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TV, EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES: SALTO PARA O FUTURO 20 ANOS Edição Especial - 2013 Volume 2

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TV, ED

UCAÇ

ÃO E F

ORMAÇ

ÃO DE

PROF

ESSO

RES:

SALTO

PARA

O FU

TURO

20 ANOS

Edição Especial - 2013 Volume 1Edição Especial - 2013 Volume 2Edição Especial - 2013 Volume 3Edição Especial - 2013 Volume 4

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Copyright © 2013 by ACERP/TV Escola

Diagramação e editoração

Núcleo de Produção Gráfica de Mídia Imprensa

Gerência de Criação e Produção de Arte

Preparação e revisão:

Magda Frediani Martins

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

T911

TV, educação e formação de professores [recurso eletrônico] : Salto para o Futuro : 20

anos / Rosa Helena Mendonça, Magda Frediani Martins (org.). - Rio de Janeiro : ACERP ;

Brasília, DF : TV Escola , 2013.

4 v., recurso digital

Formato:

Requisitos do sistema:

Modo de acesso: World Wide Web

Inclui bibliografia e índice

ISBN 978-85-60972-02-3 (v. 1) - 978-85-60792-03-0 (v. 2) - 978-85-60792-04-7 (v. 3) - 978-85-

60792-05-4 (v. 4) (recurso eletrônico)

1. Educação 2. Educação - Aspectos sociais 3. TV Escola (Programa de televisão) 4. Livros

eletrônicos. I. Mendonça, Rosa Helena II. Martins, Magda Frediani. III. Ministério da Edu-

cação.

13-1708. CDD: 370.981

CDU: 37(81)

15.03.13 20.03.13 043546

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3

Presidência da República

Ministério da Educação

Secretaria de Educação Básica

TV, educação e formação deprofessores:

salTo para o fuTuro- 20 anos -

Organização

Rosa Helena Mendonça

Magda Frediani Martins

(Equipe de Educação da TV Escola)

Salto para o Futuro/TV Escola/ SEB-MEC

Rio de Janeiro/ Brasília

2013

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Volume 2 ‘eSPAÇoSTemPoS’ NoS CoTIDIANoS CuRRICulAReS

SuMáRiO

Apresentação ............................................................................................................ 5

Rosa Helena Mendonça e Magda Frediani Martins

2.1 Os ‘espaçostempos’ da televisão em nossos cotidianos ...................................... 9

Nilda Alves

2.2 Educação e transdisciplinaridade em uma civilização em mudança ................ 20

Ubiratan D’Ambrosio

2.3 Ensino Médio indígena e o desafio da sustentabilidade dos povos indígenas ... 26

Gersem Baniwa

2.4 Educação ao longo da vida ................................................................................ 40

Ivanilde Apoluceno de Oliveira

2.5 Educação de Jovens e Adultos e formação continuada de professores mediadas

pela tecnologia: mudanças e saltos .........................................................................51

Jane Paiva

2.6 Trabalho, emprego e Educação Básica: distinções e relações ........................... 64

Gaudêncio Frigotto

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5

APReSeNTAÇão

Rosa Helena Mendonça1

Magda Frediani Martins2

A publicação TV, educação e formação de pro-

fessores: Salto para o Futuro – 20 anos come-

mora a trajetória do programa, ao longo de

duas décadas, destacando temas fundamen-

tais para o debate sobre TV, educação e for-

mação de professores. Esta publicação, na

sua versão digital, está organizada em qua-

tro volumes, expressos nos seguintes eixos:

Volume 1 - LINGUAGENS E SENTIDOS; Volu-

me 2 - ‘ESPAÇOSTEMPOS’ NOS COTIDIANOS

CURRICULARES; Volume 3: TECENDO NAR-

RATIVAS; Volume 4: NOVOS SABERES PARA A

EDUCAÇÃO.

Abrimos este segundo volume com o artigo

de Nilda Alves, tomando emprestado, para

intitulá-lo, a expressão ‘espaçostempos’ usa-

da pela autora para evidenciar a indissocia-

bilidade dessas duas dimensões nas práticas

de ensinar e aprender dentro e fora das es-

colas. Os textos dessa seção versam, dadas

as especificidades das abordagens, sobre

os currículos e suas múltiplas concepções

e implicações nos cotidianos. ‘Espaçostem-

pos’ nos cotidianos curriculares apresenta,

assim, artigos que problematizam as noções

de tempo e espaço na contemporaneida-

de, atravessada por artefatos tecnológicos

e constituída pela tessitura de redes de co-

nhecimentos e significados.

No primeiro texto deste segundo volume,

Nilda Alves3, tendo como referenciais Mi-

chel de Certeau, Homi Bhabha, Boaventu-

ra de Sousa Santos e outros autores, busca

compreender as relações da televisão – e em

especial do programa o Salto para o Futuro –

com os cotidianos escolares e seus pratican-

tes, destacando que “essas relações se dão

em meio à tessitura que fazemos com/nas

inúmeras redes educativas e em ‘conversas’

variadas que temos com seus tantos outros

1 Supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC). Doutoranda no PROPED- UERJ. Organizadora da publicação.

2 Professora, escritora e revisora de textos do programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC). Organizadora e revisora da publicação.

3 Nilda Alves foi consultora da série Cotidianos, imagens e narrativas, com veiculação no programa Salto para o Futuro/TV Escola no ano de 2009, e participou como especialista convidada de outras séries do Salto.

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praticantes”. A autora observa que “os coti-

dianos escolares – sempre no plural, porque

são tantos e tão diversos – só podem ser en-

tendidos se aceitamos trabalhar com a sua

complexidade e com os muitos limites – e

também estímulos – que esta nos coloca”.

Seu instigante texto também discute “a rela-

ção entre cotidianos-mídias com a reprodu-

ção/transmissão/criação de valores no ‘uso’

da televisão”, ressaltando que é preciso dar

atenção a esse uso, buscando compreendê-

lo e às lógicas que o sustentam, tendo em

vista perceber/entender as múltiplas redes

educativas, com seus diferentes processos

de conhecer e com os diferentes conheci-

mentos nelas criados.

Ubiratan D’Ambrosio4 discute em seu texto as

grandes transformações que acontecem na

sociedade e, em particular, na educação, ana-

lisando que essas transformações são resulta-

do da mundialização e dão origem à globali-

zação e ao multiculturalismo. O autor critica

a ciência moderna, que assume uma postura

de arrogância ao propor “teorias finais”, isto

é, explicações que se pretendem definitivas so-

bre a origem e a evolução das coisas naturais,

e ressalta a necessidade de se adotar o enfoque

transdisciplinar, que se apoia na recuperação

das várias dimensões do ser humano para a

compreensão do mundo na sua integralidade.

Comenta, ainda, que a proposta transdiscipli-

nar é pautada pela busca incessante e também

pelo respeito, pela solidariedade e pela coope-

ração e que vai além das limitações impostas

pelos métodos e objetos de estudos das disci-

plinas e das interdisciplinas.

Gersem Baniwa5 aborda os desafios que o En-

sino Médio voltado para os povos indígenas

enfrenta quanto à necessidade de contribuir

para a sustentabilidade de vida desses povos

em seus territórios, tendo como referência os

debates que ocorreram na série do Salto para

o Futuro/TV Escola da qual foi consultor. O

autor destaca que o Salto para o Futuro foi

pioneiro na iniciativa de pôr em debate este

tema tão relevante para os povos indígenas,

tendo em vista que as escolas indígenas que

atuam com o Ensino Médio, pautadas na

ideia de sustentabilidade, têm relação direta

com as condições de vida, no presente e no

futuro, desses povos. Gersem Baniwa afirma,

ainda, que o maior desafio dos 225 povos in-

dígenas que vivem no Brasil é “garantir sua

autonomia por meio de projetos específicos

de etnodesenvolvimento em seus territórios,

que sejam capazes de articular as experiên-

cias e os conhecimentos tradicionais às no-

vas técnicas e tecnologias da modernidade”.

4 Ubiratan D’Ambrosio foi consultor da série Debate: complexidade e seus reflexos na educação, com veiculação no programa Salto para o Futuro/TV Escola no ano de 2002, e participou como especialista convidado de outras séries do Salto.

5 Gersem Baniwa foi consultor da série Ensino Médio e sustentabilidade em terras indígenas, com veiculação no programa Salto para o Futuro/TV Escola no ano de 2007.

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ivanilde Apoluceno de Oliveira6 apresenta

reflexões sobre sua participação como con-

sultora na série Educação ao longo da vida,

no programa Salto para o Futuro/TV Escola.

O objetivo da série era divulgar e discutir a

VI Conferência Internacional de Educação de

Jovens e Adultos (CONFINTEA), promovida

pela UNESCO, realizada na cidade de Belém,

no Pará. Tomando como referência autores

como Paulo Freire, além de outros educado-

res, a autora destaca que a educação é um

aprendizado que acontece ao longo da vida,

uma vez que “se processa nas relações de

homens e mulheres com o mundo, de forma

permanente, bem como (...) tem como fim a

própria formação do ser humano”. A autora

também defende as propostas pedagógicas

das práticas educacionais não escolares “que

vêm demarcando a diferença em relação às

práticas escolares com jovens, adultos e ido-

sos, por apresentarem, de modo geral, víncu-

lo com a educação popular, cuja luta é pela

democratização do ensino e por melhores

condições de vida das classes populares”.

Jane Paiva7 se reporta às suas participações

no Salto para o Futuro/TV Escola desde 1995,

como consultora de séries temáticas sobre

Educação de Jovens e Adultos – EJA. Destaca

que o Salto para o Futuro, por ser um progra-

ma de rede de televisão educativa pública,

teve um papel significativo na discussão de

temas tão relevantes para nossa sociedade,

como a formação continuada de professores,

mediada pela tecnologia, e a educação de jo-

vens e adultos. A autora comenta também

que apesar de o Salto ter a televisão como “o

grande veículo/ferramenta que configurou

o ambiente de aprendizagem do programa,

diversos outros recursos contribuíram para

sua função formadora: impressos, telefone,

fax, e, mais recentemente a Internet, além

de ter experienciado formatos, recursos, di-

nâmicas, âncoras, especialistas, cenários,

em busca de maior interatividade/aproxima-

ção com seu público”. Ressalta, ainda, que o

Salto para o Futuro tem seu lugar na história

da educação no país e que “nesses 20 anos

de Salto, sem dúvida, a EJA tem muito a co-

memorar, pelo modo como esteve presente

na programação, pelo compromisso de ges-

tores, de supervisores pedagógicos, de equi-

pes, que alimentaram a possibilidade de dar

corpo e produzir sentidos à temática”.

Gaudêncio Frigotto8 traz um enfoque his-

6 Ivanilde Apoluceno de Oliveira foi consultora na série Educação ao longo da vida, com veiculação no programa Salto para o Futuro/TV Escola no ano de 2009.

7 Além das diversas séries em que atuou como consultora, entre elas EJA: continuar e aprender por toda a vida, com veiculação no programa Salto para o Futuro/TV Escola no ano de 2004, Jane Paiva também participou como especialista convidada de inúmeras séries que abordaram esta temática.

8 Gaudêncio Frigotto participou como autor de textos e debatedor de várias séries que trataram da temática juventude e trabalho no programa Salto para o Futuro, tendo mediado o debate, em 1998, da série Projeto Político Pedagógico da Escola Cidadã, que contou com a consultoria de Moacir Gadotti e outros (Instituto Paulo Freire).

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tórico-econômico-social sobre o tema tra-

balho, emprego e educação e seus reflexos

nos currículos escolares, ressaltando que “o

trabalho se constitui em direito universal,

isto é, de cada ser humano e em qualquer

tempo, pelo simples fato de que é através

dele que se tem a possibilidade de produ-

ção e reprodução da vida”. O autor também

discute questões emergentes da contempo-

raneidade, como a desigualdade social e o

desemprego, entre outras. No cenário atu-

al da nossa sociedade, diante das crises do

sistema capitalista, o autor indaga: “Chega-

mos ao século XXI com uma realidade em

que a ciência e a tecnologia poderiam libe-

rar tempo livre, modo de fruição, criação e

liberdade humana e, ao contrário, se produz

o desemprego, o trabalho precário e a su-

per exploração. (...) Milhares de trabalhado-

res e, especialmente, os jovens não podem

programar o futuro e vivem uma situação

psicossocial de provisoriedade e de vida em

suspenso”. Neste contexto, o autor propõe

que se pense uma relação entre o trabalho

e a educação básica que permita questionar

essa realidade, apontando novos caminhos.

As organizadoras

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2.1oS ‘eSPAÇoSTemPoS’ DA TeleVISão em NoSSoS CoTIDIANoS

Nilda Alves9

Entre a ideia/ e a realidade/

entre o movimento/ e o ato.

(Eliot, in Manguel, 2001)10

A POSSiBiliDADE DE AlGuMAS

inTRODuçõES

Há alguns anos tive um orientando11 que, em

seu mestrado, desenvolveu uma dissertação

com nove introduções. Sem chegar ao seu

exagero, vou precisar copiá-lo, pois neste

mundo fragmentado, falar de minhas rela-

ções com o Salto para o Futuro está exigindo

assim agir. Minha primeira introdução per-

mite que eu traga ao texto uma fotografia

com a qual venho há muito trabalhando:

Nessa fotografia12, encontrada no rico acervo

do Musée Nacional de l’Éducation, localizado

em Rouen, na França, podemos ver uma das

primeiras imagens feitas com televisão na

escola, no final da década de 50, do século

XX. Nela, uma turma de curiosos estudantes

olha para esse artefato cultural, enquanto a

posição dos dois adultos nos surpreende: um

técnico que “sabe” apresenta a televisão à

turma, estando perfeitamente à vontade na

situação, o que pode ser “sentido” pelo modo

como coloca seu corpo – o braço apoiado

sobre a mesa da professora, dando as costas

para ela. Essa, ao contrário, demonstra seu

pouco à vontade com sua posição encolhida,

as mãos unidas, só com o rosto ligeiramente

virado para a televisão. Com essa fotografia,

creio, podemos ver a representação perfeita

do modo absolutamente desrespeitoso com

9 Professora titular da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), onde coordena o Laboratório Educação e Imagem (www.lab-eduimagem.pro.br) e é líder do GRPESQ “Currículos, redes educativas e imagens”, no ProPEd (www.proped.br).

10 Cf. T. S. Eliot. The Hollow Men, in The Complet Poems of T. S. Eliot. Londres: Faber& Faber, 1962.

11 Este orientando é o Prof. Dr. Paulo Sgarbi, meu colega no Programa de Pós-graduação em Educação da UERJ.

12 Não encontrei referência ao autor da foto – devia ser um servidor público do sistema francês de educação à época que, simplesmente, fazia seu trabalho e por isso não teve sua autoria registrada. A imagem foi cedida pela direção do museu para uso pela autora do texto.

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que a televisão e, em seguida, outros artefa-

tos tecnológicos foram sendo introduzidos

na escola, sem consideração pelos proces-

sos curriculares que aí se desenvolviam, sem

quase nenhum diálogo com aquilo que as

professoras13 faziam na escola e pelo que sa-

biam sobre esses processos.

Minha percepção do que conheço da história

do Salto mostra uma posição bem diferente:

as professoras, mesmo com as dificuldades

de comunicação que havia nos seus come-

ços, eram/são ouvidas. Seria interessante

bus car compreender porque isto se deu. Mi-

nha hipótese está na ideia de que as pedago-

gas que atuavam/atuam desde os primeiros

tempos tinham sido professoras e sabiam

desse desrespeito, não querendo repeti-lo.

Minha segunda introdução é para falar so-

bre as minhas relações com o Salto. Ela está

contida, de maneira poética, na epígrafe que

escolhi para este texto e pode ser explicita-

da de outra maneira: estive/estou/estarei no

que Bhabha (2000) chama de entre lugares,

já que pesquisadora na universidade, de-

senvolvendo trabalhos sobre este “meio”,

fazendo sua crítica, portanto, sou uma assí-

dua frequentadora dos programas do Salto,

chamada que sou, por suas equipes, para

participar de inúmeras séries, há muito tem-

po. Para essas séries, com a minha partici-

pação, pude levar ao programa a ideia14 de

que os cotidianos são espaçostempos15 tanto

das redes microbianas de poder, de Foucault

(1999; 1991), como são espaçostempos de tá-

ticas dos praticantes (CERTEAU, 1994), que

têm como única forma de ser o próprio fa-

zer desses em seus tantos cotidianos.

Uma terceira introdução é necessária para

esclarecer que, pesquisando os múltiplos

cotidianos, nos quais todos os praticantes

aprendemensinam, ao mesmo tempo, per-

cebo que todos criam conhecimentos e sig-

nificações de que fazem ‘uso’ em sua vida,

em múltiplas redes educativas. Essa ideia

permite compreender que os cotidianos es-

colares e os currículos que neles são pratica-

dos correspondem a um dos espaçostempos

educativos dentro dos quais todos nos for-

mamos. Sendo assim, nossos conhecimen-

tos e significações são trançados em nossas

tantas redes cotidianas, ou seja, nas escolas

13 Nesse texto, como em muitos outros, prefiro usar esse feminino que define melhor a maioria dos praticantes docentes.

14 Lefebvre (1983) nos indica, entre as páginas 233 e 236, as múltiplas determinações da ideia. Para esse artigo, retenho que como termo de conhecimento, recapitulando todo o movimento do conhecimento e, portanto, retornando ao imediato, a ‘ideia’ é unidade da ‘mediação’ (da abstração, do pensamento) e do ‘imediatamente’ dado (da natureza).

15 Nas pesquisas nos/dos/com os cotidianos, percebemos que as dicotomias necessárias ao desenvolvimento do pensamento moderno – com as ciências presentes nisso – têm representado limites para a compreensão dos conhecimentos e significações cotidianamente criados. Para mostrar isto, temos preferido marcar com esse modo de escrita nossas tentativas de superação dos modos modernos de pensar. Muitos outros termos aparecerão assim grafados nesse texto.

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que frequentamos, mas também nas mídias

que ‘usamos’, nas relações que estabelece-

mos com os locais em que vivemos e com

os governos que aí se estabelecem e, ainda,

com os movimentos sociais dos quais par-

ticipamos. É por isso que as relações entre

essas múltiplas redes educativas16 precisam

ser compreendidas, exigindo pesquisas so-

bre elas e suas complexas relações.

DuAS hiSTóRiAS SOBRE

TElEviSãO

Para falar das relações de pesquisa que tenho

com esse artefato tecnológico – a televisão

– começo por contar, indicando que a narra-

tiva é a própria forma de ‘lembrar’, de ‘bus-

car a memória’ nos/dos/com os cotidianos,

duas histórias que têm a ver com televisão,

porque é com ela que venho – com muitos

outros, para meu grande prazer – buscando

instalar alguns processos: 1) compreender a

questão das identidades e dos valores, ven-

do-os como conhecimentos especiais que

nos levam à ação e nos identificam (e que,

com o sinal negativo, os chamamos ‘precon-

ceitos’); 2) tecer práticasteoriaspráticas na

questão dos currículos praticados17, também

muito diversos e que são aqueles desenvol-

vidos nos cotidianos escolares.

A primeira história se passa em um dia no

qual nenhum de nós pôde deixar de olhar

televisão, o terrível 11 de setembro de 2001:

[…] a cena que víamos era fixada pelo

que chamamos ‘um cinegrafista ama-

dor’ já que a filmagem mostrada era

pouco ‘profissional’. Como algumas de-

zenas, muito próximo das ‘torres gême-

as’, ainda sem entender muito bem o que

acontecia, ele tentava filmar o incêndio

da primeira torre atingida. Filmava de

baixo, é claro, e sem que percebesse, ti-

nha no canto da direita, em baixo, um

homem que olhava para algo que estava

mais abaixo dele e que não aparece no

que nosso ‘cinegrafista amador’ decidira

filmar: as torres estavam ao fundo e aci-

ma da cena e são o ‘centro do espetáculo’

(“quanto poderia ganhar vendendo esta

imagem, se conseguisse algo de bom?” ,

devia estar pensando). Neste momento,

entra ‘no ar’, no que está sendo gravado

por ele, o segundo avião naquela mano-

bra que não é muito bem vista do ângulo

de onde estamos vendo o que se passa,

acompanhando a filmagem de ‘nosso’

cinegrafista. O avião bate e penetra na

segunda torre! O homem que olhava

para baixo, quando o que imaginamos

16 A noção mesmo de redes educativas precisa ser desenvolvida e compreendida. Lembro que Lefebvre (1983) nos indica que o recurso à noção aparece quando, em ciência, não temos ainda um conceito fechado sobre uma questão. Desta maneira, o recurso à noção vai aparecer quando um determinado pensamento ainda está em curso. A mim parece muito útil, nestes momentos de tantas dúvidas epistemológicas.

17 Essa denominação foi criada por Inês Barbosa de Oliveira (OLIVEIRA, 2005).

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ter sido um estrondo ensurdecedor vem

de sua esquerda, dá um salto para trás

fugindo de algo que continuamos não

vendo, e, só depois, olha para cima, de

onde viera o som e onde a cena se passa-

va na ‘realidade’ e sai correndo na dire-

ção da câmera e daquele que a usava e

some de cena. Descobrimos, então, sem

ter visto, que esse homem olhava um

aparelho de televisão, no qual deveria

estar sendo projetada a curva ‘espetacu-

lar’ do segundo avião - filmada por uma

cadeia regular de televisão do alto de um

prédio - e o choque com a torre que to-

dos presenciamos ‘ao vivo e a cores’ e se

afasta desta cena e do aparelho quando

dá o pulo para trás. Só quando lhe che-

ga o som é que ele se dá conta de que

está muito próximo do acontecido, olha

muito rapidamente e sai correndo para

longe do perigo que pressente e sente.

A segunda história me foi contada por uma

amiga e aconteceu com ela e sua filha que,

então, tinha dez anos:

Ana e sua mãe assistiam um desses fil-

mes bem cheio de facas e sangue. Em

um primeiro momento, quando aparece

a primeira morte, Ana pergunta: ‘mãe,

esta faca é de verdade?’ Sem nenhuma

paciência, a mãe responde: ‘você sabe

que é de mentira!’ O filme continua,

em uma sequência horrível de mortes

e Ana pergunta: ‘mãe este sangue é de

verdade?’ A mãe com menos paciência

responde: ‘você sabe que é de mentira!’

E as tais cenas de faca e sangue se repe-

tem e Ana pergunta, de novo, se aquilo

é de verdade, a mãe responde do mes-

mo jeito e Ana faz a pergunta crucial

que tudo muda: ‘como é que pode não

ser verdade, se algumas vezes é de ver-

dade?’ A mãe entende, então, que depois

de tantas guerras ‘de verdade’ vistas na

televisão, sua filha de dez anos já não

sabe distinguir, talvez, quando se morre

e se mata ‘de verdade’ ou ‘de mentira’.

Uma longa discussão se seguiu entre as

duas sobre tudo isto, mas a mãe saiu da

conversa sem nenhuma certeza de se po-

deria ‘lutar’ contra as tantas verdades/

meias verdades/mentiras que sua filha

vê e talvez não possa distinguir agora.

Saberá distinguir depois?18

Essas histórias – que formam, talvez, uma

quarta introdução – entram aqui para po-

dermos indicar as questões que, de acordo

com o que entendemos, devem ser coloca-

das dentro da relação televisão-cotidianos.

