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Deus é feiticeiro prática e disputa nas missões católicas em Angola colonial

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Deus é feiticeiroprática e disputa nas missões católicas em Angola colonial

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Iracema Dulley

Deus é feiticeiroPrática e disputa nas missões católicas

em Angola colonial

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DEUS É FEITICEIROPRÁTICA E DISPUTA NAS MISSÕES CATÓLICAS EM ANGOLA COLONIAL

Coordenação de produção: Ivan Antunes

Diagramação: Vinícius Viana

Capa: Carlos ClémenFinalização: Vinícius Viana

CONSELHO EDITORIALEduardo Peñuela Cañizal

Norval Baitello JuniorMaria Odila Leite da Silva Dias

Celia Maria Marinho de AzevedoGustavo Bernardo Krause

Maria de Lourdes Sekeff (in memoriam)Cecilia de Almeida Salles

Pedro Roberto JacobiLucrécia D’Alessio Ferrara

1ª edição: outubro de 2010

© Iracema Dulley

ANNABLUME editora . comunicaçãoRua M.M.D.C., 217 . Butantã

05510-021 . São Paulo . SP . BrasilTel. e Fax. (011) 3812-6764 – Televendas 3031-1754

www.annablume.com.br

Infothes Informação e Tesauro

D917 Dulley, Iracema.Deus é feiticeiro: prática e disputa nas missões católicas em Angola

colonial. / Iracema Dulley. - São Paulo: Annablume, 2010. 156 p. ; 14 x 21 cm.

ISBN 978-85-391-0179-5

1. Antropologia Social. 2. Grupos Sociais. 3. Missões Católicas emAngola. 4. Colonialismo em Angola. 5. Ovimbundu. 6. Comunicação.7. Tradução. 8. Congregação do Espírito Santo. 9. Planalto CentralAngolano. 10. Período Colonial. 11. Angola. I. Título. II. Prática edisputa nas missões católicas em Angola colonial.

CDU 572CDD 301.2

Catalogação elaborada por Wanda Lucia Schmidt – CRB-8-1922

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para barbara, ariel e paul

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Agradecimentos

À Fapesp, pelo financiamento deste livro.À Annablume e sua equipe, pela realização desta publicação.À Fapesp e à Capes, pelo financiamento da pesquisa que deu ori-

gem a este texto.A Omar Ribeiro Thomaz, meu orientador no mestrado, pela dis-

ponibilidade e inteligência.Especialmente a Paula Montero e sua equipe do Cebrap, pelo pri-

vilégio desta interlocução formadora.À Congregação do Espírito Santo, pelo acesso a seus arquivos.Aos professores e funcionários do PPGAS em Antropologia Social

da Unicamp, especialmente John Monteiro, Nádia Farage, MauroAlmeida, Vanessa Lea, Heloísa Pontes, Ronaldo Almeida, Omar Thomaze Maria José, pelo incentivo, envolvimento e disponibilidade.

À minha banca de qualificação e defesa, composta pelos professo-res John Monteiro, Omar Thomaz, Paula Montero e Robert Slenes, pelaleitura cuidadosa e pelos valiosos comentários.

À Marina de Mello e Souza, pelo incentivo sempre acompanhadode interesse e leveza.

Aos amigos e colegas de turma do mestrado e doutorado, pelodiálogo e amizade.

Aos colegas e amigos da comissão editorial da Cadernos de Campo.À Chiza e ao Alberto, pelas lições de umbundu e pela generosidade.Aos amigos e parceiros que discutiram comigo longamente esta

pesquisa e este texto, Olivia Janequine, Marta Jardim, Ariel Rolim, JoanaLins, Marcelo Mello, Eva Scheliga, Flávia Melo, Carolina Parreiras,Adriana Dias, Juliana Vergueiro, Melvina Araújo, Aramis Silva, meusmais sinceros agradecimentos.

Ao meu pai, Frederico Dulley, pelo conforto ao longo deste cami-nho. À tia Ré, à Rosaura, à minha avó, à Lalá, pelo apoio em muitosmomentos. Ao meu irmão, pela cumplicidade. Aos amigos Olivia, Joana,

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Bruna, Augusto, Marta, Eva, Marco, Flávia, Nice, Carlos, Tia Silvia eFabiola, por inúmeras coisas.

À Barbara e ao Ariel, principalmente pelo amor, lealdade e paciência.

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Meus caros, a verdade é esta: tudo são fixações.Hoje vocês se fixam de um modo e amanhã, de outro.

(Luigi Pirandello)

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Sumário

1. Tradução, convenção e disputa: questões teóricas e metodológicas

2. Categorias discursivas de classificação: os “indígenas” e arelação entre Igreja e Estado ................................................................. 00

2.1 A relação entre Igreja e Estado antes das guerrasde “pacificação” ................................................................................ 002.2 A relação entre Igreja e Estado após as guerrasde “pacificação” ................................................................................ 002.3 Indigenato e assimilacionismo: o Estado e os “indígenas” .... 002.4 A Congregação do Espírito Santo e os “indígenas” ................ 002.5 Os “bundos”: cristianismo e distinção ..................................... 00

3. Interações e trajetórias: o cotidiano da missão ................................ 003.1 Arquitetura da missão................................................................. 003.2 Os “indígenas” e as missões ...................................................... 003.3 Os missionários .......................................................................... 003.4 A produção das obras missionárias: uma relação .................... 00

4. A grade de leitura missionária .......................................................... 004.1 Paralelos com Lévy-Bruhl e a “mentalidade primitiva” ........... 004.2 As grades de leitura de Estermann e Valente ........................... 004.3 A “problemática do matrimônio tribal” e a noção de“mentalidade” em Valente ............................................................... 004.4 Os conteúdos da “mentalidade” ............................................... 004.5 O método da “mentalização” e as“locubrações etimológicas” .............................................................. 00

5. Traduções: a significação em disputa ............................................... 005.1 A Seleção e a Paisagem de Valente ............................................... 005.2 Retórica e fixação ....................................................................... 005.3 A formação da convenção de significação ............................... 005.4 Suku onganga

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6. Considerações finais .......................................................................... 00

7. Referências bibliográficas .................................................................. 00

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Apresentação

Deus é feiticeiro, de Iracema Dulley, é um texto movido por umenigma: como poderiam os missionários espiritanos em Angola ter tra-duzido a ideia cristã de Deus como Suku, nome relacionado aos feiticei-ros, seus tradicionais inimigos na disputa simbólica pelo domínio dasforças da sobrenatureza? Este aparente paradoxo oferece uma chave deleitura para este instigante trabalho, que focaliza de maneira inovadorao problema da tradução no campo da antropologia.

Traduzir e produzir gramáticas foi o modo como, historicamente,os missionários cristãos entenderam sua ação evangelizadora. Mas oque fazem os missionários quando traduzem? A autora demonstra, commuita sensibilidade etnográfica, que a tradução nas mãos dos missioná-rios da Congregação do Espírito Santo é uma ferramenta para tornarcomensuráveis sentidos percebidos como heterogêneos (ou moralmen-te inaceitáveis) e tornar compatíveis na prática modos de agirheterônomos. As práticas de tradução nos habituaram a compreendê-lacomo uma fixação simples de equivalências entre repertórios linguísticos.No entanto, o empreendimento traducional missionário tal como elenos é apresentado nesta obra é muito mais engenhoso e abrangente: pormeio da fonética, um dos autores examinados, o missionário portuguêsJosé Francisco Valente, pretendia escavar a superfície da língua nativapara alcançar a essência profunda da mentalidade dos “bundos”; pormeio da busca de semelhanças fonéticas entre palavras vernaculares eportuguesas, estabelecia analogias entre sons e sentidos. Lançando mãodessas semelhanças sonoras foi capaz de aproximar palavras tais comokwela (engasgar) com goela em português. Dessa semelhança sonora oautor retira aproximações psicológicas: o arfar que se manifesta na goeladesigna também as dores do parto e, portanto, o recém-nascido (ukwela).A mesma palavra kwela, com outro sufixo (li-kwela), indica a realizaçãodo casamento. Praticando esses saltos mortais no jogo das associações, omissionário crê ter encontrado no subsolo da mentalidade nativa a ideia

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de família. Por meio desse método de tradução, aliás considerado arris-cado pelo próprio missionário, ele foi capaz de estabelecer que por de-trás das práticas do matrimônio tribal existe, no pensamento profundo“bundo”, em estado de potência, o sentido original do casamentomonogâmico cristão. Tendo encontrado essa ponte entre os dois uni-versos por meio da tradução, o missionário indexa, no ritual cristão, ascerimônias tribais.

A partir de exemplos dessa natureza a autora revela toda a comple-xidade, e as implicações políticas e simbólicas, subjacentes às dinâmicasde tradução postas em operação pela atividade missionária de decifra-ção e descrição dos conceitos nativos. Mais do que recuperar a supostaoriginalidade nativa, o que a tradução empreende é a produção do outro

em sua diferença.O problema prático da tradução e as particularidades da “língua

primitiva” podem ser considerados temas clássicos da antropologia. Masdeixando de lado a literatura que deles se ocupou no plano de sua di-mensão linguística, pode-se dizer que a tradução ganhou estatuto teóri-co na disciplina antropológica mais recentemente, quando se generali-zou a ideia de que a “tradução cultural” é aquilo que distingue a tarefado antropólogo. A partir dessa perspectiva, o problema de descrevercomo os membros de uma cultura remota pensam tornou-se, na formu-lação seminal proposta por Maurice Lienhardt já em 1954, o problemade como tornar coerente para nós a coerência que o pensamento primi-tivo necessariamente teria em sua própria língua.

Uma das mais estimulantes contribuições do trabalho de IracemaDulley, ao desvendar para o leitor as operações implícitas nas “tradu-ções” empreendidas pelos missionários/etnógrafos, é a de colocar sob ocrivo de análise sistemática essa metáfora do etnógrafo como tradutor.Ao demonstrar que aquilo que o missionário faz em termos de busca deequivalências linguísticas ou de crenças nada mais é do que “uma cons-trução de convenções de sentido”, a autora dissolve o “problema”fundacional da tradução no qual permanece enredado o debate ético-político contemporâneo a respeito da especificidade da tarefa do antro-pólogo: como assegurar-se de que se deu voz à intentio original do pensa-mento nativo? Como elidir as projeções de nossa própria exigência decoerência e estilo de argumentação sobre as crenças dos outros e pensarcom a razão aquilo que está fora dela? Essas questões são irrespondíveisno plano da tradução.

Ao colocar sob as lentes de sua reflexão as operações que o missioná-rio realiza ao “traduzir” a “cultura bundo”, a autora põe em evidência os

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mecanismos da invenção cultural propiciada pela convivência entre pa-dres e nativos. Inspirada no modo como Carlo Ginzburg trata o diálogoentre juízes inquisidores e aldeões, isto é, um processo de comunicaçãoque acaba por cristalizar (leia-se criar) um sistema de crenças em tornoda feitiçaria como uma “formação cultural de compromisso”, Dulleyreconstrói as dinâmicas sociais e simbólicas que cristalizam elementosculturais distintos em torno de um culto dos antepassados – pensadocomo equivalente a uma religião monoteísta natural – e em torno dealgumas formas de aliança e descendência tribais – pensadas como equi-valentes ao sacramento religioso do matrimônio. Ao abrir mão do proble-ma da tradução como problema teórico (que tipifica a natureza do conhe-cimento antropológico), a autora põe em evidência o fato de que nessetipo de relações entre universos de conhecimento heterogêneos está sem-pre em operação entre os agentes uma estratégia de indexação, ou seja,uma tentativa, continuadamente disputada, de tornar verossímil, econsequentemente legítima, uma forma particular de associar elementosrituais provenientes de repertórios distintos. Essa estratégia é processual ecumulativa: desenvolve-se a partir de tentativas fracassadas ou bem-sucedi-das que, ao longo do tempo, vão sedimentando associações bem-aceitas.Ela também autoriza inúmeras variações dependendo dos agentes e doscontextos. Mas, sobretudo, é uma estratégia prática que, no caso das mis-sões, se exerce fundamentalmente nas invenções rituais.

Vemos, portanto, que o problema filosófico da (in)comensurabilidadedas culturas se resolve na prática. O que os agentes fazem, sejam elesmissionários, feiticeiros, xamãs ou, por que não, antropólogos, quandosão obrigados a interagir não é traduzir respeitando a integridade de umpensamento considerado outro, mas sim construir modos práticos, rituaisou discursivos de anexar repertórios. Os missionários espiritanos se pro-põem a fazer isso “fundindo” a mentalidade bundo à mentalidade cristã;mas, para fazê-lo, são obrigados a categorizar, classificar e sistematizar essamentalidade, ou produzi-la em sua diferença. Colocando a questão dessamaneira a autora, na esteira dos trabalhos de Foucault, propõe um cami-nho para a superação das aporias que o viés hermenêutico da traduçãotem projetado sobre as teorias antropológicas ao postular o acesso ao ou-tro pela compreensão de um ponto de vista que lhe seria próprio. Comessa ambição teórica tão bem realizada na prática, este é sem dúvida umtrabalho inspirado e inspirador.

PAULA MONTERO

Universidade de São Paulo/Cebrap

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1. Tradução, convenção e disputa: questões

teóricas e metodológicas

O objeto deste estudo são as relações entre os agentes nas missõesda Congregação do Espírito Santo no Planalto Central angolano noperíodo colonial (do estabelecimento das primeiras missões católicas,em meados do século XIX, até a eclosão da Guerra de Libertação, em1961). A pesquisa foi realizada com base em documentos, entre os quaismerecem destaque as traduções realizadas nas missões – do umbundupara o português e vice-versa – e os registros etnográficos e históricosreferentes ao período. Pretendo lançar luz sobre a disputa simbólica quedeu origem ao código de comunicação estabelecido na missão mediantea indexação das práticas rituais locais, reunidas pelos missionários sob arubrica do “culto aos ancestrais” e do “matrimônio tribal”, ao universocristão. O postulado teórico que norteia minha análise é de que essesregistros são produto da relação estabelecida entre os agentes em seucotidiano, pois como demonstra Clifford em seu estudo da obra deMaurice Leenhardt sobre a Nova Caledônia, a produção sobre os “ou-tros” é necessariamente construída em relação com eles, especialmenteem se tratando de traduções e etnografias (Clifford, 1992).

O fato de meu material empírico consistir em fontes escritas colo-ca duas questões metodológicas importantes: por um lado, como teracesso à prática por meio de documentos; por outro, como tratar a co-municação na missão de uma perspectiva relacional dado o peso dosmissionários na constituição dos registros. Minha resposta a esse desa-fio vai sendo construída ao longo do texto, apresentando-se de maneiramais incisiva no último capítulo, que se debruça sobre as traduçõesmissionárias, inevitavelmente atreladas ao modo de expressão emumbundu e aos significados associados às categorias do vernáculo (Rafael,1988). A linguagem é aqui fonte privilegiada para apreender a formacomo se deu a construção do “outro” e do “mesmo” na relação e acomunicação entre eles – as traduções, resultantes de um processo denegociação e disputa, revelam uma convenção de significação formadaem relação com os universos de sentido dos agentes.

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A prática missionária é marcada por um procedimento bastanterecorrente: o de buscar, encontrar, argumentar e produzir a semelhançana prática da evangelização. A partir de então, o que foi equiparado éassumido como equivalente. No cotidiano da evangelização, indexam-secategorias locais a elementos do universo cristão, conforme a possibili-dade ou impossibilidade de fazer convergir os horizontes simbólicosdos agentes na prática – e nesse processo é formado o código de comu-nicação operante nas relações na missão. Com isso, não se quer dizer,entretanto, que sejam os missionários os agentes da indexação1. Ela sedá na prática da disputa cotidiana, que envolve missionários, catequistas,“feiticeiros”, “curandeiros”, catequizandos, chefes de aldeia, chefes deposto. A indexação dos códigos dá origem a uma convenção de signifi-cação não nomeada, mas fundamental para a prática da comunicaçãonas missões, de cuja formação participam diversos agentes, cada qualmunido de suas posições, disposições e capitais. Ora, a porção dessasmesmas categorias que fica de fora da indexação é justamente a quepermite a atribuição de sentidos estratégicos divergentes ao mesmo có-digo por agentes distintos, engendrando a disputa.

Este estudo se iniciou com um espanto. Numa coletânea de pro-vérbios em umbundu, língua que começava a estudar, deparei-me com oseguinte “provérbio”: suku onganga, traduzido como “deus é feiticeiro”.O que levaria um missionário, “em sã consciência”, a estabelecer umaequivalência como esta? Não se tratava de um missionário formado nocontexto da “inculturação”2, nem de alguém isento de preconceitos,muito menos de um entusiasta dos costumes “pagãos”. O estudo a se-guir procura dar conta desse assombro. No que diz respeito às traduções,a disputa ocorre principalmente na prática do estabelecimento de equi-valências entre os termos: guiam esse processo os “erros e acertos” dosmissionários, medidos no comportamento dos evangelizandos, bem comoas reações destes às conexões simbólicas realizadas.

1 Por indexação entendo o processo descrito por Sahlins em Historical Metaphors and

Mythical Realities (1985), no qual um código se constitui pela associação estabelecidaentre parte do campo semântico de categorias provenientes de contextos simbólicosdistintos, prevalecendo aquelas com maior capacidade de generalização. A principaldiferença analítica de minha perspectiva sobre a indexação em relação à de Sahlinsreside no fato de o autor remeter a indexação das categorias a um rearranjo dascosmologias em interação após o contato. Ao olhar para a interação como relação entreagentes, e não entre cosmologias, a necessidade de reconstruir o sistema cultural apósa mudança não se coloca, pois este não foi pressuposto.

2 Sobre a “inculturação”, ver nota 27.

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Outras questões se colocaram ao buscar uma abordagem para darconta do material. Dariam estas fontes acesso somente à “visão dosmissionários sobre os Ovimbundu”, ou seria possível acessar a experi-ência e o universo em relação aos quais foram produzidas? Com quem omissionário autor da coletânea teria conversado? O que teria observa-do? Como teria sido o cotidiano daquelas pessoas na missão? O quepensariam, como agiriam aqueles falantes de umbundu que estabeleci-am uma relação com um universo distante do seu, mas que se tornavacada vez mais próximo? Meu intuito era compreender a relação queteria dado origem a esses registros, produtos congelados dessas trocas desímbolos, desejos, estratégias, práticas, expectativas, enfim, dessas rela-ções, nenhuma delas alheia aos jogos de poder que perpassam qualquercontexto colonial.

De muita inspiração foram os escritos de Carlo Ginzburg, especi-almente História noturna (1991), onde mostra como uma “formação cul-tural de compromisso” sobre o sabá foi construída na Europa ao longode séculos. Partia-se de uma situação inicial, em que os acusados eraminterrogados pelos inquisidores sem que houvesse consenso sobre o queestes buscavam saber e o que aqueles deveriam responder, e produzia-se,séculos depois, uma convenção de tal forma estabelecida que transfor-mou o sabá num código de comunicação entre os agentes, em relaçãoao qual interagiam e se posicionavam. Ginzburg perseguiu o processode comunicação que deu origem a esta “formação cultural de compro-misso” com base em fontes históricas produzidas pelos inquisidores, asquais tratavam de sujeitos provenientes de um universo cultural distintodo seu, sobre os quais exerciam poder. Também em O queijo e os vermes

(Ginzburg, 2006) o autor se volta para a relação entre agentes perten-centes a universos simbólicos distintos: no caso do julgamento deMenocchio pelo tribunal da Inquisição, trata-se da comunicação entreum sujeito oriundo do universo da “cultura popular” e “oral”, nos ter-mos de Ginzburg, e os inquisidores, pertencentes à elite letrada. Assim,os agentes em interação criavam seus significados com base em contex-tos distintos, mas se encontravam em diálogo, e esta comunicação pro-duzia uma convenção. Algo semelhante ocorre nas missões.

As fontes de Ginzburg, contudo, permitem-lhe acompanhar o pro-cesso de construção dessa convenção passo a passo, enquanto os regis-tros de que me vali apresentam a convenção já estabelecida. De grandevalia para compreender seu estabelecimento foi a teoria desenvolvidapor Paula Montero em Deus na aldeia (2006), onde se debruça sobre os

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processos de mediação nas missões e defende o partido que aqui adoto:o de que o código que circula na missão é produto da relação entre osagentes e da indexação, na prática, de categorias locais ao universo cris-tão3. Os processos que levaram à formação desse código são objeto deconjetura com base nos registros. No que diz respeito às traduções, ado-tei o seguinte método para apreender esse processo de negociação edisputa: parti da equivalência estabelecida no registro missionário entreum termo e/ou expressão em umbundu e um termo e/ou expressão emportuguês, para então buscar a tradução que me parecia mais literal paraesse termo, fora do contexto da missão. Interroguei-me sobre como aquelatradução teria sido estabelecida: quais agentes teriam cunhado aquelaequivalência, com base em quais estratégias, a partir de quais referenciais.Para além de investigar a equivalência, atentei para os comentários queos missionários faziam a seu respeito. Os registros etnográficos e histó-ricos foram de grande importância ao fornecerem informações históri-cas, sociológicas e culturais sobre o contexto em que as traduções sederam. Busquei, assim, reconstituir a formação dessas convenções cru-zando as informações sobre os agentes da missão, suas estratégias e dis-posições com as traduções registradas.

A ideia de constituir agentes e pensar sua interação na prática semrecorrer a um sistema cultural dado de antemão relaciona-se à tentativade olhar para a comunicação abandonando o pressuposto de que setrata de duas culturas cujos sujeitos seriam, em última análise, entesontologicamente distintos do ponto de vista de sua forma de apreensãodo mundo4. Não obstante a grande distância de perspectiva entre o uni-

3 Entre os estudos que dialogam com esse partido teórico, ver Silva (2010), Araújo eSilva (2007), Araújo (2009) e Montero (no prelo), além dos artigos em Deus na aldeia (Montero, 2006).

4 Um trabalho de peso a respeito da presença missionária em África é sem dúvida o deJean e John Comaroff (1985; 1991). Ao centrarem sua análise na interação entre ossistemas simbólicos “dos Tswana” e dos missionários, os autores procuram apreendera relação entre prática social, processo histórico e mediação cultural numa situação de“contato interétnico” pautada por uma correlação de forças extremamente díspar,como no caso da presença missionária protestante entre os Tswana na África do Sul. Aprática social é caracterizada como um entrelaçamento entre o contexto, a consciênciados atores e sua intencionalidade (Comaroff, 1985: 4). Ao pretenderem acessar aconsciência dos “sujeitos da dominação colonial”, conferem importância central àforma como estes apreenderam o processo, enfocando suas formas de “resistência”. Aabordagem, embora não ignore o fato de as transformações simbólicas decorrentes do“encontro” serem fruto da relação entre os missionários protestantes e “os Tswana”,centram a análise na perspectiva “dos Tswana”. Os autores apontam para a necessidade

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verso do pesquisador e dos pesquisados postulada pelas abordagens quebuscam reconstituir o ponto de vista do “outro” (Fabian, 1983), consta-ta-se a possibilidade prática – para não dizer necessidade e interesse –de comunicação em espaços nos quais convivem sujeitos oriundos decontextos sociais e simbólicos bastante díspares, como é o caso das mis-sões (Montero, 2006). Nesse sentido, procura-se dar conta do processobuscando compreender os códigos mobilizados para tornar essa práticapossível como convenções de significação estabelecidas na interação.Assim, o sentido do código é considerado do ponto de vista daintencionalidade estratégica, como quer Pierre Bourdieu, e não da cons-ciência. Postula-se que as decisões dos agentes baseiam-se em estratégiasdeterminadas pelo senso prático, apreciação das potencialidades do realsegundo os capitais de que dispõem para auferir a escolha que vai maisao encontro de seus propósitos. Esses propósitos são, por sua vez, deter-minados pelo habitus de cada agente, grade de leitura do mundo quecomanda e orienta suas estratégias, incorporando distinções sociais eformas de classificação reconhecidas porque naturalizadas (Bourdieu,1972; 2007, especialmente cap. 3).

Os diversos interesses conflitantes na missão levam a um embatesimbólico no qual agentes distintos disputam o reconhecimento, a im-posição legítima de uma visão de mundo, de um juízo de valores, de umapercepção sobre a realidade. Trata-se, portanto, de uma disputa pelomonopólio do sentido de um determinado aspecto do mundo social,que engendra uma violência simbólica baseada na legitimação econsequente naturalização de um significado necessariamente arbitrá-rio. Assim, o código de comunicação consiste no regime de convençõesque se estabilizam na disputa, compartilhado pelos agentes como condi-ção sine qua non da própria disputa. É o reconhecimento da legitimidadedo código que permite a manutenção das arbitrariedades que caracteri-zam qualquer convenção de significação. Nesse sentido, do ponto de

de não se tratar a questão como um encontro de blocos monolíticos (Comaroff eComaroff, 1991: 10), mas reiteram a dicotomia entre o universo simbólico do coloni-zador e do colonizado, a qual guardaria uma homologia com a disparidade de poderexistente entre ambos. A prática colocaria o movimento dialético entre estrutura eprocesso, permanência e mudança, guiada pela consciência dos atores. Embora eutambém pretenda olhar para a prática nas missões, distancio-me desta abordagem namedida em que abro mão do caráter sistêmico da cosmologia e do pressuposto daconsciência.

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vista simbólico, o constrangimento não advém de uma força externa,mas do compartilhamento do significado conferido à realidade pelosagentes com maior potencial de legitimação e pela participação de to-dos os agentes no embate simbólico cujo objetivo último é a aquisiçãodo capital que permite a imposição do sentido aos outros.

Para Bourdieu, o poder simbólico disputado constitui-se naenunciação, mas não se esgota nela. É marcado por um contexto que oinfluencia e determina. É o contexto que confere legitimidade aos enun-ciados, e essa legitimidade produz consenso quanto às formas de classi-ficação. Um enunciado considerado legítimo faz com que as pessoaspassem a enxergar o mundo através dele, naturaliza a percepção dosagentes da realidade. A correlação de forças num dado contexto apareceno mundo social na forma de uma correlação de sentidos, na qual ossentidos dotados de maior legitimidade são amparados por maior podersimbólico. O poder simbólico, entretanto, não é intrínseco às formas desimbolização, mas se configura na relação entre os agentes que o produ-zem. A mobilização obtida pela “crença” numa determinada relação sim-bólica só funciona quando sua arbitrariedade é desconhecida, ou seja,quando sua necessidade é reconhecida como natural (Bourdieu, 1982).

Afirmei reiteradas vezes a centralidade do contexto na produçãode significação na missão. Por contexto entendo a correlação de forças esentidos que se liga às posições ocupadas pelos agentes, suas disposiçõese estratégias, mas não se esgota neles, pois remete a outros contextos.Embora eu não tome a cultura como totalidade, nem faça uma leitura dacomunicação e da disputa na chave do encontro entre cosmologias5,não ignoro o fato de que universos bastante heterogêneos entraram emrelação nas missões. Roy Wagner (1981) mostra como o processo deinvenção do “outro” é precedido de um “choque cultural” que afetatodos na relação – neste caso, tanto os missionários quanto os que vie-ram a se tornar seminaristas, catequistas, catecúmenos, “pagãos”. Paradar conta desses “outros” com quem se está em relação, mas que se temdificuldade para apreender, cada qual recorre aos contextos simbólicosdisponíveis: a produção do significado é informada pelas convenções designificação precedentes e alimentada por elas. Estas são atualizadas – e

5 Para uma análise da “religião” e de suas relações com o contexto político em África nachave do encontro entre cosmologias, ver Peterson (1997), Peterson e Walhof (2002),Peel (2003), Carpenter e Sanneh (2005).

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reinventadas – a cada ato de significação – ou metaforização, como querWagner (1972) – específico. Essa forma de colocar o problema possibi-lita, por um lado, abrir mão de um conceito totalizante de cultura, quepressupõe o fechamento ou autorreprodução de um universo simbólico;por outro lado, chega-se a um compromisso entre permanência e mu-dança que prescinde do determinismo com relação às significações vin-douras e permite remetê-las, depois de atualizadas, às significações ante-riores. A relação antecede os termos e a convenção é construída ereinventada na prática.

O texto a seguir desenrola-se com o propósito de construir as basespara analisar as traduções produzidas na missão como comunicação edisputa. Assim, dou a conhecer o contexto colonial em Angola de modoa delinear as posições passíveis de serem ocupadas pelos agentes quemantinham relações com as missões. As fontes de que me vali6 apresen-tavam no mais das vezes sujeitos abstratos, subsumidos a categorias ge-rais de classificação7 e raramente nomeados, tais como “assimilados”,“indígenas”, “negros”, “brancos”, “bundos”. Busquei mostrar que posi-ções eram estas e que possibilidades e disposições, no sentido do habitus

de Bourdieu (2005), costumavam estar relacionadas a quais categorias.Em um segundo momento, esforcei-me por reconstituir o cotidiano dasmissões. Interessaram-me principalmente as aldeias entregues aoscatequistas, onde a negociação de sentidos se deu de forma particular-mente interessante. O caráter desigual da representatividade dos agen-tes em termos de possibilidade de expressão nas fontes colocou a neces-sidade de analisar a grade de leitura que orientou sua produção nominalpelos missionários. Detenho-me sobre isso com mais vagar no penúlti-mo capítulo, que se volta também para a problemática do “casamentotribal”, visto ao lado do “culto aos ancestrais” como principal empeci-lho à evangelização pelos missionários – motivo pelo qual se fez neces-sário indexar essas duas formações “problemáticas” à doutrina e à práti-ca cristã. O último capítulo, dedicado às traduções, volta-se para esseprocesso de indexação. Com isso, pretendo fornecer elementos paraque a tradução seja pensada menos como o estabelecimento de equiva-

6 As fontes inéditas utilizadas neste estudo foram obtidas junto ao arquivo da Congrega-ção do Espírito Santo em Chevilly-Larue, França. As referências a elas no texto apare-cem como “arquivo da C.E.S.”.

7 Os etnônimos foram reproduzidos tais como aparecem nas fontes, assim como a grafiadas palavras em umbundu.

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lências entre elementos provenientes de universos culturais bem deli-mitados e previamente constituídos, e mais como um embate no qual sedisputam e estabilizam convenções de significação que remetem não sóaos contextos de “origem”, mas à própria invenção dessa equivalência8.

8 A propósito, todas as traduções de obras em inglês, alemão e francês aqui citadassão minhas.

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Figura 1: Carta étnica de Angola. Fonte: Instituto de Investigação Científica de

Angola (1970).

BAKONGO-KIKONGO

AMBUNDU-KIMBUNDU

LUNDA-TCHOKWE

BALUBA-TCHILUBA

OV IMBUNDU-UMBUNDU

NGANGELA-TCHINGANGELA

HELELO-TCHIHELELO

NYANYEKA-OLUNYANYEKA

AMBO-TCHIKWANYAMA

XINDONGA

POVOS NÃO-BANTOS

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2.Categorias discursivas de classificação:

os “indígenas” e a relação entre Igreja e Estado

Actually, NAMES are the real problem.(Wagner)

2.1 A relação entre Igreja e Estado antes das guerras de“pacificação”

Retomarei aqui brevemente algumas informações relativas ao perí-odo que vai do século XV à primeira metade do século XIX. Emboranão seja este o foco deste estudo, o percurso é interessante por doismotivos: primeiramente, permite lançar luz sobre a relação de longaduração entre o Estado colonial português e a Igreja católica; em segun-do lugar, as primeiras tentativas de estabelecimento missionário nasáreas circunvizinhas ao Planalto Central são constitutivas da memóriaespiritana e mantêm estreita relação com o papel que os espiritanos seautoatribuem nessa empreitada (e.g. Costa, 1970) – esse período, carac-terizado como o contato inicial dos padres católicos com populações atéentão “completamente pagãs”, é constitutivo do imaginário dosespiritanos e articula-se com a forma como narram sua escolha da Áfri-ca como destino de suas missões.

Os portugueses chegaram ao rio Zaire em 1482, e a chegada demissionários franciscanos ao Reino do Kongo deu-se já em 1484. Apresença portuguesa na África restringia-se nessa época – e até o iníciodo século XX – a enclaves e portos ao longo da costa, nos quais a prin-cipal atividade era o comércio de escravos e algumas mercadorias vin-das do interior, trocadas principalmente por panos e bebidas alcoóli-cas9. O interior jazia praticamente inexplorado pelos europeus e assim

9 Para mais detalhes sobre o tráfico de escravos em Angola, ver Alencastro (2000).

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permaneceria até as chamadas guerras de “pacificação” no século XIX.Embora a evangelização tenha-se realizado nesse período de maneiraassistemática e com pouca abrangência territorial, é constitutiva do ima-ginário missionário católico, sendo recorrente a alusão à “receptividade”dos habitantes desse território à presença portuguesa e ao cristianis-mo10. É frequentemente mencionado, por exemplo, que D. Henrique,filho do Rei do Kongo, foi o primeiro africano a ser sagrado bispo, nosidos de 1518. São também inúmeras as alusões à conversão da cortecongolesa ao catolicismo e às relações diplomáticas entre o rei de Portu-gal e o rei do Kongo. As fontes espiritanas referem-se repetidas vezes àsqueixas do rei do Kongo a Roma por ter sido abandonado e às suassolicitações de envio de novos missionários. Esses pedidos de auxíliosão apresentados pelos espiritanos como índice da inclinação cristã dessespovos e do “estado de abandono espiritual” em que se encontravam(Koren, 1982; Lourenço, 2003).

A colaboração entre o Estado português e a Igreja católica no quediz respeito à atuação nos territórios ultramarinos data da expansãomarítima lusitana. O Padroado Real estipulava que todas as terras desco-bertas por Portugal pertencer-lhe-iam de jure mediante o cumprimentodo dever de evangelizar as populações que as habitavam. Isso conferiaao governo português um poder não usual no que diz respeito à escolhados bispos e das congregações que atuariam em território africano. En-tretanto, alegando que os missionários espanhóis e portugueses nãohaviam correspondido às expectativas do Vaticano em termos da exten-são das obras de propagação da fé cristã, Roma criou a Sagrada Congre-gação da Propaganda Fide (1622). A partir de então, todas as terras aindadesocupadas pelos espanhóis ou portugueses foram colocadas sobpadroado pontifício romano. Tratava-se de um padroado universal e, aomenos do ponto de vista ideológico, exclusivamente espiritual, ligadoao projeto de expansão do cristianismo em nível mundial, que se con-trapunha ao monopólio inicial do Estado português. Como Portugalenfrentava dificuldades para dominar e evangelizar seus territórios ul-tramarinos, mostrava-se desconfiado com relação à presença de missio-nários estrangeiros em suas terras.

10 Thornton (1981; 1984), MacGaffey (1986) e Slenes (2008) são referências importantessobre a presença missionária no Reino do Kongo no período anterior ao que analiso.

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Os espiritanos, estabelecidos no Senegal desde 1779 e no Gabãodesde 1844, pretendiam expandir suas missões na África. Segundo anarrativa oficial da Congregação, o bispo residente em Libreville, D.Bessieux, ter-se-ia “compadec[ido] de uma cristandade outrora flores-cente, mas agora prestes a desaparecer, e os responsáveis máximos, im-pávidos e indiferentes” (Lourenço, 2003: 40). De passagem por Luandaem 1852, o padre espiritano Lossedat relatava o “completo abandono”do território, “completamente desprovido de assistência religiosa”. Acarta abaixo, do rei do Kongo a Roma, na qual solicita o envio de missi-onários, é citada com frequência pelos historiadores da Congregaçãocomo indício irrefutável do pendor cristão de seus habitantes:

Sumário: Pedido de missionários para baptizar o seu povo e agrade-cer o envio de um manto vermelho e duas cruzes douradas.J.M.J.Ao Sertíssimo Bispo de Angola e CongoDs. Gd mtos annos. Mando a busgar a sua pensoa como mando ASua Magestade Fiddisima Rainha de Portugal Da. Maria 2a VosBispo hir na Loanda para Sengar a tem no Reino do Congo paradisministrar a Cristandade ó povo deste Reino por quem tem muitagente que não forão bautisados e Cotesarão e protesos porque oque não bautisado quando que moreo hir no inferno não é minhaCurpa.Também recebi o mimo que tereso de umacapa ecranado +.Fico muito Obricado.Escrita e Pracia se Sã Salvador do Reino do Congo, aos 3 de Maiode 1853O Bsador meu filho D. Alvaro de agoa rozada de SardoniaRei do Congo D. Henrique 2o [sic] (Brásio apud ibidem: 42-43)

D. Bessieux, após informar-se da situação em Angola, teria escritoa Libermann, segundo fundador e superior geral da Congregação à épo-ca, para relatar-lhe seu estado de abandono e a necessidade deevangelização de seus habitantes. Teria ainda viajado a Portugal paradenunciar as condições da região ao Ministro do Ultramar e ao bispode Angola e seguido para Roma com o intuito de expor ao Papa a neces-sidade de ocuparem-se da região. Portugal teria sido acusado pelo Vaticanode negligência na evangelização de suas colônias do ultramar e instadoa enviar sacerdotes para suprir o território angolano, sob pena de anula-ção do Padroado Real e do subsequente envio de missionários estrangei-ros por parte da Santa Sé sem autorização prévia do governo lusitano.

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Roma preocupava-se principalmente com a expansão do protes-tantismo. O missionário protestante Livingstone havia atravessado aÁfrica Austral do Cabo a Luanda entre 1849 e 1853, empreendendouma viagem ao leste até Moçambique. Suas obras, nas quais defendia ofim da escravidão na África, haviam arrebatado os países protestantes,atraindo grande número de missionários ingleses, alemães e america-nos. Para o governo português, essa presença estrangeira teria feito comque Portugal perdesse o território que ligava Angola e Moçambique, atéentão desocupado. Isso explica em parte a resistência portuguesa aoenvio de missionários estrangeiros, pois sua presença nas terras conferidasa Portugal pelo Padroado Real teria feito com que perdessem esses terri-tórios. Por outro lado, a presença dos protestantes colocava para Roma anecessidade de disseminar missionários católicos pelo território africa-no, sob pena de perder potenciais fiéis.

