erik l'homme - o livro das estrelas i - qadehar o feiticeiro

Upload: thiago-almeida

Post on 15-Jul-2015

178 views

Category:

Documents


3 download

TRANSCRIPT

Erik LHomme

O Livro das estrelasI. Qadehar, o FeiticeiroTraduo Angela Melim

ROCCOJOVENS LEITORES

Ttulo original: LE LIVRE DES TOILES I. Qadehar le Sorcier ilustraes do carn JEAN-PHILIPPE CHABOT mapas concebidos por VINCENT BRUNOT ilustraes de capa PHILIPPE MUNCH e JAMES PRUNIER Printed in Brazil/Impresso no Brasil 2003 preparao de originais Maria Angela Villela CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. L659p LHomme, Erik, 1967I. Qadehar, o feiticeiro/Erik LHomme; traduo de Angela Melim; [ilustraes: Jean-Philippe Chabot, Philippe Munch e James Prunier; mapas concebidos por Vincent Brunot]. Rio de Janeiro: Rocco, 2003 il., mapas; . (O livro das estrelas) Traduo de: Le livre des toiles: i. Qadehar le sorcier Jovens Leitores ISBN 85-3251573-8 1. Literatura infanto-juvenil. I. Melim, Angela. II. Chabot, Jean-Philippe, 1966-. III. Munch. Philippe, 1959-. IV. Prunier, James,

1959-. I. Ttulo. II. Srie. 03-1030 CDD-028.5 CDU-087.5

A Jean-Philippe, meu Mestre Feiticeiro Aos amigos que ficaram no Pas de Ys...

1CONFUSESA campainha anunciando o fim das aulas ainda no tinha parado de tocar. Guillemot de Trol enfiou-se por entre os outros alunos, que andavam apressados pelos corredores do colgio. Era incio do ms de abril, mas j fazia tempo bom e todos tinham um s desejo: ir praia se divertir, tomar banho de mar, se a gua estivesse quente o bastante, e relaxar depois de um longo dia de estudo. Guillemot, porm, no ia com pressa pelos mesmos motivos... Para ele, era vital estar entre os primeiros a chegar ao ptio para alcanar gata de Balangru e seu bando nas ruelas de Dashtikazar! Andem, andem, saiam da frente, deixem-me passar repetia o menino, abrindo passagem atravs da multido ruidosa de colegiais. Atrs de si, ouviu algum dizer: J o estou vendo! Est perto da porta! Nem precisou virar-se. Tinha reconhecido a voz de Toms de Kandarisar, o tenente de gata. Aquilo duplicou seu ardor. Aproximava-se por fim da sada,

quando, em seus esforos para ultrapassar a todos, deu um empurro num grande, do terceiro ano. Ol, magrelo! Est atrs de mim, ? Eu... No, no, claro que no murmurou Guillemot. S estou querendo sair... Lanava olhares aflitos por sobre os ombros. O sujeito o segurava com fora. Viu gata, seguida dos amigos, aproximar-se com expresso triunfante. Era uma menina alta, magra, com os cabelos escuros cortados curtos, cujos olhos negros brilhavam, maldosos, por cima da boca, grande demais. Deixe, Marco ela ordenou. assunto nosso. Marco, interpelado, hesitou. Depois soltou o jovem e afastou-se, dando de ombros. O bando de gata, que estava, como Guillemot, na quinta srie, era famoso em todo o estabelecimento, at mesmo entre os maiores. gata encarou o fugitivo. Guillemot, rosto vermelho debaixo da cabeleira castanha, a desafiava com o olhar. Oh, mas nosso bravo est com cara de raiva ela disse, num tom debochado, que provocou o riso dos seguidores, agrupados perto da porta.

Deixe-me em paz! Jamais lhe darei meu medalho gritou Guillemot, fechando os punhos. Isso vamos ver respondeu friamente gata, que fez um sinal explcito a um dos meninos do bando, ruivo e rechonchudo. Este caiu sobre Guillemot e, ao cabo de breve luta, o imobilizou com uma chave de brao. Solte-me, Toms, ou vai se arrepender sussurrou Guillemot, com dificuldade, no ouvido do adversrio, que s fez gargalhar. Com ares de rainha cruel, gata se aproximou e procurou no pescoo da vtima o pequeno sol de ouro, pendurado no cordo fino do mesmo metal. Apoderou-se dele e o colocou em torno do prprio pescoo. Voc no tem o direito... gemeu o infeliz Guillemot, que continuava rendido pelo menino ruivo. Foi meu pai quem me deu. Seu pai? Pensei que no tivesse conhecido seu pai disse ela aproximando o rosto do dele e que ele tivesse se tornado Desistente por sua causa! Com o golpe, Guillemot quase se desmanchou em lgrimas. Mas, impedido pelo orgulho, apenas abaixou a cabea. Foi