Uma dessas questões precisa ser: ‘e a escola

com tudo isto?’. A outra talvez pudesse ser:

‘o que significa essa relação em um mundo

18 Para tranquilizar os eventuais leitores, informo que Ana está hoje com dezoito anos e sabe bem distinguir essas coisas.

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13

no qual seus praticantes, entre o que a ciên-

cia ensinou a chamar de realidade e o que é

projetado na tela de uma televisão, parecem

preferir ou só têm a possibilidade de ‘ver na

televisão’?’ Por fim, valeria perguntar: ‘é isto

mesmo ou há algo mais?’

ESTuDAR OS cOTiDiAnOS

PARA RElAciOná-lOS cOM A

TElEviSãO E SuAS cRiAçõES

Uma primeira aproximação de resposta a es-

sas questões nos diz que os cotidianos esco-

lares – sempre no plural, porque são tantos

e tão diversos – só podem ser entendidos se

aceitamos trabalhar com a sua complexida-

de e com os tantos limites – e também estí-

mulos – que esta nos coloca.

Certeau (1994) dá pistas para que entenda-

mos essa complexidade, quando explica as

artes de fazer, em seus trabalhos sobre as

maneiras de viver nos cotidianos. Ele afir-

ma que para além de discutir o consumo

daquilo que é produzido/vendido pelos que

dominam o mundo, é preciso compreender

o uso que os seres humanos comuns fazem

dos artefatos culturais – de ideias a eletro-

domésticos – como espaçotempo de criação

de tecnologias, de conhecimentos e signifi-

cações. Certeau indica, assim, que no lugar

das estratégias construídas pelos que ten-

tam organizar o mundo segundo seus inte-

resses, vendo do alto, e tendo o domínio do

espaço, fazendo-o lugar pela apropriação,

viver em nossos múltiplos cotidianos tem,

como única possibilidade, estabelecer tá-

ticas – modos de agir na prática – que são

vitais na ocupação do próprio alheio. Essas

táticas, como não são iluminadas, não fa-

zem barulho e duram pouco, quase não são

percebidas pelas lentes e pelos aparelhos de

ouvir com que as próprias estratégias nos

habituaram. Nossas identidades, diversas e

diferentes, são formadas nessas táticas de

praticantes, nos tantos espaços/tempos pe-

los quais circulamos, que formamos e que

nos formam, nos quais reproduzimos, trans-

mitimos e criamos nossos conhecimentos e

as significações sobre o mundo, a natureza

e os seres humanos. Isso se dá, nas palavras

de Certeau (1994), entendendo a tática como

[…] a ação calculada que é determina-

da pela ausência de um ‘próprio’.(...) A

tática não tem lugar senão o do outro.

(...) Não tem meios para se manter em

si mesma, à distância, numa posição

recuada, de previsão e de convocação

própria: a tática é movimento ‘dentro

do campo de visão do inimigo’, (...), e no

espaço por ele controlado. Ela não tem

portanto a possibilidade de dar a si mes-

ma um projeto global nem de totalizar

o adversário num espaço distinto, visível

e objetivável. Ela opera golpe por golpe,

lance por lance. Aproveita as ‘ocasiões’

e delas depende, sem base para estocar

benefícios, aumentar a propriedade e

prever saídas (p.100).

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Desta maneira, o reconhecimento e a aceita-

ção desses fatos como parte dos diferentes

cotidianos escolares existentes exigem que

afirmemos a necessidade de se entender, dis-

cutir e negociar com os múltiplos conheci-

mentos tecidos nas e entre as várias redes

educativas que ajudamos a criar e nas quais

nos formamos. Para buscar entender a rela-

ção entre cotidianos-mídias com a reprodu-

ção/ transmissão/criação de valores no ‘uso’

da televisão é preciso dar atenção a esse uso,

buscando compreendê-lo e às lógicas que o

sustentam. Den-

tro dessas redes,

vamos perceben-

do os múltiplos

processos edu-

cativos contra-

ditórios entre si.

Cada discente

e cada docente,

bem como todos

os outros prati-

cantes (CERTEAU,

1994) dos cotidia-

nos escolares (cozinheiras, serventes, guar-

das escolares, pais, mães e responsáveis, líde-

res comunitários, membros de movimentos

sociais etc.), que entram nos espaçostempos

escolares carregam consigo a rede de subje-

tividade (SANTOS, 1995) de que fazem parte.

Ou, dizendo de outra maneira: trazem con-

sigo as múltiplas redes educativas nas quais

vivem, com seus diferentes processos de co-

nhecer e com os diferentes conhecimentos

nelas criados, quer tenhamos ou não olhos

para ver, ouvidos para escutar, boca para sa-

borear, nariz para cheirar, pele para tocar,

ainda, essa complexa situação.

A reprodução/transmissão/criação de valo-

res, esses conhecimentos tão especiais, pe-

los quais nos identificamos e agimos, por

exemplo, vai exigir processos educativos

diferenciados em cada

uma das redes edu-

cativas e precisamos

lembrar, sempre, que

os valores com sinal

negativo são chamados

preconceitos. Como

discuti-los e trabalhá-

los nas escolas é, tal-

vez, o grande desafio,

hoje, aos que lutam

por compreender como

formamos espaçostem-

pos de solidariedade e de ações democrá-

ticas, para a criação de um outro mundo.

Isso significa que não bastam discursos,

por mais bem intencionados e competentes

que sejam, ou por mais bem escritos que te-

nham sido em diretrizes curriculares, para

“dissolver”19 preconceitos. Precisamos, sim,

19 Naturalmente, as aspas demonstram que este termo, embora muito usado, é impróprio para a discussão e as ações que precisamos desenvolver sobre/contra os preconceitos.

O conjunto dos

conhecimentos cotidianos,

criados e trançados uns nos

outros nos tantos contextos

cotidianos em que todos

nós vivemos, forma o

que pode ser chamado de

conhecimento praticado.

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nos predispor a compreender os tantos pro-

cessos que se dão nas múltiplas redes coti-

dianas de viver.

O conjunto dos conhecimentos cotidianos,

criados e trançados uns nos outros nos tan-

tos contextos cotidianos em que todos nós

vivemos, forma o que pode ser chamado de

conhecimento praticado. No pensamento de

Certeau (1994), o conhecimento praticado,

tecido nos múltiplos, inesperados e nada line-

ares contatos cotidianos, só pode ser criado

pela astúcia, já que não tem um espaço pró-

prio. Mais ainda: Certeau lembra que a vida

cotidiana, com os cotidianos das escolas den-

tro dela, tem uma história muda até agora

para nossos ouvidos surdos aos seus modos

de dizer. Para compreendê-la, como ele tam-

bém indica, será como decifrar um palimp-

sesto20 pois os cotidianos também têm histó-

rias que vão se modificando e se inscrevendo

umas sobre as outras. Isto significa que exis-

tem memórias que podem, com especial difi-

culdade é verdade, serem recuperadas. Neste

sentido, Certeau (1994) recomenda que para

ler e escrever a cultura [comum]21, é mister re-

aprender operações comuns e fazer da análise

uma variante do seu objeto (p. 35). Isto exige

que nos dediquemos a criar e discutir episte-

mologias e metodologias diferentes das do-

minantes para decifrar o ‘pergaminho’, mo-

vimento confirmado, mais atualmente, por

Santos e Menezes (2010).

Se com essas ideias e noções busco compre-

ender os cotidianos das escolas e das salas

de aula nas relações que mantêm com re-

des educativas variadas, penso que só aos

que têm espaços/tempos próprios, em geral

colocados em lugares fora e ‘acima’ das es-

colas, é possível pensar e agir estrategica-

mente. Por isto, somente esses sujeitos de

querer e poder conseguem pensar (e fazer)

que é possível desenvolver projetos e pro-

postas pedagógicas e curriculares gerais, es-

tratégicas, às quais, segundo a visão deles

mesmos, os outros, os praticantes dos coti-

dianos escolares, devem se adaptar.

No entanto, dentro ainda da explicação que

nos dá Certeau, os praticantes dos cotidia-

nos não só consomem os produtos que lhes

são ‘fornecidos’, como fazem uso deles, con-

seguindo estar onde ninguém espera e cap-

tando no voo as possibilidades oferecidas

por um instante. Isto porque, em suma, a

tática é a arte do fraco (p.101). Artes22 que

se colocam para além da racionalidade do-

20 O palimpsesto era o pergaminho que servia para escrever, durante a chamada Idade Média. Como era material raro e caro, o que nele era escrito era apagado e se reescrevia sobre ele, muitas vezes. Naturalmente, como não havia técnicas de apagar bem, as mensagens anteriores continuavam marcando o pergaminho. Com isto é possível ler as inúmeras mensagens que foram sendo escritas umas sobre as outras.

21 A palavra usada pelo tradutor é ordinária, de ordinaire como está no original. Esta palavra, no entanto, em português (do Brasil) tem uma conotação forte e diferente que não corresponde ao que o autor quer dizer.

22 O título que Certeau dá ao seu livro me permite pluralizar o termo.

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minante, que jogam com as emoções, que

são criadas, permanentemente, combinan-

do possibilidades, fazendo surgir inúmeras

alternativas, em trajetórias que não podem

ser previamente determinadas porque serão

sempre diferentes, diversificadas e cuja be-

leza precisamos aprenderensinar a olhar.

É, assim, dentro dessas possibilidades que

vamos compreendendo as relações da tele-

visão – e do programa Salto para o Futuro

– com os cotidianos escolares e seus prati-

cantes. Essas relações se dão em meio à tes-

situra que fazemos com/nas inúmeras redes

educativas e em ‘conversas’ variadas que

temos com seus tantos outros praticantes.

Nesse sentido, uma das preocupações mui-

to fortes que pode ser percebida quanto ao

campo educacional refere-se à recuperação

dos processos históricos de proposição, cria-

ção e vivência de ações educativas – em cur-

rículos, em didática, em avaliação, a partir

do local e do próximo, dos cotidianos, em

uma palavra, contrapondo-se à tendência

ainda hegemônica que é a da “importação”

de modelos e ideias, porque mais “baratas”,

segundo a justificativa dos funcionários des-

ta tendência, porque mais fácil de vender,

como nos indica Morley (1996). Produzir

um programa nacional – com pedagogos,

jornalistas e técnicos – por tanto tempo,

resistindo a tantas mudanças governamen-

tais e institucionais, é um acontecimento23

(FOUCAULT, 1971) e que, assim, precisa ser

pesquisado para ser compreendido, no que,

nas diversas fases, trouxe de diferente à te-

levisão educativa brasileira – bem como à

televisão, em geral.

Sobre o processo de criar “o novo” e estudar

a história de um programa em seu processo

de manutençãomudança ou de repetiçõesdife-

renças no que foi criado, no tempo, poderí-

amos, talvez, afirmar com Santos (1996) que

nessa recuperação reside o cerne de um proje-

to educativo emancipatório, adequado ao tem-

po presente. Essa tendência tem a ver com a

discussão de como chegamos onde estamos,

analisando os erros cometidos e buscando

as opções abandonadas, o que, segundo al-

guns que vêm se tornando muitos (SANTOS,

1996; PRIGOGINE, 1995; NAJMANOVICH,

1995), é o caminho necessário, hoje, para a

extensão de nossa humanidade. Isso, sabe-

mos todos, não é/não pode ser uma emprei-

tada individual, só pode ser coletiva. Mudar

formas de pensar e de agir, para tecer os no-

23 Para Foucault (1971), acontecimento – é preciso entendê-lo não como uma decisão, um tratado, um reinado ou uma batalha, mas como uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus usuários, uma dominação que se debilita, se distende, se envenena a si mesma, e outra que entra, mascarada. As forças em jogo na história não obedecem nem a um destino, nem a uma mecânica, mas efetivamente ao acaso da luta. Elas não se manifestam como as formas sucessivas de uma intenção primordial; tão pouco assumem o aspecto de um resultado. Aparecem sempre no aleatório singular do acontecimento (FOUCAULT, 1971, p.145-172).

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vos conhecimentos e significações, criando

um outro mundo possível e necessário, exige

conflitos e confrontos, exige críticas ao pas-

sado, aos múltiplos erros que isolaram par-

celas significativas (a maioria) da humanida-

de, dando-lhes o mínimo dos bens criados e

produzidos, negando-lhes o direito de terem

reconhecidos os conhecimentos produzidos

em suas culturas vividas (WILLIAMS, 1992),

seus valores e os modos como teciam/tecem

suas identidades. Mas significa, também,

reconhecer o que

múltiplas equipes

– como as que

se sucederam no

Salto – criaram

pensando nos dis-

centes e docentes

deste país.

Esses tantos mo-

vimentos que

existem nos mui-

tos e diferentes

contextos cotidianos, envolvendo múltiplos

praticantes, vão permitindo perceber pro-

cessos de transformação desenvolvidos com

ritmos desiguais, mas que estão presentes,

diferentemente, nas diversas redes educati-

vas. Ou seja, as propostas alternativas gesta-

das nos cotidianos não se deram/dão/darão

igualmente em todos os espaçostempos. É

preciso, pois, que nos apliquemos a perce-

ber tanto as diferenças topóticas quanto as

diacrônicas. São nesses múltiplos e diferen-

tes espaçostempos que tecemos as redes

educativas nas quais vivemos e que estão

presentes, como desafios, em nossos coti-

dianos escolares.

Entendo, assim, que precisa ser compreendi-

da a necessidade de programas como o Salto,

que colocam a produção de conhecimentos

e significações dos pra-

ticantes das escolas em

contatos férteis com a

produção dos pratican-

tes das universidades

e dos movimentos so-

ciais e, ainda, que esta

experiência deve ser

multiplicada.

Para isso, é urgente que

compreendamos que,

no presente, estamos,

como sempre estivemos, mas disto tendo,

agora, consciência, no meio: entre o passa-

do e o futuro. Do passado, precisamos iden-

tificar todos os erros cometidos para tentar

não cometê-los mais. Quanto ao futuro, ca-

be-nos nele colocar a utopia24 como fizeram

os que nos antecederam, buscando criar,

talvez, uma pedagogia da emancipação, que

São nesses múltiplos e

diferentes espaçostempos

que tecemos as redes

educativas nas quais

vivemos e que estão

presentes, como desafios,

em nossos cotidianos

escolares.

24 Santos (1995) define: utopia é a exploração de novas possibilidades e vontades humanas, por via da oposição da imaginação à necessidade do que existe, só porque existe, em nome de algo radicalmente melhor que a humanidade tem direito de desejar e por que merece a pena lutar (p.323).

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liga cultura e renascimento cultural. Nela

cabe um papel importante à televisão, que

precisa ser pesquisada no que produziu de

educativo, até o presente, sabendo que esse

movimento precisa de um modo ‘novo’ de

pesquisar, como nos indicou Santos (1995),

para quem o paradigma emergente é inters-

ticial no modo como se pensa e pensa-se

afogado na realidade dos contextos em que

se pratica (p.103).

É por isso que precisamos compreender, em

um grande e plural movimento, que vivendo

nos cotidianos e estudando-os, neles neces-

sariamente mergulhados, precisamos falar

em redes educativas de conhecimentos e

significações e em entre lugares, sempre, já

que é nelas e neles que tecemos nossa hu-

manidade, com seus valores mutáveis e com

as identidades múltiplas forjadas em espa-

çostempos diversos.

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2.2eDuCAÇão e TRANSDISCIPlINARIDADe em umA CIVIlIZAÇão em muDANÇA

Ubiratan D’Ambrosio25

O impressionante desenvolvimento cientí-

fico e tecnológico que estamos vivenciando

afeta profundamente todas as relações hu-

manas, isto é, do indivíduo com si próprio,

do indivíduo com o outro e do indivíduo e da

sociedade com a natureza. A ampla utiliza-

ção dos meios digitais e da bioquímica são

exemplos desse desenvolvimento. A impor-

tância da ciência e da tecnologia e agora da

tecnociência é o resultado de especialização

exclusiva das várias áreas de conhecimento.

Essa especialização levou a uma linguagem

científica hermética, inacessível aos não ini-

ciados. Mas a complexidade do mundo mo-

derno exige uma educação que vá além das

disciplinas, uma educação transdisciplinar26.

Faz-se necessário mostrar ao grande público

os avanços da ciência e da tecnologia e, ao

mesmo tempo, alertar para a ameaça que

tais avanços possam vir a representar para

a sobrevivência da civilização no nosso pla-

neta. Esse tema foi abordado por mim em

diversos artigos publicados no Boletim do

Salto para o Futuro (2001, 2002, 2008)27.

Estamos passando por grandes transforma-

ções na sociedade e, em particular, na edu-

cação. Hoje, falamos em educação bilíngue,

em medicinas alternativas, no diálogo inter-

religioso. Inúmeras outras formas de multi-

culturalismo são notadas nos sistemas edu-

cacionais e na sociedade em geral.

As profundas transformações nos sistemas

de comunicação, de informatização, de

pro dução e de emprego são resultados da

mundialização e, consequentemente, dão

25 Doutor em Matemática pela USP. Professor Emérito da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Professor da Pós-graduação em Educação Matemática da Universidade Bandeirantes de São Paulo – UNIBAN.

26 Ubiratan D’Ambrosio: Educação para uma Sociedade em Transição. Campinas: Papirus Editora, 1999.

27 Ver os artigos: *Educar para uma Civilização Planetária. Boletim Salto para o Futuro: Tecnologia e Currículo, Rio de Janeiro, TV Escola/MEC, nov. 2001, p. 23-27.*Ciência Multicultural. Boletim do Salto para o Futuro: Debates: Multiculturalismo e Educação, Rio de Janeiro, TV Escola/ MEC, jul. 2002, p.25-30.*Complexidade e seus Reflexos na Educação, Boletim do Salto para o Futuro. Debates: Complexidade e seus Reflexos na Educação, Rio de Janeiro, TV Escola/MEC, dez. 2002, p.1-11; republicado no Boletim nº 9, jun. 2008, p.33-41.

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ori gem à globalização e ao multiculturalis-

mo. Os reflexos na geração e na aquisição de

conhecimento são evidentes.

Um resultado esperado dos sistemas educa-

cionais é a aquisição e produção de conhe-

cimento. Isso ocorre, fundamentalmente, a

partir da maneira como um indivíduo perce-

be a realidade nas suas várias manifestações:

• uma realidade individual, nas dimensões

sensorial, intuitiva, emocional, racional;

• uma realidade social, que é o reconheci-

mento da essencialidade do outro;

• uma realidade planetária, o que mostra

sua dependência do patrimônio natural

e cultural e sua responsabilidade na sua

preservação;

• uma realidade cósmica, levando-o a trans-

cender espaço e tempo e a própria existên-

cia, buscando explicações e historicidade.

As práticas ad hoc para lidar com situações

problemáticas surgidas da realidade são o

resultado da ação de conhecer. Isto é, o co-

nhecimento é deflagrado a partir da realida-

de. Conhecer é saber e fazer.

A geração e o acúmulo de conhecimento em

uma cultura obedecem a uma forma de co-

erência. Há uma comunalidade de ações na

qual se manifesta o zeitgeist, fundamental

na proposta historiográfica de F. Hegel (l770-

l83l). Essa comunalidade de ações é que ca-

racteriza uma cultura. Ela é identificada pe-

los seus sistemas de explicações, filosofias,

teorias, e ações e pelos comportamentos

cotidianos. Tudo isso se apoia em processos

de comunicação, de quantificação, de classi-

ficação, de comparação, de representações,

de contagem, de medição, de inferências.

Esses processos se dão de maneiras diferen-

tes nas diversas culturas e se transformam

ao longo do tempo. Eles sempre revelam

as influências do meio e se organizam com

uma lógica interna, se codificam e se forma-

lizam. Assim nasce o conhecimento.

Procuramos entender o conhecimento e o

comportamento humanos nas várias regiões

do planeta ao longo da evolução da humanida-

de, reconhecendo, naturalmente, que o conhe-

cimento se dá de maneira diferente em cultu-

ras diferentes e em épocas diferentes.

ETnOciênciA E

ETnOMATEMáTicA

Em meados da década de 1970 propus um

programa educacional que denominei Pro-

grama Etnomatemática. Embora o programa

Etnomatemática sugira ênfase na Matemáti-

ca, esse é um estudo da evolução cultural da

humanidade no seu sentido amplo, a partir

da dinâmica cultural que se nota nas mani-

festações matemáticas. Mas que não se con-

funda com a Matemática no sentido acadê-

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mico, estruturada como uma disciplina. Sem

dúvida, essa Matemática é importante, mas

de acordo com o eminente matemático Ro-

ger Penrose, ela representa uma área muito

pequena da atividade consciente que é pra-

ticada por uma pequena minoria de seres

conscientes para uma fração muito limitada

de sua vida consciente. O mesmo pode-se di-

zer sobre a ciência acadêmica em geral.

Em essência, o Programa Etnomatemática

é uma proposta

de teoria do co-

nhecimento, cujo

nome foi escolhi-

do por razões que

serão explicadas

mais adiante. Na

verdade, poderia

igualmente ser

denominado Pro-

grama Etnociên-

cia. Ao lembrar

a etimologia, ci-

ência vem do latim scio, que significa saber,

conhecer, e matemática vem do grego má-

thema, que significa ensinamento, está claro

que os Programas Etnomatemática e Etno-

ciência se complementam. Na verdade, na

acepção que proponho, eles se confundem28.

A ideia nasceu da análise de práticas mate-

máticas em diversos ambientes culturais, po-

rém foi ampliada para analisar diversas for-

mas de conhecimento, não apenas as teorias

e práticas matemáticas. O ponto de partida

é o exame da história das ciências, das artes,

das religiões em várias culturas. Adotamos

um enfoque historiográfico externalista, o

que significa procurar as relações entre o

desenvolvimento das disciplinas científicas,

ou das escolas artísticas, ou das doutrinas

religiosas, e o contexto sociocultural em que

tal desenvolvimento se

deu. O Programa Etno-

matemática vai além

desse externalismo,

pois aborda também as

relações íntimas entre

cognição e cultura.

Ao reconhecer que o

momento social está na

origem do conhecimen-

to, o programa, que é

de natureza holística,

procura compatibilizar Cognição, História e

Sociologia do Conhecimento e a Epistemolo-

gia Social num enfoque multicultural.

DA ARROGânciA DA cERTEzA à

huMilDADE DA BuScA

O enfoque holístico à história do conhe-

28 Ubiratan D’Ambrosio: Etnomatemática. Arte ou técnica de conhecer e Aprender. Editora Ática, São Paulo, 1990 e Etnomatemática. Elo entre as tradições e a modernidade. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2001.

O enfoque holístico à

história do conhecimento

consiste essencialmente

de uma análise crítica da

geração e produção de

conhecimento, da sua

organização intelectual e

social e da sua difusão.

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cimento consiste essencialmente de uma

análise crítica da geração e produção de

conhecimento, da sua organização inte-

lectual e social e da sua difusão. No en-

foque disciplinar, essas análises se fazem

desvinculadas, subordinadas a áreas de

conhecimento muitas vezes estanques:

ciências da cognição, epistemologia, ciên-

cias e artes, história, política, educação,

comunicações.