O envio de missionários seculares por parte do governo portuguêsnunca era suficiente: era difícil encontrá-los e poucos se dispunham aassumir cargos na colônia, para além do fato de não deixarem sucesso-res. Colocava-se, pois, a necessidade de encontrar uma ordem ou con-gregação religiosa disposta a encarregar-se da tarefa. Após diversos con-vites da Propaganda Fide a congregações com membros portugueses te-rem sido declinados, o território foi entregue à Congregação do EspíritoSanto em 1865, após esta afirmar seu caráter apolítico e antimilitarista ese colocar como alheia aos projetos franceses de expansão colonial,numa tentativa de minimizar a resistência portuguesa à presença demissionários estrangeiros no ultramar.

A Congregação do Espírito Santo foi a principal encarregada doprojeto de evangelização da Igreja católica em Angola. Ali se estabeleceuem 1866 com o objetivo de espalhar missões por todo o território. Nãoé fortuito que tenham sido os missionários do Espírito Santo a abraçaresse projeto: o “estado de abandono” em que se encontravam esses “po-bres” ia bem ao encontro de seu carisma: levar auxílio espiritual e tem-poral principalmente aos negros do continente africano, “negligencia-dos” e “necessitados de sua dedicação”:

[A Congregação] tem por fim próprio e distintivo os ministérioshumildes e penosos para os quais a santa Igreja tem mais dificuldadeem encontrar obreiros apostólicos, especialmente a evangelizaçãodos Infiéis, e dos Infiéis de raça negra. (Griffin, 1957: 30)

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Em face da resistência do governo português aos missionários es-trangeiros, o padre Duparquet fundou, em 1867, a Escola Apostólica deSantarém em Portugal com o objetivo de formar espiritanos portuguesespara atuar em Angola. A ideia era recorrer a missionários de outrasregiões da Europa apenas quando não houvesse padres portugueses dis-poníveis de modo a evitar conflitos com o governo. Entretanto, a faltade pessoal fazia com que essa solução fosse utilizada com frequência,pois em muitos casos as missões ficavam entregues somente a um supe-rior, contrariando o preceito da vida em comunidade e prejudicando oprojeto missionário de expansão (Bouchard, 1967: 45). As reclamaçõescom relação à falta de pessoal são recorrentes nas correspondênciasentre os missionários, assim como as doenças e as mortes no ultramar.

2.2 A relação entre Igreja e Estado após as guerras de“pacificação”

Após as guerras de “pacificação”, nas quais me deterei mais adian-te, a missão católica em Angola no início do século XX foi marcadapelos diferentes momentos políticos pelos quais passou Portugal e tam-bém pelos posicionamentos cambiantes deste com relação ao papel aser desempenhado pela Igreja nas colônias. Excetuados curtos períodosde anticlericalismo, como o que ocorreu na metrópole na década de1910 com o fim da monarquia e a separação da Igreja do Estado11, atendência do governo português foi de aliar-se às missões católicas, comas quais contou desde o início para promover a “educação” e “civiliza-ção” dos “indígenas”, ressalva feita à resistência portuguesa à presençados estrangeiros.

Por outro lado, a presença de missionários católicos, ainda que emsua maioria não portugueses, parecia ao governo colonial menos ame-açadora a sua soberania do que a presença de protestantes. Foi-se, assim,formando uma aliança entre Estado e Igreja que se consolidou no pro-cesso de “pacificação” dos territórios mais distantes da costa no início

11 Nesse período, as casas de formação de missionários da Congregação do EspíritoSanto em Portugal foram fechadas e as atribulações se estenderam a Angola, onde amissão do Huambo, por exemplo, foi expropriada pela ferrovia de Benguela. Entre-tanto, os Acordos Internacionais de Berlim (1885) asseguraram o lugar das missõesprotestantes, católicas e laicas em solo africano.

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do século XX. Os missionários dependiam do exército colonial paragarantir sua presença, sendo o estabelecimento da paz no território con-dição sine qua non para a atuação das missões; assim, os militares atua-vam na retaguarda dos missionários e estes, no caso de conflitos, atua-vam como “pacificadores”. Os espiritanos chegaram a tomar parte naGuerra do Cunene, de 1915, envolvendo alemães e “indígenas”, na qualse atribui historicamente a “restauração da ordem” ao padre Keilingdevido ao prestígio de que este gozaria junto aos “indígenas” (Lourenço,2003). Em 1926, com o advento do Estado Novo salazarista, foi procla-mado o Estatuto de João Belo, que garantia a liberdade de culto e aseparação entre a Igreja e o Estado nas colônias. Mediante esse estatuto,o governo colonial aceitava oficialmente a colaboração das missões ca-tólicas portuguesas estabelecidas em acordo com o Estado português epor ele subvencionadas, as quais permaneciam sujeitas à jurisdição espi-ritual e à vigilância de prelados portugueses12.

Os vínculos políticos do governo colonial com a Igreja se fortale-ceram nos anos seguintes, como se pode depreender do corpus jurídicoda época. Embora a legislação não seja um reflexo da prática nem adetermine, é um lugar privilegiado para se apreenderem os preceitosideológicos de uma instituição. A aproximação entre Igreja e Estadopode ser vislumbrada no Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indíge-nas, publicado no Diário do Governo português em fevereiro de 1929,no qual a empreitada colonial é descrita como historicamente relacio-nada ao caráter cristão da “civilização” dos “indígenas”:

A governação ultramarina de Portugal obedeceu historicamente ànorma cristã, humanitária e patriótica de manter e civilizar popula-ções indígenas do nosso vasto domínio colonial e de as incorporarfraternalmente no organismo político, social e econômico da Na-ção Portuguesa. (apud Thomaz, 2002: 318)

Outro elemento central do corpus jurídico colonial português é oAto Colonial de 1930, cujo artigo 24 estabelece:

As missões católicas portuguesas no ultramar, instrumentos de civi-lização e influência nacional, e os estabelecimentos de formação dopessoal para os serviços delas e do Padroado Português, terão pos-

12 Em 1932, os espiritanos contavam com 71 padres, dos quais apenas 13 eram portugueses.

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sibilidade jurídica e serão protegidos e auxiliados pelo Estado, comoinstituições de ensino. (apud ibidem: 314)

Com os Acordos Missionários e a Concordata de 1940, a educaçãodas populações “indígenas” foi entregue exclusivamente aos missioná-rios católicos. A partir de então, embora prevalecesse a obrigatoriedadede a maior parte dos missionários ser de origem portuguesa, a parceriaentre Igreja e Estado no que diz respeito à empreitada “catequética” e“civilizadora” foi consolidada. Não obstante, ainda após a Concordata arelação entre missão e governo não foi isenta de tensões, pois haviamuito poucos missionários portugueses dispostos a ir para Angola. Otom da carta do missionário Carlos Estermann ao superior da Congre-gação, Louis Le Hunsec, em 1945, reproduzido por vários outros missi-onários em diversos momentos, é bastante ilustrativo da urgência noenvio de reforços humanos:

É indispensável que recomecemos o mais cedo possível a recorrer aométodo que utilizávamos antes da guerra: pedir a várias provínciasque venham em ajuda às Missões de Angola. Com efeito, os 25 anosde existência da província de Portugal restaurada mostraram queesse país não conseguirá fornecer daqui em diante um número sufi-ciente de missionários não só para desenvolver o movimento deconversão, mas para manter o que foi criado nos últimos 60 anos.Aqui, no velho distrito do Cunene, há atualmente três missões comsomente um padre: Quilenges, Sendi e Tyulu. Trata-se de uma situ-ação insustentável a longo prazo. Nas Missões do país umbundu omovimento religioso é esmagador para o pequeno número de Pa-dres; além disso, seria ainda necessário multiplicar as missões. (ar-quivo da C.E.S.)

A questão da carência de missionários e da resistência de Portugalà presença de estrangeiros perdurou ao longo dos anos, acentuando-seconforme foram aumentando as pressões internacionais pelo fim docolonialismo europeu na África. Constituiu a principal fonte de confli-to entre o governo português e os espiritanos, mas foi, via de regra,superada em vista dos privilégios concedidos pelo Estado colonial àsmissões católicas e à posição estratégica destas últimas no sistema colo-nial. A preocupação com a questão reflete-se na correspondência. Norelatório quinquenal de 1955-1960 sobre a diocese de Nova Lisboa, en-viado a Roma, os padres são listados por nacionalidade:

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RESUMO DO NÚMERO DE PADRES QUE TRABALHAM EM NOVA LISBOA

Padres do Espírito Santo de nacionalidade portuguesa 46

Padres do Espírito Santo de nacionalidade francesa 04

Padres do Espírito Santo de nacionalidade holandesa 12

Padres de la Salette de nacionalidade suíça 12

Padres cistercienses de nacionalidade espanhola 07

Padres cistercienses de nacionalidade portuguesa 01

Padres seculares europeus portugueses 16

Padres seculares de Goa de nacionalidade portuguesa 04

Padres seculares indígenas de nacionalidade portuguesa 38

TOTAL DE PADRES DA DIOCESE DE NOVA LISBOA 140

Tabela 1: Missionários católicos em Nova Lisboa (1955-1960). Fonte: arquivo da C.E.S.

No que diz respeito à exclusividade conferida pelo governo aosmissionários para a educação dos “indígenas”, pode-se afirmar que acar-retou, na prática, a restrição das oportunidades de educação e, portanto,da possibilidade de aquisição do estatuto de “assimilado”, aos alunosdas missões, tanto católicas quanto protestantes, dada a inexistência deinstituições de ensino laicas para “indígenas” durante o período coloni-al em Angola. Isso acabou por gerar, conforme veremos adiante, a ex-pectativa e a pressuposição de que todos os negros “educados” e, portan-to, passíveis de serem “assimilados”, fossem “cristãos”. Essa situação ébastante visível na tabela acima, inclusive, na qual se nota que os “pa-dres seculares indígenas” eram todos de “nacionalidade portuguesa”, ouseja, “assimilados”, pois para ser “cidadão português” um “indígena”necessariamente teria de adquirir o estatuto de “assimilado”. Não é àtoa que parte desses “assimilados” fazia parte da Congregação: esta ofe-recia, ao lado de suas concorrentes protestantes, o único meio de acessoà educação formal nos moldes europeus para “indígenas”.

Quanto à língua, a legislação colonial determinava que a instru-ção escolar fosse ministrada exclusivamente em português, podendo aeducação religiosa ser realizada em língua local (Koren, 1982: 498). Aeducação formal em língua portuguesa, vista como necessária para a“assimilação” dos “indígenas”, sem dúvida representou um obstáculoao acesso da grande maioria da população a esse ensino, explicando emparte o reduzido número de “assimilados” (Bender, 1978). Por outro

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lado, a evangelização no vernáculo colocava a possibilidade de acessoao cristianismo para todos os “indígenas”, engendrando todo um esfor-ço de tradução do corpus doutrinário católico pelos missionários, emação conjunta com falantes das línguas locais.

2.3 Indigenato e assimilacionismo: o Estado e os “indígenas”

O Ato Colonial foi, segundo Thomaz, “uma tentativa orgânica dedar conta quer dos “usos e costumes” dos nativos (diversidade cultural),quer das necessidades do império (disciplina dos indígenas e controledo trabalho)” (Thomaz, 2002: 27). Desde o início de seu projeto coloni-al, Portugal viu-se às voltas com a necessidade de promover o desenvol-vimento rumo à “assimilação” dos “indígenas” à cultura portuguesa,padrão de “civilização”, e ao mesmo tempo levar em conta a inegávelmultiplicidade cultural das populações do ultramar. Logo no início doAto Colonial, a “missão civilizatória” portuguesa é apresentada ao mun-do como fazendo parte de sua “essência orgânica”:

Art. 2º É da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar afunção histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e decivilizar as populações indígenas que neles se compreendam, exer-cendo também a influência moral que lhes é adscrita pelo Padroadodo Oriente. (apud ibidem: 311)

Muito embora essa aparente contradição tenha perpassado todo operíodo colonial, foi na década de 1950 que a necessidade de justificar apresença portuguesa em território africano se acentuou. Com o términoda Segunda Guerra Mundial e o início do processo de independênciade diversos países africanos, Portugal viu-se na iminência de ter de abrirmão de suas colônias, o que no momento parecia impensável e desastro-so. Some-se a isso a dificuldade portuguesa em validar seus domínios noultramar a partir do trabalho de exploração econômica de seus territóri-os e da proposta de levar a tão apregoada “civilização” a esses “indíge-nas” em comparação com os resultados obtidos pelas potências capita-listas vizinhas. Para evitar a perda das colônias, Portugal mobilizou todoum arsenal discursivo com o intuito de veicular a imagem de uma naçãoportuguesa desterritorializada, cujas fronteiras se estendiam ao ultramar,sendo o povo português bondoso e cioso do destino das populaçõescarentes pelas quais era responsável (Thomaz, 2001). O vínculo entre

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esses supostos compatriotas seria de natureza não só econômica e polí-tica, mas “predominantemente afetiva” (Péclard, 2001), e a colonizaçãoportuguesa seria, antes de mais nada, uma missão de “civilização” e“cristianização”, sendo as colônias parte do território do estado-naçãoportuguês.

Essa ideologia, de inspiração gilbertiana, consolidou-se no planojurídico após a revisão constitucional de 1951, que materializava a me-táfora portuguesa de que suas colônias do ultramar, então denominadas“províncias ultramarinas”, seriam prolongamentos de sua porçãoeuropeia. Em princípio, é bastante surpreendente a adoção de seme-lhante embasamento teórico para a ideologia do Estado Novo. Emboranas décadas de 1930 e 1940 a obra gilbertiana tenha sido lida em Portu-gal, foi posta de lado pelo Estado Novo com desconfiança porque ogoverno lusitano não tinha a intenção de comprometer-se com a misci-genação da qual Freyre fazia a apologia. A apropriação dos estudos deGilberto Freyre pelo regime colonial português potencializou o argu-mento do caráter distintivo do português de modo a diluir o pendorpara a hybris e ressaltar sua afabilidade, simpatia e tolerância. Esse viésda apropriação da obra gilbertiana deve-se à tentativa de, ao mesmotempo, afirmar a concepção universalista do gênero humano do projetocolonial português e legitimar um processo de dominação.

Uma das contradições mais patentes da legislação colonial que olusotropicalismo viria a solucionar era a que se colocava entre oindigenato e o assimilacionismo. Ela se faz explícita no trecho abaixo,retirado do Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas, decretono. 16.473, de fevereiro de 1929:

Não se atribuem aos indígenas, por falta de significado prático, osdireitos relacionados com as nossas instituições constitucionais. Nãosubmetemos a sua vida individual, doméstica e pública, se assim épermitido dizer, às nossas leis políticas, aos nossos códigos adminis-trativos, civis, comerciais e penais, à nossa organização judiciária.Mantemos para eles uma ordem jurídica própria do estado das suasfaculdades, da sua mentalidade de primitivos, dos seus sentimentos,da sua vida, sem prescindirmos de os ir chamando por todas asformas convenientes à elevação, cada vez maior, do seu nível deexistência. Ela é constituída principalmente pelas suas concepções,normas e costumes relativamente à constituição da família, aos atose contratos da vida e às reparações dos delitos, sendo indispensávelcontemporizar com ela em tudo o que não é imoral, injusto ou

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desumano. [Ela deve] também [assegurar] o cumprimento progressivodos seus deveres morais e legais de trabalho, de educação e de aperfei-çoamento, com todas as garantias da justiça e da liberdade. O outro,ainda por força da mesma doutrina basilar, é o de os levar a todos osadiantamentos desejáveis dentro dos próprios quadros da sua civiliza-ção rudimentar, de forma que se faça gradualmente e com suavidadea transformação dos seus usos e costumes, a valorização da sua ativi-dade e a sua integração no organismo e na vida da colônia, prolonga-mento da Mãe-Pátria. (apud Thomaz, 2002: 319-320)

Central para a compreensão da legislação colonial é, portanto,entender a categoria “indígena” nesse contexto, para a qual o próprioEstatuto fornece uma definição:

Art. 2º Para os efeitos do presente Estatuto, são considerados indí-genas os indivíduos da raça negra ou dela descendentes que, pela suailustração e costumes, se não distingam do comum daquela raça; enão indígenas, os indivíduos de qualquer raça que não estejam nes-tas condições. Aos governos das colônias compete definir, em diplo-ma legislativo, as condições especiais quedevem caracterizar os indi-víduos naturais delas ou nelas habitando, para serem consideradosindígenas, para o efeito da aplicação do Estatuto e dos diplomasespeciais promulgados para indígenas. (apud ibidem: 322-323)

Os “indivíduos da raça negra ou dela descendentes que, pela suailustração e costumes, se não distingam do comum daquela raça” seriam,portanto, considerados “indígenas”. Assim, se o critério de mensuraçãodo grau de “civilização” para que um indivíduo fosse considerado “assimi-lado” seria, em princípio, sua capacidade de assimilação da cultura por-tuguesa, podendo, com base em seus costumes, ser considerado “portu-guês”, essa noção de cultura está inegavelmente atrelada a umapredeterminação racial: os negros seriam, em princípio, “indígenas” – ouseja, em princípio, “raça” e “estágio evolutivo” são equiparados13.

Para além de os “assimilados” constituírem uma exceção ao estabe-lecimento dessa equivalência, a aquisição desse estatuto seria feita atra-

13 Esse grau de “civilização” aparece atrelado a uma noção de “mentalidade” dos “indíge-nas” tanto na legislação colonial quanto nos registros da Congregação. No capítulo 4mostro como essa noção serviu como grade de leitura da alteridade para diversosagentes – entre eles os missionários – em Angola.

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vés da educação nas escolas missionárias e de sua apresentação aos agen-tes da administração colonial, únicos capacitados para julgar em quemedida se qualificavam ou não para tal designação. Isso explica emparte por que tão poucos indivíduos eram oficialmente considerados“assimilados” pelo governo português (Bender, 1978). Semelhante situa-ção coloca as missões claramente como portas de entrada para essemundo de privilégios, uma vez que os “assimilados”, embora tivessemobrigações fiscais mais onerosas que as dos “indígenas”, tinham a possi-bilidade de ocupar baixos cargos na administração colonial e eram dis-pensados do trabalho “voluntário” – extensível e compulsório a todosos “indígenas”, em especial aqueles classificados como “pagãos”.

O viés racialista da classificação dos componentes do império por-tuguês do ultramar é notável também no que diz respeito aos “brancos”e “mestiços”. A condição de “cidadãos portugueses” dos “brancos por-tugueses” era inquestionável, e a presença branca em Angola era julgadabenéfica mesmo em se tratando de degredados e camponeses combaixíssimo nível de instrução, avassaladora maioria dos colonos queaportavam em Luanda e Benguela (ibidem). Já os “mestiços” tiveram histo-ricamente uma posição ambígua: embora fossem considerados superioresaos “indígenas” do ponto de vista cultural e racial, a mestiçagem eravista como potencial problema. Aos “mestiços” era, entretanto, infinita-mente mais fácil adquirir o estatuto de “assimilado” do que aos “ne-gros”. Sua maioria era “assimilada”. A despeito das ambiguidades, ahierarquia era bastante clara: em termos de superioridade cultural eracial vinham os “brancos”, seguidos dos “mestiços” e “assimilados”, epor fim os “negros”. As exceções confirmavam a regra através do espan-to que suscitavam. Abaixo dos “negros”, pertencentes à “raça banto”,encontravam-se os “bosquímanes”, caçadores-coletores habitantes dasflorestas e distantes das missões e dos centros urbanos, ditos “o povomais primitivo de Angola” (Estermann, 1983: 45).

O lusotropicalismo, aliado ao gradualismo, resolvia a contradiçãoentre assimilacionismo e indigenato propondo a lenta integração dos“indígenas” à nação, quando adquiririam, pela “assimilação”, a condi-ção de “cidadãos portugueses”.

2.4 A Congregação do Espírito Santo e os “indígenas”

Existem muitos elementos em comum na forma de olhar para os“indígenas” por parte da Congregação do Espírito Santo e do governo

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colonial. Ambas as instituições compartilhavam a preocupação com amelhor forma de adequar a diversidade observada a seu projetouniversalizante de cristianização e civilização. Nessa chave, tinham emcomum o esforço de compreender o outro para serem capazes de distin-guir os elementos que não representavam empecilho a seu projeto, epodiam ser preservados, dos elementos que o contrariavam, a seremprogressivamente transformados. Assim, os “indígenas” deveriam serguiados através dos diversos estágios de desenvolvimento da escalaevolutiva até se tornarem “civilizados”, evolução que se daria pari passu

com a compreensão e prática da doutrina cristã. A leitura racialista daalteridade realizada pela Congregação guarda aqui semelhanças bastan-te notáveis com a que embasou a legislação colonial. Essas categoriasdiscursivas dão acesso a uma leitura dos “indígenas” que determinousua relação com os missionários e foi, por sua vez, determinada por ela.

Para compreender essa alteridade era necessário classificá-la, pro-cesso que começava pelo domínio do vernáculo, primeira tarefa a sercumprida pelos missionários recém-chegados. Para além da necessidadede comunicação tout court, o aprendizado das línguas era importanteporque estas refletiam, aos olhos dos missionários, o “estágio evolutivo”no qual esses “indígenas” se encontravam, dando acesso a seu universo“mental”. A classificação e gramatização das línguas locais foi realizadajuntamente com o esforço de classificação dos “indígenas” em gruposétnicos14. A cada língua correspondia uma etnia. Dessa forma, os “indí-genas” eram divididos em “bosquímanes” e “bantos”, com os “bantos”subdivididos em inúmeras etnias – por exemplo, a dos “bundos” –, àsquais se atribuíam um território, uma língua, costumes e uma psicolo-gia. Os “bantos”, por sua vez, eram “negros” ou “pretos”, e dessa perten-ça racial advinha uma série de características que lhes eram atribuídasem oposição aos “brancos”.

Salta aos olhos que os “indígenas” não são nomeados individual-mente na maior parte dos registros internos da Congregação. Seus no-mes não são mencionados nas cartas dos missionários, muito menosnos relatórios, nos quais são designados ora como “negros” ou “indíge-nas”, ora como “cristãos”, “católicos” ou “pagãos” nas relações estatísti-cas. Alguns nomes de “indígenas” são citados, com alguma frequência,

14 O esforço classificatório missionário, tanto do ponto de vista étnico quanto linguístico,é extensível a sua presença na África como um todo. A esse respeito, ver Ranger (1989).

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nos artigos de Estermann (1983) e nas obras Paisagem africana e A proble-

mática do matrimônio tribal de Valente (respectivamente, 1973 e 1985)quando se trata de caracterizar indivíduos que ilustrem os problemasapontados. É digno de nota, ainda, que esses indivíduos sejam nomea-dos apenas nas obras mais recentes, do período pós-conciliar, sendoraríssimas vezes mencionados nas obras anteriores à década de 1970.Estermann nomeia algumas “feiticeiras” quando pretende compreen-der a possessão entre os “bantos” e esmiuçar a forma como funcionaesse processo no qual delas se apoderam os espíritos dos antepassados(Estermann, 1983: 356). Já Valente cita alguns nomes para exemplificarcomo diversas “indígenas” se opunham a serem designadas para o casa-mento contra sua vontade. Menciona ainda, na obra de 1973, o papelfundamental que tiveram alguns catequistas na confecção da coletânea.Nessas instâncias, o ato de conferir nomes aos indivíduos e remeter àssituações vividas confere legitimidade à narrativa missionária.

Entretanto, nos registros internos da Congregação e naqueles des-tinados ao governo colonial português, os “indígenas” não são nomea-dos. Diferentemente do que ocorre nas obras destinadas ao grande pú-blico, cujo intuito é divulgar a ação missionária e civilizadora do Estadoe da Igreja, mas que não obstante se valem da mesma grade de leitura,nesses registros internos fica mais clara a forma de classificação operante.Aqui, vê-se como Igreja e Estado compartilharam da visão primordial-mente racialista à qual aludi ao tratar da legislação colonial. Não só nasestatísticas, mas também nas cartas trocadas entre os missionários, oshabitantes dos territórios a serem evangelizados são tratados ora como“indígenas”, ora como “negros”, tanto quando contabilizados nas esta-tísticas, quanto ao serem mencionados nas narrativas sobre a vida nasmissões. Algumas cartas mencionam uma polêmica com relação à divi-são dos seminaristas brancos e negros em aposentos distintos. Algunsmissionários colocavam-se a favor da prática e outros, contra. A situaçãoé assim descrita pelo bispo Junqueira ao superior da Congregação em 10de agosto de 1948:

[A]qui, em minha diocese de Nova Lisboa, há uma situação especialda qual resulta que os padres europeus não devem diminuir. Esta ésem dúvida a diocese em que há mais europeus entre todas as diocesesde Angola, ao menos. Esses europeus aumentam continuamente.Estão dispersos por todas as regiões do interior. Ora, eles não acei-tam o ministério dos padres negros. Eu pensava que essa separação

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entre as raças diminuiria aos pouco, mas verifico que ocorre o con-trário. Trata-se de um caso que não deixa de me preocupar, mascontinuarei a desenvolver a obra do clero indígena, tanto quantoeu puder. (arquivo da C.E.S.)

Essa hierarquização dos missionários com base no critério racial,epitomizada na separação física no espaço dos seminários, é bastanteilustrativa das diferenças entre eles: a hierarquia racial da legislaçãocolonial, se era em princípio rechaçada pelo corpus jurídico da Congre-gação, reproduzia-se na prática das relações entre seus membros. É dig-no de nota ainda que, ao mencionar um missionário específico, apenasseu nome era mencionado quando “branco” e “europeu”; quando omissionário em questão não era “branco”, seu nome era seguido de“mestiço” ou “negro”. As listas dos missionários da Congregação emAngola, contendo nome, idade, descrição psicológica e avaliação dedesempenho, também discriminavam se o missionário era “branco”,“mestiço” ou “negro”. Em carta ao superior da Congregação em 14 dejaneiro de 1949, cujo intuito é agradecer um breviário, Gabriel JosephCandide inicia seu texto identificando-se da forma esperada: “sou umjovem seminarista negro português” (arquivo da C.E.S.).

Existe claramente uma diferença de ênfase nos relatórios internosda Congregação e nos relatórios para o governo português: os primeirosenfatizam quase exclusivamente questões financeiras e o processo deevangelização (projetos de construção de novas missões, desempenhodos missionários, não havendo praticamente menções ao cotidiano dasrelações com os “indígenas”); os segundos, por sua vez, contemplammais as realizações da missão no que diz respeito à catequização e educa-ção dos “indígenas”. A maior parte das estatísticas apresenta númeroscomo: “católicos”, “catecúmenos”, “batismos”, “casamentos”, “confir-mações”, “confissões”, “comunhões”, “tratamentos médicos”, “alunosinternos dos dois sexos”, “instrução primária”, “ensino médio”. Noquesito “evangelização”, dá-se especial ênfase ao número de “católicos”e à administração dos sacramentos, vista como confirmação da classifi-cação desses “indígenas” como “católicos”. No que diz respeito à “edu-cação”, a grande maioria dos “católicos” aparece no catecumenato ealguns poucos nos ensinos primário e médio.

Na relação apresentada no relatório quinquenal a Roma dos anos1955 a 1960, referente à diocese de Sá da Bandeira, “habitada pela mes-ma tribo dos ‘Vimbundos’, tendo uma única língua, o que facilita em

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muito o ensino da doutrina cristã”, a população é descrita da seguintemaneira:

O número de habitantes da diocese é de 1.204. 776

A superfície da diocese é de 65.560 km2

O número de Católicos é de 611.518

Entre os quais:

Católicos indígenas 559.618

Católicos europeus brancos 40.000

Católicos mestiços 12.000

O número de catecúmenos é de 54.831

O número de protestantes 150.000

O número de pagãos 388.427

Não há maometanos, o que é um grande bem.O número de judeus pode ser uma dúzia, mas eles não são pratican-tes. São comerciantes.

Tabela 2: População da diocese de Sá da Bandeira (1955-1960). Fonte: arquivo da C.E.S.

O número de “indígenas católicos” é apresentado como superiorao dos “pagãos”, o que legitima o discurso da adesão dos “bundos” aocristianismo. A presença de protestantes na listagem e seu número redu-zido em relação aos católicos, se aponta para a já mencionada competi-ção entre católicos e protestantes, reitera uma vez mais o discurso dapreponderância das conversões ao catolicismo em relação ao protestan-tismo entre os mesmos “bundos”. Os catecúmenos são testemunho dacontinuidade da obra, pois representam potenciais cristãos. No mesmorelatório, são apresentados ainda números exaustivos referentes à quan-tidade de missionários, professores, catequistas, catecúmenos, escolas ealunos internos em cada estação missionária.

Nos diversos relatórios e cartas, o processo de estabelecimento dasmissões e da evangelização propriamente dita é descrito pelos missioná-rios como “florescente”, embora também apontem as dificuldades dotrabalho: carência de pessoal, mortes e doenças, dificuldade de fazercom que os “indígenas” sigam a doutrina à risca, competição com asmissões protestantes. Assim, os números dos relatórios confirmam aextensão da “cristandade”, mensurável pelo aumento na administração

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de sacramentos. Ao longo dos anos, acompanha-se esse crescimentonos registros. Constroem-se edifícios, novas escolas, seminários. For-mam-se novos catequistas, ordenam-se alguns “irmãos indígenas”, numprocesso visto como inevitável, mas que se deveria retardar ao máximo,dada a “falta de preparo” dos “indígenas” para assumir a tarefa. Comoafirma o bispo Junqueira em carta ao superior da Congregação em 1946sobre a abertura de novas missões, os padres “indígenas” deveriam serconvocados, quando necessário, apenas se acompanhados de um padreeuropeu: “seria necessário fazer um único missionário europeu acompa-nhar um indígena, pois os padres indígenas são ainda jovens einexperientes demais para assumir a direção de uma missão” (arquivoda C.E.S.). Em carta de 1958 ao superior da Congregação, o bispo Alvesafirma: “Trabalhar para os Negros e negligenciar os Brancos, é esquecera cabeça e cuidar dos membros” (arquivo da C.E.S.). Vê-se, pois, que aresistência da Congregação em transferir a liderança da Igreja aos “indí-genas” perdurou enquanto pôde.

2.5 Os “bundos”: cristianismo e distinção

As dificuldades com o governo português, o alto nível de mortali-dade dos padres recém-chegados – principalmente nas terras mais aosul do Planalto – e o fato de a maioria dos territórios do interior nãoestarem ainda “pacificados” (ou “avassalados”, para usar outro termo daépoca) no início da missionação espiritana explicam a lentidão inicial eo tempo necessário até a consolidação do projeto missionário em Ango-la. Além de Luanda e arredores, os espiritanos estenderam sua atuaçãoprincipalmente ao Planalto Central, território ocupado pela populaçãoque contribuíram para classificar como “bundos”, e às terras ao suldeste. O projeto missionário ganhou ímpeto na penúltima década doséculo XIX, com o estabelecimento de diversas missões no PlanaltoCentral, sobre as quais os espiritanos são unânimes em afirmar suaenorme efetividade. Esse “sucesso” se explicaria pela amenidade do cli-ma, pela receptividade dos “bundos” à evangelização e, em menor esca-la, pelo fato de o território ter sido “pacificado” na Guerra do Bailundo,de 1902-1903 – anteriormente, portanto, aos povos do Sul, que teriamoposto grande resistência à efetivação do domínio português até cercade 1917. A despeito da menor importância conferida pelos missionáriosà presença militar, esta foi crucial para sua instalação no território. Antesdisso, foram inúmeros os padres assassinados e as missões inviabilizadas

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por atritos com o poder local, inclusive entre “os pacíficos bundos”. Poroutro lado, não é de se desprezar o papel da evangelização na “pacifica-ção” do território.

A despeito dos contratempos iniciais, a missão entre “os bundos”sempre foi vista como relativamente simples em comparação com seusvizinhos – visão compartilhada por Edwards (1962), antropólogo britâ-nico que realizou pesquisa de campo numa aldeia católica em Epalanga,extremo noroeste do Planalto Central, na década de 1950, e também porPéclard (1995), que, embora resista em afirmar a efetividade da conversão,relata a grande atração exercida pelas missões sobre “os Ovimbundu”.Péclard realiza um estudo de caso da missão protestante de Lincoln,estabelecida por Chatelain no Caluquembe, porção sul do Planalto Cen-tral. Segundo o autor, as missões protestantes (e Lincoln especialmente)seriam mais rigorosas no que diz respeito à conversão, motivo pelo qualseu idealizador afirmava a dificuldade extrema da evangelização (Péclard,1995: 42). Chatelain atribuía à poligamia, à “feitiçaria”, à “indolêncianativa” e ao consumo de álcool os principais entraves a seu projetocatequético. Nisso não diferia muito dos padres católicos. Por outro lado,sua menor tolerância aos desvios do padrão de crenças e comportamentosexplica sua maior reticência em considerar a evangelização como bem-sucedida, no que diferia dos católicos, que pautavam suas conquistas nes-se campo pelo número de sacramentos ministrados (batismos, casamen-tos, confirmações, extrema-unções), enumerados nos relatórios enviadosà sede da Congregação e ao governo português15.

A hipótese aventada por Péclard é de que a atração exercida pelamissão sobre os “indígenas” estaria baseada muito mais na oferta demercadorias e alimentos adquiríveis mediante a prestação de serviços –o que é bastante significativo em vista dos sucessivos períodos de seca efome pelos quais passou o território no início do século XX (Dias, 1981)– do que na afinidade “dos Ovimbundu” com a doutrina proposta pelosmissionários. Estes (principalmente os protestantes) ter-se-iam validodos momentos em que os “indígenas” estavam na missão, trabalhandopara suprir suas carências materiais, para tentar inculcar-lhes os valoresmorais e éticos do cristianismo através do exemplo do trabalho. Relata

15 As estatísticas missionárias baseavam-se nos registros de cada catequista sobre suaaldeia, os quais eram fornecidos pelos missionários ao governo lusitano para a reali-zação dos censos.

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serem os evangelizandos receptivos sobretudo aos cânticos, reproduzi-dos mesmo em contextos externos à missão (Péclard, 1995: 15;Henderson, 2000: 40). Os missionários católicos parecem ter concen-trado menos esforços na oferta de trabalho, muito embora também sepreocupassem com o ensino de “ofícios” e tenham recorrido a seuscatecúmenos como mão-de-obra na construção dos edifícios da missão eem outras tarefas.

A despeito do utilitarismo que embasa a interpretação acima, oquadro contrasta enormemente com aquele apresentado oficialmentepelos missionários católicos ao grande público em suas narrativas sobrea evangelização em território “bundo”, nas quais praticamente não fa-zem menção à presença da “feitiçaria”, da “poligamia” e da “embria-guez”, a não ser para falar de sua superação nas missões católicas já nasprimeiras décadas do século XX. O contraste mantém-se também quan-do se contemplam as fontes de circulação interna, as quais apontamincessantemente a necessidade de missionários para cobrir o território,alegando o abandono de imensas áreas, confiadas aos catequistas e visi-tadas esporadicamente pelos missionários com muita dificuldade.

As instruções aos catequistas exortam ao combater aos “feiticismos”,à “embriaguez” e à “poligamia” e trazem enfáticas recomendações paraque relatem aos missionários a ocorrência de qualquer incidente nessesentido. Os artigos dos missionários em periódicos não relacionados àsmissões também apontam para a disseminação desses “males” (e.g.Estermann, 1934). As reclamações com relação aos “rituais pagãos” rea-lizados por ocasião dos funerais são abundantes. As admoestações dosmissionários (Alves, 1954), o relato de Edwards e a obra organizada porBerger (1979) levam-nos a supor a recorrência desses comportamentosconsiderados desviantes entre os “cristãos”, muitas vezes com o consen-timento tácito ou a participação do catequista. Edwards relata a existên-cia, ainda que clandestina, dos “adivinhos”:

Embora visitar adivinhos seja estritamente proibido pelos missioná-rios tanto católicos quanto protestantes, um grande número depessoas o faz, ainda que clandestinamente. Assim, disseram-me certavez que não havia adivinhos em Gumba; na verdade, havia doisvivendo em Epalanga. É importante lembrar que lá não existemhoje ‘congregações’ pagãs, ou seja, grupos permanentes associados àrealização de rituais. (Edwards, 1962: 85)

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Ainda assim, as missões eram vistas como enormemente bem-su-cedidas entre “os Ovimbundu”. Talvez isso se explique em parte porhabitarem o território adjacente ao dos Kwanhama e terem sido compa-rados a estes implícita ou explicitamente. Os Kwanhama foram conside-rados o povo mais aguerrido e ferrenho na defesa de seu território emAngola, tendo sido os últimos a serem “pacificados” após as sangrentasbatalhas de 1915 a 1917. Mesmo após seu “avassalamento”, teriam semantido, assim como os vizinhos do sul, avessos à presença missionária,sendo considerados ainda hoje predominantemente “pagãos” tanto pe-los missionários quanto pelas populações vizinhas.

O relato abaixo traz um pouco do que foi esse processo entre osKwanhama, no qual se atribui ao padre Lecomte o papel de herói damissionação no sul de Angola. Cito o trecho todo, embora longo, porconsiderar que nele estão presentes diversos dos aspectos apontados aolongo deste capítulo. Ele se refere ao estabelecimento da missão doKubango em Katoko-Utombe, ao sul do Planalto, em 1888.

A paz estabelecida no Kubango, porém, sendo relativamente fácil deimpor, não foi ‘sol de longa dura’. O destino assim o quisera, dese-jando também que fossem os missionários tão úteis e tão esforça-dos, que involuntariamente servisse de pretexto para uma revoltade desastrosas repercussões.Aberta a escola, a frequentá-la, com espanto do missionário, sóaparecem os dois filhos de Tchiwaco. Aos outros, é proibido. O Pe.Lecomte foi-lhe dizendo que ‘o sol quando nasce é para todos!’ Nãofoi feliz na intervenção e as tensões entre a Missão e o PotentadoNegro avolumam-se.Estávamos em Dezembro e a chuva ainda não caíra, o que compro-metia gravemente as sementeiras e as colheitas. Chegava a oportuni-dade para esta má fé se manifestar.Tchiwako com os feiticeiros e os velhos culpam os Padres, fazendoacreditar à sua gente que a seca é devida ao feitiço dos brancos e emespecial à vala que a Missão abrira para irrigar a horta e o jardim.O povo, tão a sério acreditou na atoarda que muitos cristãos foramter com o missionário, pedindo-lhe que deixasse cair a chuva. Ofeiticeiro por sua vez consulta o ‘Ongombo’16 que confirma os boa-tos. Tchiwaco lança na libata o grito de guerra: “para fora os bran-cos e missionários às feras”.

