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ESSO
RES:
SALTO
PARA
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TURO
20 ANOS
Edição Especial - 2013 Volume 1Edição Especial - 2013 Volume 2Edição Especial - 2013 Volume 3Edição Especial - 2013 Volume 4
Copyright © 2013 by ACERP/TV Escola
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Núcleo de Produção Gráfica de Mídia Imprensa
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Preparação e revisão:
Magda Frediani Martins
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SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
T911
TV, educação e formação de professores [recurso eletrônico] : Salto para o Futuro : 20
anos / Rosa Helena Mendonça, Magda Frediani Martins (org.). - Rio de Janeiro : ACERP ;
Brasília, DF : TV Escola , 2013.
4 v., recurso digital
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Inclui bibliografia e índice
ISBN 978-85-60972-02-3 (v. 1) - 978-85-60792-03-0 (v. 2) - 978-85-60792-04-7 (v. 3) - 978-85-
60792-05-4 (v. 4) (recurso eletrônico)
1. Educação 2. Educação - Aspectos sociais 3. TV Escola (Programa de televisão) 4. Livros
eletrônicos. I. Mendonça, Rosa Helena II. Martins, Magda Frediani. III. Ministério da Edu-
cação.
13-1708. CDD: 370.981
CDU: 37(81)
15.03.13 20.03.13 043546
3
Presidência da República
Ministério da Educação
Secretaria de Educação Básica
TV, educação e formação deprofessores:
salTo para o fuTuro- 20 anos -
Organização
Rosa Helena Mendonça
Magda Frediani Martins
(Equipe de Educação da TV Escola)
Salto para o Futuro/TV Escola/ SEB-MEC
Rio de Janeiro/ Brasília
2013
Volume 2 ‘eSPAÇoSTemPoS’ NoS CoTIDIANoS CuRRICulAReS
SuMáRiO
Apresentação ............................................................................................................ 5
Rosa Helena Mendonça e Magda Frediani Martins
2.1 Os ‘espaçostempos’ da televisão em nossos cotidianos ...................................... 9
Nilda Alves
2.2 Educação e transdisciplinaridade em uma civilização em mudança ................ 20
Ubiratan D’Ambrosio
2.3 Ensino Médio indígena e o desafio da sustentabilidade dos povos indígenas ... 26
Gersem Baniwa
2.4 Educação ao longo da vida ................................................................................ 40
Ivanilde Apoluceno de Oliveira
2.5 Educação de Jovens e Adultos e formação continuada de professores mediadas
pela tecnologia: mudanças e saltos .........................................................................51
Jane Paiva
2.6 Trabalho, emprego e Educação Básica: distinções e relações ........................... 64
Gaudêncio Frigotto
5
APReSeNTAÇão
Rosa Helena Mendonça1
Magda Frediani Martins2
A publicação TV, educação e formação de pro-
fessores: Salto para o Futuro – 20 anos come-
mora a trajetória do programa, ao longo de
duas décadas, destacando temas fundamen-
tais para o debate sobre TV, educação e for-
mação de professores. Esta publicação, na
sua versão digital, está organizada em qua-
tro volumes, expressos nos seguintes eixos:
Volume 1 - LINGUAGENS E SENTIDOS; Volu-
me 2 - ‘ESPAÇOSTEMPOS’ NOS COTIDIANOS
CURRICULARES; Volume 3: TECENDO NAR-
RATIVAS; Volume 4: NOVOS SABERES PARA A
EDUCAÇÃO.
Abrimos este segundo volume com o artigo
de Nilda Alves, tomando emprestado, para
intitulá-lo, a expressão ‘espaçostempos’ usa-
da pela autora para evidenciar a indissocia-
bilidade dessas duas dimensões nas práticas
de ensinar e aprender dentro e fora das es-
colas. Os textos dessa seção versam, dadas
as especificidades das abordagens, sobre
os currículos e suas múltiplas concepções
e implicações nos cotidianos. ‘Espaçostem-
pos’ nos cotidianos curriculares apresenta,
assim, artigos que problematizam as noções
de tempo e espaço na contemporaneida-
de, atravessada por artefatos tecnológicos
e constituída pela tessitura de redes de co-
nhecimentos e significados.
No primeiro texto deste segundo volume,
Nilda Alves3, tendo como referenciais Mi-
chel de Certeau, Homi Bhabha, Boaventu-
ra de Sousa Santos e outros autores, busca
compreender as relações da televisão – e em
especial do programa o Salto para o Futuro –
com os cotidianos escolares e seus pratican-
tes, destacando que “essas relações se dão
em meio à tessitura que fazemos com/nas
inúmeras redes educativas e em ‘conversas’
variadas que temos com seus tantos outros
1 Supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC). Doutoranda no PROPED- UERJ. Organizadora da publicação.
2 Professora, escritora e revisora de textos do programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC). Organizadora e revisora da publicação.
3 Nilda Alves foi consultora da série Cotidianos, imagens e narrativas, com veiculação no programa Salto para o Futuro/TV Escola no ano de 2009, e participou como especialista convidada de outras séries do Salto.
6
praticantes”. A autora observa que “os coti-
dianos escolares – sempre no plural, porque
são tantos e tão diversos – só podem ser en-
tendidos se aceitamos trabalhar com a sua
complexidade e com os muitos limites – e
também estímulos – que esta nos coloca”.
Seu instigante texto também discute “a rela-
ção entre cotidianos-mídias com a reprodu-
ção/transmissão/criação de valores no ‘uso’
da televisão”, ressaltando que é preciso dar
atenção a esse uso, buscando compreendê-
lo e às lógicas que o sustentam, tendo em
vista perceber/entender as múltiplas redes
educativas, com seus diferentes processos
de conhecer e com os diferentes conheci-
mentos nelas criados.
Ubiratan D’Ambrosio4 discute em seu texto as
grandes transformações que acontecem na
sociedade e, em particular, na educação, ana-
lisando que essas transformações são resulta-
do da mundialização e dão origem à globali-
zação e ao multiculturalismo. O autor critica
a ciência moderna, que assume uma postura
de arrogância ao propor “teorias finais”, isto
é, explicações que se pretendem definitivas so-
bre a origem e a evolução das coisas naturais,
e ressalta a necessidade de se adotar o enfoque
transdisciplinar, que se apoia na recuperação
das várias dimensões do ser humano para a
compreensão do mundo na sua integralidade.
Comenta, ainda, que a proposta transdiscipli-
nar é pautada pela busca incessante e também
pelo respeito, pela solidariedade e pela coope-
ração e que vai além das limitações impostas
pelos métodos e objetos de estudos das disci-
plinas e das interdisciplinas.
Gersem Baniwa5 aborda os desafios que o En-
sino Médio voltado para os povos indígenas
enfrenta quanto à necessidade de contribuir
para a sustentabilidade de vida desses povos
em seus territórios, tendo como referência os
debates que ocorreram na série do Salto para
o Futuro/TV Escola da qual foi consultor. O
autor destaca que o Salto para o Futuro foi
pioneiro na iniciativa de pôr em debate este
tema tão relevante para os povos indígenas,
tendo em vista que as escolas indígenas que
atuam com o Ensino Médio, pautadas na
ideia de sustentabilidade, têm relação direta
com as condições de vida, no presente e no
futuro, desses povos. Gersem Baniwa afirma,
ainda, que o maior desafio dos 225 povos in-
dígenas que vivem no Brasil é “garantir sua
autonomia por meio de projetos específicos
de etnodesenvolvimento em seus territórios,
que sejam capazes de articular as experiên-
cias e os conhecimentos tradicionais às no-
vas técnicas e tecnologias da modernidade”.
4 Ubiratan D’Ambrosio foi consultor da série Debate: complexidade e seus reflexos na educação, com veiculação no programa Salto para o Futuro/TV Escola no ano de 2002, e participou como especialista convidado de outras séries do Salto.
5 Gersem Baniwa foi consultor da série Ensino Médio e sustentabilidade em terras indígenas, com veiculação no programa Salto para o Futuro/TV Escola no ano de 2007.
7
ivanilde Apoluceno de Oliveira6 apresenta
reflexões sobre sua participação como con-
sultora na série Educação ao longo da vida,
no programa Salto para o Futuro/TV Escola.
O objetivo da série era divulgar e discutir a
VI Conferência Internacional de Educação de
Jovens e Adultos (CONFINTEA), promovida
pela UNESCO, realizada na cidade de Belém,
no Pará. Tomando como referência autores
como Paulo Freire, além de outros educado-
res, a autora destaca que a educação é um
aprendizado que acontece ao longo da vida,
uma vez que “se processa nas relações de
homens e mulheres com o mundo, de forma
permanente, bem como (...) tem como fim a
própria formação do ser humano”. A autora
também defende as propostas pedagógicas
das práticas educacionais não escolares “que
vêm demarcando a diferença em relação às
práticas escolares com jovens, adultos e ido-
sos, por apresentarem, de modo geral, víncu-
lo com a educação popular, cuja luta é pela
democratização do ensino e por melhores
condições de vida das classes populares”.
Jane Paiva7 se reporta às suas participações
no Salto para o Futuro/TV Escola desde 1995,
como consultora de séries temáticas sobre
Educação de Jovens e Adultos – EJA. Destaca
que o Salto para o Futuro, por ser um progra-
ma de rede de televisão educativa pública,
teve um papel significativo na discussão de
temas tão relevantes para nossa sociedade,
como a formação continuada de professores,
mediada pela tecnologia, e a educação de jo-
vens e adultos. A autora comenta também
que apesar de o Salto ter a televisão como “o
grande veículo/ferramenta que configurou
o ambiente de aprendizagem do programa,
diversos outros recursos contribuíram para
sua função formadora: impressos, telefone,
fax, e, mais recentemente a Internet, além
de ter experienciado formatos, recursos, di-
nâmicas, âncoras, especialistas, cenários,
em busca de maior interatividade/aproxima-
ção com seu público”. Ressalta, ainda, que o
Salto para o Futuro tem seu lugar na história
da educação no país e que “nesses 20 anos
de Salto, sem dúvida, a EJA tem muito a co-
memorar, pelo modo como esteve presente
na programação, pelo compromisso de ges-
tores, de supervisores pedagógicos, de equi-
pes, que alimentaram a possibilidade de dar
corpo e produzir sentidos à temática”.
Gaudêncio Frigotto8 traz um enfoque his-
6 Ivanilde Apoluceno de Oliveira foi consultora na série Educação ao longo da vida, com veiculação no programa Salto para o Futuro/TV Escola no ano de 2009.
7 Além das diversas séries em que atuou como consultora, entre elas EJA: continuar e aprender por toda a vida, com veiculação no programa Salto para o Futuro/TV Escola no ano de 2004, Jane Paiva também participou como especialista convidada de inúmeras séries que abordaram esta temática.
8 Gaudêncio Frigotto participou como autor de textos e debatedor de várias séries que trataram da temática juventude e trabalho no programa Salto para o Futuro, tendo mediado o debate, em 1998, da série Projeto Político Pedagógico da Escola Cidadã, que contou com a consultoria de Moacir Gadotti e outros (Instituto Paulo Freire).
8
tórico-econômico-social sobre o tema tra-
balho, emprego e educação e seus reflexos
nos currículos escolares, ressaltando que “o
trabalho se constitui em direito universal,
isto é, de cada ser humano e em qualquer
tempo, pelo simples fato de que é através
dele que se tem a possibilidade de produ-
ção e reprodução da vida”. O autor também
discute questões emergentes da contempo-
raneidade, como a desigualdade social e o
desemprego, entre outras. No cenário atu-
al da nossa sociedade, diante das crises do
sistema capitalista, o autor indaga: “Chega-
mos ao século XXI com uma realidade em
que a ciência e a tecnologia poderiam libe-
rar tempo livre, modo de fruição, criação e
liberdade humana e, ao contrário, se produz
o desemprego, o trabalho precário e a su-
per exploração. (...) Milhares de trabalhado-
res e, especialmente, os jovens não podem
programar o futuro e vivem uma situação
psicossocial de provisoriedade e de vida em
suspenso”. Neste contexto, o autor propõe
que se pense uma relação entre o trabalho
e a educação básica que permita questionar
essa realidade, apontando novos caminhos.
As organizadoras
9
2.1oS ‘eSPAÇoSTemPoS’ DA TeleVISão em NoSSoS CoTIDIANoS
Nilda Alves9
Entre a ideia/ e a realidade/
entre o movimento/ e o ato.
(Eliot, in Manguel, 2001)10
A POSSiBiliDADE DE AlGuMAS
inTRODuçõES
Há alguns anos tive um orientando11 que, em
seu mestrado, desenvolveu uma dissertação
com nove introduções. Sem chegar ao seu
exagero, vou precisar copiá-lo, pois neste
mundo fragmentado, falar de minhas rela-
ções com o Salto para o Futuro está exigindo
assim agir. Minha primeira introdução per-
mite que eu traga ao texto uma fotografia
com a qual venho há muito trabalhando:
Nessa fotografia12, encontrada no rico acervo
do Musée Nacional de l’Éducation, localizado
em Rouen, na França, podemos ver uma das
primeiras imagens feitas com televisão na
escola, no final da década de 50, do século
XX. Nela, uma turma de curiosos estudantes
olha para esse artefato cultural, enquanto a
posição dos dois adultos nos surpreende: um
técnico que “sabe” apresenta a televisão à
turma, estando perfeitamente à vontade na
situação, o que pode ser “sentido” pelo modo
como coloca seu corpo – o braço apoiado
sobre a mesa da professora, dando as costas
para ela. Essa, ao contrário, demonstra seu
pouco à vontade com sua posição encolhida,
as mãos unidas, só com o rosto ligeiramente
virado para a televisão. Com essa fotografia,
creio, podemos ver a representação perfeita
do modo absolutamente desrespeitoso com
9 Professora titular da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), onde coordena o Laboratório Educação e Imagem (www.lab-eduimagem.pro.br) e é líder do GRPESQ “Currículos, redes educativas e imagens”, no ProPEd (www.proped.br).
10 Cf. T. S. Eliot. The Hollow Men, in The Complet Poems of T. S. Eliot. Londres: Faber& Faber, 1962.
11 Este orientando é o Prof. Dr. Paulo Sgarbi, meu colega no Programa de Pós-graduação em Educação da UERJ.
12 Não encontrei referência ao autor da foto – devia ser um servidor público do sistema francês de educação à época que, simplesmente, fazia seu trabalho e por isso não teve sua autoria registrada. A imagem foi cedida pela direção do museu para uso pela autora do texto.
10
que a televisão e, em seguida, outros artefa-
tos tecnológicos foram sendo introduzidos
na escola, sem consideração pelos proces-
sos curriculares que aí se desenvolviam, sem
quase nenhum diálogo com aquilo que as
professoras13 faziam na escola e pelo que sa-
biam sobre esses processos.
Minha percepção do que conheço da história
do Salto mostra uma posição bem diferente:
as professoras, mesmo com as dificuldades
de comunicação que havia nos seus come-
ços, eram/são ouvidas. Seria interessante
bus car compreender porque isto se deu. Mi-
nha hipótese está na ideia de que as pedago-
gas que atuavam/atuam desde os primeiros
tempos tinham sido professoras e sabiam
desse desrespeito, não querendo repeti-lo.
Minha segunda introdução é para falar so-
bre as minhas relações com o Salto. Ela está
contida, de maneira poética, na epígrafe que
escolhi para este texto e pode ser explicita-
da de outra maneira: estive/estou/estarei no
que Bhabha (2000) chama de entre lugares,
já que pesquisadora na universidade, de-
senvolvendo trabalhos sobre este “meio”,
fazendo sua crítica, portanto, sou uma assí-
dua frequentadora dos programas do Salto,
chamada que sou, por suas equipes, para
participar de inúmeras séries, há muito tem-
po. Para essas séries, com a minha partici-
pação, pude levar ao programa a ideia14 de
que os cotidianos são espaçostempos15 tanto
das redes microbianas de poder, de Foucault
(1999; 1991), como são espaçostempos de tá-
ticas dos praticantes (CERTEAU, 1994), que
têm como única forma de ser o próprio fa-
zer desses em seus tantos cotidianos.
Uma terceira introdução é necessária para
esclarecer que, pesquisando os múltiplos
cotidianos, nos quais todos os praticantes
aprendemensinam, ao mesmo tempo, per-
cebo que todos criam conhecimentos e sig-
nificações de que fazem ‘uso’ em sua vida,
em múltiplas redes educativas. Essa ideia
permite compreender que os cotidianos es-
colares e os currículos que neles são pratica-
dos correspondem a um dos espaçostempos
educativos dentro dos quais todos nos for-
mamos. Sendo assim, nossos conhecimen-
tos e significações são trançados em nossas
tantas redes cotidianas, ou seja, nas escolas
13 Nesse texto, como em muitos outros, prefiro usar esse feminino que define melhor a maioria dos praticantes docentes.
14 Lefebvre (1983) nos indica, entre as páginas 233 e 236, as múltiplas determinações da ideia. Para esse artigo, retenho que como termo de conhecimento, recapitulando todo o movimento do conhecimento e, portanto, retornando ao imediato, a ‘ideia’ é unidade da ‘mediação’ (da abstração, do pensamento) e do ‘imediatamente’ dado (da natureza).
15 Nas pesquisas nos/dos/com os cotidianos, percebemos que as dicotomias necessárias ao desenvolvimento do pensamento moderno – com as ciências presentes nisso – têm representado limites para a compreensão dos conhecimentos e significações cotidianamente criados. Para mostrar isto, temos preferido marcar com esse modo de escrita nossas tentativas de superação dos modos modernos de pensar. Muitos outros termos aparecerão assim grafados nesse texto.
11
que frequentamos, mas também nas mídias
que ‘usamos’, nas relações que estabelece-
mos com os locais em que vivemos e com
os governos que aí se estabelecem e, ainda,
com os movimentos sociais dos quais par-
ticipamos. É por isso que as relações entre
essas múltiplas redes educativas16 precisam
ser compreendidas, exigindo pesquisas so-
bre elas e suas complexas relações.
DuAS hiSTóRiAS SOBRE
TElEviSãO
Para falar das relações de pesquisa que tenho
com esse artefato tecnológico – a televisão
– começo por contar, indicando que a narra-
tiva é a própria forma de ‘lembrar’, de ‘bus-
car a memória’ nos/dos/com os cotidianos,
duas histórias que têm a ver com televisão,
porque é com ela que venho – com muitos
outros, para meu grande prazer – buscando
instalar alguns processos: 1) compreender a
questão das identidades e dos valores, ven-
do-os como conhecimentos especiais que
nos levam à ação e nos identificam (e que,
com o sinal negativo, os chamamos ‘precon-
ceitos’); 2) tecer práticasteoriaspráticas na
questão dos currículos praticados17, também
muito diversos e que são aqueles desenvol-
vidos nos cotidianos escolares.
A primeira história se passa em um dia no
qual nenhum de nós pôde deixar de olhar
televisão, o terrível 11 de setembro de 2001:
[…] a cena que víamos era fixada pelo
que chamamos ‘um cinegrafista ama-
dor’ já que a filmagem mostrada era
pouco ‘profissional’. Como algumas de-
zenas, muito próximo das ‘torres gême-
as’, ainda sem entender muito bem o que
acontecia, ele tentava filmar o incêndio
da primeira torre atingida. Filmava de
baixo, é claro, e sem que percebesse, ti-
nha no canto da direita, em baixo, um
homem que olhava para algo que estava
mais abaixo dele e que não aparece no
que nosso ‘cinegrafista amador’ decidira
filmar: as torres estavam ao fundo e aci-
ma da cena e são o ‘centro do espetáculo’
(“quanto poderia ganhar vendendo esta
imagem, se conseguisse algo de bom?” ,
devia estar pensando). Neste momento,
entra ‘no ar’, no que está sendo gravado
por ele, o segundo avião naquela mano-
bra que não é muito bem vista do ângulo
de onde estamos vendo o que se passa,
acompanhando a filmagem de ‘nosso’
cinegrafista. O avião bate e penetra na
segunda torre! O homem que olhava
para baixo, quando o que imaginamos
16 A noção mesmo de redes educativas precisa ser desenvolvida e compreendida. Lembro que Lefebvre (1983) nos indica que o recurso à noção aparece quando, em ciência, não temos ainda um conceito fechado sobre uma questão. Desta maneira, o recurso à noção vai aparecer quando um determinado pensamento ainda está em curso. A mim parece muito útil, nestes momentos de tantas dúvidas epistemológicas.
17 Essa denominação foi criada por Inês Barbosa de Oliveira (OLIVEIRA, 2005).
12
ter sido um estrondo ensurdecedor vem
de sua esquerda, dá um salto para trás
fugindo de algo que continuamos não
vendo, e, só depois, olha para cima, de
onde viera o som e onde a cena se passa-
va na ‘realidade’ e sai correndo na dire-
ção da câmera e daquele que a usava e
some de cena. Descobrimos, então, sem
ter visto, que esse homem olhava um
aparelho de televisão, no qual deveria
estar sendo projetada a curva ‘espetacu-
lar’ do segundo avião - filmada por uma
cadeia regular de televisão do alto de um
prédio - e o choque com a torre que to-
dos presenciamos ‘ao vivo e a cores’ e se
afasta desta cena e do aparelho quando
dá o pulo para trás. Só quando lhe che-
ga o som é que ele se dá conta de que
está muito próximo do acontecido, olha
muito rapidamente e sai correndo para
longe do perigo que pressente e sente.
A segunda história me foi contada por uma
amiga e aconteceu com ela e sua filha que,
então, tinha dez anos:
Ana e sua mãe assistiam um desses fil-
mes bem cheio de facas e sangue. Em
um primeiro momento, quando aparece
a primeira morte, Ana pergunta: ‘mãe,
esta faca é de verdade?’ Sem nenhuma
paciência, a mãe responde: ‘você sabe
que é de mentira!’ O filme continua,
em uma sequência horrível de mortes
e Ana pergunta: ‘mãe este sangue é de
verdade?’ A mãe com menos paciência
responde: ‘você sabe que é de mentira!’
E as tais cenas de faca e sangue se repe-
tem e Ana pergunta, de novo, se aquilo
é de verdade, a mãe responde do mes-
mo jeito e Ana faz a pergunta crucial
que tudo muda: ‘como é que pode não
ser verdade, se algumas vezes é de ver-
dade?’ A mãe entende, então, que depois
de tantas guerras ‘de verdade’ vistas na
televisão, sua filha de dez anos já não
sabe distinguir, talvez, quando se morre
e se mata ‘de verdade’ ou ‘de mentira’.
Uma longa discussão se seguiu entre as
duas sobre tudo isto, mas a mãe saiu da
conversa sem nenhuma certeza de se po-
deria ‘lutar’ contra as tantas verdades/
meias verdades/mentiras que sua filha
vê e talvez não possa distinguir agora.
Saberá distinguir depois?18
Essas histórias – que formam, talvez, uma
quarta introdução – entram aqui para po-
dermos indicar as questões que, de acordo
com o que entendemos, devem ser coloca-
das dentro da relação televisão-cotidianos.
Uma dessas questões precisa ser: ‘e a escola
com tudo isto?’. A outra talvez pudesse ser:
‘o que significa essa relação em um mundo
18 Para tranquilizar os eventuais leitores, informo que Ana está hoje com dezoito anos e sabe bem distinguir essas coisas.