Considerando que a percepção de fatos é

influenciada pelo conhecimento, ao se fa-

lar em história do conhecimento estamos

falando da própria história do homem e do

seu hábitat no sentido amplo, isto é, da Ter-

ra e mesmo do Cosmos. Mas não há como

falar da Terra e do Cosmos desligados da

visão que o próprio homem criou e tem da

Terra e do Cosmos. A ciência moderna es-

barra numa postura de arrogância ao pro-

por “teorias finais”, isto é, explicações que

se pretendem definitivas sobre a origem e a

evolução das coisas naturais.

A proposta é o enfoque transdisciplinar, que

substitui a arrogância do pretenso saber ab-

soluto, que tem como consequências inevi-

táveis os comportamentos incontestados e

as soluções finais, pela humildade da busca

incessante, cujas consequências são respei-

to, solidariedade e cooperação29.

A transdisciplinaridade é, então, um enfo-

que holístico ao conhecimento que procura

levar a essas consequências e se apoia na re-

cuperação das várias dimensões do ser hu-

mano para a compreensão do mundo na sua

integralidade.

Lembremos que variantes da postura disci-

plinar têm sido propostas. As disciplinas dão

origem a métodos específicos para conhecer

objetos de estudo bem definidos.

A multidisciplinaridade procura reunir resul-

tados obtidos mediante o enfoque discipli-

nar. Como se pratica nos programas de um

curso escolar.

A interdisciplinaridade, muito procurada e

praticada hoje em dia, sobretudo nas esco-

las, transfere métodos de algumas discipli-

nas para outras, identificando assim novos

objetos de estudo. Já havia sido antecipada

em 1699 por Fontenelle, Secretária da Acade-

mia de Ciências de Paris, quando dizia que

“Até agora a Academia considera a natureza

só por parcelas.... Talvez chegará o momen-

to em que todos esses membros dispersos

[as disciplinas] se unirão em um corpo regu-

lar; e se são como se deseja, se juntarão por

si mesmas de certa forma”30 .

A transdisciplinaridade vai além das limita-

29 Ubiratan D’Ambrosio: Transdisciplinaridade. São Paulo: Editora Palas Athena, 2009 (edição original 1997).

30 B. de Fontenelle: Histoire de l’Académie des Sciences, 1699; p. xix.

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24

ções impostas pelos métodos e objetos de

estudos das disciplinas e das interdisciplinas.

O processo psicoemocional de geração de

conhecimentos, que é a essência da criati-

vidade, pode ser considerado em si um pro-

grama de pesquisa, e pode ser categorizado

através de questionamentos como:

l. Como passar de práticas ad hoc a mo-

dos de lidar com situações e proble-

mas novos e a métodos?

2. Como passar

de métodos

a teorias?

3. Como proce-

der da teo-

ria à inven-

ção?

Explicitando o

que já foi dito acima, essas perguntas envol-

vem os processos de:

1. geração e produção de conhecimento;

2. sua organização intelectual;

3. sua organização social;

4. sua difusão,

que são normalmente tratados de forma iso-

lada, como disciplinas específicas: ciências

da cognição (geração de conhecimento),

epistemologia (organização intelectual do

conhecimento), história, política e educação

(organização social, institucionalização e di-

fusão do conhecimento).

O método chamado moderno para se conhe-

cer algo, explicar um fato e um fenômeno,

baseia-se no estudo de disciplinas específi-

cas, o que inclui métodos específicos e ob-

jetos de estudo próprios. Esse método pode

ser atribuído a Descar-

tes. Isso caracteriza o

reducionismo. Logo,

esse método se mos-

trou insuficiente e já

no século XVII surgiram

tentativas de se reunir

conhecimentos e resul-

tados de várias discipli-

nas para o ataque a um

problema. O indivíduo

deve procurar conhecer mais coisas para

conhecer melhor. As escolas praticam essa

multidisciplinaridade, que hoje está presen-

te em praticamente todos os programas es-

colares.

Metaforicamente, as disciplinas funcionam

como canais de televisão ou programas de

processamento em computadores. É neces-

sário sair de um canal ou fechar um aplicati-

vo para poder abrir outro. Isso é a multidisci-

plinaridade. Mas quando se utiliza Windows

A transdisciplinaridade

vai além das limitações

impostas pelos métodos

e objetos de estudos

das disciplinas e das

interdisciplinas.

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25

95, a grande inovação é poder trabalhar com

vários aplicativos, criando novas possibilida-

des de criação e utilização de recursos. A in-

terdisciplinaridade corresponde a isso. Não

só justapõe resultados, mas mescla métodos

e, consequentemente, identifica novos obje-

tos de estudo.

A interdisciplinaridade teve um bom desen-

volvimento no século passado e deu ori-

gem a novos campos de estudo. Surgiram

a neurofisiologia, a físico-química, a mecâ-

nica quântica. Inevitavelmente, essas áreas

interdisciplinares foram criando métodos

próprios e definindo objetos específicos de

estudo. Depois se tornaram disciplinas em

si e passaram a mostrar as mesmas limita-

ções das disciplinas tradicionais. Surgiram,

então, os especialistas em áreas interdisci-

plinares.

É oportuno falarmos de cultura. Há muitos

escritos e teorias fortemente ideológicas so-

bre o que é cultura. Conceituo cultura como

o conjunto de mitos, valores, normas de

comportamento e estilos de conhecimento

compartilhados por indivíduos vivendo num

determinado tempo e espaço.

Ao longo da história, tempo e espaço foram

se transformando. A comunicação entre ge-

rações e o encontro de grupos com culturas

diferentes criam uma dinâmica cultural e

não podemos pensar numa cultura estática,

congelada em tempo e espaço. Essa dinâ-

mica é lenta e o que percebemos na exposi-

ção mútua de culturas é uma subordinação

cultural e, algumas vezes, até mesmo des-

truição de uma das culturas em confronto

ou, em alguns casos, dá-se a convivência

multicultural. Naturalmente, a convivência

multicultural representa um progresso no

comportamento das sociedades, consegui-

do após violentos conflitos. Agora, não sem

problemas, ganha espaço na educação o

multiculturalismo.

Enquanto os instrumentos de observação

(aparelhos — artefatos) e de análise (concei-

tos e teorias — mentefatos) eram mais limi-

tados, o enfoque interdisciplinar se mostrava

satisfatório. Mas com a sofisticação dos no-

vos instrumentos de observação e de análise,

que se intensificou em meados do século XX,

se vê que o enfoque interdisciplinar se tornou

insuficiente. A ânsia por um conhecimento

total, por uma cultura planetária, não poderá

ser satisfeita com as práticas interdisciplina-

res. Da mesma maneira, o ideal de respeito,

solidariedade e cooperação entre todos os in-

divíduos e todas as nações não será realizado

somente com a interdisciplinaridade.

Não nego que o conhecimento disciplinar,

consequentemente o multidisciplinar e o

interdisciplinar, são úteis e importantes, e

continuarão a ser ampliados e cultivados,

mas somente poderão conduzir a uma visão

plena da realidade se forem subordinados ao

conhecimento transdisciplinar.

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2.3eNSINo mÉDIo INDÍGeNA e o DeSAFIo DA SuSTeNTABIlIDADe DoS PoVoS INDÍGeNAS

Gersem Baniwa31

Este texto trata dos desafios que o Ensino

Médio voltado para os povos indígenas en-

frenta quanto à necessidade de contribuir

para a sustentabilidade de vida desses povos

em seus territórios, tendo como referência

os debates que ocorreram no âmbito da sé-

rie do Salto para o Futuro/TV Escola, com

veiculação no ano de 2007. Os debates fo-

ram extremamente produtivos, ricos e desa-

fiadores. Na verdade, o programa Salto para

o Futuro foi pioneiro na iniciativa de pôr

em debate este tema tão caro para os po-

vos indígenas e, em especial, para as escolas

indígenas que atuam com o Ensino Médio,

na medida em que a ideia de sustentabilida-

de tem relação direta com as condições de

vida, presente e futura, desses povos, tanto

do ponto de vista sociocultural, como terri-

torial, ambiental, econômico, político e edu-

cacional.

Desde então este tema começou a fazer

parte da agenda não só das organizações

e povos indígenas, mas, sobretudo, do go-

verno brasileiro, incluindo o Ministério da

Educação, que passou a elaborar diretrizes

e instrumentos de gestão para incorporar o

tema aos projetos políticos e pedagógicos

das escolas indígenas, especialmente por

meio das escolas indígenas de Ensino Mé-

dio integrado e profissionalizante. Passados

cinco anos após a realização do círculo de

debates produzido pelo programa, que em

2011 completou 20 anos no ar, podemos di-

zer que, do ponto de vista programático, no-

vas perspectivas foram desenhadas e inicia-

das nas escolas indígenas. Apenas a título de

exemplo, cito os casos de cursos de Ensino

Médio integrado e profissionalizante que co-

meçaram a ser implantados nas escolas in-

dígenas do Alto Rio Negro desde 1998, como

o da Escola Baniwa Mazurekai da comunida-

de de Assunção do Içana, que é voltado para

o manejo de recursos naturais, em parceria

com a Escola Agrotécnica Federal de São Ga-

briel da Cachoeira (hoje Instituto Federal de

31 Professor e antropólogo. Conselheiro do Conselho Nacional de Educação e Diretor do Centro Indígena de Estudos e Pesquisas, é liderança do povo baniwa do Alto Rio Negro.

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Tecnologia do Amazonas – IFAM, Campus

São Gabriel). Mais recentemente, foi inicia-

do o curso de formação profissionalizante

para os agentes indígenas de saúde do Alto

Rio Negro, por meio da parceria Fundação

Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), Secretaria Estadu-

al de Educação do Amazonas (SEDUC-AM),

Secretaria Municipal de Educação de São Ga-

briel da Cachoeira (SEMEC-SGC) e a Secreta-

ria de Educação Continuada, Alfabetização e

Diversidade do MEC (SECAD/MEC).

Ainda na região do Alto Rio Negro, várias

outras escolas de Ensino Médio foram aber-

tas com o propósito claro e programático de

contribuir com a sustentabilidade integral

ou o bem-viver das comunidades indígenas,

como a Escola Baniwa Paamáli, a Escola Tu-

cano Aeitym Yepá Mahsã e a Escola Tuyuca

Utapinapona. Por todo o Brasil experiên-

cias similares começaram a se multiplicar,

embora ainda em número pequeno para o

tamanho das necessidades, mas suficiente

para estimular, em muitos lugares, o prosse-

guimento e a ampliação dessas iniciativas,

consideradas experiências piloto ou experi-

ências inovadoras. O desafio, de agora em

diante, é avançar na institucionalização des-

sas experiências e na consolidação das mes-

mas como políticas públicas permanentes.

Sabemos que o acesso à educação escolar

foi uma das bandeiras prioritárias de luta

dos povos indígenas do Brasil nas últimas

três décadas. Nos últimos anos, a forte e

permanente mobilização e a pressão das

lideranças indígenas e, principalmente, de

professores indígenas, aliadas à oferta da

educação escolar nas aldeias, ampliaram

substantivamente em qualidade, mas espe-

cialmente em quantidade, os níveis de ensi-

no. A política de universalização do Ensino

Fundamental adotada pelo governo brasilei-

ro desde a década de 1990 contribuiu para

que hoje a maioria das aldeias tivesse algum

tipo de atendimento escolar no que se refe-

re à primeira etapa do Ensino Fundamental.

Essa demanda contemporânea tem um sen-

tido histórico na trajetória vivenciada pelos

povos indígenas. Ela é percebida como uma

oportunidade e uma possibilidade agregado-

ra e complementar para enfrentar e resol-

ver necessidades e problemas atuais gera-

dos a partir do contato, mas também como

possibilidade de resolver velhos desafios

enfrentados por eles. No âmbito de velhos

desafios, encontram-se as possibilidades de

que as técnicas e tecnologias modernas pos-

sam ajudar no fortalecimento das tradições

e na melhoria das atividades produtivas de

subsistência, por meio do aperfeiçoamen-

to dos modos sustentáveis de produção de

alimentos. No âmbito de novos desafios,

encontram-se as necessidades de acesso a

políticas públicas nas áreas estratégicas de

saúde, educação, saneamento, geração de

renda, gestão territorial, entre outras.

Em termos gerais, os povos indígenas lutam

por escolas com objetivos muito claros, que

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podem ser classificados em dois blocos, to-

dos associados à ideia de buscar o “bem vi-

ver” ou as “melhores condições de vida”, em

um contexto onde eles sejam protagonistas

e sujeitos de direitos. O primeiro objetivo

diz respeito à necessidade de acesso a téc-

nicas e tecnologias extra-aldeias que con-

tribuam para a melhoria das condições de

trabalho e de vida no cotidiano das pessoas

e dos grupos, associando os conhecimentos

e valores tradicionais aos conhecimentos e

valores modernos. O segundo objetivo está

relacionado à necessidade do exercício da

cidadania, que está associada à participação

política na vida do país e, principalmente,

na defesa dos seus direitos. Aqui se inclui

também a necessidade de adquirir conhe-

cimentos e habilidades para interagir com

o mundo extra-aldeia, em particular com o

mundo moderno e os agentes e as institui-

ções do Estado, no sentido de garantir direi-

tos específicos, como políticas públicas de

saúde, educação, segurança, emprego, sane-

amento, entre outras.

Hoje, o maior desafio dos 225 povos indíge-

nas que vivem no Brasil é garantir sua auto-

nomia por meio de projetos específicos de

etnodesenvolvimento em seus territórios,

que sejam capazes de articular as experi-

ências e os conhecimentos tradicionais às

novas técnicas e tecnologias da moderni-

dade. A necessidade pós-contato da escola

e em especial do Ensino Médio integrado e

profissional está diretamente ligada a essa

demanda e à perspectiva de futuro dos po-

vos indígenas. Além disso, é importante con-

siderar a população indígena brasileira que

cresce a uma taxa próxima dos 4,0 % ao ano

(a taxa nacional é de 1,6%), tendo em vista

que em todas as aldeias os jovens e as crian-

ças constituem a maioria absoluta da po-

pulação. Neste contexto, a oferta de Ensino

Médio integrado ao ensino tecnológico aos

jovens indígenas é estratégica para a garan-

tia dos projetos de futuro de cada povo.

As definições mais comuns de uma educa-

ção escolar indígena hoje envolvem algumas

perspectivas ou tendências conceituais im-

portantes. A definição mais predominante

é a que considera a educação escolar como

instrumento para a compreensão da situ-

ação extra-aldeia e o domínio de conheci-

mentos e tecnologias específicos que po-

dem contribuir para o enfrentamento do

maior desafio atual da maioria dos povos

indígenas no país, que é a sustentabilidade

socioambiental de seus territórios. A escola

é vista como um instrumento que pode pos-

sibilitar a construção de diálogos intercul-

turais e projetos políticos e de autogestão

econômica, tecnológica, cultural e linguísti-

ca por grupos indígenas específicos (LOPES

DA SILVA, 2001). Esta definição seria também

a predominante entre os povos indígenas. A

demanda por escola apresentada de forma

contundente pelos povos indígenas da re-

gião e as respostas dela esperadas revelam

o quanto a educação tradicional não é mais

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suficiente para dar conta das realidades

indígenas contemporâneas, seja na pers-

pectiva do fortalecimento das identidades

e culturas próprias, seja na perspectiva de

contribuir no empoderamento político para

a relação menos desigual e mais promissora

com a sociedade nacional e global.

Nos últimos 10 anos, a partir da aprova-

ção da Lei de Diretrizes e Bases da Educa-

ção (2001), ocorreu no Brasil um processo

acelerado de expansão da oferta do Ensino

Fundamental, incluindo as comunidades in-

dígenas. Na atualidade, o desafio é estender

o atendimento ao Ensino Médio e Superior.

O Censo Escolar de 2010, realizado pelo Ins-

tituto Nacional de Estudos e Pesquisas Edu-

cacionais (INEP), apontou que naquele ano

existiam quase 200.000 estudantes indígenas

no Brasil. Desse total, 10.000 alunos estavam

no Ensino Médio, o que representa 10%. O

número parece irrisório, mas representa um

crescimento gigantesco de mais de 400%

só nos últimos oito anos, uma vez que em

2002 eram 1.187 alunos indígenas do Ensino

Médio. Outro dado curioso é em relação ao

Ensino Superior, em que se estima 7.000 es-

tudantes indígenas cursando graduação ou

pós-graduação em 2010, o que representa

mais da metade do contingente de estudan-

tes indígenas do Ensino Médio. Com essa

velocidade no crescimento de matrículas

indígenas no Ensino Superior e sem uma

mudança ainda mais robusta na ampliação

da oferta de Ensino Médio, poderemos ter

em breve uma situação, no mínimo curiosa,

em que o número de estudantes indígenas

no Ensino Médio será igual ou inferior ao

número de estudantes indígenas no Ensino

Superior, o que, neste último caso, geraria

uma sobra de vagas nas Instituições de En-

sino Superior (IES) destinadas aos indígenas.

No campo programático, educação se define

como o conjunto dos processos envolvidos

na socialização dos indivíduos, correspon-

dendo, portanto, a uma parte constitutiva

de qualquer sistema cultural de um povo,

englobando mecanismos que visam à sua re-

produção, perpetuação e/ou mudança. Arti-

culando instituições, valores e práticas, em

integração dinâmica com outros sistemas

sociais como a economia, a política, a reli-

gião, a moral, os sistemas educacionais têm

como referência básica os projetos sociais

(ideias, valores, sentimentos, hábitos etc.)

que lhes cabe realizar em espaços e tempos

sociais específicos (LUCIANO, 2006).

Até algum tempo atrás, os povos indígenas

no Brasil acreditavam que a educação esco-

lar era um meio exclusivo de aculturação e

havia certa desconfiança e repulsa à esco-

larização. Isso já mudou. Diante das neces-

sidades de um mundo cada vez mais globa-

lizado, interativo e transcultural, os índios,

em especial os jovens indígenas, pensam

que a educação escolar, quando apropria-

da por eles e direcionada para atender às

necessidades atuais de suas comunidades,

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pode ser um instrumento de fortalecimento

das culturas e identidades e um canal possí-

vel de acesso à desejada cidadania, entendi-

da como direito de acesso aos bens e valores

materiais e imateriais do mundo moderno.

Em conformidade com esse ideal, a prática

pedagógica tradicional indígena integra, so-

bretudo, elementos relacionados entre si: o

território, a língua, a economia e o paren-

tesco. De todos

eles, o território

e a língua são os

mais amplos e

complexos. O ter-

ritório é sempre

a referência e a

base de existên-

cia e a língua é a

expressão dessa

relação. O modo

como se vive esse

sistema de rela-

ções caracteri-

za cada um dos

povos indígenas.

O modo como

transmitem os conhecimentos acumulados

sobre a vida e sobre o mundo, especialmen-

te aos mais jovens, isso é a vida pedagógica.

A proposta de educação escolar indígena in-

tercultural e bilíngue, que precisa ser efeti-

vada principalmente no Ensino Médio, tem

como aspecto relevante o fato de trazer

ideias e propostas concretas que alimenta-

ram o ânimo e a esperança de jovens lide-

ranças indígenas emergentes. A proposta –

ao lado de outras bandeiras de luta, como a

defesa da terra, o desenvolvimento susten-

tável, a sustentabilidade territorial e a saúde

dos indígenas – alimentou o repertório da

agenda política do movimento indígena. Os

significados que a educação escolar passa

a ganhar entre os povos indígenas são di-

versos e dependem de

cada povo e do contex-

to em que essas escolas

são concebidas e geri-

das. Algumas comuni-

dades concebem a es-

cola como instrumento

para fortalecer suas

identidades, culturas

e tradições em diálogo

com outras culturas,

valores e conhecimen-

tos. Outras buscam o

caminho para a cons-

trução de uma escola

que reflita o modo de

vida próprio e o apro-

veitamento do potencial de seus territórios

tradicionais, dando um novo sentido e res-

significação aos valores culturais. Outras co-

munidades direcionam a escola como meio

para acessar conhecimentos universais (lín-

gua portuguesa, por exemplo), técnicas e

tecnologias da ciência moderna de que ne-

cessitam para melhorar suas condições de

trabalho e, consequentemente, suas condi-

A proposta de educação

escolar indígena

intercultural e bilíngue,

que precisa ser efetivada

principalmente no Ensino

Médio, tem como aspecto

relevante o fato de trazer

ideias e propostas concretas

que alimentaram o ânimo

e a esperança de jovens

lideranças indígenas

emergentes.

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ções de vida. E há outras comunidades que

enfatizam que a escola é um meio para o

acesso e o domínio dos conhecimentos dos

modos de ser e fazer as coisas do homem

“branco”. O domínio do mundo “branco” se

faz necessário para estabelecer um diálogo

mais efetivo e diminuir o desequilíbrio na

correlação de forças com o Estado e a socie-

dade dominante na defesa dos seus direitos,

inclusive, os direitos de participar nas toma-

das de decisões não apenas relativas às suas

comunidades, mas também sobre a vida da

sociedade e do país. Outras comunidades

ou indivíduos indígenas ainda entendem

que a escola serve para seguir o modo de

vida das sociedades dominantes, por meio

do emprego, do poder político, da vida ur-

bana, entre outros, e isso não significa que

estejam abdicando de suas identidades, suas

línguas e tradições. Em todos os casos, o

Ensino Médio é a etapa da formação escolar

que está na encruzilhada dessas questões

e precisa responder a elas. O importante é

levar em conta que esta encruzilhada de ne-

cessidades e possibilidades é vivida pelo alu-

no indígena do Ensino Médio.

A formação escolar é considerada como

uma condição necessária para garantir o fu-

turo desejável para os jovens indígenas e vai

ao encontro de algumas expectativas etno-

políticas relevantes, como a necessidade de

qualificar os quadros técnicos para a gestão

territorial, para a formulação e gestão de

projetos de etnodesenvolvimento e o desejo

de autonomia. Deste modo, o desenvolvi-

mento de ações que garantam a permanên-

cia dos jovens indígenas em suas aldeias,

com qualidade de vida, é fundamental. O En-

sino Médio é o maior responsável por essa

preocupação, na medida em que ela ainda

é uma coisa muito rara nas aldeias. A mi-

gração desordenada de famílias indígenas

para a periferia das cidades, provocada mui-

tas vezes pela falta de condições de sobrevi-

vência e oferta de estudos, principalmente a

partir do Ensino Médio, causa um verdadei-

ro desastre sobre todos os pontos de vista.

A oferta de educação escolar intercultural

em todo segmento básico nas aldeias é uma

dessas políticas importantes para garantir

a permanência dos jovens nos seus territó-

rios, de forma que possam contribuir para

o desenvolvimento socioeconômico autôno-

mo dos projetos coletivos de seus povos.

Os povos indígenas estão inseridos no mun-

do globalizado, em que a política social, eco-

nômica e tecnológica influencia toda a vida

do planeta. Os projetos políticos pedagógi-

cos das escolas de Ensino Médio indígena

precisam dar conta de desenvolver todos os

aspectos da personalidade dos alunos, le-

vando em conta o respeito e a valorização

das formas de educação formal/informal do

povo, a visão de mundo e a vida social do

grupo, formando os alunos para o mundo

global e o local, com a capacidade de lutar

para o bem da coletividade. Assim sendo,

o Ensino Médio indígena nasce a partir de

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uma necessidade coletiva para formar jo-

vens e adultos responsáveis pelos seus des-

tinos e pelo destino de seus povos. Os desti-

nos individuais dos jovens e dos seus povos

estão relacionados, porque existe, ainda que

muitas vezes socialmente disperso e incons-

ciente, um ideal de vida. Esse ideal de vida

é orientado segundo alguns fundamentos

cosmológicos e filosóficos profundos que o

Ensino Médio precisa levar em conta na prá-

tica pedagógica diária, que a seguir buscare-

mos explicitar.