16 Ongombo é uma cesta de adivinhação portada pelos “adivinhos”, também encontradano Planalto Central.

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Do Dongo vem o Capitão Marques com uma pequena coluna e umvelho canhão a prestar socorro, enquanto bandos de indígenasincendeiam a missão e a fortaleza.Ao cabo de algumas horas de tiroteio, o P. Lecomte propôs-se servir demedianeiro entre as tropas portuguesas e o soba. Chegado à libata, foiimediatamente amarrado: tiram-lhe o chapéu, arrancam-lhe a batina eameaçam-no de morte. Sem perder o sangue frio, exclama: “Mas eunão vim para ser maltratado. Cessai o fogo. Vou propor ao Capitãoque faça o mesmo”. Hesitam, mas por fim consentem.O feiticeiro, contrariado com as tréguas, encontrando o P. Lecomtea jeito, alça a espingarda e, fazendo pontaria, dá ao gatilho. Porfelicidade, estava avariada a espoleta e o tiro não partiu.Silenciado o tiroteio e tendo retirado o Capitão Marques com astropas portuguesas, o P. Lecomte volta ao sobado de Tchiwaco. Emvez de agradecimentos, é recebido com apupos, vociferações coléri-cas e gritaria ensurdecedora. É espancado e amarrado a uma árvo-re. À sua volta dança o feiticeiro, que pede a morte e oesquartejamento do Missionário.Depois da macacada infernal, Tchiwaco dá ordens de o soltar eordena que seja levado à sua residência. Ao recebê-lo, cobre-o deinsultos e, para lhe provar que está nas suas mãos dar-lhe a vidaou a morte, dá tiros para o ar. Tchiwaco não o vai matar mas exi-ge a retirada dos brancos e vinte bois de resgate.– Vinte bois!... Exclama o prisioneiro. Não os tenho e, se tivesse, nãoos dava. Meu amigo, dois bois e mais nada.A resposta não agradou a Tchiwaco. Depois de muito ‘palavriado’concordou-se em juntar aos dois bois um garrafão de aguardente,um barril de pólvora, uma espingarda de pederneira e mais algunsobjectos de pouca importância.O P. Schaller, Prefeito Apostólico, foi à missão e trouxe o combina-do. Tchiwaco recebe-o, mas dá o dito por não dito, alegando que éinsuficiente e as posições agora tornam-se irredutíveis. Quandotudo parecia perdido, intervém o soba Lulunga, que Tchiwaco te-mia, acalmando o povo e propondo que ao resgate estipulado sejuntasse um cobertor e uma peça de fazenda. Mas desta vez o Padreiria ele próprio buscar tudo.Enfim, pelas cinco horas da tarde, entra na missão, depois de ter umdia de agonia. Muito à pressa, tratam do despejo; levam para ocarro tudo o que podem e seguem para Kassinga.Os trágicos acontecimentos à volta do P. Lecomte levam o Governo deLisboa a dar ordens para vingar a injúria e pacificar em definitivo a região.Comandada por Artur de Paiva, larga da Humpata, a 19 de Agostode 1889, uma expedição militar, composta por 250 homens, 18

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carros de bois, cavalos e muares e outros que se juntaram pelo ca-minho. Passam pelo Kipungo e Dongo, acampando por fim namargem direita do Kubango, à vista da fortaleza que, meses an-tes, havia sido incendiada.Em frente, do outro lado do rio, Tchiwako, soba insurrecto doKatoko, postara as suas forças, bem munidas de material que, semanasantes, comprara em Kakonda a traidores comerciantes portugueses.No meio do rio, surge um soldado de Tchiwako a gritar: “aquininguém passa”. É imediatamente abatido pela tropa portuguesa ea fusilaria começa de parte a parte. Em pontos predeterminados,foi fácil a travessia do rio com carros, cavalos, muares e canhões. Astropas de Tchiwako fogem em debandada e o próprio Artur dePaiva entra tranqüilamente na libata de Tchiwako.A prisão do soba foi mais difícil. Tinha-se escapado para longe, emesconderijos inacessíveis. Dias inteiros a cavalo, molhados até aosossos, em marchas e contra-marchas, através de rios e matosfechadíssimos, atacando ocasionalmente libatasainda em pé, an-dam oficiais, soldados auxiliares, dia a dia em acérrima caça aTchiwako.Artur de Paiva usa de toda a espécie de artimanhas. Por fim, propõeentregar os prisioneiros (mais de 200) e gado capturado, se o apri-sionassem. Era tal o medo que ninguém se resolveu a fazê-lo.O forte ‘Princesa Amélia’, onde a expedição se havia instalado, fica-ra superlotado com o número de prisioneiros e gado à mistura. Achuva tornara-se torrencial com ventos ciclônicos a empurrá-la. Oscaudais dos rios Kubango e Kunene aumentavam assustadoramente,dificultando o regresso que só se poderia fazer em botes ou jangadas.Artur de Paiva estava resolvido a mandar prender o Soba Grandequando dois negros do Lyambesi entraram no acampamento, cor-rendo, alagados em suor, com a notícia de que Tchiwaco fora preso,a uns 70 quilómetros ao Norte.Palavras de Artur de Paiva que retratam Tchiwaco, na última noitepassada na fortaleza: “Finalmente já quase escuro deu o ilustre prisionei-ro entrada no acampamento, armado com as insígnias da realeza, mascom as mãos amarradas atrás das costas, no meio de forte escolta degentio. (...) Meteu dó aquela majestade decaída. (...) Tchiwaco levou todaa noite a chorar.Todos se achavam satisfeitos porque tinham cumprido com o seu dever. ABandeira desafrontara-se dignamente e a luta fora conduzida com toda ahumanidade, compatível com tais casos.No regresso, passam por Kassinga, onde foram recebidos pelo P.Schaller que lhes agradeceu a protecção dispensada pelo governoportuguês. (Lourenço, 2003: 107-109)

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Alguns dos pontos mencionados anteriormente podem ser apre-endidos do relato acima. O padre Lecomte, vítima da “má fé” dosKwanhama e estopim da “pacificação” da região pelos portugueses, foium dos grandes responsáveis pela instalação das missões no territóriohoje conhecido como “ovimbundu”, tendo sido o tradutor e organizadordos primeiros catecismos lá utilizados (Lecomte, 1899; 1937). Sua parti-cipação como fundador de missões tanto no Sul quanto no PlanaltoCentral fortalece o argumento para a interpretação da missão entre “osbundos” em oposição às missões do Sul. A ferocidade atribuída aosKwanhama é contraposta à “humildade” e “boa disposição” com que osmissionários teriam sido recebidos pelos “bundos”. Entre estes, as vee-mentes admoestações sobre o caráter pernicioso dos feiticeiros convive-ram com a tentativa missionária de manter boas relações com essesoponentes e até mesmo cristianizá-los.

Da intervenção portuguesa no conflito entre o missionário e apopulação local e da mediação do missionário no conflito entre osmilitares portugueses e os “indígenas” apreende-se uma vez mais aimbricação entre “pacificação” e “evangelização”. Os espiritanos expres-sam no relato sua gratidão ao governo lusitano pela proteção que estelhes dispensou quando do perigo representado pelos Kwanhama. Os“indígenas” são caracterizados como indignos de confiança e insolen-tes: não sustentavam os acordos estabelecidos, eram traiçoeiros, abusa-vam do poder nos momentos em que o missionário estava desprotegido.Seria tarefa dos missionários compreender essa “mentalidade” de formaa buscar mecanismos que a dobrassem, e tarefa do governo portuguêsagir segundo a “humanidade compatível com tais casos” – no caso dosKwanhama, o grau de humanidade que lhes era atribuído apontava paraa intervenção militar como única solução possível.

Outro aspecto interessante do relato é a atribuição de poderes deatrair a chuva aos missionários, fenômeno ocorrido também entre “osOvimbundu” (Péclard, 1995: 90). Quase passa despercebido, inclusive,que o motivo apresentado como desencadeador da revolta kwanhama eda recusa da presença dos missionários é justamente a seca da região,que teria colocado em xeque essa capacidade dos missionários. À parteelucubrações sobre se os missionários teriam assumido esse papel deencomendadores da chuva voluntariamente ou não, o fato de terem-lhes creditado essa capacidade é bastante significativo. No caso do Pla-nalto Central, uma revolta devido à incapacidade dos missionários paracausar a chuva seria menos provável em virtude do clima, mais úmido e

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com chuvas mais regulares do que na região meridional, mais sujeita àsvariações climáticas e à fome delas decorrente.

É difícil explicar a “aceitação” da presença dos missionários porparte dos “Ovimbundu”. Edwards sugere que para além das evidentesvantagens econômicas oferecidas, as missões se instalaram efetivamenteno território durante o declínio do lucrativo comércio da borracha,controlado na região pelos “Ovimbundu”, tendo ganhado ímpeto emum contexto crítico. Do início do século XIX à primeira década doséculo XX, a região foi marcada por intensa atividade comercial e circu-lação, atividade que teve acentuado declínio na década de 1910. Segui-ram-se a expansão agrícola da década de 1920 e um período menosfavorável à agricultura local na década de 1940, quando as fazendasmais produtivas tornaram-se propriedade de colonos brancos. Foi nessaépoca que se consolidou a tendência de grande parte do contingentemasculino das aldeias migrar para as regiões vizinhas devido à políticade trabalho “voluntário” do governo português, que obrigava parte dapopulação a trabalhar em obras do governo, geralmente distantes de suaregião de origem, por cinco anos, mediante o pagamento de baixos salá-rios. A esse tipo de deslocamento somou-se a oferta de trabalho nasminas da Rodésia e da África do Sul (Heywood, 1987). A intensa circu-lação de pessoas e mercadorias e a relação estabelecida pelos habitantesdo Planalto Central com os portugueses e outros europeus vinha, por-tanto, de longa data, tendo-se dado de várias maneiras nos diversos perío-dos da história e em distintos contextos socioeconômicos. Entretanto, épor demais simplista atribuir o interesse manifesto pela população localna presença missionária a uma estratégia de satisfação de interessesmateriais em momentos de carência.

As diversas fontes consultadas, tanto missionárias quanto de histo-riadores e antropólogos, afirmam que os “bundos” ou “Ovimbundu”eram associados pelos vizinhos à categoria dos “Ovimbali”, cujas caracte-rísticas seriam o apreço pelos bens materiais, a disposição para incorpo-rar elementos dos “brancos” e a maior proximidade em relação a esseuniverso. Edwards afirma:

Os Ngangela chamam aos Ovimbundu ‘Ovimbali’, nome usado emAngola para os africanos que vivem com ou imitam os brancos.Ouvi um Otjimbundu usá-lo para os Kimbundu do Norte de Ango-la. Os povos do Sudoeste chamam os Ovimbundu de “va-Nano” –os do norte, mas também consideram que os Ovimbundu são ‘civi-lizados’. (Edwards, 1962: 8)

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De acordo com essa caracterização, os “Ovimbundu” seriam, de-pois dos habitantes de Luanda e arredores, o povo mais próximo douniverso dos “brancos” em Angola. Pélissier assim os caracteriza:

Os OVIMBUNDOS (língua: umbundo) são a etnia-chave de Ango-la, tanto pela sua preponderância numérica – devida em parte a umexpansionismo assimilador exercido sobre os Ovimbundizados deentre o planalto central e o mar – como pela sua actividade econô-mica e pela sua aptidão para absorver a influência européia. Temi-dos durante muito tempo pelos seus vizinhos por causa das suasincursões de intuitos escravizantes, estes agricultores, que por algumtempo se transformaram em caravaneiros de longo curso, raramen-te se sentiram tentados a rejeitar os modelos europeus e, por essefacto, foram freqüentemente ufanos colaboradores do mundo bran-co perante as etnias orientais, meridionais e setentrionais. (Pélissier,1997: 22)

O autor chega a exasperar-se ao verem frustradas suas expectativasde que um povo tão “poderoso”, tão dominador na época do comérciodas caravanas e do tráfico de escravos, tivesse aberto mão da “resistên-cia” atribuída a seus vizinhos do sul e do leste para “abraçar a cultura docolonizador”. A despeito das evidentes simplificações contidas nessaafirmação, a questão merece atenção na medida em que foi crucial parao estabelecimento das posições relativas das categorias de classificaçãono plano ideológico-discursivo. Essa maior relação com o mundo dos“brancos” parece ter conferido aos “Ovimbundu” uma posição singularde prestígio e distinção. Esse caráter distintivo fica patente nas resolu-ções de conflitos relatadas por Edwards. Os “juízes” eram frequente-mente personalidades ligadas ao poder colonizador: um missionário,um “assimilado” oficial ou pretenso, o chefe de posto. Essa delegaçãodo poder de decisão era, aparentemente, feita de bom grado, emboracom exceções (Edwards, 1962: 130-152). Na coletânea de fábulas de Va-lente, o termo que designa “branco” ou “civilizado” nas narrativas doscatequistas registradas pelo missionário são ora ochimbali (singular dotermo ovimbali apontado acima), ora ochindele, usados de formaintercambiável e sempre associados à posição de maior poder e prestí-gio. O missionário chega a afirmar que “para o Bundo, o termo “Chindele”,Branco, não se limita à cor. “Branco” é todo aquele que tem hábitos decivilizado, mesmo que seja um Preto retinto. Branco é, pois, odestribalizado” (Valente, 1973: 74).

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Essa busca pelo status de “assimilado”, ochindele ou ochimbali foihistoricamente uma marca dos “Ovimbundu”, muito embora o númerooficial de “assimilados” no Planalto Central tenha sido bastante restri-to, especialmente em comparação com as elites “mestiças” de Luanda.Os “Ovimbundu”, ao se identificarem como “cristãos” e aceitarem apresença colonial de forma geral, encontraram no status de “assimila-dos” ou em sua busca uma forma de se posicionarem no contexto colo-nial. Essas representações das populações com base em sua relação coma presença colonizadora e com as populações vizinhas parecem ter orga-nizado a forma como eram percebidas tanto pelos missionários quantopor elas mesmas. Nesse sentido, a “aceitação” da presença missionáriapor parte dos “Ovimbundu” consistiu numa estratégia de distinção, evi-dentemente não redutível a um cálculo oportunista, na qual a associa-ção ao elemento “branco” foi significativa.

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3.Interações e trajetórias:

o cotidiano da missão

They worked on their fams in the morning and wentto school in the afternoon. And it was not long

before the people began to say that the white man’s medicine was quick in working.

(Achebe)

Este capítulo se concentra nos agentes das missões e aldeias cató-licas com o objetivo de delinear suas trajetórias e interações cotidianas.Do ponto de vista metodológico, fui obrigada a adotar abordagens dis-tintas para agentes diversos. A abundância de dados biográficos a respei-to dos missionários, por exemplo, permite que sejam caracterizados maisminuciosamente, inclusive do ponto de vista comparativo. Emcontrapartida, não encontrei uma única referência a catequistas católi-cos que fosse além de seus nomes e permitisse considerar casos parti-culares para reconstituir trajetórias, a despeito do papel fundamental quedesempenharam nas localidades mais afastadas das missões. Assim, consi-dero as trajetórias de Carlos Estermann e José Francisco Valente, signifi-cativas no contexto angolano e do Planalto Central, e valho-me de gene-ralizações menos metódicas ao abordar agentes como os catequistas, oschefes de posto e o mais-velho da escola. Ressalto que o fato de considerardois missionários específicos não implica tratá-los como indivíduos, masconstituí-los como agentes no sentido bourdiano e relacionar sua posiçãono contexto missionário à obra etnográfica que produziram.

No que concerne à estrutura das missões espiritanas, a dificuldadede generalização é posta pelo fato de os relatos serem muito díspares ereferirem-se todos a uma determinada missão, em períodos distintos,muitas vezes sem especificar a qual delas exatamente. Não obstante,permanece o intuito de realizar um esboço do cotidiano das relações namissão e em seu entorno. O principal propósito deste capítulo é forne-cer subsídios para embasar minha afirmação de que os registros produ-

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zidos pelos missionários são resultantes da comunicação entre os diver-sos agentes na missão. Assim, concluo abordando a relação estabelecidaentre os missionários e seus informantes para a produção das obras aserem analisadas.

3.1 A arquitetura da missão

A escolha dos locais onde estabelecer as missões geralmente levouem conta fatores como o número de habitantes e a disposição para aconversão da população, estratégia que fez do Planalto Central um lugarbastante visado pelos missionários. Estes davam início à instalação coma construção dos edifícios básicos: a moradia dos missionários, umacapela, um celeiro. A missão crescia conforme angariava fundos e novosconversos, os quais passavam a auxiliar na construção dos outros edifíci-os: escolas, dispensários, igrejas. Algumas missões contavam com semi-nários, internatos e externatos, que iam da instrução primária à secun-dária. Estes consistiam no principal meio de ascensão social na região:seus ex-alunos geralmente se tornavam funcionários de baixo escalãono serviço público colonial – telegrafistas, funcionários da Estrada deFerro de Benguela, intérpretes (Edwards, 1962: 22). No início damissionação, os internatos eram compostos quase exclusivamente por ex-escravos, os quais foram progressivamente substituídos pelos filhos dosnovos “cristãos”, principalmente dos ocupantes de posições de liderança.Afirma Koren sobre o estabelecimento das missões espiritanas naÁfrica:

Foi somente por volta de 1880 que as missões espiritanas chegarama dividir seu território em setores, com uma residência central que seirradiava para várias estações secundárias. Via de regra, essas resi-dências contavam com dois a quatro padres e um ou dois frades.Elas se localizavam em pontos escolhidos cuidadosamente para faci-litar o deslocamento em todas as direções. As estações que delasdependiam consistiam no mais das vezes em uma modesta capela euma escola na mata confiadas a um catequista. Elas se localizavamem aldeias que haviam manifestado interesse na missão e que apre-sentavam alguma esperança de conversão. As que se dispunham aolongo de um rio ou de uma senda eram visitadas regularmente porum dos padres da residência central. Essa organização era satisfatóriaquando o pessoal da missão era suficientemente estável; mas as do-enças e mortes com frequência obrigavam os padres a se mudarem,

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impedindo-os de se familiarizar com a população. E a cada vez onovo missionário tinha de aprender a língua local!Pouco numerosos, os padres dispendiam muito tempo em visitas àsaldeias. Eles se ausentavam da residência central durante um terço doano. Nas visitas de inspeção, tinham não só de controlar os catequistas,como também administrar os sacramentos e entrar em contato comnovas aldeias para nelas despertar o desejo de também possuir umcatequista. Na residência principal, as obras, muitas vezes numerosas,atribulavam os padres que permaneciam na missão. O tempo todoera necessário encontrar um meio termo entre a ação voltada às elitese o cuidado com o grande número. (Koren, 1982: 509)

Para além da educação, conferia-se bastante importância aos servi-ços de saúde, dos quais se ocupavam principalmente as irmãs de laSalette e de São José de Cluny. No interior, o governo colonial davapouquíssima importância à construção de hospitais e à presença demédicos, motivo pelo qual restava à população local recorrer aosdispensários, leprosários e hospitais das missões (Scott, 1959). Os missioná-rios que se ocupavam dessa tarefa eram frequentemente associados aosovimbanda, “curandeiros” locais especializados no tratamento de doen-ças e distúrbios de todos os tipos por meio de ervas ou cerimôniasrituais. Como veremos, essa associação contribuiu para a configuraçãode uma disputa simbólica entre os missionários e os ovimbanda, na quala consulta a um deles não excluía a relação com o outro. O grau deeficácia dos tratamentos oferecidos pelos missionários atraía, contudo,um número crescente de “indígenas”, como pode ser observado nosrelatórios da Congregação, que registram não só o número de sacra-mentos administrados, mas também as consultas realizadas em todos osdispensários e hospitais das missões.

Em carta ao superior geral da Congregação em 1955, o bispo AlbinoAlves relata que na diocese de Sá da Bandeira, que compreendia osdistritos do Huambo e de Benguela, a despeito do clima, “dos melhoresda África”, havia doenças como “o paludismo e várias outras que seencontram por todo o território africano”. Em três meses teria havido,em uma população de aproximadamente 4 milhões, um total de 7.286mortes, entre as quais 3.094 de crianças com menos de cinco anos. Adespeito da existência de hospitais e dispensários missionários, Alvesmenciona a dificuldade em convencer os “indígenas” a não se consulta-rem com “feiticeiros”. A diocese contava, na época, com três grandescidades: Nova Lisboa (atual Huambo), Benguela e Lobito, mais algumas

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cidadezinhas de colonização europeia e 4850 “aldeias católicas de ne-gros indígenas, dotadas de uma escola de catequese dirigida por umcatequista” (arquivo da C.E.S.).

Já a diocese de Nova Lisboa contava na década de 1950 com 18paróquias e 31 missões, cada qual com sua própria igreja e um cura ousuperior exclusivo. Os curas e superiores das missões deviam celebrar11 missas anuais, ficando as missas restantes a cargo dos catequistas nasaldeias. Havia grande afluência de “indígenas” para as festas das mis-sões. As paróquias e missões contavam com livros de registro de batis-mos, casamentos e confirmações, sendo os primeiros utilizados nos cen-sos da administração colonial. No que diz respeito aos enterros, erammais difíceis de serem registrados, pois muitos ocorriam sem a presençado padre, a cargo do catequista, dada a distância entre as aldeias e asmissões e a falta de missionários. Todas as missões e paróquias adota-vam o catecismo único de Pio X, com base no qual se faziam as tradu-ções. Com exceção dos padres residentes em paróquias de cidades habi-tadas por europeus, todos os outros missionários deveriam dominar oidioma local para realizar os sermões e confissões no vernáculo. Oscatequistas, por sua vez, deveriam reunir-se em retiros organizados pelosmissionários toda primeira sexta-feira do mês.

Com o tempo, as missões foram-se dedicando também à constru-ção de escolas técnicas. A missão de Caconda, por exemplo, contavacom energia elétrica, uma tipografia onde se imprimiam catecismos eevangelhos, campos de cultivo, moinhos, oficinas de carpintaria, cerâ-mica e marcenaria, escolas, internatos, um dispensário e uma “obra dasnoivas”, onde se preparavam as mulheres dos cristãos (Lourenço, 2003:129). No espaço físico das missões espiritanas do Planalto Central, umacaracterística perdurou ao longo de toda a empreitada missionária: acentralidade dos edifícios da missão em relação às outras construçõesdas aldeias. Com isso, buscava-se colocar a prática da religião cristã emfoco no cotidiano, trazer a evangelização para os momentos de socialidadelocal e torná-la central na vida das pessoas. Tal estratégia foi determinantepara a evangelização espiritana no continente africano como um todo emanifestou-se de diversas formas em períodos distintos: desde oaldeamento das famílias de conversos em torno da estação missionária,com a igreja no centro, quando da fundação das primeiras missões deex-escravos, até as aldeias com maior ou menor número de “cristãos”,estabelecidas no período subsequente a partir da presença de um catequistaou da conversão do chefe da aldeia, nas quais as construções centrais

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eram, com frequência, a escola e a capela (Edwards, 1962; Clarke, 1974;Henderson, 2000).

Figura 2: Croqui da aldeia de Epalanga. Escola missionária ao centro e palhotas ao

redor. Fonte: Edwards, 1962: 50.

O modelo inicial adotado pela Congregação do Espírito Santo doestabelecimento das primeiras missões até o início do século XX foi oda “aldeia cristã”, no qual os aldeamentos, construídos em volta dosedifícios centrais da missão, eram formados por escravos resgatados aostraficantes17. O método era considerado bastante eficiente pelos missio-nários por facilitar sua vigilância dos “indígenas”, a seu alcance e por-tanto mais facilmente impedidos de “recaírem no paganismo”, tentaçãodescrita como tendência. Por outro lado, o caráter “filantrópico” daaquisição de ex-escravos poderia, ao invés de combater o tráfico, contri-buir para o seu crescimento, pois a compra dos escravos pelos missioná-rios aumentaria sua demanda. Outro aspecto considerado negativo erao fato de a concentração dos conversos em torno da missão não contri-buir para a “expansão da fé”, restringindo-a aos ex-escravos, com o agra-vante de associar o cristianismo a pessoas com status de escravizadas,depreciando-o aos olhos dos “indígenas”.

Assim, em meio à insatisfação suscitada pelo método das “aldeiascristãs”, optou-se por investir na formação de catequistas “indígenas”

17 Em Angola, o trato adentrou o século XX, a despeito de sua abolição oficial no séculoXIX, sendo progressivamente substituído pelo trabalho “voluntário” na medida emque sua obrigatoriedade se estendia ao interior.

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que dominassem o idioma local e pudessem auxiliar na tarefa de disse-minar a doutrina interior adentro. Para tanto, construíram-se escolas deformação de catequistas nas missões18. Tentou-se também converter oschefes das aldeias para obter a adesão de sua parentela à nova religião. Aprática mostrou que se obtinham melhores resultados enviando-secatequistas a uma aldeia onde tinham familiares, pois a rede de relaçõesde parentesco facilitava a conversão. Mas essa regra não era absoluta;nos casos em que não era possível enviá-los a sua própria aldeia, eramenviados a alguma outra que houvesse solicitado um catequista. A figuradenominada nas etnografias e registros missionários como o “mais-ve-lho da escola” por vezes fazia a ponte entre o professor e seus catecúmenos.Contudo, a Congregação resistiu o quanto pôde a entregar seu projetoaos “indígenas” – os missionários deveriam ser, idealmente, europeus;os “indígenas” contribuiriam como catequistas. Embora tenham sidoformados diversos padres “indígenas”, estes foram inicialmente destina-dos ao clero secular. Já em meados da década de 1950, Edwards afirmater encontrado apenas três padres “indígenas” na condição de superio-res de missões. Isso se deu certamente devido à necessidade de missio-nários e à pressão pela formação de um clero “indígena”. Na mesmaépoca, havia cerca de 32 padres africanos e 70 pastores protestantes(Edwards, 1962: 28).

Se a evangelização pelos catequistas “indígenas” foi consideradaineficiente pela mesma Congregação na Nigéria (Clarke, 1974), emAngola sua posição foi mais flexível. Os espiritanos, ao mesmo tempoem que exaltam a figura do catequista como coadjuvante, cuja presençateria tido resultados satisfatórios em combinação com a “predisposição”dos “bundos” para o cristianismo, mencionam repetidas vezes o riscode delegar essa tarefa a alguém que era mais próximo dos “indígenas”do que os próprios missionários e sobre quem tinham pouco controle.Os catequistas estavam envolvidos tanto com as missões quanto com ocotidiano das aldeias das quais faziam parte. Edwards relata um episódiono qual o catequista da aldeia de Epalanga se encarregou de interrogarum habitante recém-falecido por meio da cerimônia utilizada para des-

18 Os alunos formados pelos internatos e externatos das missões raramente se tornavamcatequistas, pois estes não eram remunerados pelos missionários. Era-lhes permitidoapenas receber alguma contribuição dos “cristãos” a seu encargo. Os alunos dasmissões, cujo nível de instrução era bastante superior ao do restante da população,conseguiam ter ocupações mais rentáveis e prestigiosas do que a catequese.

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cobrir o culpado pelo “feitiço” que causara sua morte (Edwards, 1962:72), evidentemente sem o conhecimento dos missionários. São frequen-tes as reclamações sobre catequistas coniventes com práticas “pagãs” eas tentativas dos missionários de controlar seu comportamento.

A evangelização espiritana centrou-se, desde o início, nos sacra-mentos, medida segundo a qual se determinava o grau de conversão dos“indígenas”19. A administração ritual dos sacramentos exercia um papelcentral na interação não só entre os agentes diretamente ligados à mis-são, como missionários, catequistas e “cristãos”, mas também entre apopulação mais distante das missões. Essa pronta aceitação dos rituaiscatólicos pode ser depreendida da enorme quantidade de “cristãos” e“pagãos” que acorria às grandiosas festas e procissões promovidas nasmissões nos feriados cristãos. Os habitantes das aldeias sentiam-se liga-dos aos europeus por participarem dos mesmos sacramentos. Sobre aimportância do batismo, Edwards afirma:

Os cristãos ovimbundu também têm consciência do significadodoutrinal do batismo – quando perguntei a várias pessoas ‘Por quevocê se batizou?’, geralmente respondiam: ‘Quero ir para o céu’, oualgo semelhante. (ibidem: 85)

Ou ainda:

Um catequista católico, ao defender a superioridade do catolicismoem relação ao protestantismo, começou por afirmar que os protes-tantes não tinham sacramentos, ao que o mais-velho da escola acres-centou: ‘E a nossa é a religião do governo’. O catequista continuou:‘O chefe de posto é batizado e casado na igreja, o Governador Geralde Nova Lisboa é batizado e casado na igreja’. (ibidem: 84)

É realmente notável que a presença dos missionários católicostenha tido aceitação superior à presença dos protestantes, o que não sereproduziu nos territórios circunvizinhos. Elementos como a cruz e a

19 Nisso diferiam bastante das missões protestantes, que enfatizavam a compreensão dostextos bíblicos pelos “indígenas”. Segundo Edwards, dada a menor importância dossacramentos para os protestantes, a posição do catequista se fortalecia, pois ele seencarregava do ensino da doutrina e da alfabetização. Aos catequistas católicos eravedada a administração dos principais sacramentos, que competia aos missionários.

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batina foram encontrados pelos viajantes entre os “não cristãos” desdemuito antes da efetivação da presença missionária no território. Comrelação aos rituais propriamente ditos, a presença cotidiana dos cânticos,das orações e das cerimônias é frequentemente mencionada. Mesmo osprotestantes são unânimes ao constatar a recorrência das liturgias inclu-sive nos momentos de lazer (Scott, 1959; Péclard, 1995). Nota-se, entre-tanto, que se os rituais foram o locus privilegiado da disputa e comunica-ção, foram também causa das principais dificuldades missionárias: aaceitação da ritualidade “cristã” não teria, segundo eles, erradicado osrituais “pagãos”, especialmente os casamentos e funerais. Dedico-me aesta questão de forma mais aprofundada no próximo capítulo. Por ora,gostaria de ressaltar que esses momentos de ritualização da doutrinaocorreram nos espaços designados pelos agentes como centrais para avida da comunidade. O reestruturamento desses espaços acompanhou oprocesso de estabelecimento das convenções de significação queembasaram a interação dos agentes.

As etnografias descrevem mudanças na organização espacial dasaldeias, principalmente no que se refere a suas construções centrais. Osregistros do século XX descrevem o onjango, estrutura circular, geral-mente de madeira, coberta por um teto de palha e localizada no centrode muitas aldeias, como central na vida da comunidade como locus desocialidade masculina. Lá os homens mais velhos reuniam-se para umarefeição comum após o dia de trabalho, resolviam problemas e congre-gavam (Hambly, 1934; Ennis, 1938; Edwards, 1962; Berger, 1979;Henderson, 2000). Com a migração de muitos homens adultos para otrabalho “voluntário” em regiões distantes e o hábito adquirido – quiçádo convívio com os europeus – de os casais fazerem a refeição juntos, acentralidade do onjango na aldeia parece ter sido substituída pela daescola, encabeçada pelo catequista e um mais-velho. Em grande parte doterritório, a mesma palavra que designava “escola” significava “igreja”(Henderson, 2000: 38), e ao menos entre os que se identificavam como“cristãos”, o momento de encontro dos habitantes da aldeia parece terocorrido na escola – ao cair da tarde, a reza vespertina era conduzida novernáculo pelo catequista, por vezes seguida de uma reunião em volta dafogueira com cantos, danças e narração de histórias (Edwards, 1962:15). A centralidade do edifício da escola na aldeia e a transferência paraela dos momentos de socialidade que caracterizavam o onjango possibili-taram associar um momento central no cotidiano da aldeia à vivência

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do cristianismo20. Ora, nestes momentos não eram os missionários aestarem presentes, mas os catequistas.

3.2 Os “indígenas” e as missões

Uma vez estabelecido que a evangelização recorreria à contribui-ção dos catequistas, instituíram-se como método de controle de suasatividades as visitas periódicas dos missionários às aldeias. Idealmente,as missões deveriam contar com no mínimo dois padres europeus paraque um deles pudesse permanecer na missão e o outro se encarregassedas visitas às aldeias, tornadas mais viáveis a partir de 1902, com ainauguração do Caminho de Ferro de Benguela, que atravessava o Pla-nalto Central. A rede de estradas que cobria a ferrovia fazia com quetodas as aldeias estivessem a apenas alguns quilômetros de alguma viaasfaltada ou de terra, permitindo aos missionários realizar suas visitasde carro, moto ou bicicleta. Dada a escassez de missionários para cobrirtodo o território, estes acabavam por visitar cada aldeia uma ou duasvezes por ano, embora esta não fosse a periodicidade considerada ideal.As aldeias ficavam entregues aos catequistas a maior parte do tempo, oque era visto pelos missionários com desconfiança. Além disso, era fre-quente que os missionários fossem transferidos de uma missão paraoutra tão logo estabeleciam uma relação de proximidade com a popula-ção local – José Francisco Valente, por exemplo, trabalhou em mais dedez regiões durante seus 43 anos de vida missionária. Os catequistas,por sua vez, deveriam fazer uma visita mensal à missão e comparecer àsfestas religiosas acompanhados dos “fiéis” de sua aldeia. Os batismos,comunhões e casamentos eram sacramentos administrados exclusiva-mente pelos missionários. Aos catequistas competia administrar a extre-ma-unção e, em se tratando de “pagãos” adultos à beira da morte, batizá-los se assim o desejassem e desde que se convertessem. As crianças filhasde pais “cristãos” podiam ser batizadas sem conversão (Alves, 1954).

Além de serem encarregados de parte dos sacramentos, oscatequistas eram responsáveis pelas escolas da aldeia, objeto de grandeinteresse para seus moradores, pois representavam a oportunidade de

20 Não só a escola substituiu o onjango e tornou-se o novo local de socialidade da aldeia,como os gêneros enunciativos do onjango foram indexados à retórica cristã e se fizerampresentes nas escolas (ver capítulo 5).

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ascensão social mais certeira para seus filhos. Praticamente todas ascrianças da aldeia frequentavam a escola, que atendia a uma demandados próprios aldeãos. Alguns informantes de Edwards chegaram a dizer-lhe que estavam no “tempo da escola” (Edwards, 1962: 84), emcontraposição ao “tempo da borracha”, período de grande prosperidadeno Planalto Central. Sabendo do interesse dos “indígenas” na instruçãode seus filhos, Alves recomenda aos catequistas que sejam estudiosos ese esforcem por ensinar, além da doutrina, as primeiras letras e os nú-meros a seus alunos (Alves, 1954). Edwards afirma que não raro adultoscompareciam às aulas na escola da aldeia, e seus informantes identifica-vam seu pertencimento a uma aldeia de acordo com o local onde selocalizava a escola que frequentavam (Edwards, 1962). Essas escolas-igrejas, ou écoles de brousse, concentravam diversos interesses de váriosagentes, em momentos distintos do cotidiano da aldeia: das primeirasinstruções à evangelização; da narração de contos e histórias locais àsnarrativas bíblicas e orações; do exame dos catecúmenos pelos missio-nários à resolução de conflitos entre os moradores da aldeia. Nessecenário, o catequista surgia como figura dotada de grande prestígio (VonEichenbach, 1971).

Os alunos das escolas incluíam batizados e catecúmenos e eramtodos localmente designados pelo termo vakwasikola, “os da escola”, de-signação bastante bem vista pelos habitantes da aldeia, inclusive pelosque não frequentavam a escola (Edwards, 1962). O catecumenato, perí-odo de instrução que antecedia o batismo, geralmente durava de dois atrês anos, conforme o domínio da doutrina demonstrado pelo alunoquando de seu exame pelo missionário. Ao batismo seguia-se a aquisi-ção de um nome “cristão”, cobiçado inclusive pelos “não cristãos”, quemuitas vezes davam nomes “cristãos” a seus filhos, à revelia de quemhavia sido batizado. Os catequistas mencionados por Valente na Paisa-

gem africana, por exemplo, têm todos um primeiro nome “cristão”, con-quistado por ocasião do batismo, seguido de um sobrenome local (Va-lente, 1973).

Segundo Edwards, o catequista conduzia as orações diárias na es-cola, pela manhã e ao cair da tarde, com os homens de um lado e asmulheres de outro. Poucos eram os presentes às orações matinais, sendomais numerosos os comparecentes às orações vespertinas, momento emque também se anunciavam as notícias da aldeia, como uma visita domissionário ou a iminência de um recrutamento de mão de obra. Eramfrequentemente seguidas de cantos e danças. Aos domingos, pratica-

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mente todos os vakwasikola compareciam à cerimônia. As orações eramrealizadas em umbundu, podendo ser cantado algum hino em portugu-ês. Para além dos alunos regulares, algumas pessoas compareciam à es-cola esporadicamente para participar das orações. Grande parte dosentrevistados por Edwards, ainda que não frequentasse a escola, mani-festava o desejo de ser batizado. Alguns, já tendo participado do cotidia-no das escolas, haviam-se afastado, mas compareciam ocasionalmenteàs cerimônias mais importantes, como as grandes procissões às missõespor ocasião de Corpus Christi (Edwards, 1962: 77).

As visitas dos missionários eram acompanhadas de um cerimonialde boas-vindas que incluía cânticos, vivas e discursos, comparado porEdwards à cerimônia dos casamentos locais. Na aldeia, ele administravaos sacramentos – ouvia as confissões dos aldeãos, batizava os catecúmenosconsiderados aptos e rezava as missas nas quais os “fiéis” recebiam acomunhão. O catequista deveria relatar-lhe os incidentes ocorridos naaldeia, principalmente a realização de casamentos ou funerais “pagãos”.Inquiria-se o catequista sobre o “estado espiritual” dos frequentadoresda escola e faziam-se comentários e críticas sobre o estado de conserva-ção das construções e do conhecimento doutrinário dos alunos. O mis-sionário deveria ser informado da presença de “adivinhos”, “feiticei-ros” e unidades residenciais polígamas. Os “feiticeiros” e polígamosbatizados eram passíveis de detenção. Nessas ocasiões, apresentavam-seao missionário pedidos de intercessão junto ao posto administrativo, osquais também podiam ser feitos por ocasião das visitas do catequista àmissão, cerca de quatro por ano, conforme a distância da aldeia, a dispo-nibilidade do catequista e as necessidades. Os catequistas preferiam nãose envolver com o posto, procurando esquivar-se de tarefas como recru-tamento de mão de obra e levantamento de dados estatísticos para ocenso. Era comum intermediarem as relações entre a missão e a aldeia,representando “pagãos” e “cristãos”21.