esse o momento que o diretor escolheu para aparecer. A sala do diretor no ficava longe, de modo que tinha ouvido gritos no habituais quela hora. Vamos, crianas, o que est acontecendo aqui? perguntou, com a voz aborrecida, aquele homem, que a gordura tinha vencido com a idade. Nada... Nada, senhor diretor respondeu gata, exibindo um grande sorriso. Guillemot de Trol estava nos contando uma histria... uma histria apaixonante! No verdade? Os outros concordaram, ruidosamente. O diretor se voltou para Guillemot. Uma histria, meu rapaz, uma histria fez uma cara interrogativa. Bem, no hora nem lugar acrescentou, bruscamente. Vamos, sumam! No quero mais v-los at amanh de manh! No, Guillemot, voc fica. O bando de gata deixou o corredor lanando ao menino olhares ameaadores. E ento, meu pequeno, esto aborrecendo-o? Quer me dizer alguma coisa? No, absolutamente nada, senhor diretor. Garanto ao senhor! Posso ir agora? O homem observou um instante o menino, que tremia ligeiramente, os olhos vagos, depois deu de ombros tambm.

Sim, v, suma! Guillemot se precipitou para fora do colgio; meteu-se pela rua sem parar de correr enquanto no atingiu as primeiras colinas que dominavam a cidade. Jogou a bolsa ao p de um menir partido por um raio, sentou-se no cho e, fixando o oceano que cintilava mais embaixo, deu livre curso sua dor. Guillemot tinha feito doze anos no equincio do outono. Era um menino forte e resistente, apesar da aparncia frgil. No era muito alto para a idade, coisa que o aborrecia, sobretudo por no conseguir se defender como queria daqueles que sentiam um prazer maligno em atorment-lo. Seus problemas com gata tinham comeado desde a volta s aulas. No porque fosse bom aluno alvo preferido dos preguiosos ferrabrases , suas notas ficavam na mdia; mas porque tinha cometido a imprudncia de ir em socorro de um pequeno da sexta srie que o bando de gata aterrorizava. Depois disso, tornou-se seu bode expiatrio favorito. No tinha culpa se estava sempre metido em situaes desagradveis! Ser que um dia seria capaz de controlar esse reflexo idiota que, apesar da timidez, sempre o levava a se meter onde no devia?

Guillemot empurrou a mecha de cabelo que lhe caa pela testa. Seus cabelos, sempre em guerra, em parte escondiam as orelhas de abano e comiam o rosto fino e sonhador, iluminado por olhos verdes claros e uma boca que gostava de sorrir. Quer dizer, de um modo geral, pois naquele momento em particular, Guillemot no sentia vontade alguma de sorrir... Apanhando uma pedra, de raiva, jogoua na estrada. Por acaso era culpa dele o pai ter resolvido, pouco antes de seu nascimento, abandonar o Pas de Ys para viver na Frana, transformando-se, assim, num Desistente, e condenando-o a jamais conhec-lo? E gata, que acabava de lhe tirar o precioso pingente, a nica herana que aquele homem tinha deixado sua me! Que os Korrigs a carreguem e a faam danar at o fim dos tempos! amaldioou. Respirou fundo o odor de iodo que uma brisa trazia do mar. Porque tinha um temperamento voluntarioso e sobretudo porque gata ficaria felicssima de saber que estava sofrendo, esforou-se para esquecer os dissabores. Seu olhar perdeu-se nos telhados de ardsia cinza clara das casas de