A primeira questão é a visão de mundo e de

sociedade que cada povo indígena possui. A

partir dessa compreensão, geralmente ex-

pressa através de mitos de origem que são

permanentemente revividos por meio de ri-

tuais, as pessoas estabelecem suas formas

de viver, de pensar e de se relacionar com

as outras sociedades humanas e com a na-

tureza à sua volta. Na era da modernidade,

a sociedade indígena está inserida dentro do

mundo globalizado e sofre várias mudanças,

em todos os aspectos: social, econômico,

cultural, político e educacional. A visão de

mundo não é uma coisa que muda ou se tro-

ca como se troca uma flecha por uma es-

pingarda na vida de uma pessoa ou de um

grupo social. A questão é mais complexa,

porque mexe com a “alma”, com a identi-

dade e com a fé das pessoas. A escola deve

levar isso em consideração, para não ser um

instrumento de destruição de culturas, de

civilizações e de projetos históricos.

A segunda questão é a visão de conheci-

mento e da própria escola de que os povos

indígenas são detentores. São conhecimen-

tos, saberes, valores e civilizações milenares.

Toda essa experiência histórica tem um valor

e um sentido para eles, porque os conheci-

mentos têm função social vital. Sem eles não

é possível viver a cultura e a identidade. Por

isso, os conhecimentos têm um significado

próprio, uma maneira de reprodução e re-

produção e, enfim, maneiras particulares de

serem disponibilizados permanentemente

a serviço de todos. Portanto, a escola não é

o único lugar onde se aprende e se produz

conhecimento. É preciso que a escola de En-

sino Médio respeite e valorize esses outros

conhecimentos da comunidade indígena e

seu papel deve ser o de fortalecer e ampliar a

capacidade desses saberes tradicionais para

dar conta das necessidades atuais em contí-

nua mudança, para a continuidade como po-

vos etnicamente diferentes e seus membros

como cidadãos, com direitos assegurados.

A terceira questão diz respeito aos funda-

mentos ético-políticos que a escola indíge-

na de Ensino Médio precisa ter claros, so-

bre que tipo de homem e de sociedade quer

ajudar a construir, que tem a ver com ideal

de vida que a comunidade deseja para o seu

presente a para o seu futuro. É esse ideal que

irá orientar as estratégias pedagógicas e po-

líticas da escola e do ensino, por meio do

projeto político pedagógico. O compromis-

so ético e político da escola é fundamental

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para o modelo de sociedade que se deseja

ter, expresso por meio de atitudes e compor-

tamentos dos indivíduos, dos cidadãos e dos

sujeitos do conhecimento – os educandos –

dentro e fora da escola.

Além disso, o Ensino Médio indígena precisa

estar ancorado na realidade local, tendo al-

guns aspectos mais importantes, tais como

as potencialidades dos beneficiários, a im-

portância das terras indígenas para os po-

vos indígenas, a

formação escolar

como um pro-

cesso contínuo

e permanente,

as potencialida-

des econômicas

e o capital po-

lítico e social.

As realidades e

potencialidades

das comunidades

beneficiárias são

os primeiros aspectos que devem ser leva-

dos em consideração. A população atendida

pela escola é indígena, com uma grande e

rica diversidade étnica, cultural, biológica e

ambiental, mesmo quando se trata de uma

escola que atende apenas a uma etnia. Cada

grupo apresenta diferenças culturais signifi-

cativas que precisam ser levadas em conta

no fazer pedagógico da escola. Mas, em ge-

ral, as escolas indígenas, sobretudo as que

oferecem Ensino Médio, atendem a mais de

um povo ou etnia e a grande maioria tra-

balha com várias etnias ou povos. Para se

ter uma idéia da dimensão dessa diversida-

de étnica e cultural das escolas indígenas

de Ensino Médio, basta olhar os dados cen-

sitários. No Brasil ainda existem 225 povos

que falam 180 línguas, o que o torna um dos

países mais diversos culturalmente do mun-

do, mas as escolas e os brasileiros pouco

conhecem e pouco valorizam essa diversi-

dade. São 734.127 índios (IBGE, 2000) – 0,4%

da população brasileira

– que atualmente apre-

sentam um elevado

índice de crescimento

populacional – de 4,9%

contra 1,6% da popula-

ção brasileira –, e que

habitam e administram

13% do território nacio-

nal, sendo 25% da Ama-

zônia Brasileira.

Outro fator relevante a

ser considerado é a incalculável importância

das terras indígenas para os povos indígenas,

para o Brasil e para o mundo, principalmen-

te quanto aos recursos naturais e quanto à

diversidade biológica. Em 2004, somavam-se

614 terras indígenas demarcadas, totalizan-

do 105.981.584 ha, ou 12,38% do território

brasileiro. A maior parte dessas terras está

na Amazônia, o que representa 20,39% de

toda a região ou 104.088.488 ha. Essas terras

indígenas na Amazônia representam 98,73%

No Brasil ainda existem

225 povos que falam 180

línguas, o que o torna um

dos países mais diversos

culturalmente do mundo,

mas as escolas e os

brasileiros pouco conhecem

e pouco valorizam essa

diversidade.

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de todas as terras indígenas, existem ainda

mais de 600 terras reivindicadas pelos povos

indígenas ainda não regularizadas. O Ensino

Médio precisa assumir a responsabilidade de

preparar os jovens indígenas para a gestão

desses territórios, da qual depende toda a

sustentabilidade de vida de seus habitantes.

Outro aspecto relevante a ser considerado é

a formação escolar como um processo contí-

nuo e permanente. O Ensino Médio indígena

não pode ser visto e tratado como uma etapa

à parte do processo de formação intelectual

e profissional do aluno como é o Ensino Mé-

dio tradicional dos jovens não índios. O Ensi-

no Médio indígena é uma parte do processo

único de formação do jovem indígena, consi-

derando que, para os índios, a formação in-

telectual e de habilitações práticas faz parte

de toda a vida. É importante ter clareza deste

pressuposto da escola indígena, de que em

tudo o que o indivíduo e a comunidade pro-

duzem e/ou reproduzem estão disseminando

conhecimentos, num processo permanente

e contínuo, na medida em que tudo tem um

objetivo único que é contribuir para o bem-

estar da comunidade e, consequentemente,

dos indivíduos que compõem esta comuni-

dade. Na escola indígena, tudo isso deve ser

trabalhado desde o início da formação esco-

lar e para além da escola.

Quanto às potencialidades econômicas, a

população indígena vive basicamente da

agricultura de subsistência, da caça, da

pesca e do agroextrativismo. Mas também

existem outras realidades indígenas no Bra-

sil que não se enquadram nessas realidades

mais gerais, como as comunidades indíge-

nas do Sul, Sudeste e Centro-Oeste, onde

muitas comunidades não possuem terras,

ou as terras são insuficientes para garantir

a sobrevivência e dependem da agricultura

mecanizada ou de serviços no agronegó-

cio, ou mesmo na grande indústria, para

garantirem a sobrevivência. As terras indí-

genas apresentam uma riqueza incalculável

de sócio e biodiversidade que só muito re-

centemente entrou na pauta de prioridades

dos planos de trabalhos das comunidades e

organizações indígenas. Identificar, pesqui-

sar e revelar a potencialidade dos recursos

naturais como principal riqueza econômica

dos povos indígenas podem ser as contribui-

ções socioeconômicas das escolas indígenas

de Ensino Médio às comunidades indígenas

e ao país.

Por fim, é importante considerar que o

maior capital social e político dos povos

indígenas no Brasil está ligado aos anos de

luta e de trabalho articulado através de suas

organizações, sejam elas tradicionais ou ju-

ridicamente constituídas. Conhecer e valo-

rizar essa história são formas de manter a

memória viva de uma luta que mudou a his-

tória dos povos indígenas do Brasil, de tran-

sitórios e incapazes para sujeitos e cidadãos

diferenciados. Conhecer essa história tem

a ver com a afirmação da identidade étnica

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que se perpetua tendo como base muita luta

e diálogo intercultural. Neste sentido, ofe-

recer oportunidades de formação humana,

cultural, científica e tecnológica às crianças,

jovens, adultos e velhos indígenas é propor-

cionar-lhes capacidades e possibilidades in-

finitas no presente, o que gerará um futuro

mais esperançoso e desejável.

Sabemos que a formação escolar é uma ne-

cessidade pós-contato dos povos indígenas

que passaram a interagir com as diferentes

formas de viver, de produzir conhecimentos,

de produzir alimentos e outras necessidades

importantes para a vida dos indivíduos e co-

letividades dos não índios e foram também

ficando cada vez mais dependentes desses

novos conhecimentos necessários para os

modos de vida atuais. Esse processo é natu-

ral e não significa de forma alguma que os

índios tenham abandonado suas formas tra-

dicionais de viver. Significa apenas que in-

corporam novos hábitos, costumes, valores

e a necessidade de ampliação de habilidades

para responder às novas necessidades e de-

mandas. Faz parte da capacidade do ser hu-

mano buscar sempre melhorar sua condição

de vida. É fundamental, pois, que a comuni-

dade tenha clareza do papel, da necessidade

e da importância da escola e do ensino que

ela deseja. A definição dessa função social

deve ser de responsabilidade exclusiva da

comunidade, que inclui as lideranças locais,

as famílias, os pais, os alunos, os professo-

res, os dirigentes de escolas e todos que a

constituem. Do contrário, a escola será um

espaço/instrumento de sonhos e ilusões que

não se realizarão, nem no campo individual,

nem no coletivo dos alunos e dos membros

da comunidade.

As experiências em curso revelam que os

projetos de escola indígena, e particular-

mente de Ensino Médio, são reivindicados e

desejados a partir de algumas necessidades

históricas concretas. Em primeiro lugar está

o fato de que a educação oferecida até hoje

sempre teve como princípio a integração do

indígena à sociedade nacional, o que resulta-

va na sua desintegração cultural, na medida

em que não respeitava as diferenças cultu-

rais e linguísticas e a legislação vigente so-

bre a educação escolar indígena. Ao promo-

ver “uma educação de branco com base na

cultura do branco para indígenas” negava as

alteridades indígenas. Infelizmente, as esco-

las de Ensino Médio até hoje, na sua maioria,

ainda praticam essa visão e prática colonial

e tutelar já superada do ponto de vista das

nossas leis e normas. Mas o Ensino Médio

indígena também é percebido como uma

oportunidade de potencializar e instrumen-

talizar os jovens indígenas na perspectiva de

que sejam sujeitos de sua própria história,

de sua formação ética, intelectual e humana.

Em outras palavras, formar novas lideranças

capazes de dar conta das contradições do

processo escolar integrador e buscar a recu-

peração das autonomias indígenas. É muito

comum ouvir de lideranças indígenas mo-

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dernas que “antigamente a arma da luta era

a borduna e atualmente é a caneta, o papel e

o poder da fala” e que a escola deve ajudar a

melhorar as condições de vida.

Em segundo lugar, temos o fato de que o

Ensino Médio indígena, assim como os ou-

tros níveis de ensino, deve, como princípio,

atender às necessidades das comunidades,

tais como: a) articular o conhecimento in-

dígena e o não indígena, com o objetivo

de contribuir para o desenvolvimento sus-

tentável, sociocultural e econômico das co-

munidades; b) escolas nas terras indígenas

com o objetivo de evitar o êxodo, reforçar

a identidade e possibilitar o envolvimento e

a gestão autônoma das comunidades indí-

genas, seguindo o princípio de valorização

das territorialidades linguísticas, étnicas e

culturais e formando jovens pesquisadores

e cidadãos a partir de uma proposta político

pedagógica coerente com os projetos socie-

tários de seus povos; c) formar os indígenas

para serem administradores, pesquisadores,

e gestores de seus processos educativos e so-

ciais e propiciar às comunidades indígenas

um diálogo formal com os não indígenas; d)

formar profissionais indígenas (professores,

agentes de saúde, agrônomos, agentes flo-

restais, mecânicos, piscicultores, médicos,

advogados etc.) capazes de atuar em suas

próprias comunidades, de acordo com os

objetivos, necessidades e demandas locais;

e) ajudar a comunidade na apropriação e no

uso dos conhecimentos locais e universais,

disponibilizando-os para outras escolas indí-

genas e não indígenas.

Em síntese, o Ensino Médio indígena, as-

sim como os outros níveis de ensino, têm

que responder às demandas e necessidades

internas e externas das comunidades. Es-

sas demandas e necessidades passam pe-

los projetos de gestão territorial, projetos

de autossustentação e demandas externas

como a profissionalização para o mercado

de trabalho local, regional, nacional e glo-

bal. O grande desafio é como o modelo atual

de escola e particularmente de Ensino Mé-

dio pode atender a essas múltiplas tarefas e

funções sociais das comunidades indígenas

e, ao mesmo tempo, contribuir para o forta-

lecimento das identidades e dos modos de

vida, além de possibilitar o acesso qualifica-

do aos conhecimentos universais da ciência

moderna, que são um desejo das comunida-

des indígenas. Outro desafio significativo é o

de favorecer o exercício da cidadania plena,

que inclui a necessidade maior de equilíbrio

na correlação de forças nas tomadas de de-

cisões em questões de interesses dessas co-

munidades e, ainda, as condições formativas

para o acesso igualitário ao Ensino Superior

e ao mercado de trabalho. Tudo isso deve ser

oferecido, preferencialmente, em unidades

de ensino próximas ou dentro das aldeias.

Diferente do significado que tem para a so-

ciedade não índia, onde convencionalmente

o Ensino Médio é visto apenas como uma

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fase escolar de preparação para o Ensino Su-

perior ou para a vida profissional dos jovens,

no mundo indígena o Ensino Médio significa

uma fase de mudanças extremas na vida de

um jovem indígena que age e pensa coleti-

vamente, tendo em vista que possibilita con-

quistar novos conhecimentos, desbravar um

novo mundo, realizar sonhos, perseguir ideais

e melhorar a qualidade de vida de seu povo. O

Ensino Médio está diretamente relacionado

com as necessidades levantadas pelas comu-

nidades indígenas. Por isso, deve ser flexível

e aberto às mudanças necessárias para as co-

munidades indígenas organizarem e condu-

zirem seus processos de aprendizagem de

acordo com seus horizontes socioculturais,

possibilitando ao jovem indígena direcionar

seus estudos às demandas apresentadas pela

comunidade, sendo que a maior parte está

relacionada com a melhoria da qualidade de

vida, conservação do meio ambiente, forta-

lecimento e revitalização cultural, sustenta-

bilidade econômica e territorial. Além disso,

o Ensino Médio oferece ao aluno indígena

a capacitação básica como ferramenta im-

prescindível e necessária para que ele ajude

a comunidade a lutar pela garantia dos seus

direitos consagrados na Constituição Federal

e pelas leis internacionais, principalmente

quanto ao direito à terra, que é o fator fun-

damental para a sobrevivência de um povo

indígena, abrindo caminhos para a susten-

tabilidade territorial e o bem-viver coletivo.

Assim sendo, é importante considerarmos

alguns pressupostos relevantes que norteiam

esta fase na vida de um jovem indígena.

O primeiro pressuposto é de que o Ensino

Médio corresponde à fase de transformação

pessoal dos jovens estudantes indígenas,

pois corresponde à faixa etária de jovens que

estão passando para a fase adulta, quando

começam a assumir responsabilidades ple-

nas por si e por sua comunidade/povo. É o

período em que acontecem os ritos de pas-

sagem ou de iniciação. Assim sendo, é uma

fase em que estão definindo suas identida-

des, função social, personalidade e caráter

individual e grupal. Portanto, uma fase de

grandes desafios e, por outro lado, de mo-

mentos decisivos, pois representa também

uma passagem da vida indígena (aldeia,

tradições, culturas) para a compreensão da

vida não indígena (cidade, emprego, dinhei-

ro etc.). O jovem desloca-se da sua família

para a escola e, quando este deslocamento

não é bem pensado, isso o faz muitas vezes

desistir de seus objetivos diante das novas si-

tuações que passa a vivenciar, diante do pre-

conceito, da discriminação, das dificuldades

materiais, afetivas, de socialização extra-

aldeia e a exclusão de toda ordem. Assim, é

fundamental a preparação desse jovem pela

sua comunidade e familiares para esse novo

desafio, para que o encorajamento e o en-

gajamento com os anseios da comunidade

o acompanhem como meta a ser alcançada

nessa nova etapa da vida.

O segundo pressuposto é o de que este perí-

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odo representa oportunidades de ascensão

individual. Para o jovem indígena, essa eta-

pa de ensino representa também um perío-

do de novas oportunidades para concretizar

expectativas, esperanças, sonhos e possibi-

lidades de encaminhamentos profissionais.

É um momento que oportuniza a aquisição

de habilidades técnicas, especializações e

capacitações no campo da formação profis-

sional, que irão ajudá-lo a enfrentar os seus

próprios desafios e os de seu grupo social.

É a fase em que os seus conhecimentos tra-

dicionais adquiridos junto à sua comunida-

de serão confrontados e somados a outros

importantes conhecimentos que se comple-

mentarão, proporcionando-lhe adentrar o

mundo dos não índios, conhecendo o seu

funcionamento para atuar em defesa do seu

povo. Isso não deixa de ser a realização do

sonho de poder ajudar no sustento da famí-

lia, poder colaborar com a comunidade na

busca dos seus direitos e amadurecer para

seguir com seus projetos futuros.

O terceiro pressuposto é o de que o Ensino

Médio é também um meio de acesso, intera-

ção e domínio do mundo extra-aldeia. Como

na maioria das comunidades indígenas só

existe o Ensino Fundamental, o Ensino Mé-

dio é visto como um meio de acesso ao mun-

do dos não índios. Um mundo que funciona

diferentemente do seu, onde ele irá conviver

com outra realidade, outras formas de vidas

e culturas, a princípio estranhas, mas que

o ajudarão a interagir com o mundo “bran-

co”. Representa o acesso às universidades,

a conquista de uma profissão, emprego, ci-

dadania e aos espaços políticos que podem

contribuir com a concretização dos projetos

da sua comunidade.

O quarto pressuposto é o de que o Ensino

Médio representa também uma possibilida-

de de empoderamento político para dentro e

para fora da comunidade. Por isso, é essen-

cial que os jovens indígenas, alunos do Ensi-

no Médio, tenham orientação e acompanha-

mento da sua comunidade e da sua família.

Essa exigência tem que ser feita para que es-

ses jovens, ao saírem das comunidades para

estudarem, levem consigo toda a luta feita

pelo seu povo e continuem defendendo e tra-

balhando em prol dos povos indígenas mes-

mo depois de formados, quando se espera

que retornem para suas comunidades para

aplicarem seus conhecimentos ou que, mes-

mo longe das aldeias, possam estar afinados

e comprometidos com a luta e os projetos

sociais de seus povos. Dessa forma, o Ensi-

no Médio possibilitará também o empodera-

mento político da comunidade, uma vez que

o jovem indígena estará se capacitando para

atuar como liderança do seu povo dentro e

fora da comunidade. Obterá a experiência e

o discernimento, conquistando ainda mais a

confiança de seu povo, podendo representá-

lo como dirigente de organizações indígenas

ou em cargos públicos como vereador, pre-

feito etc., mas para isso o comprometimento

é fundamental. O Ensino Médio representa,

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ainda, a possibilidade para construir conhe-

cimentos e experiências com vistas à autogo-

vernança das aldeias e das terras indígenas.

Os povos indígenas resistem a mais de meio

século a todo tipo de violências sociais, físi-

cas e culturais, o que demonstra o quanto

esses povos são guerreiros na luta por seus

direitos. Nesse processo de luta se aliaram à

educação escolar, que se tornou um instru-

mento essencial e estratégico para avançar,

mobilizar e conquistar espaços importantes

no cenário nacional.

O Ensino Médio, portanto, é uma espécie de

trampolim para os importantes passos que

as comunidades vão dar por meio dos jovens

indígenas, que uma vez formados ajudarão

a construir conhecimentos e experiências

visando à capacidade de autonomia das

aldeias e das terras indígenas por meio da

autogestão de projetos e processos socioe-

conômicos, ambientais e políticos sustentá-

veis, associando conhecimentos tradicionais

e modernos. É importante não restringir o

papel da escola e, em particular, do Ensino

Médio. Ao contrário, precisa ser qualificado

para atender a todas as demandas e interes-

ses legítimos dos povos indígenas, na sua

diversidade.

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2.4eDuCAÇão Ao loNGo DA VIDA

Ivanilde Apoluceno de Oliveira32

Neste texto, analiso o tema “educação

ao longo da vida”, tendo como base três

questões sobre a educação de jovens,

adultos e idosos: (1) a educação como

aprendizado ao longo da vida, compre-

endendo-a como uma formação humana

contínua; (2) a educação como direito e

processo de inclusão socioeducacional,

evidenciando-se as políticas e práticas

escolares e não-escolares e (3) a forma-

ção de professores necessária à prática

docente com qualidade social.

inTRODuçãO

O objetivo deste texto é tecer algumas re-

flexões sobre minha participação como con-

sultora da série sobre Educação de Jovens e

Adultos, do programa Salto para o Futuro,

da TV Escola, cujo tema foi “Educação ao

Longo da Vida”. Esta série foi motivada pelo

fato de, pela primeira vez, o Brasil sediar a VI

Conferência Internacional de Educação de

Jovens e Adultos (CONFINTEA), promovida

pela UNESCO, na cidade de Belém do Pará, o

32 Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação e professora titular da Universidade do Estado do Pará. Doutora em Educação (Currículo) pela PUC-SP, com pós-doutoramento em Educação na PUC- RJ.

que oportunizou a chamada de atenção para

a política educacional e para as práticas es-

colares e não-escolares dessa modalidade de

ensino no Brasil e especificamente na Ama-

zônia.

Essas Conferências Internacionais vêm

consolidando o conceito de educação como

aprendizagem ao longo da vida. A Declaração

de Hamburgo (UNESCO, 1997), em seu Art. II

estabelece que “a educação ao longo da vida

implica repensar o conteúdo que reflita cer-

tos fatores como idade, igualdade entre os

sexos, necessidades especiais, idioma, cultu-

ra e disparidades econômicas”, tornando-se

fundamental para o exercício da cidadania e

para o processo de inclusão social. Concei-

tua a educação de jovens e adultos como:

“processo de aprendizagem formal ou in-

formal, onde pessoas consideradas ‘adul-

tas’ pela sociedade desenvolvem suas habi-

lidades, enriquecem seus conhecimentos e

aperfeiçoam suas qualificações técnicas ou

profissionais, direcionando-as para a satisfa-

ção de suas necessidades e as da sociedade”

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(Art. III). Assim, a Educação de Jovens e Adul-

tos inclui a educação escolar e não-escolar

e acontece ao longo da vida, em diferentes

espaços da vida social.

Além da VI CONFINTEA, Belém sediou, tam-

bém, o Fórum da Sociedade Civil (FISC), que

mobilizou os movimentos sociais, as univer-

sidades e a sociedade civil, constituindo-se a

educação de pessoas jovens, adultas e idosas

centro do debate sobre a exclusão-inclusão

social e o processo de

democratização do

ensino, por meio do

acesso e permanên-

cia de todos à educa-

ção, cujo direito pre-

cisa estar garantido

nas políticas públicas

e fomentado pelos fó-

runs sociais.