13
no qual seus praticantes, entre o que a ciên-
cia ensinou a chamar de realidade e o que é
projetado na tela de uma televisão, parecem
preferir ou só têm a possibilidade de ‘ver na
televisão’?’ Por fim, valeria perguntar: ‘é isto
mesmo ou há algo mais?’
ESTuDAR OS cOTiDiAnOS
PARA RElAciOná-lOS cOM A
TElEviSãO E SuAS cRiAçõES
Uma primeira aproximação de resposta a es-
sas questões nos diz que os cotidianos esco-
lares – sempre no plural, porque são tantos
e tão diversos – só podem ser entendidos se
aceitamos trabalhar com a sua complexida-
de e com os tantos limites – e também estí-
mulos – que esta nos coloca.
Certeau (1994) dá pistas para que entenda-
mos essa complexidade, quando explica as
artes de fazer, em seus trabalhos sobre as
maneiras de viver nos cotidianos. Ele afir-
ma que para além de discutir o consumo
daquilo que é produzido/vendido pelos que
dominam o mundo, é preciso compreender
o uso que os seres humanos comuns fazem
dos artefatos culturais – de ideias a eletro-
domésticos – como espaçotempo de criação
de tecnologias, de conhecimentos e signifi-
cações. Certeau indica, assim, que no lugar
das estratégias construídas pelos que ten-
tam organizar o mundo segundo seus inte-
resses, vendo do alto, e tendo o domínio do
espaço, fazendo-o lugar pela apropriação,
viver em nossos múltiplos cotidianos tem,
como única possibilidade, estabelecer tá-
ticas – modos de agir na prática – que são
vitais na ocupação do próprio alheio. Essas
táticas, como não são iluminadas, não fa-
zem barulho e duram pouco, quase não são
percebidas pelas lentes e pelos aparelhos de
ouvir com que as próprias estratégias nos
habituaram. Nossas identidades, diversas e
diferentes, são formadas nessas táticas de
praticantes, nos tantos espaços/tempos pe-
los quais circulamos, que formamos e que
nos formam, nos quais reproduzimos, trans-
mitimos e criamos nossos conhecimentos e
as significações sobre o mundo, a natureza
e os seres humanos. Isso se dá, nas palavras
de Certeau (1994), entendendo a tática como
[…] a ação calculada que é determina-
da pela ausência de um ‘próprio’.(...) A
tática não tem lugar senão o do outro.
(...) Não tem meios para se manter em
si mesma, à distância, numa posição
recuada, de previsão e de convocação
própria: a tática é movimento ‘dentro
do campo de visão do inimigo’, (...), e no
espaço por ele controlado. Ela não tem
portanto a possibilidade de dar a si mes-
ma um projeto global nem de totalizar
o adversário num espaço distinto, visível
e objetivável. Ela opera golpe por golpe,
lance por lance. Aproveita as ‘ocasiões’
e delas depende, sem base para estocar
benefícios, aumentar a propriedade e
prever saídas (p.100).
14
Desta maneira, o reconhecimento e a aceita-
ção desses fatos como parte dos diferentes
cotidianos escolares existentes exigem que
afirmemos a necessidade de se entender, dis-
cutir e negociar com os múltiplos conheci-
mentos tecidos nas e entre as várias redes
educativas que ajudamos a criar e nas quais
nos formamos. Para buscar entender a rela-
ção entre cotidianos-mídias com a reprodu-
ção/ transmissão/criação de valores no ‘uso’
da televisão é preciso dar atenção a esse uso,
buscando compreendê-lo e às lógicas que o
sustentam. Den-
tro dessas redes,
vamos perceben-
do os múltiplos
processos edu-
cativos contra-
ditórios entre si.
Cada discente
e cada docente,
bem como todos
os outros prati-
cantes (CERTEAU,
1994) dos cotidia-
nos escolares (cozinheiras, serventes, guar-
das escolares, pais, mães e responsáveis, líde-
res comunitários, membros de movimentos
sociais etc.), que entram nos espaçostempos
escolares carregam consigo a rede de subje-
tividade (SANTOS, 1995) de que fazem parte.
Ou, dizendo de outra maneira: trazem con-
sigo as múltiplas redes educativas nas quais
vivem, com seus diferentes processos de co-
nhecer e com os diferentes conhecimentos
nelas criados, quer tenhamos ou não olhos
para ver, ouvidos para escutar, boca para sa-
borear, nariz para cheirar, pele para tocar,
ainda, essa complexa situação.
A reprodução/transmissão/criação de valo-
res, esses conhecimentos tão especiais, pe-
los quais nos identificamos e agimos, por
exemplo, vai exigir processos educativos
diferenciados em cada
uma das redes edu-
cativas e precisamos
lembrar, sempre, que
os valores com sinal
negativo são chamados
preconceitos. Como
discuti-los e trabalhá-
los nas escolas é, tal-
vez, o grande desafio,
hoje, aos que lutam
por compreender como
formamos espaçostem-
pos de solidariedade e de ações democrá-
ticas, para a criação de um outro mundo.
Isso significa que não bastam discursos,
por mais bem intencionados e competentes
que sejam, ou por mais bem escritos que te-
nham sido em diretrizes curriculares, para
“dissolver”19 preconceitos. Precisamos, sim,
19 Naturalmente, as aspas demonstram que este termo, embora muito usado, é impróprio para a discussão e as ações que precisamos desenvolver sobre/contra os preconceitos.
O conjunto dos
conhecimentos cotidianos,
criados e trançados uns nos
outros nos tantos contextos
cotidianos em que todos
nós vivemos, forma o
que pode ser chamado de
conhecimento praticado.
15
nos predispor a compreender os tantos pro-
cessos que se dão nas múltiplas redes coti-
dianas de viver.
O conjunto dos conhecimentos cotidianos,
criados e trançados uns nos outros nos tan-
tos contextos cotidianos em que todos nós
vivemos, forma o que pode ser chamado de
conhecimento praticado. No pensamento de
Certeau (1994), o conhecimento praticado,
tecido nos múltiplos, inesperados e nada line-
ares contatos cotidianos, só pode ser criado
pela astúcia, já que não tem um espaço pró-
prio. Mais ainda: Certeau lembra que a vida
cotidiana, com os cotidianos das escolas den-
tro dela, tem uma história muda até agora
para nossos ouvidos surdos aos seus modos
de dizer. Para compreendê-la, como ele tam-
bém indica, será como decifrar um palimp-
sesto20 pois os cotidianos também têm histó-
rias que vão se modificando e se inscrevendo
umas sobre as outras. Isto significa que exis-
tem memórias que podem, com especial difi-
culdade é verdade, serem recuperadas. Neste
sentido, Certeau (1994) recomenda que para
ler e escrever a cultura [comum]21, é mister re-
aprender operações comuns e fazer da análise
uma variante do seu objeto (p. 35). Isto exige
que nos dediquemos a criar e discutir episte-
mologias e metodologias diferentes das do-
minantes para decifrar o ‘pergaminho’, mo-
vimento confirmado, mais atualmente, por
Santos e Menezes (2010).
Se com essas ideias e noções busco compre-
ender os cotidianos das escolas e das salas
de aula nas relações que mantêm com re-
des educativas variadas, penso que só aos
que têm espaços/tempos próprios, em geral
colocados em lugares fora e ‘acima’ das es-
colas, é possível pensar e agir estrategica-
mente. Por isto, somente esses sujeitos de
querer e poder conseguem pensar (e fazer)
que é possível desenvolver projetos e pro-
postas pedagógicas e curriculares gerais, es-
tratégicas, às quais, segundo a visão deles
mesmos, os outros, os praticantes dos coti-
dianos escolares, devem se adaptar.
No entanto, dentro ainda da explicação que
nos dá Certeau, os praticantes dos cotidia-
nos não só consomem os produtos que lhes
são ‘fornecidos’, como fazem uso deles, con-
seguindo estar onde ninguém espera e cap-
tando no voo as possibilidades oferecidas
por um instante. Isto porque, em suma, a
tática é a arte do fraco (p.101). Artes22 que
se colocam para além da racionalidade do-
20 O palimpsesto era o pergaminho que servia para escrever, durante a chamada Idade Média. Como era material raro e caro, o que nele era escrito era apagado e se reescrevia sobre ele, muitas vezes. Naturalmente, como não havia técnicas de apagar bem, as mensagens anteriores continuavam marcando o pergaminho. Com isto é possível ler as inúmeras mensagens que foram sendo escritas umas sobre as outras.
21 A palavra usada pelo tradutor é ordinária, de ordinaire como está no original. Esta palavra, no entanto, em português (do Brasil) tem uma conotação forte e diferente que não corresponde ao que o autor quer dizer.
22 O título que Certeau dá ao seu livro me permite pluralizar o termo.
16
minante, que jogam com as emoções, que
são criadas, permanentemente, combinan-
do possibilidades, fazendo surgir inúmeras
alternativas, em trajetórias que não podem
ser previamente determinadas porque serão
sempre diferentes, diversificadas e cuja be-
leza precisamos aprenderensinar a olhar.
É, assim, dentro dessas possibilidades que
vamos compreendendo as relações da tele-
visão – e do programa Salto para o Futuro
– com os cotidianos escolares e seus prati-
cantes. Essas relações se dão em meio à tes-
situra que fazemos com/nas inúmeras redes
educativas e em ‘conversas’ variadas que
temos com seus tantos outros praticantes.
Nesse sentido, uma das preocupações mui-
to fortes que pode ser percebida quanto ao
campo educacional refere-se à recuperação
dos processos históricos de proposição, cria-
ção e vivência de ações educativas – em cur-
rículos, em didática, em avaliação, a partir
do local e do próximo, dos cotidianos, em
uma palavra, contrapondo-se à tendência
ainda hegemônica que é a da “importação”
de modelos e ideias, porque mais “baratas”,
segundo a justificativa dos funcionários des-
ta tendência, porque mais fácil de vender,
como nos indica Morley (1996). Produzir
um programa nacional – com pedagogos,
jornalistas e técnicos – por tanto tempo,
resistindo a tantas mudanças governamen-
tais e institucionais, é um acontecimento23
(FOUCAULT, 1971) e que, assim, precisa ser
pesquisado para ser compreendido, no que,
nas diversas fases, trouxe de diferente à te-
levisão educativa brasileira – bem como à
televisão, em geral.
Sobre o processo de criar “o novo” e estudar
a história de um programa em seu processo
de manutençãomudança ou de repetiçõesdife-
renças no que foi criado, no tempo, poderí-
amos, talvez, afirmar com Santos (1996) que
nessa recuperação reside o cerne de um proje-
to educativo emancipatório, adequado ao tem-
po presente. Essa tendência tem a ver com a
discussão de como chegamos onde estamos,
analisando os erros cometidos e buscando
as opções abandonadas, o que, segundo al-
guns que vêm se tornando muitos (SANTOS,
1996; PRIGOGINE, 1995; NAJMANOVICH,
1995), é o caminho necessário, hoje, para a
extensão de nossa humanidade. Isso, sabe-
mos todos, não é/não pode ser uma emprei-
tada individual, só pode ser coletiva. Mudar
formas de pensar e de agir, para tecer os no-
23 Para Foucault (1971), acontecimento – é preciso entendê-lo não como uma decisão, um tratado, um reinado ou uma batalha, mas como uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus usuários, uma dominação que se debilita, se distende, se envenena a si mesma, e outra que entra, mascarada. As forças em jogo na história não obedecem nem a um destino, nem a uma mecânica, mas efetivamente ao acaso da luta. Elas não se manifestam como as formas sucessivas de uma intenção primordial; tão pouco assumem o aspecto de um resultado. Aparecem sempre no aleatório singular do acontecimento (FOUCAULT, 1971, p.145-172).
17
vos conhecimentos e significações, criando
um outro mundo possível e necessário, exige
conflitos e confrontos, exige críticas ao pas-
sado, aos múltiplos erros que isolaram par-
celas significativas (a maioria) da humanida-
de, dando-lhes o mínimo dos bens criados e
produzidos, negando-lhes o direito de terem
reconhecidos os conhecimentos produzidos
em suas culturas vividas (WILLIAMS, 1992),
seus valores e os modos como teciam/tecem
suas identidades. Mas significa, também,
reconhecer o que
múltiplas equipes
– como as que
se sucederam no
Salto – criaram
pensando nos dis-
centes e docentes
deste país.
Esses tantos mo-
vimentos que
existem nos mui-
tos e diferentes
contextos cotidianos, envolvendo múltiplos
praticantes, vão permitindo perceber pro-
cessos de transformação desenvolvidos com
ritmos desiguais, mas que estão presentes,
diferentemente, nas diversas redes educati-
vas. Ou seja, as propostas alternativas gesta-
das nos cotidianos não se deram/dão/darão
igualmente em todos os espaçostempos. É
preciso, pois, que nos apliquemos a perce-
ber tanto as diferenças topóticas quanto as
diacrônicas. São nesses múltiplos e diferen-
tes espaçostempos que tecemos as redes
educativas nas quais vivemos e que estão
presentes, como desafios, em nossos coti-
dianos escolares.
Entendo, assim, que precisa ser compreendi-
da a necessidade de programas como o Salto,
que colocam a produção de conhecimentos
e significações dos pra-
ticantes das escolas em
contatos férteis com a
produção dos pratican-
tes das universidades
e dos movimentos so-
ciais e, ainda, que esta
experiência deve ser
multiplicada.
Para isso, é urgente que
compreendamos que,
no presente, estamos,
como sempre estivemos, mas disto tendo,
agora, consciência, no meio: entre o passa-
do e o futuro. Do passado, precisamos iden-
tificar todos os erros cometidos para tentar
não cometê-los mais. Quanto ao futuro, ca-
be-nos nele colocar a utopia24 como fizeram
os que nos antecederam, buscando criar,
talvez, uma pedagogia da emancipação, que
São nesses múltiplos e
diferentes espaçostempos
que tecemos as redes
educativas nas quais
vivemos e que estão
presentes, como desafios,
em nossos cotidianos
escolares.
24 Santos (1995) define: utopia é a exploração de novas possibilidades e vontades humanas, por via da oposição da imaginação à necessidade do que existe, só porque existe, em nome de algo radicalmente melhor que a humanidade tem direito de desejar e por que merece a pena lutar (p.323).
18
liga cultura e renascimento cultural. Nela
cabe um papel importante à televisão, que
precisa ser pesquisada no que produziu de
educativo, até o presente, sabendo que esse
movimento precisa de um modo ‘novo’ de
pesquisar, como nos indicou Santos (1995),
para quem o paradigma emergente é inters-
ticial no modo como se pensa e pensa-se
afogado na realidade dos contextos em que
se pratica (p.103).
É por isso que precisamos compreender, em
um grande e plural movimento, que vivendo
nos cotidianos e estudando-os, neles neces-
sariamente mergulhados, precisamos falar
em redes educativas de conhecimentos e
significações e em entre lugares, sempre, já
que é nelas e neles que tecemos nossa hu-
manidade, com seus valores mutáveis e com
as identidades múltiplas forjadas em espa-
çostempos diversos.
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19
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WILLIAMS, Raymond. Cultura. Rio de Janei-
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20
2.2eDuCAÇão e TRANSDISCIPlINARIDADe em umA CIVIlIZAÇão em muDANÇA
Ubiratan D’Ambrosio25
O impressionante desenvolvimento cientí-
fico e tecnológico que estamos vivenciando
afeta profundamente todas as relações hu-
manas, isto é, do indivíduo com si próprio,
do indivíduo com o outro e do indivíduo e da
sociedade com a natureza. A ampla utiliza-
ção dos meios digitais e da bioquímica são
exemplos desse desenvolvimento. A impor-
tância da ciência e da tecnologia e agora da
tecnociência é o resultado de especialização
exclusiva das várias áreas de conhecimento.
Essa especialização levou a uma linguagem
científica hermética, inacessível aos não ini-
ciados. Mas a complexidade do mundo mo-
derno exige uma educação que vá além das
disciplinas, uma educação transdisciplinar26.
Faz-se necessário mostrar ao grande público
os avanços da ciência e da tecnologia e, ao
mesmo tempo, alertar para a ameaça que
tais avanços possam vir a representar para
a sobrevivência da civilização no nosso pla-
neta. Esse tema foi abordado por mim em
diversos artigos publicados no Boletim do
Salto para o Futuro (2001, 2002, 2008)27.
Estamos passando por grandes transforma-
ções na sociedade e, em particular, na edu-
cação. Hoje, falamos em educação bilíngue,
em medicinas alternativas, no diálogo inter-
religioso. Inúmeras outras formas de multi-
culturalismo são notadas nos sistemas edu-
cacionais e na sociedade em geral.
As profundas transformações nos sistemas
de comunicação, de informatização, de
pro dução e de emprego são resultados da
mundialização e, consequentemente, dão
25 Doutor em Matemática pela USP. Professor Emérito da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Professor da Pós-graduação em Educação Matemática da Universidade Bandeirantes de São Paulo – UNIBAN.
26 Ubiratan D’Ambrosio: Educação para uma Sociedade em Transição. Campinas: Papirus Editora, 1999.
27 Ver os artigos: *Educar para uma Civilização Planetária. Boletim Salto para o Futuro: Tecnologia e Currículo, Rio de Janeiro, TV Escola/MEC, nov. 2001, p. 23-27.*Ciência Multicultural. Boletim do Salto para o Futuro: Debates: Multiculturalismo e Educação, Rio de Janeiro, TV Escola/ MEC, jul. 2002, p.25-30.*Complexidade e seus Reflexos na Educação, Boletim do Salto para o Futuro. Debates: Complexidade e seus Reflexos na Educação, Rio de Janeiro, TV Escola/MEC, dez. 2002, p.1-11; republicado no Boletim nº 9, jun. 2008, p.33-41.
21
ori gem à globalização e ao multiculturalis-
mo. Os reflexos na geração e na aquisição de
conhecimento são evidentes.
Um resultado esperado dos sistemas educa-
cionais é a aquisição e produção de conhe-
cimento. Isso ocorre, fundamentalmente, a
partir da maneira como um indivíduo perce-
be a realidade nas suas várias manifestações:
• uma realidade individual, nas dimensões
sensorial, intuitiva, emocional, racional;
• uma realidade social, que é o reconheci-
mento da essencialidade do outro;
• uma realidade planetária, o que mostra
sua dependência do patrimônio natural
e cultural e sua responsabilidade na sua
preservação;
• uma realidade cósmica, levando-o a trans-
cender espaço e tempo e a própria existên-
cia, buscando explicações e historicidade.
As práticas ad hoc para lidar com situações
problemáticas surgidas da realidade são o
resultado da ação de conhecer. Isto é, o co-
nhecimento é deflagrado a partir da realida-
de. Conhecer é saber e fazer.
A geração e o acúmulo de conhecimento em
uma cultura obedecem a uma forma de co-
erência. Há uma comunalidade de ações na
qual se manifesta o zeitgeist, fundamental
na proposta historiográfica de F. Hegel (l770-
l83l). Essa comunalidade de ações é que ca-
racteriza uma cultura. Ela é identificada pe-
los seus sistemas de explicações, filosofias,
teorias, e ações e pelos comportamentos
cotidianos. Tudo isso se apoia em processos
de comunicação, de quantificação, de classi-
ficação, de comparação, de representações,
de contagem, de medição, de inferências.
Esses processos se dão de maneiras diferen-
tes nas diversas culturas e se transformam
ao longo do tempo. Eles sempre revelam
as influências do meio e se organizam com
uma lógica interna, se codificam e se forma-
lizam. Assim nasce o conhecimento.
Procuramos entender o conhecimento e o
comportamento humanos nas várias regiões
do planeta ao longo da evolução da humanida-
de, reconhecendo, naturalmente, que o conhe-
cimento se dá de maneira diferente em cultu-
ras diferentes e em épocas diferentes.
ETnOciênciA E
ETnOMATEMáTicA
Em meados da década de 1970 propus um
programa educacional que denominei Pro-
grama Etnomatemática. Embora o programa
Etnomatemática sugira ênfase na Matemáti-
ca, esse é um estudo da evolução cultural da
humanidade no seu sentido amplo, a partir
da dinâmica cultural que se nota nas mani-
festações matemáticas. Mas que não se con-
funda com a Matemática no sentido acadê-
22
mico, estruturada como uma disciplina. Sem
dúvida, essa Matemática é importante, mas
de acordo com o eminente matemático Ro-
ger Penrose, ela representa uma área muito
pequena da atividade consciente que é pra-
ticada por uma pequena minoria de seres
conscientes para uma fração muito limitada
de sua vida consciente. O mesmo pode-se di-
zer sobre a ciência acadêmica em geral.
Em essência, o Programa Etnomatemática
é uma proposta
de teoria do co-
nhecimento, cujo
nome foi escolhi-
do por razões que
serão explicadas
mais adiante. Na
verdade, poderia
igualmente ser
denominado Pro-
grama Etnociên-
cia. Ao lembrar
a etimologia, ci-
ência vem do latim scio, que significa saber,
conhecer, e matemática vem do grego má-
thema, que significa ensinamento, está claro
que os Programas Etnomatemática e Etno-
ciência se complementam. Na verdade, na
acepção que proponho, eles se confundem28.
A ideia nasceu da análise de práticas mate-
máticas em diversos ambientes culturais, po-
rém foi ampliada para analisar diversas for-
mas de conhecimento, não apenas as teorias
e práticas matemáticas. O ponto de partida
é o exame da história das ciências, das artes,
das religiões em várias culturas. Adotamos
um enfoque historiográfico externalista, o
que significa procurar as relações entre o
desenvolvimento das disciplinas científicas,
ou das escolas artísticas, ou das doutrinas
religiosas, e o contexto sociocultural em que
tal desenvolvimento se
deu. O Programa Etno-
matemática vai além
desse externalismo,
pois aborda também as
relações íntimas entre
cognição e cultura.
Ao reconhecer que o
momento social está na
origem do conhecimen-
to, o programa, que é
de natureza holística,
procura compatibilizar Cognição, História e
Sociologia do Conhecimento e a Epistemolo-
gia Social num enfoque multicultural.
DA ARROGânciA DA cERTEzA à
huMilDADE DA BuScA
O enfoque holístico à história do conhe-
28 Ubiratan D’Ambrosio: Etnomatemática. Arte ou técnica de conhecer e Aprender. Editora Ática, São Paulo, 1990 e Etnomatemática. Elo entre as tradições e a modernidade. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2001.
O enfoque holístico à
história do conhecimento
consiste essencialmente
de uma análise crítica da
geração e produção de
conhecimento, da sua
organização intelectual e
social e da sua difusão.
23
cimento consiste essencialmente de uma
análise crítica da geração e produção de
conhecimento, da sua organização inte-
lectual e social e da sua difusão. No en-
foque disciplinar, essas análises se fazem
desvinculadas, subordinadas a áreas de
conhecimento muitas vezes estanques:
ciências da cognição, epistemologia, ciên-
cias e artes, história, política, educação,
comunicações.
Considerando que a percepção de fatos é
influenciada pelo conhecimento, ao se fa-
lar em história do conhecimento estamos
falando da própria história do homem e do
seu hábitat no sentido amplo, isto é, da Ter-
ra e mesmo do Cosmos. Mas não há como
falar da Terra e do Cosmos desligados da
visão que o próprio homem criou e tem da
Terra e do Cosmos. A ciência moderna es-
barra numa postura de arrogância ao pro-
por “teorias finais”, isto é, explicações que
se pretendem definitivas sobre a origem e a
evolução das coisas naturais.
