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OBRAS DO AUTOR
1. Meia Passagem ou Meia Cidade (documento
jornalístico em parceria com Ivanhoé Leal)
2. Mercadoria Poesia (poesia)
3. Canto de Liberdade na República Tropical
(poesia)
4. A Agonia de Silvério dos Reis (novela)
5. A Metáfora de Deus (contos)
6. Poética em Clave de Sol (poesia)
7. O Mar de Upaon-Açu (crônicas ) e-book
Poema Prefácio do Autor SEREIA DO AMOR
Naveguei só uma vez no transatlântico do amor impossível por uma sereia na praia de São Luis. Já sexagenário amara somente a pátria mergulhado no mar negro de uma ditadura fascista Nessa navegação de coração ouvíamos as ondas sonoras de uma clave sem fá Migrei da maturidade para a adolescência igual a cardume de peixes tal a feitiçaria do amor banhado por águas salgadas Mil declarações de amor de envergonhar o poeta Camões insensível a sereia apenas fitava- me com seus olhos verdes iguais à vastidão oceânica Insisti em velejar com ela pelas enseadas da ilha em maré baixa, ela falou: “amizade sim, amor não” e o mar batia furioso no cais da desolação Depois muito depois o mar me disse: “meu velho, era teu destino amar uma sereia encantadora e genitora do amor”.
O MAR DE UPAON-AÇU
Ao por do sol, estou agora usufruindo no mar um momento de raro prazer em meio às notícias que
só nos causam depressão, angústia e náusea. Na internet, TV, rádio e jornais uma onda de
acontecimentos negativos, trágicos assola o mundo. A gripe suína assusta, o golpe militar em
Honduras mexe com nosso trauma da ditadura militar, Obama ataca o Afeganistão, acusado de
ser a central mundial do terrorismo, o trânsito nos centros urbanos do Brasil é o maior fator de
mortes etc. Ah, Jesus, estamos num vale de lágrimas, como nos diz a bíblia.
A maré está cheia, violenta e os surfistas nos oferecem um belo espetáculo, caminhando no mar
como se estivessem navegando de barco. A brisa marinha penetra em nosso corpo, limpando as
toxinas e os alvéolos dos pulmões. Um expectorante poderoso, natural e gratuito.
No calçadão da Litorânea há gente de todos os tipos passa em caminhada. Ali, serve de academia
de ginástica ao ar livre, diante de um céu e um mar indescritíveis, criados e cinzelados pelos
mistérios cósmicos.
O mar ruge ferozmente. A música das ondas brancas nos desperta sensações agradáveis. O cheiro
de peixes e mariscos entra fossas nasais acima. É noite. Estou satisfeito com a minha dose diária de
terapia natural.
II
Maré baixa, o mar está tranquilo. Assemelha-se a um tapete verde bordado por mão divina. Até o
som com partitura invisível propaga-se nos ouvidos de quantos estejam próximos. É uma sinfonia
mais que clássica.
Começam a passar pelo calçadão homens, mulheres e crianças. Uns correm, outros fazem
alongamentos. Cães passeiam levados pelos seus donos. Percebo que a consciência ecológica cresce
por parte dos cidadãos (as). Nessa parte da Litorânea ninguém toma banho, devido o excesso de
coliformes fecais.
Lá vem um senhor, correndo lentamente, boné para trás, sapatões com meias. Já me
cumprimentou duas vezes. Uma para ironizar, com o dedo, um casal de namorados. Ele é branco,
com aproximadamente 70 anos, e ela negra, gorda e de traje modesto.
Falo com o mar igual a um estimado amigo. Confidencio-lhe algumas orações científicas que
aprendi com Joseph Murphy, escritor norte-americano e chefe da Igreja da Ciência da Mente. Noite,
a lua quase cheia de agosto torna deslumbrante o espaço sideral. Maré cheia, as ondas violentas
batem lá embaixo de quem está no calçadão, admirando o quadro marítimo.
III
Peço um suco no quiosque para Marcos Eduardo, um jovem talentoso que concretiza o que
aprendeu, com apenas o primeiro grau. Sabe manutenção de computador, conserta qualquer
equipamento de informática e até cadeira de aleijado. Um autodidata. Sabe na prática quase tudo e
habilitado motorista, dirige o meu carro. Descasca 50 cocos, num abrir e fechar de olhos,
Comunicativo, rápido no atendimento aos clientes, fez em poucos dias uma clientela fiel. Como tem
uma aparência física pra lá de comum, é branco, rosto bem delineado, alto, freqüentemente é alvo
de olhares femininos.
Tenho um parceiro de trabalho, digo ideal. Marcos bate fotos através do celular. É um repórter
fotográfico de mão cheia. O rapaz tem futuro. O trabalho, à beira mar, é uma terapia ocupacional
de deixar água na boca.