A educação de jovens,

adultos e idosos tem

o olhar voltado para pessoas das classes po-

pulares, que não tiveram acesso à escola, na

faixa etária da chamada escolarização (dos

07 aos 14 anos) ou foram “evadidas” da es-

cola. População que na Amazônia se carac-

teriza pela diversidade sociocultural, por en-

volver: ribeirinhos, quilombolas, indígenas,

assentados, entre outros, que vivem situa-

ções de pobreza e de exclusão social (OLIVEI-

RA, 2009a). Pessoas excluídas pelo sistema

econômico-social e marginalizadas ao serem

rotuladas como “analfabetas”, demarcando

uma especificidade etária e sociocultural.

O analfabetismo é visto como uma forma

ideológica de silenciamento, tornando-se o

acesso das classes populares à alfabetização

uma questão de igualdade social e de direito

ao exercício da cidadania e à inclusão social

(OLIVEIRA, 1999).

A série “Educação ao longo da vida” possi-

bilitou-me, como consultora, em primeiro

lugar, conhecer os

bastidores de um pro-

grama de televisão e

a lógica de sua orga-

nização, desafiando-

me a pensar como re-

tratar uma realidade

tão complexa como a

educação de jovens,

adultos e idosos na

Amazônia Paraense

em mosaicos de in-

formações, que possi-

bilitassem aos telespectadores identificar e

compreender as principais questões levan-

tadas sobre o tema em debate. Em segundo

lugar, permitiu-me pesquisar sobre o assun-

to e dialogar com diferentes atores que tra-

balham com a educação de jovens e adultos,

estabelecendo relações interregionais, com

o objetivo de visualizar não apenas o cená-

rio amazônico, mas a diversidade educacio-

nal brasileira. E, por fim, estabelecer novas

relações interpessoais, possibilitando-me

O analfabetismo é visto

como uma forma ideológica

de silenciamento, tornando-

se o acesso das classes

populares à alfabetização

uma questão de igualdade

social e de direito ao

exercício da cidadania e à

inclusão social.

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crescer em minha formação humana e pro-

fissional.

Apresento a seguir algumas questões sobre

educação de jovens, adultos e idosos tra-

tadas no decorrer da série: (1) a educação

como aprendizado ao longo da vida, com-

preendendo-a como uma formação humana

contínua; (2) a educação como direito e pro-

cesso de inclusão socioeducacional, eviden-

ciando-se as políticas e práticas escolares e

não-escolares e (3) a formação de professo-

res necessária à prática docente com quali-

dade social.

A EDucAçãO cOMO

APREnDizADO AO lOnGO DA

viDA

Oliveira (2009b) explica que a educabilidade,

no olhar de Paulo Freire, é uma ação especi-

ficamente humana; isto significa que o ser

humano se educa nas relações estabelecidas

no e com o mundo, em função da consci-

ência de seu inacabamento como pessoa

humana. Consciência que insere homens e

mulheres em um “permanente movimento

de busca a que se junta, necessariamente,

a capacidade de intervenção no mundo”

(FREIRE, 2000, p.120).

A educação, tendo o inacabamento huma-

no como suporte, consiste em um processo

de formação, situação de conhecimento, de

ação e de comunicação. Para Freire (1997, p.

154), “o sujeito que se abre ao mundo e aos

outros inaugura com o seu gesto a relação

dialógica em que se confirma como inquie-

tação e curiosidade, como inconclusão em

permanente movimento na História”.

Nesta perspectiva, a educação se processa

nas relações de homens e mulheres com o

mundo, de forma permanente, bem como a

educação tem como fim a própria formação

do ser humano. A educação é, também, um

processo histórico e sociocultural, porque

se desenvolve no tempo humano, através

das histórias de vida dos indivíduos e da his-

tória da sociedade.

Assim, a educação está relacionada à vida

humana. Crianças, jovens, adultos e idosos

estão sempre aprendendo ao longo da vida,

no cotidiano social e em diferentes espaços

educacionais. “Em casa, na rua, na igreja ou

na escola, de um modo ou de muitos, todos

nós envolvemos pedaços da vida com ela:

para aprender, para ensinar, para aprender-

e-ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou

para conviver, todos os dias misturamos a

vida com a educação” (BRANDÃO, 1982, p. 7).

Oliveira (2009b), no contexto da educação

de jovens e adultos, apresenta algumas

concepções de educação permanente. Nas

Diretrizes Curriculares para a Educação de

Jovens e Adultos - Parecer CEB n.11/2000

(BRASIL, 2000. In: SOARES, 2002), a educação

permanente refere-se predominantemen-

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te às potencialidades e ao desenvolvimen-

to dos indivíduos, ou seja, é uma educação

que considera as necessidades e incentiva as

potencialidades dos educandos, bem como

promove a autonomia dos jovens e adultos,

para que sejam sujeitos da aprendizagem.

A educação permanente, para Gadotti (1981),

tem como objetivo a formação total do ser

humano, sendo um processo que se desen-

rola enquanto dura a vida e pressupõe rela-

ções com o outro. “A educação permanen-

te significa que não terminamos jamais de

nos tornar homens e que não terminamos

jamais de ser, de nos tornar juntos, a cami-

nho, ao longo das relações com o outro” (p.

168). Freire (1993, p.20) considera a educa-

ção permanente, pelo fato de o ser humano

ser finito e ter consciência de sua finitude,

bem como de, ao longo de sua história de

vida, “não apenas saber que vivia mas saber

que sabia e, assim saber que podia saber

mais”. Isto significa que o “ensinar-apren-

der” e o “aprender-ensinar” são constituin-

tes da existência humana e estão presentes

na ação educativa.

Aprender e ensinar fazem parte da exis-

tência humana, histórica e social, como

dela fazem parte a criação, a invenção,

a linguagem, o amor, o ódio, o espanto,

o medo, o desejo, a atração pelo risco,

a fé, a dúvida, a curiosidade, a arte, a

magia, a ciência, a tecnologia. E ensinar

e aprender cortando todas estas ativi-

dades [...] O ser humano jamais para de

educar-se (FREIRE,1993, p. 19 e 21).

Brandão (2002, p. 293-294) destaca que “a

educação é por toda a vida”, pelo fato de ser

uma “vivência solidária de criação de senti-

dos ao longo da vida e em cada um dos mo-

mentos da vida de cada ser humano”, não

podendo ser pensada como uma “preparação

para a vida”. A educação, então, deve “acom-

panhar, ao longo da vida, pessoas que se re-

criam ao reaprenderem sempre, e que devem

estar inseridas em comunidades de saber”.

Nas relações com o outro no mundo, o ser

humano, ao longo da vida, aprende e ensina,

cria sentidos para o que sabe e busca saber

mais, sendo formado como pessoa e cidadão

neste processo de busca de conhecimento.

Estuda-se e deve-se estar sempre apren-

dendo, porque se é desde sempre uma

pessoa cidadã, ou em construção da ci-

dadania desde a tenra infância, ao longo

de uma sempre contínua descoberta e

recriação de si-mesmo com, para e atra-

vés de outros. Para realizar isto é que se

estuda – dentro e fora da escola – e se

deve estar sempre aprendendo. Ao longo

de toda a vida, a educação destinada à

comunicação, e não ao trabalho desti-

nado à produção, deve ser a experiência

de identidade de cada um de nós (BRAN-

DÃO, 2002, p, 79).

Nesta perspectiva, a educação é um proces-

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so ao longo da vida e o ser humano tem o di-

reito de ser educado independente de idade,

sexo, classe social e etnia.

A EDucAçãO cOMO DiREiTO

E PROcESSO DE incluSãO

SOciOEDucAciOnAl

A educação é constitucionalmente um di-

reito de todos, devendo ser ofertada pelo

Poder Público por meio da escolarização,

o que legitima a ideia de democratização

do sistema educacional. Estabelece-se uma

igualdade jurídica definida pela legislação,

mas que está ainda distante de ser efetivada,

pois encontramos um número expressivo de

pessoas sem acesso à escola. O número de

analfabetos no país corresponde a 10,38% da

população acima dos 15 anos (BRASIL, IBGE,

2006). No âmbito da escola existem, tam-

bém, situações de exclusão materializadas

pela discriminação, repetência e evasão. A

escola, então, reproduz a injustiça social ao

manter uma estrutura burocrática e hierár-

quica e práticas educacionais meritocráticas,

conteudistas e competitivas, que contribuem

para o fracasso e para a exclusão escolar.

Arroyo (1987) afirma que a questão não é

negar a escola e sim relativizá-la, conside-

rando que as políticas públicas direciona-

das ao processo de escolarização das clas-

ses populares não favorecem a educação

do povo através de suas lutas. Para ele, os

saberes provenientes das práticas sociais es-

tão deslocados da escola, bem como não são

valorizados, legitimando-se apenas o saber

escolar. Esse autor e Freire (1983) apontam

os limites políticos e pedagógicos da escola,

destacando que o processo educativo não

pode ser reduzido à escolarização, e indicam

a necessidade e a perspectiva de construção

de uma nova escola e de práticas pedagógi-

cas que estabeleçam “uma relação diferen-

te com o conhecimento e a sociedade”

(FREIRE, 1986, p 48). Assim, “reinventar a es-

cola” implica repensar novas formas de rela-

cionamento social nas práticas educativas,

que passam pela articulação entre o saber

escolar e o saber popular, a operacionaliza-

ção de práticas sociais democráticas, entre

outras. A perspectiva é a superação do ensi-

no conteudista e a preocupação com a for-

mação do ser humano nas suas relações so-

ciais “não apenas na escola, mas no social,

no real e na escola como parte desse real”

(ARROYO, 1987, p. 19). A educação, conforme

Brandão (2002, p.76), precisa ser pensada e

praticada “como um cenário multifocal de

experiências culturais de trocas de vivências

destinadas à criação entre-nós de saberes e

à partilha da experiência do exercício inaca-

bável de aprender”.

Neste sentido, a educação não pode ser re-

duzida ao espaço escolar, é preciso conside-

rar-se a possibilidade de o povo estruturar

seu pensamento, bem como manifestá-lo

em ações políticas e em propostas concre-

tas, na medida em que “a conquista da cida-

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dania passa fundamentalmente pelo saber

que se adquire na luta política travada dia-

riamente para construir a cidadania” (AR-

ROYO, 1987, p.17).

As práticas educacionais não escolares com

jovens, adultos e idosos aparecem, então,

no cenário educacional brasileiro, na luta

dos movimentos sociais e de instituições

que, conscientes dos limites e das contra-

dições dos sistemas públicos de ensino,

reivindicam uma educação que atenda aos

interesses das classes populares. O conjunto

significativo dessas práticas situa-se no con-

texto da educação popular entendida como

“uma gama ampla de atividades educacio-

nais, cujo objetivo é estimular a participa-

ção política de grupos sociais subalternos

na transformação das condições opressivas

de sua existência social” (SILVA, 2000, apud

BRANDÃO, 2002, p.130).

Na visão de Freire e Nogueira (1989), a edu-

cação popular surge no Brasil, nos anos 1950

e 1960, por meio de críticas dos movimentos

sociais à escola bem como pelo desenvolvi-

mento de práticas educacionais que aten-

dam à população de jovens, adultos e idosos

excluídos pelo próprio sistema educacional.

Entretanto, as relações entre Estado e Socie-

dade Civil são conflituosas. Brandão (1986)

chama atenção para a visão simplista em

torno da denominação atribuída à educa-

ção de adultos ou educação oficial como

iniciativa do Estado e a educação popular

ou educação alternativa como uma prática

da sociedade civil, quando a principal dife-

rença está no projeto pedagógico de trans-

formação social. Os programas educativos

se diferenciam pelas propostas pedagógicas

construídas que podem estar pautadas em

práticas democráticas ou de domestica-

ção, de formação para a cidadania ou para

o mercado de trabalho. Isto significa que a

educação de jovens e adultos pode ser de-

senvolvida por diversas agências do Estado

e da Sociedade Civil, devendo-se considerar

como essencial o projeto político implícito

em suas ações.

Na visão de Freire (1995, p.53) “só numa

compreensão dialética da relação escola-

sociedade é possível não só entender, mas

trabalhar o papel fundamental da escola na

transformação da sociedade”. Isto significa

que as redes públicas de ensino precisam

pautar suas ações educacionais em uma vi-

são dialética de mundo, de educação e de

relação entre a escola e a sociedade.

As práticas educacionais não escolares ocu-

pam espaços diversificados: hospitais, cen-

tros comunitários, unidades de acolhimento

de idosos, sistemas prisionais, entre outros,

que são heterogêneas por envolverem diver-

sos segmentos sociais: universidades, mo-

vimentos sociais, organizações não gover-

namentais etc., tendo algumas um caráter

assistencialista, enquanto outras demarcam

uma posição política com as classes popula-

res. E são, justamente, as propostas pedagó-

gicas das práticas educacionais não escolares

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que vêm demarcando a diferença em relação

às práticas escolares com jovens, adultos e

idosos, por apresentarem, de modo geral,

vínculo com a educação popular, cuja luta é

pela democratização do ensino e por melho-

res condições de vida das classes populares.

Consideramos práticas educacionais não-

escolares aquelas que se desenvolvem no

campo social e se apresentam como com-

plementares ou alternativas à educação es-

colar, familiar e comunitária (GARCIA, 2001,

apud ZUCCHETTI; MOURA, 2007), sendo,

portanto, diferenciadas das práticas que

ocorrem no âmbito da escola.

Essas práticas apresentam um caráter edu-

cativo-político, na medida em que se cons-

tituem em locus de formação para a cida-

dania e para a inclusão social de pessoas

jovens, adultas e idosas. Em primeiro lugar,

porque atendem a uma demanda não aten-

dida pelo Poder Público. Encontramos, por

exemplo, nos espaços hospitalares, pessoas

em tratamento de saúde ou acompanhando

algum familiar hospitalizado que permane-

cem longo tempo no hospital sem acesso

ao processo de escolarização, seja pelo não

acesso ao sistema escolar, seja por não exis-

tirem programas oficiais de atendimento a

jovens e adultos em hospitais. Segundo, há

por parte dessas práticas uma preocupação

com as especificidades etárias e socioculturais

no trabalho educativo. Desta forma, se há

necessidade de ser fomentada a sustentabi-

lidade financeira dos educandos adultos na

comunidade, práticas de economia solidária

podem ser desenvolvidas, entre outras. Ter-

ceiro, por apresentarem, de modo geral, re-

ferencial freireano, viabilizam uma formação

crítica dos educandos como sujeitos políticos,

que são respeitados no direito de dizerem

a sua palavra, assim como são valorizados

os seus saberes e o seu contexto cultural,

promovendo-se ações educativas solidárias.

Quarto, essas práticas vêm se constituindo

como motivadoras para que jovens, adultos e

idosos retornem aos estudos e posteriormente

ingressem na rede pública de ensino. O longo

tempo sem estudar, a baixa autoestima em

relação às suas dificuldades de aprendiza-

gem e a discriminação sofrida na sociedade,

por não serem escolarizados, faz com que

essa população da educação de jovens, adul-

tos e idosos sinta-se desmotivada em con-

tinuar os estudos. Neste sentido, participar

de projetos fora do sistema escolar e com

uma proposta pedagógica diferenciada da

tradicional, como a freireana, incentiva-os a

continuarem os estudos e a ingressarem no

ensino público regular.

Assim, as práticas não-escolares apresentam-

se como educativas porque se constituem em

uma Pedagogia Social, ou seja, pautada em

uma educação para a diversidade, engajada

política e eticamente com as problemáticas

sociais das populações historicamente nega-

das. Prática pedagógica que se configura em

luta pela inclusão social, que pressupõe uma

responsabilidade ética e política, em relação

ao Outro (OLIVEIRA; MOTA NETO, 2004). Nes-

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te sentido, as práticas não-escolares de pes-

soas jovens, adultas e idosas não podem ser

vistas simplesmente como práticas “alterna-

tivas” ou de “menor valor” que as escolares,

e sim como ações educativas formadoras e

uma pedagogia social.

Conforme Oliveira (2009a), essas práticas não

vêm sendo valorizadas na política pública da

educação de jovens e adultos no Brasil, bem

como existe pouca interação com as práticas

escolares, observando-se, às vezes, proble-

mas na passagem dos educandos dos gru-

pos sociais organizados para a rede regular

de ensino, porque, enquanto os movimentos

sociais pautam-se em propostas pedagógicas

direcionadas às classes populares, as redes

oficiais de ensino, em geral, mantêm práticas

homogeneizadoras e universais. Além disso,

o problema de passagem dos programas de

alfabetização à escolarização ocorre muitas

vezes no âmbito do próprio Estado, pois vá-

rios programas e projetos de alfabetização

são financiados e coordenados pelo Poder

Público de forma dissociada da escolarização.

Gonçalves (2009) destaca duas questões de-

safiadoras em torno das práticas não esco-

lares das pessoas jovens, adultas e idosas,

comparadas com o processo de escolariza-

ção. A primeira é que conforme o 5º Indi-

cador Nacional de Alfabetismo Funcional

realizado no Brasil, em 2005, 5% da popu-

lação considerada sem escolaridade possui

saberes correspondentes ao que foi apresen-

tado na pesquisa como nível básico de alfa-

betismo, o equivalente a quem detém de 8

até 10 anos de escolarização. O autor proble-

matiza sobre esta situação: “quais os cami-

nhos percorridos pelos entrevistados para a

conquista desses níveis de alfabetismo fora

dos espaços formais de escolarização?” (p.

26). Fato que evidencia existir um proces-

so alfabetizador nas práticas não escolares

que precisa ser considerado, superando o

discurso que só a escola constitui locus de

aprendizagem. A segunda é a necessidade de

investigarmos o alcance das práticas não es-

colares no processo de inclusão social e edu-

cacional de pessoas jovens, adultas e idosas,

considerando que a valorização dos saberes

prévios dos educandos não é uma questão

simples. Afirma o autor que os saberes pré-

vios dos educandos não são coisas, são es-

tratégias de sensibilidade e de inteligência

que precisam ser investigadas e que essas

estratégias oscilam com as mudanças e as

demandas sociais, evidenciando “angústias,

sofrimentos, expectativas e esperanças de

quem aguarda uma nova oportunidade nos

espaços de escolarização e de formação para

a vida, a convivialidade e o trabalho digno”

(GONÇALVES, 2009, p.26).

Neste sentido, considerar a leitura de mun-

do dos educandos pressupõe uma prática di-

ferenciada e que atenda à heterogeneidade

cultural, às práticas sociais e às experiências

e expectativas de vida da população jovem,

adulta e idosa, bem como a uma formação

de professores que viabilize essa prática.

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FORMAçãO DE PROFESSORES

nEcESSáRiA à PRáTicA DOcEnTE

cOM quAliDADE SOciAl

Machado (2009) apresenta dois movimentos

em relação às mudanças na formação de

professores da educação de jovens e adul-

tos: o primeiro, ligado aos órgãos oficiais

de governo, com a presença importante do

Conselho Nacional de Educação (CNE) que,

em 2000, estabeleceu as diretrizes curricu-

lares para a EJA, e o segundo, que advém da

sociedade civil organizada, com destaque

para os fóruns de EJA e o Grupo de Trabalho

de Educação de Jovens e Adultos, da Associa-

ção Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa

em Educação (ANPED).

A política de educação de jovens e adultos,

por meio das Diretrizes Curriculares, apon-

ta para a necessidade de uma formação de

qualidade ao professor que atua nesta mo-

dalidade de ensino, ao estabelecer uma for-

mação qualificada e contínua para o docente,

visando superar a prática leiga e voluntária

na educação de jovens e adultos. Essas Dire-

trizes propõem uma formação geral corres-

pondente a todo e qualquer professor e uma

formação específica direcionada à complexi-

dade e características da educação de jovens

e adultos, além do aperfeiçoamento profis-

sional continuado. Indicam, ainda, a forma-

ção docente associada à pesquisa, ressaltando

a importância da universidade como locus

de formação. Duas questões se apresentam:

como realizar essa formação? Em que bases

teórico-metodológicas?

Machado (2009) enfatiza que o Fórum de EJA

contribui para o debate sobre a formação de

professores ao propor: a criação de uma rede

de formação e pesquisa, com a colaboração

das universidades, dos fóruns e da ANPED;

a garantia pela esfera pública de formação

inicial e continuada para a EJA; a pesquisa

como princípio orientador da formação; a

garantia de acesso a cursos gratuitos de li-

cenciatura em EJA. E a pesquisa sobre a for-

mação de professores para a EJA apresentada

na ANPED exerce “o papel de denúncia, reve-

lando as fragilidades nas poucas estratégias

de formação ou a ausência dela, ainda reve-

la experiências importantes na formação de

professores e contribui para colocar a preo-

cupação com a modalidade de EJA na pauta

das reivindicações nacionais” (p. 35).

Destaco, também, que as práticas não es-

colares realizadas pelos movimentos de

educação popular se dimensionam como

formadoras daqueles que realizam o traba-

lho educativo, cuja formação se processa na

práxis pedagógica, na reflexão sobre a ação

desenvolvida, ao assumirem os desafios éti-

cos e políticos que os espaços educativos e a

demanda dos sujeitos impõem, bem como

pelas relações interpessoais que estabele-

cem, cujo vínculo tem se caracterizado pela

sensibilidade, afetividade e amizade.

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cOnSiDERAçõES FinAiS

A educação de pessoas jovens, adultas e ido-

sas é vista pelas políticas públicas e fóruns

da sociedade civil como um processo ao lon-

go da vida, tendo o ser humano o direito de

ser educado independente de idade, sexo,

classe social e etnia. A aprendizagem faz

parte da vida dos indivíduos em suas inte-

rações e práticas so-

ciais, sendo efetivada

em diversos espaços

educacionais.

No âmbito dessa mo-

dalidade de ensino, a

relação entre as prá-

ticas escolares e não

escolares apresenta

conflitos e algumas

questões são eviden-

ciadas: a passagem

do processo da alfa-

betização nas práti-

cas não-escolares para a escolarização; a

não valorização pelas políticas públicas des-

sas práticas, vistas como alternativas, mas

que apresentam indicadores de qualidade,

constituindo campo aberto para estudos.

Em termos da formação de professores da

EJA, as instâncias governamentais e as da so-

ciedade civil vêm apresentando indicadores

para uma nova formação pautada na pesqui-

sa como princípio educativo e efetivada por

meio da formação inicial e da continuada.

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A educação de pessoas

jovens, adultas e idosas é

vista pelas políticas

públicas e fóruns da

sociedade civil como um

processo ao longo da

vida, tendo o ser humano

o direito de ser educado

independente de idade,

sexo, classe social e etnia.

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2.5eDuCAÇão De JoVeNS e ADulToS e FoRmAÇão CoNTINuADA De PRoFeSSoReS meDIADAS PelA TeCNoloGIA: muDANÇAS e SAlToS

Jane Paiva33

inTRODuçãO

Não me dava conta de há quanto tempo

iniciara minha participação no Salto para o

Futuro. Saber que o programa completou 20

anos em 2011 traz à memória a necessidade

de algumas reflexões sobre essa vitalidade,

continuidade e permanência, quando tanto

se afirma em relação à descontinuidade de

políticas públicas na área da educação. Mi-

nha participação não tem o mesmo tempo

que o programa, mas 15 anos são passados

desde que fui convidada a fazer o Salto pela

primeira vez, como especialista de uma sé-

rie de Educação de Jovens e Adultos (EJA).