A proposta é o enfoque transdisciplinar, que
substitui a arrogância do pretenso saber ab-
soluto, que tem como consequências inevi-
táveis os comportamentos incontestados e
as soluções finais, pela humildade da busca
incessante, cujas consequências são respei-
to, solidariedade e cooperação29.
A transdisciplinaridade é, então, um enfo-
que holístico ao conhecimento que procura
levar a essas consequências e se apoia na re-
cuperação das várias dimensões do ser hu-
mano para a compreensão do mundo na sua
integralidade.
Lembremos que variantes da postura disci-
plinar têm sido propostas. As disciplinas dão
origem a métodos específicos para conhecer
objetos de estudo bem definidos.
A multidisciplinaridade procura reunir resul-
tados obtidos mediante o enfoque discipli-
nar. Como se pratica nos programas de um
curso escolar.
A interdisciplinaridade, muito procurada e
praticada hoje em dia, sobretudo nas esco-
las, transfere métodos de algumas discipli-
nas para outras, identificando assim novos
objetos de estudo. Já havia sido antecipada
em 1699 por Fontenelle, Secretária da Acade-
mia de Ciências de Paris, quando dizia que
“Até agora a Academia considera a natureza
só por parcelas.... Talvez chegará o momen-
to em que todos esses membros dispersos
[as disciplinas] se unirão em um corpo regu-
lar; e se são como se deseja, se juntarão por
si mesmas de certa forma”30 .
A transdisciplinaridade vai além das limita-
29 Ubiratan D’Ambrosio: Transdisciplinaridade. São Paulo: Editora Palas Athena, 2009 (edição original 1997).
30 B. de Fontenelle: Histoire de l’Académie des Sciences, 1699; p. xix.
24
ções impostas pelos métodos e objetos de
estudos das disciplinas e das interdisciplinas.
O processo psicoemocional de geração de
conhecimentos, que é a essência da criati-
vidade, pode ser considerado em si um pro-
grama de pesquisa, e pode ser categorizado
através de questionamentos como:
l. Como passar de práticas ad hoc a mo-
dos de lidar com situações e proble-
mas novos e a métodos?
2. Como passar
de métodos
a teorias?
3. Como proce-
der da teo-
ria à inven-
ção?
Explicitando o
que já foi dito acima, essas perguntas envol-
vem os processos de:
1. geração e produção de conhecimento;
2. sua organização intelectual;
3. sua organização social;
4. sua difusão,
que são normalmente tratados de forma iso-
lada, como disciplinas específicas: ciências
da cognição (geração de conhecimento),
epistemologia (organização intelectual do
conhecimento), história, política e educação
(organização social, institucionalização e di-
fusão do conhecimento).
O método chamado moderno para se conhe-
cer algo, explicar um fato e um fenômeno,
baseia-se no estudo de disciplinas específi-
cas, o que inclui métodos específicos e ob-
jetos de estudo próprios. Esse método pode
ser atribuído a Descar-
tes. Isso caracteriza o
reducionismo. Logo,
esse método se mos-
trou insuficiente e já
no século XVII surgiram
tentativas de se reunir
conhecimentos e resul-
tados de várias discipli-
nas para o ataque a um
problema. O indivíduo
deve procurar conhecer mais coisas para
conhecer melhor. As escolas praticam essa
multidisciplinaridade, que hoje está presen-
te em praticamente todos os programas es-
colares.
Metaforicamente, as disciplinas funcionam
como canais de televisão ou programas de
processamento em computadores. É neces-
sário sair de um canal ou fechar um aplicati-
vo para poder abrir outro. Isso é a multidisci-
plinaridade. Mas quando se utiliza Windows
A transdisciplinaridade
vai além das limitações
impostas pelos métodos
e objetos de estudos
das disciplinas e das
interdisciplinas.
25
95, a grande inovação é poder trabalhar com
vários aplicativos, criando novas possibilida-
des de criação e utilização de recursos. A in-
terdisciplinaridade corresponde a isso. Não
só justapõe resultados, mas mescla métodos
e, consequentemente, identifica novos obje-
tos de estudo.
A interdisciplinaridade teve um bom desen-
volvimento no século passado e deu ori-
gem a novos campos de estudo. Surgiram
a neurofisiologia, a físico-química, a mecâ-
nica quântica. Inevitavelmente, essas áreas
interdisciplinares foram criando métodos
próprios e definindo objetos específicos de
estudo. Depois se tornaram disciplinas em
si e passaram a mostrar as mesmas limita-
ções das disciplinas tradicionais. Surgiram,
então, os especialistas em áreas interdisci-
plinares.
É oportuno falarmos de cultura. Há muitos
escritos e teorias fortemente ideológicas so-
bre o que é cultura. Conceituo cultura como
o conjunto de mitos, valores, normas de
comportamento e estilos de conhecimento
compartilhados por indivíduos vivendo num
determinado tempo e espaço.
Ao longo da história, tempo e espaço foram
se transformando. A comunicação entre ge-
rações e o encontro de grupos com culturas
diferentes criam uma dinâmica cultural e
não podemos pensar numa cultura estática,
congelada em tempo e espaço. Essa dinâ-
mica é lenta e o que percebemos na exposi-
ção mútua de culturas é uma subordinação
cultural e, algumas vezes, até mesmo des-
truição de uma das culturas em confronto
ou, em alguns casos, dá-se a convivência
multicultural. Naturalmente, a convivência
multicultural representa um progresso no
comportamento das sociedades, consegui-
do após violentos conflitos. Agora, não sem
problemas, ganha espaço na educação o
multiculturalismo.
Enquanto os instrumentos de observação
(aparelhos — artefatos) e de análise (concei-
tos e teorias — mentefatos) eram mais limi-
tados, o enfoque interdisciplinar se mostrava
satisfatório. Mas com a sofisticação dos no-
vos instrumentos de observação e de análise,
que se intensificou em meados do século XX,
se vê que o enfoque interdisciplinar se tornou
insuficiente. A ânsia por um conhecimento
total, por uma cultura planetária, não poderá
ser satisfeita com as práticas interdisciplina-
res. Da mesma maneira, o ideal de respeito,
solidariedade e cooperação entre todos os in-
divíduos e todas as nações não será realizado
somente com a interdisciplinaridade.
Não nego que o conhecimento disciplinar,
consequentemente o multidisciplinar e o
interdisciplinar, são úteis e importantes, e
continuarão a ser ampliados e cultivados,
mas somente poderão conduzir a uma visão
plena da realidade se forem subordinados ao
conhecimento transdisciplinar.
26
2.3eNSINo mÉDIo INDÍGeNA e o DeSAFIo DA SuSTeNTABIlIDADe DoS PoVoS INDÍGeNAS
Gersem Baniwa31
Este texto trata dos desafios que o Ensino
Médio voltado para os povos indígenas en-
frenta quanto à necessidade de contribuir
para a sustentabilidade de vida desses povos
em seus territórios, tendo como referência
os debates que ocorreram no âmbito da sé-
rie do Salto para o Futuro/TV Escola, com
veiculação no ano de 2007. Os debates fo-
ram extremamente produtivos, ricos e desa-
fiadores. Na verdade, o programa Salto para
o Futuro foi pioneiro na iniciativa de pôr
em debate este tema tão caro para os po-
vos indígenas e, em especial, para as escolas
indígenas que atuam com o Ensino Médio,
na medida em que a ideia de sustentabilida-
de tem relação direta com as condições de
vida, presente e futura, desses povos, tanto
do ponto de vista sociocultural, como terri-
torial, ambiental, econômico, político e edu-
cacional.
Desde então este tema começou a fazer
parte da agenda não só das organizações
e povos indígenas, mas, sobretudo, do go-
verno brasileiro, incluindo o Ministério da
Educação, que passou a elaborar diretrizes
e instrumentos de gestão para incorporar o
tema aos projetos políticos e pedagógicos
das escolas indígenas, especialmente por
meio das escolas indígenas de Ensino Mé-
dio integrado e profissionalizante. Passados
cinco anos após a realização do círculo de
debates produzido pelo programa, que em
2011 completou 20 anos no ar, podemos di-
zer que, do ponto de vista programático, no-
vas perspectivas foram desenhadas e inicia-
das nas escolas indígenas. Apenas a título de
exemplo, cito os casos de cursos de Ensino
Médio integrado e profissionalizante que co-
meçaram a ser implantados nas escolas in-
dígenas do Alto Rio Negro desde 1998, como
o da Escola Baniwa Mazurekai da comunida-
de de Assunção do Içana, que é voltado para
o manejo de recursos naturais, em parceria
com a Escola Agrotécnica Federal de São Ga-
briel da Cachoeira (hoje Instituto Federal de
31 Professor e antropólogo. Conselheiro do Conselho Nacional de Educação e Diretor do Centro Indígena de Estudos e Pesquisas, é liderança do povo baniwa do Alto Rio Negro.
27
Tecnologia do Amazonas – IFAM, Campus
São Gabriel). Mais recentemente, foi inicia-
do o curso de formação profissionalizante
para os agentes indígenas de saúde do Alto
Rio Negro, por meio da parceria Fundação
Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), Secretaria Estadu-
al de Educação do Amazonas (SEDUC-AM),
Secretaria Municipal de Educação de São Ga-
briel da Cachoeira (SEMEC-SGC) e a Secreta-
ria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade do MEC (SECAD/MEC).
Ainda na região do Alto Rio Negro, várias
outras escolas de Ensino Médio foram aber-
tas com o propósito claro e programático de
contribuir com a sustentabilidade integral
ou o bem-viver das comunidades indígenas,
como a Escola Baniwa Paamáli, a Escola Tu-
cano Aeitym Yepá Mahsã e a Escola Tuyuca
Utapinapona. Por todo o Brasil experiên-
cias similares começaram a se multiplicar,
embora ainda em número pequeno para o
tamanho das necessidades, mas suficiente
para estimular, em muitos lugares, o prosse-
guimento e a ampliação dessas iniciativas,
consideradas experiências piloto ou experi-
ências inovadoras. O desafio, de agora em
diante, é avançar na institucionalização des-
sas experiências e na consolidação das mes-
mas como políticas públicas permanentes.
Sabemos que o acesso à educação escolar
foi uma das bandeiras prioritárias de luta
dos povos indígenas do Brasil nas últimas
três décadas. Nos últimos anos, a forte e
permanente mobilização e a pressão das
lideranças indígenas e, principalmente, de
professores indígenas, aliadas à oferta da
educação escolar nas aldeias, ampliaram
substantivamente em qualidade, mas espe-
cialmente em quantidade, os níveis de ensi-
no. A política de universalização do Ensino
Fundamental adotada pelo governo brasilei-
ro desde a década de 1990 contribuiu para
que hoje a maioria das aldeias tivesse algum
tipo de atendimento escolar no que se refe-
re à primeira etapa do Ensino Fundamental.
Essa demanda contemporânea tem um sen-
tido histórico na trajetória vivenciada pelos
povos indígenas. Ela é percebida como uma
oportunidade e uma possibilidade agregado-
ra e complementar para enfrentar e resol-
ver necessidades e problemas atuais gera-
dos a partir do contato, mas também como
possibilidade de resolver velhos desafios
enfrentados por eles. No âmbito de velhos
desafios, encontram-se as possibilidades de
que as técnicas e tecnologias modernas pos-
sam ajudar no fortalecimento das tradições
e na melhoria das atividades produtivas de
subsistência, por meio do aperfeiçoamen-
to dos modos sustentáveis de produção de
alimentos. No âmbito de novos desafios,
encontram-se as necessidades de acesso a
políticas públicas nas áreas estratégicas de
saúde, educação, saneamento, geração de
renda, gestão territorial, entre outras.
Em termos gerais, os povos indígenas lutam
por escolas com objetivos muito claros, que
28
podem ser classificados em dois blocos, to-
dos associados à ideia de buscar o “bem vi-
ver” ou as “melhores condições de vida”, em
um contexto onde eles sejam protagonistas
e sujeitos de direitos. O primeiro objetivo
diz respeito à necessidade de acesso a téc-
nicas e tecnologias extra-aldeias que con-
tribuam para a melhoria das condições de
trabalho e de vida no cotidiano das pessoas
e dos grupos, associando os conhecimentos
e valores tradicionais aos conhecimentos e
valores modernos. O segundo objetivo está
relacionado à necessidade do exercício da
cidadania, que está associada à participação
política na vida do país e, principalmente,
na defesa dos seus direitos. Aqui se inclui
também a necessidade de adquirir conhe-
cimentos e habilidades para interagir com
o mundo extra-aldeia, em particular com o
mundo moderno e os agentes e as institui-
ções do Estado, no sentido de garantir direi-
tos específicos, como políticas públicas de
saúde, educação, segurança, emprego, sane-
amento, entre outras.
Hoje, o maior desafio dos 225 povos indíge-
nas que vivem no Brasil é garantir sua auto-
nomia por meio de projetos específicos de
etnodesenvolvimento em seus territórios,
que sejam capazes de articular as experi-
ências e os conhecimentos tradicionais às
novas técnicas e tecnologias da moderni-
dade. A necessidade pós-contato da escola
e em especial do Ensino Médio integrado e
profissional está diretamente ligada a essa
demanda e à perspectiva de futuro dos po-
vos indígenas. Além disso, é importante con-
siderar a população indígena brasileira que
cresce a uma taxa próxima dos 4,0 % ao ano
(a taxa nacional é de 1,6%), tendo em vista
que em todas as aldeias os jovens e as crian-
ças constituem a maioria absoluta da po-
pulação. Neste contexto, a oferta de Ensino
Médio integrado ao ensino tecnológico aos
jovens indígenas é estratégica para a garan-
tia dos projetos de futuro de cada povo.
As definições mais comuns de uma educa-
ção escolar indígena hoje envolvem algumas
perspectivas ou tendências conceituais im-
portantes. A definição mais predominante
é a que considera a educação escolar como
instrumento para a compreensão da situ-
ação extra-aldeia e o domínio de conheci-
mentos e tecnologias específicos que po-
dem contribuir para o enfrentamento do
maior desafio atual da maioria dos povos
indígenas no país, que é a sustentabilidade
socioambiental de seus territórios. A escola
é vista como um instrumento que pode pos-
sibilitar a construção de diálogos intercul-
turais e projetos políticos e de autogestão
econômica, tecnológica, cultural e linguísti-
ca por grupos indígenas específicos (LOPES
DA SILVA, 2001). Esta definição seria também
a predominante entre os povos indígenas. A
demanda por escola apresentada de forma
contundente pelos povos indígenas da re-
gião e as respostas dela esperadas revelam
o quanto a educação tradicional não é mais
29
suficiente para dar conta das realidades
indígenas contemporâneas, seja na pers-
pectiva do fortalecimento das identidades
e culturas próprias, seja na perspectiva de
contribuir no empoderamento político para
a relação menos desigual e mais promissora
com a sociedade nacional e global.
Nos últimos 10 anos, a partir da aprova-
ção da Lei de Diretrizes e Bases da Educa-
ção (2001), ocorreu no Brasil um processo
acelerado de expansão da oferta do Ensino
Fundamental, incluindo as comunidades in-
dígenas. Na atualidade, o desafio é estender
o atendimento ao Ensino Médio e Superior.
O Censo Escolar de 2010, realizado pelo Ins-
tituto Nacional de Estudos e Pesquisas Edu-
cacionais (INEP), apontou que naquele ano
existiam quase 200.000 estudantes indígenas
no Brasil. Desse total, 10.000 alunos estavam
no Ensino Médio, o que representa 10%. O
número parece irrisório, mas representa um
crescimento gigantesco de mais de 400%
só nos últimos oito anos, uma vez que em
2002 eram 1.187 alunos indígenas do Ensino
Médio. Outro dado curioso é em relação ao
Ensino Superior, em que se estima 7.000 es-
tudantes indígenas cursando graduação ou
pós-graduação em 2010, o que representa
mais da metade do contingente de estudan-
tes indígenas do Ensino Médio. Com essa
velocidade no crescimento de matrículas
indígenas no Ensino Superior e sem uma
mudança ainda mais robusta na ampliação
da oferta de Ensino Médio, poderemos ter
em breve uma situação, no mínimo curiosa,
em que o número de estudantes indígenas
no Ensino Médio será igual ou inferior ao
número de estudantes indígenas no Ensino
Superior, o que, neste último caso, geraria
uma sobra de vagas nas Instituições de En-
sino Superior (IES) destinadas aos indígenas.
No campo programático, educação se define
como o conjunto dos processos envolvidos
na socialização dos indivíduos, correspon-
dendo, portanto, a uma parte constitutiva
de qualquer sistema cultural de um povo,
englobando mecanismos que visam à sua re-
produção, perpetuação e/ou mudança. Arti-
culando instituições, valores e práticas, em
integração dinâmica com outros sistemas
sociais como a economia, a política, a reli-
gião, a moral, os sistemas educacionais têm
como referência básica os projetos sociais
(ideias, valores, sentimentos, hábitos etc.)
que lhes cabe realizar em espaços e tempos
sociais específicos (LUCIANO, 2006).
Até algum tempo atrás, os povos indígenas
no Brasil acreditavam que a educação esco-
lar era um meio exclusivo de aculturação e
havia certa desconfiança e repulsa à esco-
larização. Isso já mudou. Diante das neces-
sidades de um mundo cada vez mais globa-
lizado, interativo e transcultural, os índios,
em especial os jovens indígenas, pensam
que a educação escolar, quando apropria-
da por eles e direcionada para atender às
necessidades atuais de suas comunidades,
30
pode ser um instrumento de fortalecimento
das culturas e identidades e um canal possí-
vel de acesso à desejada cidadania, entendi-
da como direito de acesso aos bens e valores
materiais e imateriais do mundo moderno.
Em conformidade com esse ideal, a prática
pedagógica tradicional indígena integra, so-
bretudo, elementos relacionados entre si: o
território, a língua, a economia e o paren-
tesco. De todos
eles, o território
e a língua são os
mais amplos e
complexos. O ter-
ritório é sempre
a referência e a
base de existên-
cia e a língua é a
expressão dessa
relação. O modo
como se vive esse
sistema de rela-
ções caracteri-
za cada um dos
povos indígenas.
O modo como
transmitem os conhecimentos acumulados
sobre a vida e sobre o mundo, especialmen-
te aos mais jovens, isso é a vida pedagógica.
A proposta de educação escolar indígena in-
tercultural e bilíngue, que precisa ser efeti-
vada principalmente no Ensino Médio, tem
como aspecto relevante o fato de trazer
ideias e propostas concretas que alimenta-
ram o ânimo e a esperança de jovens lide-
ranças indígenas emergentes. A proposta –
ao lado de outras bandeiras de luta, como a
defesa da terra, o desenvolvimento susten-
tável, a sustentabilidade territorial e a saúde
dos indígenas – alimentou o repertório da
agenda política do movimento indígena. Os
significados que a educação escolar passa
a ganhar entre os povos indígenas são di-
versos e dependem de
cada povo e do contex-
to em que essas escolas
são concebidas e geri-
das. Algumas comuni-
dades concebem a es-
cola como instrumento
para fortalecer suas
identidades, culturas
e tradições em diálogo
com outras culturas,
valores e conhecimen-
tos. Outras buscam o
caminho para a cons-
trução de uma escola
que reflita o modo de
vida próprio e o apro-
veitamento do potencial de seus territórios
tradicionais, dando um novo sentido e res-
significação aos valores culturais. Outras co-
munidades direcionam a escola como meio
para acessar conhecimentos universais (lín-
gua portuguesa, por exemplo), técnicas e
tecnologias da ciência moderna de que ne-
cessitam para melhorar suas condições de
trabalho e, consequentemente, suas condi-
A proposta de educação
escolar indígena
intercultural e bilíngue,
que precisa ser efetivada
principalmente no Ensino
Médio, tem como aspecto
relevante o fato de trazer
ideias e propostas concretas
que alimentaram o ânimo
e a esperança de jovens
lideranças indígenas
emergentes.
31
ções de vida. E há outras comunidades que
enfatizam que a escola é um meio para o
acesso e o domínio dos conhecimentos dos
modos de ser e fazer as coisas do homem
“branco”. O domínio do mundo “branco” se
faz necessário para estabelecer um diálogo
mais efetivo e diminuir o desequilíbrio na
correlação de forças com o Estado e a socie-
dade dominante na defesa dos seus direitos,
inclusive, os direitos de participar nas toma-
das de decisões não apenas relativas às suas
comunidades, mas também sobre a vida da
sociedade e do país. Outras comunidades
ou indivíduos indígenas ainda entendem
que a escola serve para seguir o modo de
vida das sociedades dominantes, por meio
do emprego, do poder político, da vida ur-
bana, entre outros, e isso não significa que
estejam abdicando de suas identidades, suas
línguas e tradições. Em todos os casos, o
Ensino Médio é a etapa da formação escolar
que está na encruzilhada dessas questões
e precisa responder a elas. O importante é
levar em conta que esta encruzilhada de ne-
cessidades e possibilidades é vivida pelo alu-
no indígena do Ensino Médio.
A formação escolar é considerada como
uma condição necessária para garantir o fu-
turo desejável para os jovens indígenas e vai
ao encontro de algumas expectativas etno-
políticas relevantes, como a necessidade de
qualificar os quadros técnicos para a gestão
territorial, para a formulação e gestão de
projetos de etnodesenvolvimento e o desejo
de autonomia. Deste modo, o desenvolvi-
mento de ações que garantam a permanên-
cia dos jovens indígenas em suas aldeias,
com qualidade de vida, é fundamental. O En-
sino Médio é o maior responsável por essa
preocupação, na medida em que ela ainda
é uma coisa muito rara nas aldeias. A mi-
gração desordenada de famílias indígenas
para a periferia das cidades, provocada mui-
tas vezes pela falta de condições de sobrevi-
vência e oferta de estudos, principalmente a
partir do Ensino Médio, causa um verdadei-
ro desastre sobre todos os pontos de vista.
A oferta de educação escolar intercultural
em todo segmento básico nas aldeias é uma
dessas políticas importantes para garantir
a permanência dos jovens nos seus territó-
rios, de forma que possam contribuir para
o desenvolvimento socioeconômico autôno-
mo dos projetos coletivos de seus povos.
Os povos indígenas estão inseridos no mun-
do globalizado, em que a política social, eco-
nômica e tecnológica influencia toda a vida
do planeta. Os projetos políticos pedagógi-
cos das escolas de Ensino Médio indígena
precisam dar conta de desenvolver todos os
aspectos da personalidade dos alunos, le-
vando em conta o respeito e a valorização
das formas de educação formal/informal do
povo, a visão de mundo e a vida social do
grupo, formando os alunos para o mundo
global e o local, com a capacidade de lutar
para o bem da coletividade. Assim sendo,
o Ensino Médio indígena nasce a partir de
32
uma necessidade coletiva para formar jo-
vens e adultos responsáveis pelos seus des-
tinos e pelo destino de seus povos. Os desti-
nos individuais dos jovens e dos seus povos
estão relacionados, porque existe, ainda que
muitas vezes socialmente disperso e incons-
ciente, um ideal de vida. Esse ideal de vida
é orientado segundo alguns fundamentos
cosmológicos e filosóficos profundos que o
Ensino Médio precisa levar em conta na prá-
tica pedagógica diária, que a seguir buscare-
mos explicitar.