Dashtikazar, umas apoiadas nas outras, os quatro ou cinco andares dominando as ruas estreitas e sinuosas. A cidade de granito claro tinha festejado seus mil anos no ano passado. A altiva Dashtikazar... Como ele amava aquela cidade cheia de surpresas, deitada de encontro montanha e aberta ao mar! Era a capital, o corao pulsante, o orgulho do Pas de Ys! O Pas de Ys, conforme Guillemot aprendeu nas aulas de histria e geografia, tinha feito parte, oito sculos antes, do litoral francs. Tinha se desligado do continente durante uma terrvel tempestade. Depois de ficar deriva no oceano, levado por ventos contrrios, Ys voltou s terras, onde retomou seu lugar. Mas, um lugar particular: pois o pas, transformado em ilha, no figurava nos mapas, e os habitantes da Frana ignoravam a sua existncia. Ys ancorou num ponto qualquer entre o Mundo Certo, ao qual tinha pertencido anteriormente, e o Mundo Incerto, estranho e fantstico. Uma porta permitia que se reunisse ao primeiro, e outra, ao segundo. As duas portas tinham sentido nico, a no ser, de tempos em tempos, quando o Conselho da Prefeitura achava que estavam faltando em Ys produtos essenciais como Nutella ou rolos de filmes recentes! Essa

precauo era o nico meio de preservar Ys dos dois outros mundos. Do Mundo Incerto se conhecia muito pouco apenas que era vasto e que evocava perigos. J com o Mundo Certo, era diferente! No Pas de Ys se captavam e filtravam programas de rdio e televiso franceses, e o calendrio escolar era, salvo alguns detalhes, o do Hexgono. Alm disso, entre os dirigentes franceses, certos iniciados conheciam a existncia do Pas de Ys: em determinados documentos secretos, este figurava com o nome de nonagsimo stimo departamento metropolitano. Era por intermdio dessas pessoas que os habitantes de Ys, que desejassem morar em outros lugares e de um outro modo, conseguiam, em confiana, os papis e a ajuda indispensveis para a instalao definitiva na Frana, na Europa ou em outros lugares; essas pessoas eram as Desistentes. Desistiam de Ys para sempre. Outras eram raras! s vezes preferiam tentar a aventura no Mundo Incerto. Na maior parte era gente condenada a ser Errante pena mxima em vigor em Ys , indivduos vidos por riquezas ou atrados pelo desconhecido, ou, ento, simplesmente desesperados. Todos esses se tornavam Errantes.

Os que permaneciam em Ys, por sua vez, viviam numa grande ilha quente no vero e fria no inverno, montanhosa, coberta de florestas densas e de terras imensas, semeadas de pequenas cidades, aldeias e lugarejos, em muitos pontos semelhantes a uma provncia do Mundo Certo! Mas aqui tambm: semelhantes, salvo alguns detalhes. Um rudo de cascos tirou Guillemot de seus sonhos. No caminho, a poucos metros, estava um homem vestido com uma esplndida armadura turquesa, armado com uma espada que pendia do seu lado esquerdo e uma lana de comprimento duas vezes maior que a altura da montaria. O cavalo, cinzento, estava recoberto de malhas finas de ao, que tilintavam a cada movimento. Guillemot se levantou precipitadamente. Est tudo bem, meu garoto? perguntou o cavaleiro com doura. Sim, senhor Cavaleiro, tudo bem, obrigado ele respondeu. No fique zanzando muito tempo noite por estas colinas continuou o homem, acariciando o pescoo do cavalo, que bufava de impacincia. Os Korrigs celebram suas festas esses dias e voc

conhece as voltas que gostam de dar nos homens! Soltando uma gargalhada, o cavaleiro saudou Guillemot e partiu a galope em direo cidade. O menino ficou emocionado: era seu sonho secreto, o desejo mais louco e mais caro, um dia pertencer Confraria dos Cavaleiros do Vento. Esses cavaleiros, sob as ordens de seu Comandante e a vigilncia da Prefeitura de Dashtikazar, velavam pela segurana de Ys e, guiados to-somente por sua conscincia, levavam socorro a todos os necessitados. Obedecendo s recomendaes do Cavaleiro, Guillemot tomou a direo da casa onde morava sozinho com a me, na entrada da cidade de Trol, situada a algumas lguas da capital. Os Korrigs, mesmo no sendo as criaturas mais perigosas de Ys, eram imprevisveis e suas brincadeiras podiam, s vezes, revelarem-se cruis.