Noite de lua cheia e o mar revolto compõem uma esplêndida paisagem, nesse instante, povoada
por namorados que se beijam ardorosamente e, também, jovens e velhos solitários. Aqui, é um
arquipélago saudável dentro de uma ilha e de um país conflagrados pela violência política,
passional, como assassinatos, assaltos e outras tragédias.
IV
Imagino-me tomando banho, agora, nas águas geladas. Impossível, somente as asas da imaginação
proporcionam-me essa aventura em que nado, lançado mar acima, mar abaixo, como merda entre
coliformes fecais. Não se banha mais como dantes. Saio desse fictício banho melado de dejetos e,
aleijado, sou puxado por dois amigos.
Ouço uma música dentro do carro. Regresso ao passado, aos meus oito anos de idade, em Teresina,
quando ouvi, pela primeira vez, a melodia. Aos domingos, papai levava-me para a casa do meu
padrinho Joaquim Bastos, chefe político do Partido Trabalhista Brasileiro, de Getúlio Vargas.
A cerveja rolava numa mesa grande, própria para banquetes de políticos. Papai Samuel, natural de
São Luís, de onde saíra aos 40 anos, colocava a loira vestida de noiva num copo para mim. Sob os
olhos curiosos do meu padrinho, tomava aquela coisa amarga. Aí começou meu contato íntimo com
a cevada. O cigarro veio logo depois. Imaginem um menino hoje fumando. Às vezes, acho que é um
milagre estar vivo.
V
Problemas de saúde interrompem as crônicas. É assim mesmo. Perdi também o hábito de escrever
diariamente. E acho hoje até bom para quem desde os 20 anos escreveu até há alguns anos
passados para jornais e rádio cotidianamente. Para mim, o ideal é escrever uma vez por semana,
principalmente quando se faz por prazer, sem remuneração profissional.
Em agosto, o vento no mar fica mais forte: desalinha os cabelos das mulheres, levanta as saias de
algumas e , quando vai anoitecendo, o frio fica intenso. Trato logo de entrar no carro. A maioria das
pessoas prefere passear ao largo do calçadão.
Até o barulho das ondas aumenta. Nessa semana que termina hoje, o movimento nos quiosques foi
bastante fraco. Fim de mês, dizem os quiosqueiros, o assalariado está sem dinheiro até para tomar
um coco com a namorada.
Além disso, a iluminação pública está precária. Aproximadamente, às 20 horas, as luzes dos altos
postes apagam-se e a gente fica com medo de assaltos, muitos comuns por aqui.
Frio e insegurança apressam-me a voltar pra casa. O trajeto é rápido, numa hora em que o trânsito
diminui na Avenida dos Holandeses, no sentido centro- Olho D’Água. São Luís tem muitos carros.
Dentro de poucos anos, ficará mais caótico, se não forem construídos viadutos, elevados, passarelas
e outras vias alternativas, numa ilha que só pode crescer em direção ao continente, isto é, Bacabeira,
Rosário, Santa Rita e outras pequenas cidades.
VI
De ser humano virei um submarino. O animal tecnológico parecia um peixe branco. Singrava as
águas do mar com a velocidade de um supersônico. Dentro de pouco tempo ancorei num porto sem
passageiros.
Eu, agora submarino, estava sozinho. O lugar da tripulação vago. Vi o assento do piloto e a direção.
Sendo o próprio submarino, senti pânico de acontecer uma tragédia comigo.
Durante a viagem, pensei, como submarino, que tinham me destinado a alguma missão de guerra,
no Oriente Médio. Poderia ser destruído pelo inimigo ou vice-versa. Mas, nada via ao meu redor.
Apenas boiava nas águas do oceano, ora azuis, ora verdes.
Sei que atravessei países e continentes em minutos. Interessante que tanto no Atlântico quanto no
Pacífico reinava uma paz de convento.
Encarnado num submarino, não me lembro de ter visto uma camada de pré-sal no mar brasileiro.
Fiquei intrigado. Como se explica que um submarino de última geração não tenha detectado
alguma camada de pré-sal no Rio de Janeiro, São Paulo ou no Espírito Santo?
Aí me senti estranho. Sou pessoa humana ou um submarino construído pelas minhas próprias
mãos? Tenho direito a royalties e patente.
VII
Posso estar indisposto. É só chegar ao mar, muda para melhor meu estado interno. É um santo
remédio para estressados, deprimidos e outros idos. Conheço um cara que chama a gente de Zé
Cumé. Encontrou na praia a sobrevivência.