A primeira questão é a visão de mundo e de
sociedade que cada povo indígena possui. A
partir dessa compreensão, geralmente ex-
pressa através de mitos de origem que são
permanentemente revividos por meio de ri-
tuais, as pessoas estabelecem suas formas
de viver, de pensar e de se relacionar com
as outras sociedades humanas e com a na-
tureza à sua volta. Na era da modernidade,
a sociedade indígena está inserida dentro do
mundo globalizado e sofre várias mudanças,
em todos os aspectos: social, econômico,
cultural, político e educacional. A visão de
mundo não é uma coisa que muda ou se tro-
ca como se troca uma flecha por uma es-
pingarda na vida de uma pessoa ou de um
grupo social. A questão é mais complexa,
porque mexe com a “alma”, com a identi-
dade e com a fé das pessoas. A escola deve
levar isso em consideração, para não ser um
instrumento de destruição de culturas, de
civilizações e de projetos históricos.
A segunda questão é a visão de conheci-
mento e da própria escola de que os povos
indígenas são detentores. São conhecimen-
tos, saberes, valores e civilizações milenares.
Toda essa experiência histórica tem um valor
e um sentido para eles, porque os conheci-
mentos têm função social vital. Sem eles não
é possível viver a cultura e a identidade. Por
isso, os conhecimentos têm um significado
próprio, uma maneira de reprodução e re-
produção e, enfim, maneiras particulares de
serem disponibilizados permanentemente
a serviço de todos. Portanto, a escola não é
o único lugar onde se aprende e se produz
conhecimento. É preciso que a escola de En-
sino Médio respeite e valorize esses outros
conhecimentos da comunidade indígena e
seu papel deve ser o de fortalecer e ampliar a
capacidade desses saberes tradicionais para
dar conta das necessidades atuais em contí-
nua mudança, para a continuidade como po-
vos etnicamente diferentes e seus membros
como cidadãos, com direitos assegurados.
A terceira questão diz respeito aos funda-
mentos ético-políticos que a escola indíge-
na de Ensino Médio precisa ter claros, so-
bre que tipo de homem e de sociedade quer
ajudar a construir, que tem a ver com ideal
de vida que a comunidade deseja para o seu
presente a para o seu futuro. É esse ideal que
irá orientar as estratégias pedagógicas e po-
líticas da escola e do ensino, por meio do
projeto político pedagógico. O compromis-
so ético e político da escola é fundamental
33
para o modelo de sociedade que se deseja
ter, expresso por meio de atitudes e compor-
tamentos dos indivíduos, dos cidadãos e dos
sujeitos do conhecimento – os educandos –
dentro e fora da escola.
Além disso, o Ensino Médio indígena precisa
estar ancorado na realidade local, tendo al-
guns aspectos mais importantes, tais como
as potencialidades dos beneficiários, a im-
portância das terras indígenas para os po-
vos indígenas, a
formação escolar
como um pro-
cesso contínuo
e permanente,
as potencialida-
des econômicas
e o capital po-
lítico e social.
As realidades e
potencialidades
das comunidades
beneficiárias são
os primeiros aspectos que devem ser leva-
dos em consideração. A população atendida
pela escola é indígena, com uma grande e
rica diversidade étnica, cultural, biológica e
ambiental, mesmo quando se trata de uma
escola que atende apenas a uma etnia. Cada
grupo apresenta diferenças culturais signifi-
cativas que precisam ser levadas em conta
no fazer pedagógico da escola. Mas, em ge-
ral, as escolas indígenas, sobretudo as que
oferecem Ensino Médio, atendem a mais de
um povo ou etnia e a grande maioria tra-
balha com várias etnias ou povos. Para se
ter uma idéia da dimensão dessa diversida-
de étnica e cultural das escolas indígenas
de Ensino Médio, basta olhar os dados cen-
sitários. No Brasil ainda existem 225 povos
que falam 180 línguas, o que o torna um dos
países mais diversos culturalmente do mun-
do, mas as escolas e os brasileiros pouco
conhecem e pouco valorizam essa diversi-
dade. São 734.127 índios (IBGE, 2000) – 0,4%
da população brasileira
– que atualmente apre-
sentam um elevado
índice de crescimento
populacional – de 4,9%
contra 1,6% da popula-
ção brasileira –, e que
habitam e administram
13% do território nacio-
nal, sendo 25% da Ama-
zônia Brasileira.
Outro fator relevante a
ser considerado é a incalculável importância
das terras indígenas para os povos indígenas,
para o Brasil e para o mundo, principalmen-
te quanto aos recursos naturais e quanto à
diversidade biológica. Em 2004, somavam-se
614 terras indígenas demarcadas, totalizan-
do 105.981.584 ha, ou 12,38% do território
brasileiro. A maior parte dessas terras está
na Amazônia, o que representa 20,39% de
toda a região ou 104.088.488 ha. Essas terras
indígenas na Amazônia representam 98,73%
No Brasil ainda existem
225 povos que falam 180
línguas, o que o torna um
dos países mais diversos
culturalmente do mundo,
mas as escolas e os
brasileiros pouco conhecem
e pouco valorizam essa
diversidade.
34
de todas as terras indígenas, existem ainda
mais de 600 terras reivindicadas pelos povos
indígenas ainda não regularizadas. O Ensino
Médio precisa assumir a responsabilidade de
preparar os jovens indígenas para a gestão
desses territórios, da qual depende toda a
sustentabilidade de vida de seus habitantes.
Outro aspecto relevante a ser considerado é
a formação escolar como um processo contí-
nuo e permanente. O Ensino Médio indígena
não pode ser visto e tratado como uma etapa
à parte do processo de formação intelectual
e profissional do aluno como é o Ensino Mé-
dio tradicional dos jovens não índios. O Ensi-
no Médio indígena é uma parte do processo
único de formação do jovem indígena, consi-
derando que, para os índios, a formação in-
telectual e de habilitações práticas faz parte
de toda a vida. É importante ter clareza deste
pressuposto da escola indígena, de que em
tudo o que o indivíduo e a comunidade pro-
duzem e/ou reproduzem estão disseminando
conhecimentos, num processo permanente
e contínuo, na medida em que tudo tem um
objetivo único que é contribuir para o bem-
estar da comunidade e, consequentemente,
dos indivíduos que compõem esta comuni-
dade. Na escola indígena, tudo isso deve ser
trabalhado desde o início da formação esco-
lar e para além da escola.
Quanto às potencialidades econômicas, a
população indígena vive basicamente da
agricultura de subsistência, da caça, da
pesca e do agroextrativismo. Mas também
existem outras realidades indígenas no Bra-
sil que não se enquadram nessas realidades
mais gerais, como as comunidades indíge-
nas do Sul, Sudeste e Centro-Oeste, onde
muitas comunidades não possuem terras,
ou as terras são insuficientes para garantir
a sobrevivência e dependem da agricultura
mecanizada ou de serviços no agronegó-
cio, ou mesmo na grande indústria, para
garantirem a sobrevivência. As terras indí-
genas apresentam uma riqueza incalculável
de sócio e biodiversidade que só muito re-
centemente entrou na pauta de prioridades
dos planos de trabalhos das comunidades e
organizações indígenas. Identificar, pesqui-
sar e revelar a potencialidade dos recursos
naturais como principal riqueza econômica
dos povos indígenas podem ser as contribui-
ções socioeconômicas das escolas indígenas
de Ensino Médio às comunidades indígenas
e ao país.
Por fim, é importante considerar que o
maior capital social e político dos povos
indígenas no Brasil está ligado aos anos de
luta e de trabalho articulado através de suas
organizações, sejam elas tradicionais ou ju-
ridicamente constituídas. Conhecer e valo-
rizar essa história são formas de manter a
memória viva de uma luta que mudou a his-
tória dos povos indígenas do Brasil, de tran-
sitórios e incapazes para sujeitos e cidadãos
diferenciados. Conhecer essa história tem
a ver com a afirmação da identidade étnica
35
que se perpetua tendo como base muita luta
e diálogo intercultural. Neste sentido, ofe-
recer oportunidades de formação humana,
cultural, científica e tecnológica às crianças,
jovens, adultos e velhos indígenas é propor-
cionar-lhes capacidades e possibilidades in-
finitas no presente, o que gerará um futuro
mais esperançoso e desejável.
Sabemos que a formação escolar é uma ne-
cessidade pós-contato dos povos indígenas
que passaram a interagir com as diferentes
formas de viver, de produzir conhecimentos,
de produzir alimentos e outras necessidades
importantes para a vida dos indivíduos e co-
letividades dos não índios e foram também
ficando cada vez mais dependentes desses
novos conhecimentos necessários para os
modos de vida atuais. Esse processo é natu-
ral e não significa de forma alguma que os
índios tenham abandonado suas formas tra-
dicionais de viver. Significa apenas que in-
corporam novos hábitos, costumes, valores
e a necessidade de ampliação de habilidades
para responder às novas necessidades e de-
mandas. Faz parte da capacidade do ser hu-
mano buscar sempre melhorar sua condição
de vida. É fundamental, pois, que a comuni-
dade tenha clareza do papel, da necessidade
e da importância da escola e do ensino que
ela deseja. A definição dessa função social
deve ser de responsabilidade exclusiva da
comunidade, que inclui as lideranças locais,
as famílias, os pais, os alunos, os professo-
res, os dirigentes de escolas e todos que a
constituem. Do contrário, a escola será um
espaço/instrumento de sonhos e ilusões que
não se realizarão, nem no campo individual,
nem no coletivo dos alunos e dos membros
da comunidade.
As experiências em curso revelam que os
projetos de escola indígena, e particular-
mente de Ensino Médio, são reivindicados e
desejados a partir de algumas necessidades
históricas concretas. Em primeiro lugar está
o fato de que a educação oferecida até hoje
sempre teve como princípio a integração do
indígena à sociedade nacional, o que resulta-
va na sua desintegração cultural, na medida
em que não respeitava as diferenças cultu-
rais e linguísticas e a legislação vigente so-
bre a educação escolar indígena. Ao promo-
ver “uma educação de branco com base na
cultura do branco para indígenas” negava as
alteridades indígenas. Infelizmente, as esco-
las de Ensino Médio até hoje, na sua maioria,
ainda praticam essa visão e prática colonial
e tutelar já superada do ponto de vista das
nossas leis e normas. Mas o Ensino Médio
indígena também é percebido como uma
oportunidade de potencializar e instrumen-
talizar os jovens indígenas na perspectiva de
que sejam sujeitos de sua própria história,
de sua formação ética, intelectual e humana.
Em outras palavras, formar novas lideranças
capazes de dar conta das contradições do
processo escolar integrador e buscar a recu-
peração das autonomias indígenas. É muito
comum ouvir de lideranças indígenas mo-
36
dernas que “antigamente a arma da luta era
a borduna e atualmente é a caneta, o papel e
o poder da fala” e que a escola deve ajudar a
melhorar as condições de vida.
Em segundo lugar, temos o fato de que o
Ensino Médio indígena, assim como os ou-
tros níveis de ensino, deve, como princípio,
atender às necessidades das comunidades,
tais como: a) articular o conhecimento in-
dígena e o não indígena, com o objetivo
de contribuir para o desenvolvimento sus-
tentável, sociocultural e econômico das co-
munidades; b) escolas nas terras indígenas
com o objetivo de evitar o êxodo, reforçar
a identidade e possibilitar o envolvimento e
a gestão autônoma das comunidades indí-
genas, seguindo o princípio de valorização
das territorialidades linguísticas, étnicas e
culturais e formando jovens pesquisadores
e cidadãos a partir de uma proposta político
pedagógica coerente com os projetos socie-
tários de seus povos; c) formar os indígenas
para serem administradores, pesquisadores,
e gestores de seus processos educativos e so-
ciais e propiciar às comunidades indígenas
um diálogo formal com os não indígenas; d)
formar profissionais indígenas (professores,
agentes de saúde, agrônomos, agentes flo-
restais, mecânicos, piscicultores, médicos,
advogados etc.) capazes de atuar em suas
próprias comunidades, de acordo com os
objetivos, necessidades e demandas locais;
e) ajudar a comunidade na apropriação e no
uso dos conhecimentos locais e universais,
disponibilizando-os para outras escolas indí-
genas e não indígenas.
Em síntese, o Ensino Médio indígena, as-
sim como os outros níveis de ensino, têm
que responder às demandas e necessidades
internas e externas das comunidades. Es-
sas demandas e necessidades passam pe-
los projetos de gestão territorial, projetos
de autossustentação e demandas externas
como a profissionalização para o mercado
de trabalho local, regional, nacional e glo-
bal. O grande desafio é como o modelo atual
de escola e particularmente de Ensino Mé-
dio pode atender a essas múltiplas tarefas e
funções sociais das comunidades indígenas
e, ao mesmo tempo, contribuir para o forta-
lecimento das identidades e dos modos de
vida, além de possibilitar o acesso qualifica-
do aos conhecimentos universais da ciência
moderna, que são um desejo das comunida-
des indígenas. Outro desafio significativo é o
de favorecer o exercício da cidadania plena,
que inclui a necessidade maior de equilíbrio
na correlação de forças nas tomadas de de-
cisões em questões de interesses dessas co-
munidades e, ainda, as condições formativas
para o acesso igualitário ao Ensino Superior
e ao mercado de trabalho. Tudo isso deve ser
oferecido, preferencialmente, em unidades
de ensino próximas ou dentro das aldeias.
Diferente do significado que tem para a so-
ciedade não índia, onde convencionalmente
o Ensino Médio é visto apenas como uma
37
fase escolar de preparação para o Ensino Su-
perior ou para a vida profissional dos jovens,
no mundo indígena o Ensino Médio significa
uma fase de mudanças extremas na vida de
um jovem indígena que age e pensa coleti-
vamente, tendo em vista que possibilita con-
quistar novos conhecimentos, desbravar um
novo mundo, realizar sonhos, perseguir ideais
e melhorar a qualidade de vida de seu povo. O
Ensino Médio está diretamente relacionado
com as necessidades levantadas pelas comu-
nidades indígenas. Por isso, deve ser flexível
e aberto às mudanças necessárias para as co-
munidades indígenas organizarem e condu-
zirem seus processos de aprendizagem de
acordo com seus horizontes socioculturais,
possibilitando ao jovem indígena direcionar
seus estudos às demandas apresentadas pela
comunidade, sendo que a maior parte está
relacionada com a melhoria da qualidade de
vida, conservação do meio ambiente, forta-
lecimento e revitalização cultural, sustenta-
bilidade econômica e territorial. Além disso,
o Ensino Médio oferece ao aluno indígena
a capacitação básica como ferramenta im-
prescindível e necessária para que ele ajude
a comunidade a lutar pela garantia dos seus
direitos consagrados na Constituição Federal
e pelas leis internacionais, principalmente
quanto ao direito à terra, que é o fator fun-
damental para a sobrevivência de um povo
indígena, abrindo caminhos para a susten-
tabilidade territorial e o bem-viver coletivo.
Assim sendo, é importante considerarmos
alguns pressupostos relevantes que norteiam
esta fase na vida de um jovem indígena.
O primeiro pressuposto é de que o Ensino
Médio corresponde à fase de transformação
pessoal dos jovens estudantes indígenas,
pois corresponde à faixa etária de jovens que
estão passando para a fase adulta, quando
começam a assumir responsabilidades ple-
nas por si e por sua comunidade/povo. É o
período em que acontecem os ritos de pas-
sagem ou de iniciação. Assim sendo, é uma
fase em que estão definindo suas identida-
des, função social, personalidade e caráter
individual e grupal. Portanto, uma fase de
grandes desafios e, por outro lado, de mo-
mentos decisivos, pois representa também
uma passagem da vida indígena (aldeia,
tradições, culturas) para a compreensão da
vida não indígena (cidade, emprego, dinhei-
ro etc.). O jovem desloca-se da sua família
para a escola e, quando este deslocamento
não é bem pensado, isso o faz muitas vezes
desistir de seus objetivos diante das novas si-
tuações que passa a vivenciar, diante do pre-
conceito, da discriminação, das dificuldades
materiais, afetivas, de socialização extra-
aldeia e a exclusão de toda ordem. Assim, é
fundamental a preparação desse jovem pela
sua comunidade e familiares para esse novo
desafio, para que o encorajamento e o en-
gajamento com os anseios da comunidade
o acompanhem como meta a ser alcançada
nessa nova etapa da vida.
O segundo pressuposto é o de que este perí-
38
odo representa oportunidades de ascensão
individual. Para o jovem indígena, essa eta-
pa de ensino representa também um perío-
do de novas oportunidades para concretizar
expectativas, esperanças, sonhos e possibi-
lidades de encaminhamentos profissionais.
É um momento que oportuniza a aquisição
de habilidades técnicas, especializações e
capacitações no campo da formação profis-
sional, que irão ajudá-lo a enfrentar os seus
próprios desafios e os de seu grupo social.
É a fase em que os seus conhecimentos tra-
dicionais adquiridos junto à sua comunida-
de serão confrontados e somados a outros
importantes conhecimentos que se comple-
mentarão, proporcionando-lhe adentrar o
mundo dos não índios, conhecendo o seu
funcionamento para atuar em defesa do seu
povo. Isso não deixa de ser a realização do
sonho de poder ajudar no sustento da famí-
lia, poder colaborar com a comunidade na
busca dos seus direitos e amadurecer para
seguir com seus projetos futuros.
O terceiro pressuposto é o de que o Ensino
Médio é também um meio de acesso, intera-
ção e domínio do mundo extra-aldeia. Como
na maioria das comunidades indígenas só
existe o Ensino Fundamental, o Ensino Mé-
dio é visto como um meio de acesso ao mun-
do dos não índios. Um mundo que funciona
diferentemente do seu, onde ele irá conviver
com outra realidade, outras formas de vidas
e culturas, a princípio estranhas, mas que
o ajudarão a interagir com o mundo “bran-
co”. Representa o acesso às universidades,
a conquista de uma profissão, emprego, ci-
dadania e aos espaços políticos que podem
contribuir com a concretização dos projetos
da sua comunidade.
O quarto pressuposto é o de que o Ensino
Médio representa também uma possibilida-
de de empoderamento político para dentro e
para fora da comunidade. Por isso, é essen-
cial que os jovens indígenas, alunos do Ensi-
no Médio, tenham orientação e acompanha-
mento da sua comunidade e da sua família.
Essa exigência tem que ser feita para que es-
ses jovens, ao saírem das comunidades para
estudarem, levem consigo toda a luta feita
pelo seu povo e continuem defendendo e tra-
balhando em prol dos povos indígenas mes-
mo depois de formados, quando se espera
que retornem para suas comunidades para
aplicarem seus conhecimentos ou que, mes-
mo longe das aldeias, possam estar afinados
e comprometidos com a luta e os projetos
sociais de seus povos. Dessa forma, o Ensi-
no Médio possibilitará também o empodera-
mento político da comunidade, uma vez que
o jovem indígena estará se capacitando para
atuar como liderança do seu povo dentro e
fora da comunidade. Obterá a experiência e
o discernimento, conquistando ainda mais a
confiança de seu povo, podendo representá-
lo como dirigente de organizações indígenas
ou em cargos públicos como vereador, pre-
feito etc., mas para isso o comprometimento
é fundamental. O Ensino Médio representa,
39
ainda, a possibilidade para construir conhe-
cimentos e experiências com vistas à autogo-
vernança das aldeias e das terras indígenas.
Os povos indígenas resistem a mais de meio
século a todo tipo de violências sociais, físi-
cas e culturais, o que demonstra o quanto
esses povos são guerreiros na luta por seus
direitos. Nesse processo de luta se aliaram à
educação escolar, que se tornou um instru-
mento essencial e estratégico para avançar,
mobilizar e conquistar espaços importantes
no cenário nacional.
O Ensino Médio, portanto, é uma espécie de
trampolim para os importantes passos que
as comunidades vão dar por meio dos jovens
indígenas, que uma vez formados ajudarão
a construir conhecimentos e experiências
visando à capacidade de autonomia das
aldeias e das terras indígenas por meio da
autogestão de projetos e processos socioe-
conômicos, ambientais e políticos sustentá-
veis, associando conhecimentos tradicionais
e modernos. É importante não restringir o
papel da escola e, em particular, do Ensino
Médio. Ao contrário, precisa ser qualificado
para atender a todas as demandas e interes-
ses legítimos dos povos indígenas, na sua
diversidade.
40
2.4eDuCAÇão Ao loNGo DA VIDA
Ivanilde Apoluceno de Oliveira32
Neste texto, analiso o tema “educação
ao longo da vida”, tendo como base três
questões sobre a educação de jovens,
adultos e idosos: (1) a educação como
aprendizado ao longo da vida, compre-
endendo-a como uma formação humana
contínua; (2) a educação como direito e
processo de inclusão socioeducacional,
evidenciando-se as políticas e práticas
escolares e não-escolares e (3) a forma-
ção de professores necessária à prática
docente com qualidade social.
inTRODuçãO
O objetivo deste texto é tecer algumas re-
flexões sobre minha participação como con-
sultora da série sobre Educação de Jovens e
Adultos, do programa Salto para o Futuro,
da TV Escola, cujo tema foi “Educação ao
Longo da Vida”. Esta série foi motivada pelo
fato de, pela primeira vez, o Brasil sediar a VI
Conferência Internacional de Educação de
Jovens e Adultos (CONFINTEA), promovida
pela UNESCO, na cidade de Belém do Pará, o
32 Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação e professora titular da Universidade do Estado do Pará. Doutora em Educação (Currículo) pela PUC-SP, com pós-doutoramento em Educação na PUC- RJ.
que oportunizou a chamada de atenção para
a política educacional e para as práticas es-
colares e não-escolares dessa modalidade de
ensino no Brasil e especificamente na Ama-
zônia.
Essas Conferências Internacionais vêm
consolidando o conceito de educação como
aprendizagem ao longo da vida. A Declaração
de Hamburgo (UNESCO, 1997), em seu Art. II
estabelece que “a educação ao longo da vida
implica repensar o conteúdo que reflita cer-
tos fatores como idade, igualdade entre os
sexos, necessidades especiais, idioma, cultu-
ra e disparidades econômicas”, tornando-se
fundamental para o exercício da cidadania e
para o processo de inclusão social. Concei-
tua a educação de jovens e adultos como:
“processo de aprendizagem formal ou in-
formal, onde pessoas consideradas ‘adul-
tas’ pela sociedade desenvolvem suas habi-
lidades, enriquecem seus conhecimentos e
aperfeiçoam suas qualificações técnicas ou
profissionais, direcionando-as para a satisfa-
ção de suas necessidades e as da sociedade”
41
(Art. III). Assim, a Educação de Jovens e Adul-
tos inclui a educação escolar e não-escolar
e acontece ao longo da vida, em diferentes
espaços da vida social.
Além da VI CONFINTEA, Belém sediou, tam-
bém, o Fórum da Sociedade Civil (FISC), que
mobilizou os movimentos sociais, as univer-
sidades e a sociedade civil, constituindo-se a
educação de pessoas jovens, adultas e idosas
centro do debate sobre a exclusão-inclusão
social e o processo de
democratização do
ensino, por meio do
acesso e permanên-
cia de todos à educa-
ção, cujo direito pre-
cisa estar garantido
nas políticas públicas
e fomentado pelos fó-
runs sociais.