21 Entre os “católicos”, embora existisse uma tendência a agrupar casais “cristãos” emaldeias exclusivas, sua relação com familiares “pagãos” geralmente não era considera-da empecilho, mas meio de conversão destes. Inclusive, o mais comum era que namesma aldeia convivessem “cristãos” e “pagãos”, com alguns membros da famílialigados à igreja e outros não, a escola no centro e o prestígio do catequista inabalado.Isso explica a participação de todos os habitantes da aldeia tanto nos ritos “pagãos”quanto “cristãos”. Entre os “protestantes”, os conversos tendiam a uma maior reservaem suas relações com os “pagãos”.

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Não há muitas informações sobre o mais-velho da escola. Sabe-seque realizava a ponte entre o catequista – frequentemente jovem demaispara conquistar o respeito da comunidade e conseguir dela autorizaçãopara estabelecer ali uma escola – e a aldeia. O mais-velho seria necessa-riamente alguém com vínculos de parentesco fortes na aldeia, respeita-do por seus habitantes. Na aldeia, pode-se dizer que as posições maisfortes do ponto de vista do prestígio e do poder eram as de chefe local,chefe do governo, catequista e mais-velho da escola. Essas posições nãoeram necessariamente ocupadas cada uma por um sujeito distinto; erafrequente, por exemplo, que o chefe local – o “chefe tradicional” para aadministração portuguesa – acumulasse as funções de chefe do governo,servindo de intermediário entre os habitantes da aldeia e o chefe doposto administrativo. O mais-velho da escola também poderia acumularuma dessas duas funções de chefia, o que era comum nos casos em queo próprio chefe da aldeia solicitava o catequista. Este geralmente selimitava a essa função e ao cultivo de seus campos ou trabalho em seuofício. Os catequistas católicos eram isentos do pagamento de impostos– o que não se aplicava aos protestantes – e de serem recrutados comomão de obra. Eram figuras cuja posição tinha grande peso nos momen-tos de decisão sobre quem seria apresentado ao posto por ocasião dosrecrutamentos. Os artesãos formados nas escolas de ofícios missionáriastambém podiam ser dispensados do recrutamento mediante o pagamen-to de uma taxa. Os chefes do governo e da aldeia eram aqueles cujaposição gozava de menor estabilidade, pois estavam sujeitos ao anda-mento de suas relações com o posto administrativo. Já o mais-velho daescola e o catequista, ligados às missões e preparados por elas, tinhamposições mais estáveis. Seriam destituídos apenas no caso de perderem aconfiança das missões ou envolverem-se em conflitos de difícil soluçãocom os aldeãos.

Os chefes de posto, que aparecem nas fontes como exclusivamentebrancos, eram os representantes locais do governo colonial. Os postoseram subdivisões dos concelhos [sic], que por sua vez eram subdivisõesdos distritos. Além dos chefes de posto, ali trabalhavam um intérprete,funcionários com escolaridade primária e policiais, geralmente forma-dos nas escolas das missões. O chefe da aldeia deveria visitar o postoadministrativo de sua região mensalmente. Eram atribuições do chefede posto levantar dados para o censo, recrutar mão de obra e cobrarimpostos. Teoricamente, qualquer habitante que se mudasse para outraaldeia deveria comunicar o fato ao chefe de posto, pagar uma taxa e

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obter autorização formal, coisa que raramente era observada na prática.O chefe de posto era uma figura ao mesmo tempo temida – por suacapacidade de influência, por exemplo, na deposição dos chefes e pelopoder de mandar prender os habitantes das aldeias que praticassemalguma contravenção – e prestigiada. Geralmente falavam poucoumbundu, eram transferidos com frequência e não se interessavam pe-los hábitos locais. Edwards afirma que o sentimento predominante comrelação a esses agentes era o medo, embora fossem requisitados para aresolução de conflitos (Edwards, 1962).

As etnografias de Estermann (1983: 275), Milheiros (1954) eEdwards (1962) mencionam que como os chefes de posto não acredita-vam quando ouviam dos “indígenas” que alguém havia sido morto porfeitiçaria, estes passaram a apresentar-lhes os casos de “feitiçaria” comodelitos de envenenamento para que se dispusessem a julgá-los. Eis umexemplo interessante do estabelecimento de uma convenção de signi-ficação. Estermann relata que diversas vezes avisou aos chefes de postoque seria inútil realizar uma perícia para verificar se o sujeito havia sidorealmente envenenado, pois do ponto de vista dos “indígenas” tratava-sede morte por “feitiçaria”, apresentada como “envenenamento” para quefossem ouvidos. É curioso que os habitantes das aldeias, cientes de que ochefe de posto não se disporia a arbitrar um caso de “feitiçaria”, aindaassim o procurassem, e para tanto se dispusessem a apresentar-lhe o casode forma que para ele fizesse sentido. Edwards narra um desses episódios:

As acusações de feitiçaria eram um tanto diferentes dos outros ca-sos, pois o posto não acreditava nelas, embora uma acusação dessetipo não fosse passível de punição em si. Às vezes, os suspeitos defeitiçaria eram acusados de ‘envenenamento’ junto ao posto. Lusaseme disse que quem era julgado feiticeiro devia pagar uma galinha,um bode e um porco. Gregório, chefe de Menga, disse a princípioque não era possível saber quem era feiticeiro. Quando, para suasurpresa, mencionei o teste tradicional da cesta, ele concordou eexplicou que as pessoas denunciadas por esse teste eram enviadascomo mão de obra ao posto para satisfazer suas demandas portrabalhadores. (ibidem: 42)

Semelhante posição de prestígio tinham os “assimilados”, oficiaisou não, geralmente comerciantes que viviam próximos às aldeias ou nasaldeias predominantemente “cristãs”. As licenças para possuir estabele-cimentos comerciais eram reservadas aos “assimilados”, aos quais os

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aldeãos recorriam para solucionar conflitos. Entre os “assimilados”, osindivíduos pertencentes ao clero eram os que desfrutavam de status maisalto quando comparados aos comerciantes ou funcionários públicos.Os comerciantes, tanto brancos quanto “assimilados”, tinham ao quetudo indica uma relação de maior proximidade com os aldeãos: eramcomuns as disputas pelos preços dos alimentos comercializados e erammenos temidos do que os chefes de posto. Geralmente trocavam o mi-lho produzido nas aldeias por mercadorias manufaturadas.

Edwards afirma que os “assimilados”, embora tivessem um status

social mais elevado do que os comerciantes brancos pobres e habitas-sem lugares distantes e distintos dos aldeãos comuns, tinham com estesmais proximidade do ponto de vista linguístico e cultural. Assim, eram,ao lado dos missionários, as figuras mais requisitadas para resolver asquerelas das aldeias. Edwards relata o caso de um pretenso “assimila-do”, Justino, fazendeiro rico de Epalanga, para quem diversos morado-res das aldeias vizinhas trabalhavam, que vivia à europeia sem possuirdocumentos de “assimilado”. Seu principal passatempo nas horas vagasera arbitrar conflitos surgidos entre os “indígenas”, que o procuravampor admirarem sua posição. A despeito de se identificarem com os euro-peus, os “assimilados” mantinham vínculos com a população local, con-figurando uma classe de intermediários. Embora representassem umapossibilidade de ascensão social, não tinham posições políticas fortesno sentido de exercer liderança. Esse status diferenciado seria mais acen-tuado no interior, pois nas cidades a posição se reduzia praticamente àisenção do recrutamento e à maior chance de ocupar cargos de baixoescalão (Bender, 1978).

No capítulo anterior, mencionei a acentuada identificação dos“Ovimbundu” com os “brancos” e seu modo de vida. O episódio aseguir foi registrado por Edwards e é bastante significativo como ilustra-ção de sua “aceitação” do cristianismo. É interessante notar que ocimbundu,singular de ovimbundu, quer dizer, em umbundu, “negro”, o que fazia comque os supostos “assimilados” se definissem como “brancos”, ovindele.Assim, a distinção entre “assimilados” e “indígenas” era estabelecida combase na cor da pele, fazendo com que os negros que se diziam assimiladosse referissem a si mesmos como “brancos”. A cor negra era associada aomodo de vida dito “primitivo”, ao passo que a cor branca era característi-ca do modo de vida “civilizado”. O fato de os “assimilados” viverem aomodo dos portugueses fazia com que fossem vistos como brancos, mashavia momentos em que isso era posto em questão.

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O relato trata de uma querela surgida porque Justino, figura à qualaludi acima, dizia-se “assimilado” embora legalmente não o fosse: base-ava-se no fato de ser um fazendeiro de café e viver ao modo dos euro-peus para afirmá-lo. A briga ocorreu porque o chefe da aldeia ter-se-iareferido a ele como otjimbundu tjango, “um simples negro”. Se ele de fatoo fosse, seus empregados poderiam ser recrutados como mão de obrapelo posto, uma vez que apenas os empregados dos brancos e “assimila-dos” não o eram. A reclamação de Justino baseava-se no fato de preten-der ser um “assimilado”, ao que respondeu: Ame sitjimbunduko, “eu nãosou um otjimbundu” (Edwards, 1962: 156). Sua réplica traz a polissemiada situação de “assimilado”: poderia ser simultaneamente traduzida como“eu não sou negro”, “eu não sou indígena”, “eu sou assimilado”, “eusou branco” ou “eu sou cidadão português”. A equiparação dos “negros”aos “indígenas”, portanto, não era exclusiva da legislação colonial, masse reproduzia no cotidiano das relações entre os agentes, que atribuíama uma determinada “raça” um certo tipo de comportamento. Embora adisputa girasse em torno de estabelecer se Justino era ou não umotjimbundu, o caráter pejorativo do termo não foi posto em questão pornenhum dos envolvidos na querela, nem mesmo pelo chefe, ele próprio“não assimilado”.

Entre os agentes “pagãos” destacavam-se os “feiticeiros” e “adivi-nhos”. Os primeiros foram claramente demonizados pelos missioná-rios, ao passo que os segundos foram objeto de reiteradas tentativas deincorporação ao universo cristão. Tendo em vista a centralidade dosolonganga e ovimbanda no Planalto Central, a missão, ao pretender ocu-par um lugar central na vida de seus habitantes, teria de haver-se comessa situação. Abundam nos relatos referências à presença desses “feiti-ceiros” e “adivinhos” e à necessidade de pôr fim à sua presença, prefe-rencialmente por meio da conversão. Semelhante esforço pode ser ob-servado nas fotografias dos arquivos da Congregação, nas quais um mis-sionário posa para foto em visita ao “feiticeiro” da aldeia. Sua presençaera vista como agravante ainda maior se considerarmos a pouca frequênciacom que os missionários visitavam as aldeias e os laços de parentescoentre catequistas e “feiticeiros”. Não é à toa que a presença desses agen-tes colocou para os missionários a necessidade de disputar simbolica-mente o espaço ocupado por eles: pelo poder de trazer a chuva, curardoentes, resolver conflitos. Voltaremos à disputa simbólica entre missio-nários e “feiticeiros” no último capítulo.

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3.3 Os missionários

As cartas e relatórios produzidos na missão se destinavam a missi-onários afastados do terreno, geralmente residentes na Europa e ocu-pantes de altos cargos na hierarquia eclesiástica. Estes foram agentesimportantes para a estrutura das missões, responsáveis pelas tomadas dedecisão mais gerais. Contudo, como escolhi olhar para o cotidiano dasmissões, privilegiando as relações em nível local, a atividade desses agen-tes será contemplada apenas de forma indireta, na medida em que serelaciona ao contexto mais abrangente discutido no capítulo anterior.No que concerne aos missionários amantes da brousse, cujo principalinteresse era viver entre os “indígenas”, esquivando-se sempre que pos-sível de responsabilidades burocráticas e administrativas, tipo bastanterecorrente em Angola a julgar pelos relatos espiritanos, não encontreimaterial que não fosse constituído de alusões en passant, embora fossemestes agentes privilegiados para compreender o processo de comunica-ção e disputa simbólica na missão.

Entretanto, alguns missionários-etnógrafos produziram registrosmuito interessantes: etnografias, gramáticas, dicionários, coletâneas degêneros orais. Uma vez que no início do século XX o campo de estudosda antropologia apenas começava a tomar forma e a prática etnográficanão era reconhecida como exclusividade dos antropólogos (Clifford,2002), muitos desses missionários alcançaram projeção internacionalno debate antropológico, tendo conjugado pesquisa e vida missionária22.A Congregação do Espírito Santo contou com diversas figuras dessetipo, como Lang, Tastevin e Leroux, para citar alguns. Analiso a seguiras trajetórias de Carlos Estermann e José Francisco Valente, as quaiscontraponho levando em consideração a posição de cada um na hierar-quia das missões, sua projeção no mundo acadêmico, o tipo de pesquisaque produziu e as relações em campo a partir das quais escreveu.

Carlos Estermann e José Francisco Valente são representativos deposições distintas no campo missionário e acadêmico: o primeiro, dou-tor honoris causa da Universidade de Lisboa, foi o renomado produtor deinúmeros estudos etnográficos, principalmente sobre os habitantes daporção meridional de Angola, tendo tido uma pretensão generalista; já

22 Um exemplo marcante nesse sentido foi sem dúvida Maurice Leenhardt, com vastaobra sobre os melanésios. A respeito de sua obra e trajetória, ver Clifford (1992).

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Valente, embora autor da maior parte das publicações etnográficas emportuguês a respeito dos Ovimbundu, dentro e fora da congregação, nãoteve destaque internacional, sendo sua personalidade quase totalmentedesconhecida. Suas obras, pouco exploradas pela bibliografia angolanista,serão objeto de análise nos próximos capítulos. Por ora,concentro-mena trajetória desses dois espiritanos.

Nas primeiras páginas de Etnografia de Angola (Estermann, 1983),coletânea de artigos escritos por Carlos Estermann ao longo de suavida, o leitor depara-se com um retrato seu de 1974: franzino e plácido,barba comprida, a batina negra coberta de condecorações. Na legendada foto, menciona-se o esforço necessário para convencê-lo a posar paraa fotografia, tendo cedido após insistência de um colega por quem tinhaelevada estima. Estermann nasceu em Illfurt, em território alsaciano,em 1896. Contam as crônicas missionárias que teria sido encaminhadoa Saverne por seus professores após o término dos estudos primáriosdevido ao grande potencial que nele viam. Teve seus estudos para osacerdócio interrompidos pela Primeira Guerra Mundial, na qual to-mou parte na linha de combate; levado como prisioneiro paraManchester, lá teria aprendido o inglês. Com o final da guerra, de voltaa Chevilly, nos arredores de Paris, concluiu seus estudos e foi ordenadopadre em 1922. Seguiu para Portugal com o objetivo de aprender o por-tuguês e depois para Angola, onde lhe foi designada a Prefeitura doCubango. Eram os tempos do estabelecimento efetivo da missão católi-ca em território angolano. Sua ascensão foi rápida: em 1933 foi nomea-do superior das missões da Huíla e vigário-geral da Chela. Nesse perío-do, construiu inúmeros edifícios nas missões pelas quais era responsá-vel e fundou diversos colégios. É retratado como um homem “com visãode futuro”, “empenhado na promoção dos povos” (In: Estermann, 1983).

Estermann era figura bastante popular em Angola e Portugal, sen-do conhecido não só por seu trabalho de evangelização, mas tambémpor seus artigos de etnologia no meio acadêmico francês, inglês, ameri-cano e alemão. Os registros mencionam frequentes homenagens emeventos em Portugal e Angola, aos quais compareciam políticos e admi-nistradores locais, com quem mantinha estreitas relações. Exaltavamsua obra evangelizadora e etnográfica. Em seu discurso, era recorrente aafirmação de que embora se dedicasse com afinco à produção de conhe-cimento sobre as populações “indígenas”, fazia-o principalmente com oobjetivo de adquirir saber para a evangelização e a “civilização”,

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inquestionavelmente os aspectos mais importantes de seu trabalho. Adespeito do histórico de intelectuais da Congregação, é notável a neces-sidade recorrente de justificar sua ampla produção “científica” e afirmarque ela não representava empecilho para a vocação missionária, por umlado, e de legitimar o trabalho etnológico do missionário, por outro,afirmando que o maior tempo de permanência em campo, o domíniodas línguas locais e o conhecimento mais próximo dos “indígenas” con-feriam-lhe maior autoridade no que diz respeito à compreensão dessaalteridade. Estermann afirma:

Cremos que não há etnólogo nenhum, digno deste nome, que ne-gue serem os missionários quem mais facilmente podem perscrutara mentalidade, observar a actividade espiritual e medir as reacçõespsicológicas dos não-civilizados. (Estermann, 1983: 325)

Esse discurso, legitimado pelas condecorações e pelo reconheci-mento da academia portuguesa, bem como por suas relações no meioacadêmico internacional e pela instituição dos cursos de etnologia elinguística nos seminários, constituía-se em resposta à maior legitimida-de de que gozavam os acadêmicos laicos na produção de conhecimento,principalmente em países nos quais a relação entre Igreja e Estado eramenos significativa do que em Portugal. É nesse contexto que devem serentendidas suas constantes reivindicações de “objetividade” e “isenção”ao olhar para o universo “indígena”.

Sua formação em linguística e etnologia remonta certamente aostempos do seminário. Em sua obra, combinam-se inf luências dodifusionismo alemão e do evolucionismo britânico. A ideia de “estágiosde desenvolvimento” alia-se à tentativa de compreender a “cultura” dospovos “indígenas” e o processo histórico de aquisição dos traços que acaracterizam. Isso de uma perspectiva racialista, na qual a hierarquia daclassificação relaciona um certo grupo linguístico a uma determinada“raça” (por exemplo, a raça negra dos “bantos”), e uma “etnia” a uma“língua” (como é o caso dos “bundos”, falantes de “umbundo”).Estermann tem um diálogo bastante significativo com renomadosetnógrafos, missionários ou não, como Junod, Lang, Mendes Corrêa,Jorge Dias, Lubbock, Seligman, Schapera, Herskovits e van Wing. Paraalém da formação em linguística, dominava diversos idiomas europeuse africanos. Era leitor assíduo das publicações a respeito dos “indíge-nas” de Angola, preocupando-se em dar a conhecer aos leitores lusófonos

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o conteúdo de todas as publicações recentes a respeito, acompanhadasdas correções que julgava devidas. Entre elas, fez comentários inclusiveàs etnografias de Hastings (1933), Hambly (1934), Childs (1949) e Edwards(1962) sobre os “Ovimbundu”, não mencionadas por Valente em suasobras. A etnografia é considerada indispensável à ação missionária por-que, segundo Estermann, somente uma observação cautelosa poderiaembasar as generalizações necessárias para a compreensão das popula-ções “indígenas”.

Um projeto etnográfico que desse conta da descrição e explicaçãoda “cultura” de cada uma das “etnias” que habitavam o território ango-lano é recorrentemente mencionado e vai ao encontro da necessidadede generalizar para estabelecer as diretrizes da missionação entre os“bantos”. Assim, embora grande parte de seu trabalho como missioná-rio tenha sido realizado entre os Kwanhama, o conhecimento dasetnografias de outra regiões, somado à sua experiência de terreno, auxi-liam-no na construção de suas generalizações, por exemplo, sobre o“culto aos ancestrais” e o “feiticismo” em Angola. O escopo de seutrabalho está relacionado a sua posição no campo missionário: persona-lidade prestigiada, formadora de opinião a respeito dos “indígenas”,ocupando cargos de superior e visitador das missões de parte significati-va do território angolano. Nada mais condizente com tal posição do quea intenção, também em suas pesquisas, de dar conta do território comoum todo e embasar suas conclusões em todo um arsenal teórico-metodológico.

Bastante distinta é a preocupação de José Francisco Valente,espiritano de origem portuguesa atuante nas missões do Planalto Cen-tral. Nascido em 1912 em Unhais da Serra, fez o noviciado na França efoi ordenado padre em Portugal em 1936. Aportou em Angola em 1937,onde passou 43 anos, retornando a Portugal em 1970. Faleceu em 1993no seminário de Torre d’Aguilha, em Cascais. Seu obituário afirma:

O seu ambiente preferido era no meio das crianças e dos velhos:com aquelas aprendia a língua e, com estes, aprofundava o conheci-mento dos segredos e dos costumes das gentes. (arquivo da C.E.S.)

Do que se depreende das correspondências entre os missionários,Valente era um missionário encantado com a vida entre os “indígenas”,pouco afeito às atividades burocráticas. As poucas cartas trocadas entreele e o superior da congregação, assim como as cartas de outros missio-

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nários que fazem menção a ele, abordam problemas de relacionamentode Valente e trazem pedidos seus de que não seja trocado de missão epossa dedicar-se exclusivamente ao trabalho com os “indígenas”. Aolongo de seu tempo de missão, trocou de estação mais de dez vezes,tendo trabalhado, entre outras, em Galangue na década de 1930; emCaconda, onde foi superior de 1941 a 1947; em Caluquembe, fundadapor Valente após sua saída de Caconda; em Luimbale; no Bailundo; naChicuma (1952); em Balombo (1953); em Benguela (1953); de volta aoBailundo por desentendimento com um padre; no Huambo (1960). Es-forçava-se por conseguir um posto no qual pudesse dedicar-se às visitasàs catequeses do interior, se possível sem ocupar o cargo de superior.Passou grande parte do tempo em campo e ocupou poucas posições dedestaque, tendo-o feito, ao que parece, por imposição de seus superiorese em respeito ao voto de obediência. Ao que tudo indica, a função desuperior das missões desagradava-lhe.

São vários os seus trabalhos em umbundu ou sobre os falantesdesta língua: uma liturgia (1956); uma coletânea de provérbios (1964a);uma gramática (1964b); uma compilação de contos (1973); um dicioná-rio em coautoria com Le Guennec (1972), publicado após a morte deste;artigos publicados em periódicos missionários (1971; 1972a; 1972b);Namussunguila (1974)23; A problemática do matrimônio tribal (1985). É curi-oso, inclusive, que seu trabalho não seja citado por Estermann, emboraeste o seja por Valente. Ao contrapormos as obras dos dois espiritanos,fica patente o escopo mais restrito dos escritos de Valente: limitou-se aescrever sobre e para os “bundos”, não tendo a pretensão de fazer umateoria generalizadora. Não obstante, vale-se da categoria mais ampla dos“bantos” em suas obras e situa os “bundos” como pertencentes a ela.Nenhuma de suas obras poderia ser considerada uma etnografia no sen-tido estrito do termo, embora comentários etnográficos permeiem todaselas. A preocupação com a língua, no caso o umbundu, é uma constanteem todas as suas publicações, sendo ainda mais central do que emEstermann. Como veremos no capítulo seguinte, Valente vê a língualocal como porta de entrada para o pensamento “indígena” e exploraesse recurso de forma peculiar.

Valente e Estermann compartilham, no entanto, diversos pressu-postos, que não lhes são exclusivos, mas se relacionam ao contexto

23 Obra à qual infelizmente não tive acesso.

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epistemológico de sua produção e inserção. Há nas obras um certoevolucionismo assimilacionista, que busca ao mesmo tempo preservar,transformar e fundir “mentalidades”, projeto para o qual a missãocivilizadora aparece como coadjuvante fundamental. A tentativa de com-preensão das chamadas “atitudes psico-religiosas” dos “bantos” baseia-se no pressuposto de que existiria um caráter psicológico extensível atoda uma “etnia”, em escala mais restrita, e, em última análise, a todauma “raça”. Na conformação desse caráter, o meio teria efeitodeterminante, o que colocava a possibilidade de efetuar mudanças emnível psicológico a partir da transformação do entorno. Os objetos deinteresse das descrições e explicações são também comuns e refletem aspreocupações cotidianas e doutrinárias das missões: as formas de nome-ação, as cerimônias de casamento, os ritos de iniciação, os cultos aosancestrais, os enterros. As obras etnográficas missionárias dirigem seufoco para a língua, que daria acesso ao pensamento mais profundo des-ses povos, e para o ritual, onde se buscam elementos de convergênciacom o ritual católico e se procuram as práticas a serem combatidas.Ambos os autores comentam sobre a “aparente falta de lógica” do “pen-samento banto”, compreendido após anos de convivência e dado a co-nhecer ao leitor. Esta impressão inicial de falta de racionalidade porparte dos missionários é resolvida no processo de invenção do outro: ochoque inicial com a alteridade é superado na medida em que a experi-ência cotidiana a torna mais próxima, por um lado, e o esforço deobjetificá-la nas etnografias lhe confere sentido, por outro (Wagner, 1981).

A despeito das recorrências, há diferenças significativas nas obrasdos dois missionários, que uma vez mais refletem sua posição. A primei-ra delas diz respeito ao formato: praticamente todos os escritos deEstermann são descrições etnográficas de mais de uma “etnia” angola-na, seguidas de conclusões que levam, por comparação, à generalizaçãoa partir dos casos observados e, assim, a uma teoria geral sobre os“bantos”. Embora esteja ausente um esforço de circunscrever de formametódica os conceitos utilizados, vale-se daqueles correntes na discipli-na etnológica de sua época – “cultura”, “evolução”, “ciclos culturais”,“raça” – numa pretensão de “objetividade”, “racionalidade” e “rigorcientífico”. Foi, sem dúvida, um dos principais responsáveis pela con-formação da classificação étnica do território angolano a partir de crité-rios eminentemente linguísticos e culturais, também corroborados pormedições antropométricas (Estermann, 1983). Seu principal referencialé a etnologia alemã, visível na escolha de sua área de estudo: os povos

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“mais primitivos” e, de seu ponto de vista, mais refratários à ocidentalização,habitantes da fronteira com a Namíbia – os Herero e Kwanyama. Seustrabalhos mais “científicos” são publicados na Anthropos, revista alemãcom a qual a Congregação manteve relações desde sua fundação.Entremeadas nas descrições aparecem, como que escapando pelas frestas,suas impressões pessoais, geralmente na forma de adjetivos ou, mais rara-mente, de forma mais explicitamente descritiva para conferir veracidadeao relato. Abundam as citações de etnólogos de renome, missionários ounão, e dos produtores de etnografias sobre Angola. Na introdução à cole-tânea de artigos, um outro espiritano afirma sobre seu método:

Resulta a força de suas conclusões de demorada e cuidadosa obser-vação, que realiza no terreno, convivendo, participando, ouvindoinformantes. Descreve, compara e interpreta, mas só até onde aevidência o consente, não ultrapassando os factos objectivamenteprováveis com fantasiosas explicações. (In: Estermann, 1983: 15)

Valente, por sua vez, embora por vezes ressalte o caráter “objetivo”de sua argumentação, principalmente nas obras mais tardias, em mo-mento algum prioriza objetivos “científicos”: seu intuito, afirma, é com-preender a “mentalidade bundo” com o propósito de auxiliar seu traba-lho de evangelização. Seu foco é o “pensamento profundo” dos “bundos”,motivo pelo qual concentra seus esforços em compilações linguísticas.Embora mencione por vezes os “bantos” e inclua os “bundos” entreeles, não se preocupa com o procedimento de generalização que leva deuma categoria à outra e vale-se predominantemente da obra de outrosmissionários católicos, em especial os da própria Congregação do Espí-rito Santo, como base para sua reflexão. A maioria de suas obras nãoinclui referências bibliográficas, com exceção da Problemática do matrimô-

nio tribal, na qual dialoga com as obras de outros missionários que tra-tam do mesmo tema. As noções correntes na sociologia e etnologia daépoca aparecem de forma difusa, estando praticamente ausente a noçãode “cultura” – a não ser na obra da década de 1980 – e sendo utilizadasprincipalmente as noções de “civilização” e “mentalidade”, provávelresultado da formação francesa do autor. Valente é menos sistemático emuito mais emotivo na escrita do que Estermann: assume o pouco pre-paro para as obras que escreve e é ousado nas comparações entre ouniverso “bundo” e o universo “cristão”, colocando de forma explícita aintenção de fundir essas duas “mentalidades”. Seu método principal são

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suas “locubrações” [sic] linguísticas e as aproximações eminentementepráticas que o auxiliam na tentativa de encaixar os elementos de cadauma dessas duas “mentalidades”.

3.4 A produção das obras missionárias: uma relação

Na coletânea de artigos de Estermann, ele relata como se aproxi-mou, em fins de julho de 1924, de um grupo de “bosquímanes” contatadopor intermédio do padre Carlos Mittelberger, superior da missão deOmupanda, o qual já havia estabelecido contato com eles há algunsanos. Segue o relato:

Viajamos de carrinha até ao ponto do último estabelecimento co-mercial daquela terra. Depois prosseguimos as nossas jornadas decarroça através da floresta ressequida e arenosa. Já no dia da nossachegada ao local previsto encontramos um grupo numeroso degente “vermelha” graças à intervenção inteligente do catequista regi-onal e da sua mulher, ambos pertencentes à nobreza cuanhama.

No dia seguinte, teriam afluído pessoas de todos os lados:

244 indivíduos em volta da nossa barraca de campanha. (...) Emseguida começámos a fazer as nossas observações, a investigar e atirar fotografias sem encontrar a menor relutância por parte destesselvagens. É verdade que a sua confiança ainda aumentou a olhosvistos graças à distribuição de abundantes rações de carne, massango,sal e tabaco. (ibidem: 45)

Ao ler o relato, o leitor visualiza os missionários em viagem ár-dua pelo interior, de “carrinha” inicialmente e depois de carroça pelafloresta inóspita. Encontram-se, em seguida, com a “gente vermelha”contatada por intermédio do catequista e de sua mulher, não pertencen-tes ao grupo dos “bosquímanes”, mas à “nobreza cuanhama”. Aqui ficaclara, uma vez mais, a distância entre os missionários e seusevangelizandos nos ambientes distantes da sede das missões: aintermediação dos catequistas é necessária mesmo para terem acesso aparte da população. Em seguida, afluem diversos indivíduos “verme-lhos” à barraca, atraídos pela distribuição de alimentos e tabaco pelosmissionários, cujo intuito era principalmente observá-los, fotografá-lose realizar medições antropométricas de 25 adultos dos dois sexos.

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Estermann lamenta não ter sido possível estabelecer com os“bosquímanes” a mesma relação, com o “mesmo caráter de espontanei-dade – diria mesmo cordialidade – que facilmente existe entre um velhomissionário e os indígenas” (ibidem: 51). Evidentemente, o nível de rela-ção estabelecido com essas pessoas foi irrisório se comparado ao convíviodiário com os catequistas e alunos internos e externos das missões, restri-to como estava à troca da carne caçada pelos caçadores-coletores por pro-dutos agrícolas da missão. Entre os “bosquímanes” não foram nem mes-mo produzidos materiais litúrgicos. O projeto de evangelização entre elesfoi muito restrito se comparado com aquele realizado entre as populações“bantos”. Quando muito, houve uma tentativa de aproximação dos“bosquímanes” nas línguas das populações vizinhas, faladas por eles.

Após essa aproximação inicial, na qual os missionários tentavamachegar-se aos “indígenas” oferecendo-lhes comida e acolhida na mis-são, estabeleciam-se pouco a pouco relações mais próximas e duradou-ras. Com isso, não pretendo afirmar que a “espontaneidade” e “cordia-lidade” das relações na missão impliquem um equilíbrio na correlaçãode forças entre os agentes. O afeto entre os “velhos missionários” e“seus indígenas” foi um dos principais mecanismos de manutenção dadesigualdade entre eles. Diferentemente da situação descrita acima, naqual o missionário passava alguns dias acampado em uma barraca nafloresta, munido de seu caderno de apontamentos e de uma câmerafotográfica, as etnografias produzidas sobre os povos entre os quais tra-balhava eram produto de outro tipo de relação: convívio cotidiano noqual se observavam os hábitos e se aprendia a língua, entrevistas, relatosmais ou menos espontâneos, querelas resolvidas pelos missionários. So-bre o método etnográfico de Estermann, afirmam seus colegas da con-gregação:

Depressa se amoldou ao estilo da vida missionária, contactandodirectamente com o povo. Observador perspicaz e (...) etnógrafocurioso, anota tudo o que vê e ouve de interesse para o melhorconhecimento dos costumes e tradições da população local. Regista,mesmo, minuciosas diferenças e variantes, como nos penteados ounos utensílios usados, etc. (...) Homem compreensivo e respeitadordas outras culturas, sempre discordou de medidas drásticas ou brus-cas para modificar hábitos ancestrais, pois confiava numa transfor-mação consciente, embora mais lenta. Prevendo esta evolução,pesquisou a recolha da valiosa documentação escrita e fotográfica –arquivo para os vindouros, esforçando-se por ser fiel à realidade.(In: ibidem: 2)

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Muito metódico e fiel ao seu horário de trabalho, não menospreza-va todo o tempo que pudesse dar-se à vasta leitura e à recolha decomunicações dos evangelizandos. Quanto mais estes se abriam, re-latando o dia-a-dia e os conhecimentos possuídos das variadas fasesda vida da etnia, melhor se preparavam para a vida cristã. (In:ibidem: 5)

Observa-se, pois, uma combinação de métodos que inclui viagens,anotações sobre a cultura material e os rituais “indígenas”, conversascom os evangelizandos. Inesperadamente, Estermann revela como ob-tém suas informações: “Um informante kwanyama que é muito ligado a mim

há 25 anos assim declarou” (ibidem: 278). As informações obtidas junto aesse tipo de agente foram, sem dúvida, a base para a conformação dosaber missionário sobre os “indígenas”: sabemos que dispunham depouco tempo para incursões demoradas ao interior, reservado principal-mente aos catequistas, e que os habitantes das regiões onde a presençamissionária não era significativa costumavam impor restrições à partici-pação dos missionários nos rituais locais. As descrições dos “povos pri-mitivos” eram, portanto, no mais das vezes filtradas não só pelo olhardo missionário, mas pelos próprios “primitivos” que as relatavam: falan-tes do português, tendo convivido anos a fio com os missionários, co-nheciam os diversos contextos de comunicação e eram intermediáriosprivilegiados entre eles. Ora, o predomínio da relação com osevangelizandos na constituição desses saberes era tanto maior quantomais tempo o missionário passasse na missão. Estermann parece tersido um missionário desse tipo: sobrecarregado de funções administrati-vas e burocráticas, com as obrigações de visitas às missões do território,somando-se a elas as inúmeras palestras e viagens ao exterior para divul-gar o trabalho missionário e a produção “científica” sobre os “indíge-nas”, certamente lhe restavam poucos momentos de convívio com “in-dígenas” muito distantes do universo missionário. Sua perspectiva écondizente com o formato de suas obras: metódico, partindo sempre doparticular para o geral, apoiando-se em noções etnológicas correntes,com pretensão de “rigor científico”.

Valente, por outro lado, embora tenha sido superior de diversasmissões, tendo passado longos períodos envolvido nas mesmas ativida-des burocráticas e administrativas, com exceção das atividades de visitadore das poucas viagens ao exterior, preferiu o trabalho de terreno, a pre-sença em missões estabelecidas há pouco, a participação no cotidiano

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dos “indígenas”. Ao método de Estermann contrapõe-se a vivência caó-tica do cotidiano de Valente, tanto nas missões quanto no interior, re-fletida na forma de suas obras: sem começo, meio e fim, uma coleção deimpressões e julgamentos esboçados ao acaso, sobrepostos, de“locubrações” linguísticas sobre o pensamento profundo dos “bundos”,corroboradas por sua observação em campo durante 43 anos. O tipo deregistro que produz como que prescinde da autoafirmação de sua pre-sença em campo, bastante recorrente em Estermann. Ao passo que estevez por outra enumera seus informantes já nas décadas de 1930 e 1940,Valente menciona um ou outro “bundo”, sem a preocupação de reafir-mar para o leitor a veracidade de seu relato. Quando menciona o casode uma rapariga indignada com a imposição de seu casamento por partede seus pais na Problemática, por exemplo, o caso é trazido à luz comomera ilustração. O oposto ocorre com o alsaciano, que enumera entreseus informantes inclusive personalidades que foram ou ainda eramkimbandas: por exemplo, “uma iniciada, convertida depois ao cristianis-mo, estando antes da conversão absolutamente convicta da realidadedos factos relatados” (ibidem: 315). Em outro momento, menciona rela-ções de cordialidade e confiança com Katana, kimbanda atuante:

Quando há meses passei ao pé da sua cubata em visita a um doente,gritei [a Katana] as minhas saudações de longe. Ao regressar para olugar onde tinha ficado a minha carrinha, ela e outros habitantesdo sítio vieram ao meu encontro para me cumprimentar. Ia eu compressa e mal parei uns instantes. Mas mesmo assim foi o suficientepara que ela me confiasse: “tu não te fazes uma ideia de como estousendo castigada pelos meus espíritos. Não lhes posso fazer mais fes-tas”. Isto interpretado em linguagem profana quer dizer o seguinte:desde os acontecimentos do Congo, ficaram proibidas, como é na-tural, as reuniões nocturnas, por consequência também ascerimónias espiritas que duram dias e noites. Por outro lado o ritocomporta sempre uma oferta de cerveja indígena aos espíritos, cer-veja esta que não pode ser substituída por vinho. Ora o fabricodesta bebida é proibido. Se anos atrás era relativamente fácil obterexcepções à regra, agora já não existe esta possibilidade. Assim, osespíritos ficam postergados no seu culto que passa por um períodode modorra. (ibidem: 344)

Valente, ao invés de enumerar personagens de seu convívio, repor-ta-se a situações concretas: a proibição por parte de alguns mais-velhos

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da presença dos missionários nos rituais de casamento e enterros, a nãoser que este fosse “amigo” dos “indígenas”, os serões em volta do fogo.O maior convívio com “indígenas” de diferentes contextos, aliado àformação acadêmica mais restrita de Valente, fariam com que este con-siderasse sua convivência com os “indígenas” critério suficientementeválido para corroborar suas afirmações24. Não era necessário apontar“indígenas” concretos, nem fazer menções constantes a sua presençaem campo – ela é inferida de seus amplos conhecimentos linguísticos edos detalhes do cotidiano “bundo”. Nas palavras de Estermann, seriaeste o método etnográfico mais apropriado:

É por demais sabido que não é pelo método da interrogação directa,mesmo se o explorador fala uma língua banta conhecida dosBochimanes, que se obtêm resultados apreciáveis e positivos. É pre-ciso poder surpreender conversas e cerimónias, é preciso por à von-tade o nosso selvagem, agir por forma que ele faça abstracção dapresença dum observador estranho. Só assim ele descobrirá, poucoa pouco, todos os seus segredos. (ibidem: 41)

Não obstante a preferência pela “observação participante”, segue abaixoum interessante relato de Estermann, que nos permite visualizar como con-duzia suas entrevistas, principalmente no que diz respeito a temas aos quaisdificilmente teria acesso a não ser através de recém-conversos. O artigo emquestão foi publicado em 1966 e refere-se ao que considerava “novidades”introduzidas nos “tradicionais” cultos aos ancestrais:

Foi num interrogatório feito a três catecúmenas muílas, pertencen-tes à mesma catequese, que nos foram reveladas as novidades espíri-tas que estamos relatando.Todas são mulheres e mães de filhos, de entre 18 e 24 anos. Duascontraíram matrimónio natural e a terceira vive em companhia deum homem cristão da mesma etnia.A primeira interrogada calhou ser a irmã mais velha de nomeNangombe.