Zé Cumé disse uma vez: “A fome dói”. Depois, traduzi: “Cumé quer dizer comida”. E foi a primeira
coisa que me pediu. Todos os dias levo jantar para ele. Já me contou parte de sua história de vida.
Zé Cumé perdeu a mãe cedo, não gosta do pai e nem de alguns parentes que tem. Deixou o bairro
pelo mar. Estudou no SENAI. Lê jornais. Trabalha como flanelinha. Ganha que dar para comer. De
manhã cedo, vai para o João Paulo atrás de mocotó para amenizar sua fome crônica.
Tem 46 anos de idade. Só tem o braço direito, o esquerdo pela metade. Tanto que os outros flanelas
o chamam de “bracinho”. Mesmo assim, trabalha. Não vive pedindo esmola, como alguns sem
deficiência física.
No mar vive, come, dorme e até namora e toma cerveja.
VIII
Pluto é um animal doméstico da raça dos caninos, entre muitos outros que passeiam no calçadão
da Litorânea, guiado pela protetora. Grande e gordo, Pluto anda devagar, de cabeça baixa. É de
origem francesa.
Perguntei à sua guia se ele era feroz. Com sotaque sulista, ela respondeu: “Que nada, o Pluto tem
medo até de tartaruga”. Riu e falou para o seu mimado, tratado como gente de classe média: “Diga
boa noite colega”. Eu respondi boa noite. Pluto saiu silenciosamente.
Depois, ela me disse que seu nome era Suzy. Tem um afeto extremado por ele, algo raro entre nós.
Outros não recebem ternura iguai a Pluto Passam levados pelos donos, indiferentes.
Há tambem animais ferozes por aqui. Servem de armas contra assaltantes. Pluto é criado para ser
amado, um sentimento cada dia mais difícil. Sempre tratamos esses animais como cães e cachorros.
Vejo na praia cachorros doentes e abandonados como mendigos. Ninguém se preocupa com tais
seres. São enxotados quando se aproximam dos humanóides de vida decente.
IX
Camões e Homero cantaram o mar
com o verbo amar como nunca dantes
- eu apenas o sinto, vejo e ouço
a imensidão do oceano
para mim o mar é começo e fim
da história da criatura
que frustrou o criador
Mar és agora a fantasia
dos meus dias da sexagésima idade
e remédio de um tédio roedor
Maré alta
- euforia
Maré baixa
- depressão
Atlântico do meu coração
Mar tem sístole e diástole
X
Olhando as águas do mar, minha rotina visual, não consigo me esquecer do que vi no cemitério às
vésperas do dia de finados. Uma jovem bonita, cabelos longos, óculos escuros, estava sentada num
banco, sozinha. Chamei a atenção de um amigo para a cena .
Saímos depois de visitar a sepultura de minha irmã Antonice, falecida aos 57 anos. Acompanhado
de minha mãe Antoniusa e de Socorro, colocamos um terço no túmulo. Tive no Jardim da Paz a
sensação de um silêncio comovente Pensei comigo mesmo: a morte é mesmo um descanso eterno e
não deve ser encarada como algo ruim. Só que a cultura cristã nos passa a ideia de que é uma coisa
profundamente triste. E pode ser dependendo das circunstâncias em que se morre.
A jovem solitária no cemitério volta à mente. Ignoro a maré cheia e a paisagem dos surfistas em
pleno oceano e mais distantes os navios estrangeiros que se enfileiram na orla marítima do Araçagy
à Litorânea.
Começo a me indagar: por que a desconhecida permanecia, ali, silenciosamente? Os óculos
ocultavam as lágrimas? Por que se encontrava sem ninguem ao lado? Seu namorado ou esposo
teria falecido recentemente? Ou seria a mãe ou o pai que tinha morrido? Desisti de formular
hipóteses. O caso me sensibilizou, tanto que está aí uma crônica pensada no mar antes de escrever.
Eu não dou adeus para os que morrem, porque tambem vou para o alem.
XI
Faz muitos anos, talvez uns 30. Pela primeira vez, viajei no mar. Amanhecemos o dia, numa festa
na sede da Turma do Quinto, eu e o poeta de cordel Nonato Pudim. Ainda eufóricos movidos a
álcool, ele me convidou para irmos a Alcântara. Sem dinheiro? Como?
Ora, bêbado é bicho corajoso. Tomamos o rumo do porto de onde partem as embarcações para a
Baixada Maranhense, na Praia Grande. Pudim já acostumado a aventuras, aliás, a vida do poeta
era a dita cuja, conseguiu as passagens com o então advogado e hoje juiz Fernando Mendonça.
Os barcos de passageiros eram um deus nos acuda: pequenos, sem salva-vidas, alavancados por
motor antigo. Atravessamos o mar numa manhã clara. A ida foi rápida e prazerosa como se
estivéssemos descendo uma rampa marítima.