A educação de jovens,
adultos e idosos tem
o olhar voltado para pessoas das classes po-
pulares, que não tiveram acesso à escola, na
faixa etária da chamada escolarização (dos
07 aos 14 anos) ou foram “evadidas” da es-
cola. População que na Amazônia se carac-
teriza pela diversidade sociocultural, por en-
volver: ribeirinhos, quilombolas, indígenas,
assentados, entre outros, que vivem situa-
ções de pobreza e de exclusão social (OLIVEI-
RA, 2009a). Pessoas excluídas pelo sistema
econômico-social e marginalizadas ao serem
rotuladas como “analfabetas”, demarcando
uma especificidade etária e sociocultural.
O analfabetismo é visto como uma forma
ideológica de silenciamento, tornando-se o
acesso das classes populares à alfabetização
uma questão de igualdade social e de direito
ao exercício da cidadania e à inclusão social
(OLIVEIRA, 1999).
A série “Educação ao longo da vida” possi-
bilitou-me, como consultora, em primeiro
lugar, conhecer os
bastidores de um pro-
grama de televisão e
a lógica de sua orga-
nização, desafiando-
me a pensar como re-
tratar uma realidade
tão complexa como a
educação de jovens,
adultos e idosos na
Amazônia Paraense
em mosaicos de in-
formações, que possi-
bilitassem aos telespectadores identificar e
compreender as principais questões levan-
tadas sobre o tema em debate. Em segundo
lugar, permitiu-me pesquisar sobre o assun-
to e dialogar com diferentes atores que tra-
balham com a educação de jovens e adultos,
estabelecendo relações interregionais, com
o objetivo de visualizar não apenas o cená-
rio amazônico, mas a diversidade educacio-
nal brasileira. E, por fim, estabelecer novas
relações interpessoais, possibilitando-me
O analfabetismo é visto
como uma forma ideológica
de silenciamento, tornando-
se o acesso das classes
populares à alfabetização
uma questão de igualdade
social e de direito ao
exercício da cidadania e à
inclusão social.
42
crescer em minha formação humana e pro-
fissional.
Apresento a seguir algumas questões sobre
educação de jovens, adultos e idosos tra-
tadas no decorrer da série: (1) a educação
como aprendizado ao longo da vida, com-
preendendo-a como uma formação humana
contínua; (2) a educação como direito e pro-
cesso de inclusão socioeducacional, eviden-
ciando-se as políticas e práticas escolares e
não-escolares e (3) a formação de professo-
res necessária à prática docente com quali-
dade social.
A EDucAçãO cOMO
APREnDizADO AO lOnGO DA
viDA
Oliveira (2009b) explica que a educabilidade,
no olhar de Paulo Freire, é uma ação especi-
ficamente humana; isto significa que o ser
humano se educa nas relações estabelecidas
no e com o mundo, em função da consci-
ência de seu inacabamento como pessoa
humana. Consciência que insere homens e
mulheres em um “permanente movimento
de busca a que se junta, necessariamente,
a capacidade de intervenção no mundo”
(FREIRE, 2000, p.120).
A educação, tendo o inacabamento huma-
no como suporte, consiste em um processo
de formação, situação de conhecimento, de
ação e de comunicação. Para Freire (1997, p.
154), “o sujeito que se abre ao mundo e aos
outros inaugura com o seu gesto a relação
dialógica em que se confirma como inquie-
tação e curiosidade, como inconclusão em
permanente movimento na História”.
Nesta perspectiva, a educação se processa
nas relações de homens e mulheres com o
mundo, de forma permanente, bem como a
educação tem como fim a própria formação
do ser humano. A educação é, também, um
processo histórico e sociocultural, porque
se desenvolve no tempo humano, através
das histórias de vida dos indivíduos e da his-
tória da sociedade.
Assim, a educação está relacionada à vida
humana. Crianças, jovens, adultos e idosos
estão sempre aprendendo ao longo da vida,
no cotidiano social e em diferentes espaços
educacionais. “Em casa, na rua, na igreja ou
na escola, de um modo ou de muitos, todos
nós envolvemos pedaços da vida com ela:
para aprender, para ensinar, para aprender-
e-ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou
para conviver, todos os dias misturamos a
vida com a educação” (BRANDÃO, 1982, p. 7).
Oliveira (2009b), no contexto da educação
de jovens e adultos, apresenta algumas
concepções de educação permanente. Nas
Diretrizes Curriculares para a Educação de
Jovens e Adultos - Parecer CEB n.11/2000
(BRASIL, 2000. In: SOARES, 2002), a educação
permanente refere-se predominantemen-
43
te às potencialidades e ao desenvolvimen-
to dos indivíduos, ou seja, é uma educação
que considera as necessidades e incentiva as
potencialidades dos educandos, bem como
promove a autonomia dos jovens e adultos,
para que sejam sujeitos da aprendizagem.
A educação permanente, para Gadotti (1981),
tem como objetivo a formação total do ser
humano, sendo um processo que se desen-
rola enquanto dura a vida e pressupõe rela-
ções com o outro. “A educação permanen-
te significa que não terminamos jamais de
nos tornar homens e que não terminamos
jamais de ser, de nos tornar juntos, a cami-
nho, ao longo das relações com o outro” (p.
168). Freire (1993, p.20) considera a educa-
ção permanente, pelo fato de o ser humano
ser finito e ter consciência de sua finitude,
bem como de, ao longo de sua história de
vida, “não apenas saber que vivia mas saber
que sabia e, assim saber que podia saber
mais”. Isto significa que o “ensinar-apren-
der” e o “aprender-ensinar” são constituin-
tes da existência humana e estão presentes
na ação educativa.
Aprender e ensinar fazem parte da exis-
tência humana, histórica e social, como
dela fazem parte a criação, a invenção,
a linguagem, o amor, o ódio, o espanto,
o medo, o desejo, a atração pelo risco,
a fé, a dúvida, a curiosidade, a arte, a
magia, a ciência, a tecnologia. E ensinar
e aprender cortando todas estas ativi-
dades [...] O ser humano jamais para de
educar-se (FREIRE,1993, p. 19 e 21).
Brandão (2002, p. 293-294) destaca que “a
educação é por toda a vida”, pelo fato de ser
uma “vivência solidária de criação de senti-
dos ao longo da vida e em cada um dos mo-
mentos da vida de cada ser humano”, não
podendo ser pensada como uma “preparação
para a vida”. A educação, então, deve “acom-
panhar, ao longo da vida, pessoas que se re-
criam ao reaprenderem sempre, e que devem
estar inseridas em comunidades de saber”.
Nas relações com o outro no mundo, o ser
humano, ao longo da vida, aprende e ensina,
cria sentidos para o que sabe e busca saber
mais, sendo formado como pessoa e cidadão
neste processo de busca de conhecimento.
Estuda-se e deve-se estar sempre apren-
dendo, porque se é desde sempre uma
pessoa cidadã, ou em construção da ci-
dadania desde a tenra infância, ao longo
de uma sempre contínua descoberta e
recriação de si-mesmo com, para e atra-
vés de outros. Para realizar isto é que se
estuda – dentro e fora da escola – e se
deve estar sempre aprendendo. Ao longo
de toda a vida, a educação destinada à
comunicação, e não ao trabalho desti-
nado à produção, deve ser a experiência
de identidade de cada um de nós (BRAN-
DÃO, 2002, p, 79).
Nesta perspectiva, a educação é um proces-
44
so ao longo da vida e o ser humano tem o di-
reito de ser educado independente de idade,
sexo, classe social e etnia.
A EDucAçãO cOMO DiREiTO
E PROcESSO DE incluSãO
SOciOEDucAciOnAl
A educação é constitucionalmente um di-
reito de todos, devendo ser ofertada pelo
Poder Público por meio da escolarização,
o que legitima a ideia de democratização
do sistema educacional. Estabelece-se uma
igualdade jurídica definida pela legislação,
mas que está ainda distante de ser efetivada,
pois encontramos um número expressivo de
pessoas sem acesso à escola. O número de
analfabetos no país corresponde a 10,38% da
população acima dos 15 anos (BRASIL, IBGE,
2006). No âmbito da escola existem, tam-
bém, situações de exclusão materializadas
pela discriminação, repetência e evasão. A
escola, então, reproduz a injustiça social ao
manter uma estrutura burocrática e hierár-
quica e práticas educacionais meritocráticas,
conteudistas e competitivas, que contribuem
para o fracasso e para a exclusão escolar.
Arroyo (1987) afirma que a questão não é
negar a escola e sim relativizá-la, conside-
rando que as políticas públicas direciona-
das ao processo de escolarização das clas-
ses populares não favorecem a educação
do povo através de suas lutas. Para ele, os
saberes provenientes das práticas sociais es-
tão deslocados da escola, bem como não são
valorizados, legitimando-se apenas o saber
escolar. Esse autor e Freire (1983) apontam
os limites políticos e pedagógicos da escola,
destacando que o processo educativo não
pode ser reduzido à escolarização, e indicam
a necessidade e a perspectiva de construção
de uma nova escola e de práticas pedagógi-
cas que estabeleçam “uma relação diferen-
te com o conhecimento e a sociedade”
(FREIRE, 1986, p 48). Assim, “reinventar a es-
cola” implica repensar novas formas de rela-
cionamento social nas práticas educativas,
que passam pela articulação entre o saber
escolar e o saber popular, a operacionaliza-
ção de práticas sociais democráticas, entre
outras. A perspectiva é a superação do ensi-
no conteudista e a preocupação com a for-
mação do ser humano nas suas relações so-
ciais “não apenas na escola, mas no social,
no real e na escola como parte desse real”
(ARROYO, 1987, p. 19). A educação, conforme
Brandão (2002, p.76), precisa ser pensada e
praticada “como um cenário multifocal de
experiências culturais de trocas de vivências
destinadas à criação entre-nós de saberes e
à partilha da experiência do exercício inaca-
bável de aprender”.
Neste sentido, a educação não pode ser re-
duzida ao espaço escolar, é preciso conside-
rar-se a possibilidade de o povo estruturar
seu pensamento, bem como manifestá-lo
em ações políticas e em propostas concre-
tas, na medida em que “a conquista da cida-
45
dania passa fundamentalmente pelo saber
que se adquire na luta política travada dia-
riamente para construir a cidadania” (AR-
ROYO, 1987, p.17).
As práticas educacionais não escolares com
jovens, adultos e idosos aparecem, então,
no cenário educacional brasileiro, na luta
dos movimentos sociais e de instituições
que, conscientes dos limites e das contra-
dições dos sistemas públicos de ensino,
reivindicam uma educação que atenda aos
interesses das classes populares. O conjunto
significativo dessas práticas situa-se no con-
texto da educação popular entendida como
“uma gama ampla de atividades educacio-
nais, cujo objetivo é estimular a participa-
ção política de grupos sociais subalternos
na transformação das condições opressivas
de sua existência social” (SILVA, 2000, apud
BRANDÃO, 2002, p.130).
Na visão de Freire e Nogueira (1989), a edu-
cação popular surge no Brasil, nos anos 1950
e 1960, por meio de críticas dos movimentos
sociais à escola bem como pelo desenvolvi-
mento de práticas educacionais que aten-
dam à população de jovens, adultos e idosos
excluídos pelo próprio sistema educacional.
Entretanto, as relações entre Estado e Socie-
dade Civil são conflituosas. Brandão (1986)
chama atenção para a visão simplista em
torno da denominação atribuída à educa-
ção de adultos ou educação oficial como
iniciativa do Estado e a educação popular
ou educação alternativa como uma prática
da sociedade civil, quando a principal dife-
rença está no projeto pedagógico de trans-
formação social. Os programas educativos
se diferenciam pelas propostas pedagógicas
construídas que podem estar pautadas em
práticas democráticas ou de domestica-
ção, de formação para a cidadania ou para
o mercado de trabalho. Isto significa que a
educação de jovens e adultos pode ser de-
senvolvida por diversas agências do Estado
e da Sociedade Civil, devendo-se considerar
como essencial o projeto político implícito
em suas ações.
Na visão de Freire (1995, p.53) “só numa
compreensão dialética da relação escola-
sociedade é possível não só entender, mas
trabalhar o papel fundamental da escola na
transformação da sociedade”. Isto significa
que as redes públicas de ensino precisam
pautar suas ações educacionais em uma vi-
são dialética de mundo, de educação e de
relação entre a escola e a sociedade.
As práticas educacionais não escolares ocu-
pam espaços diversificados: hospitais, cen-
tros comunitários, unidades de acolhimento
de idosos, sistemas prisionais, entre outros,
que são heterogêneas por envolverem diver-
sos segmentos sociais: universidades, mo-
vimentos sociais, organizações não gover-
namentais etc., tendo algumas um caráter
assistencialista, enquanto outras demarcam
uma posição política com as classes popula-
res. E são, justamente, as propostas pedagó-
gicas das práticas educacionais não escolares
46
que vêm demarcando a diferença em relação
às práticas escolares com jovens, adultos e
idosos, por apresentarem, de modo geral,
vínculo com a educação popular, cuja luta é
pela democratização do ensino e por melho-
res condições de vida das classes populares.
Consideramos práticas educacionais não-
escolares aquelas que se desenvolvem no
campo social e se apresentam como com-
plementares ou alternativas à educação es-
colar, familiar e comunitária (GARCIA, 2001,
apud ZUCCHETTI; MOURA, 2007), sendo,
portanto, diferenciadas das práticas que
ocorrem no âmbito da escola.
Essas práticas apresentam um caráter edu-
cativo-político, na medida em que se cons-
tituem em locus de formação para a cida-
dania e para a inclusão social de pessoas
jovens, adultas e idosas. Em primeiro lugar,
porque atendem a uma demanda não aten-
dida pelo Poder Público. Encontramos, por
exemplo, nos espaços hospitalares, pessoas
em tratamento de saúde ou acompanhando
algum familiar hospitalizado que permane-
cem longo tempo no hospital sem acesso
ao processo de escolarização, seja pelo não
acesso ao sistema escolar, seja por não exis-
tirem programas oficiais de atendimento a
jovens e adultos em hospitais. Segundo, há
por parte dessas práticas uma preocupação
com as especificidades etárias e socioculturais
no trabalho educativo. Desta forma, se há
necessidade de ser fomentada a sustentabi-
lidade financeira dos educandos adultos na
comunidade, práticas de economia solidária
podem ser desenvolvidas, entre outras. Ter-
ceiro, por apresentarem, de modo geral, re-
ferencial freireano, viabilizam uma formação
crítica dos educandos como sujeitos políticos,
que são respeitados no direito de dizerem
a sua palavra, assim como são valorizados
os seus saberes e o seu contexto cultural,
promovendo-se ações educativas solidárias.
Quarto, essas práticas vêm se constituindo
como motivadoras para que jovens, adultos e
idosos retornem aos estudos e posteriormente
ingressem na rede pública de ensino. O longo
tempo sem estudar, a baixa autoestima em
relação às suas dificuldades de aprendiza-
gem e a discriminação sofrida na sociedade,
por não serem escolarizados, faz com que
essa população da educação de jovens, adul-
tos e idosos sinta-se desmotivada em con-
tinuar os estudos. Neste sentido, participar
de projetos fora do sistema escolar e com
uma proposta pedagógica diferenciada da
tradicional, como a freireana, incentiva-os a
continuarem os estudos e a ingressarem no
ensino público regular.
Assim, as práticas não-escolares apresentam-
se como educativas porque se constituem em
uma Pedagogia Social, ou seja, pautada em
uma educação para a diversidade, engajada
política e eticamente com as problemáticas
sociais das populações historicamente nega-
das. Prática pedagógica que se configura em
luta pela inclusão social, que pressupõe uma
responsabilidade ética e política, em relação
ao Outro (OLIVEIRA; MOTA NETO, 2004). Nes-
47
te sentido, as práticas não-escolares de pes-
soas jovens, adultas e idosas não podem ser
vistas simplesmente como práticas “alterna-
tivas” ou de “menor valor” que as escolares,
e sim como ações educativas formadoras e
uma pedagogia social.
Conforme Oliveira (2009a), essas práticas não
vêm sendo valorizadas na política pública da
educação de jovens e adultos no Brasil, bem
como existe pouca interação com as práticas
escolares, observando-se, às vezes, proble-
mas na passagem dos educandos dos gru-
pos sociais organizados para a rede regular
de ensino, porque, enquanto os movimentos
sociais pautam-se em propostas pedagógicas
direcionadas às classes populares, as redes
oficiais de ensino, em geral, mantêm práticas
homogeneizadoras e universais. Além disso,
o problema de passagem dos programas de
alfabetização à escolarização ocorre muitas
vezes no âmbito do próprio Estado, pois vá-
rios programas e projetos de alfabetização
são financiados e coordenados pelo Poder
Público de forma dissociada da escolarização.
Gonçalves (2009) destaca duas questões de-
safiadoras em torno das práticas não esco-
lares das pessoas jovens, adultas e idosas,
comparadas com o processo de escolariza-
ção. A primeira é que conforme o 5º Indi-
cador Nacional de Alfabetismo Funcional
realizado no Brasil, em 2005, 5% da popu-
lação considerada sem escolaridade possui
saberes correspondentes ao que foi apresen-
tado na pesquisa como nível básico de alfa-
betismo, o equivalente a quem detém de 8
até 10 anos de escolarização. O autor proble-
matiza sobre esta situação: “quais os cami-
nhos percorridos pelos entrevistados para a
conquista desses níveis de alfabetismo fora
dos espaços formais de escolarização?” (p.
26). Fato que evidencia existir um proces-
so alfabetizador nas práticas não escolares
que precisa ser considerado, superando o
discurso que só a escola constitui locus de
aprendizagem. A segunda é a necessidade de
investigarmos o alcance das práticas não es-
colares no processo de inclusão social e edu-
cacional de pessoas jovens, adultas e idosas,
considerando que a valorização dos saberes
prévios dos educandos não é uma questão
simples. Afirma o autor que os saberes pré-
vios dos educandos não são coisas, são es-
tratégias de sensibilidade e de inteligência
que precisam ser investigadas e que essas
estratégias oscilam com as mudanças e as
demandas sociais, evidenciando “angústias,
sofrimentos, expectativas e esperanças de
quem aguarda uma nova oportunidade nos
espaços de escolarização e de formação para
a vida, a convivialidade e o trabalho digno”
(GONÇALVES, 2009, p.26).
Neste sentido, considerar a leitura de mun-
do dos educandos pressupõe uma prática di-
ferenciada e que atenda à heterogeneidade
cultural, às práticas sociais e às experiências
e expectativas de vida da população jovem,
adulta e idosa, bem como a uma formação
de professores que viabilize essa prática.
48
FORMAçãO DE PROFESSORES
nEcESSáRiA à PRáTicA DOcEnTE
cOM quAliDADE SOciAl
Machado (2009) apresenta dois movimentos
em relação às mudanças na formação de
professores da educação de jovens e adul-
tos: o primeiro, ligado aos órgãos oficiais
de governo, com a presença importante do
Conselho Nacional de Educação (CNE) que,
em 2000, estabeleceu as diretrizes curricu-
lares para a EJA, e o segundo, que advém da
sociedade civil organizada, com destaque
para os fóruns de EJA e o Grupo de Trabalho
de Educação de Jovens e Adultos, da Associa-
ção Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa
em Educação (ANPED).
A política de educação de jovens e adultos,
por meio das Diretrizes Curriculares, apon-
ta para a necessidade de uma formação de
qualidade ao professor que atua nesta mo-
dalidade de ensino, ao estabelecer uma for-
mação qualificada e contínua para o docente,
visando superar a prática leiga e voluntária
na educação de jovens e adultos. Essas Dire-
trizes propõem uma formação geral corres-
pondente a todo e qualquer professor e uma
formação específica direcionada à complexi-
dade e características da educação de jovens
e adultos, além do aperfeiçoamento profis-
sional continuado. Indicam, ainda, a forma-
ção docente associada à pesquisa, ressaltando
a importância da universidade como locus
de formação. Duas questões se apresentam:
como realizar essa formação? Em que bases
teórico-metodológicas?
Machado (2009) enfatiza que o Fórum de EJA
contribui para o debate sobre a formação de
professores ao propor: a criação de uma rede
de formação e pesquisa, com a colaboração
das universidades, dos fóruns e da ANPED;
a garantia pela esfera pública de formação
inicial e continuada para a EJA; a pesquisa
como princípio orientador da formação; a
garantia de acesso a cursos gratuitos de li-
cenciatura em EJA. E a pesquisa sobre a for-
mação de professores para a EJA apresentada
na ANPED exerce “o papel de denúncia, reve-
lando as fragilidades nas poucas estratégias
de formação ou a ausência dela, ainda reve-
la experiências importantes na formação de
professores e contribui para colocar a preo-
cupação com a modalidade de EJA na pauta
das reivindicações nacionais” (p. 35).
Destaco, também, que as práticas não es-
colares realizadas pelos movimentos de
educação popular se dimensionam como
formadoras daqueles que realizam o traba-
lho educativo, cuja formação se processa na
práxis pedagógica, na reflexão sobre a ação
desenvolvida, ao assumirem os desafios éti-
cos e políticos que os espaços educativos e a
demanda dos sujeitos impõem, bem como
pelas relações interpessoais que estabele-
cem, cujo vínculo tem se caracterizado pela
sensibilidade, afetividade e amizade.
49
cOnSiDERAçõES FinAiS
A educação de pessoas jovens, adultas e ido-
sas é vista pelas políticas públicas e fóruns
da sociedade civil como um processo ao lon-
go da vida, tendo o ser humano o direito de
ser educado independente de idade, sexo,
classe social e etnia. A aprendizagem faz
parte da vida dos indivíduos em suas inte-
rações e práticas so-
ciais, sendo efetivada
em diversos espaços
educacionais.
No âmbito dessa mo-
dalidade de ensino, a
relação entre as prá-
ticas escolares e não
escolares apresenta
conflitos e algumas
questões são eviden-
ciadas: a passagem
do processo da alfa-
betização nas práti-
cas não-escolares para a escolarização; a
não valorização pelas políticas públicas des-
sas práticas, vistas como alternativas, mas
que apresentam indicadores de qualidade,
constituindo campo aberto para estudos.
Em termos da formação de professores da
EJA, as instâncias governamentais e as da so-
ciedade civil vêm apresentando indicadores
para uma nova formação pautada na pesqui-
sa como princípio educativo e efetivada por
meio da formação inicial e da continuada.
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A educação de pessoas
jovens, adultas e idosas é
vista pelas políticas
públicas e fóruns da
sociedade civil como um
processo ao longo da
vida, tendo o ser humano
o direito de ser educado
independente de idade,
sexo, classe social e etnia.
50
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51
2.5eDuCAÇão De JoVeNS e ADulToS e FoRmAÇão CoNTINuADA De PRoFeSSoReS meDIADAS PelA TeCNoloGIA: muDANÇAS e SAlToS
Jane Paiva33
inTRODuçãO
Não me dava conta de há quanto tempo
iniciara minha participação no Salto para o
Futuro. Saber que o programa completou 20
anos em 2011 traz à memória a necessidade
de algumas reflexões sobre essa vitalidade,
continuidade e permanência, quando tanto
se afirma em relação à descontinuidade de
políticas públicas na área da educação. Mi-
nha participação não tem o mesmo tempo
que o programa, mas 15 anos são passados
desde que fui convidada a fazer o Salto pela
primeira vez, como especialista de uma sé-
rie de Educação de Jovens e Adultos (EJA).