24 A formação acadêmica mais restrita de Valente não é uma questão individual, masuma característica do contexto colonial português no que diz respeito à produção deconhecimento, tendo o governo lusitano investido muito pouco na formação deintelectuais para pesquisar seus territórios ultramarinos.

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– “Tens espíritos?”– “Sim” – respondeu com a maior naturalidade.– “Quantos tens?”Depois de uma curta pausa para fazer a contagem, vem a repostacom a mesma franqueza.– “Quatro”.– “Quais são?”– “Dois ovikamwila, um okamunano e um otyikangandyi.Maior número indicou depois Kakinda, a mulher do cristão, pois apobre mulher encontrava-se possessa por sete destes entes“supernaturais”. Felizmente que alguns deles já se tinham afastado,mas, no momento do exame, ela era ainda habitada por quatro.(...)Muito interessante a maneira como [Kakinda] explica o estado deespírito em que então se encontrava. Transcrevemos à letra o que eladisse:– “Kutyinoñgonok’ale. Tyafwa wapanyala oatake”.É de notar que ela emprega a segunda pessoa do singular, em vez daprimeira, figura retórica, aliás frequente no falar desta gente. Tra-dução: “Não podes fazer uma ideia (ou: “Não podes ter uma no-ção exacta, consciente”.) parece que apanhaste um ataque”.Como se vê, ela exprime-se segundo esta expressão em português,adaptada, é claro, à fonética da língua que fala, por lhe parecertraduzir melhor o que sentiu naquele momento. (ibidem: 356-357)

Estermann aparece claramente como condutor do interrogatório.Trata-se da “interrogação directa” que ele mesmo desaconselha na cita-ção precedente. Ele coloca as questões: se as interrogadas “têm espíri-tos”, sua quantidade, de qual tipo são, como se apoderam do “possesso”.Interessantíssima é a resposta de Kakinda, a respeito da qual se podeinferir, justamente por ser “a mulher do cristão”, uma relação de maiorproximidade com o universo da missão, na qual aparece, em meio ànarrativa em umbundu, a palavra oatake, umbundização de “ataque”.Muito embora o missionário afirme que tenha empregado o termo “porlhe parecer traduzir melhor o que sentiu naquele momento”, é possívelenxergar aqui a pactuação de uma convenção de significação no que dizrespeito à “possessão”, descrita pelos missionários no século XX nãomais como “possessão diabólica”. Tendo em vista a chave de leiturapsicologizante dos fenômenos observados, a “possessão” aparece comobastante próxima da histeria como descrita pelos estudos psicanalíticos.Esta seria inclusive uma explicação para a predominância de relatos

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sobre os fenômenos de “possessão” por parte das mulheres, a despeitode haver um grande número de ovimbanda do sexo masculino, um dosquais aparece inclusive em fotografia ao lado dos missionários, à portade sua cubata (arquivo da C.E.S.). O relato acima é emblemático daforma como se vai conformando um código de comunicação nas rela-ções cotidianas entre os agentes na missão. Oatake, palavra de origemportuguesa cujo som se aproxima bastante do umbundu e se encaixaperfeitamente em sua gramática após adquirir o designativo de classe“o”, configurou-se como noção passível de ser compreendida pelos agentesna missão. E o processo por meio do qual se chegou a tal compromissofoi a interação entre os agentes em momentos nos quais os “ritos depossessão indígenas” eram postos em questão.

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4.A grade de leitura missionária

Ou o homem foi criado à imagem e semelhança deDeus – e então Deus tem intestinos –, ou então Deus

não tem intestinos e o homem não se parece com ele.(Kundera)

A escolha de meu partido teórico esbarra numa dificuldademetodológica: como ter acesso ao código de comunicação resultante darelação entre os agentes a partir de registros produzidos nominalmentepelos missionários. Cumpre, pois, compreender os filtros através dosquais apreenderam a realidade: as noções de “mentalidade”, “cultura” e“civilização”. Para tanto, valho-me principalmente dos escritos de Va-lente e Estermann, cuja trajetória foi delineada no capítulo precedente.Valente, de formação francesa, recorre principalmente à noção de “men-talidade”, ao passo que Estermann, de escola alemã, olha para a alteridadena chave da “cultura”, mas se apropria da noção de “mentalidade” quecirculava entre os espiritanos. Ambos têm como horizonte de chegada a“civilização”25. O foco da discussão aqui será a noção de “mentalidade”,

25 Essas noções estão presentes no contexto epistemológico mais geral do colonialismo;embora não seja meu objetivo explorar as semelhanças com os registros coloniais, arecorrência dessas noções indica a existência de convergências significativas na formade apreensão da alteridade por parte dos produtores de registros no território ango-lano, a despeito das inegáveis disparidades de olhar existentes, por exemplo, entremissionários protestantes e católicos, ou entre missionários e administradores. OEstatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas para Angola e Moçambique, porexemplo, justifica a política do governo colonial com relação às questões legais dosindígenas a partir da noção de “mentalidade”: “Mantemos para eles uma ordemjurídica própria do estado das suas faculdades, da sua mentalidade de primitivos, dosseus sentimentos, da sua vida, sem prescindirmos de os ir chamando por todas asformas convenientes à elevação, cada vez maior, do seu nível de existência”. (In:Thomaz: 319-320)

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que exerceu o papel de organizadora dos escritos missionários; as outrasnoções aparecem na medida em que dialogam com esta.

A “mentalidade” está presente em todas as obras de Valente e nagrande maioria dos artigos de Estermann. Nas compilações linguísticasdo primeiro, aparece como ideia estruturadora nas introduções e prefá-cios. Já os textos corridos permitem uma apreensão mais imediata dométodo de leitura do missionário português. A Problemática do matrimô-

nio tribal (1985), estruturada por esta noção, ao tomar como questão o“casamento tradicional africano”, articula a perspectiva missionária, seumétodo de leitura da alteridade e sua proposta de evangelização. A mai-or parte deste capítulo tratará da obra de Valente sobre o matrimônio,buscando compreender as ideias e práticas relacionadas à noção de “men-talidade” – que, como veremos adiante, está intimamente ligada à con-cepção de “civilização” – e a forma como essa noção constituiu-se numfiltro através do qual o missionário desenvolveu sua argumentação so-bre a “problemática do matrimônio tribal”.

A presença da noção de “mentalidade” nos escritos tanto deEstermann quanto de Valente é bastante significativa na medida em queaponta não só para o estabelecimento de um consenso quanto à formade inscrever a alteridade do ponto de vista dos agentes produtores deregistros sobre os “indígenas”, mas permite realizar um esboço doreferencial epistemológico que norteou a produção de conhecimento ea ação evangelizadora dos espiritanos em Angola. Ademais, aponta parao diálogo estabelecido por esses missionários com a escola sociológicafrancesa: embora essa noção seja herdeira indireta do conceito de “menta-lidade primitiva” de Lévy-Bruhl, o uso que dela fizeram os missionários ébastante distinto. Ainda que não se trate de uma apropriação strictu

sensu, mas de uma inspiração e uma referência implícita – entre outrosmotivos, porque a obra de Lévy-Bruhl já havia sido duramente criticadana época26 –, estabelecer um paralelo entre o uso que fazem da noção osmissionários Estermann e Valente (com ênfase neste último) e o concei-to de “mentalidade primitiva” de Lévy-Bruhl poderá ajudar a compreen-der essa noção tão central na forma de olhar para a alteridade dessesmissionários.

26 A noção de “mentalidade” e a crítica à ideia de “prelogismo” estão presentes, porexemplo, na obra de Childs (1949), pastor protestante orientado por Ruth Benedict elido por Estermann.

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4.1 Paralelos com Lévy-Bruhl e a “mentalidade primitiva”

Na obra de Estermann e Valente não há menções explícitas a Lévy-Bruhl. A noção de “mentalidade” é manejada de maneira difusa pelosdois autores, pouco preocupados em circunscrever seu campo conceitualou relacioná-la a uma teoria – é utilizada ad hoc, conforme necessáriopara dar conta de suas questões. A noção foi provavelmente apropriadado ambiente intelectual da época via obra dos etnólogos, missionáriosou não, lidos durante a formação dos autores em linguística e etnologia.Uma característica interessante da apropriação de ideias do contextoepistemológico da época é o fato de, justamente por serem pinçadas deobras que se valem desses conceitos, e não diretamente de Lévy-Bruhl,estarem presentes nos registros de Estermann e Valente principalmenteas noções mais difundidas da obra do etnólogo francês. Em Estermann,a noção de “mentalidade” vem frequentemente acompanhada de quali-ficações como “mágica” (Estermann, 1983: 283), “banto primitiva” (ibidem:302), “primitiva” (ibidem: 329), “mágica ou pré-científica” (ibidem: 348;351), “indígena” (ibidem: 348), “mágica ancestral” (ibidem: 464). As resso-nâncias com a teoria da “mentalidade primitiva” de Lévy-Bruhl não sãomera coincidência.

Diversos paralelos podem ser estabelecidos com o tratamento dadoà questão da “mentalidade” por Lévy-Bruhl27. Em primeiro lugar, a esco-lha do objeto: se Estermann presta muita atenção às descrições dos con-teúdos psíquicos dos povos estudados, ao lado dos estudos sobre culturamaterial e estrutura social, Valente concentra-se quase exclusivamenteno “pensamento bundo”, praticamente sinônimo de “mentalidade”.Embora estabeleça uma relação entre pensamento e estrutura social naProblemática, o restante de sua obra se volta para a compreensão dessepensamento. Há aqui uma semelhança inegável com Lévy-Bruhl, que seesforçou por descrever a forma de funcionamento dessa “mentalidadeprimitiva” e teorizar sobre ela. Nas palavras de Goldman,

Mesmo admitindo teoricamente que os tipos de mentalidade de-pendam dos tipos de sociedade, Lévy-Bruhl acredita ser possíveldeixar a questão causal provisoriamente de lado, tentando “consti-

27 Este exercício de traçar paralelos implica uma inevitável simplificação dos desdobra-mentos, continuidades e mudanças da obra de Lévy-Bruhl. Para um tratamento minu-cioso da questão, ver Goldman (1994).

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tuir, senão um tipo, ao menos um conjunto de caracteres comuns aum grupo de tipos vizinhos uns dos outros, e definir assim os traçosessenciais da mentalidade própria às sociedades inferiores”.(Goldman, 1994: 177)

Ao passo que o autor francês se ocupa da forma de operação dessamentalidade em geral, Valente estaria mais preocupado em delinear seusconteúdos específicos entre os “bundos”. O nível de generalização deEstermann, por sua vez, seria o do grupo “banto”. Uma das ideias queparece estar ausente nos escritos missionários é a de que essa “mentali-dade primitiva” seria pautada pela afetividade. Valente postula antes aexistência de um “racionalismo primitivo”, a ser desenvolvido no pro-cesso evolutivo civilizatório, ilustrado, por exemplo, pela “concepçãoracional de deus”.

Outra questão fundamental coloca-se no que diz respeito à apreen-são da alteridade: se Lévy-Bruhl preocupa-se cada vez mais com a criaçãode um aparato conceitual que lhe permita compreender essa “mentali-dade” sem contaminá-la com as formas de pensamento próprias doOcidente, radicalizando a distância entre o “eu” e o “outro”, e nesseesforço refina progressivamente seus conceitos, a preocupação dos mis-sionários consiste em localizar a diferença para superá-la. Uma das for-mas de fazê-lo é pelo procedimento de “fusão de mentalidades” propos-to por Valente e descrito a seguir. Sua apropriação da teoria de Lévy-Bruhl prescinde, portanto, do questionamento radical da alteridade rea-lizado por este, na medida em que as traduções do português para overnáculo e vice-versa e o estabelecimento de equivalências conceituaisentre o que via como dois universos distintos pretendiam construir umaponte entre as duas “mentalidades”. A possibilidade de realizar essapassagem não é colocada em dúvida pelo missionário; argumenta-se aseu favor e discute-se a melhor forma de fazê-lo: qual forma de casamen-to realizar, qual termo escolher para traduzir determinado vocábulo.

Postas essas diferenças, evidentemente não exaustivas, ressalto al-gumas semelhanças. A primeira delas refere-se à escolha dos autores detrabalhar do ponto de vista de uma psicologia social, numa tentativa dedelinear uma forma de pensar que estaria relacionada a um determina-do grupo de pessoas. Historicamente, a psicologia social esteve ligada aointuito de compreender a forma de pensamento de um determinadopovo para, a partir desse entendimento, agir sobre ele. Esse recurso aformas de sistematizar o pensamento de um povo é bastante comum aosmissionários em geral, e pode ser explicado por sua necessidade de com-

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preender o modo de funcionamento desse pensamento para propor ca-minhos de evangelização condizentes com essa psicologia, traduzida emChilds como “caráter” (Childs, 1949) e nos missionários espiritanoscomo “mentalidade”. Valente, ancorado no paradigma da “civilização”e inspirado pela noção de “mentalidade”, procura traçar os caracteresfundamentais da psicologia “bundo”. Estermann o faz para os “bantos”.

A “lei da participação” de Lévy-Bruhl, embora não enunciada, estápresente em Valente, por exemplo, quando afirma ser a existência dosafricanos “sacralizada”, “em comunhão com o universo”. O “prismaespiritualista” da “mentalidade religiosa tradicional” em Valente guardasemelhanças notáveis com a “orientação mística” da “mentalidade pri-mitiva” do autor francês, para quem essa orientação é responsável porum direcionamento do pensamento para as coisas místicas. Nas pala-vras de Lévy-Bruhl:

(…) a mentalidade primitiva faz mais que se representar seu objeto:ela o possui e é possuída por ele. Ela se comunica com ele. Participadele, no sentido não somente representativo, mas ao mesmo tempofísico e místico, da palavra. Ela não o pensa somente: ela o vive.(Lévy-Bruhl, 1910: 426)

Essa mesma mentalidade mística, apresentada como explicação dadiferença, é tida como porta de entrada para a evangelização. O pensa-mento místico teria ainda outra característica que aparece na obra dostrês autores: a pouca importância conferida pelos “primitivos” à aparen-te contradição entre algumas de suas “crenças”. Essa ausência de preo-cupação com o contraditório reforça, em Lévy-Bruhl, o argumento de quese trata de formas de operação mental distintas (ocidental versus primiti-va); para Valente, trata-se de um pensamento potencialmente lógico queainda não teve suas virtualidades desenvolvidas. Já Estermann afirma:

Quem tiver lidado com primitivos não estranha a coexistência, nomesmo conceito, de elementos dificilmente conciliáveis uns com osoutros, à face do nosso pensamento lógico. Pois é esta uma dascaracterísticas da mentalidade primitiva. (Estermann, 1983: 329)

Tanto em Valente quanto em Estermann, assim como em Lévy-Bruhl, uma observação é recorrente: a de que algo que aparentementeapreenderíamos como totalmente destituído de lógica tem um sentidocoerente desde que apreciado do ponto de vista do funcionamento da

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“mentalidade primitiva”. Assim, Valente esforça-se por mostrar como oconceito de deus dos “bundos” seria “racional”; Estermann – assimcomo Lévy-Bruhl e também Evans-Pritchard (2005 [1937]) – explica a“crença” dos “indígenas” nas “superstições” e “feitiços” como resul-tante da não admissão do acaso, da superutilização do princípio de cau-salidade. Essa necessidade de explicação de algo em princípio incom-preensível é colocada pelo postulado do racionalismo ocidental, presen-te na obra dos três autores: cumpre explicitar a forma de funcionamentodesse pensamento outro, baseado em princípios rebeldes à “lógica raci-onal”. Não obstante, há que se postular uma lógica, obrigatoriamentecompatível em algum grau com a lógica de quem a dá a conhecer, paraque a própria explicação seja possível. A necessidade de situar-se noponto de vista “indígena” para compreender os fenômenos descritos écolocada com frequência:

Como forneçamos a descrição [de seu ritual], a despeito da repug-nância que certos detalhes nos possam inspirar. Para apreciarmosesses costumes com seu justo valor, coloquemo-nos do ponto devista indígena. (Estermann, 1983: 299)

Nos três autores, a preocupação com a compreensão do outro levaa estabelecer paralelos sistemáticos entre o universo “primitivo” e ouniverso “ocidental”. Entretanto, se no caso de Lévy-Bruhl o esforço éapreender o outro sem minimizar as diferenças, levando-se em conta adiferença qualitativa existente entre um pensamento e outro, no casodos missionários a necessidade de compreensão do outro tem carátereminentemente prático. Isso determina, por sua vez, os procedimentosrealizados pelos missionários, que embora se proponham a olhar para arealidade “indígena” com o máximo de objetividade – e aqui mais umavez convergem com Lévy-Bruhl –, escolhem os objetos a serem contem-plados a partir de preocupações pragmáticas relacionadas ao cotidianoda missão e guiam-se, em última análise, pela lógica da prática no esta-belecimento de equivalências entre o universo “cristão” e o universo“indígena”. Vejamos como cada um deles o faz.

4.2 As grades de leitura de Estermann e Valente

A diferença entre as trajetórias de Estermann e Valente manifesta-se em suas obras etnográficas. Como vimos no capítulo precedente, há

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divergências significativas na grade de leitura mobilizada por cada umdeles: Estermann vale-se desde o início do conceito de “cultura”, toma-do de empréstimo ao difusionismo alemão, escola na qual teve sua for-mação intelectual. Já Valente, que recorre principalmente à bibliografiaetnológica produzida pelos missionários portugueses e franceses, move-se no paradigma da “civilização”. O termo “cultura” aparecerá em Va-lente apenas na Problemática, obra da década de 1980, momento em queo conceito havia sido amplamente popularizado com o debate sobre a“inculturação”28. Não obstante a apropriação do termo, seu procedimentoanalítico e discursivo em linhas gerais permanece, não tendo a noçãode “cultura” o mesmo peso conferido à “civilização” e à “mentalidade”.Já em Estermann, a ideia de “cultura” é central: com base nela, delimitaas “etnias” que compõem o território angolano e opera a generalizaçãodestas para uma categoria mais abrangente, a “raça” dos “bantos”. Cadaqual em seu paradigma, os dois missionários compartilham umevolucionismo sem referências teóricas explícitas, o qual serve de base aseu projeto de auxiliar os povos “indígenas” a superarem os aspectos“atrasados” de sua “cultura”, “civilização” ou “mentalidade”.

Para além das diferenças de formação, há entre os dois, sobretu-do, uma diferença de método. Estermann esforça-se por seguir o quedenomina “rigor científico” (Estermann, 1983: 18) no tratamento deseu material empírico: apresenta e acumula dados tendo em vista a genera-lização. É metódico no tratamento de suas questões e estabelece umdiálogo com a etnologia de sua época. Em sua obra, faz referência aautores significativos do momento, coloca-se contra ou a favor das teori-as vigentes e defende sua posição de cientista a despeito de ser missioná-rio. Valente, por outro lado, embora aluda com frequência à necessida-de de olhar objetivamente para a realidade para depois analisá-la, temuma preocupação decididamente menos pronunciada com a questãometodológica: o procedimento enciclopédico tem primazia sobre osmétodos da disciplina etnológica de sua época. Seu texto acumula asinformações julgadas relevantes durante sua observação em campo etece comentários sobre elas. Em sua argumentação na Problemática, apre-

28 A “inculturação” aparece nas missões após o Concílio de Trento (1962-1965), em quese discutiram novas diretrizes para o trabalho missionário. Entre elas estava um novoolhar para as missões, que preconizava a “inculturação” do cristianismo mediante aincorporação de elementos da “cultura nativa”.

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senta um argumento e mobiliza exemplos que o confirmem. O métodode Estermann preconiza o oposto: que a generalização seja precedida deobservação atenta e minuciosa. É possível opor, a despeito das seme-lhanças de preocupação entre os dois autores, a pretensão de “rigorcientífico” de Estermann ao método assumidamente mais plástico deValente, manifesto principalmente em suas “locubrações etimológicas”.

Na obra dos dois autores, o recurso à psicologia social tem o mes-mo objetivo: estabelecer os traços psicológicos do povo “banto” – emEstermann – e dos “bundos” – em Valente – para, após compará-loscom a psicologia ocidental, conservar o que é favorável e suprimir o queé desfavorável à evangelização. Nessa empreitada, o enfoque evolucionistapermite tanto considerar as instituições “mais primitivas”, “mais puras”e “profundas” desses povos, apregoando uma volta a elas quando este éjulgado o caminho mais adequado, quanto condenar suas instituiçõescomo degeneradas ou atrasadas e colocar a necessidade da “civilização”.Isso fica patente, por exemplo, no caso do que Estermann chama de“monoteísmo apagado e culto de espíritos muito vivo” (ibidem: 182).Ora, esse monoteísmo com deus distante é defendido por Valente, poiscoloca tanto a necessidade de recuperar o que já teria sido ummonoteísmo mais radical – como seria o caso dos bosquímanes, o “povomais primitivo de Angola” (ibidem: 46) – quanto de erradicar a degenera-ção representada pelo culto “pagão” aos ancestrais. Buscam-se, assim,nas formas “mais primitivas”, as formas “mais puras” do pensamentohumano, colocando-se a possibilidade de resgatar algo que, em essência,já se encontraria latente: em última análise, o monoteísmo, essênciaúltima do ser humano, presente nos povos “mais primitivos” de formaacentuada e de forma degenerada entre os “bantos”, se recuperado damaneira correta, possibilitaria conduzi-los ao cristianismo pela via desuas próprias “crenças”.

É nessa linha que ambos procurarão compreender a psicologiadesses povos, esforço no qual o domínio das línguas locais adquire lugarcentral. O conhecimento linguístico como via de acesso a um pensa-mento mais profundo justifica o aprendizado do vernáculo pelos missio-nários mesmo em regiões onde o conhecimento do português já estádisseminado entre a população:

Embora haja nos centros mais importantes e nas aldeias das Missõesbastante indígenas que entendem e falam mais ou menoscorrectamente o português, a quem queira entrar em contacto ínti-

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mo com estes povos, conhecer os seus costumes, surpreender asua mentalidade, fazer obra civilizadora actuando sobre as faculda-des psíquicas, ainda será para muitos anos indispensável a práticaduma língua indígena. (ibidem: 33, grifo meu)

É com base nesse tipo de raciocínio que se compreendem as com-pilações de elementos da oralidade “tradicional”: os provérbios, contose adivinhas. Essa relação entre língua e “mentalidade” é recorrente en-tre os missionários da congregação. Embora em Estermann o recurso àetimologia seja menos explorado, podemos observar no trecho abaixosemelhanças bastante significativas com o método etimológico de Valen-te, analisado a seguir. Os dois diferem, entretanto, na medida em queEstermann, numa abordagem comparativa, preocupa-se em enumerar apresença do mesmo elemento em diversas “etnias”, generalizando emseguida suas conclusões para “as línguas deste grupo”, faladas pelos“bantos”, ao passo que Valente concentra-se exclusivamente nos “bundos”:

Indicamos atrás a palavra lunga de que provavelmente deriva onome Kalunga. Ora com o dito prefixo transforma-se este radicalem ndunge, que é um “plural tantum” e quer dizer: o juízo, a inteli-gência. Temos em herero: ozo-ndunge, em nyaneka ono-ndunge, emkwanyama e-ndunge e em mbundu: olo-ndunge. Mas se há muitassemelhanças entre as línguas deste grupo, também não faltam dife-renças. (ibidem: 32)

Ambos os autores utilizam, em diversos momentos, a noção de“mentalidade” como justificativa para as práticas dos “indígenas”. Aoretirar de seus potenciais cristãos a culpa pela realização de práticas“pagãs” – o “culto aos ancestrais”, a “feitiçaria” e diversas “supersti-ções” – e localizá-la na “mentalidade” desses povos, colocam justamentea possibilidade de sua superação a partir de uma mudança em sua formade pensar. Haveria, portanto, uma “mentalidade banto” geral, mais abs-trata, e “mentalidades” étnicas específicas. O esforço de caracterizaçãoda “mentalidade” de cada uma das “etnias” de Angola – no qual Valenteincumbe-se dos “bundos” – leva, posteriormente, a uma generalizaçãono que diz respeito aos “bantos”. Assim, poder-se-iam traçar diretrizesgerais para os “bantos” e específicas para cada “etnia”.

É nesse sentido que Estermann se concentra na “possessão espíri-ta entre os bantos” (ibidem: 65) e reúne exemplos das mais variadas“etnias”: trata-se do esforço de generalização, em termos de “possessão

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espírita”, dos fenômenos de possessão ocorridos nos “cultos aos ances-trais” de diferentes regiões do território angolano. A psicologia socialfornece-lhe os elementos para compreender o que descreve como umfenômeno de

alteração do estado psíquico normal em indivíduos possessos. Comefeito, a persuasão íntima de um desses seres extranaturais ter-seapoderado das faculdades mentais, aliada ao poder hipnotizadordo Kimbanda iniciador, exercido num ambiente de forte excitaçãonervosa, é de crer que possam ser factores determinantes para a ditatransformação psíquica. (ibidem: 67)

A psicologia social ajuda o autor a caracterizar o fenômeno depossessão como decorrente de um estado psíquico promovido pelo en-torno dos médiuns. É significativo que atribua a prática da possessãoprincipalmente às mulheres, mais propensas à histeria na teoriafreudiana, e ao seu “alto grau de sugestionabilidade”, a despeito do gran-de número de kimbandas homens:

Dado o ambiente de espiritismo, de simbiose estreita com os ante-passados em que vivem os nossos indígenas, é fácil compreenderque eles possuam como que um sentido especial para tudo quantoseja tido por manifestação destes entes. Têm a vontade semprepronta a aceitar todas as suas exigências, que vão, como vimos, atésacrificar as próprias faculdades psíquicas e físicas para as pôr aoserviço de um antepassado. O estado de transe que é a comunicaçãomais expressiva entre um mortal e um antepassado; creio que seexplica facilmente pela dupla acção da sugestão: a hetero – e aautosugestão. Embora não haja testes científicos para poder confir-mar esta asserção, julgo que um contacto prolongado com estagente fornece muitos exemplos de um alto grau de sugestionabilidade,sobretudo no que diz respeito aos indivíduos do sexo feminino.(ibidem: 345)

Estermann desenvolve uma explicação do fenômeno de possessãoque o relaciona ao psiquismo dos “bantos”, expresso em sua “mentali-dade”. Valente, por sua vez, vale-se menos da psicanálise e de teorias“científicas” em seus escritos. Seu principal método de acesso ao signi-ficado dos elementos constituintes dessa “mentalidade” é o recurso àetimologia. Concentro-me a seguir na noção de “mentalidade” na obra

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de Valente, em seu método etimológico e em seu propósito último: a“mentalização”.

4.3 A “problemática do matrimônio tribal” e a noção de“mentalidade” em Valente

O principal problema apresentado por Valente n’A problemática do

matrimônio tribal (doravante, Problemática) consiste no fato de o casamen-to “tribal”, como praticado “pelos africanos”29, ir contra a “lei natural”,que seria a lei divina dos povos “não civilizados” e “não cristãos”,determinadora do comportamento “natural” esperado dos povos semcontato com a doutrina cristã, e portanto admissível até o momento desua conversão. Assim, coloca-se como problema para o missionário des-cobrir em que medida o casamento praticado pelos “não cristãos” seadequaria ou não a esse modelo de casamento “natural” – baseado noamor, no consentimento mútuo e na constituição de uma família a par-tir dos cônjuges, e não na anexação da família dos cônjuges à família do“patriarca” (Valente, 1985: 13-14). A distinção entre as duas formas decasamento se justifica pela necessidade de extirpar os elementos nãocondizentes com esse estado de natureza para que não entrassem emconflito com os desígnios divinos. Os casamentos simultaneamente“pagãos” e “não naturais” apontariam para a “degeneração” de umainstituição vista como fundadora da sociedade humana. Assim, as uni-ões realizadas em desacordo com a “lei natural” eram classificadas como“concubinato” e declaradas inválidas pelos missionários.

A evangelização é, pois, concebida em etapas: num primeiro mo-mento, caberia aos missionários extirpar os costumes que afastassem os“não cristãos” da natureza. Como baliza para o “natural” e o “degenera-do” recorreu-se a exemplos retirados das narrativas bíblicas – principal-mente o Antigo Testamento e os Evangelhos –, ao direito canônico, adiscursos proferidos por autoridades eclesiásticas e às informações so-bre os usos e costumes locais compiladas por Valente durante seu conví-vio com os “bundos” como missionário. O esforço de reflexão do autorse pauta pela tentativa de estabelecer linhas divisórias entre naturalida-

29 Valente se refere muitas vezes aos “africanos”, mas seus exemplos empíricos se restrin-gem aos “bundos”.

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de e degeneração, num primeiro momento, e entre cristianismo e paganis-mo, no momento seguinte; para isso, baseia-se na forma como as cerimôni-as de casamento são realizadas tanto quanto em seus preceitos morais.

Era necessário definir se um casamento era válido ou não porqueum problema prático se colocava para os missionários no cotidiano damissão: não se poderiam admitir catecúmenos que vivessem emconcubinato para serem iniciados na doutrina cristã. Quanto a isso, ésugestiva a estupefação de Valente com o fato de essa regra nem sempreser seguida pelos missionários. Critica o batismo de não cristãos quecoabitavam em união não natural – e portanto inválida – por outrosmissionários, quando seria necessário primeiramente validar essa uniãocaso fosse considerada natural30. Após se certificarem da naturalidadeda união “pagã”, caberia aos missionários iniciar os cônjuges na doutri-na cristã e no caminho a ser percorrido em direção à “civilização”.

Ora, cada estágio do percurso rumo à “evolução” e ao “progresso”correspondia a uma “mentalidade” distinta. Segundo Valente, Angolanecessitava de uma “mentalização a nível nacional para a desprender detodos os tabus antigos” (ibidem: 11). A ideia de “mentalização”, cunhadapelo missionário na obra Paisagem africana (Valente, 1973: 128) e utiliza-da ao longo de toda a Problemática, é um desdobramento da noção de“mentalidade” do autor e implica transformar a “mentalidade” median-te os avanços trazidos pelo “progresso” e pela “civilização”. Se os “afri-canos” prendiam-se aos tabus por uma questão de “mentalidade”, deixa-riam de fazê-lo a partir da mudança desta. A grande questão para Valen-te torna-se, assim, discutir qual a melhor forma de realizar essa transfor-mação e qual o objetivo a ser alcançado.

30 A divergência na forma de proceder dos diversos missionários contribui para o argu-mento de que é necessário olhar para eles como agentes distintos. O autor da Proble-

mática representava uma posição distinta na missão, dedicando-se à reflexão sobre arealidade local e sobre como incidir sobre ela. Se essa queixa de Valente sobre oproceder dos outros missionários nos remete às críticas frequentemente dirigidas àsmissões católicas, de que teriam feito vista grossa a uma situação que contradizia suaprópria proposta (crítica veemente principalmente por parte dos protestantes – verHenderson, 1992; Péclard, 1995), alerta-nos para a particularidade da posição domissionário e aponta discretamente o problema de os registros sobre as missões teremsido, em sua maioria, obra dos missionários mais intelectualizados e comprometidoscom a criação de um projeto evangelizador. Foi distinto o cotidiano de vários outrosmissionários em campo, em sua maioria menos intelectualizados e, por isso mesmo,não produtores desse tipo de registro.

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Como se considerava que essa “mentalidade” tinha conteúdos, omissionário se preocupava em descrevê-los para contrapor seus elemen-tos problemáticos a elementos da “mentalidade” cristã ou ocidental,traduzindo-os para o universo cristão de modo a delimitar em que medi-da se sobrepunham ou havia dificuldade na transposição de elementos.Esse processo de “mentalização” seria um processo de “fundir mentali-dades”: os “africanos” apresentavam aos missionários um conjunto deusos e costumes que implicava uma certa configuração mental; entreesses elementos havia alguns bons, a serem conservados, e outros ruins,a serem extirpados. O mesmo ocorria, por outro lado, com a “civilizaçãoocidental”, portadora também de problemas e soluções. A “fusão dementalidades” ideal seria a reconfiguração de uma “mentalidade” co-mum às sociedades africanas e ocidentais, nas quais se conjugassemapenas os elementos positivos de ambas. Se a evolução era colocadacomo patamar desejável a ser atingido pelos “africanos”, a “civilizaçãoafricana” representava um momento evolutivo no qual ainda não sehaviam degenerado valores essenciais à natureza humana, como a valo-rização da vida em comunidade e a efervescência do religioso. É nessesentido que Valente afirma que “a marcha organiza-se conforme as per-nas: rejeitar tudo seria injustiça, aproveitar tudo seria temeridade” (ibidem:10). Caberia ao missionário realizar essa triagem.

Além dos substantivos “mentalidade” e “mentalização”, o verbo“mentalizar” aponta para esse movimento progressivo. Na introdução àProblemática, Valente declara ser impossível “decretar leis sem mentalizaro povo” (Valente, 1985: 12). Essa conjugação dos estágios mentais com oprocesso evolutivo leva à passagem de um patamar mental a outro, es-tando a ideia de progresso vinculada à superação paulatina dos diversospatamares, delimitados a partir do conteúdo observável na “mentalida-de” de um determinado povo em certo momento evolutivo. Ora, se anoção de “mentalidade” está estreitamente vinculada ao que Valentedenomina “estruturas”, a mudança nos dois âmbitos teria necessaria-mente de ocorrer de forma simultânea, ou seja, à “mentalidade tribal”corresponderia uma “estrutura tribal”, e à “mentalidade ocidental”, uma“estrutura” social característica do Ocidente.

Na realidade, parece haver uma precedência da mudança estrutu-ral, em termos de organização social, com relação à mudança mental,pois o autor assevera em diversos momentos ser o meio determinanteem relação a seus habitantes: “Diz-se que o ambiente amolda o homem.Querendo, pois, elevar o homem, só conquistando o ambiente e elevan-

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do-o também” (ibidem: 33). O missionário propõe uma mudança estrutu-ral, que levaria a uma mudança na “mentalidade”, entendida ao mesmotempo como psicológica e social. E como os povos sob sua responsabili-dade não introduziriam mudanças a essa “mentalidade” por si só, ou ofariam apenas muito lentamente, os missionários deveriam incentivá-losa fazê-lo: a mudança dos conteúdos da “mentalidade” seguiria a mudançana estrutura social “indígena”, o meio influenciaria seus habitantes.

4.4 Os conteúdos da “mentalidade”

Valente dedicou grande parte de sua obra a um esforço de descri-ção e compreensão dos conteúdos dessa “mentalidade”, os quais abran-gem elementos como provérbios, usos e costumes, traços psicológicosdos “bundos” e conteúdos de seu pensamento. O missionário afirma,em sua introdução à Seleção de provérbios e adivinhas em umbundu, tê-larealizado com o intuito de “sondar a mentalidade bundo”, pois no es-forço evangelizador “a construção do edifício deve iniciar-se pelocompulsar dos materiais com que se conta” (Valente, 1964a: 9). Os pro-vérbios e fábulas em umbundu são conteúdos dessa mentalidade, o quejustifica todo o esforço empreendido para a realização das coletâneas. Oautor afirma, com relação à compilação de fábulas:

Ao colher os elementos para a minha Paisagem Africana, alegrei-mecom a profusão das fábulas em que [os] sentimentos de dignificaçãoda mulher se manifestavam. Se essas fábulas me libertavam de umpesadelo, para descobrir um ponto de apoio e de referência paraactivar a sua promoção, via ali que não trabalharia em vão, por-que, através dessas fábulas, notava bem quais eram as suas disposi-ções para as alcançar. (Valente, 1985: 157-158)

Considerando-se que o missionário coloca a posição de subservi-ência da mulher com relação ao homem como um dos problemas aserem superados na “estrutura tribal” e na “mentalidade” africana, arecolha dessas fábulas em busca de elementos na “mentalidade” dos“indígenas” justifica-se porque esses elementos, ao apontar as “disposi-ções” desses “indígenas”, indicavam também as possibilidades a seremtrabalhadas pelo missionário para atingir seus objetivos. Valente realiza-rá um esforço de descrição de conteúdos semelhante na obra referenteao matrimônio. Trata-se de delimitar o universo do pensável para esses

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“indígenas” de modo a propor mudanças de conteúdo que levariam auma mudança mental. Quando se refere, por exemplo, ao fato de osjovens não poderem decidir quanto ao próprio casamento, propõe in-centivar sua autonomia com base na “mentalização”. E quanto maior aautonomia, maior a mudança de “estrutura” e, portanto, de “mentalida-de”. O processo de mudança se apresenta num jogo dialético entre aestrutura social e a configuração mental, sendo impulsionado pela açãomissionária sobre o comportamento dos indivíduos e corroborado pe-los preceitos da doutrina cristã.