Na subida de uma das ladeiras que levam para o centro histórico de Alcântara, Pudim conseguiu
uma garrafa de cachaça e aí saudamos a cidade com o entusiasmo próprio dos boêmios. Fomos
hospedados na casa de um amigo e admirador do poeta. A garrafa de cachaça em punho
perambulamos pela antiga e temível cadeia de Alcântara, à época já extinta. Fomos pelos arredores
de matas virgens e nos deparamos com uma comunidade de hippy estrangeira, além de casas de
amigos dele.
À noite, respirava-se um ar de liberdade nas ruas do centro, casas com janelas abertas e um silêncio
de uma ilha ainda não agredida pelo projeto espacial da aeronáutica. Como foi uma viagem rápida,
improvisada por jovens lisos, um ato de loucura da velha mocidade, não tivemos oportunidade de
conhecer as primitivas comunidades quilombolas e de albinos.
No regresso a São Luís, a comédia quase virava tragédia. Logo o barco luta contra a correnteza do
mar. Quando avistávamos apenas a imensidão do oceano, as águas violentas banhavam a
embarcação. Em certo instante, tínhamos a sensação de um naufrágio. Um turista levantou-se e
começou a filmar a cena. Passageiros calados iguais a estátuas, com medo, e a tripulação de homens
humildes, mas conhecedores do mar conduziam a lancha como bravos timoneiros.
O barco chamava-se Santa Fé. E era obrigado ter muita fé para se chegar a São Luís.
XII
O mar que olho agora, com o ocaso cor de sangue, é túmulo de muitas monstruosidades cometidas
por motivações políticas.
Binóculo nas mãos vejo os navios bem perto de mim. Em dezembro, o mar fica deslumbrante e o
sol clareia o Atlântico de cores azul e verde ao mesmo tempo. Talvez se despedindo, porque janeiro
está chegando, com o fim do verão
XIII
Os banhistas das praias sempre se queixam do salitre que atinge os corpos, as roupas, os veículos e
até os eletrodomésticos das barracas e dos bares.
É uma substância química, fosfato de potássio, que o mar nos oferece naturalmente, sem ter a
pretensão de nos fazer mal. É que tudo na vida tem o bem e o mal. Do mar tiramos peixes, um dos
alimentos mais saudáveis da culinária mundial. Dele extraímos petróleo e outros elementos
essenciais para a indústria, agora, já temos o pré-sal, que fica a sete mil metros da superfície do
mar.
Com ou sem salitre, o povo enche nos fins de semana as praias, da Ponta D’Areia, Olho D’ Água e
Araçagy. Os espaços da beira do mar aos bares são disputados a cada metro quadrado, apesar do
salitre, que corroi, enferruja objetos metálicos e salga a carne humana. É um mal com que
devemos conviver, tomando alguns cuidados. Assim mesmo, vale a pena divertir-se no mar.
XIV
Mesmo com dor na coluna, estou, hoje pela manhã, vendo as águas marítimas, descendo no
sentido oeste. O cenário é quase o mesmo. Em vez dos navios negreiros que chegavam lotados de
escravos, oriundos da África, destacam-se no litoral maranhense cargueiros que vêm buscar
minérios de Carajás no Porto do Itaqui.
Sei que a minha dor é insignificante comparada à tragédia da escravidão dos negros, restringindo-
nos apenas ao Maranhão. Verdade que a dor seja individual ou coletiva é ruim. A dor nos deixa
desesperados, física e/ou mentalmente. Tememos a morte mais por causa da dor. Os analgésicos (o
mais usado hoje a dipirona) nos aliviam por algumas horas, até que a infecção desapareça. Dor e
felicidade são inimigos irreconciliáveis.
Agora, a dor tira-me o prazer de admirar a beleza do mar. Ela me puxa para casa. A única coisa
que me atrai e domina é essa sensação terrível. Coluna doendo como se estivesse sendo esfolado
igual a um animal abatido num matadouro.
O tempo passa devagar. O mundo ao meu redor é apenas dor. Indiferente a mim, deixo para trás
a praia para tomar um analgésico, esse milagre da ciência.
XV
Durante esse tempo em que nada escrevi, apenas muito sono e rejeição à nossa culinária como
arroz, feijão e carne. A alternativa foram frutas, leite de soja, açaí, pão etc. Por mais de um mês.
Perdi mais ou menos 10 quilos. Diziam aqui em casa que sem comer o cardápio tradicional não iria
aguentar e, talvez, ir para a cidade dos pés juntos.
Saturei dessa comida velha, repetitiva. Agora, só peixe cozido ou caldo. E estou me levantando
graças aos produtos do mar.