A experiência no Salto havia sido antecedida
pela produção de duas séries via rádio do pro-
grama Verso e Reverso: Educando o Educador,
da extinta Fundação Educar, a primeira em
convênio com a Rádio Manchete, e a segun-
da com a própria Fundação Roquette Pinto/
Rádio MEC, interrompida com a extinção, em
1990, da Fundação Educar34. A segunda expe-
riência, especialmente, trouxe a possibilidade
de dialogar, em uma equipe multidisciplinar,
sobre o significado de um programa de rádio
na formação de educadores, conseguindo re-
alizar, nos 13 programas que chegaram a ser
produzidos e veiculados, uma nova lógica
para programas com intencionalidade educa-
tiva, que não se perdessem da linguagem e do
poder do meio rádio. Buscavam-se novas prá-
ticas de uso de mídias correntes para a abor-
dagem de questões educativas, e para isso a
visão transdisciplinar possibilitava interlocu-
33 Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação (ProPEd) e do Curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), da área de educação de jovens e adultos; Doutora em Educação pela UFF.
34 A instituição foi extinta no “calor” dos apoios aos projetos de “caçador de marajás” do presidente eleito Fernando Collor de Mello, pouco depois afastado pelo impeachment.
52
ção constante com profissionais de diferen-
tes áreas – da educação e da comunicação —,
interessados em compreender possibilidades
de epistemologias do Sul (SANTOS; MENESES,
2010) expressarem um modo próprio de dizer
os conhecimentos reinventados no cotidiano
dos fazeres pedagógicos. Ao se adotar a con-
cepção de que o conhecimento não está pron-
to e acabado, mas em constante produção e,
por isso mesmo, é necessária uma visão mais
totalizante das questões, rompendo com a
lógica do fragmento que distorce, quase sem-
pre, a realidade, punha-se em marcha não
apenas um programa de mídia radiofônica,
mas a construção de outro paradigma para
compreender, produzir e apreender tecnolo-
gias, usos e restrições dessas tecnologias.
As memórias de como as séries foram sen-
do pensadas e produzidas acompanham os
avanços da televisão brasileira, seja no apro-
veitamento de técnicas e recursos, seja na
concepção de programas educativos, seja no
timing de desenvolvimento das temáticas e
das linguagens televisivas, seja na apropria-
ção de técnicas, recursos e conhecimento
pelos profissionais da área técnica e da área
pedagógica. Resgatar parte dessa “história”
pela memória de especialistas com diferen-
tes inserções nesse programa reconstitui a
trajetória da formação continuada de pro-
fessores — como programa educativo — em
suporte tecnológico, cuja origem tem em
Roquette Pinto seu primeiro incentivador.
A cada série de EJA, entretanto, posso perce-
ber como o papel do especialista pedagógico
foi sendo redimensionado, o que tanto pode
indicar os modos como o educativo passou a
ocupar a atuação profissional de técnicos em
televisão quanto como esse educativo deixa
de ser específico, massificado pelos formatos,
modelos, índices de audiência — exigentes de
programas mais “parecidos” com os produ-
zidos pela mídia comercial e “palatáveis” aos
espectadores, cujo gosto se “educou” para um
determinado formato. Antes, o especialista
pedagógico tinha funções além da proposição
de concepções de programas, indo até ao vi-
sionamento de material gravado e marcação
de trechos para possível utilização; indicação
de coberturas de imagens para offs; de músi-
cas para fundo; de experiências concretas para
filmagem e de sujeitos para entrevistas. Mas,
nos últimos tempos, essa atuação reduziu-se
bastante, cabendo aos técnicos da emissora
o compromisso de produzir — traduzindo — a
proposta organizada, o que algumas vezes in-
fluiu no resultado pretendido, mesmo se con-
siderando a exigência determinada por novos
formatos, de tempos em tempos.
Meu primeiro Salto, em 1995, foi seguido de
outro em 199735, de várias participações em
35 Nessas duas primeiras séries tive como parceira a Profª Wanda Medrado Abrantes, especialista em EJA, com quem partilhei a experiência intensamente. Na primeira, a supervisão coube ao Prof. José Peixoto Filho.
53
temáticas correlatas, de novas séries nos
anos 2000, mas sempre em torno de múlti-
plas facetas que tangenciavam a EJA.
Quando o convite para a primeira série se
apresentou, vivia-se um tempo em que a EJA
não tinha lugar como política pública, bani-
da da oficialidade desde que em 1990 a Fun-
dação Educar fora extinta. Durante toda a
década de 1990, o que restara da EJA cabia à
sociedade, a organizações não governamen-
tais, ao Sistema S e, especialmente, à ação
assistencialista propugnada e mantida com
recursos públicos, inicialmente no âmbito
do programa Comunidade Solidária36 e, pos-
teriormente, na ONG Alfabetização Solidária
— ONG sem concorrentes, para a qual mi-
gravam diretamente 50% dos recursos, gra-
vados em orçamento da União —, mantene-
dora de proposta considerada, pela própria
gestão, com função mobilizadora, mais do
que alfabetizadora. Era, pois, surpreendente
que o Salto — um programa federal de rede
de televisão educativa pública37 — assumisse
em sua programação uma série sobre a te-
mática, nos anos em que a EJA não era prio-
ridade nas políticas públicas38.
Mas o Salto, ligado à realidade de professo-
res que o assistiam, e para os quais existia
como possibilidade de formação continua-
da, coerente com demandas de educadores,
trouxe a série para a programação, à época
com 20 programas diários, com duas espe-
cialistas no ar, diariamente, sob a supervisão
de um terceiro especialista. Juntos, propu-
seram a proposta pedagógica da série, com
ementas e 20 textos base para os programas,
publicados e distribuídos em boletim nos
polos de recepção.
Cinco temáticas constituíam os eixos da
série e visavam responder questões postas
como fundamentos teóricos da proposta pe-
dagógica e a problematizar outras relativas
às práticas na educação de jovens e adultos.
36 Comunidade Solidária foi um programa desenvolvido pela primeira dama do governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), com recursos públicos e apoio empresarial, especialmente paulista. Dele, nasceu o Alfabetização Solidária, em que custo de um analfabeto era repartido meio a meio entre União e empresariado, e cujo slogan mais conhecido era “Adote um analfabeto”. Pouco mais tarde, o programa organizou-se como uma ONG, com “parceria” de universidades públicas e privadas, segundo um desenho previamente definido de implantação, desenvolvimento, pagamento, valores etc. A entidade funciona ainda hoje, e suas ações podem ser conhecidas em site próprio.
37 Essa rede passou por muitas mudanças ao longo dos anos, o que pode ser verificado nos registros da emissora, não cabendo a mim, nesse espaço de artigo, fazê-lo.
38 É dessa década a célebre afirmação do ministro Goldenberg, ao se referir aos analfabetos como não ocupantes de um bom lugar, mas como aquele que já haviam ocupado, sendo melhor não tentar tirá-los de lá. Do mesmo modo, o ministro Paulo Renato Souza justificou-se quando da V Conferência Internacional de Educação de Jovens e Adultos (CONFINTEA), por declarar, no Encontro Regional Latino-Americano realizado em Brasília, precedendo o evento internacional em Hamburgo em 1997, que a prioridade do país, não tendo como atender a todos, eram as crianças — o que reiterou no documento levado a Hamburgo, o que equivalia a dizer o mesmo que o ministro anterior dissera em relação a sujeitos adultos e idosos não alfabetizados, e gravado na história da EJA ainda com mais intensidade com a fala de Darci Ribeiro, em 1989, no Congresso Brasileiro de Alfabetização, em São Paulo, ao pedir aos presentes: “deixem os velhinhos morrerem em paz”!
54
A essas temáticas correspondiam progra-
mas, contemplando as definições das emen-
tas39.
Os programas, de 1 hora de duração, iam ao
ar diariamente, durante 20 dias, ao vivo na
TV aberta, com a presença das duas especia-
listas. A experiência da interatividade acon-
tecia com determinados polos, em link com
a emissora, o que nem sempre resultava em
imagem, ou em áudio adequados, fazendo
com que a interlocução direta com os polos
ficasse, muitas vezes, comprometida no uso
desse recurso. De outra feita, percebia-se
uma certa hierarquia no polo linkado para
formular perguntas: professores não as fa-
ziam diretamente, suas perguntas eram “in-
terpretadas” pela coordenação. Mas tam-
bém era prazeroso encontrar professores
que diariamente faziam reflexões sobre os
textos do boletim, demonstrando a cumpli-
cidade com as temáticas, suas experiências
e — melhor — seu compromisso com o pro-
cesso de formação de que participavam.
Experiências gravadas por indicação das es-
pecialistas compunham os takes editados.
Após a exibição, 30 minutos de rádio, em
estúdio, levavam as discussões do mesmo
tema a lugares ainda mais distantes, tra-
vando novas interlocuções com professores
e com o público em geral. A programação,
em TV aberta, não raramente alcançava es-
pectadores comuns, encantados com o pro-
grama, permanentes acompanhadores das
ofertas do canal e propositores de questões
aos especialistas40. Além da TV e do rádio,
a interatividade com os professores em for-
mação era buscada pelo telefone, uma fer-
ramenta potente que conectava professores
ao programa e aos especialistas, assim como
o fax, por meio do qual, diariamente, uma
enxurrada de perguntas — e de novos textos
produzidos pelas especialistas, em resposta
— circulavam, dialogando com seus formu-
ladores, problematizando-as. Esse material
— vasto, intenso, resultante do diálogo com
as práticas e com as lógicas e concepções
docentes — carece ainda de tratamento, pela
39 As temáticas foram: Temática 1: Educação de jovens e adultos: visão histórica (Programa nº 1: Educação de jovens e adultos: uma história negada; Programa nº 2: Alfabetização de adultos: conceitos e preconceitos); Temática 2: Os sujeitos envolvidos no processo de educação de jovens e adultos (Programa nº 3: Partir da realidade do aluno... o que é isso?; Programa nº 4: Espelho, espelho meu: diga-lhes quem sou eu!; Programa nº 5: Professor ou professora? Que história é essa?;Programa nº 6: Sonhos e realidade); Temática 3: O Projeto Pedagógico da Educação de Jovens e Adultos (Programa nº 7: A educação que queremos; Programa nº 8: Que conteúdos? Dilemas da educação de jovens e adultos; Programa nº 9: Cotidiano escolar: opressão ou liberdade?); Temática 4: As produções dos jovens e adultos (Programa nº 10: Eu sei. Tu sabes?; Programa nº 11: Trabalho: a mão na massa; Programa nº 12: Nem escritores, nem reprodutores: autores; Programa nº 13: Fazendo história); Temática 5: As práticas pedagógicas na educação de jovens e adultos (Programa nº 14: Somos 30 milhões de analfabetos...; Programa nº 15: Textos: tecendo os sentidos; Programa nº 16: Ler e compreender o mundo; Programa nº 17: Pensando matematicamente; Programa nº 18: Cultura científica e tecnológica: de espectador a intérprete; Programa nº 19: Avaliação: um monstro? Um bicho-de-sete-cabeças?; Programa nº 20: Sala de aula: luz, câmera e ação!).
40 Este parece ser um ponto bastante diverso da realidade pela qual se foi configurando o Salto ao longo dos anos: passar da condição de TV aberta para canal fechado, restringindo públicos e horários, consequentemente.
55
riqueza de questões apresentadas, concep-
ções assumidas e experiências relatadas.
Apesar de, em muitas ocasiões, se ter de-
cidido pela sua recuperação, apreciação e,
quem sabe, talvez, publicação, numa espé-
cie de conversa ao pé do ouvido com educa-
dores, essa memória permanece submersa.
Em 1997, a decisão de uma nova série propôs
aproveitar a produção da série de 1995, com
algumas mudanças: de vídeos de experiências
apresentadas em alguns programas, cuja lógi-
ca de escolha não respondia à indicação ori-
ginalmente feita; de substituição, por novos,
de até três programas; de “encolhimento” da
série para 17 programas. A essa margem de
reconfiguração, somava-se mudança ao for-
mato: a cada dia uma especialista poderia ser
acompanhada da outra, mas não necessaria-
mente. A escolha poderia, por exemplo, recair
sobre o convite a um especialista do tema em
discussão, de abordagem mais ampla, que dia-
logaria com a perspectiva da educação de jo-
vens e adultos. Os textos, do mesmo modo que
os programas, sofreriam as alterações em con-
comitância às escolhas realizadas, mas ainda
todos elaborados pelas especialistas da série.
No ar, ao vivo, diariamente, o programa já não
dispunha mais do veículo rádio, mas o telefone
e o fax permaneciam como ferramentas mais
fortes da interatividade.
A participação como especialista, no Salto,
veio-se fazendo pela compreensão de serem
os educadores de EJA – público a quem o pro-
grama se destinava precipuamente —, também
jovens e adultos em processos de aprender por
toda a vida, de formação continuada (PAIVA,
2010). Essa concepção de formação, portanto,
considerava a condição de trabalhadores des-
ses educadores, de sujeitos de um continuado
processo de aprendizagem, de serem também
eles educandos culturalmente constituídos no
resgate de suas identidades e, por fim, de edu-
cadores de sujeitos em quase tudo muito asse-
melhados às próprias condições, pela história
de lutas e carências que marcam trabalhadores
professores e trabalhadores subalternizados —
público da EJA — no país. A concepção de EJA,
assim tomada, traduzia a função qualificadora
do Parecer CNE no. 11/2000, que propugna a
ideia de aprender por toda a vida – condição e
base da formação de sujeitos humanos; modo
como os sujeitos se põem no mundo: pela ex-
periência.
Ao mesmo tempo em que se desenvolvia tal
concepção de formação, o avanço do conhe-
cimento, ao longo dos anos, produziu estu-
dos e reflexões quanto à utilização de tecno-
logias da comunicação e da informação, e
a então chamada teleducação, contempora-
neamente, passou a integrar o conjunto de
ambientes virtuais de aprendizagem.
Além dessa fundamentação que sustenta um
modo de (auto)formar educadores e de fazer
educação, tomavam-se como referência al-
guns aspectos da comunicação que orientam
a prática, visto que a interação de sujeitos
56
que aprendem depende, diretamente, da co-
municação. Um desses aspectos diz respeito
à preocupação com a recepção, que envolve
modos culturais de apreender e compreen-
der o mundo e tudo o que ele significa para
cada sujeito — os mundos criados e assim co-
nhecidos por cada um de nós, aprendentes.
DiScuTinDO uM AMBiEnTE DE
APREnDizAGEM PARA A (AuTO)
FORMAçãO DE PROFESSORES
Poder-se-ia dizer
que a televisão
foi, para o Salto, o
grande veículo/fer-
ramenta que confi-
gurou o ambiente
de aprendizagem
do programa. Ao
longo de todos es-
ses anos, entre-
tanto, esse veículo
nunca esteve sozi-
nho. Da televisão e do rádio — sempre tão
pouco explorado para essa função forma-
dora — ao impresso, telefone, fax, e, mais
recentemente a Internet, o programa tem
experienciado formatos, recursos, dinâ-
micas, âncoras, especialistas, cenários,
sempre em busca de maior interatividade/
aproximação com seu público, apesar de
o canal fechado interpor-se como limite
considerável à disseminação da proposta
de (auto)formação.
Se é verdade que a mensagem, em tese,
chega para todos, só o faz, para os que a
acessam, segundo formas particulares de
percebê-la, o que significa levar em conta
experiências anteriores, leituras de mundo,
significados construídos sobre formas de co-
municação. Não há, por essa compreensão,
possibilidade de admitir homogeneização
da recepção, constituindo, essa premissa,
justamente, sua riqueza, pela diversidade
de sentidos que podem ser produzidos pelos
sujeitos que, assim,
se (auto)formam.
Programas educa-
tivos, ao adotarem
alguns tipos de mo-
delagem, excluindo
diferentes possibili-
dades de linguagem
e de interpretação
da realidade, ainda
inquietam quando
se trata do veículo
televisão. Por exemplo, quando se adota o
modelo de clips, que fragmentam imagens e
dificultam a visão da totalidade; quando se
editam depoimentos, extraindo-os do con-
texto em que são enunciados os discursos
e produzindo “outros” discursos. Mas tam-
bém a inquietação se amplia, quando se adi-
ciona o pressuposto base de que toda forma-
ção passa por um processo integral que não
se restringe, apenas, a conhecimentos de
natureza intelectual, mas que toca e “fala”
Programas educativos,
ao adotarem alguns tipos
de modelagem, excluindo
diferentes possibilidades
de linguagem e de
interpretação da realidade,
ainda inquietam quando se
trata do veículo televisão.
57
aos sentidos, às emoções, às percepções, às
experiências. O uso, portanto, de diferen-
tes “textos” — expressões, narrações, ima-
gens que revelam sentidos, depoimentos, a
música, a dança, a poesia, o texto escrito,
imagético e declamado, pinturas, formas de
representação artística etc. — passa a ser in-
dispensável ao se pensar um programa de
formação continuada de professores. Não
basta, para formar educadores, apresentar
conteúdos pedagógicos, nem experiências,
mesmo quando emitidas por renomados es-
pecialistas, por suposição de que os profes-
sores não sabem determinados conteúdos,
de diferentes áreas. A formação do educa-
dor precisa de muito mais. Um programa
educativo — que não esgota, nele mesmo,
possibilidades — ao se valer desses recursos,
aproxima o professor das próprias vivências
e, ao repensá-las, toma como horizonte de
(re)descobertas a sala de aula, que se am-
plia, na comparação com outros fazeres/
possibilidades.
A importância do recurso tecnológico que
a televisão representa para fazer chegar, a
um universo de professores, um determina-
do tipo de mensagem também implica ad-
mitir que a formação assim pensada revela
intencionalidades, controles, concepções e
expectativa de resultados (o atingimento de
objetivos) e, de certo modo, “padroniza” um
processo de formação. Se, por um lado, isto
pode ser visto como vantagem, pelo fato de
pressupor o poder de dizer a tantos o que
se deseja, por outro, cabe refletir sobre os
riscos que tal poder pode representar. Os
ambientes de aprendizagem que envolvem
a condição a distância são inexoráveis nas
sociedades contemporâneas e, por isso mes-
mo, apropriar-se deles faz parte das políticas
de formação. Entretanto, esses ambientes
não excluem nem substituem o papel e o
trabalho interativo de aprendizados presen-
ciais, mantidos em experiência direta com
professores, pelos sentidos humanos do que
aprender significa: experienciar e apreender,
na relação com o outro, objetos de conheci-
mento. Esses momentos presenciais — tam-
bém ambientes de aprendizagem — comple-
mentam, ampliam, enriquecem, produzem,
reelaboram e ressignificam textos e senti-
dos, porque se dispõe de um tempo que a
televisão não possibilita, exigíveis para que
esses processos se deem. A mediação entre
seres humanos, mais próxima, sem limites
da técnica e da tecnologia que imputam
rupturas, formas de dizer, tempos de dizer,
sinais, simulações que servem ao efeito fi-
nal, carrega as emoções da interação direta.
Ao se desenvolver o conceito de interativi-
dade, põe-se em jogo a ilusão — para técni-
cos e especialistas, e para espectadores — da
participação, da interação, da interferência,
quando o que rege essa relação são os limi-
tes e escolhas da técnica e de seus instru-
mentos, submetidos ao poder de quem os
detém ou de quem sabe manejá-los. O false-
amento da realidade pode criar inversões de
58
papéis e de atributos, simulando competên-
cias e conhecimentos em quem não os tem,
e até mesmo transferindo-os para profissio-
nais da televisão.
Não deter o conhecimento da dinâmica que
cerca a construção/produção de um pro-
grama de formação pela televisão, e não
investigar como professores participam
dessa ilusão; como se colocam na condição
de espectadores; que sentidos criam para o
curso que frequentam, entre muitas outras
questões, ao serem desveladas, ajudarão a
melhor precisar os rumos e definições do
modelo de formação pela mídia, possível
e demandado pelos usuários. O questiona-
mento que cerca essa argumentação não se
opõe, em princípio, à ideia de como se pro-
duzem programas para o veículo, mas pre-
tende sinalizar aspectos, para que se man-
tenham a perspectiva e o senso de realidade
em relação ao 'para quem' se fazem esses
programas e ao 'por que' são feitos.
O que se quer, em síntese, é também sus-
citar nos profissionais de televisão questões
sobre o próprio fazer, intimamente imbri-
cado com os sujeitos professores que dele
participam. Questões que, observadas por
quem está do outro lado do estúdio, mas que
participou, com estranhamento, do lado de
dentro, como forasteiro com seu saber, pos-
sam contribuir para repensar modelos, for-
matos e lógicas da produção educativa, em
especial, da formação continuada: em que
medida profissionais de televisão costumam
indagar sobre o que seu trabalho pode acar-
retar em destinatários finais de um progra-
ma? Avalia-se o quanto um programa atin-
ge uma audiência apenas pelo número de
transmissores ligados, ou pelo que impacta?
E de que modo se avaliam impactos? A quem
importam os efeitos causados? Têm servido
para modificar, por exemplo, formatos, pro-
gramações, modos de dizer, interferências
de âncoras? Ou quem sabe fazer televisão
se basta quando a faz bem, sem avaliar im-
pactos sociais? Como educadora também,
e pesquisadora, estas questões não podem
estar fora do debate, considerando a experi-
ência até então vivida.
Na continuidade do resgate da memória das
séries de EJA, aponto, ainda, aspectos das sé-
ries que merecem reflexão e debate.
AvAliAnDO AS SéRiES
Nesse item, apresento algumas questões
relacionadas à produção e a produtos que
envolvem, no todo, aspectos referentes a
profissionais, seus fazeres, concepções e
técnicas do fazer televisão e programas edu-
cativos.
SOBRE PROcESSOS DE PRODuçãO
E PRODuTOS
Formatos são sempre apostas, escolhidas
com base em critérios menos vinculados à
59
natureza do programa que se faz, do que
a um certo modo de “ver” televisão, hege-
mônico, que a grande mídia passou a pro-
duzir. A base teórica com a qual se trabalha
em processos de formação continuada de
professores não exclui o belo, o lúdico, as
diferentes formas de linguagem com seus
tempos, ritmos, movimentos. Os recursos
fantásticos de que dispõem as emissoras po-
deriam trazer, para professores em forma-
ção, em nível nacional, caminhos não co-
nhecidos, inimagináveis, da arte, da música,
da literatura, da pedagogia, das ciências etc.
Recomendar ao professor o trabalho com
essas linguagens e recursos com alunos,
sem conseguir explorá-los em programas de
formação continuada, deixa escapar a possi-
bilidade de propiciar vivências de situações
diferenciadas dos esquemas e modelos com
os quais conviveram em suas vidas escola-
res, em cursos de formação inicial para o
magistério, e com que convivem, ainda, no
exercício de práticas pedagógicas.
A liberdade de “voar” pode ser reforçada pe-
las escolhas e tratamento de poemas e de
linguagens afins, de exercício da experiência
do olhar diante de situações diversificadas
de estética do cotidiano das escolas, quase
sempre afastadas dos contextos de vida e de
condições de trabalho docente.