Entretanto, não se trata de uma compilação exaustiva dos conteú-dos da vida “indígena”: o missionário compulsa os elementos que julgamais significativos em sua vivência cotidiana do trato com a alteridadee então aciona alguns deles como explicações ad hoc. No caso dos pro-vérbios, possibilitam-lhe ao mesmo tempo ter acesso à “mentalidadebundo” e agir sobre ela, pois dominar a forma de expressão vernacularaumentaria seu potencial de convencimento, como o próprio missioná-rio afirma (Valente, 1964a). A compilação de fábulas insere-se na mes-ma lógica. Já o problema do matrimônio aparece como crucial por tersido essa uma questão em relação à qual os missionários enfrentaramdificuldades significativas.

Se nos relatórios e obras referentes aos “Ovimbundu”, tanto decaráter confidencial e restrito quanto para o grande público, estes sãocaracterizados como extremamente dóceis e abertos à evangelização eao progresso, as cerimônias do “casamento tradicional” permaneciampraticamente inextirpáveis. Isso é atestado não só pelos missionários,mas também pelos antropólogos que estiveram em campo no mesmoperíodo que Valente e ainda posteriormente, como Edwards (1962) eBerger (1979) – a despeito de todas as proibições dos missionários e dogoverno colonial no que tange às práticas “pagãs” por parte dos “cris-tãos”. A presença das cerimônias “tribais” de casamento entre os “indí-genas cristãos” era, ao lado dos funerais, motivo de intensa preocupaçãoentre os missionários, que lhes proibiam qualquer prática que remetes-se à esfera da “religião pagã”. Ademais, a cerimônia de casamento ditatradicional aparece nos registros como relacionada aos momentos ritu-ais do “culto aos ancestrais”, outra pedra no sapato dos missionários.

A obra de Valente sobre o matrimônio pode ser vista, portanto,como uma estratégia, um esforço de convencimento sobre as razõespara se modificar esse aspecto central da “estrutura” – e,consequentemente, da “mentalidade” – dos “bundos”, uma vez que a

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tentativa missionária de conferir centralidade aos aspectos civil e religi-oso do casamento, em oposição à cerimônia “tradicional”, havia, de suaperspectiva, claramente falhado. A esse respeito, é notável que a Proble-

mática date da década de 1980, tendo sido publicada quando Valente jáse havia distanciado do terreno e voltado a Portugal. Além disso, duasdécadas após o Concílio Vaticano II, o diálogo a respeito da inculturaçãojá estava bem estabelecido. Isso nos permite imaginar o quanto essamesma questão não teria sido um motivo central de preocupação paraos missionários anteriormente, considerando-se que Valente chegou aAngola em 1937, momento em que o projeto de evangelização estava, aosolhos dos missionários e agentes coloniais, bem menos consolidado.

O trecho abaixo relata uma tentativa de diálogo com o “cacique daaldeia” para convencê-lo a permitir que seis casais que haviam se casadona igreja coabitassem ainda que o processo de acerto de contas doalambamento31 não tivesse sido concluído:

Ao insistir pela coabitação imediata, o cacique da aldeia interpôs-see respondeu-me, justificando as delongas:– São seis e, numa aldeia como esta, em que somos tão poucos, nãopodia haver seis bodas concomitantes. Escalonámo-las e decidimosfazer uma em cada domingo. Deste modo não haveria melindrespossíveis da parte dos convidados, impossibilitados da comparência.Assim toda a aldeia participa em cada uma das bodas!...Era um facto comprovado, porque evidente, de que as bodas, quenos outros povos são concomitantes com a cerimónia litúrgica, nes-te povo umbundu eram imprescindíveis para declarar o casamentocomo efectivo!... (Valente, 1985: 24)

A tentativa de convencimento foi, para o missionário,reiteradamente fracassada ao longo dos anos de evangelização. Situa-ções semelhantes são também descritas por Edwards (1962: 118). Valen-te afirma que lhe era vetada a presença em qualquer dessas cerimôniascomo missionário: era permitido participar apenas aos missionários quefossem convidados pelos moradores da aldeia na condição de amigos,jamais como religiosos.

31 “Alambamento” é a palavra que se usa em Angola para designar o que é conhecido naliteratura africanista como o “preço da noiva”, entregue pelo futuro marido à famíliada noiva.

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Nestas circunstâncias, se a sua presença era válida perante a Igreja,estaria a mais perante a tribo. E falo não por mim, mas pelos factos,quando me via compelido a suspender as visitas missionárias acatequeses, em que se realizava um matrimónio tribal: “a festa énossa, não é tua...” argumentavam os participantes nessas bodas.(Valente, 1985: 175, ênfases no original)

O missionário considera problemático que o “matrimônio cris-tão” complemente o “tribal”, sendo o último visto como infinitamentemais importante. O casamento legal ou cristão seria uma questão deescolha pessoal, não obrigatória, reconhecido pela comunidade apenasapós validação pela cerimônia “tradicional”. Valente relata que, segun-do as leis de Angola no período em que missionou no Planalto Central,o missionário poderia realizar o casamento canônico sem o consenti-mento ou presença dos pais. Entretanto, raramente o fazia. Preferia con-vidar os pais para a cerimônia religiosa católica para que dessem seuconsentimento oral em nome da comunidade. E o casamento canônico,embora precedesse a “cerimônia tribal”, ficava pendente de ser efetiva-do até a realização desta (ibidem: 173).

A disputa simbólica entre o casamento civil e religioso, por umlado, e o casamento “tradicional”, por outro, prolongou-se para além doperíodo que Valente passou em campo e inclusive ensejou o esforço desistematização da questão em forma de livro. Ora, não é à toa que agrade de leitura do missionário aparece de forma sistemática justamentenessa obra, fruto de uma dificuldade prática.

Um costume inveterado num povo através de séculos dificilmente sevence. Senti-o profundamente quando, depois de anos decatequização, um casamento canónico ficava pendente da celebra-ção das reminiscências da cerimônia tribal, para que os esposospassassem a coabitar!...Um quebra-cabeças para todos os missionários que arrostavamcontra tal mentalidade.Perante a dificuldade em superá-la, apela-se para que tal mentalida-de seja reconhecida como válida a fim de se encontrar uma platafor-ma de entendimento entre ela e as exigências de um casamentocanónico. (ibidem: 129)

Adversários centrais nessa disputa simbólica pela definição do ca-samento foram, sem dúvida, os mais-velhos, designados “patriarcas” por

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Valente, aos quais cabia a chefia das aldeias32. Eles teriam dificultado aação missionária por impedirem aos jovens a “livre escolha” de seuscônjuges. Ora, essa decisão dos patriarcas estava para o missionário ex-plicitamente relacionada à “religiosidade africana”, pois os mais-velhosestabeleciam o vínculo supremo da “tribo” com seus ancestrais – suaautorização faria com que os “espíritos tribais” favorecessem o casamen-to. A recusa em abrir mão da cerimônia estaria fundada no medo dassanções dos ancestrais em caso de não cumprimento dos rituais prescri-tos, argumento igualmente mobilizado nos escritos de Estermann (1983:344). Nas palavras de Valente:

Àquilo que, nas sociedades ocidentais, se apelidaria despotismo porparte da responsabilidade do patriarca de tomar sobre si a respon-sabilidade da iniciativa e da conclusão de um matrimónio tribalrealizado por um dos seus filhos, ou na contratação das duas alian-ças, as sociedades africanas não-cristãs vêem no facto o cumprimentode um dever religioso.Segundo esta visão, os nubentes não-cristãos vêem, na vontade dospais, a vontade superior dos espíritos tribais (seus familiares faleci-dos, mas vivos na vida do Além), os quais inspiraram a esses pais ocasamento em vista. Os pais são apenas e tão somente intérpretes davontade dos espíritos, contra os quais nada pode a vontade humana.Intérprete credenciado das aspirações dos espíritos tribais sobre odestino marcado para seus filhos, o patriarca apela para a submis-são destes como ele próprio se sente submetido.É o sentimento generalizado de todo um sistema vigente, com basena religiosidade que mentalizou um povo, indo ao ponto de criar assuas estruturas. Estruturas e religiosidade fundem-se neste sistema.(Valente, 1985: 91, ênfases no original)

O excerto acima apresenta o “matrimônio tribal” como “deverreligioso”, explicação para seu arraigamento profundo na sociedade. Oproblema, no fundo, é de submissão: do ponto de vista missionário, os“africanos” deveriam submeter-se não à vontade dos espíritos ances-trais, representados no mundo dos vivos pelos “patriarcas”, mas à dou-trina dos missionários católicos, representantes no mundo dos vivos do

32 Valente emprega os termos “patriarcado” e “matriarcado” para designar, respectiva-mente, o parentesco patrilateral e matrilateral. Opõe-se a ambos e defende a centralidadeda família nuclear cristã.

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deus cristão. A questão do matrimônio torna-se ainda mais fundamentala partir da afirmação de que as “estruturas” e a “religiosidade” sãoinseparáveis nesse sistema: para introduzir mudanças na religiosidadedesses povos, seria imprescindível transformar suas estruturas. Ora, seri-am justamente essas estruturas – religiosas em sua essência – que teriam“mentalizado” o povo. As “estruturas sociais” e a “religiosidade”, fundi-das, só poderiam ser mudadas pela ação conjunta da “civilização” – quetransformaria as estruturas sociais – e do cristianismo – que transforma-ria a “religiosidade” e, portanto, a “mentalidade” dos “indígenas”. Daí aproposta de “mentalização” defendida por Valente. Com relação à dialéticaentre “estrutura” e “mentalidade”, o trecho abaixo ajuda-nos a vislumbrá-la com mais clareza:

Como toda a estrutura vivida ao longo dos séculos se incarna naalma de um povo, compreende-se a dificuldade em desassociar ospoderes dos pais e os direitos dos filhos. [Há] falta de elementos queconduzam a uma prova de autenticidade histórica sobre a institui-ção dessas estruturas, acima das leis de um tradicionalismo queformaram mentalidade, mas sempre contingentes devido às altera-ções do ambiente. (...) Mancomunados com tais estruturas, queformaram a mentalidade africana, os patriarcas tribais não abdi-cam dos seus direitos. (ibidem: 15-22)

O excerto acima explicita que a “mentalidade africana” teria sidoformada por essas estruturas. Haveria, pois, uma relação de causa e efei-to entre uma determinada “estrutura” social e a formação de uma deter-minada “mentalidade”. Ora, os “patriarcas” seriam os representantespor excelência dessa estrutura e dessa mentalidade; e da estrutura,“incarnada” na “alma de um povo”, da qual adviria sua “mentalidade”,resultaria a dificuldade de mudança. O missionário afirma que as estru-turas “mentalizam e socializam” o homem. Este deve libertar-se delaspara que sua “mentalidade”, compreendida como simultaneamente so-cial e psicológica, mude. Assim se justifica a ação de mudança em ter-mos legais. A introdução da necessidade do consentimento dos cônju-ges para o casamento, por exemplo, levaria a uma mudança na “estrutu-ra”, que conduziria, por sua vez, a uma mudança de “mentalidade” emdireção ao cristianismo. Eis a proposta de “mentalização”.

Sobre a defesa de Valente da necessidade do consentimento doscônjuges, principalmente da mulher, o trecho abaixo é ilustrativo:

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Notei, durante a cerimônia religiosa na Igreja, antecedida sempre dasprelecções necessárias a cargo de um missionário ou de um representan-te seu, e onde tudo era desbobinado e esmiuçado... que, apesar dasexplicações dadas, grande parte das nubentes, durante a cerimónia e naemissão do consentimento em vez de responderem com o ndiyongola =quero, empregavam um furtivo nditava = aceito!...E sabe-se quanta diferença vai de um quero, resoluto e espontâneosaído do coração, a um aceito, pronunciado entre dentes e de caraao lado!...Tal aceitação (por não poder ser de outra maneira) deixava-mesempre perplexo quanto à medida em que a vontade se compro-metia, o que me obrigava a fazer um pedido de rectificação... nãofosse caso de um enigma, como uma ou outra vez me aconteceu,em que a rapariga disse redondamente que: Não!...E uma destas raparigas, de nome Micaela, da aldeia de Catala, emCaluquembe, foi ao ponto de afirmar:Okukwela, ndikwela, momo olonjali vyandisiliñginha, pwãyi v’onjo yahesikalyatelamo (Lá casar, caso, porque meus pais mo impuseram, masna casa dele nunca lá porei os pés)!E sabe-se do que uma mulher enraivecida é capaz!...Por aqui se deduz a falácia do apelo para a vontade implícita, porparte daqueles que tentam justificar a conservação da cerimóniatribal!... (ibidem: 143, ênfases no original)

Conteúdos dessa “mentalidade” são o poder de escolha do cônju-ge pelo “patriarca” e a submissão dos jovens à estrutura patriarcal. Junte-se a isso o problema posto pela transformação do laço conjugal em laçosocial e a necessidade de pagamento do “dote” à família da noiva que,“por influência do mercantilismo, teria se transformado em especula-ção” (ibidem: 19), levando ao individualismo33 das mulheres, que se viamobjeto de disputa pelos homens, e à poligamia, pois os homens maisjovens não dispunham de meios para angariar a quantia necessária à“compra da noiva”34. A presença desses problemas é explicada por dois

33 Esse “individualismo”, causado pelo reconhecimento dos filhos de pais casados ape-nas civilmente e pela repressão à poligamia pelas missões, trazia, para Valente, basica-mente três problemas: o aumento das taxas de divórcio, a prostituição e a desvaloriza-ção da vida comunitária.

34 Embora Valente problematize a simples equiparação do alambamento a uma transa-ção comercial em alguns momentos do texto, seu posicionamento é, em linhas gerais,de que o envolvimento de valores monetários no processo de noivado denigre amulher e coloca problemas sociais sérios, como o baixo nível de natalidade decorrente

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dos muitos casamentos de mulheres com anciãos, para além da poligamia, inaceitável.Para corroborar seu argumento, o missionário recorre à linguística, mostrando comoos termos utilizados na negociação entre a família da noiva e do noivo são os mesmosutilizados em transações comerciais, e à história conjectural, reconstituindo todo umpercurso que refletiria a evolução de um sistema baseado inicialmente na troca demulheres entre famílias para dar conta de que todos os homens da sociedade secasassem, passando pela instituição do dote como forma de compensação para asfamílias que possuíssem apenas mulheres, até a instituição do dote como transaçãocomercial. A ideia subjacente tanto ao argumento linguístico quanto à reconstituiçãohistórica é de que nos primórdios tudo teria sido diferente. Estando esses primórdiosgravados nas camadas mais profundas da “mentalidade”, a transformação pretendidaseria efetuada evocando-se essas instâncias primordiais da conformação mental.

traços psicológicos – conteúdos dessa “mentalidade” – em diálogo com a“estrutura”: a “imobilidade” e o “conformismo”, irmãos da “proverbialinconsequência da alma negra”, apontada também por Estermann (1983: 31).

A engrenagem social dispôs do homem, que perdeu a sua persona-lidade. Gostos? Só em conformidade com a orgânica tradicional; apreguiça mental instalou-se no homem, desabituando-o de pensarem qualquer mudança e levando-o a considerar como inoportunaqualquer melhoria. Conformismo e imobilidade são as suas caracterís-ticas. (Valente, 1985: 33, ênfases no original)

Entretanto, o fato de o “matrimônio tribal” estar impregnado da“religiosidade africana” aponta para um possível caminho de “fusão dementalidades”. Essa “religiosidade” indicaria uma disposição intrínsecados “bundos” para a religião, cabendo aos missionários extirpar os ele-mentos nocivos e substituí-los por elementos da doutrina cristã, de modoa configurar uma cerimônia de casamento aceitável para todos. No excertoabaixo aparecem de forma bastante clara a presença dessa “religiosida-de”, a validade do casamento “natural” e o caráter mais “evoluído” docasamento cristão, bem como as possibilidades de cristianização dessematrimônio:

Da parte do africano, tanto ancião como jovem, segundo a menta-lidade da sua religiosidade tradicional, há a convicção de que toda asua vida é por essência sacralizada.O homem, em face do mundo invisível, vê toda a sua vida debaixode um prisma espiritualista, visão esta em que a mulher participatambém, desde o seu nascimento ao seu casamento e, a partir deste,logo que sinta em si a esperança de se transformar em mãe.

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O homem africano não é um elemento isolado do universo, nemum simples número, mas vive em comunhão com o universo, comoparte integrante tanto do universo visível como do universo invisível.Faz parte de um todo.Quanto ao aspecto religioso do matrimónio nas religiões não-cris-tãs, dentro da sociedade africana, insere-se no aludido prismaespiritualista. Considerado, porém, dentro da religião natural, é aunião legítima dos dois esposos abençoada pelo Criador. E estaunião legítima em casamento natural foi elevada por Cristo a S a -cramento.A dificuldade está ou estaria então em saber-se: num matrimóniotribal haveria casamento natural. Cristão não há com certeza.A Igreja aceita a validade e liceidade de um casamento natural, quandocelebrado entre não-cristãos, contanto que se conforme às leis da natureza enão atente contra elas, como sejam o consentimento explícito dos nubentese todos os factores anexos. (ibidem: 35-36, ênfases no original)

4.5 O método da “mentalização” e as “locubraçõesetimológicas”

Nas ideias de “mentalidade” e “fusão de mentalidades” articulava-se um mecanismo de acomodação entre a particularidade dos “bundos”e a universalidade do cristianismo. Entretanto, este não foi um esforçosistemático e rigoroso de fazer dialogar as duas instâncias, mas de pen-sar, ad hoc, como dar conta dessa disparidade quando ela se apresentavacomo problema. Tratava-se de uma questão prática: como tornar compa-tível o que se apresentava como problemático – e o texto missionárioreflete esse esforço. Uma característica marcante da obra de Valente sãosuas “locubrações etimológicas”, procedimento que busca recuperar asorigens etimológicas de certos vocábulos em umbundu para alcançar aessência profunda desse pensamento e encontrar elementos que lhepermitam realizar equiparações com os preceitos da doutrina cristã.Valente afirma que a “filologia africana [é] reveladora de uma sã menta-lidade primitiva, ainda não deteriorada por abusos e usurpações de di-reitos” (ibidem: 44).

As reflexões etimológicas de Valente dialogam estreitamente comsua concepção de “mentalidade”. É recorrente o procedimento de esca-var a “mentalidade primitiva” em busca dos sentidos “profundos” dostermos para então se concentrar no som da palavra no vernáculo econtrapô-la a um vocábulo em português, cujo som se assemelha ao som

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da palavra em umbundu, e buscar as semelhanças profundas e metafóri-cas passíveis de serem estabelecidas entre o som e o sentido das pala-vras. A despeito de os campos semânticos dos vocábulos sobreporem-seapenas de maneira tangencial no mais das vezes, o recurso a essa formade aproximação perpassa toda a obra de Valente. Ele o faz com o intuitode corroboração linguística (pela semântica e fonética) e histórica (pelareconstituição etimológica) dos argumentos apresentados, que visam àacomodação entre o particularismo da “mentalidade dos bundos” e auniversalidade do cristianismo.

Esse método, que Valente define como “arriscado”, consiste numatentativa de encontrar conteúdos nas “mentalidades” cristã e “tribal”que permitam sua fusão. Ora, a existência de conteúdos comuns aponta-ria para o compartilhamento de uma essência humana, garantida pelacriação divina. Por outro lado, o procedimento corrobora a leitura doprocesso de evangelização como eminentemente prático, pautado peloque seria percebido pelo missionário como um jogo de erros e acertos,de aproximações entre “mentalidades” que funcionariam ou não nocotidiano da missão. Temos a seguir um procedimento desse tipo noque diz respeito a um dos três verbos em umbundu empregados com osentido de “casar-se”: kwela, oku-li-kwela. Ele é emblemático do métodode Valente na medida em que apresenta cada um dos procedimentosdelineados acima:

Que importa que este vocábulo seja considerado próprio da línguaumbundu, pelos povos que falam essa língua, se ele existe e pertencea outras línguas, cujo sentido original se encontra em todas elas?Muito embora permaneça em umbundu, a sua existência outroraem outras línguas revela bem que a família era constituída em ali-ança conjugal em ordem à procriação, e seria a prole (descendentee multiplicada) que contribuiria para a formação das estruturassociais e conseqüente aspecto de civilização e cultura.De ambas o alicerce é sempre a família, criadora e produtiva. E ointeressante está em que, partindo do mesmo vocábulo kwela, agoraatravés de duas curvas melódicas, a produtividade é assinalada àevidência com: kwela e kwõla.Uma análise a cada um destes derivados.Kwela significa, literalmente, engasgar, sufocar.Passando em silêncio a sua convergência de sonância com goela emportuguês, no seu significado, em umbundu, refere-se, inicialmente,à respiração. Mas como todo o arfar se manifesta na garganta (go-

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ela), a sua provocação pode tanto provir de uma causa física comode uma causa psicológica.Não admira, portanto, que este vocábulo se empregue para desig-nar as dores da parturiente, numa figura de pensamento designadapor antífrase (expressão de coisas funestas ou desagradáveis por pa-lavras contrárias ou mais suaves e que não firam a sensibilidade),figura aliás muito evocada no simbolismo das línguas africanas dogrupo bantu, para, deste modo, expressar as dores da parturiente e,sobretudo, designar o fruto dessas dores: ukwela = o recém-nascido,de u-kwela.Kwõla significa murmurar, sussurrar, rosnear, vagir.Vagir! E, então, quer seja por onomatopéia (õ! Õ!) quer seja poruma curva melódica de kwela, lá aparece o radical õla que, classifica-do em omu, individualiza o vagido: om-ola = a criança recém-nascidaou ainda não-adulta.Tudo sintetizado em âmbito familiar de cônjuges e prole.Mas não é tudo, visto que de kwela proveio ainda uma nova derivaçãopara ukwele (ou ukwene, em umbundu) e que demonstra um outro-eu.Além disso, o verbo tornado reflexo li-kwela concretiza-se um poucomais para indicar sempre a realização, no presente ou no passado, docasamento do homem ou da mulher: va-li-kwela = casaram.Sensivelmente, neste primeiro vocábulo, não está inerente todo oaspecto do casamento a nível conjugal, no seu conceito universal eindependentemente dos acréscimos trazidos pelos homens?Pelo menos a linguística assim parece dizê-lo. (ibidem:48-49)

Valente afirma que o vocábulo, embora exista hoje em umbundu, écomum a diversas outras línguas e compartilha com elas um “sentidooriginal”. A despeito de estar em umbundu, refletiria propriedades uni-versais do universo “banto” no que diz respeito à família. Em seguida,contrapõe kwela e goela, buscando encontrar nessa “convergência desonância” uma convergência de sentido. Para esse sentido convergemainda todos os vocábulos derivados do mesmo radical de kwela, refor-çando a conclusão final de que a linguística confirma a existência, nascamadas mais profundas do pensamento “banto”, do “conceito univer-sal e independentemente dos acréscimos trazidos pelos homens” a res-peito do que seriam família e casamento. A língua, tomada em últimaanálise como dotada de significados intrínsecos e imutáveis, daria aces-so ao inconsciente.

O excerto a seguir, que reproduz a reflexão de base linguísticaapresentada acima, não só traz uma comparação com a língua portugue-

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sa, como estende o escopo das afirmações de Valente a Moçambique eao mundo grego. O intuito de incluir mais uma longa citação é mostrarcomo a proposição de Valente de solução para a “problemática do ma-trimônio tribal” é justificada pelo mesmo procedimento: ao aproximaro “lobolo”, raiz comum às línguas de Moçambique e ao umbundu, de“óbolo”, remete às origens a ideia de que a troca de presentes por oca-sião do casamento deveria ser apenas simbólica, resolvendo o problemaposto pelo caráter de transação comercial atribuído à “compra da noiva”,à poligamia, à necessidade de consentimento dos patriarcas e à possíveldesestruturação da sociedade local pelo individualismo. Vejamos:

Em Moçambique chama-se lobolo ao alambamento. Sá Nogueiraafirma que lobolo é a garantia material do vínculo espiritual que sefirma pelo casamento.Há em lobolo uma correspondência com ovi-lombo quanto à ga-rantia material.Sobre os homônimos de ovi-lombo: ochi-lombo = acampamento;e-lombo = mês de março, altura em que se calcula a produção queos arimos irão render, numa antevisão da colheita e conseqüentedeitar contas à vida.Como são os arimos que fornecem os produtos que se trocarão pordinheiro, é deles que depende o andamento da questão. Então, olha-se para o viço e pensa-se na colheita. Colheita que, precisamente, emumbundu traduz-se por elombolo, do verbo oku-lombola = colher...Em Ronga aparece o vocábulo lobola orientado para significar aentrega do lobolo à família de uma rapariga, que se pretende tomarpor mulher.Quanto ao m antes de b, sabe-se que o b em umbundu é sempreantecedido pelo m, facto que em Ronga não existe. Nada obsta aque, portanto, os dois vocábulos se correspondam: um no facto eoutro na intenção.E a sua aproximação com o português? Não estaria ela em óbolo?Supondo, pois, a viabilidade da relação entre estes três vocábulosovi-lombo (de lombola), lobolo e óbolo, neste caso concreto de prestaçõesa título de casamento, ou melhor dito ofertas feitas a esse título, asignificação de óbolo (gratificação) seria aceitável para afastar o con-ceito de compra da noiva e transformá-lo em congratulação.Se assim fosse, como o óbolo era uma pequena moeda grega quevalia um sexto do dracma, poderia haver uma relação de semelhan-ça com a macuta, traduzida por ochi-landa.Claro que são divagações hipotéticas pela disparidade das três res-pectivas línguas às quais os vocábulos pertencem. Além disso, dada

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a insignificância do óbolo e da macuta, a sua menção em correspon-dência a dote só se compreenderia comosimples simbolismo, mes-mo em épocas remotas. Como, porém, acima do simbolismo está ointeresse, mormente quando a competição de vários pretendentesprovoca a emulação, compreende-se a possibilidade da introduçãoda usura, em que o senhor do bem pretendido por outro não seacanhasse em dizer lomba ñgo (pede então) lombongo p’eka (mas como dinheiro na mão).E o dinheiro não será tão insignificante, porque, além das três fasesdescritas, há que contar ainda com a indumentária da noiva e comas despesas da boda. (ibidem: 77-79)

Embora Valente critique duramente o caráter monetário do casa-mento “tribal”, afirma que “é toda uma mentalidade que está em causae não apenas uns lucros a mais” (ibidem: 83). A solução apresentada pelomissionário no final da obra seria a de uma “evangelização” das práticasmatrimoniais: não se trataria nem de uma “ocidentalização”, nem deuma “africanização”, mas da “evangelização” como junção dos elemen-tos de ambas as sociedades conforme se adequassem mais ao Evangelho.Afirma o missionário que

os valores africanos é que devem ser examinados à luz do cristianis-mo, e quando isso for feito certamente aparecerão valores não sónegativos, mas também positivos. Aceitam-se os positivos e rejeitam-se ou esclarecem-se os negativos.Foi timbre de muitos missionários, que trabalharam entre osOvimbundu, fazer esta distinção entre o relativo e o absoluto.Nesta conformidade, mantiveram-se as bodas para os cristãos, emsemelhança com as efectuadas numa cerimónia de um matrimôniotribal, mas despidas já de toda a aparência de culto aos antepassa-dos. (ibidem: 199)

Aqui temos, para o missionário, o compromisso entre os “relati-vos” – as “mentalidades” – para que se adéquem ao “absoluto” – adoutrina cristã –, e a Igreja como mediadora fundamental dessa relaçãoentre “mentalidades”. A fusão entre o “primitivo” e o “evoluído”, o“africano” e o “ocidental”, o “tribal” e o “individual” seria mediadapela boa medida cristã, convertendo os conteúdos “degenerados” dessas“mentalidades” nos conteúdos primordiais presentes em essência emtodas as sociedades, como atestado pelas reflexões linguísticas do missi-

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onário. Por outro lado, a “boa medida cristã” esconde a patente negoci-ação com o universo local: como vimos acima, “mantiveram-se as bodaspara os cristãos, em semelhança com as efectuadas numa cerimônia deum matrimônio tribal”. A negociação consistiu em encontrar umaritualidade que permitisse aos diversos agentes projetar seus sentidossobre um código de comunicação comum. O ritual de casamento permi-tiu o estabelecimento de uma convenção de significação ao incorporarelementos de todos os contextos em negociação.

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5.Traduções:

a significação em disputa

Dieu n’a pas fini de pleurer après la traduction de sonnom alors même qu’il l’interdit.

(Derrida)

Após o esforço de reconstituição do filtro através do qual os missi-onários consideraram seus evangelizandos no capítulo precedente, meuprincipal objetivo consistirá, a seguir, em apreender a convenção designificação que foi criada na comunicação entre os agentes nas mis-sões espiritanas do Planalto Central angolano a partir das traduçõesrealizadas pelos missionários. Pretendo mostrar de que maneira o “cul-to aos ancestrais” e as formas de oralidade locais indexaram-se ao cato-licismo e sua retórica, configurando o terreno de disputa simbólicaapreensível por intermédio das fontes. A indexação deu-se, ainda, nonível dos agentes, associando a figura dos missionários e dos “feiticei-ros” locais, intermediários privilegiados entre o mundo dos vivos e omundo dos mortos. A análise a seguir se volta para as coletâneas Seleção

de provérbios e adivinhas em umbundu (Valente, 1964a), Paisagem africana:

uma tribo angolana em seu fabulário (Valente, 1973)35 e os catecismos emumbundu utilizados no projeto de evangelização do Planalto Centralangolano (Lecomte, 1899; 1937).

Tanto a Seleção quanto a Paisagem surgiram num momento, já men-cionado inicialmente, no qual Portugal, na iminência de ter de abrirmão de seus territórios ultramarinos, voltava-se para o incentivo a publi-cações que pudessem atestar a efetividade da presença portuguesa nascolônias. É assim que, na década de 1960, José Francisco Valente orga-niza, em duas coletâneas, os registros de elementos da oralidade emlíngua umbundu colhidos ao longo de anos de missionação por ele

35 Doravante Seleção e Paisagem.

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mesmo e pelos missionários que o precederam. É nesse sentido que sepode afirmar que, embora as publicações datem do período da Guerrade Libertação, seu conteúdo foi recolhido ao longo de todos os anos demissionação espiritana, desde finais do século XIX até a data da publica-ção, e nesse sentido apresenta, nas traduções realizadas e nos próprioselementos coletados, o produto das negociações cotidianas entre os agen-tes, a partir das quais se configurou e estabilizou o código de comunica-ção em questão. O mesmo pode ser dito dos catecismos, cujas datas depublicação são anteriores, e cujas alterações em termos de conteúdo eestratégias de tradução apontam para essas negociações cotidianas.

5.1 A Seleção e a Paisagem de Valente

Na introdução à Seleção, Valente afirma tê-la realizado para “son-dar a mentalidade bundo”. Compreender o pensamento “indígena” eranecessário para o sucesso da catequização, e o provérbio, assim como asfábulas, era considerado porta de entrada para o universo mental e oscostumes “indígenas”. Entender as verdades irrefutáveis dos “bundos”,pensados como unidade étnica, possibilitaria, do ponto de vista missio-nário, a escolha do melhor caminho para conduzi-los à fé cristã e à“civilização”. O missionário explicita o caráter retórico da compilação:para além de ser uma tentativa de apreensão da “mentalidade indíge-na”, coloca a capacidade do evangelizador de exprimir-se em provérbioscomo estratégia de convencimento, uma vez que “falar, pregar ao africa-no nos moldes gerais do discurso europeu, pode gerar aplausos mas nãogera convicção” (Valente, 1964a: 9). O esforço vai no sentido de se fazerentender, pois “a transmissão do pensamento não é emitir sons semnexo mas FUNDIR mentalidades diversas” (ibidem: 9). Essa estratégia deconvencimento, de compreensão da melhor maneira de dirigir-se a es-ses potenciais fiéis, é conjugada a uma visão da evangelização comodeterminada eminentemente pela prática. Assim, os provérbios ajudari-am o evangelizador a pesar onde ceder e onde resistir em termos deortodoxia doutrinária, de modo a produzir o maior convencimento pos-sível. Um provérbio bem colocado convenceria mais do que um grandediscurso, pois “as palavras voam, o provérbio fixa-se” (ibidem: 11).

As “fábulas” são também apresentadas por Valente como um pos-sível caminho para essa “mentalidade”. A despeito de não gozarem domesmo estatuto que os “provérbios”, vistos pelos missionários comoexpressão máxima da capacidade de reflexão e profundidade do pensa-

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mento, as “fábulas” seriam importantes enquanto “um outro meio deexpressão, mais ao nível da inteligência ainda mediana, apto a gravar-sena memória, que leva o subconsciente a ruminar sobre ele e aclarar asconclusões que se propõem a alcançar” (Valente, 1973: xii). Valenteequipara as “fábulas” em umbundu às parábolas da Bíblia, ambas desti-nadas ao público ainda não apto a compreender as verdades dos provér-bios, que embora “irrefutáveis” são menos acessíveis aos não iniciados eàs crianças. A diferença fundamental entre a fábula e a parábola seria,para o missionário, o fato de a fábula ser uma “narração mitológica, (...)produto da imaginação”, ao passo que a parábola seria uma “narraçãoalegórica, baseada em factos reais da vida humana” (ibidem: xii). Por umlado, contrapõe-se a plausibilidade da “intuição” das “fábulas” emumbundu à certeza da alegoria das parábolas bíblicas, ao passo que seaproximam as duas em sua finalidade: convencer através do deleite eelevar a vida moral. É nessa medida que a categoria de “fábula” se dife-renciaria da de “provérbio”: a primeira seria utilizada principalmentepara o trato com as crianças, ao passo que o segundo seria não apenasum meio de ganhar acesso ao pensamento mais profundo desses “indí-genas”, como também de comunicar-se com eles na modalidade que,em sua “mentalidade”, gozaria de maior prestígio.

Com exceção de uma lista de “Provérbios relativos a Deus”, a Sele-

ção propriamente dita consiste em cerca de 1400 provérbios e 200 adivi-nhas, todos seguidos de tradução para o português e geralmente tambémde um provérbio correspondente na língua portuguesa ou, mais rara-mente, em latim. Por vezes, segue-se um comentário sobre seu significa-do para os “bundos” ou sobre o contexto em que são proferidos, oumesmo considerações do missionário sobre suas implicações morais eéticas. Os comentários, de maneira geral, ora ressaltam uma particulari-dade dos “bundos” ou dos “bantos”, ora apontam para característicastidas como inerentes à condição humana. Nas palavras do missionário:“Os provérbios são escritos em bundo, seguidos da tradução em portu-guês, por vezes acompanhados de um provérbio que lhes corresponda”(Valente, 1964a: 16, ênfases minhas) – note-se que a correspondência éafirmada explicitamente pelo próprio autor. Os provérbios tratam dediversos âmbitos da vida e do pensamento “dos bundos”, mas não estãoorganizados por temas, com exceção dos provérbios relativos à concep-ção de deus. Não obstante, a grande maioria trata de aspectos ressalta-dos pelos espiritanos em suas obras como problemáticos ou propíciospara a evangelização: o casamento, a maternidade, a centralidade dosfilhos, a feitiçaria, as festas, os valores.

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Na Introdução à mesma obra, Valente afirma que

(...) partindo dos factos reais da vida apreendidos no homem ounos animais se decretaram as normas da acção. Assim: a evolução,educação, costumes, sentenças nos julgamentos, tudo se encontrano provérbio.A ignorância do provérbio corresponde à ignorância das leis que regema vida tribal, civil e moral, e quiçá espiritual do bundo. (ibidem: 11)

A ideia fundamental que permeia as duas coletâneas é de que oconjunto desses vários provérbios e fábulas, atinentes a diferentes aspec-tos da vida dos “bundos”, permitiria captar um retrato de sua “mentali-dade”. O pressuposto é de que a soma desses vários enunciados, cadaqual contendo uma centelha desse pensamento, permitiria vislumbrarsua totalidade. A própria forma da compilação na Seleção é emblemáticadessa ânsia totalizadora: os provérbios são organizados ao modo de umdicionário, ordenados de A a Z, conforme a primeira letra da palavrainicial de cada um. Esta escolha manifesta a “pulsão enciclopédica”(Montero, no prelo) tão presente na produção de conhecimento porparte dos missionários, por trás da qual se entrevê a necessidade docompilador de classificar o universo do outro com o qual se deparasegundo sua própria lógica de pensamento: compartimentalizá-lo, ordená-lo, perscrutá-lo para que lhe seja tornado inteligível. Esse procedimentoenciclopedizante tem par em outras ferramentas utilizadas no projetocatequético: as gramáticas, os dicionários e até mesmo as etnografias.Trata-se da ideia de que é necessário dar conta de uma totalidade,sistematizá-la e em seguida operacionalizá-la para que sirva ao propósitoda evangelização. É assim que, no caso das gramáticas, por exemplo, alíngua em questão tem suas partes enumeradas e analisadas de modo aser apreendida segundo uma grade de leitura que a torne compreensí-vel. A confecção de gramáticas e dicionários é anterior a qualquer outracompilação de elementos da expressão oral local e traduções da doutri-na cristã para o vernáculo, pois é ela que permite seu registro de formasistemática. O vernáculo, após ser destrinchado e classificado, pode serdevolvido aos “indígenas” na forma de catecismos, liturgias e mesmocompilações de elementos da própria oralidade “indígena”.

Entretanto, é bastante marcante o fato de, a despeito da pretensãode oferecer ao leitor uma imagem de totalidade, as obras não terem asistematicidade metódica que se poderia esperar de um empreendimen-

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to com uma intenção totalizadora de dimensões tão abrangentes como acaptura da “mentalidade bundo”. Os cerca de 1400 provérbios, apesarde estarem ordenados um a um segundo a ordem da primeira letra queinicia cada frase, não estão padronizados no que diz respeito à forma: hásempre um enunciado em umbundu seguido de uma tradução literal emportuguês. Já o provérbio equivalente em português nem sempre estápresente; por vezes é substituído por um provérbio em latim, em outroscasos o enunciado é acompanhado tanto do provérbio em latim quantoem português, vez por outra é acrescentado um comentário etnográfico.