UMA

2BOA SURPRESA

Mame, sou eu! Cheguei! Guillemot entrou correndo na cozinha e abriu a geladeira. Tirou a manteiga, que colocou sobre a mesa ao lado do pote de Nutella. Cortou uma bela fatia do po que se encontrava sobre o aparador, fez um grande sanduche e ps-se a devor-lo. As emoes davam fome! Pelo menos tanto como os doze quilmetros que era obrigado a andar a p quando perdia a velha conduo da escola! voc, meu querido? Onde est? Aqui na cozinha! falou Guillemot, de boca cheia. Logo entrou a me, sorrindo. Tinha cintura fina, apertada num vestido preto (desde que se dava por gente, Guillemot a via sempre vestida de preto), os cabelos longos dourados, ligeiramente cacheados, caindo pelas costas, e grandes olhos cor do cu. Alicia era bem uma Trol! Guillemot, de estatura frgil, lembrava mais o pai pelo menos era essa a concluso a que tinha chegado, ningum tendo at o presente (apesar de seus pedidos

freqentes) se dignado a evocar seu pai, a no ser superficialmente. Passou um bom dia? perguntou Alicia de Trol, dando um beijo na testa do filho. No pior que os outros disfarou o rapaz, com voz carinhosa, apanhando a revista de programao da TV que se encontrava sobre uma cadeira. Genial! Tem filme hoje noite! Um grande sorriso iluminou, naquele momento, o rosto de Guillemot. Dona Trol apenas o olhou, com o ar divertido, os braos cruzados. Nada de TV esta noite, Guillemot. Guillemot parou e pulou da cadeira feito mola. Era raro ter filme entre os programas redistribudos pela Comisso Cultural da Prefeitura de Ys, que privilegiava reportagens e documentrios. Sentia-se, portanto, disposto a enfrentar uma daquelas longas disputas que s vezes tinha com a me por causa da televiso! Mas esta cortou suas intenes fazendo um gesto com a mo. Esqueceu? Esta noite aniversrio do seu tio Uriano. Eu sei, eu sei, voc no gosta muito dele, mas toda a famlia vai estar na casa dele. Toda a famlia e... alguns amigos!

Pronunciou as ltimas palavras com entonao de mistrio. Guillemot, que tinha entreaberto a boca, para protestar, ficou imobilizado. Quer dizer que ser necessrio... ...seu primo Romaric, com seu amigo Gontrand, e as gmeas, mbar e Corlia! Romaric e as meninas, alis, devem passar aqui para pegar voc. Voc s precisa esperar por eles. Quanto a mim, tenho que ir na frente, para ajudar meu irmo a receber os convidados. Ternamente, dona Trol ficou um instante olhando o filho, que pulava de alegria na cozinha. Depois saiu, para acabar de se arrumar. Subindo de quatro em quatro os degraus da escada, Guillemot precipitou-se quarto adentro. Com uma olhada lembrou-se de que no o arrumava h pelo menos uma semana. Soltou um suspiro e tentou botar um pouco de ordem. Era sempre no quarto que recebia os amigos, e no iriam para a casa do tio antes de passar ali algum tempo! Fechou o computador porttil que estava sobre um tamborete e o enfiou numa gaveta da escrivaninha, ps nos lugares, nas prateleiras da estante, os livros espalhados pelo tapete, sacudiu a colcha com a qual escondeu o lenol, todo amarrotado... Algum bateu porta de entrada.

Guillemot! Somos ns! Subam! gritou Guillemot, empurrando para baixo do armrio as ltimas roupas que estavam jogadas pelo cho. Uma porta bateu, ouviram-se risos e um tropel: duas meninas e um menino, correndo, tomaram de assalto o quarto. Estou to contente em rev-los! exclamou Guillemot. O aniversrio de tio Uriano este ano vai ser importante, para nos deixarem faltar aula dois dias seguidos! declarou Romaric de Trol, o cabelo louro, o olho azul determinado e a aparncia to robusta quanto era frgil a do primo. Voc no vai reclamar disso, vai? H quanto tempo no nos vemos? perguntou, com um sorriso daqueles cujo segredo guardava e que deixava os rapazes derretidos, Corlia de Krakal, uma radiante morena, de corpo esguio e olhos azul-mar. Desde as frias do Natal respondeu mbar, fixando Guillemot com um olhar insistente, que o fez ruborizar at a raiz dos cabelos. Em tudo parecida com a irm gmea, mbar se distinguia pelo corte de cabelo e o ar bem masculinos. Seu temperamento atraa a desconfiana da maioria dos rapazes, mas ela zombava deles, e at se