A experiência no Salto havia sido antecedida

pela produção de duas séries via rádio do pro-

grama Verso e Reverso: Educando o Educador,

da extinta Fundação Educar, a primeira em

convênio com a Rádio Manchete, e a segun-

da com a própria Fundação Roquette Pinto/

Rádio MEC, interrompida com a extinção, em

1990, da Fundação Educar34. A segunda expe-

riência, especialmente, trouxe a possibilidade

de dialogar, em uma equipe multidisciplinar,

sobre o significado de um programa de rádio

na formação de educadores, conseguindo re-

alizar, nos 13 programas que chegaram a ser

produzidos e veiculados, uma nova lógica

para programas com intencionalidade educa-

tiva, que não se perdessem da linguagem e do

poder do meio rádio. Buscavam-se novas prá-

ticas de uso de mídias correntes para a abor-

dagem de questões educativas, e para isso a

visão transdisciplinar possibilitava interlocu-

33 Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação (ProPEd) e do Curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), da área de educação de jovens e adultos; Doutora em Educação pela UFF.

34 A instituição foi extinta no “calor” dos apoios aos projetos de “caçador de marajás” do presidente eleito Fernando Collor de Mello, pouco depois afastado pelo impeachment.

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ção constante com profissionais de diferen-

tes áreas – da educação e da comunicação —,

interessados em compreender possibilidades

de epistemologias do Sul (SANTOS; MENESES,

2010) expressarem um modo próprio de dizer

os conhecimentos reinventados no cotidiano

dos fazeres pedagógicos. Ao se adotar a con-

cepção de que o conhecimento não está pron-

to e acabado, mas em constante produção e,

por isso mesmo, é necessária uma visão mais

totalizante das questões, rompendo com a

lógica do fragmento que distorce, quase sem-

pre, a realidade, punha-se em marcha não

apenas um programa de mídia radiofônica,

mas a construção de outro paradigma para

compreender, produzir e apreender tecnolo-

gias, usos e restrições dessas tecnologias.

As memórias de como as séries foram sen-

do pensadas e produzidas acompanham os

avanços da televisão brasileira, seja no apro-

veitamento de técnicas e recursos, seja na

concepção de programas educativos, seja no

timing de desenvolvimento das temáticas e

das linguagens televisivas, seja na apropria-

ção de técnicas, recursos e conhecimento

pelos profissionais da área técnica e da área

pedagógica. Resgatar parte dessa “história”

pela memória de especialistas com diferen-

tes inserções nesse programa reconstitui a

trajetória da formação continuada de pro-

fessores — como programa educativo — em

suporte tecnológico, cuja origem tem em

Roquette Pinto seu primeiro incentivador.

A cada série de EJA, entretanto, posso perce-

ber como o papel do especialista pedagógico

foi sendo redimensionado, o que tanto pode

indicar os modos como o educativo passou a

ocupar a atuação profissional de técnicos em

televisão quanto como esse educativo deixa

de ser específico, massificado pelos formatos,

modelos, índices de audiência — exigentes de

programas mais “parecidos” com os produ-

zidos pela mídia comercial e “palatáveis” aos

espectadores, cujo gosto se “educou” para um

determinado formato. Antes, o especialista

pedagógico tinha funções além da proposição

de concepções de programas, indo até ao vi-

sionamento de material gravado e marcação

de trechos para possível utilização; indicação

de coberturas de imagens para offs; de músi-

cas para fundo; de experiências concretas para

filmagem e de sujeitos para entrevistas. Mas,

nos últimos tempos, essa atuação reduziu-se

bastante, cabendo aos técnicos da emissora

o compromisso de produzir — traduzindo — a

proposta organizada, o que algumas vezes in-

fluiu no resultado pretendido, mesmo se con-

siderando a exigência determinada por novos

formatos, de tempos em tempos.

Meu primeiro Salto, em 1995, foi seguido de

outro em 199735, de várias participações em

35 Nessas duas primeiras séries tive como parceira a Profª Wanda Medrado Abrantes, especialista em EJA, com quem partilhei a experiência intensamente. Na primeira, a supervisão coube ao Prof. José Peixoto Filho.

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temáticas correlatas, de novas séries nos

anos 2000, mas sempre em torno de múlti-

plas facetas que tangenciavam a EJA.

Quando o convite para a primeira série se

apresentou, vivia-se um tempo em que a EJA

não tinha lugar como política pública, bani-

da da oficialidade desde que em 1990 a Fun-

dação Educar fora extinta. Durante toda a

década de 1990, o que restara da EJA cabia à

sociedade, a organizações não governamen-

tais, ao Sistema S e, especialmente, à ação

assistencialista propugnada e mantida com

recursos públicos, inicialmente no âmbito

do programa Comunidade Solidária36 e, pos-

teriormente, na ONG Alfabetização Solidária

— ONG sem concorrentes, para a qual mi-

gravam diretamente 50% dos recursos, gra-

vados em orçamento da União —, mantene-

dora de proposta considerada, pela própria

gestão, com função mobilizadora, mais do

que alfabetizadora. Era, pois, surpreendente

que o Salto — um programa federal de rede

de televisão educativa pública37 — assumisse

em sua programação uma série sobre a te-

mática, nos anos em que a EJA não era prio-

ridade nas políticas públicas38.

Mas o Salto, ligado à realidade de professo-

res que o assistiam, e para os quais existia

como possibilidade de formação continua-

da, coerente com demandas de educadores,

trouxe a série para a programação, à época

com 20 programas diários, com duas espe-

cialistas no ar, diariamente, sob a supervisão

de um terceiro especialista. Juntos, propu-

seram a proposta pedagógica da série, com

ementas e 20 textos base para os programas,

publicados e distribuídos em boletim nos

polos de recepção.

Cinco temáticas constituíam os eixos da

série e visavam responder questões postas

como fundamentos teóricos da proposta pe-

dagógica e a problematizar outras relativas

às práticas na educação de jovens e adultos.

36 Comunidade Solidária foi um programa desenvolvido pela primeira dama do governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), com recursos públicos e apoio empresarial, especialmente paulista. Dele, nasceu o Alfabetização Solidária, em que custo de um analfabeto era repartido meio a meio entre União e empresariado, e cujo slogan mais conhecido era “Adote um analfabeto”. Pouco mais tarde, o programa organizou-se como uma ONG, com “parceria” de universidades públicas e privadas, segundo um desenho previamente definido de implantação, desenvolvimento, pagamento, valores etc. A entidade funciona ainda hoje, e suas ações podem ser conhecidas em site próprio.

37 Essa rede passou por muitas mudanças ao longo dos anos, o que pode ser verificado nos registros da emissora, não cabendo a mim, nesse espaço de artigo, fazê-lo.

38 É dessa década a célebre afirmação do ministro Goldenberg, ao se referir aos analfabetos como não ocupantes de um bom lugar, mas como aquele que já haviam ocupado, sendo melhor não tentar tirá-los de lá. Do mesmo modo, o ministro Paulo Renato Souza justificou-se quando da V Conferência Internacional de Educação de Jovens e Adultos (CONFINTEA), por declarar, no Encontro Regional Latino-Americano realizado em Brasília, precedendo o evento internacional em Hamburgo em 1997, que a prioridade do país, não tendo como atender a todos, eram as crianças — o que reiterou no documento levado a Hamburgo, o que equivalia a dizer o mesmo que o ministro anterior dissera em relação a sujeitos adultos e idosos não alfabetizados, e gravado na história da EJA ainda com mais intensidade com a fala de Darci Ribeiro, em 1989, no Congresso Brasileiro de Alfabetização, em São Paulo, ao pedir aos presentes: “deixem os velhinhos morrerem em paz”!

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A essas temáticas correspondiam progra-

mas, contemplando as definições das emen-

tas39.

Os programas, de 1 hora de duração, iam ao

ar diariamente, durante 20 dias, ao vivo na

TV aberta, com a presença das duas especia-

listas. A experiência da interatividade acon-

tecia com determinados polos, em link com

a emissora, o que nem sempre resultava em

imagem, ou em áudio adequados, fazendo

com que a interlocução direta com os polos

ficasse, muitas vezes, comprometida no uso

desse recurso. De outra feita, percebia-se

uma certa hierarquia no polo linkado para

formular perguntas: professores não as fa-

ziam diretamente, suas perguntas eram “in-

terpretadas” pela coordenação. Mas tam-

bém era prazeroso encontrar professores

que diariamente faziam reflexões sobre os

textos do boletim, demonstrando a cumpli-

cidade com as temáticas, suas experiências

e — melhor — seu compromisso com o pro-

cesso de formação de que participavam.

Experiências gravadas por indicação das es-

pecialistas compunham os takes editados.

Após a exibição, 30 minutos de rádio, em

estúdio, levavam as discussões do mesmo

tema a lugares ainda mais distantes, tra-

vando novas interlocuções com professores

e com o público em geral. A programação,

em TV aberta, não raramente alcançava es-

pectadores comuns, encantados com o pro-

grama, permanentes acompanhadores das

ofertas do canal e propositores de questões

aos especialistas40. Além da TV e do rádio,

a interatividade com os professores em for-

mação era buscada pelo telefone, uma fer-

ramenta potente que conectava professores

ao programa e aos especialistas, assim como

o fax, por meio do qual, diariamente, uma

enxurrada de perguntas — e de novos textos

produzidos pelas especialistas, em resposta

— circulavam, dialogando com seus formu-

ladores, problematizando-as. Esse material

— vasto, intenso, resultante do diálogo com

as práticas e com as lógicas e concepções

docentes — carece ainda de tratamento, pela

39 As temáticas foram: Temática 1: Educação de jovens e adultos: visão histórica (Programa nº 1: Educação de jovens e adultos: uma história negada; Programa nº 2: Alfabetização de adultos: conceitos e preconceitos); Temática 2: Os sujeitos envolvidos no processo de educação de jovens e adultos (Programa nº 3: Partir da realidade do aluno... o que é isso?; Programa nº 4: Espelho, espelho meu: diga-lhes quem sou eu!; Programa nº 5: Professor ou professora? Que história é essa?;Programa nº 6: Sonhos e realidade); Temática 3: O Projeto Pedagógico da Educação de Jovens e Adultos (Programa nº 7: A educação que queremos; Programa nº 8: Que conteúdos? Dilemas da educação de jovens e adultos; Programa nº 9: Cotidiano escolar: opressão ou liberdade?); Temática 4: As produções dos jovens e adultos (Programa nº 10: Eu sei. Tu sabes?; Programa nº 11: Trabalho: a mão na massa; Programa nº 12: Nem escritores, nem reprodutores: autores; Programa nº 13: Fazendo história); Temática 5: As práticas pedagógicas na educação de jovens e adultos (Programa nº 14: Somos 30 milhões de analfabetos...; Programa nº 15: Textos: tecendo os sentidos; Programa nº 16: Ler e compreender o mundo; Programa nº 17: Pensando matematicamente; Programa nº 18: Cultura científica e tecnológica: de espectador a intérprete; Programa nº 19: Avaliação: um monstro? Um bicho-de-sete-cabeças?; Programa nº 20: Sala de aula: luz, câmera e ação!).

40 Este parece ser um ponto bastante diverso da realidade pela qual se foi configurando o Salto ao longo dos anos: passar da condição de TV aberta para canal fechado, restringindo públicos e horários, consequentemente.

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riqueza de questões apresentadas, concep-

ções assumidas e experiências relatadas.

Apesar de, em muitas ocasiões, se ter de-

cidido pela sua recuperação, apreciação e,

quem sabe, talvez, publicação, numa espé-

cie de conversa ao pé do ouvido com educa-

dores, essa memória permanece submersa.

Em 1997, a decisão de uma nova série propôs

aproveitar a produção da série de 1995, com

algumas mudanças: de vídeos de experiências

apresentadas em alguns programas, cuja lógi-

ca de escolha não respondia à indicação ori-

ginalmente feita; de substituição, por novos,

de até três programas; de “encolhimento” da

série para 17 programas. A essa margem de

reconfiguração, somava-se mudança ao for-

mato: a cada dia uma especialista poderia ser

acompanhada da outra, mas não necessaria-

mente. A escolha poderia, por exemplo, recair

sobre o convite a um especialista do tema em

discussão, de abordagem mais ampla, que dia-

logaria com a perspectiva da educação de jo-

vens e adultos. Os textos, do mesmo modo que

os programas, sofreriam as alterações em con-

comitância às escolhas realizadas, mas ainda

todos elaborados pelas especialistas da série.

No ar, ao vivo, diariamente, o programa já não

dispunha mais do veículo rádio, mas o telefone

e o fax permaneciam como ferramentas mais

fortes da interatividade.

A participação como especialista, no Salto,

veio-se fazendo pela compreensão de serem

os educadores de EJA – público a quem o pro-

grama se destinava precipuamente —, também

jovens e adultos em processos de aprender por

toda a vida, de formação continuada (PAIVA,

2010). Essa concepção de formação, portanto,

considerava a condição de trabalhadores des-

ses educadores, de sujeitos de um continuado

processo de aprendizagem, de serem também

eles educandos culturalmente constituídos no

resgate de suas identidades e, por fim, de edu-

cadores de sujeitos em quase tudo muito asse-

melhados às próprias condições, pela história

de lutas e carências que marcam trabalhadores

professores e trabalhadores subalternizados —

público da EJA — no país. A concepção de EJA,

assim tomada, traduzia a função qualificadora

do Parecer CNE no. 11/2000, que propugna a

ideia de aprender por toda a vida – condição e

base da formação de sujeitos humanos; modo

como os sujeitos se põem no mundo: pela ex-

periência.

Ao mesmo tempo em que se desenvolvia tal

concepção de formação, o avanço do conhe-

cimento, ao longo dos anos, produziu estu-

dos e reflexões quanto à utilização de tecno-

logias da comunicação e da informação, e

a então chamada teleducação, contempora-

neamente, passou a integrar o conjunto de

ambientes virtuais de aprendizagem.

Além dessa fundamentação que sustenta um

modo de (auto)formar educadores e de fazer

educação, tomavam-se como referência al-

guns aspectos da comunicação que orientam

a prática, visto que a interação de sujeitos

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que aprendem depende, diretamente, da co-

municação. Um desses aspectos diz respeito

à preocupação com a recepção, que envolve

modos culturais de apreender e compreen-

der o mundo e tudo o que ele significa para

cada sujeito — os mundos criados e assim co-

nhecidos por cada um de nós, aprendentes.

DiScuTinDO uM AMBiEnTE DE

APREnDizAGEM PARA A (AuTO)

FORMAçãO DE PROFESSORES

Poder-se-ia dizer

que a televisão

foi, para o Salto, o

grande veículo/fer-

ramenta que confi-

gurou o ambiente

de aprendizagem

do programa. Ao

longo de todos es-

ses anos, entre-

tanto, esse veículo

nunca esteve sozi-

nho. Da televisão e do rádio — sempre tão

pouco explorado para essa função forma-

dora — ao impresso, telefone, fax, e, mais

recentemente a Internet, o programa tem

experienciado formatos, recursos, dinâ-

micas, âncoras, especialistas, cenários,

sempre em busca de maior interatividade/

aproximação com seu público, apesar de

o canal fechado interpor-se como limite

considerável à disseminação da proposta

de (auto)formação.

Se é verdade que a mensagem, em tese,

chega para todos, só o faz, para os que a

acessam, segundo formas particulares de

percebê-la, o que significa levar em conta

experiências anteriores, leituras de mundo,

significados construídos sobre formas de co-

municação. Não há, por essa compreensão,

possibilidade de admitir homogeneização

da recepção, constituindo, essa premissa,

justamente, sua riqueza, pela diversidade

de sentidos que podem ser produzidos pelos

sujeitos que, assim,

se (auto)formam.

Programas educa-

tivos, ao adotarem

alguns tipos de mo-

delagem, excluindo

diferentes possibili-

dades de linguagem

e de interpretação

da realidade, ainda

inquietam quando

se trata do veículo

televisão. Por exemplo, quando se adota o

modelo de clips, que fragmentam imagens e

dificultam a visão da totalidade; quando se

editam depoimentos, extraindo-os do con-

texto em que são enunciados os discursos

e produzindo “outros” discursos. Mas tam-

bém a inquietação se amplia, quando se adi-

ciona o pressuposto base de que toda forma-

ção passa por um processo integral que não

se restringe, apenas, a conhecimentos de

natureza intelectual, mas que toca e “fala”

Programas educativos,

ao adotarem alguns tipos

de modelagem, excluindo

diferentes possibilidades

de linguagem e de

interpretação da realidade,

ainda inquietam quando se

trata do veículo televisão.

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aos sentidos, às emoções, às percepções, às

experiências. O uso, portanto, de diferen-

tes “textos” — expressões, narrações, ima-

gens que revelam sentidos, depoimentos, a

música, a dança, a poesia, o texto escrito,

imagético e declamado, pinturas, formas de

representação artística etc. — passa a ser in-

dispensável ao se pensar um programa de

formação continuada de professores. Não

basta, para formar educadores, apresentar

conteúdos pedagógicos, nem experiências,

mesmo quando emitidas por renomados es-

pecialistas, por suposição de que os profes-

sores não sabem determinados conteúdos,

de diferentes áreas. A formação do educa-

dor precisa de muito mais. Um programa

educativo — que não esgota, nele mesmo,

possibilidades — ao se valer desses recursos,

aproxima o professor das próprias vivências

e, ao repensá-las, toma como horizonte de

(re)descobertas a sala de aula, que se am-

plia, na comparação com outros fazeres/

possibilidades.

A importância do recurso tecnológico que

a televisão representa para fazer chegar, a

um universo de professores, um determina-

do tipo de mensagem também implica ad-

mitir que a formação assim pensada revela

intencionalidades, controles, concepções e

expectativa de resultados (o atingimento de

objetivos) e, de certo modo, “padroniza” um

processo de formação. Se, por um lado, isto

pode ser visto como vantagem, pelo fato de

pressupor o poder de dizer a tantos o que

se deseja, por outro, cabe refletir sobre os

riscos que tal poder pode representar. Os

ambientes de aprendizagem que envolvem

a condição a distância são inexoráveis nas

sociedades contemporâneas e, por isso mes-

mo, apropriar-se deles faz parte das políticas

de formação. Entretanto, esses ambientes

não excluem nem substituem o papel e o

trabalho interativo de aprendizados presen-

ciais, mantidos em experiência direta com

professores, pelos sentidos humanos do que

aprender significa: experienciar e apreender,

na relação com o outro, objetos de conheci-

mento. Esses momentos presenciais — tam-

bém ambientes de aprendizagem — comple-

mentam, ampliam, enriquecem, produzem,

reelaboram e ressignificam textos e senti-

dos, porque se dispõe de um tempo que a

televisão não possibilita, exigíveis para que

esses processos se deem. A mediação entre

seres humanos, mais próxima, sem limites

da técnica e da tecnologia que imputam

rupturas, formas de dizer, tempos de dizer,

sinais, simulações que servem ao efeito fi-

nal, carrega as emoções da interação direta.

Ao se desenvolver o conceito de interativi-

dade, põe-se em jogo a ilusão — para técni-

cos e especialistas, e para espectadores — da

participação, da interação, da interferência,

quando o que rege essa relação são os limi-

tes e escolhas da técnica e de seus instru-

mentos, submetidos ao poder de quem os

detém ou de quem sabe manejá-los. O false-

amento da realidade pode criar inversões de

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papéis e de atributos, simulando competên-

cias e conhecimentos em quem não os tem,

e até mesmo transferindo-os para profissio-

nais da televisão.

Não deter o conhecimento da dinâmica que

cerca a construção/produção de um pro-

grama de formação pela televisão, e não

investigar como professores participam

dessa ilusão; como se colocam na condição

de espectadores; que sentidos criam para o

curso que frequentam, entre muitas outras

questões, ao serem desveladas, ajudarão a

melhor precisar os rumos e definições do

modelo de formação pela mídia, possível

e demandado pelos usuários. O questiona-

mento que cerca essa argumentação não se

opõe, em princípio, à ideia de como se pro-

duzem programas para o veículo, mas pre-

tende sinalizar aspectos, para que se man-

tenham a perspectiva e o senso de realidade

em relação ao 'para quem' se fazem esses

programas e ao 'por que' são feitos.

O que se quer, em síntese, é também sus-

citar nos profissionais de televisão questões

sobre o próprio fazer, intimamente imbri-

cado com os sujeitos professores que dele

participam. Questões que, observadas por

quem está do outro lado do estúdio, mas que

participou, com estranhamento, do lado de

dentro, como forasteiro com seu saber, pos-

sam contribuir para repensar modelos, for-

matos e lógicas da produção educativa, em

especial, da formação continuada: em que

medida profissionais de televisão costumam

indagar sobre o que seu trabalho pode acar-

retar em destinatários finais de um progra-

ma? Avalia-se o quanto um programa atin-

ge uma audiência apenas pelo número de

transmissores ligados, ou pelo que impacta?

E de que modo se avaliam impactos? A quem

importam os efeitos causados? Têm servido

para modificar, por exemplo, formatos, pro-

gramações, modos de dizer, interferências

de âncoras? Ou quem sabe fazer televisão

se basta quando a faz bem, sem avaliar im-

pactos sociais? Como educadora também,

e pesquisadora, estas questões não podem

estar fora do debate, considerando a experi-

ência até então vivida.

Na continuidade do resgate da memória das

séries de EJA, aponto, ainda, aspectos das sé-

ries que merecem reflexão e debate.

AvAliAnDO AS SéRiES

Nesse item, apresento algumas questões

relacionadas à produção e a produtos que

envolvem, no todo, aspectos referentes a

profissionais, seus fazeres, concepções e

técnicas do fazer televisão e programas edu-

cativos.

SOBRE PROcESSOS DE PRODuçãO

E PRODuTOS

Formatos são sempre apostas, escolhidas

com base em critérios menos vinculados à

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natureza do programa que se faz, do que

a um certo modo de “ver” televisão, hege-

mônico, que a grande mídia passou a pro-

duzir. A base teórica com a qual se trabalha

em processos de formação continuada de

professores não exclui o belo, o lúdico, as

diferentes formas de linguagem com seus

tempos, ritmos, movimentos. Os recursos

fantásticos de que dispõem as emissoras po-

deriam trazer, para professores em forma-

ção, em nível nacional, caminhos não co-

nhecidos, inimagináveis, da arte, da música,

da literatura, da pedagogia, das ciências etc.

Recomendar ao professor o trabalho com

essas linguagens e recursos com alunos,

sem conseguir explorá-los em programas de

formação continuada, deixa escapar a possi-

bilidade de propiciar vivências de situações

diferenciadas dos esquemas e modelos com

os quais conviveram em suas vidas escola-

res, em cursos de formação inicial para o

magistério, e com que convivem, ainda, no

exercício de práticas pedagógicas.

A liberdade de “voar” pode ser reforçada pe-

las escolhas e tratamento de poemas e de

linguagens afins, de exercício da experiência

do olhar diante de situações diversificadas

de estética do cotidiano das escolas, quase

sempre afastadas dos contextos de vida e de

condições de trabalho docente.

