectivas e diretrizes para o Serviço Social em face da realidade brasileira e as
conclusões vêm apoiar nosso ponto de vista de que é necessário se definir um
programa e enriquecer o Serviço Social com o emprego de técnicas modernas de
comunicação com o público, interpretação de programas e, sobretudo, treinamento
democrático. Sentiu-se necessidade de estabelecer prioridades, evitar dualidade de
serviços da mesma natureza e com idênticos objetivos numa mesma área sem que
se tenha conhecimento prévio das necessidades locais. Foram feitas várias
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recomendações para o melhor aproveitamento dos recursos humanos e materiais e
para o combate à ação isolada das diferentes categorias de profissionais atuando no
campo social.
As principais normas desse plano são:
a) evitar serviços gratuitos e os assistências;
b) utilizar técnicas modernas de Serviço Social e reabilitação;
c) adotar, de preferência, medidas preventivas;
d) utilizar as organizações espontâneas (cooperativa, ajuda mútua etc.)
como colaboradores em programas que venham trazer-lhes benefícios;
e) evitar a improvisação
A parte do Serviço Social dentro dos postos deverá ir aos poucos se
modificando, adaptando-se aos princípios acima expostos. No serviço de Educação
seriam sugeridas as seguintes medidas: a) não aumentar por enquanto o número de
classes e apenas conservar as existentes; b) estudar o encaminhamento das
crianças em idade escolar para os diversos estabelecimentos públicos e privados; c)
instalação em acordo com a Campanha Nacional de Educação de Adultos, cursos
de alfabetização como já vem sendo feito na Rocinha, Cantagalo e Telégrafos;
No serviço de Recreação, incentivar os pequenos clubes dando às diretorias
dos mesmos assistência técnica de grupo, por assistente social de grupo. Isto vem
satisfazer a necessidade de treinamento democrático através dos grupos. Quanto
aos Clubes noturnos deixar que tracem seus programas dando à Fundação
assistência na parte de direção através da participação da Chefia do Serviço de
Recreação nestas entidades e orientação técnica de grupo por assistente social de
grupo.
Em cada centro foi iniciada uma agência de Serviço Social que atende aos
que procuram o Centro para problemas de natureza social e providenciará os
encaminhamentos aos diversos serviços da comunidade. O Serviço Social de Casos
será feito dentro dos limites imprescindíveis, resolvendo-se os casos imediatos e
limitando-se dentro das possibilidades de pessoal técnico, o tratamento de casos
continuados. As rotinas de serviços serão estudadas e determinadas em tempo
oportuno pela Chefia do Serviço Social.
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O Serviço Social de Grupo será feito através dos clubes e outros grupos que
forem surgindo motivados por seus próprios interesses. As atividades de grupo
serão desenvolvidas dentro das possibilidades de espaço, pessoal e interesse de
cada localidade.
Nas atividades de grupos se enquadra o Cinema que poderá entrar na
programação dos Clubes e do próprio Serviço de Recreação, com programação
adequada, preparando-se o grupo para a exibição do filme e salientando os pontos
principais a serem observados como também discussões após a projeção. Está
previsto pequena contribuição para a despesa e que os saldos sejam utilizados na
movimentação dos clubes.
Os cursos de corte e costura deverão ser modificados para atender aos
interesses da Fundação e dos assistidos. Estão estruturados como obrigatórios em
todos os Centros com pessoal fixo, enquadrados como Professora de corte ou
professor adjunto e, assim, com os mesmos direitos dos professores primários e
idêntico regime de trabalho. Ora, esses cursos devem ser organizados de acordo
com os interesses locais, horários adaptados à vida dos interessados e
programação específica.
Para a execução da parte do Serviço Social e das atividades do grupo, serão
examinadas antes de sua realização as instalações prevendo-se o mínimo
necessário. Certos cursos de corte e costura eram ministrados em cima de tábuas
improvisadas o que dava por certo um mínimo de rendimento.
Pensa-se ainda em limitar as zonas de trabalho para efeito de levantamento.
Outro ponto importante é que logo após a realização desses pontos aqui apontados
deveremos na parte de Serviço Social, já com a experiência do campo e análise de
nosso trabalho partir para a utilização ampla de um trabalho de organização da
Comunidade. O trabalho deverá ser realizado efetivamente com os assistidos e não
para esses.