Como incorrigível aprendiz, e aberta a apre-
ender cada vez mais sobre o que é fazer tele-
visão, expressar outros pontos de vista, ou-
tras informações, pode ampliar a discussão
e quebrar certa linearidade da visão que per-
passa, há alguns anos, a televisão no Brasil
e, de modo assemelhado, a dos programas
educativos, nos quais a formação continua-
da se insere, que nem sempre buscam iden-
tidade própria, valendo-se da forjada pelas
TVs comerciais. O compromisso com a for-
mação de educadores desafia e orienta ou-
sadias que cometo, por vício de ofício, em
minha prática profissional.
A aproximação entre especialistas, roteiris-
tas, produtores e diretores auxiliaria trocas,
reveladas nos argumentos de todas as partes.
O distanciamento, pelo contrário, pode com-
prometer a visão de roteiristas e acabar por
não refletir sentidos originais do texto; faz
com que abordagens da direção encubram
aspectos que poderiam ser relevados etc.
Um aspecto a destacar, especialmente quan-
do se trata da EJA, é a tendência de sobreva-
lorizar a vida das camadas populares, com
ênfase excessiva nos textos duros que pro-
duzem nos cotidianos. Soluções mais equi-
libradas podem fazer a síntese entre a bele-
za, a estética, a música, a arte e a vida dos
sujeitos dessa modalidade de educação, se
todos os envolvidos detêm conhecimentos
mínimos sobre quem são os sujeitos a quem
se destinam os programas.
Por força do modo como a televisão se cons-
tituiu no Brasil, ainda prevalecem imagens
60
estereotipadas de grupos e classes sociais,
fortalecendo a ideologia hegemônica de su-
perioridade de uma classe sobre as demais.
Essa visão desrespeita especialistas, professo-
res e sujeitos jovens e adultos, quando não se
consegue romper com uma lógica que falseia
a realidade, se se impede o espaço para ne-
gociar alternativas, guardando requisitos da
técnica e da geração de imagem, mas atento
a identidades pessoais e profissionais dos que
são representados.
Ao introduzir-me
no domínio de uma
linguagem e de no-
vas aprendizagens
em tempos curtos
— essa também uma
característica da te-
levisão —, em que
a necessidade do
êxito, do acerto, é
cotidiana, e não se
conserta, não se re-
faz, no dia seguinte,
aprendi a considerar esses limites na relação
intensa com as tensões geradas pelas exigên-
cias de um programa ao vivo. Se o ao vivo pa-
rece pressupor uma maior flexibilidade para
admitir o erro, o improviso, por outro lado,
gera maior rigor, por se saber que não há
retorno, não se desfaz, para tentar de novo.
Entretanto, o tempo — e sempre ele —, é bre-
víssimo, no modelo instituído de discursos,
pois para se chegar à construção de reflexões
que sugiram o movimento do pensamento
de sujeitos em formação, faz-se também um
movimento de pensamento e de argumenta-
ção de que se lança mão e que exige tempo.
O tempo da televisão educativa, entretanto,
frequentemente guarda a mesma lógica que
serve às TVs comerciais e a outros programas,
comprometendo objetivos de desconstrução
da lógica do dual: sim/não; certo/errado; per-
feito/imperfeito; conservador/progressista
etc., que cabem melhor em tempos encurta-
dos, mas são impen-
sáveis para deslocar
pessoas — e seus sa-
beres — e pensamen-
tos.
FinAlizAnDO
O espírito deste tex-
to traduz concep-
ções já tra tadas em
programas do Salto,
quanto ao que se
concebe como ava-
liação. Coerentemente com essas concep-
ções, acredito que nada está pronto, aca-
bado e, portanto, é passível de revisão, de
crítica, de avanço. Na perspectiva da possi-
bilidade de avanço é que demarco algumas
ideias, questionamentos, afirmações, dúvi-
das, para provocar, ainda uma vez, o deba-
te, o encontro, o confronto do pensamento
pedagógico com o pensamento da comuni-
cação, de modo a favorecer novas sínteses.
Por força do modo como a
televisão se constituiu no
Brasil, ainda prevalecem
imagens estereotipadas
de grupos e classes
sociais, fortalecendo a
ideologia hegemônica
de superioridade de uma
classe sobre as demais.
61
A educação de jovens e adultos passou, ao
longo de todos esses anos, pode-se afirmar,
a despeito dos embates políticos e das lutas
pela garantia do direito à educação para to-
dos, no país, a ter um lugar na programação
do Salto, desde que, em 1995, a primeira sé-
rie foi realizada. Das amplas séries de 20 pro-
gramas diários, a formatos mais compactos,
de cinco programas, muitas mudanças fo-
ram inseridas nos desenhos dessas séries,
certamente em busca de acertos no timing
dos professores em processos de formação
continuada, mas também nos tempos que
a televisão e seus gestores e técnicos esta-
belecem para atender critérios de velocida-
de da informação, captura do interesse da
audiência, economicidade, aproveitamento
de produtos etc. Especular em torno dessas
razões é necessário para, quem sabe, provo-
car respostas dos gestores de TVs educativas
em relação a questões bastante obscuras e
pouco visíveis para quem participa com seu
saber da constituição de programas em de-
terminadas áreas do conhecimento, e para
quem se interessa, curiosamente, como pes-
quisadora, pelas formas como a mídia dis-
põe o fazer televisão no país.
Não se pode deixar de fora, em se tratando
de programas, a questão da descontinuidade
que se coloca sempre como fantasma sobre
toda e qualquer proposta. No caso do Salto
jamais ocorreu descontinuidade, mesmo em
momentos de esvaziamento do órgão fede-
ral que o produz; em situações de mudança
e de inflexões sobre o caráter da emissora;
em alocação e subordinação a um novo or-
ganograma do poder.
As temáticas das séries produzidas sobre a
educação de jovens e adultos, assim como
sua produção, acompanharam inflexões
das políticas ao longo dos anos e de um
tempo em que esteve mais fora de cena —
correspondente à política de prioridade à
educação de crianças de ensino fundamen-
tal —, a um tempo de EJA como prioridade
na composição do projeto de nação. Nesse
tempo mais recente, o desdobramento da
EJA reiterou a diversidade de sujeitos, seus
requerimentos, abordagens pedagógicas e
de conhecimentos por parte de professores,
além de compreensão histórica do sentido
de educar jovens e adultos em sintonia com
amplos debates nacionais e internacionais,
captados e assentes nos debates e nas pro-
postas que integraram a formação continu-
ada do Salto para a área. Quilombolas, indí-
genas, internos penitenciários, diversidade
étnico-racial e muitas outras questões esti-
veram em diálogo com a produção do currí-
culo, com a formação de leitores e de escri-
tores, enfim, com a educação como direito
de todos, independentemente da idade, nos
termos preceituados e garantidos constitu-
cionalmente.
A despeito de aonde chega a televisão fecha-
da no país e para quem chega, muito caberia
indagar quando se trata de oferta pública, ou
62
seja, destinada, indistintamente, a todos que
por ela se interessem. Mas essa oferta da te-
levisão fechada ainda é dependente de recur-
sos, sinais, tecnologias, nem sempre disponí-
veis em todo o território nacional como, por
exemplo, há muito, o rádio já superou. Para
os defensores da comunicação audiovisual, o
rádio é superado como veículo, embora des-
frute de largos usos, em longínquos espaços
brasileiros. Se a geração audiovisual é uma
realidade com a qual nos confrontamos,
pelo modo como ainda concebemos a esco-
la, porque formados em outros paradigmas
de geração de conhecimento e disseminação
de informação, há que considerar também
a presença de toda uma geração formada —
no sentido de ler o mundo e reconhecer a
ampliação das fronteiras — pelo rádio, e que
ainda está na ativa, trabalhando e tendo esse
veículo como referência primeira. Dados so-
bre audiência, sobre de que forma ele chega,
como chega, para quem chega serão, sem-
pre, indispensáveis na tomada de decisões
dessa natureza. Caberia, portanto, indagar,
complementando argumentos já apresen-
tados: de que modo se poderia, pensando-
se políticas intersetoriais, repensar o rádio
como mais um veículo, em projetos comple-
xos de formação continuada de professores,
com seu potencial de criar mundos invisíveis
e trabalhar com a imaginação de ouvintes
sequiosos de possibilidades, explorando-o às
últimas consequências naquilo que ele pode
fazer bem, sem ficar à mercê das lógicas du-
ais que o opõem à televisão?
Rediscutir o papel de todos esses veículos,
postos a serviço da educação e de suas ofer-
tas, no conjunto das demais políticas de for-
mação continuada estimuladas pelo MEC,
pode estabelecer uma política intersetorial
mais adequada à diversidade de públicos,
condições materiais e de formação, em to-
dos os estados e municípios.
Nesses 20 anos de Salto, sem dúvida, a EJA
tem muito a comemorar, pelo modo como
esteve presente na programação, pelo com-
promisso de gestores, de supervisores peda-
gógicos, de equipes, que alimentaram a pos-
sibilidade de dar corpo e produzir sentidos
à temática, republicanamente, no fazer de
um programa de formação continuada. O
programa tem seu lugar na história da edu-
cação no país e, ainda de forma incipiente,
alguns estudos e pesquisas iniciam a esca-
vação das fontes, para produzir sua própria
história. Mais que um tema de pesquisa, o
Salto produziu conhecimentos sobre for-
mação continuada em ambiente virtual de
aprendizagem e fez aprender muita gente
que passou pelos diferentes percursos que
o constituíram. Impossível ignorar o lugar
que o Salto inscreveu na memória de tantos
educadores, professores e especialistas que,
com ele, também produziram suas histórias.
Incluo-me nesse rol, segura do que será pos-
sível avançar nas propostas do Salto para
a EJA, a partir do marco referencial dos 20
anos, que institui o balanço, produz crítica
comprometida e projeta o futuro, com ali-
63
cerces sólidos na memória do presente, que
dia a dia se faz passado.
REFERênciAS
SANTOS, Boaventura de Sousa e MENESES,
Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul.
São Paulo: Cortez, 2010.
BRASIL. CNE. Parecer CEB n. 11/2000. Diretri-
zes Curriculares para a Educação de Jovens e
Adultos. Brasília: CNE, 2000.
PAIVA, Jane. Quando duas se fazem uma: de
formação inicial continuada à formação hu-
mana. III Seminário Nacional sobre Formação
de Educadores de Jovens e Adultos. Painel: A
formação inicial e continuada do educador
de jovens e adultos nas Instituições de Ensi-
no Superior — desafios e possibilidades. Por-
to Alegre, Rio Grande do Sul, 26 a 28 maio
2010.
64
2.6TRABAlHo, emPReGo e eDuCAÇão BÁSICA: DISTINÇÕeS e RelAÇÕeS
Gaudêncio Frigotto41
Um homem se humilha
Se castram seu sonho
Seu sonho é sua vida
E vida é trabalho
E sem o seu trabalho
Um homem não tem honra
E sem a sua honra
Se morre, se mata
Não dá pra ser feliz
Não dá pra ser feliz42.
41 Doutor em Educação. Professor do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da UERJ. Professor titular (aposentado) em Economia Política da Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense.
42 Gonzaguinha. Um Homem Também Chora (guerreiro Menino). 1983. Álbum Alô Brasil.
Com grande frequência, não só no senso
comum, mas em textos de economia, socio-
logia, psicologia, educação etc., os termos
trabalho e emprego são utilizados como si-
nônimos. Como consequência dessa confu-
são, tanto no senso comum quanto nas áre-
as acima referidas, entre outras, efetiva-se,
indistintamente, a relação entre trabalho e
educação básica e emprego e educação bá-
sica.
A relação entre trabalho e educação expri-
me, originariamente, a forma de os seres
humanos produzirem sua vida material e
sua reprodução social. Como nos indica
Konder, toda sociedade vive porque consome;
e para consumir depende da produção. Isto é,
do trabalho. Toda a sociedade vive porque cada
geração nela cuida da formação da geração se-
guinte e lhe transmite algo da sua experiência,
educa-a. Não há sociedade sem trabalho e sem
educação (KONDER, 2000, p. 1.120). O mesmo
não ocorre com a relação entre o emprego e
a educação na sociedade capitalista.
65
Neste texto, com base em diferentes arti-
gos já publicados e com fins pedagógicos,
buscarei explicitar porque trabalho não é
sinônimo de emprego, pelo contrário, o
emprego é uma forma histórica de degrada-
ção do trabalho e que, portanto, a relação
fundamental é entre trabalho como direito
e dever e princípio formativo e educação e
não emprego e educação. Esta última re-
lação expressa a forma particular das rela-
ções sociais capitalistas. Por fim, buscarei
assinalar como, numa sociedade de desem-
prego estrutural, de super exploração dos
trabalhadores e de condições cada vez mais
precárias no mundo da produção, a relação
trabalho como direito e dever e princípio
educativo pode ajudar a não culpabilizar os
trabalhadores, especialmente jovens e adul-
tos pouco escolarizados.
O TRABAlhO cOMO
AuTOcRiAçãO, DiREiTO E
DEvER E PRincíPiO EDucATivO
Diferente da herança iluminista, que super-
dimensiona as qualidades intelectuais do ser
humano, o filósofo grego Anaxágoras realça
que o ser humano pensa porque tem mãos43.
Por certo a mão é, dos membros do ser hu-
mano, o primeiro instrumento básico me-
diante o qual apanha, modifica, transforma a
natureza, que não ele mesmo, nos meios de
sua produção. É desta tradição, também, que
se afirma a ideia de que, para pensar, o ser
humano precisa existir enquanto materiali-
dade, ainda que o ser material e o ser pen-
sante coexistam na unidade do mesmo ser.
O filósofo György Lukács, com base nos ma-
nuscritos filosóficos econômicos de Karl
Marx, nos oferece os fundamentos para en-
tender o trabalho como expressão do pro-
cesso de tornar-se ser humano e, portanto,
de ir além da fixação dos seres vivos na com-
petição biológica com seu mundo ambiente,
determinados pelo instinto de sua espécie. A
superação de ser mero epifenômeno da re-
produção biológica dá-se mediante a cons-
ciência que lhe permite projetar e antecipar
sua ação e modificar a natureza da qual se
origina e criar o mundo propriamente hu-
mano44. O trecho abaixo de Marx situa a sín-
tese do que assinalamos acima e fundamen-
ta o caráter do trabalho como direito, dever
e princípio educativo.
Antes, o trabalho é um processo entre o
homem e a natureza, um processo em
que o homem, por sua própria ação, me-
deia, regula e controla seu metabolismo
com a Natureza Ele mesmo se defronta
com a matéria natural como uma força
natural. Ele põe em movimento as for-
ças naturais pertencentes à sua corpo-
43 Esta citação de Anaxágoras foi retirada do livro de Carlos Paris – o Animal Cultural (2000).
44 Ver, a esse respeito, Lukács (1978).
66
reidade, braços, pernas, cabeça e mãos,
a fim de se apropriar da matéria natural
numa forma útil à própria vida. Ao atu-
ar, por meio desse movimento, sobre a
natureza externa a ele e ao modificá-la,
ele modifica, ao mesmo tempo, sua pró-
pria natureza” (MARX, 1983, p. 149).
Na caracterização de Marx em nenhum mo-
mento aparece a palavra emprego. Pelo con-
trário, é no próprio processo histórico de
tornar-se humano que surge a atividade que
denominamos de tra-
balho como algo es-
pecífico do homem.
Netto e Braz, partin-
do do legado de Marx,
destacam três razões
que definem o traba-
lho como atividade
específica do ser hu-
mano:
Em primeiro lugar porque o trabalho
não se opera com uma atuação ime-
diata sobre a matéria natural; dife-
rentemente, ele exige instrumentos
que, no seu desenvolvimento, vão cada
vez mais interpondo entre aqueles que
o executam e a matéria; em segundo
lugar porque o trabalho não realiza
cumprindo determinações genéticas;
bem ao contrário, passa a exigir habili-
dades e conhecimentos que se adquirem
inicialmente por repetição e experimen-
tação e que se transmitem mediante
aprendizado; em terceiro lugar, porque
o trabalho não atende um elenco limi-
tado e praticamente invariável de ne-
cessidades, nem as satisfaz sob formas
fixas (grifo dos autores) (NETTO e BRAZ,
2006, p. 30-31).
Em sua dimensão imperativa, ele aparece
como atividade que responde à produção dos
elementos necessários à vida biológica dos
seres humanos como seres ou animais evo-
luídos da natureza.
Concomitantemen-
te, porém, constitui-
se no fundamento
para responder às
necessidades de sua
vida cultural, social,
estética, simbóli-
ca, lúdica e afetiva.
Trata-se de necessi-
dades que, por se-
rem históricas, assumem especificidades no
tempo e no espaço.
Em qualquer sociedade e tempo histórico,
portanto, os seres humanos necessitam de-
dicar um tempo de trabalho para responder
às suas necessidades vitais. Esse tempo varia
de acordo com os avanços dos instrumentos
e técnicas de produção. Quanto menor for
o tempo de trabalho inscrito no mundo das
necessidades, maior será o tempo livre, tem-
po este que pode ser fruído de acordo com a
Quanto menor for o tempo
de trabalho inscrito no
mundo das necessidades,
maior será o tempo livre,
tempo este que pode ser
fruído de acordo com a
escolha de cada um.
67
escolha de cada um. Trata-se da esfera da li-
berdade onde se transcende o mundo animal
e as qualidades humanas podem se dilatar.
Note-se, todavia, que o mundo do tempo
livre não pode prescindir do trabalho que
se desenvolve na esfera da necessidade.
Aquele tem como condição a precedência
deste, pois, para existir, o ser humano tem
que prover sua produção enquanto parte da
natureza. Daqui decorrem as dimensões do
trabalho como um direito, como um dever e
princípio educativo.
O trabalho se constitui em direito universal,
isto é, de cada ser humano e em qualquer
tempo, pelo simples fato de que é através
dele que se tem a possibilidade de produção
e reprodução da vida. Negar o direito ao tra-
balho é impedir o processo entre o homem e a
natureza, um processo em que o homem, por
sua própria ação, medeia, regula e controla
seu metabolismo com a Natureza. Sob esta
compreensão também a água, a terra e to-
dos os bens da natureza são um direito de
todos, já que é a partir deles que os seres
humanos constituem sua própria natureza.
Veremos, no próximo item, como nessa re-
lação originária do ser humano com a na-
tureza se rompe e se instaura a dominação
de uns sobre outros e o surgimento da pro-
priedade privada, meio de exploração e do
acumular riqueza.
Se o trabalho é um direito inalienável, pela
mesma razão se constitui um dever de to-
dos. Isto decorre do simples fato de que, en-
quanto seres da natureza, os humanos não
podem prescindir de comer, proteger-se e
buscar os meios de sua produção e reprodu-
ção pela ação de suas mãos, braços, cabeça
etc., vale dizer, pelo trabalho. E se estas ne-
cessidades são uma peculiaridade de todos,
são também um dever de todos.
Desta dupla dimensão humana do trabalho
decorre a sua especificidade de princípio
formativo, socializador ou educativo. Trata-
se de inscrever no caráter, na personalidade
de cada ser humano e desde a infância, a
compreensão do direito e do dever do tra-
balho. Ou seja, socializar, desde a infância,
o princípio de que a tarefa de prover a sub-
sistência e outras esferas da vida pelo tra-
balho é comum a todos os seres humanos,
evitando-se, desta forma, criar indivíduos ou
grupos que exploram e vivem do trabalho
de outros. Estes, na expressão de Gramsci,
podem ser considerados mamíferos de luxo
– seres de outra espécie que acham natural
explorar outros seres humanos.
Esta relação do trabalho desde a infância,
como veremos a seguir, nada tem a ver com
a exploração histórica do trabalho infantil
pelos sistemas escravocratas e pela compra
e venda da força de trabalho sob o capita-
lismo. Trata-se de fazer com que, de acordo
com a possibilidade de sua idade, a criança
apreenda que é um ser da natureza e que,
68
como tal, para reproduzir-se e satisfazer ou-
tras necessidades, precisa mover-se, buscar
e agir. Internalizar, pois, que o trabalho é um
direito e um dever.
Do que expusemos até aqui cabe destacar
quatro aspectos que engendram confusão
ao se tratar da relação trabalho e educação:
1. primeiro, que o trabalho, na compre-
ensão acima, não só não é redutível
a emprego como é antagônico a essa
forma histórica de exploração do tra-
balhador;
2. segundo, que o trabalho como princí-
pio educativo, não se refere a técnicas
ou estratégias didáticas ou metodoló-
gicas no processo de aprendizagem,
mas a um princípio ético-político45.
3. terceiro, a centralidade do trabalho
não deriva do caráter de superioridade
em relação às demais atividades hu-
manas, das quais lhes é fundamento,
mas da práxis que possibilita ao ser
humano produzir-se e reproduzir, de-
senvolver a arte e a cultura, a lingua-
gem e os símbolos, o mundo humano
como resposta às suas múltiplas e
históricas necessidades;
4. finalmente, tomado o trabalho na sua
dimensão de criador do modo huma-
no de vida, permite-nos afirmar que a
tese do fim do trabalho como produtor
de valores de uso e de trocas para res-
ponder às múltiplas necessidades hu-
manas não tem o menor fundamento.
Seria o mesmo que se afirmar que a
vida humana desapareceu da face da
Terra ou que todos os seres humanos
se transformaram em seres puramen-
te imateriais ou em “anjos”. São as
formas históricas de como o trabalho
se efetiva nos diferentes modos sociais
de produção da existência humana
que desaparecem46. O fim do trabalho
escravo, pelo menos dominantemen-
te, foi um avanço civilizatório, assim
como o será quando a humanidade
conseguir abolir o trabalho abstrato
ou o emprego sob o capitalismo e a
classe social que o estatuiu.
45 Realçamos este aspecto, pois é frequente reduzir o trabalho como princípio educativo à ideia didática ou pedagógica do aprender fazendo. Para aprofundar a compreensão desta questão, ver Saviani (1984) e Frigotto (1985). Isto não elide a experiência concreta do trabalho dos jovens e adultos, ou mesmo das crianças, como uma base sobre a qual se desenvolvem processos pedagógicos ou mesmo a atividade prática como método pedagógico. Uma das obras clássicas sobre o trabalho como elemento pedagógico é a obra organizada por Pistrak e da qual se publicou no Brasil uma síntese (PISTRAK, 1981). Recentemente, Luiz Carlos de Freitas traduziu e publicou a obra completa, fazendo uma excelente introdução, dando-lhe o contexto histórico e seu significado (PISTRAK, 2009).
46 Com o agravamento do desemprego estrutural, especialmente a partir da década de 1980, vários autores desenvolveram a tese da perda da centralidade do trabalho na vida humana ou mesmo a tese do fim do trabalho. Para um discussão crítica sobre a tese de Claus Off (1989) sobre a perda da centralidade do trabalho e sobre as teses do fim do trabalho, ver Antunes (1995) e Frigotto (2010).
69
A DOMinAçãO huMAnA,
O TRABAlhO EScRAvO E O
TRABAlhO EMPREGO
A compreensão que, sinteticamente, explici-
tamos acima se constitui naquilo que Isvan
Mészáros, a partir de Lukács, denomina o
trabalho como uma mediação de primeira
ordem. Isto para explicitar como o trabalho
aparece no processo do surgimento do ser
social ou de fazer-se humano.