Como incorrigível aprendiz, e aberta a apre-

ender cada vez mais sobre o que é fazer tele-

visão, expressar outros pontos de vista, ou-

tras informações, pode ampliar a discussão

e quebrar certa linearidade da visão que per-

passa, há alguns anos, a televisão no Brasil

e, de modo assemelhado, a dos programas

educativos, nos quais a formação continua-

da se insere, que nem sempre buscam iden-

tidade própria, valendo-se da forjada pelas

TVs comerciais. O compromisso com a for-

mação de educadores desafia e orienta ou-

sadias que cometo, por vício de ofício, em

minha prática profissional.

A aproximação entre especialistas, roteiris-

tas, produtores e diretores auxiliaria trocas,

reveladas nos argumentos de todas as partes.

O distanciamento, pelo contrário, pode com-

prometer a visão de roteiristas e acabar por

não refletir sentidos originais do texto; faz

com que abordagens da direção encubram

aspectos que poderiam ser relevados etc.

Um aspecto a destacar, especialmente quan-

do se trata da EJA, é a tendência de sobreva-

lorizar a vida das camadas populares, com

ênfase excessiva nos textos duros que pro-

duzem nos cotidianos. Soluções mais equi-

libradas podem fazer a síntese entre a bele-

za, a estética, a música, a arte e a vida dos

sujeitos dessa modalidade de educação, se

todos os envolvidos detêm conhecimentos

mínimos sobre quem são os sujeitos a quem

se destinam os programas.

Por força do modo como a televisão se cons-

tituiu no Brasil, ainda prevalecem imagens

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estereotipadas de grupos e classes sociais,

fortalecendo a ideologia hegemônica de su-

perioridade de uma classe sobre as demais.

Essa visão desrespeita especialistas, professo-

res e sujeitos jovens e adultos, quando não se

consegue romper com uma lógica que falseia

a realidade, se se impede o espaço para ne-

gociar alternativas, guardando requisitos da

técnica e da geração de imagem, mas atento

a identidades pessoais e profissionais dos que

são representados.

Ao introduzir-me

no domínio de uma

linguagem e de no-

vas aprendizagens

em tempos curtos

— essa também uma

característica da te-

levisão —, em que

a necessidade do

êxito, do acerto, é

cotidiana, e não se

conserta, não se re-

faz, no dia seguinte,

aprendi a considerar esses limites na relação

intensa com as tensões geradas pelas exigên-

cias de um programa ao vivo. Se o ao vivo pa-

rece pressupor uma maior flexibilidade para

admitir o erro, o improviso, por outro lado,

gera maior rigor, por se saber que não há

retorno, não se desfaz, para tentar de novo.

Entretanto, o tempo — e sempre ele —, é bre-

víssimo, no modelo instituído de discursos,

pois para se chegar à construção de reflexões

que sugiram o movimento do pensamento

de sujeitos em formação, faz-se também um

movimento de pensamento e de argumenta-

ção de que se lança mão e que exige tempo.

O tempo da televisão educativa, entretanto,

frequentemente guarda a mesma lógica que

serve às TVs comerciais e a outros programas,

comprometendo objetivos de desconstrução

da lógica do dual: sim/não; certo/errado; per-

feito/imperfeito; conservador/progressista

etc., que cabem melhor em tempos encurta-

dos, mas são impen-

sáveis para deslocar

pessoas — e seus sa-

beres — e pensamen-

tos.

FinAlizAnDO

O espírito deste tex-

to traduz concep-

ções já tra tadas em

programas do Salto,

quanto ao que se

concebe como ava-

liação. Coerentemente com essas concep-

ções, acredito que nada está pronto, aca-

bado e, portanto, é passível de revisão, de

crítica, de avanço. Na perspectiva da possi-

bilidade de avanço é que demarco algumas

ideias, questionamentos, afirmações, dúvi-

das, para provocar, ainda uma vez, o deba-

te, o encontro, o confronto do pensamento

pedagógico com o pensamento da comuni-

cação, de modo a favorecer novas sínteses.

Por força do modo como a

televisão se constituiu no

Brasil, ainda prevalecem

imagens estereotipadas

de grupos e classes

sociais, fortalecendo a

ideologia hegemônica

de superioridade de uma

classe sobre as demais.

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A educação de jovens e adultos passou, ao

longo de todos esses anos, pode-se afirmar,

a despeito dos embates políticos e das lutas

pela garantia do direito à educação para to-

dos, no país, a ter um lugar na programação

do Salto, desde que, em 1995, a primeira sé-

rie foi realizada. Das amplas séries de 20 pro-

gramas diários, a formatos mais compactos,

de cinco programas, muitas mudanças fo-

ram inseridas nos desenhos dessas séries,

certamente em busca de acertos no timing

dos professores em processos de formação

continuada, mas também nos tempos que

a televisão e seus gestores e técnicos esta-

belecem para atender critérios de velocida-

de da informação, captura do interesse da

audiência, economicidade, aproveitamento

de produtos etc. Especular em torno dessas

razões é necessário para, quem sabe, provo-

car respostas dos gestores de TVs educativas

em relação a questões bastante obscuras e

pouco visíveis para quem participa com seu

saber da constituição de programas em de-

terminadas áreas do conhecimento, e para

quem se interessa, curiosamente, como pes-

quisadora, pelas formas como a mídia dis-

põe o fazer televisão no país.

Não se pode deixar de fora, em se tratando

de programas, a questão da descontinuidade

que se coloca sempre como fantasma sobre

toda e qualquer proposta. No caso do Salto

jamais ocorreu descontinuidade, mesmo em

momentos de esvaziamento do órgão fede-

ral que o produz; em situações de mudança

e de inflexões sobre o caráter da emissora;

em alocação e subordinação a um novo or-

ganograma do poder.

As temáticas das séries produzidas sobre a

educação de jovens e adultos, assim como

sua produção, acompanharam inflexões

das políticas ao longo dos anos e de um

tempo em que esteve mais fora de cena —

correspondente à política de prioridade à

educação de crianças de ensino fundamen-

tal —, a um tempo de EJA como prioridade

na composição do projeto de nação. Nesse

tempo mais recente, o desdobramento da

EJA reiterou a diversidade de sujeitos, seus

requerimentos, abordagens pedagógicas e

de conhecimentos por parte de professores,

além de compreensão histórica do sentido

de educar jovens e adultos em sintonia com

amplos debates nacionais e internacionais,

captados e assentes nos debates e nas pro-

postas que integraram a formação continu-

ada do Salto para a área. Quilombolas, indí-

genas, internos penitenciários, diversidade

étnico-racial e muitas outras questões esti-

veram em diálogo com a produção do currí-

culo, com a formação de leitores e de escri-

tores, enfim, com a educação como direito

de todos, independentemente da idade, nos

termos preceituados e garantidos constitu-

cionalmente.

A despeito de aonde chega a televisão fecha-

da no país e para quem chega, muito caberia

indagar quando se trata de oferta pública, ou

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seja, destinada, indistintamente, a todos que

por ela se interessem. Mas essa oferta da te-

levisão fechada ainda é dependente de recur-

sos, sinais, tecnologias, nem sempre disponí-

veis em todo o território nacional como, por

exemplo, há muito, o rádio já superou. Para

os defensores da comunicação audiovisual, o

rádio é superado como veículo, embora des-

frute de largos usos, em longínquos espaços

brasileiros. Se a geração audiovisual é uma

realidade com a qual nos confrontamos,

pelo modo como ainda concebemos a esco-

la, porque formados em outros paradigmas

de geração de conhecimento e disseminação

de informação, há que considerar também

a presença de toda uma geração formada —

no sentido de ler o mundo e reconhecer a

ampliação das fronteiras — pelo rádio, e que

ainda está na ativa, trabalhando e tendo esse

veículo como referência primeira. Dados so-

bre audiência, sobre de que forma ele chega,

como chega, para quem chega serão, sem-

pre, indispensáveis na tomada de decisões

dessa natureza. Caberia, portanto, indagar,

complementando argumentos já apresen-

tados: de que modo se poderia, pensando-

se políticas intersetoriais, repensar o rádio

como mais um veículo, em projetos comple-

xos de formação continuada de professores,

com seu potencial de criar mundos invisíveis

e trabalhar com a imaginação de ouvintes

sequiosos de possibilidades, explorando-o às

últimas consequências naquilo que ele pode

fazer bem, sem ficar à mercê das lógicas du-

ais que o opõem à televisão?

Rediscutir o papel de todos esses veículos,

postos a serviço da educação e de suas ofer-

tas, no conjunto das demais políticas de for-

mação continuada estimuladas pelo MEC,

pode estabelecer uma política intersetorial

mais adequada à diversidade de públicos,

condições materiais e de formação, em to-

dos os estados e municípios.

Nesses 20 anos de Salto, sem dúvida, a EJA

tem muito a comemorar, pelo modo como

esteve presente na programação, pelo com-

promisso de gestores, de supervisores peda-

gógicos, de equipes, que alimentaram a pos-

sibilidade de dar corpo e produzir sentidos

à temática, republicanamente, no fazer de

um programa de formação continuada. O

programa tem seu lugar na história da edu-

cação no país e, ainda de forma incipiente,

alguns estudos e pesquisas iniciam a esca-

vação das fontes, para produzir sua própria

história. Mais que um tema de pesquisa, o

Salto produziu conhecimentos sobre for-

mação continuada em ambiente virtual de

aprendizagem e fez aprender muita gente

que passou pelos diferentes percursos que

o constituíram. Impossível ignorar o lugar

que o Salto inscreveu na memória de tantos

educadores, professores e especialistas que,

com ele, também produziram suas histórias.

Incluo-me nesse rol, segura do que será pos-

sível avançar nas propostas do Salto para

a EJA, a partir do marco referencial dos 20

anos, que institui o balanço, produz crítica

comprometida e projeta o futuro, com ali-

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cerces sólidos na memória do presente, que

dia a dia se faz passado.

REFERênciAS

SANTOS, Boaventura de Sousa e MENESES,

Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul.

São Paulo: Cortez, 2010.

BRASIL. CNE. Parecer CEB n. 11/2000. Diretri-

zes Curriculares para a Educação de Jovens e

Adultos. Brasília: CNE, 2000.

PAIVA, Jane. Quando duas se fazem uma: de

formação inicial continuada à formação hu-

mana. III Seminário Nacional sobre Formação

de Educadores de Jovens e Adultos. Painel: A

formação inicial e continuada do educador

de jovens e adultos nas Instituições de Ensi-

no Superior — desafios e possibilidades. Por-

to Alegre, Rio Grande do Sul, 26 a 28 maio

2010.

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2.6TRABAlHo, emPReGo e eDuCAÇão BÁSICA: DISTINÇÕeS e RelAÇÕeS

Gaudêncio Frigotto41

Um homem se humilha

Se castram seu sonho

Seu sonho é sua vida

E vida é trabalho

E sem o seu trabalho

Um homem não tem honra

E sem a sua honra

Se morre, se mata

Não dá pra ser feliz

Não dá pra ser feliz42.

41 Doutor em Educação. Professor do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da UERJ. Professor titular (aposentado) em Economia Política da Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense.

42 Gonzaguinha. Um Homem Também Chora (guerreiro Menino). 1983. Álbum Alô Brasil.

Com grande frequência, não só no senso

comum, mas em textos de economia, socio-

logia, psicologia, educação etc., os termos

trabalho e emprego são utilizados como si-

nônimos. Como consequência dessa confu-

são, tanto no senso comum quanto nas áre-

as acima referidas, entre outras, efetiva-se,

indistintamente, a relação entre trabalho e

educação básica e emprego e educação bá-

sica.

A relação entre trabalho e educação expri-

me, originariamente, a forma de os seres

humanos produzirem sua vida material e

sua reprodução social. Como nos indica

Konder, toda sociedade vive porque consome;

e para consumir depende da produção. Isto é,

do trabalho. Toda a sociedade vive porque cada

geração nela cuida da formação da geração se-

guinte e lhe transmite algo da sua experiência,

educa-a. Não há sociedade sem trabalho e sem

educação (KONDER, 2000, p. 1.120). O mesmo

não ocorre com a relação entre o emprego e

a educação na sociedade capitalista.

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Neste texto, com base em diferentes arti-

gos já publicados e com fins pedagógicos,

buscarei explicitar porque trabalho não é

sinônimo de emprego, pelo contrário, o

emprego é uma forma histórica de degrada-

ção do trabalho e que, portanto, a relação

fundamental é entre trabalho como direito

e dever e princípio formativo e educação e

não emprego e educação. Esta última re-

lação expressa a forma particular das rela-

ções sociais capitalistas. Por fim, buscarei

assinalar como, numa sociedade de desem-

prego estrutural, de super exploração dos

trabalhadores e de condições cada vez mais

precárias no mundo da produção, a relação

trabalho como direito e dever e princípio

educativo pode ajudar a não culpabilizar os

trabalhadores, especialmente jovens e adul-

tos pouco escolarizados.

O TRABAlhO cOMO

AuTOcRiAçãO, DiREiTO E

DEvER E PRincíPiO EDucATivO

Diferente da herança iluminista, que super-

dimensiona as qualidades intelectuais do ser

humano, o filósofo grego Anaxágoras realça

que o ser humano pensa porque tem mãos43.

Por certo a mão é, dos membros do ser hu-

mano, o primeiro instrumento básico me-

diante o qual apanha, modifica, transforma a

natureza, que não ele mesmo, nos meios de

sua produção. É desta tradição, também, que

se afirma a ideia de que, para pensar, o ser

humano precisa existir enquanto materiali-

dade, ainda que o ser material e o ser pen-

sante coexistam na unidade do mesmo ser.

O filósofo György Lukács, com base nos ma-

nuscritos filosóficos econômicos de Karl

Marx, nos oferece os fundamentos para en-

tender o trabalho como expressão do pro-

cesso de tornar-se ser humano e, portanto,

de ir além da fixação dos seres vivos na com-

petição biológica com seu mundo ambiente,

determinados pelo instinto de sua espécie. A

superação de ser mero epifenômeno da re-

produção biológica dá-se mediante a cons-

ciência que lhe permite projetar e antecipar

sua ação e modificar a natureza da qual se

origina e criar o mundo propriamente hu-

mano44. O trecho abaixo de Marx situa a sín-

tese do que assinalamos acima e fundamen-

ta o caráter do trabalho como direito, dever

e princípio educativo.

Antes, o trabalho é um processo entre o

homem e a natureza, um processo em

que o homem, por sua própria ação, me-

deia, regula e controla seu metabolismo

com a Natureza Ele mesmo se defronta

com a matéria natural como uma força

natural. Ele põe em movimento as for-

ças naturais pertencentes à sua corpo-

43 Esta citação de Anaxágoras foi retirada do livro de Carlos Paris – o Animal Cultural (2000).

44 Ver, a esse respeito, Lukács (1978).

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reidade, braços, pernas, cabeça e mãos,

a fim de se apropriar da matéria natural

numa forma útil à própria vida. Ao atu-

ar, por meio desse movimento, sobre a

natureza externa a ele e ao modificá-la,

ele modifica, ao mesmo tempo, sua pró-

pria natureza” (MARX, 1983, p. 149).

Na caracterização de Marx em nenhum mo-

mento aparece a palavra emprego. Pelo con-

trário, é no próprio processo histórico de

tornar-se humano que surge a atividade que

denominamos de tra-

balho como algo es-

pecífico do homem.

Netto e Braz, partin-

do do legado de Marx,

destacam três razões

que definem o traba-

lho como atividade

específica do ser hu-

mano:

Em primeiro lugar porque o trabalho

não se opera com uma atuação ime-

diata sobre a matéria natural; dife-

rentemente, ele exige instrumentos

que, no seu desenvolvimento, vão cada

vez mais interpondo entre aqueles que

o executam e a matéria; em segundo

lugar porque o trabalho não realiza

cumprindo determinações genéticas;

bem ao contrário, passa a exigir habili-

dades e conhecimentos que se adquirem

inicialmente por repetição e experimen-

tação e que se transmitem mediante

aprendizado; em terceiro lugar, porque

o trabalho não atende um elenco limi-

tado e praticamente invariável de ne-

cessidades, nem as satisfaz sob formas

fixas (grifo dos autores) (NETTO e BRAZ,

2006, p. 30-31).

Em sua dimensão imperativa, ele aparece

como atividade que responde à produção dos

elementos necessários à vida biológica dos

seres humanos como seres ou animais evo-

luídos da natureza.

Concomitantemen-

te, porém, constitui-

se no fundamento

para responder às

necessidades de sua

vida cultural, social,

estética, simbóli-

ca, lúdica e afetiva.

Trata-se de necessi-

dades que, por se-

rem históricas, assumem especificidades no

tempo e no espaço.

Em qualquer sociedade e tempo histórico,

portanto, os seres humanos necessitam de-

dicar um tempo de trabalho para responder

às suas necessidades vitais. Esse tempo varia

de acordo com os avanços dos instrumentos

e técnicas de produção. Quanto menor for

o tempo de trabalho inscrito no mundo das

necessidades, maior será o tempo livre, tem-

po este que pode ser fruído de acordo com a

Quanto menor for o tempo

de trabalho inscrito no

mundo das necessidades,

maior será o tempo livre,

tempo este que pode ser

fruído de acordo com a

escolha de cada um.

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escolha de cada um. Trata-se da esfera da li-

berdade onde se transcende o mundo animal

e as qualidades humanas podem se dilatar.

Note-se, todavia, que o mundo do tempo

livre não pode prescindir do trabalho que

se desenvolve na esfera da necessidade.

Aquele tem como condição a precedência

deste, pois, para existir, o ser humano tem

que prover sua produção enquanto parte da

natureza. Daqui decorrem as dimensões do

trabalho como um direito, como um dever e

princípio educativo.

O trabalho se constitui em direito universal,

isto é, de cada ser humano e em qualquer

tempo, pelo simples fato de que é através

dele que se tem a possibilidade de produção

e reprodução da vida. Negar o direito ao tra-

balho é impedir o processo entre o homem e a

natureza, um processo em que o homem, por

sua própria ação, medeia, regula e controla

seu metabolismo com a Natureza. Sob esta

compreensão também a água, a terra e to-

dos os bens da natureza são um direito de

todos, já que é a partir deles que os seres

humanos constituem sua própria natureza.

Veremos, no próximo item, como nessa re-

lação originária do ser humano com a na-

tureza se rompe e se instaura a dominação

de uns sobre outros e o surgimento da pro-

priedade privada, meio de exploração e do

acumular riqueza.

Se o trabalho é um direito inalienável, pela

mesma razão se constitui um dever de to-

dos. Isto decorre do simples fato de que, en-

quanto seres da natureza, os humanos não

podem prescindir de comer, proteger-se e

buscar os meios de sua produção e reprodu-

ção pela ação de suas mãos, braços, cabeça

etc., vale dizer, pelo trabalho. E se estas ne-

cessidades são uma peculiaridade de todos,

são também um dever de todos.

Desta dupla dimensão humana do trabalho

decorre a sua especificidade de princípio

formativo, socializador ou educativo. Trata-

se de inscrever no caráter, na personalidade

de cada ser humano e desde a infância, a

compreensão do direito e do dever do tra-

balho. Ou seja, socializar, desde a infância,

o princípio de que a tarefa de prover a sub-

sistência e outras esferas da vida pelo tra-

balho é comum a todos os seres humanos,

evitando-se, desta forma, criar indivíduos ou

grupos que exploram e vivem do trabalho

de outros. Estes, na expressão de Gramsci,

podem ser considerados mamíferos de luxo

– seres de outra espécie que acham natural

explorar outros seres humanos.

Esta relação do trabalho desde a infância,

como veremos a seguir, nada tem a ver com

a exploração histórica do trabalho infantil

pelos sistemas escravocratas e pela compra

e venda da força de trabalho sob o capita-

lismo. Trata-se de fazer com que, de acordo

com a possibilidade de sua idade, a criança

apreenda que é um ser da natureza e que,

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como tal, para reproduzir-se e satisfazer ou-

tras necessidades, precisa mover-se, buscar

e agir. Internalizar, pois, que o trabalho é um

direito e um dever.

Do que expusemos até aqui cabe destacar

quatro aspectos que engendram confusão

ao se tratar da relação trabalho e educação:

1. primeiro, que o trabalho, na compre-

ensão acima, não só não é redutível

a emprego como é antagônico a essa

forma histórica de exploração do tra-

balhador;

2. segundo, que o trabalho como princí-

pio educativo, não se refere a técnicas

ou estratégias didáticas ou metodoló-

gicas no processo de aprendizagem,

mas a um princípio ético-político45.

3. terceiro, a centralidade do trabalho

não deriva do caráter de superioridade

em relação às demais atividades hu-

manas, das quais lhes é fundamento,

mas da práxis que possibilita ao ser

humano produzir-se e reproduzir, de-

senvolver a arte e a cultura, a lingua-

gem e os símbolos, o mundo humano

como resposta às suas múltiplas e

históricas necessidades;

4. finalmente, tomado o trabalho na sua

dimensão de criador do modo huma-

no de vida, permite-nos afirmar que a

tese do fim do trabalho como produtor

de valores de uso e de trocas para res-

ponder às múltiplas necessidades hu-

manas não tem o menor fundamento.

Seria o mesmo que se afirmar que a

vida humana desapareceu da face da

Terra ou que todos os seres humanos

se transformaram em seres puramen-

te imateriais ou em “anjos”. São as

formas históricas de como o trabalho

se efetiva nos diferentes modos sociais

de produção da existência humana

que desaparecem46. O fim do trabalho

escravo, pelo menos dominantemen-

te, foi um avanço civilizatório, assim

como o será quando a humanidade

conseguir abolir o trabalho abstrato

ou o emprego sob o capitalismo e a

classe social que o estatuiu.

45 Realçamos este aspecto, pois é frequente reduzir o trabalho como princípio educativo à ideia didática ou pedagógica do aprender fazendo. Para aprofundar a compreensão desta questão, ver Saviani (1984) e Frigotto (1985). Isto não elide a experiência concreta do trabalho dos jovens e adultos, ou mesmo das crianças, como uma base sobre a qual se desenvolvem processos pedagógicos ou mesmo a atividade prática como método pedagógico. Uma das obras clássicas sobre o trabalho como elemento pedagógico é a obra organizada por Pistrak e da qual se publicou no Brasil uma síntese (PISTRAK, 1981). Recentemente, Luiz Carlos de Freitas traduziu e publicou a obra completa, fazendo uma excelente introdução, dando-lhe o contexto histórico e seu significado (PISTRAK, 2009).

46 Com o agravamento do desemprego estrutural, especialmente a partir da década de 1980, vários autores desenvolveram a tese da perda da centralidade do trabalho na vida humana ou mesmo a tese do fim do trabalho. Para um discussão crítica sobre a tese de Claus Off (1989) sobre a perda da centralidade do trabalho e sobre as teses do fim do trabalho, ver Antunes (1995) e Frigotto (2010).

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A DOMinAçãO huMAnA,

O TRABAlhO EScRAvO E O

TRABAlhO EMPREGO

A compreensão que, sinteticamente, explici-

tamos acima se constitui naquilo que Isvan

Mészáros, a partir de Lukács, denomina o

trabalho como uma mediação de primeira

ordem. Isto para explicitar como o trabalho

aparece no processo do surgimento do ser

social ou de fazer-se humano.