divertia! Gostava, particularmente, de implicar com Guillemot. Ele sempre caa; apesar dos esforos para permanecer impassvel s provocaes, toda vez Guillemot sentia o rosto ficar vermelho. mbar era, porm, uma menina leal na amizade, com os olhos sempre ternos, com a qual realmente se podia contar. E Gontrand? perguntou Guillemot, para fugir dos olhos zombeteiros de mbar. Ele no veio? Sim, mas claro! confirmou Romaric. Teve que subir direto para o castelo, para ajudar os parentes a levar os instrumentos. Voc precisava ver o circo que foi quando saram. Parecia que estavam de mudana! Romaric e Gontrand moravam perto um do outro, do outro lado do Pas de Ys, na cidadezinha de Bunic, a dois dias de carro de Trol. mbar e Corlia, um pouco menos longe, na costa leste da ilha, na aldeia de Krakal, onde o pai delas, Utigern, era, ao mesmo tempo, prefeito e Qamdar. Qamdar um chefe de cl. Utigern era, ento, o Qamdar do cl dos Krakal, assim como Uriano, tio de Guillemot e de Romaric, o era do cl dos Trol. Por isso os Krakal tinham sido convidados para a noitada do aniversrio.

Quanto aos pais de Gontrand, eram os maiores msicos de Ys! Como que se poderia no convid-los? Que pena eu ter perdido essa cena! exclamou Guillemot. Gontrand de carregador... Parece que o estou vendo, a reclamar em voz baixa e passar a mo no cabelo! bom para endurecer um pouco esta cotovia! disse mbar, com voz amuada, lanando um olhar negro irm que se olhava, faceira, num vidro da janela. Todos riram ao mesmo tempo. Papai disse que toda a nata de Ys estar nessa festa disse alegremente Corlia, juntando-se aos outros, j estendidos por sobre o grosso tapete de pele de cabra. E no s os aliados do cl dos Trol acrescentou mbar. Uriano tambm mandou convite s famlias inimigas. Parece que quer tentar acalmar as tenses. Famlias inimigas? Como os Balangru e os Kandarisar? perguntou Guillemot, cujo rosto voltou a enrubescer. No me diga que aquela suja da gata e aquele dejeto do Toms continuam perseguindo voc? disse Romaric, preocupado. Meu Deus! Se eu estivesse no seu lugar, s fariam uma vez! Eu os faria sentir o gosto de bater nos mais fracos!

Romaric mordeu o lbio, imediatamente arrependido das prprias palavras. Guillemot sorriu tristemente. Seja como for continuou Romaric com a firme inteno de consertar seu mau jeito , esta noite voc no estar sozinho! Eles que tentem se ver com o nosso cl! Mal ele tinha terminado de falar, mbar soltou um brado de guerra, levantando-se de um salto, e improvisou uma dana dos ndios. Com um rugido, Romaric a acompanhou. Que venham, gata Esqueleto e Toms, a Doninha! Que venham medir-se com Romaric dos msculos de ao, Gontrand, o Astuto, Fada Corlia, mbar Sem Piedade e Guillemot, o Cavaleiro! Corlia aplaudiu o espetculo, depois anunciou, com os olhos brilhantes: Estou louca para chegar no baile! Tambm adoro danar! Adora, acima de tudo, ver os idiotas se empurrando para convidar voc para danar especificou mbar, com desprezo calculado. Espero que l tenha Cavaleiros... de verdade! Por mim falou Romaric, por sua vez basta o buf. Santa cozinha a do tio! E voc, Guillemot? Eu? suspirou Guillemot, que no pde deixar de pensar no medalho e que

no tinha predileo particular por ir casa do tio. Eu preferia que ficssemos aqui, s ns, longe de gata e do seu bando. Mas reaja, homem! Estamos em terra Trol. ela quem deve se sentir mal falou mbar, sacudindo-o delicadamente pelo ombro. E pare um pouco de pensar nessa gata. Existem outras meninas, no? Lanando-lhe outro olhar com o efeito de faz-lo enrubescer mais uma vez, provocou uma risadaria doida entre os outros. J vai dar a hora anunciou Romaric, consultando o relgio. Se chego atrasado, quem dana na festa sou eu, no o tio Uriano... Oh, coitadinho! zombou Corlia. Papai vai brigar! ironizou mbar, dando nele uns soquinhos delicados. Parem, no tem graa... defendeu-se Romaric, jogando um travesseiro na mais prxima das atacantes. Coisa que jamais se deve fazer quando se est sozinho contra trs e existem outros travesseiros no quarto! Meio sufocado pelos outros, o menino logo pediu clemncia.