Desde que o ser humano tomou consciên-
cia de si enquanto, ao mesmo tempo, ser da
natureza, mas não redutível a ela, durante
séculos sustentou a produção de sua vida
material colhendo da natureza o que ela
lhe oferecia. Mas, exatamente por sua ca-
pacidade de idear e criar foi desenvolvendo
instrumentos e técnicas que lhe facultaram
e facultam modificar a natureza e cultivar
alimentos, domesticar e criar animais etc.
Este processo foi permitindo a produção de
uma quantidade de produtos excedentes,
fundamentais para o sustento em épocas
de pragas, epidemias e mesmo guerras. Este
é o sentido econômico da própria parábo-
la bíblica das sete vacas gordas e sete vacas
magras ou o conto popular da formiga e da
cigarra.
É a partir da existência do excedente que,
como mostram Netto e Braz (2006), se ins-
taura a luta por sua apropriação e a domi-
nação de uns seres humanos sobre outros
e, portanto, a constituição de classes sociais
antagônicas47 que definem, por sua vez, os
diferentes modos sociais de produção48. É
neste processo que o trabalho, mediação de
primeira ordem, passa a se constituir numa
mediação de segunda ordem. Ou seja, as for-
mas históricas de trabalho escravo, servil,
emprego ou venda da força física, psíquica,
intelectual de trabalho.
Caracterizar os diferentes modos de produ-
ção não é o propósito deste texto. Os textos
indicados nas notas de rodapé são referên-
cias importantes para este propósito. O que
nos interessa aqui é distinguir, primeiro, a
forma de exploração do trabalho sob o modo
de produção escravocrata e capitalista e ex-
por a gênese da crise do trabalho e emprego
e seu caráter não natural.
47 As classes sociais, como as analisa Marx, e a tradição que se filia às suas análises, são entendidas como um produto histórico que se define por relações de poder e de força desiguais e por interesses antagônicos. Assim, o poder e o interesse do senhor de escravos não é o mesmo que o dos escravos ou, atualmente, os trabalhadores que vendem sua força de trabalho aos capitalistas detentores de propriedade privada dos meios e instrumentos de produção não têm o mesmo poder e interesses destes. Isto nada tem a ver com a noção econômica e sociológica dominante, que mascara essas relações de força e de poder na ideia de um contínuo: classe alta, média e baixa.
48 O conceito de modo de produção é central para entender aquilo que Marx denomina a pré-história da humanidade, pelo fato de as classes sociais cindirem o humano. Cada modo de produção se explicita pela forma mediante a qual se efetiva a produção e a distribuição dos produtos do trabalho, pelas ideias, teorias, ideologias, valores e símbolos que os legitimam e por instituições que os mantêm e reproduzem. O leitor que queira aprofundar este tema ver Marx (1986 ) e Netto e Braz (2006).
70
A escravidão caracteriza-se por um longo
período da história da humanidade em que
seres humanos eram comprados e vendidos
como animais. Não só eram assim tratados
como também eram concebidos como ani-
mais que falavam. O escravo era considerado
um meio de produção e, como tal, também
uma mercadoria a ser comprada e vendida.
O escravo, portanto, não era considerado
cidadão e, por isso, era desprovido de qual-
quer direito. Seu dono tinha sobre ele poder
absoluto. Matar um
boi, um cavalo ou
um escravo tinha o
mesmo significado.
O escravo se cons-
titui, assim, num
bem de troca e em
negócio rentável49.
No Brasil, a escravi-
dão durou por quase
quatro séculos, sen-
do uma das últimas
sociedades a abolir
a escravidão. O estigma escravocrata está
muito impregnado, ainda hoje, na cultura,
nas relações de trabalho e nas relações so-
ciais. Isso se reflete no desprezo pelo traba-
lho manual e técnico e pela baixa remunera-
ção ao trabalho produtivo. O debate sobre o
valor do salário mínimo que acontece a cada
ano é um indicador desse desprezo e da bai-
xa remuneração.
O modo de produção capitalista, sob cujas
relações a humanidade está submetida até
hoje, desenvolve-se dentro da dissolução do
feudalismo e dentro de um processo histó-
rico que vai do século XII até o século XVII,
quando se torna dominante. Representa,
como muitos pensadores afirmam, a come-
çar por Karl Marx, um avanço civilizatório.
A classe burguesa,
que foi se consti-
tuindo como classe
detentora de pro-
priedade privada,
como forma de ge-
rar mais proprieda-
de e riqueza median-
te a exploração do
trabalho alheio, ne-
cessitava combater,
ao mesmo tempo, o
poder feudal centra-
do no Estado absolu-
tista e, como parte dominante desse poder,
a Igreja, que se proclamava contra o lucro.
E, finalmente, contra a escravidão, pois com
ela seria impossível sustentar a ideologia da
liberdade e igualdade e o mercado de com-
pra e venda de força de trabalho.
O modo de produção capitalista define-se pela
49 Uma análise que aprofunda esta discussão é feita por Losurdo (2005).
O estigma escravocrata
está muito impregnado,
ainda hoje, na cultura, nas
relações de trabalho e nas
relações sociais. Isso se
reflete no desprezo pelo
trabalho manual e técnico e
pela baixa remuneração ao
trabalho produtivo.
71
constituição de duas classes fundamentais50 –
a detentora privada dos meios e instrumentos
de produção (terras, máquinas, empresas e,
cada vez mais, a ciência e tecnologia) e a classe
trabalhadora que vende sua força de trabalho
para receber em troca os meios de sua repro-
dução e de seus filhos, mediante diferentes
formas de remuneração (salário, bens de con-
sumo etc.). A forma dominante, até o presente,
hoje em crise estrutural profunda, é mediante
o emprego, tendo como pagamento um salá-
rio em forma monetária.
Diferente das sociedades escravocratas, on-
de a exploração é explícita, no modo de pro-
dução capitalista a mesma é ocultada no
processo de produção sob o manto da igual-
dade e da liberdade formais e materializada
mediante o contrato de trabalho. A supo-
sição é de que os donos dos meios de pro-
dução (capitalistas) e os trabalhadores, que
têm como única propriedade a sua força de
trabalho para vender, entram no mercado
em iguais condições e de forma livre.
O primeiro ocultamento é a desigualdade real
de poder entre quem compra a força de tra-
balho e quem a vende e o processo histórico
da constituição dessas classes. A partir desse
ocultamento, também se esconde o fato de
que a exploração se dá no processo de produ-
ção, mediante parte do tempo do trabalhador
que não é pago, produzindo aquilo que se de-
nomina de mais-valia. Isto se materializa no
fato de que, uma vez feito o contrato, o tem-
po vendido não pertence ao trabalhador, mas
a quem o contratou. Quem vai administrar
esse tempo é agora seu proprietário – o em-
pregador. Este busca que ele produza um va-
lor maior do que aquilo que lhe é pago como
salário. Esta exploração legalizada pelo con-
trato de trabalho é que explica o fundamento
de todo o acúmulo de capital e de riqueza51.
Assim, o modo de produção capitalista se
afirma mediante a consolidação da proprie-
dade privada, e sua legitimação mediante a
ideologia ou teoria liberal da igualdade e da
liberdade e se reproduz mediante o Estado li-
beral e pelos aparelhos de hegemonia, entre
eles, sobretudo, a escola e os processos de
conhecimento, valores e atitudes que nela se
desenvolvem52.
50 Ao afirmar-se a existência de duas classes fundamentais, está implícita a existência de outras classes ou grupos sociais, mas que não definem o caráter estrutural desta sociedade.
51 Uma explicação clara deste processo o leitor pode ter no livro de Netto e Braz, já citado. Ver, também. a síntese feita por um grupo de pesquisadores da Universidade de Brighton (Inglaterra): Brighton Labor Process Grup, do capítulo de O Capital, de Karl Marx, que trata do processo de trabalho capitalista (In: SILVA, T. T., 1992).
52 A escola, entretanto, como veremos a seguir, também é disputada pela classe trabalhadora e seus intelectuais. Trata-se de, como fez a própria burguesia em relação à sociedade feudal, ir construindo de dentro do capitalismo os conhecimentos, os valores que interessam à classe trabalhadora como mediação de abolição do capitalismo e a construção de uma sociedade sem classes sociais e sem, portanto, a exploração de uns sobre os outros.
72
Uma das contradições mais profundas do
capitalismo, que se agrava ao longo do tem-
po, resulta do fato de que o conhecimento
produzido pela humanidade e que se traduz
em mudanças tecnológicas e novas técnicas
de produção é, dominantemente, proprie-
dade privada que se volta contra os traba-
lhadores, mediante a super exploração e o
desemprego em massa. Das atividades da
indústria à produção dos serviços, ao tra-
balho no campo, máquinas cada vez mais
autônomas ocupam o lugar de milhares de
trabalhadores. Dos países onde foi o berço
do capitalismo a todos os cantos do mundo,
o desemprego é, sem dúvida, um problema
político e humano dos mais cruciais hoje.
Vários autores explicitam o sentido da crise
da sociedade salarial ou do emprego (CAS-
TELS, 1977) e o seu sentido social e humano.
Alguns títulos que fazem análises profundas
deste tempo sinalizam a gravidade desta cri-
se e os efeitos sobre a vida dos trabalhadores
e de suas famílias: O desafio e o fardo do tem-
po histórico (MÉSZÁROS, 2007); A corrosão do
caráter. Consequências pessoais do trabalho
no novo capitalismo (SENNETT, 1999); O hor-
ror econômico (FORRESTER, 1996); A desmedi-
da do capital (LINHART, 2007); A banalização
da injustiça social (DEJOURS, 2000) e O lucro
ou as pessoas. Neoliberalismo e a ordem glo-
bal (CHOMSKY, 2010). A epígrafe da música
de Gonzaguinha - Um Homem Também Cho-
ra (guerreiro Menino), que abre este pequeno
texto, talvez por meio da poesia expresse o
sentido mais radical dos efeitos da perda do
emprego numa sociedade capitalista.
Chegamos ao século XXI com uma realidade
em que a ciência e a tecnologia poderiam
liberar tempo livre, modo de fruição, criação
e liberdade humana e, ao contrário, se pro-
duz o desemprego, o trabalho precário e a
super exploração. Também se revogam um a
um os direitos conquistados com lutas e re-
voluções pela classe trabalhadora. Milhares
de trabalhadores e, especialmente, os jovens
não podem programar o futuro e vivem uma
situação psicossocial de provisoriedade e de
vida em suspenso. Neste contexto, como
pensar uma relação trabalho e educação
básica que não legitime esta realidade, mas
que permita questioná-la na raiz e assinalar
caminhos de superação?
A RElAçãO TRABAlhO E
EDucAçãO BáSicA E A
PERSPEcTivA DA FORMAçãO
huMAnA POliTécnicA
Situados os dois aspectos acima abordados
– do trabalho, na sua dimensão de criação
da realidade humana, e do emprego, forma
específica de compra da força de trabalho e
exploração do trabalhador – pode-se perce-
ber dois aspectos que se reforçam: na me-
dida em que o sistema capitalista agudiza
o desemprego estrutural,vai se afirmando,
sob formas cada vez mais ideológicas, a
relação entre emprego, desemprego e edu-
73
cação básica, ao mesmo tempo em que se
nega, especialmente à classe trabalhadora,
uma educação básica que permita entender
como funciona a sociedade e os fundamen-
tos das ciências da natureza. Trata-se, pois,
de uma relação que vai ocultando o víncu-
lo inseparável do trabalho como criador da
vida e a educação como forma de qualificar,
cuidar e preservar as suas bases materiais e
culturais.
Com efeito, a noção de educação como ca-
pital humano surge como estratégia de ex-
plicação do fracasso do sistema capitalista,
explicitado pela crescente e ameaçadora
desigualdade entre nações e grupos sociais.
Mediante essa noção ideológica, a educação
básica de direito social e subjetivo passa a
ser concebida como um serviço a ser adqui-
rido no mercado. Nivela-se de forma fetichi-
zada o capital, como uma relação de força e
de classe, com um conjunto de conhecimen-
tos e de valores e atitudes desenvolvidos na
escola e supostamente funcionais no mun-
do da produção e, portanto, uma moeda de
troca, um capital do trabalhador.
A formulação da noção de capital humano
na década de 1950 situa-se, mesmo que de
forma ingênua, sob a ideologia do economi-
cismo, num contexto onde os intelectuais
do sistema capitalista apostavam na pers-
pectiva integradora da educação escolar. Na
medida em que se sedimente a convicção de
que não há lugar para todos no emprego for-
mal e se produz o ideário neoliberal, novas
noções, mais sutis e dissimuladoras, apare-
cem: sociedade do conhecimento, qualidade
total, pedagogia das competências, empre-
gabilidade, empreendedorismo e capital so-
cial.
Por meio dessas noções, passa-se ideia de
que os países, regiões e grupos sociais po-
bres assim o são porque investem pouco
em educação. Mas como investir mais em
educação se são países, regiões e grupos
sociais pobres? Por certo, é historicamente
mais sustentável afirmar que esta condição
os impede de investir em educação. Neste
contexto, irônica e cinicamente, aqueles
que são vítimas da exploração, espoliação e
alienação passam a serem culpados por se-
rem explorados53.
Nota-se, então, que as novas noções de so-
ciedade do conhecimento, qualidade total,
competência, empregabilidade, empreen-
dedorismo, capital social têm uma função
ideológica e, ao mesmo tempo, pragmática,
53 Sobre este tema tenho me ocupado ao longo das últimas décadas. Duas obras se complementam no balanço crítico desta questão: A produtividade da escola improdutiva (FRIGOTTO, 2010, 10ª ed.) e Educação a crise do capitalismo real (FRIGOTTO, 2010, 6ª ed.).
74
ao tempo histórico de desmedida do capital,
corrosão do caráter, fardo do tempo histó-
rico, horror econômico e a banalização da
injustiça social, temas acima referidos.
Para esse tempo histórico do capitalismo,
o primeiro aspecto que se busca negar é a
relação da educação com o trabalho na sua
dimensão de criador da vida humana (onto-
criativo), como direito e dever universais e
como princípio educativo. E no contexto de
regressão das relações sociais capitalistas,
mediante a exacerbação da exploração e a
anulação de direitos historicamente cons-
truídos, a educação básica pública passa a
ser concebida e gerida no conteúdo, no mé-
todo e na forma pelos critérios de mercado.
Do ponto de vista do mercado, a educação
básica terá um papel diferenciado para os
que podem ser integrados no emprego e os
que não o serão ou serão por um determi-
nado tempo e depois descartados. Como
interessa ao mercado um trabalhador flexí-
vel, no sentido de sua funcionalidade e no
sentido de desprovido de direitos que difi-
cultem seu uso ou dispensa, aqueles que se
integrarem ao mercado necessitam ser edu-
cados não para a estabilidade, mas sim para
o provisório.
Por isso, em lugar de qualificação e em-
prego, ligados a um tempo histórico que
garantia um conjunto de direitos, trata-se
de desenvolver o fluxo de competências de-
mandadas pelo sistema produtivo, condição
para assegurar um tempo de empregabili-
dade. Ela aparece de forma invertida como
sendo a segurança do trabalhador, quando,
na verdade, significa o provisório, o instável,
a insegurança, fundamentais à quebra de
solidariedade entre os trabalhadores54. Por
outra parte, para manter-se empregável exi-
ge-se uma educação de qualidade total para
o mercado. Isto significa que o trabalhador
faça bem feito o que se lhe pede, no menor
tempo e ao menor custo.
Para os não integráveis ou que foram inte-
grados e depois expulsos do emprego, a edu-
cação escolar vai buscar convencê-los a se-
rem empreendedores ou vincular-se a redes
de solidariedade no seu meio/espaço, onde
podem desenvolver seu capital social.
Os socialistas estão aqui para lembrar
54 No trecho que se segue aparece essa mistificação ideológica de inversão da realidade de forma exemplar e que tenta ser inculcada como senso comum:
A empregabilidade é um conceito mais rico do que a simples busca ou mesmo a certeza de emprego. Ela é o conjunto de competências que você comprovadamente possui ou pode desenvolver - dentro ou fora da empresa. É a condição de se sentir vivo, capaz, produtivo. Ela diz respeito a você como indivíduo e não mais a situação, boa ou ruim da empresa – ou do país. É o oposto ao antigo sonho da relação vitalícia com a empresa. Hoje a única relação vitalícia deve ser com o conteúdo do que você sabe e pode fazer. O melhor que uma empresa pode propor é o seguinte: vamos fazer este trabalho juntos e que ele seja bom para os dois enquanto dure; o rompimento pode-se dar por motivos alheios à nossa vontade. (...) ( empregabilidade) é como a segurança agora se chama (Grifos meus) (MORAIS, 1986).
75
ao mundo que em primeiro lugar de-
vem vir as pessoas e não a produção. As
pessoas não podem ser sacrificadas. (…)
Especialmente aquelas que são apenas
pessoas comuns. (...) É delas que trata o
socialismo; são elas que o socialismo de-
fende (HOBSBAWM, 1992, p. 268). E isto
implicará uma investida contra as for-
talezas centrais da economia de merca-
do de consumo. Exigirá não apenas uma
sociedade melhor que a do passado, mas
como sempre sustentaram os socialis-
tas, um tipo diferente de sociedade. (...)
É por esse motivo que (o socialismo) ain-
da está no programa (ibid, p. 270).
Para aqueles que acreditam, como reitera o
historiador Eric Hobsbawm, que as pesso-
as vêm em primeiro lugar e não a produção
e as pessoas não podem ser sacrificadas, a
relação que interessa é a do trabalho como
criador de vida, valor de uso e educação bá-
sica como direito social e subjetivo.
A questão crucial é, pois: como mover-se
nesta direção e que relação estabelecer en-
tre trabalho e educação básica, para que as
pessoas venham em primeiro lugar, quan-
do o curso da história caminha em sentido
oposto nas relações sociais?
Dois aspectos dão elementos para que pos-
samos perceber que isso não só é possível
como cada vez mais imprescindível. Primei-
ro, como aprendemos com Marx, fazemos
a história em circunstâncias não escolhidas
por nós, porém foram os próprios homens
que produziram estas circunstâncias e, por
isso, eles podem alterá-las. Como decorrên-
cia factual pode-se perceber que a revolução
burguesa, que estatuiu o modo de produção
capitalista, resultou das contradições cada
vez mais insanáveis das relações sociais es-
cravocratas e do poder absolutista e o de-
senvolvimento de uma nova forma de orga-
nização da produção, ideias, teorias, valores
e novas instituições, entre elas a fundamen-
tal: a escola.
O ponto central a demarcar é que o capita-
lismo expõe atualmente, ao extremo, sua
crise e contradição fundamental. A crise
pelo absurdo descolamento do capital fictí-
cio, especulativo (capitalismo de cassino) do
produtivo (o que produz bens, mercadorias,
produtos e serviços). Contradição expressa
pela capacidade exponencial de fazer avan-
çar as forças produtivas, mediante avanços
da ciência e de técnica e a crescente inca-
pacidade de socializar esta capacidade em
termos de bem-estar, redução do tempo de
trabalho como resposta às necessidades bá-
sicas. Mais que isso, aumento da desigualda-
de entre regiões, nações e grupos e classes
sociais. Um capitalismo que, como analisa
Istvam Mészáros (2002), já não possui capa-
cidade civilizatória e, agora, para prosseguir,
vai destruindo um a um os direitos conquis-
tados pela classe trabalhadora e destruindo
as bases da vida pela degradação ambiental.
76
O acúmulo histórico das lutas da classe
trabalhadora e de seus intelectuais, as re-
voluções derrotadas, como a de outubro de
1917, na perspectiva da dialética do velho e
do novo, não foram um fracasso. Dos seus
escombros e cinzas encontramos o núcleo
central da relação entre trabalho e educação,
conhecimento e cultura. Trata-se da educa-
ção que desenvolve todas as dimensões do
ser humano e, portanto, que cada ser huma-
no tenha, como direito, poder apropriar-se
dos conceitos ou bases da ciência que per-
mitem entender as relações sociais (histó-
ria, filosofia, sociologia, economia, psicolo-
gia etc.) e as ciências da natureza (biologia,
física, química etc.). Na tradição a que nos
referimos acima, trata-se de uma educa-
ção politécnica ou tecnológica. Como bem
observa Saviani (2003), tal perspectiva en-
contra dificuldade porque é antagônica ao
pensamento social, político e educacional
dominantes, mas pelas contradições dessa
mesma sociedade, é possível construir aqui-
lo que serão a educação e as relações sociais
numa sociedade sem classes.
Os embates no plano teórico centram-se
sobre a recuperação do vínculo intrínseco
do trabalho como criador da vida, direito e
dever, princípio educativo com a educação
escolar básica. Mesmo naquelas modali-
dades de educação – profissional, jovens e
adultos e outras – as contingências históri-
cas impõem o aperfeiçoamento profissional
e técnico tardio sobre a ausência do direito
da educação básica. Trata-se de, mesmo nes-
tas circunstâncias, alargar a subjetivação do
trabalho como direito e dever universais, as-
sim como o direito ao tempo livre que pode,
atualmente, ser alargado enormemente. Um
movimento intencional contra-hegemônico
à subjetivação alienadora do adestramento
para o emprego. Uma educação, portanto,
contra o sistema capital. Ou, uma educação
para além do capital (MÉSZÁROS, 2005).
No plano político, no curto prazo, a luta cen-
tral se direciona para a redução radical da jor-
nada de trabalho associada ao direito, não a
uma renda mínima, mas a uma renda básica
que aquela sociedade, pelo trabalho social co-
letivo, permite. Não há razões, senão de violên-
cia social, de um juiz, um general, um senador
ou deputado ganharem até 70 ou 80 vezes mais
que um trabalhador do campo, da construção
civil, um professor ou um médico.
Trata-se, pois, de um vínculo entre trabalho e
educação, ciência, conhecimento, tecnologia
e cultura que, se apropriado pela massa que
constitui a classe trabalhadora, permite que
ela tome o destino da sociedade e perceba a
necessidade do embate fundamental – o fim
da propriedade privada e das classes sociais.
A educação para além do capital visa
uma ordem social qualitativamente di-
ferente. Agora não só é factível lançar-se
pelo caminho que nos conduz a essa or-
dem como é também necessário e urgen-
77
te. Pois as incorrigíveis determinações
destrutivas da ordem existente tornam
imperativo contrapor aos inconciliáveis
antagonismos estruturais do sistema
capital uma alternativa concreta e sus-
tentável para a regulação da reprodução
metabólica social, se quisermos garantir
as condições elementares da sobrevi-
vência humana. O papel da educação,
orientado pela única perspectiva efeti-
vamente viável de ir além do capital, é
absolutamente crucial para esse propó-
sito (MÉSZÁROS, 2005, p. 71-72).
No pensamento educacional brasileiro e nas
lutas dos educadores vinculados aos movimen-
tos sociais, sindicatos e partidos que buscam
construir relações sociais que nos conduzam
para além do sistema capital, encontramos os
elementos da educação, da ciência, do conhe-
cimento e da tecnologia a serem desenvolvidos
na escola e nos mais diversos espaços da so-
ciedade. Essa foi a proposta que apresentei e
desenvolvi nas séries de que participei no pro-
grama Salto para o Futuro, que completou 20
anos, e esta temática estará sempre presente
quando a proposta for discutir as relações en-
tre Juventude e Trabalho, em especial nas sé-
ries voltadas para o Ensino Médio.
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