O Centro de Reabilitação virá resolver o problema da Fundação quanto à
organização dos Cursos e atender a um dos maiores problemas das favelas que é a
adolescência. Vem preparar o garoto que termina a escola e fica 2 a 3 anos sem
ocupação para uma profissão digna e encaminhamento vocacional planejado,
científico, com bases em estrutura definida e programa de completa assistência e
recuperação total. Dentro em pouco a Fundação terá uma equipe especializada que
poderá dar elementos cada vez mais objetivos para futuras programações. Urge
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que, concordamos com esse plano na medida em que ele for lançado sob a
assistência competente de psicólogos, sociólogos e educadores. O treinamento
especializado do pessoal que irá executá-lo é outro aspecto importante que pesará
decisivamente no seu sucesso.
É evidente que, em longo prazo, essas medidas educacionais, de
recuperação, constituem a solução adequada. Não se deve esquecer, porém, que a
situação social da favela gera permanentemente a desintegração familiar e
delinqüência. Para extinguir definitivamente essas condições criminógenas, é
preciso extinguir a favela, acabar com suas vielas e becos, destruir os barracos onde
se acumulam promiscuamente crianças a adultos, famílias e pessoas de duvidosa
procedência. Seria preciso modificar as relações de vizinhança, a solidariedade que
serve de biombo o crime, a indiscrição dos contactos de recreio nas ruas e terrenos
baldios. Seria preciso, enfim, voltar à idéia dos Parques Proletários, não no sentido
de campos de concentração ou quartéis, mas de espaços urbanizados de moradia
barata, onde os moradores encontrassem habitações, serviços assistenciais, escola
adequada, recreação sadia e, sobretudo, ocupação artesanal.
Se as cidades modernas tendem a ser concentrações cada vez maiores de
massa, urge educá-las para a vida urbana e para a civilização. Se é impossível
eliminar a condição proletária dentro dos quadro atuais de sociedade e da economia,
se as soluções paternalistas já provaram seu fracasso, torna-se essencial dar ao
proletário os meios próprios para promover sua ascensão, para que não sofra a
brutal desintegração que vem atravessando e que o leve à doença, à miséria e ao
crime.
Num quadro habitacional, condigno num espaço urbano “amagé” o
subproletariado da favela poderá então beneficiar-se dos esforços de recuperação
que hoje perdem gume na monolítica resistente da sociedade favelada. Dentro
dessas novas condições, será possível pensar em centros artesanais, grupos
escoteiros, escolas dinâmicas, educação de adultos, e na promoção de líderes
coluna vertebral de quaisquer trabalho dessa ordem nas camadas proletárias ou
subproletárias de nossa população.
O crime não é uma abstração. Não é um vírus que deve ser combatido com
certos específicos. É um tipo de conduta, envolvendo toda personalidade com suas
atitudes, reações, hábitos e suas constelações de valores. A sociedade do crime não
deve ser imaginada como uma associação recreativa ou esportiva, mas como um
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tipo profundo de vinculação que, através de família, dos grupos de recreio, da
vizinhança, marca e modela toda personalidade delinqüente. A extirpação da
malandragem exige a supressão da favela e de todo o processo de favelização que
não é exatamente igual a proletarização. Assim como o jagunço e o capanga são
tipos que decorrem de um sistema social típico das zonas rurais, o malandro da
favela carioca é a réplica urbana desse sistema e se filia às mesmas linhas
determinantes.
Não é possível esperar seu desaparecimento do simples aperfeiçoamento do
aparelho repressivo. A repressão fará com que o crime cresça em violência. Os
delinqüentes serão forçados a se armar melhor, a escolher chefes mais astutos e
cruéis. A delinqüência permanecerá.
Não acreditamos que a desfavelização do Rio ou até a desproletarização
acarrete o desaparecimento do crime. Este responde a certos irracionais da
natureza humana que apenas se manifestarão individualmente por outras formas.
Mas o que possível esperar é a supressão do crime como conduta social típica, do
crime como manifestação coletiva normal para toda uma geração de crianças e
adolescentes. A malandragem não é uma forma pessoal de expressão como certas
tendências e inclinações. É uma série de hábitos e atitudes que integram uma
personalidade profundamente radicada num meio social e cultural. É a eliminação
desse meio e não dos indivíduos que será o maior esforço da Administração e das
autoridades. Será também o maior serviço que poderão prestar ao bem comum
carioca.
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