Desde que o ser humano tomou consciên-

cia de si enquanto, ao mesmo tempo, ser da

natureza, mas não redutível a ela, durante

séculos sustentou a produção de sua vida

material colhendo da natureza o que ela

lhe oferecia. Mas, exatamente por sua ca-

pacidade de idear e criar foi desenvolvendo

instrumentos e técnicas que lhe facultaram

e facultam modificar a natureza e cultivar

alimentos, domesticar e criar animais etc.

Este processo foi permitindo a produção de

uma quantidade de produtos excedentes,

fundamentais para o sustento em épocas

de pragas, epidemias e mesmo guerras. Este

é o sentido econômico da própria parábo-

la bíblica das sete vacas gordas e sete vacas

magras ou o conto popular da formiga e da

cigarra.

É a partir da existência do excedente que,

como mostram Netto e Braz (2006), se ins-

taura a luta por sua apropriação e a domi-

nação de uns seres humanos sobre outros

e, portanto, a constituição de classes sociais

antagônicas47 que definem, por sua vez, os

diferentes modos sociais de produção48. É

neste processo que o trabalho, mediação de

primeira ordem, passa a se constituir numa

mediação de segunda ordem. Ou seja, as for-

mas históricas de trabalho escravo, servil,

emprego ou venda da força física, psíquica,

intelectual de trabalho.

Caracterizar os diferentes modos de produ-

ção não é o propósito deste texto. Os textos

indicados nas notas de rodapé são referên-

cias importantes para este propósito. O que

nos interessa aqui é distinguir, primeiro, a

forma de exploração do trabalho sob o modo

de produção escravocrata e capitalista e ex-

por a gênese da crise do trabalho e emprego

e seu caráter não natural.

47 As classes sociais, como as analisa Marx, e a tradição que se filia às suas análises, são entendidas como um produto histórico que se define por relações de poder e de força desiguais e por interesses antagônicos. Assim, o poder e o interesse do senhor de escravos não é o mesmo que o dos escravos ou, atualmente, os trabalhadores que vendem sua força de trabalho aos capitalistas detentores de propriedade privada dos meios e instrumentos de produção não têm o mesmo poder e interesses destes. Isto nada tem a ver com a noção econômica e sociológica dominante, que mascara essas relações de força e de poder na ideia de um contínuo: classe alta, média e baixa.

48 O conceito de modo de produção é central para entender aquilo que Marx denomina a pré-história da humanidade, pelo fato de as classes sociais cindirem o humano. Cada modo de produção se explicita pela forma mediante a qual se efetiva a produção e a distribuição dos produtos do trabalho, pelas ideias, teorias, ideologias, valores e símbolos que os legitimam e por instituições que os mantêm e reproduzem. O leitor que queira aprofundar este tema ver Marx (1986 ) e Netto e Braz (2006).

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A escravidão caracteriza-se por um longo

período da história da humanidade em que

seres humanos eram comprados e vendidos

como animais. Não só eram assim tratados

como também eram concebidos como ani-

mais que falavam. O escravo era considerado

um meio de produção e, como tal, também

uma mercadoria a ser comprada e vendida.

O escravo, portanto, não era considerado

cidadão e, por isso, era desprovido de qual-

quer direito. Seu dono tinha sobre ele poder

absoluto. Matar um

boi, um cavalo ou

um escravo tinha o

mesmo significado.

O escravo se cons-

titui, assim, num

bem de troca e em

negócio rentável49.

No Brasil, a escravi-

dão durou por quase

quatro séculos, sen-

do uma das últimas

sociedades a abolir

a escravidão. O estigma escravocrata está

muito impregnado, ainda hoje, na cultura,

nas relações de trabalho e nas relações so-

ciais. Isso se reflete no desprezo pelo traba-

lho manual e técnico e pela baixa remunera-

ção ao trabalho produtivo. O debate sobre o

valor do salário mínimo que acontece a cada

ano é um indicador desse desprezo e da bai-

xa remuneração.

O modo de produção capitalista, sob cujas

relações a humanidade está submetida até

hoje, desenvolve-se dentro da dissolução do

feudalismo e dentro de um processo histó-

rico que vai do século XII até o século XVII,

quando se torna dominante. Representa,

como muitos pensadores afirmam, a come-

çar por Karl Marx, um avanço civilizatório.

A classe burguesa,

que foi se consti-

tuindo como classe

detentora de pro-

priedade privada,

como forma de ge-

rar mais proprieda-

de e riqueza median-

te a exploração do

trabalho alheio, ne-

cessitava combater,

ao mesmo tempo, o

poder feudal centra-

do no Estado absolu-

tista e, como parte dominante desse poder,

a Igreja, que se proclamava contra o lucro.

E, finalmente, contra a escravidão, pois com

ela seria impossível sustentar a ideologia da

liberdade e igualdade e o mercado de com-

pra e venda de força de trabalho.

O modo de produção capitalista define-se pela

49 Uma análise que aprofunda esta discussão é feita por Losurdo (2005).

O estigma escravocrata

está muito impregnado,

ainda hoje, na cultura, nas

relações de trabalho e nas

relações sociais. Isso se

reflete no desprezo pelo

trabalho manual e técnico e

pela baixa remuneração ao

trabalho produtivo.

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constituição de duas classes fundamentais50 –

a detentora privada dos meios e instrumentos

de produção (terras, máquinas, empresas e,

cada vez mais, a ciência e tecnologia) e a classe

trabalhadora que vende sua força de trabalho

para receber em troca os meios de sua repro-

dução e de seus filhos, mediante diferentes

formas de remuneração (salário, bens de con-

sumo etc.). A forma dominante, até o presente,

hoje em crise estrutural profunda, é mediante

o emprego, tendo como pagamento um salá-

rio em forma monetária.

Diferente das sociedades escravocratas, on-

de a exploração é explícita, no modo de pro-

dução capitalista a mesma é ocultada no

processo de produção sob o manto da igual-

dade e da liberdade formais e materializada

mediante o contrato de trabalho. A supo-

sição é de que os donos dos meios de pro-

dução (capitalistas) e os trabalhadores, que

têm como única propriedade a sua força de

trabalho para vender, entram no mercado

em iguais condições e de forma livre.

O primeiro ocultamento é a desigualdade real

de poder entre quem compra a força de tra-

balho e quem a vende e o processo histórico

da constituição dessas classes. A partir desse

ocultamento, também se esconde o fato de

que a exploração se dá no processo de produ-

ção, mediante parte do tempo do trabalhador

que não é pago, produzindo aquilo que se de-

nomina de mais-valia. Isto se materializa no

fato de que, uma vez feito o contrato, o tem-

po vendido não pertence ao trabalhador, mas

a quem o contratou. Quem vai administrar

esse tempo é agora seu proprietário – o em-

pregador. Este busca que ele produza um va-

lor maior do que aquilo que lhe é pago como

salário. Esta exploração legalizada pelo con-

trato de trabalho é que explica o fundamento

de todo o acúmulo de capital e de riqueza51.

Assim, o modo de produção capitalista se

afirma mediante a consolidação da proprie-

dade privada, e sua legitimação mediante a

ideologia ou teoria liberal da igualdade e da

liberdade e se reproduz mediante o Estado li-

beral e pelos aparelhos de hegemonia, entre

eles, sobretudo, a escola e os processos de

conhecimento, valores e atitudes que nela se

desenvolvem52.

50 Ao afirmar-se a existência de duas classes fundamentais, está implícita a existência de outras classes ou grupos sociais, mas que não definem o caráter estrutural desta sociedade.

51 Uma explicação clara deste processo o leitor pode ter no livro de Netto e Braz, já citado. Ver, também. a síntese feita por um grupo de pesquisadores da Universidade de Brighton (Inglaterra): Brighton Labor Process Grup, do capítulo de O Capital, de Karl Marx, que trata do processo de trabalho capitalista (In: SILVA, T. T., 1992).

52 A escola, entretanto, como veremos a seguir, também é disputada pela classe trabalhadora e seus intelectuais. Trata-se de, como fez a própria burguesia em relação à sociedade feudal, ir construindo de dentro do capitalismo os conhecimentos, os valores que interessam à classe trabalhadora como mediação de abolição do capitalismo e a construção de uma sociedade sem classes sociais e sem, portanto, a exploração de uns sobre os outros.

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Uma das contradições mais profundas do

capitalismo, que se agrava ao longo do tem-

po, resulta do fato de que o conhecimento

produzido pela humanidade e que se traduz

em mudanças tecnológicas e novas técnicas

de produção é, dominantemente, proprie-

dade privada que se volta contra os traba-

lhadores, mediante a super exploração e o

desemprego em massa. Das atividades da

indústria à produção dos serviços, ao tra-

balho no campo, máquinas cada vez mais

autônomas ocupam o lugar de milhares de

trabalhadores. Dos países onde foi o berço

do capitalismo a todos os cantos do mundo,

o desemprego é, sem dúvida, um problema

político e humano dos mais cruciais hoje.

Vários autores explicitam o sentido da crise

da sociedade salarial ou do emprego (CAS-

TELS, 1977) e o seu sentido social e humano.

Alguns títulos que fazem análises profundas

deste tempo sinalizam a gravidade desta cri-

se e os efeitos sobre a vida dos trabalhadores

e de suas famílias: O desafio e o fardo do tem-

po histórico (MÉSZÁROS, 2007); A corrosão do

caráter. Consequências pessoais do trabalho

no novo capitalismo (SENNETT, 1999); O hor-

ror econômico (FORRESTER, 1996); A desmedi-

da do capital (LINHART, 2007); A banalização

da injustiça social (DEJOURS, 2000) e O lucro

ou as pessoas. Neoliberalismo e a ordem glo-

bal (CHOMSKY, 2010). A epígrafe da música

de Gonzaguinha - Um Homem Também Cho-

ra (guerreiro Menino), que abre este pequeno

texto, talvez por meio da poesia expresse o

sentido mais radical dos efeitos da perda do

emprego numa sociedade capitalista.

Chegamos ao século XXI com uma realidade

em que a ciência e a tecnologia poderiam

liberar tempo livre, modo de fruição, criação

e liberdade humana e, ao contrário, se pro-

duz o desemprego, o trabalho precário e a

super exploração. Também se revogam um a

um os direitos conquistados com lutas e re-

voluções pela classe trabalhadora. Milhares

de trabalhadores e, especialmente, os jovens

não podem programar o futuro e vivem uma

situação psicossocial de provisoriedade e de

vida em suspenso. Neste contexto, como

pensar uma relação trabalho e educação

básica que não legitime esta realidade, mas

que permita questioná-la na raiz e assinalar

caminhos de superação?

A RElAçãO TRABAlhO E

EDucAçãO BáSicA E A

PERSPEcTivA DA FORMAçãO

huMAnA POliTécnicA

Situados os dois aspectos acima abordados

– do trabalho, na sua dimensão de criação

da realidade humana, e do emprego, forma

específica de compra da força de trabalho e

exploração do trabalhador – pode-se perce-

ber dois aspectos que se reforçam: na me-

dida em que o sistema capitalista agudiza

o desemprego estrutural,vai se afirmando,

sob formas cada vez mais ideológicas, a

relação entre emprego, desemprego e edu-

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cação básica, ao mesmo tempo em que se

nega, especialmente à classe trabalhadora,

uma educação básica que permita entender

como funciona a sociedade e os fundamen-

tos das ciências da natureza. Trata-se, pois,

de uma relação que vai ocultando o víncu-

lo inseparável do trabalho como criador da

vida e a educação como forma de qualificar,

cuidar e preservar as suas bases materiais e

culturais.

Com efeito, a noção de educação como ca-

pital humano surge como estratégia de ex-

plicação do fracasso do sistema capitalista,

explicitado pela crescente e ameaçadora

desigualdade entre nações e grupos sociais.

Mediante essa noção ideológica, a educação

básica de direito social e subjetivo passa a

ser concebida como um serviço a ser adqui-

rido no mercado. Nivela-se de forma fetichi-

zada o capital, como uma relação de força e

de classe, com um conjunto de conhecimen-

tos e de valores e atitudes desenvolvidos na

escola e supostamente funcionais no mun-

do da produção e, portanto, uma moeda de

troca, um capital do trabalhador.

A formulação da noção de capital humano

na década de 1950 situa-se, mesmo que de

forma ingênua, sob a ideologia do economi-

cismo, num contexto onde os intelectuais

do sistema capitalista apostavam na pers-

pectiva integradora da educação escolar. Na

medida em que se sedimente a convicção de

que não há lugar para todos no emprego for-

mal e se produz o ideário neoliberal, novas

noções, mais sutis e dissimuladoras, apare-

cem: sociedade do conhecimento, qualidade

total, pedagogia das competências, empre-

gabilidade, empreendedorismo e capital so-

cial.

Por meio dessas noções, passa-se ideia de

que os países, regiões e grupos sociais po-

bres assim o são porque investem pouco

em educação. Mas como investir mais em

educação se são países, regiões e grupos

sociais pobres? Por certo, é historicamente

mais sustentável afirmar que esta condição

os impede de investir em educação. Neste

contexto, irônica e cinicamente, aqueles

que são vítimas da exploração, espoliação e

alienação passam a serem culpados por se-

rem explorados53.

Nota-se, então, que as novas noções de so-

ciedade do conhecimento, qualidade total,

competência, empregabilidade, empreen-

dedorismo, capital social têm uma função

ideológica e, ao mesmo tempo, pragmática,

53 Sobre este tema tenho me ocupado ao longo das últimas décadas. Duas obras se complementam no balanço crítico desta questão: A produtividade da escola improdutiva (FRIGOTTO, 2010, 10ª ed.) e Educação a crise do capitalismo real (FRIGOTTO, 2010, 6ª ed.).

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ao tempo histórico de desmedida do capital,

corrosão do caráter, fardo do tempo histó-

rico, horror econômico e a banalização da

injustiça social, temas acima referidos.

Para esse tempo histórico do capitalismo,

o primeiro aspecto que se busca negar é a

relação da educação com o trabalho na sua

dimensão de criador da vida humana (onto-

criativo), como direito e dever universais e

como princípio educativo. E no contexto de

regressão das relações sociais capitalistas,

mediante a exacerbação da exploração e a

anulação de direitos historicamente cons-

truídos, a educação básica pública passa a

ser concebida e gerida no conteúdo, no mé-

todo e na forma pelos critérios de mercado.

Do ponto de vista do mercado, a educação

básica terá um papel diferenciado para os

que podem ser integrados no emprego e os

que não o serão ou serão por um determi-

nado tempo e depois descartados. Como

interessa ao mercado um trabalhador flexí-

vel, no sentido de sua funcionalidade e no

sentido de desprovido de direitos que difi-

cultem seu uso ou dispensa, aqueles que se

integrarem ao mercado necessitam ser edu-

cados não para a estabilidade, mas sim para

o provisório.

Por isso, em lugar de qualificação e em-

prego, ligados a um tempo histórico que

garantia um conjunto de direitos, trata-se

de desenvolver o fluxo de competências de-

mandadas pelo sistema produtivo, condição

para assegurar um tempo de empregabili-

dade. Ela aparece de forma invertida como

sendo a segurança do trabalhador, quando,

na verdade, significa o provisório, o instável,

a insegurança, fundamentais à quebra de

solidariedade entre os trabalhadores54. Por

outra parte, para manter-se empregável exi-

ge-se uma educação de qualidade total para

o mercado. Isto significa que o trabalhador

faça bem feito o que se lhe pede, no menor

tempo e ao menor custo.

Para os não integráveis ou que foram inte-

grados e depois expulsos do emprego, a edu-

cação escolar vai buscar convencê-los a se-

rem empreendedores ou vincular-se a redes

de solidariedade no seu meio/espaço, onde

podem desenvolver seu capital social.

Os socialistas estão aqui para lembrar

54 No trecho que se segue aparece essa mistificação ideológica de inversão da realidade de forma exemplar e que tenta ser inculcada como senso comum:

A empregabilidade é um conceito mais rico do que a simples busca ou mesmo a certeza de emprego. Ela é o conjunto de competências que você comprovadamente possui ou pode desenvolver - dentro ou fora da empresa. É a condição de se sentir vivo, capaz, produtivo. Ela diz respeito a você como indivíduo e não mais a situação, boa ou ruim da empresa – ou do país. É o oposto ao antigo sonho da relação vitalícia com a empresa. Hoje a única relação vitalícia deve ser com o conteúdo do que você sabe e pode fazer. O melhor que uma empresa pode propor é o seguinte: vamos fazer este trabalho juntos e que ele seja bom para os dois enquanto dure; o rompimento pode-se dar por motivos alheios à nossa vontade. (...) ( empregabilidade) é como a segurança agora se chama (Grifos meus) (MORAIS, 1986).

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ao mundo que em primeiro lugar de-

vem vir as pessoas e não a produção. As

pessoas não podem ser sacrificadas. (…)

Especialmente aquelas que são apenas

pessoas comuns. (...) É delas que trata o

socialismo; são elas que o socialismo de-

fende (HOBSBAWM, 1992, p. 268). E isto

implicará uma investida contra as for-

talezas centrais da economia de merca-

do de consumo. Exigirá não apenas uma

sociedade melhor que a do passado, mas

como sempre sustentaram os socialis-

tas, um tipo diferente de sociedade. (...)

É por esse motivo que (o socialismo) ain-

da está no programa (ibid, p. 270).

Para aqueles que acreditam, como reitera o

historiador Eric Hobsbawm, que as pesso-

as vêm em primeiro lugar e não a produção

e as pessoas não podem ser sacrificadas, a

relação que interessa é a do trabalho como

criador de vida, valor de uso e educação bá-

sica como direito social e subjetivo.

A questão crucial é, pois: como mover-se

nesta direção e que relação estabelecer en-

tre trabalho e educação básica, para que as

pessoas venham em primeiro lugar, quan-

do o curso da história caminha em sentido

oposto nas relações sociais?

Dois aspectos dão elementos para que pos-

samos perceber que isso não só é possível

como cada vez mais imprescindível. Primei-

ro, como aprendemos com Marx, fazemos

a história em circunstâncias não escolhidas

por nós, porém foram os próprios homens

que produziram estas circunstâncias e, por

isso, eles podem alterá-las. Como decorrên-

cia factual pode-se perceber que a revolução

burguesa, que estatuiu o modo de produção

capitalista, resultou das contradições cada

vez mais insanáveis das relações sociais es-

cravocratas e do poder absolutista e o de-

senvolvimento de uma nova forma de orga-

nização da produção, ideias, teorias, valores

e novas instituições, entre elas a fundamen-

tal: a escola.

O ponto central a demarcar é que o capita-

lismo expõe atualmente, ao extremo, sua

crise e contradição fundamental. A crise

pelo absurdo descolamento do capital fictí-

cio, especulativo (capitalismo de cassino) do

produtivo (o que produz bens, mercadorias,

produtos e serviços). Contradição expressa

pela capacidade exponencial de fazer avan-

çar as forças produtivas, mediante avanços

da ciência e de técnica e a crescente inca-

pacidade de socializar esta capacidade em

termos de bem-estar, redução do tempo de

trabalho como resposta às necessidades bá-

sicas. Mais que isso, aumento da desigualda-

de entre regiões, nações e grupos e classes

sociais. Um capitalismo que, como analisa

Istvam Mészáros (2002), já não possui capa-

cidade civilizatória e, agora, para prosseguir,

vai destruindo um a um os direitos conquis-

tados pela classe trabalhadora e destruindo

as bases da vida pela degradação ambiental.

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O acúmulo histórico das lutas da classe

trabalhadora e de seus intelectuais, as re-

voluções derrotadas, como a de outubro de

1917, na perspectiva da dialética do velho e

do novo, não foram um fracasso. Dos seus

escombros e cinzas encontramos o núcleo

central da relação entre trabalho e educação,

conhecimento e cultura. Trata-se da educa-

ção que desenvolve todas as dimensões do

ser humano e, portanto, que cada ser huma-

no tenha, como direito, poder apropriar-se

dos conceitos ou bases da ciência que per-

mitem entender as relações sociais (histó-

ria, filosofia, sociologia, economia, psicolo-

gia etc.) e as ciências da natureza (biologia,

física, química etc.). Na tradição a que nos

referimos acima, trata-se de uma educa-

ção politécnica ou tecnológica. Como bem

observa Saviani (2003), tal perspectiva en-

contra dificuldade porque é antagônica ao

pensamento social, político e educacional

dominantes, mas pelas contradições dessa

mesma sociedade, é possível construir aqui-

lo que serão a educação e as relações sociais

numa sociedade sem classes.

Os embates no plano teórico centram-se

sobre a recuperação do vínculo intrínseco

do trabalho como criador da vida, direito e

dever, princípio educativo com a educação

escolar básica. Mesmo naquelas modali-

dades de educação – profissional, jovens e

adultos e outras – as contingências históri-

cas impõem o aperfeiçoamento profissional

e técnico tardio sobre a ausência do direito

da educação básica. Trata-se de, mesmo nes-

tas circunstâncias, alargar a subjetivação do

trabalho como direito e dever universais, as-

sim como o direito ao tempo livre que pode,

atualmente, ser alargado enormemente. Um

movimento intencional contra-hegemônico

à subjetivação alienadora do adestramento

para o emprego. Uma educação, portanto,

contra o sistema capital. Ou, uma educação

para além do capital (MÉSZÁROS, 2005).

No plano político, no curto prazo, a luta cen-

tral se direciona para a redução radical da jor-

nada de trabalho associada ao direito, não a

uma renda mínima, mas a uma renda básica

que aquela sociedade, pelo trabalho social co-

letivo, permite. Não há razões, senão de violên-

cia social, de um juiz, um general, um senador

ou deputado ganharem até 70 ou 80 vezes mais

que um trabalhador do campo, da construção

civil, um professor ou um médico.

Trata-se, pois, de um vínculo entre trabalho e

educação, ciência, conhecimento, tecnologia

e cultura que, se apropriado pela massa que

constitui a classe trabalhadora, permite que

ela tome o destino da sociedade e perceba a

necessidade do embate fundamental – o fim

da propriedade privada e das classes sociais.

A educação para além do capital visa

uma ordem social qualitativamente di-

ferente. Agora não só é factível lançar-se

pelo caminho que nos conduz a essa or-

dem como é também necessário e urgen-

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te. Pois as incorrigíveis determinações

destrutivas da ordem existente tornam

imperativo contrapor aos inconciliáveis

antagonismos estruturais do sistema

capital uma alternativa concreta e sus-

tentável para a regulação da reprodução

metabólica social, se quisermos garantir

as condições elementares da sobrevi-

vência humana. O papel da educação,

orientado pela única perspectiva efeti-

vamente viável de ir além do capital, é

absolutamente crucial para esse propó-

sito (MÉSZÁROS, 2005, p. 71-72).

No pensamento educacional brasileiro e nas

lutas dos educadores vinculados aos movimen-

tos sociais, sindicatos e partidos que buscam

construir relações sociais que nos conduzam

para além do sistema capital, encontramos os

elementos da educação, da ciência, do conhe-

cimento e da tecnologia a serem desenvolvidos

na escola e nos mais diversos espaços da so-

ciedade. Essa foi a proposta que apresentei e

desenvolvi nas séries de que participei no pro-

grama Salto para o Futuro, que completou 20

anos, e esta temática estará sempre presente

quando a proposta for discutir as relações en-

tre Juventude e Trabalho, em especial nas sé-

ries voltadas para o Ensino Médio.

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