A estrutura da Paisagem é distinta daquela da Seleção na medida emque se nota uma preocupação maior com a divisão das “fábulas” emtemas. Estes refletem o esforço missionário para compilar elementos daoralidade que remetam a soluções para os problemas encontrados emcampo, não obstante os temas serem basicamente os mesmos abordadospelos “provérbios” apresentados: a importância da chuva e sua relaçãocom o “culto aos ancestrais”, as festas de casamento, o lugar da mulher,os “feitiços”, o processo de formação do caráter, os problemas de cará-ter. Assim como apontado no capítulo precedente, o missionário realizauma busca pelos conteúdos morais implícitos nesses gêneros da oralidade“indígena” com o objetivo de potencializá-los para seu projeto de“mentalizar” os “bundos”: a recolha, ao apresentar todas as característi-cas morais desses potenciais evangelizandos, daria aos missionários amedida do que extirpar e do que preservar. A estrutura da obra é bastan-te condizente com essa proposta: Valente apresenta primeiramente as“fábulas” que conteriam as qualidades morais positivas, depois os obstá-culos a serem superados para a formação do caráter dos indivíduos, eem seguida alguns aspectos positivos e negativos dessa “mentalidade”.O décimo segundo capítulo, entretanto, representa uma quebra na es-trutura da obra, na medida em que não apresenta “fábulas”, mas discor-re sobre “feiticismo e religiosidade africana”. Ele vem em seguida a umcapítulo intitulado “magia negra”, no qual se apresentam diversas “fá-bulas” reveladoras dessa “mentalidade”, e consiste em um capítulo emi-nentemente etnográfico, no qual o missionário se preocupa em descre-ver essa forma de religiosidade, vista como possivelmente potencializadorado cristianismo entre os “bundos” se tratada com a devida atenção. Aideia apresentada é de que eles seriam “um povo estruturalmente religi-oso”, cuja religiosidade precisaria apenas ser direcionada para o cami-nho correto:

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Só sei é que o problema é candente, por se haver relegado para o campo dasuperstição uma crença religiosa a substituir, e, precisamente por ser canden-te, se me perdoará a extensão deste capítulo e nesta Paisagem do mundoafricano, sem cujo estudo impossível seria o conhecimento de um povoestruturalmente religioso, e que, na sua religião tradicional (espírita), apoiatoda a sua vida individual, comunitária e social.(...)E não há idolatria propriamente dita, uma vez que o “feiticista”conserva a fé num Deus único, a quem, embora não preste cultoexterno, considera o Único autor da vida. O manipanso é apenasuma estatueta que se venera como encerrando um espírito compoder sobrenatural, não incarnação de um deus, embora falso,mas morada acidental de um espírito (ondele). Deus (Suku) e osespíritos (olondele) são independentes na concepção “bundo”.O Bundo, na sua mentalidade religiosa, não sobe à Providência,detém-se no campo das causas segundas, personificadas nos espíri-tos (olondele). E é a estes espíritos (olondele) que Ele presta o seuculto, não de adoração, mas reverencial, quer para implorar favo-res, quer para evitar desgraças, visto serem os espíritos que accionamessas forças ao encontro do homem.É a crença nos espíritos que acciona toda a vida do Bundo não-cristão. (Valente, 1973: 403-404, ênfases no original)

O missionário busca, pois, relacionar seu conhecimento etnográficodo “culto aos ancestrais”, visto como principal elemento dessa religiosi-dade, aos conteúdos morais existentes nas “fábulas”. Não obstante, adespeito de o conteúdo moralizante das “fábulas” ser recorrentementeressaltado, as “fábulas” apresentadas não possuem uma “moral” no fi-nal como ocorre com grande parte das fábulas europeias. Tampoucoaparecem, em umbundu, os substantivos indicativos de valores moraisfrequentemente presentes na tradução para o português realizada pelomissionário: “honra”, “audácia”, “imprudência”, etc. Estes, para alémde serem introduzidos na tradução portuguesa, determinam o capítulono qual a “fábula” se encaixaria, conforme a qualidade moral para aqual apontaria. A relação entre a qualidade moral existente na “fábula”e sua narrativa raramente é explicitada pelo missionário: ela é pressu-posta, posto que a moralidade é considerada universal. Comparando-seas traduções, nota-se, para além do fato de a versão portuguesa ser maisrica em julgamentos morais e detalhes, uma diferença na forma de apre-sentação do relato: a versão em umbundu geralmente é mais sucinta emtermos de descrição das ações, adjetivações e rodeios, enfatizando os

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diálogos e descrevendo as ações de forma direta, com poucas introdu-ções à narrativa. A narrativa no vernáculo é, por sua vez, rica em repeti-ções enfáticas, enumerações, onomatopeias e expletivos que indicam acontinuidade ou importância da ação narrada, invariavelmente supri-midos na versão portuguesa. A distância entre o vernáculo e o portuguêsrelaciona-se à intenção missionária de divisar as ditas característicasmorais nessas narrativas, intenção que leva Valente a afastar seu foco daperformance enunciativa e aproximar-se das “fábulas” portuguesas.

Tanto na Seleção quanto na Paisagem, os comentários etnográficossão distribuídos quase ao acaso: no mais das vezes são bastante distantesdos “provérbios” e “fábulas” apresentados, consistindo em comentáriossobre os hábitos dos animais envolvidos na narrativa ou sobre a culturamaterial dos “bundos”, ou então particularidades do meio ambiente.Em outros casos, tratam de elementos culturais cuja relação com o con-teúdo explicitado não é imediatamente apreensível – sua pertinência à“fábula” ou ao “provérbio” apresentado é pressuposta, tida comoautoevidente pelo missionário, posto que não existe uma preocupaçãoem fazer com que o leitor enxergue o nexo que relaciona os comentári-os à narrativa. A suposição da obviedade da relação entre as partes pelomissionário é manifesta, por exemplo, na afirmação de que “[a] filosofia

do provérbio é mais ou menos comum a todo o adulto de qualquer raça”,sendo “a síntese de uma verdade, que em si mesma não admite contes-tação, como resultante de uma verificação de factos reais cujas conclu-sões são óbvias e se impõem por si próprias” (Valente, 1973:xi). A mes-ma suposição não deve, entretanto, ser assumida pelo antropólogo: me-rece ser investigada e valorizada enquanto escolha, uma vez que é justa-mente a consideração dessas escolhas como arbitrárias que permite co-locar questões relativas ao contexto situacional que as motivou. Vejamoscomo uma escolha contingencial desse tipo dá acesso à disputa simbóli-ca pelo estabelecimento de uma convenção de significação.

5.2 Retórica e fixação

Na Seleção, a tradução consagrada – e utilizada por Valente – deolusapo (singular de olosapo) para o português é “provérbio”. Cumprenotar que implícita na tradução está a transposição de um gêneroenunciativo da oralidade proveniente do contexto simbólico do missio-nário para o contexto discursivo “bundo”, uma vez que a equivalênciaentre esses gêneros narrativos é pressuposta pelo autor. Muito embora a

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proposta deste texto não seja julgar em que medida o missionário teveêxito em sua classificação dessa expressão oral36, muito menos proporoutra categorização nesse sentido, colocar a questão da distância exis-tente entre a classificação realizada pelo missionário e o contexto coti-diano no qual se dão essas enunciações permite-nos aventar uma hipó-tese a respeito do modo como se deu, na prática, essa equiparação, pelomissionário, de um elemento do universo da fala dos “bundos” aosprovérbios do seu próprio universo oral, resultante sem dúvida dapactuação entre os agentes na missão. Levando-se em conta a necessida-de de considerar os contextos enunciativos para vislumbrar a enunciaçãoem situação (Leguy, 2001), delineio abaixo um dentre os vários contex-tos de enunciação possíveis desses olosapo no cotidiano, principalmentenas localidades mais afastadas dos centros urbanos e conforme aponta-do pelos registros etnográficos disponíveis.

As etnografias do início e meados do século XX descrevem o onjango

como central na vida da comunidade enquanto locus da socialidademasculina (Hambly, 1934; Ennis, 1938; Scott, 1959: 125; Berger, 1979:33-106-139). Nele, os mais jovens assistiam tanto às querelas, nas quaiso enfrentamento entre pontos de vista divergentes frequentemente sedava pela contraposição de olosapo e narrativas mais extensas represen-tantes de cada uma das posições, quanto aos serões cotidianos após arefeição. A capacidade de agregação dos habitantes da aldeia nessesmomentos de socialidade pautados pelo ato de contar histórias que ca-racterizavam o onjango revela a importância cotidiana da narrativaperformática nesse contexto, percebida pelos missionários como poten-cial porta de entrada para sua atividade37. Tratava-se de um momentolúdico, de relaxamento, ou então da oportunidade de resolver disputas,quando a disposição para ouvir o que as outras pessoas sentadas emvolta da fogueira tinham a dizer era máxima. Não surpreende, portanto,que não só os provérbios e adivinhas tenham sido traduzidos como

36 Para uma discussão de caráter mais geral sobre a classificação de gêneros narrativosorais, ver Gallois (1994). A obra de Leguy (2001) discute as especificidades do provér-bio enquanto gênero enunciativo na África a partir de um estudo de caso dos provér-bios bwa, no Mali.O estudo realizado por Schlee e Sahado (2003) faz o mesmo paraos provérbios rendille no Quênia.

37 Nas aldeias consideradas “cristãs”, esse serão noturno foi pouco a pouco transferidopara as escolas da aldeia, dirigidas por um catequista falante de umbundu e por ummais-velho local (ver capítulo 3).

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olosapo, mas também as próprias parábolas bíblicas, beneficiárias da es-tima por esses momentos nos quais o ato performático de enunciarocupava toda a atenção da aldeia. Também Valente relaciona os “pro-vérbios”, “adivinhas” e “fábulas” aos serões noturnos no onjango:

No povo africano, este método dedutivo do ensino aparece envoltonum passatempo, ao serão, durante o qual velhos e novos se reú-nem no onjango (choupana circular, dita “etende lyonjamba” - patade elefante -, de pau-a-pique, com a paliçada formando parede sóaté meia altura, embora as forquilhas, que sustentam o tecto, conti-nuem para cima), em cujo chão, de terra batida, o fogo se nãoextingue. Aí, nesse onjango situado no centro, quer da aldeia querdas diversas palhotas de um magnate, se acolhe o povo, para seaquecer nas noites frias do planalto ou para afugentar a humidadeque lhe penetra os ossos no tempo das chuvas. (Valente, 1973: xii)

Nesse contexto, uma das formas de manifestar o desejo de contaruma história e pedir a palavra é através da exclamação: Asapulo!. Paraexpressar seu acordo, os demais presentes respondem: Weya!. Em respos-ta, quem pediu a palavra enuncia algo que se assemelharia, dentre osgêneros narrativos “ocidentais”, a um conto, uma adivinha, uma fábulaou um provérbio. Nesse contexto enunciativo, portanto, qualquer umdesses gêneros narrativos poderia servir de resposta à mesma exortação.É interessante notar que a raiz da palavra asapulo (exortação que precedea enunciação) é a mesma de olusapo (cuja tradução consagrada é provér-bio). No verbete referente a sapu encontramos, no dicionário do entãobispo espiritano Albino Alves: “comunicação, anunciação, notícia, nova”(Alves, 1951: 1229). Já o verbo okusapula pode ser traduzido como “con-tar, participar, transmitir, comunicar, referir, anunciar, denunciar, dizer,notificar, prevenir” (ibidem: 1230). Asapulo convida, portanto, a uma ré-plica que pode ser feita na forma de diferentes gêneros enunciativos.

Muitos são os vocábulos em umbundu que designam o ato da fala:okuvangula, okupopya, okutana, okutanga, okusapula, para citar alguns dosmais corriqueiros. Todos poderiam ser traduzidos como “falar”, “dizer”ou “contar”, embora sejam utilizados diferentemente de acordo com asituação de enunciação. O mesmo dicionário de Alves traz, para tana,raiz de okutana, “falar, discorrer, contar, narrar, tratar uma questão, can-tar (o galo)” (ibidem: 1422), definição acompanhada de exemplos queenfatizam a continuidade do ato da fala. Já tanga, raiz de okutanga, édefinido como “falar, conversar, ler, discorrer, discutir; amarrar, pren-

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der” (ibidem: 1426); definição e exemplos ressaltam a ligação entre aspartes do que está sendo dito. Já a raiz popi, de okupopya, é definida como“fala, discurso, linguagem” (ibidem: 1140), ressaltando a ideia da línguacomo sistema. Para além desses vocábulos, existem inúmeras outras ex-pressões relacionadas à fala em umbundu, embora sejam consideravel-mente menos comuns. Okusapula, por sua vez, é um verbo provavelmen-te tão utilizado quanto okutana, okutanga ou okupopya. Ocorre, entretan-to, que este verbo específico, geralmente relacionado nos exemplos mis-sionários que seguem as definições dos verbetes a uma situação deenunciação na qual está envolvido o prestígio do falante e um graumaior de solenidade, é a expressão costumeiramente utilizada para asfalas dos santos e de deus nas traduções missionárias. No mesmo dicio-nário de Alves, encontramos os seguintes exemplos acompanhando overbete sapu:

“K’oloneke vina, Yesu watela olongame vyae olusapo olu, eti”... - Naqueletempo, Jesus dirigiu aos seus discípulos esta parábola.“Vatumiwa la Y.K. Okusapowala omanu ondaka yahe iwa yeyovo” =Foram mandados por J.C. a pregar aos homens por toda a parte aboa nova da salvação.“V’okusika kwesapu” = Ao toque da Anunciação (do Angelus, dasAve-Marias)“Kokayokoki ngo, momo husapwili esapu lyalayk’okusandjwisa owingiwomanu vosi” = Não tenhais medo, porque vos conto uma nova quehá-de alegrar a toda a gente. (ibidem: 1229-1230)

Abundam também casos em que deus se dirige aos fiéis através doverbo okusapula nos catecismos (Lecomte, 1899; 1937). Vale notar queestá ausente, nos exemplos fornecidos para todas as outras raízes deverbos, qualquer relação com a doutrina cristã. Ora, essa equiparaçãodos “provérbios” e do que talvez possamos chamar de uma “forma pro-verbial” de expressão às formas de enunciação cristã, em especial asparábolas e anunciações, aponta para uma pactuação no que diz respei-to à centralidade da palavra e a sua forma de ritualização no contexto damissão38. Estermann afirma:

38 Outra forma interessante de convergência de práticas discursivas pode ser visualizada notrecho abaixo, contido na Instrucção de Alves aos catequistas, no qual o método deevangelização do catequista na escola da aldeia assemelha-se, do ponto de vista da

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colocação de perguntas e respostas, às adivinhas dos serões noturnos e a algumas das“fábulas” da Paisagem, nas quais está prevista a participação do público com respostaspreviamente aprendidas: “Antes de começar a lição, o catequista entoe o Pai-Nosso,que todos rezarão de joelhos. Leia depois em voz alta a primeira pergunta, e faça-arepetir por todos os alunos. Se a resposta for grande, leia só até a vírgula, e faça repetiraos alunos essa parte. Leia depois até à outra vírgula, ou até ao ponto, se não há maisvírgulas, e faça repetir essa parte. Torne a começar então da mesma maneira, até quetodos os alunos saibam a resposta de cor” (Alves, 1954).

Não se pode falar em provérbios e canções dos povos bantos, semdar uma pequena explicação do que constitui a sua poesia. A leifundamental é a do paralelismo, seja na forma sintética ou antitética.Vê-se, pois, que neste ponto estes povos seguem as mesmas regrasque os Semitas. Basta ler os Salmos da Bíblia e as partes proféticasdo Antigo Testamento, para adquirir uma noção exacta destas re-gras. (Estermann, 1983: 400)

Eis um procedimento bastante recorrente: o de buscar, encontrar,argumentar e produzir a semelhança na prática da evangelização, proce-dimento realizado tanto no que diz respeito às formas quanto aos con-teúdos da expressão dos “indígenas”. A partir de então, o que foi equipa-rado é assumido como equivalente e os elementos aproximados sãoindexados a elementos do universo cristão, conforme a possibilidade ouimpossibilidade de fazer convergir os horizontes simbólicos dos agentesna prática. No caso em questão, a classificação empreendida implica umcerto recorte semântico e uma aproximação entre as concepções de gê-neros enunciativos dos universos do observador – e compilador da cole-tânea – e dos observados.

Uma tradução de olusapo para o português que correspondesse maisao campo semântico da palavra em umbundu talvez fosse “enunciação”,ação que pressupõe um falante e remete a um contexto. A tradução dosolosapo como provérbios aponta para uma situação performática distintadaquela característica desse tipo de enunciação, ou ao menos muitomais específica. Na situação descrita acima, na qual os presentes encon-tram-se sentados ao redor de uma fogueira, as enunciações reivindicamuma resposta: os olosapo traduzidos como “provérbios” suscitam umaréplica condizente com o conteúdo da fala, fazendo com que a pessoaque interagirá com a proposição mobilize, em seu arsenal linguístico,uma resposta adequada para a questão apresentada pela enunciação quea precedeu. Já no caso dos olosapo traduzidos como “adivinhas”, espera-

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se que alguém seja capaz de fornecer a única resposta capaz de solucio-nar o enigma proposto. Há em comum entre os dois tipos de enunciaçãoo fato de expressarem de forma concisa, por vezes hermética e quasesempre imagética, uma reflexão de natureza prática ou moral acerca docotidiano e/ou uma visão de mundo. Sua principal semelhança pareceser, contudo, o caráter dialógico de sua expressividade: o fato de pressu-porem um falante e um ouvinte disposto a entrar no jogo da comunica-ção e retribuí-la com uma resposta pertinente. Essa característica acen-tua-se ainda mais se considerarmos que a mesma palavra em umbundu,olosapo, foi utilizada por um catequista informante da coletânea parareferir-se às “histórias ou fábulas” (Valente, 1973: 444) proferidas emvolta da fogueira, contradizendo, no interior da própria Paisagem, a clas-sificação do missionário. Os provérbios portugueses, por sua vez, únicosa serem equiparados aos olosapo, não estão necessariamente implicadosnuma situação performática específica. Podem inclusive ser registradospor escrito sem perder muito de seu significado. Chegam a assemelhar-se a epígrafes, ao apontar para uma pretensão de condensar sabedoriaem poucas palavras.

Essa equiparação dos olosapo aos provérbios permite seu registrotextual, que suprime os elementos visuais, a reação da audiência, o somda narrativa. Oculta, enfim, o acontecimento que deu origem a sua cons-trução. O registro escrito elide a mediação da performance entre o pen-samento e sua apreensão: propõe dar acesso à “mentalidade bundo”através do texto, suprimindo a experiência performática. O tipo de regis-tro textual utilizado, por outro lado, paralisa: não há diálogo ativo, e seuprocesso de transmissão do conhecimento não é dialético. O texto é umretrato desse conhecimento, na medida em que apresenta um argumen-to em definitivo, cristalizado, que deve fazer sentido em si, independen-temente do contexto em que foi produzido. A enunciação oral implicaprocesso, mutabilidade situacional, participação dos diversos agentes. Afixação da narrativa na forma de escrita retira os “provérbios” da dialéticade seu contexto enunciativo e paralisa-os no texto, apontando no limitepara sua destemporalização.

A elisão do contexto enunciativo suprime as informações sobre ascondições de coleta dos olosapo e sobre quem os teria enunciado. Ora,essa forma de apresentação permite afirmar que exprimem verdades so-bre o pensamento “bundo”, sendo, portanto, uma forma privilegiada deaproximação ao que seria a essência desse pensamento visto como tota-lidade e pertinente aos “bundos” em geral. Nesse sentido, é marcante o

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fato de Valente fazer menção às fontes das quais extraiu as “fábulas” enão fazê-lo para os “provérbios”: o “bundo” para o qual a Seleção apontaé abstrato – não estão em pauta distinções de gênero, posição social ouidade. Não se sabe quem foram os informantes, em que região os provér-bios foram coletados, se foram proferidos espontaneamente ou median-te estímulo do missionário. Contudo, sabemos que os informantes deValente e dos outros compiladores das obras foram, em sua grande mai-oria, catequistas homens bastante próximos ao universo missionário39.A não problematização desse processo possibilita e embasa a imobilizaçãoda “mentalidade bundo” na Seleção, aparentemente necessária para o es-forço de compreensão do seu funcionamento. Metaforicamente, a frag-mentação decorrente da justaposição desses provérbios pode ser mais bemvisualizada evocando-se a configuração de um mosaico, no qual cada pro-vérbio corresponderia a uma das peças que compõem sua imagem final.Por meio da imagem produzida, revela-se a “mentalidade bundo”.

Essa aproximação dos olosapo aos provérbios permite entrever aconcepção universalista do pensamento humano que serve de base àempreitada missionária40: nesse caso, ela levou a estabelecer uma ponteentre um gênero narrativo do universo de origem do missionário e aquelecom o qual se defrontava e que tencionava dar a conhecer. Mais do quepensar se é adequado colocar como equivalentes os provérbios portu-gueses e os olosapo, importa ressaltar que essa aproximação, ao consa-grar-se na tradução – mobilizada pelos agentes para se comunicarem –,sugere que se possa pensar em sua pertinência ao menos do ponto devista prático, na medida em que possibilita o entendimento a respeitoda forma de denominar um tipo de performance enunciativa e, princi-palmente, aponta para o consenso quanto à eficácia dessa práxis discursivapara a comunicação na missão.

39 Por exemplo, da Paisagem: “A minha convivência de trinta anos entre o indígena atestaque esses dados não foram colhidos de rompante e prova a sua veracidade; mas, comoa simples permanência não basta, várias vezes recorri aos conhecimentos etnográficosde um colega, o P. José da Silva Gonçalves, falecido no seu posto, depois de duasdezenas de anos de serviço activo também; e ainda a alguns catequistas, entre os quaisme cumpre destacar Joaquim Sifi, Fernando Cahete, José Cacombi, entre outros, eaos quais presto os meus agradecimentos”. (Valente, 1973: xvii).

40 Ver Montero (1996) sobre a contradição entre a particularidade cultural e a universa-lidade da missão.

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5.3 A formação da convenção de significação

É certo que a atribuição de uma moral comum – quiçá universal –aos provérbios e fábulas “bundos” e “portugueses” dialoga muito bemcom os propósitos universalistas e universalizadores de Valente. Trata-sede olhar não para o particular em si, mas de estabelecer com o universodos “outros” que se busca compreender uma equiparação entre elemen-tos que possibilite apresentar o “bundo” e o “cristão” como equivalen-tes porque manifestações do humano (Montero, no prelo). Assim, acomensurabilidade estabelecida entre o “provérbio bundo” e o “provér-bio português” é fruto da visão missionária da unidade e totalidade subs-tanciais do humano. Assim, o esforço de Valente consistia na busca porum canal de comunicação com essa essência, garantida pelo vínculodos homens com deus, que por sua vez ratificava a tradutibilidade dasdiversas formas de expressão humanas e, portanto, a possibilidade decompreensão entre todos os homens.

Entretanto, vale enfatizar que essa superação do dilema da parti-cularidade, embora colocada como necessária na medida em que osmissionários se viram obrigados a relacionar as especificidades culturaisobservadas à universalidade da condição humana, não foi realizada deforma sistemática e consciente. Aqui, cabe pensar essa equiparação doponto de vista da comunicação “ortoprática”, conforme descrita porNicola Gasbarro (2006: 93): ao voltarmos nosso olhar para a prática ebuscarmos localizar os códigos mobilizados para que a comunicaçãoocorra, evitamos a pressuposição de que essa universalidade do humanofosse sistematizada e que as particularidades culturais fossem meramen-te encaixadas nela pelos missionários. Esse ponto de vista abre espaçopara pensar o universal de forma assistemática e heterogênea, não colo-cando uma contradição com a ação prática dos agentes envolvidos, queembora partissem de um pressuposto de universalidade, não a viam comoconstrangedora à indexação que realizaram.

Essa abordagem permite pensar a prática como um conglomeradode partículas não organizadas num sistema coerente. Consideremos,pois, mais de perto essa questão da tradução, que ganha profundidademetodológica na medida em que permite pensar o processo de comuni-cação estabelecido entre esses agentes. Entretanto, ressalto que emborapara o missionário a tradução representasse uma ferramenta paracomensurar sentidos e fazer-se entender pelas pessoas que pretendiaconverter, irei tratá-la do ponto de vista do estabelecimento de uma

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convenção de significação, entendida como um código para a ação prag-mática, uma vez que não pretendo enfocar a efetividade do entendimen-to entre os agentes. Nesse sentido, a comunicação não pressupõe neces-sariamente inteligibilidade, mas é condição de possibilidade da interação.

O texto produzido por Valente é resultado da interação, da comu-nicação estabelecida entre os personagens que compuseram o espaço damissão a partir da leitura da alteridade que uns e outros fizeram. No quediz respeito à utilização das fontes, o orquestramento dos missionáriosestá posto: foram os responsáveis pelos registros e o fizeram segundo alógica das exigências de seu projeto. Entretanto, essas fontes, se lidascom o devido cuidado, permitem-nos pensar outra coisa que não o olharque o missionário dirigiu para esse outro ou as formas de “resposta” ou“resistência” das populações locais a essa presença externa. Os textosregistrados são produto de uma relação, cristalizada nos registros histó-ricos. O desafio consiste, pois, em tentar uma aproximação processualde um objeto que se apresenta como estático. Para tanto, parto do supos-to de que nessa relação entre diversos agentes não se pode separar deforma inequívoca e definitiva “missionários” e “nativos”, sob pena deperder-se a complexidade que caracterizou a interação. Os agentes nelaenvolvidos constituíram a relação e foram constituídos por ela, atuandono interior de um contexto que se sobrepunha aos interesses individu-ais e constrangia as formas de significação em jogo. É nessa medida queafirmo não ser possível olhar para as fontes e buscar nelas o ponto devista do “missionário” ou do “nativo”, mas sim a relação que foi consti-tuída por essas perspectivas e as constituiu, num processo dialético doqual o registro de que dispomos é uma fotografia; uma fotografia de ummomento nessa construção de sentido que se dá necessariamente naprática, a partir de erros e acertos, quando se impõe a necessidade deprocessar uma alteridade e inseri-la em uma grade de percepção de mundo(Pompa, 2003: 95).

Na estimulante obra intitulada Contracting Colonialism. Translation

and Christian Conversion in Tagalog Society under Early Spanish Rule, VicenteRafael afirma que a conversão dos Tagalog pelos missionários católicosespanhóis nos séculos XVI e XVII foi possível, paradoxalmente, a des-peito do fracasso das traduções realizadas pelos missionários e justa-mente por causa desse fracasso. Ao colocar a questão dessa forma, oautor chama atenção para o fato de que o processo de tradução implicauma submissão às condições de fala e comportamento impostas pelalinguagem do outro (e linguagem aqui deve ser compreendida num sen-

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tido amplo) (Rafael, 1988: 210). Para se comunicarem, os missionáriostiveram de se submeter à lógica do vernáculo, na tentativa de submete-rem-no à lógica da sua própria linguagem. É então que se coloca o riscode ser tragado pela lógica do “outro” na formulação das frases, no uso dovocabulário. E quando se tenta fugir dessa possibilidade, vernacularizandopalavras portuguesas, o risco é elas serem interpretadas pelos potenciaisconversos de forma diferente da pretendida, pois embora soem semelhan-tes às palavras em vernáculo do ponto de vista da fonética, nada garanteque seu significado seja apreendido da forma desejada.

Uma situação emblemática desse tipo de constrangimento encon-tra-se na vernacularização de termos carregados de significado doutriná-rio. Os espiritanos optaram, ao traduzir os catecismos e liturgias para oumbundu, pela umbundização de alguns desses termos originários dalíngua portuguesa. Podemos mencionar opekalu (pecado), okilisitãwu (cris-tão), ombatisimu (batismo), osakalamendu (sacramento), ovasentiu (gentio),para citar alguns entre os inúmeros (Lecomte, 1899; 1937). Esse procedi-mento, cujo propósito inicial era a preservação do significado dos ter-mos na doutrina cristã, visando evitar que sua tradução por algum ter-mo vernáculo impregnasse a doutrina dos significados inerentes aouniverso simbólico local, não pôde ser realizado sem levar em conta asregras da fonética do umbundu, que determinam, por exemplo, o acrés-cimo do “o” no início dos termos vernacularizados e a substituição do“r”, ausente do sistema fonético umbundu, pelo “l”. Ademais, se a ma-nutenção dos termos cristãos deveria evitar interpretações indevidas,abriu espaço para que fossem ressignificados a partir de semelhançasacústicas com outros termos em língua local, ou então que fossem apre-endidos, num primeiro momento, como significantes sem referentes,possibilitando o acoplamento de qualquer significação a esse vazio se-mântico criado no interior do discurso41.

41 A umbundização do português implica ainda a constituição de uma hierarquia linguísticana qual o português tinha estatuto superior, na medida em que a vernacularização,realizada com o intuito de reter o significado “original” da doutrina, traz implícito ojuízo de que o vernáculo não contém em sua forma de expressão a mesma possibilida-de de transmitir os sentidos que o português. Os termos inseridos no vernáculo parecememanar de uma fonte externa e superior a ela, o que lhe possibilitava determinar quenovos elementos fossem incorporados ao arsenal linguístico umbundu. Essa hierarquiaentre as línguas mantém uma relação de homologia com a hierarquia estabelecida pelaevangelização no que diz respeito às “crenças” “cristãs” e “indígenas”. Afirma um missio-nário e historiador das missões espiritanas: “Quando após um trabalho penoso ospadres enfim chegavam a dominar uma língua, frequentemente se desapontavam com sua

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pobreza real ou aparente. Ainda que adaptada às necessidades simples da vida concre-ta, a ela pareciam faltar termos e noções que consideravam necessários à transmissãoda fé e do pensamento cristão. Assim, sua tarefa linguística exisia mais do que afluência. Eles também tinham de trabalhar para unificar vários dialetos em uma únicalíngua (...) e sobretudo no enriquecimento dessas línguas por meio de palavras ouconceitos até então desconhecidos”. (Koren, 1982: 502)

42 A preocupação missionária com o processo de tradução vem de longa data. Osdebates teológicos a esse respeito remontam às primeiras traduções da Bíblia e aoConcílio de Trento, tendo ganhado força quando da chegada dos jesuítas à Américano século XVI. Embora houvesse posições diametralmente opostas no que diz respei-to às formas de se realizar a tradução, pode-se dizer que a oposição fundamental eraentre os padres com experiência de terreno, que afirmavam a necessidade de estabe-lecer pontes com o universo que se lhes apresentava como radicalmente distinto doseu próprio, e os teólogos, mais distanciados da prática missionária, para quem autilização dos termos vernáculos para expressar os elementos fundamentais da doutri-na cristã levariam a uma contaminação inaceitável. Na prática, adotou-se geralmenteum compromisso entre as duas posições, preservando-se a maioria dos termos tidoscomo mais essenciais na língua europeia e traduzindo-se outros quando julgadonecessário (Agnolin, 2006).

Já outros conceitos da doutrina cristã tiveram, inevitavelmente, deser traduzidos. É o caso, por exemplo, do termo escolhido como tradu-ção para deus: suku. A aparente ausência de termos em umbundu queexpressassem de forma distinta todos os conceitos cristãos devido àdisparidade semântica entre as duas línguas, percebida pelos missioná-rios no processo da tradução, já apontava para a dificuldade de umaconversão baseada na fé. A umbundização das palavras portuguesas, as-sociada à patente possibilidade de deslizamento semântico colocada pelastraduções de elementos doutrinários para o vernáculo, coloca a questão,para os agentes responsáveis pela transposição conceitual realizada nastraduções, de sua inevitável incompletude em termos de equivalência.Se assim não fosse, procurariam sinônimos no vernáculo para todos ostermos portugueses. Ora, essa impossibilidade parcial da tradução colo-cou em questão a possibilidade da conversão. A importância da tradu-ção para o projeto missionário deve-se ao fato de que o grau de adequa-ção com que fosse realizada determinaria o sucesso ou o fracasso doprojeto evangelizador, o que justifica ter desempenhado papel tão im-portante na empreitada catequética do ponto de vista missionário42.

É oportuno ressaltar que a efetividade ou não da conversão só secoloca para os agentes envolvidos no processo. Não cabe à análise deter-minar em que medida “os Ovimbundu” foram convertidos pelosespiritanos ou não, mas compreender quais foram os códigos mobiliza-

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dos para permitir a compreensão mútua nessa comunicação. Nesse sen-tido, não acredito ser profícuo utilizar conceitos que contemplem esseprocesso de construção simbólica pela via do equívoco, como ocorre noconceito de “mistranslation” proposto por Rafael (1988), na visão da co-municação entre missionários e ameríndios como “mal-entendido” deGruzinski (2003) e na ideia de “diálogo de surdos” de MacGaffey (1994).Esse partido interpretativo supõe a existência de uma forma de entendi-mento bem-sucedida, além de sugerir que o antropólogo é o único emcondição de distinguir quem entendeu quem. Julgo ser mais interessan-te partir do pressuposto de que nesse embate entre universos simbólicosdistintos – e aqui me refiro à disputa simbólica como definida por PierreBourdieu (2007) – sem dúvida ocorreram deslizamentos de sentidos.Entretanto, embora os diversos sentidos atribuídos à alteridade pelosagentes tenham desembocado nos códigos mobilizados para possibilitara comunicação, esses sentidos não são integralmente apreensíveis medi-ante o exame das fontes. Assim, a análise da tradução volta-se para oscódigos, que apontam para a prática, para a necessidade cotidiana decomunicação que se coloca quando esses agentes passam a comparti-lhar o espaço da missão. O foco da análise se volta para a prática dosagentes e para a constituição de estratégias, e não para os sentidos portrás desses códigos.

Isso porque muito embora a evangelização se dê por meio da pala-vra e das admoestações para que os “indígenas” se comportem e sintamde uma determinada maneira, o termômetro de seu sucesso, em princí-pio, são os hábitos dos evangelizados. É a partir da forma como se com-portam que os missionários podem medir o “sucesso” ou o “fracasso”da conversão. De forma semelhante, os “cristãos” comportam-se de umacerta maneira a partir da representação que fazem da proposta missionáriae com base na resposta que pretendem dar a ela. Assim, a pactuação decódigos entre os diversos agentes ao se depararem com essa alteridade éperformática, no sentido de que é a partir da representação que se temde outrem e da ideia que se faz da representação que esse outrem tem desi que se age de determinada maneira. E mais, ao comportar-se de umaforma determinada, pretende-se ser compreendido de certo modo(Bourdieu, 1972). É a partir desse jogo, no qual todos os agentes têmpapel ativo, que são construídas as relações no contexto da missão. Ora,o sentido encontra-se, portanto, não nos agentes, mas na relação que seestabelece entre eles, ou melhor, no contexto relacional no qual a co-municação se desenvolve. Nesse quadro, nada é estático: o contexto

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influencia os agentes que, por sua vez, a partir da relação que estabele-cem, transformam o próprio contexto no qual estão inseridos. O signi-ficado, ao ser apreendido predominantemente a partir da performance,é dado mais pelo contexto do que pelo discurso.

Quando a atenção se volta para a prática, o código surge comolocus privilegiado da construção de sentidos. Entretanto, é importantefrisar que a convergência que se estabelece entre os agentes e se expres-sa na convenção de significação se dá no nível das práticas e não dasperspectivas. Embora o código tenha de ser o mesmo para funcionar naprática, o sentido pode ser outro. Ao se constituir como ponto de con-fluência de diferentes perspectivas, essa convenção de significação criaas condições de possibilidade para que a prática comunicativa ocorra.Uma análise que considere a convergência dos códigos pode prescindirde colocar em questão se houve entendimento ou mal-entendido entreos agentes e esforçar-se por compreender de que modo essa comunica-ção se deu. Assim, o sentido da convenção de significação pode serapreendido e analisado apenas do ponto de vista da estratégia, e não daintencionalidade.

No cotidiano da missão, os agentes em interação “se põem deacordo em relação às situações possíveis que um código de referênciadesigna, a ‘totalidade do sistema’ permanece fora da interação” (Montero,2006: 28). E os elementos que interagem são justamente aqueles quefazem sentido para as partes em relação, embora não façam necessaria-mente o mesmo sentido para todos. Sua equivalência no planorepresentacional só se coloca como problema na medida em que a prá-tica revela incongruências. A tradução é necessária para a comunicação,mas a inviabilidade de sua plenitude é vivenciada na prática pelos agen-tes, ao descobrirem, por exemplo, que determinadas práticas de unsentram em choque com determinadas representações coladas a umaprática de outros. O problema da conversão – para os missionários –reside em fazer convergir as práticas e as representações “indígenas”tendo como foco virtual a universalidade cristã do ser humano, quecoloca a possibilidade desse empreendimento. É por isso que o projetomissionário trabalha segundo o método dos erros e acertos: é quando setorna visível, na prática, que o sentido apreendido pelos “indígenas”não corresponde àquele desejado pelos missionários que se coloca anecessidade de rever a tradução escolhida. Isso explica, por exemplo, acrescente umbundização dos termos portugueses nos catecismos e evan-gelhos espiritanos: a opção inicial por traduzir alguns termos a partir do

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estabelecimento de uma equivalência semântica entre o português e overnáculo foi, em alguns casos, revista e substituída pela umbundizaçãode um termo português. É o caso do termo “pecado”, cuja traduçãoinicial foi ekandu (Lecomte, 1899), substituída gradativamente por opekalu

(Alves, 1954), e de “Espírito Santo”, cuja tradução inicial foi Omwenho

Ieyelo43 (Lecomte, 1899), quase totalmente substituída por Espilitu Santu

(Lecomte, 1937; Alves, 1954) nos anos subsequentes.

5.4 Suku onganga

Conforme apontado acima, a necessidade de traduzir a doutrinacolocava para os missionários a inevitabilidade da escolha prática desinônimos para seus conceitos. No caso da tradução de deus, suku, éinteressante observar como aponta, nas compilações de Valente, para adisputa simbólica travada entre os missionários residentes no terreno eos ovimbanda (plural de ochimbanda) e olonganga (plural de onganga), “cu-randeiros” e “feiticeiros” representantes do dito poder tradicional44 ecombatidos pelos missionários e pelo governo colonial por consistiremem potencial ameaça ao projeto catequético e civilizador. Vejamos deque maneira essas traduções se imbricam e configuram o campo dedisputa simbólica entre esses agentes. Nessa disputa, o “culto aos ances-trais” aparece, aos olhos missionários, como o principal ordenador das

43 Não me deterei nesses termos aqui. Não obstante, omwenho ieyelo aponta para umaquestão desenvolvida anteriormente: a da leitura dos Ovimbundu como próximos aouniverso dos colonizadores. Omwenho seria, segundo a bibliografia missionária daépoca, o termo em umbundu que designaria o que Tempels, missionário protestanteatuante no Congo belga, denominou “força vital”, segundo ele o elemento centralpara a compreensão da cosmologia “banto”. O “princípio da força vital” norteariatodas as concepções de vida dos “bantos”, e estaria relacionado ao “culto aos ances-trais”, na medida em que seriam esses antepassados que garantiriam o quantum deenergia de vida dos vivos (Tempels, 1945; Kagame, 1976). Nas traduções dos espiritanos,omwenho aparece como “sopro”, “vida” ou “energia vital” (Alves, 1954). Ieyelo, por suavez, é traduzido ora como “branco”, ora como “sagrado” (Valente, 1973). Daí sedepreende, por um lado, a intencionalidade missionária de associar o “sagrado” dessareligiosidade ao elemento “branco” e, por outro, o fato de essa indexação ter feitosentido até um momento, necessitando ser substituída por outra, a umbundizaçãopara Espilitu Santu, por motivos não dedutíveis das fontes.

44 A presença dos ovimbanda e olonganga é mencionada já em etnografia da década de 1930(Dorsey, 1938).

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noções “indígenas” de “deus”, “feitiçaria”, “espírito”, etc., sendo neces-sário compreendê-lo para subsumi-lo à “religiosidade cristã”45.

Emblemática da preocupação com o “culto aos ancestrais” é aafirmação de Estermann sobre os “feiticeiros bantos”, agentes privilegi-ados no que diz respeito à intermediação entre o mundo dos vivos e omundo dos mortos tal como os missionários:

É inegável que a influência dos últimos ainda é enorme entre todoesse grupo banto, e não será inoportuno nos determos um pouconesses representantes qualificados do paganismo africano, do qualconstituirão ainda durante muito tempo talvez a muralha suprema.(Estermann, 1934)

A passagem revela a dimensão da influência atribuída a essesagentes pelos missionários e sua expectativa pouco alentadora de queesse poder perduraria por muito tempo. No artigo citado e em diversosoutros escritos, Estermann e Valente empreendem um esforço de des-crição detalhada das atividades desses “feiticeiros” e das “crenças” dos“indígenas” com relação a elas. É deveras surpreendente que a ideiade deus apareça, tanto nas compilações de “provérbios” e “fábulas”quanto nos textos etnográficos, no mais das vezes relacionada à figurados “feiticeiros”: Estermann preocupa-se com a atuação dos “feiticei-ros” de todo o grupo “banto” (Estermann, 1969; 1983), ao passo queValente fornece uma descrição detalhada das funções e práticas rituaisdos diversos tipos de ovimbanda (Valente, 1973). Ambos enumeramminuciosamente os tipos de “feiticeiros”, “espíritos” e “feitiços” exis-tentes (e.g. Valente, 1973: 426-428), num nível de detalhamento repro-duzido em suas admoestações aos “indígenas” nos catecismos. Alvesexorta seus catequistas a exercer controle sobre as “crenças e práticassupersticiosas” dos alunos:

Não permitam os catequistas que os seus catequizados invoquem osespíritos ou lhes ofereçam sacrifícios. Não consintam adivinhações,curativos com meios impróprios, nem malefícios de qualquer sorte.Combatam todas as crenças e práticas supersticiosas; para que dei-

45 A centralidade dessas práticas e sua potencialidade como via de acesso dessas populaçõesao cristianismo aparece também nos escritos protestantes (Scott, 1959; Ennis, 1962).

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xem estas usanças gentílicas, convidem os casados a construir ascasas perto da capela; esta ficará bem entre a população gentia e acristã, servindo de separação entre elas, e estando acessível a todos.(Alves, 1954)

No catecismo de Lecomte, o mesmo nível de detalhe das etnografiasé reproduzido nas exortações aos catecúmenos com relação às práticasrelacionadas ao “culto aos ancestrais”. A passagem abaixo permite visualizaros elementos associados pelos missionários ao “culto aos ancestrais”:

ELONGISO IIILIÇÃO III

* Efendo nhe?Okutumbangiya Suku, okufenda, okulivondela kokuaelokuuvumbila, momo otchime tchietu uatupanga.* Em que consiste a Religião ou adoração?Consiste em prestar a Deus as honras e o culto que lhe devemoscomo creador e supremo senhor de todas as cousas.

* Velie vakamba efendo?Ava valukisa Suku tchimue tchiñgi.Ava vatava viokovilulu lumbanda uâliapu.Ava vasumba octhîla tchiovimbundu louima.Ava vatomba via Suku, levumbilo liae.Ava valilula otchîla tchia Suku.* Quaes são os peccados contra a Religião?São a idolatria, isto é, a adoração de uma creatura.A superstição, o culto dos mortos, e a arte magica.A vã observancia dos agouros, e de certas prohibições.O sacrilegio ou profanação das cousas santas.A irreligião ou desprezo de Deus e de seu culto.

Viokovilulu vipi?Okulikutilila, okusembika, okuipae ohutu, letchi tchiosethiokusakuisa ovilulu.Em que consiste o culto supersticioso dos mortos?São as diversas praticas, ceremonias, offerendas de victimas, em honrados mortos, com o fim de se livrar da influencia nociva que se lhesatribue.Umbanda uâliapu umbanda upi?

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Umbanda uâliapu: âuanga, okuloua, okuliangula, okutaha,lokulimbingila lokunhua ombulungu.Em que consiste a arte magica?São os malefícios e sortilégios, as diversas adivinhações, a evocaçãodos mortos, a prova pelo veneno, etc.

Evi viose kaviatundile ku Suku?Ndati, viatunda kâliapu, va vayongia omanu kosiahulu otchiovatutuale vondalu.Estas praticas não vêem de Deus?Não; vêem do demonio que assim illudiu os antepassados paraattrahir os homens ao inferno.

Evi viokusakuisa kaviuako?Kuli ovihemba viotchili viokusakuisa uvela; puãi etchi tchiokusakuisaâuanga lovilulu katchiuako.Os curativos não serão licitos?Há uns remedios verdadeiros para o tratamento das doenças; po-rém os curativos de maleficios e das almas do outro mundo sãoprohibidos.

Ovilulu lâuanga kavilingi tchimue?Ndati, kavilingi tchimue, té âliapu; lâliapu vo, u olisole la Sukukakavatile usumba; okuvela lokufa kuomanu Suku muele eieotchisea.As almas e os maleficios não nos podem fazer mal?Não, nem o demonio nos póde fazer mal sem a permissão expressade Deus; ora o medo do demonio nunca deve assustar o bomchristão; sabemos que a nossa vida está só nas mãos de Deus.

* Etchi tchiokutaha katchiuako?Ndati, kuli tchimue tchiokuliañga ñgõ, kuli tchimue tchiâliapu.* As adivinhações não são licitas?Não, umas não passam de simples intrujices, outras são obra dodemonio.

Umbanda uukongo, lu uongiolele, lu uongiau, lu uokupula ombelahauotchiliko?Ndati, umbanda uatchio uose uokilikemba ñgõ hale uâliapu.O que se usa para ter sorte na caça, no negocio, nas colheitas, paratrazer ou suster a chuva não são praticas legitimas?

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Não, são superstições condemnaveis, embustes grosseiros ou prati-cas diabolicas.

Etchi tchiokutchila konambi lokusikila oloñgoma, leviviondombokua kaviaposokele?Ndati, viañgõ, viaviha; ovakilisitão kavakavilinge.As festas, danças, batuques, victimas por occasião dos obitos nãosão costumes acceitaveis?Não; tudo isto é repreensivel; um christão não o póde seguir.(Lecomte, 1899: 30-33)

Trata-se de uma lição não prescritiva, mas proibitiva, na medidaem que se dedica a informar os evangelizandos sobre todas as práticas aserem evitadas por contrariarem a conduta de um “bom christão”. Nãoobstante, a tradução vale-se de elementos do universo do mesmo “cultoaos ancestrais”: efendo, por exemplo, é traduzido como “religião ou ado-ração”, mas é o mesmo vocábulo utilizado no “culto” a esses mesmos“ancestrais”. Como veremos mais adiante, a separação empreendida pe-los missionários entre “práticas de deus” e “práticas do diabo” nos cate-cismos, como pode ser observada acima, contribuiu para a noção, presen-te na etnografia de Berger (1979), de que se devia prestar culto também ao“diabo”, uma vez que este estava em posição de controle com relação aosancestrais. Com relação aos “espíritos” dos “indígenas”, Valente afirma:

Estes espíritos foram criados directamente por Deus, sendo unsescolhidos para formar a corte de Deus e dedicados ao Seu serviço,e outros desceram à Terra para conviverem com o homem.Como a atitude manifestada pelo “feiticista” se reveste de caracterís-ticas especiais, uma em cada caso, tendo cada uma delas um vocábu-lo próprio e preciso, as principais são designadas por: okulembula(consolação), okufeliya (aplacação e consagração), okulikutilila(imploração e pedido de protecção), okusembika (satisfação e liber-tação de compromissos). (Valente, 1973: 411)

O trecho acima aponta para dois elementos distintos: primeira-mente, no que diz respeito às traduções de termos, revela mais apropri-ações, por parte dos missionários, de termos utilizados por eles mesmosem sua descrição do “culto aos ancestrais” em seus escritos doutriná-rios: okulembuka, por exemplo, é traduzido como “santificar”, no contex-to de “guardar os domingos e santificar a deus” no catecismo; okufeliya é

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traduzido como “oração”; esembikilo, que compartilha da raiz de okusembika,aparece no catecismo designando o sacrifício da missa, realizado emhonra a Jesus Cristo (Lecomte 1899; 1934). Nota-se, portanto, a incorpo-ração dessas que são apresentadas nas etnografias como “superstições”ao próprio material doutrinário espiritano.

O segundo elemento interessante apreensível da citação acima é apresença do “feiticista” e sua inevitável associação ao “culto aos ances-trais”, sendo “feiticista” designação genérica utilizada para os diversostipos de “curandeiros” e “feiticeiros”, geralmente subsumidos às catego-rias de ochimbanda e onganga nos registros missionários. A obra de Va-lente permite entrever o embate simbólico travado entre os espiritanose esses representantes legítimos do “poder tradicional”. Tentarei de-monstrar a seguir, de forma sucinta, a possibilidade de apreender a dis-puta por influência entre esses agentes.

Atentemos para os dois “provérbios” abaixo, a título de exemplo:

I - Suku akwechye, imbanda vilipande.Deus libertou-te, que o saibam os feiticeiros.(Sem a vontade de Deus, de nada valem os remédios). (Valente,1964a: 53)

II - Suku onganga.Deus é feiticeiro.(Deus, autor de todas as maravilhas, conhece tudo e tudo pode).Nb.: Nestes atributos de Deus, note-se a falta de concordante, fir-mando a unidade completa do nome e determinativo. (ibidem: 15.Nota no original.)

Diferentemente dos missionários espanhóis, que historicamenteoptaram por não traduzir “deus”, em umbundu consagrou-se sua tradu-ção como suku. Essa tradução data dos primeiros escritos missionários efoi utilizada também pelos protestantes (e.g. Sanders e Fay, 1885: 15) deforma constante durante todo o processo de evangelização46. Existe toda

46 Reproduzo a seguir um relato de Estermann a respeito dos percalços missionários nabusca de uma tradução para a ideia cristã de deus entre os Herero. O relato ganharelevância se considerarmos o fato de que o esforço de evangelização entre as popula-ções do sul de Angola esteve intimamente relacionado ao mesmo esforço entre osOvimbundu: “Procurando um termo que significasse Deus, os missionários [protes-tantes da Sociedade Renana] julgavam-no ter encontrado na palavra Mukuru.Etimologicamente quer dizer velho, ancião e empregava-se para designar um espírito

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dum antepassado, mais particularmente dum soba. Não tardou muito que um dosmissionários ficasse elucidado duma maneira drástica sobre o engano. Ameaçandoum velho século dos castigos de Deus (Mukuru) este exclamou: não sou eu porventurao Mukuru dos meus súbditos? E furioso explusou o missionário do cerco das suascubatas. Entretanto os missionários vinham notando que os Hereros empregavammuitas vezes a palavra composta Kalunga-Ndyambi para designar um ser misterioso.Um dia quando um deles perguntou a um velho quem era Kalunga-Ndyambi, obteveesta resposta que dissipou todas as dúvidas: “É o mesmo a quem vós chamais Mukuru”.É de notar que apesar disso o termo Mukuru, já então repetido tantas vezes nascatequeses e impresso em muitas publicações doutrinárias, prevaleceu sobre o velhoe autêntico nome banto-ocidental: Kalunga-Ndyambi. Qual é agora a idéia subjacentea estes termos, Nzambi, Kalunga ou Huku? Qual a semântica destes fonemas? Não háa menor dúvida de que esta idéia é a de um Ente Supremo, pessoal e espiritual,criador do Céu e da Terra, bom, mas não se importando com o bem ou mal-estar dosmortais” (Estermann 1983: 306-307). A longa citação traz um momento curioso danegociação entre os agentes no que diz respeito ao estabelecimento da tradução de“deus”: coloca a centralidade dos ancestrais para os agentes, tanto missionários quantolocais, a indignação do “século” perante a atitude do missionário, revelando a este o“engano” cometido, a obstinação missionária em encontrar, no universo simbólicolocal, um correspondente para o “deus” cristão, encontrado nos vocábulos nzambi,kalunga ou huku, tendo o último, por sua vez, seu equivalente em umbundu, suku, a serabordado a seguir.

uma discussão sobre se o deus criador “banto” (e “bundo”) seria distan-te e alheio à vida dos humanos ou, ao contrário, onipresente e oniscien-te como o deus cristão. O ponto de vista defendido pelos espiritanos demodo geral é que a religião “banto” seria caracterizada pelo já mencio-nado “monoteísmo apagado e culto de espíritos muito vivo” (Estermann,1983: 182), colocando a possibilidade de resgatar o monoteísmo funda-mental e extirpar o “culto aos ancestrais”, considerado uma degenera-ção da tendência monoteísta do ser humano. Essa concepção de deusseria encontrada principalmente nos provérbios e contos: “do que sepode chamar a literatura arcaica destes povos que se conservou nosprovérbios e certas invocações rituais, parece poder concluir-se que es-tes bantos tinham outrora um conceito mais perfeito deste Ente supre-mo e criador” (ibidem: 28).

Já a versão protestante é menos otimista. O verbete de Ennis, mis-sionário protestante entre os mesmos “Ovimbundu”, diz o seguinte arespeito do termo suku:

Suku (soo-koo). Os Ovimbundu são, na religião, adoradores dosancestrais, e aparentemente possuem mais de um deus. Não há evi-dência segura de que haja um deus supremo, nem existe um nome

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pessoal para deus algum. O deus suku parece ser outra forma dekuku, que significa “bisavô”. Ao nomear um ancestral humano,suku não é usado em lugar de kuku. Há indicações de que umancestral deificado aos quais as preces são endereçadas é considera-do um advogado frente a um poder superior. (Ennis, 1962: 316)

Valente vale-se, na introdução a sua seleção de provérbios, de umaexposição etimológica que se propõe a pensar a concepção “indígena”de deus e explicitar de que forma ela já conteria, ainda que em germe, oselementos fundamentais que, se despertados da forma correta, permiti-riam a evangelização dos falantes dessa língua. O “conceito primitivo,mas filosófico, da natureza de DEUS” (Valente, 1964a: 12) do “bundo”permite explicar de que forma essa “mentalidade (...), julgada primitiva,entra perfeitamente na religião” (ibidem: 16). Em primeiro lugar, Valentemenciona a interjeição Suku!, manifestação de um “sentimento espontâ-neo da alma”, cujo significado seria “SAIR, DESENTRANHAR-SE (...),PROVENIÊNCIA de um interior, de um ÍNTIMO que existe, que ocoração sente mas a vista não alcança”. Na listagem das palavrasetimologicamente ligadas a suku segue-se o vocábulo esuku, “medula dasplantas, CORAÇÃO das árvores, TUTANO dos ossos, a seiva que ali-menta e dá vida à planta. Por isso significa também sussurro interior,ruído tênue” (ibidem: 12) e ochisuku, “BRENHA, BOSQUE, MATA FE-CHADA, cujo interior está de momento vedado e, por isso, se desconhe-ce”. E a conclusão do missionário:

As idéias provenientes da interjeição e dos dois substantivos levari-am a condensá-las no substantivo próprio e por ele a conceber que:SUKU é o que ESTÁ FECHADO ao homem, SER por naturezaIMPENETRÁVEL.E como do criado se atinge o INCRIADO, DEUS é o ESPÍRITODOMINADOR do CORAÇÃO dos BOSQUES, CRIADOR eALIMENTO da VIDA, que o homem sabe que existe mas não vê.Tal como o “suco” em português, para do concreto se atingir oabstracto.Suco, vida das plantas e Deus em bundo Suku, autor dessa vida, nasárvores, no homem e no Universo. (ibidem: 13)

Toda a argumentação vai, pois, no sentido de explicitar, naetimologia do umbundu, vista como reveladora dos estratos mais pro-fundos da “mentalidade indígena”, nos usos e costumes descritos pelos

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provérbios e na atitude dos “bundos” com relação à ideia que têm dadivindade, essa centelha a ser acesa pela missionação para levar os“bundos” à “verdadeira fé”. Nos dois provérbios apresentados acima,salta aos olhos a tentativa de Valente de aproximar a ideia de divindadelocal do deus cristão. Para Valente, esta concepção não era, a despeito deos “indígenas” terem estado “[envolvidos] em tanta feitiçaria” antes da“propagação da Fé” (Valente, 1964a: 12), de modo algum incompatívelcom o projeto missionário, sendo sua compatibilidade, aliás, premissapara que esse projeto fosse realizável. É notável, inclusive, que este pro-vérbio seja utilizado ainda hoje pelos habitantes do Planalto Central, já“completamente cristianizados” na concepção missionária, o que podeser visto como mais uma indicação de que essa aproximação fez sentidopara todos os agentes envolvidos.

Considerando-se o entrave ao projeto catequético e civilizador daIgreja católica e do governo lusitano colocado pela presença dos chama-dos “feiticeiros” e sua importância dentro da organização da sociedadeà qual pertenciam, na qual atuavam – e ainda atuam, em grande medida– como curandeiros e intermediários entre o mundo dos vivos e o mun-do dos mortos, é notável a relativa ausência de provérbios na compila-ção que façam referência a esses personagens. Os dois citados acimaestão entre os poucos que tematizam a existência dos “feiticeiros” e ofazem num momento muito específico da obra: como “Provérbios usu-ais relativos a Deus” (ibidem: 14). É em relação com a concepção dos“bundos” de deus, portanto, que os ovimbanda e olonganga são menciona-dos pelo missionário. Valente afirma que muitos dos provérbios são“próprios” dos “bundos” e outros são “assimilados”, mas não faz distin-ção ao longo da obra a respeito da categoria em que cada provérbio seencaixaria. De qualquer forma, seus comentários apresentam ao leitorou o sucesso da catequização, ou uma inclinação intrínseca para omonoteísmo desde antes da presença missionária, ambas hipóteses fa-voráveis a sua empreitada catequética.

Descontextualizados, os provérbios citados poderiam levar-nos asupor uma contradição no sentido atribuído à relação entre deus (suku)e os “feiticeiros” (ochimbanda e onganga) pelos missionários: no primeiroprovérbio, a categoria do feiticeiro parece ser usada em contraposição adeus, que teria libertado os “bundos”, os quais, a partir de sua incorpo-ração à fé cristã, passariam a repudiar os “feiticeiros”, ao passo que osegundo equipara o onganga a deus. É necessário pensar no contexto deprodução da obra para compreender esse aparente paradoxo, segundo o

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qual um “feiticeiro” poderia ser equiparado a deus e o outro não, sendoque a sobreposição se dá justamente com o “feiticeiro” capaz de exercerum efeito disjuntivo sobre a comunidade.

A tradução realizada pelo missionário para o primeiro provérbiodistancia-se bastante do sentido que a enunciação provavelmente teriapara um falante de umbundu. Isso porque akwechye vem do verbo okwecha

e significa “largar” no sentido de “abandonar”. Uma tradução maisliteral do primeiro provérbio poderia ser “que Deus te largue e os feiti-ceiros se gabem”, ou então “que Deus te largue e os feiticeiros mostremdo que são capazes”. No entanto, a despeito de o sentido conferido aoprovérbio pela tradução do missionário ser diametralmente distante datradução que considero mais literal, o comentário feito pelo autor entreparênteses casa com ambas as traduções, e implica a impotência dosovimbanda perante deus, o qual, segundo a explicação de Valente ao se-gundo provérbio apresentado, “conhece tudo e tudo pode”. De nadaadiantaria, portanto, o conhecimento do ochimbanda se não fosse davontade do deus cristão que a cura ocorresse. Para entender a razão pelaqual o missionário se apropriou da carga semântica do onganga e distan-ciou o deus cristão do ochimbanda é necessário levar em conta o papel decada um desses “feiticeiros” no universo simbólico local.

A figura do ochimbanda está relacionada ao uso que faz de seu po-der com o objetivo de curar males físicos ou psicológicos, remetendo àideia de um curandeiro comprometido com o bem-estar da comunida-de, preocupado com o restabelecimento do equilíbrio social. Uma pos-sível tradução para ochimbanda seria “curandeiro”, pois seu conhecimentocentra-se mais nas questões de interesse da comunidade, como técnicasde adivinhação para descobrir as causas de mortes ou a confecção depreparados a serem ministrados aos doentes. Sua eficácia depende deser consultado: tem de estar presente para efetuar a cura. Já o onganga éuma figura mais ambígua, dotado de poder para praticar a magia nosentido disruptivo do termo, sendo muitas vezes temido por ter a capaci-dade de influenciar o curso dos acontecimentos de forma a provocarefeitos negativos sobre uma determinada pessoa ou todo o grupo, po-dendo fazê-lo inclusive a distância. Vive à margem da sociedade. Grosso

modo, poderíamos traduzir ochimbanda como curandeiro e onganga comofeiticeiro de modo a explicitar essa oposição, embora esses campos se-mânticos por vezes se sobreponham e um ochimbanda seja sempre umonganga em potencial. As próprias traduções dos missionários são ambí-guas a esse respeito.

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Ao se valerem de um vocábulo em umbundu, suku, para explicitara ideia do deus único, onipotente, onisciente e onipresente do cristia-nismo, os missionários abriram espaço para o deslizamento de sentidosque ocorre entre as duas traduções e que possibilitou a indexação doscódigos na prática: enquanto os nomes próprios remetem um significantepuro a um existente singular, sendo no limite intraduzíveis (mas tam-bém inapreensíveis num primeiro momento), os nomes comuns apon-tam para a generalidade de um sentido (Derrida, 1985: 1). A tradução dedeus como suku colocou essa categoria, portanto, na fronteira esfumaçadaque separa a generalidade da unicidade. Paradoxalmente, essa escolhacoloca ao mesmo tempo a possibilidade de “degeneração” da doutrina –corre-se o risco de aproximar a ideia de divindade de algo indesejado nouniverso simbólico dos evangelizandos – e aponta para um horizonte datradutibilidade de uma ideia de divindade com os atributos do deuscristão. Semelhante risco é implicitamente afirmado por Estermannquando se coloca veementemente contra a afirmação de Hambly (1934)de que “não ter[ia] encontrado conceito tão perfeito numa tribo religio-sa como a dos Mbundos do planalto do Huambo. Sob o título “EnteSupremo” diz [Hambly]: Suku é o nome do morto mais importantemencionado pelos Mbundos” (Estermann, 1983: 307).

A etnografia de Berger, embora não mencionada pelos espiritanospor ser publicação tardia em relação a suas obras, também associa aideia de suku à “feitiçaria”, tanto dos ovimbanda quanto dos olonganga.Berger fornece a seguinte definição de suku:

suku: o Grande, o Poderoso: designação em umbundu para deus,visto como criador e protetor monoteísta, senhor sobre a vida e amorte que chama para si os bons conforme seus atos em vida epune os maus em seu fogo, guardado pelo onganga yinene, primeirapessoa má e amigo de tudo que é mau. (Berger, 1979: 344)

Nas narrativas ouvidas dos mais-velhos na década de 1970, compi-ladas e traduzidas do umbundu para o alemão por Berger, suku temdiversos atributos: além de ter criado todos os homens e tudo que haviasobre a terra, tinha o poder de decisão sobre se um casal teria filhos ounão e se estes cresceriam saudáveis. Quando permitia que o filho fossesaudável, mandava-lhe um “espírito” bom. Do contrário, enviava um“espírito” mau do onganga, que não permitiria que o casal tivesse filhos.Suku teria, ainda, dado aos homens uma planta, uti uasuku (árvore de

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deus), a qual “enlaça as outras plantas como a morte enlaça as pessoas”(ibidem: legenda da figura 94) e permite, mediante a força que suku nelainstilou, apaziguar os ânimos do marido traído, uma vez que suku teriacriado a mulher para que tivesse muitos filhos, independentemente decom quem (ibidem: 208). Sua raiz era utilizada em diversos imbanda (plu-ral de umbanda, cuja tradução pelos missionários é “feitiço”) relaciona-dos à fertilidade das mulheres e ao adultério47.

Na narrativa abaixo, percebe-se a imbricação entre o “culto aosancestrais” e a doutrina do céu e do inferno. A punição aos maus éassociada à visita dos “espíritos” dos ancestrais:

Suku possui espíritos para diversos propósitos: aqueles que ajudamas pessoas com as plantas medicinais e aqueles que vigiam as pessoas,delatam-nas e decidem sua punição. (...) Quando suku puniu o pri-meiro espírito em seu fogo, disse-lhe: “Você agora vigiará os mausque vêm a nós! Você irá puni-los no fogo como eu o puni”.Esse primeiro mau foi chamado onganga yinene. Passou então areceber os maus, a puni-los no fogo, no ondalu yongana, e assim setornou seu amigo. Quando um espírito mau era mandado para serpunido no fogo, o onganga chamava um dos espíritos que já haviapassado por isso e enviava-o à família do morto para transmitir oseguinte: “Minha família, providencie-me algo para que eu possapagar o onganga, ele me está punindo terrivelmente!”Quando o espírito traz essa notícia, alguém na família adoece; oadivinho logo descobre a causa do mal.Então, prepara-se uma festa e providencia-se o sacrifício exigido,como ordenado pelo ocimbanda: “Mate um porco e algumas gali-nhas, seus espíritos serão o pagamento do onganga”.Assim todos ajudam para que o espírito de sua família seja dispen-sado de sua pena.Quando um dos espíritos que se encontra ao lado de suku ou doonganga necessita de algo ou está insatisfeito com sua família, retorna.(ibidem: 155-156)

Na narrativa acima, nota-se a associação do onganga ao diabo, bas-tante curiosa se considerarmos que a tradução para “diabo” adotada

47 Entretanto, uti uasuku não é mencionada em momento algum nas listagens dos missioná-rios sobre as plantas utilizadas pelo ochimbanda e pelo onganga em suas curas e “feitiços”(e.g., Valente, 1973: 420).

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pelos espiritanos nos catecismos em umbundu é a umbundização dotermo em português, “elyapu”, e não sua equiparação ao onganga (Lecomte,1937; Alves, 1954). Esse diabo-feiticeiro aparece ainda associado a deus,na medida em que é responsável pela punição dos maus no fogo doinferno. O ochimbanda configura-se como intermediário entre as deman-das dos espíritos, tanto divinos quanto diabólicos: é ele quem descobreo motivo da doença causada pelo “espírito” punido pelo onganga, quecomanda o ritual expiatório no qual se sacrificam os animais e que serásolicitado caso o “espírito” retorne. Não é à toa, pois, que se constituiuuma disputa simbólica entre os missionários e os ovimbanda: ambos seapresentavam socialmente como os intermediários legítimos entre osvivos e os mortos e seus auxiliares na escolha entre suku e o onganga. Écuriosa a narrativa de Estermann sobre essa imbricação:

Os antigos missionários capuchinhos e outros acharam o termo tãoinofensivo que o escolheram para verter o vocábulo português sa-cerdote, acrescentado apenas do determinativo Deus. Assim o sa-cerdote católico era nganga ya Nzambi ou nganga yo missa. Ainda queem nossos dias o grande conhecedor do umbundu que foi o Pe. LeGuennec fez tudo para obrigar a adoptar o termo nos livros deensino religioso desta língua sob a forma de onganga ya Suku. Mas jádisse algures a este propósito que tal vocábulo parece ser lenhobravo de mais para nele se experimentar um enxerto. (Estermann,1983: 346)

Uma afirmação semelhante sobre a proximidade entre o missio-nário e os “feiticeiros” locais é encontrada, com certa displicência, enun-ciada em meio a outras ideias, em Valente:

E quem não vê a analogia de conceitos sagrados, existentes na termi-nologia dos dois vocábulos: pontífice e quimbanda?Pontífice, de pontem facere, estabelecer a ponte, formar a ponte paraproporcionar o encontro daqueles que se encontravam nas duasmargens, Deus e o homem, o homem e Deus, como designativodaquele que está revestido de tal poder ou faculdade.Quimbanda, de ukwa-ku-vanda, pessoa revestida do poder de nivelaraltitudes diferentes, como as que distanciavam os espíritos e o ho-mem, ou o homem e os espíritos, colocando-os frente a frente. (Va-lente, 1973: 405)

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À primeira vista, a equiparação de suku ao onganga seria uma here-sia do ponto de vista do cristianismo. Entretanto, a ideia missionáriaparece ser preservar a verdade da doutrina cristã ao mesmo tempo quetransfere a ela o poder dos olonganga, que justamente em vista daambiguidade mencionada acima são agentes extremamente poderosos.A comensurabilidade entre suku e o onganga baseia-se nocompartilhamento dos atributos de onipotência e onisciência e no te-mor que essas características despertam. Aqui temos um forte exemplode “persuasão pela semelhança” (Monteiro, 2001: 40): do ponto de vistada estratégia missionária, o deus cristão, na tradução, agrega aos seusatributos a familiaridade e o respeito que o onganga evoca no contextoem questão, e sai fortalecido. A reconciliação semântica empreendidaentre deus e o onganga contribuiria para o projeto missionário na medi-da em que diminuiria a resistência dos “indígenas” à evangelização aodiluir o antagonismo entre o onganga e a missão. No que tange à estraté-gia de acomodação das práticas rituais locais, francamente combatidaspelos missionários, nada mais natural do que a existência de um deus-ancestral-feiticeiro, de um suku-onganga, tão distante dos “Ovimbundu”quanto seria esperado de um ser supremo dos brancos, poderoso comoum onganga e fora de seu alcance imediato como um ancestral.

Essas equiparações de categorias prático-cognitivas, feitas ad hoc

no contexto da missão, não só permitiram aos agentes entrar em comu-nicação, como abriram espaço para a ressignificação constante de suaspráticas. O estabelecimento dessa indexação específica, mediada poruma acirrada disputa simbólica expressa na linguagem do “culto aosancestrais” e da “religião cristã”, não prendeu os agentes a uma prescri-ção fixa de crenças e práticas, mas configurou uma convenção de signi-ficação no interior do qual as diversas categorias mencionadas, postas emrelação e mobilizadas em negociações cotidianas, adquiriram sentidosdiversos para os diferentes agentes e criaram as condições de seu convíviocotidiano.

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6.Considerações finais

Para aprender a ler, eu tinha de matar alguém. (...) Algum parentepróximo.(...) Para o nosso povo, saber ler era magia. Para muitos ainda é. Deque outra forma se poderia explicar o fato de que algumas marcasno papel eram capazes de falar com alguém? Simplesmente magia. Aquestão era que ninguém era capaz de ter olhos tão fortes a pontode dominar essa magia por si só. A força dos olhos de alguma outrapessoa era necessária. Para obter essa força, quem quisesse aprendera ler precisava matar algum membro da sua família para que oespírito do morto se juntasse ao seu e somasse seus poderes aosolhos do vivo.Você acreditava nisso?Não. Não quando comecei a aprender. Mas o resto da famíliaacreditava. Meu pai mandou me avisar que minha família haviaouvido dizer que eu estava aprendendo a ler e que meus primosplanejavam me capturar (...) e me mandar para a costa antes que eutivesse chance de matar um deles. (Scott, 1959: 85-89)

Paulino Ngonga Liahuca foi entrevistado por Scott durante suapesquisa para realizar um filme encomendado pelos missionários pro-testantes da United Church of Canada em Angola. Na entrevista daqual o trecho acima foi extraído, Paulino, catequista protestante na dé-cada de 1950, narra como, sendo filho de “feiticeiro” iniciado paraseguir o ofício do pai, decidiu começar a aprender a ler. Segundo suanarrativa, no contexto em que cresceu pressupunha-se que semelhantepoder poderia ser adquirido apenas mediante a morte de alguém próxi-mo, cujos olhos somar-se-iam aos do “feiticeiro”, conferindo-lhe o po-der da leitura. Ao tomar essa decisão, Paulino ter-se-ia dirigido a umamissão protestante e lá ficado. Sua irmã morreu em seguida. O pai, apóscensurá-lo pela morte, recomendou-lhe que não saísse da missão, poiscorria risco de vida. Seus primos pretendiam matá-lo.

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Paulino, falante corrente de português e inglês segundo Scott, esta-va há vários anos na missão quando foi entrevistado. Era o braço direitodos missionários. Seu relato tem um quê da condescendência dos “assi-milados” para com os que consideram sua família de origem, mas lhesão distantes. Agentes deste tipo colocam em xeque abordagens da mis-são como encontro ou disputa entre cosmologias, entre distintas formasde ver o mundo. Como dar conta de tais agentes sem considerá-los“assimilados”, cobrar-lhes uma postura de “resistência” ou atribuir-lhesuma tomada de decisão utilitária?

Minha tentativa, ao procurar constituir agentes e suas relações, foibuscar um lugar de análise que olhasse para a interação e não para osagentes em si. Esta escolha levou-me, necessariamente, a abrir mão deapreender o “ponto de vista do nativo”, pois o “nativo”, quando se olhapara a relação, esvai-se por entre os dedos. O que se encontram sãoagentes distintos, elementos que os aproximam e distanciam. Os “indí-genas” existem aos olhos dos missionários quando produzem catecis-mos e compilam provérbios. Existem para o governo colonial nas leispara “indígenas”. Entretanto, embora a análise não pretenda designarquem é mais ou menos “indígena”, os agentes para os quais ela se voltao fazem. É nessa medida que ganha relevância a relação dos agentescom os que viam como iguais ou diferentes.

No relato acima, a narrativa do catequista, em inglês, registradapor Scott em seu diário de viagem, traz a “feitiçaria” como explicaçãopara a relutância dos familiares de Paulino em aceitar que aprendesse aler. A despeito do tom novelístico, uma vez mais nos deparamos com oelemento que se afigurou, ao longo da pesquisa, como central na comu-nicação entre os agentes na missão: a associação da “feitiçaria”, comoquerem Scott e Paulino, no contexto protestante, ou do “culto aos ances-trais”, como quiseram Estermann e Valente, no contexto católico, aouniverso do cristianismo. A interação entre diversas formas de escritu-ra48 – a escrita, os rituais “católicos” e as práticas “pagãs” – configuroua convenção de significação que permitiu a relação entre os agentes.Nesse processo, os elementos simbólicos escolhidos para compor essaconvenção não foram predestinados pela “embocadura” da cosmologiade uns e outros, mas definidos ad hoc, segundo a lógica da prática. Docontrário, não haveria espaço na teoria para agentes do tipo de Paulino

48 Emprego aqui o conceito de escritura como proposto por Derrida (1973).

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a não ser que se lhes atribua o status de esquizofrênicos, de sujeitosdilacerados pelas mazelas do colonialismo.

Uma última inquietação, para concluir com o próprio desassosse-go que motivou esta pesquisa. Acompanhou-me, como pano de fundoda reflexão, uma comparação entre as obras “etnográficas” e “antropo-lógicas” de missionários e antropólogos. A antropologia, assim como asmissões, autoatribuiu-se a incumbência de compreender a alteridade,embora com objetivos distintos. Não obstante ser indubitavelmente le-gítimo contrapor a história do intervencionismo missionário à procla-mada intenção das pesquisas antropológicas de compreender o “outro”prescindindo de modificá-lo, o que dizer, por exemplo, de obras de an-tropólogos que se assemelham na forma e no conteúdo às obras demissionários? Surpreendeu-me colocar, lado a lado, a coletânea de pro-vérbios em umbundu de Valente (1973) e de provérbios em rendille deSchlee e Sahado (2003) e constatar convergências patentes. Embora aobra de Valente seja produto de uma compilação realizada durante operíodo em que o missionário atuou em Angola, da década de 1930 àdécada de 1960, e a obra de Schlee e Sahado seja o empreendimentoconjunto de um antropólogo alemão e um “Rendille” no século XXI,guardam semelhanças surpreendentes.

Do ponto de vista da forma da compilação, ambas apresentamprovérbios em vernáculo (umbundu ou rendille), seguidos de traduçãopara o português na obra de Valente e para o inglês na obra de Schlee eSahado. Sem dúvida, a obra do século XXI tem um refinamento doponto de vista da linguística que não se encontra na obra do missioná-rio. O mais notável, entretanto, são as comparações estabelecidas comprovérbios de outros contextos culturais. Se Valente valia-se de provérbi-os em português e latim, a compilação de Schlee e Sahado esforça-se porlistar “provérbios similares em outras línguas” – inglês, francês, latim,variantes do alemão. Schlee e Sahado vão mais a fundo no intuito defazer ver ao leitor a distância que há entre as culturas, fornecendo des-crições etnográficas mais metódicas e detalhadas que as do missionário.Entretanto, a necessidade de construir a ponte entre a unidade e a diver-sidade, a particularidade e a universalidade, permanece. O que há emcomum entre os pressupostos do olhar missionário e antropológico emobras desse tipo é que ambos, ao olharem para esses “outros” como“outros”, colocam-se a necessidade de dar conta daquilo que percebemcomo a medida em que esses “outros” seriam “os mesmos”. Não podem,assim, prescindir de fornecer uma solução àquilo que pode ser, em gra-

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dientes distintos, uma pequena distância ou um abismo entre a particu-laridade e a universalidade.

Colocar outra pergunta traria a possibilidade de buscar outrasrespostas.

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