UMA

3SURRA BEM MERECIDA

A residncia de Uriano de Trol erguia-se por sobre o vilarejo. Era uma edificao de dois andares, ladeada por duas torres quadradas e protegida por uma espessa muralha talhada em pedra, como todas as construes da regio, evocando mais um austero castelo da Idade Mdia que um palcio destinado a recepes. No ia to longe o tempo quando eram freqentes os conflitos entre os principais cls do Pas de Ys! Vamos depressa sussurrou Romaric, frente do pequeno grupo que seguia apressado em direo fortaleza dos Trol. Calma, Romaric falou Guillemot. Olhe, ainda tem gente chegando. Encontravam-se os quatro no ptio pavimentado, onde carros puxados por animais deixavam os convidados, em trajes de festa. No se usava carro a motor em Ys. Alis, nada que fosse poluente era permitido. A eletricidade era produzida pelas grandes elicas da Terra da Tormenta e,

para as necessidades da casa, por discretas placas solares. O aquecimento ou era a lenha ou tirado do solo, por meio de um engenhoso sistema de captadores. Por onde andavam? resmungou o homem de cabelos brancos que recebia os convidados entrada. O senhor de Trol j mandou perguntar por vocs.

Boa-noite, Valentim disse mbar, com um sorriso. Fomos retidos pelos Korrigs, que nos fizeram danar! Monstros! o porteiro se fez de zangado. Boa-noite, Valentim disse Corlia, abraando-o. Boa-noite, Valentim disseram, por sua vez, Romaric e Guillemot, fingindo que lutavam boxe com ele. Encontram-se todos no salo anunciou Valentim. Est quase na hora do discurso do barbeiro! Eles riram da impertinncia. Valentim era bem mais que um porteiro; era tambm almoxarife, mordomo, administrador e homem de confiana de Uriano de Trol, tendo-o acompanhado em todas as aventuras. Apressados por ele, entraram. Seguindo um longo corredor, desembocaram num cmodo amplo, aquecido por uma grande lareira, ruidoso de gente. Oh, no gemeu Guillemot. Ela j chegou. Onde? perguntou Corlia, lanando olhares curiosos em volta. Perto do papai, na direo do buf apontou mbar, com o queixo. Ser que ela est achando que Carnaval?

gata de Balangru, maquiada para matar, tambm reparou neles e fez um pequeno sinal provocador. Deixe para l, Guillemot suspirou Romaric. melhor irmos tirar Gontrand das garras do nosso tio. O pequeno grupo se dirigiu a um gigante de barba grisalha desordenada, que falava alto e por qualquer coisa soltava gargalhadas tonitruantes. A seu lado se encontravam diversas pessoas, entre as quais um menino, que parecia muito entediado. Era Gontrand de Grum, facilmente reconhecvel, devido altura e aos cabelos negros, cuidadosamente penteados. Ha! Ha! berrou Uriano de Trol. A est, afinal, a descendncia dos Trol! Acompanhada de seus amigos fiis, meu tio respondeu Romaric, que foi agarrado pelo colosso. Romaric jamais tinha ficado impressionado por seus grandes ares. Eis aqui mbar e Corlia de Krakal ele disse. Minhas belezas! exclamou Uriano, quase esmagando as gmeas nos braos. inacreditvel que aquele safado do Utigern tenha feito coisas assim to bonitas! Depois virou-se para Gontrand, cujo rosto iluminou-se com a chegada do bando.

Estou feliz por t-lo conhecido, jovem Grum. Espero que seja to talentoso quanto os seus pais declarou, triturando-lhe as costas. Despachou-os gentilmente depois de soltar uma enorme gargalhada e gratificar Guillemot com um simples tapa na bochecha, retomando a discusso que tinha interrompido. Os dois primos se esquivaram, seguidos dos outros trs, em direo chamin. Algum pode me dizer se ainda tenho costas do lado direito? disse Gontrand, fingindo cara de choro. Que homem! extasiou-se Corlia. , sou eu, escrito e escarrado... ironizou Guillemot, que nunca sabia se devia se alegrar ou entristecer com a frieza com que o tio sempre o tratara. Seja como for, vocs demoraram para chegar! queixou-se Gontrand. Carregar a harpa da minha me, mesmo pesando uma tonelada, tudo bem, mas suportar os sopapos do tio de vocs, desumano! No reclame retorquiu Romaric. Tem gente que pagaria para ser apresentada a Uriano de Trol. E at para levar tapa nas costas! acrescentou Guillemot.

Romaric apertou contra si o primo, com certa brutalidade, contente de o ver voltar, com sua ironia, a um pouco de bom humor. Tocante, muito tocante esta cena familiar! de repente ouviram algum dizer atrs deles. Voltaram-se bruscamente. Ali na frente encontraram gata e o inseparvel tenente, mais vermelho e volumoso que nunca, Toms de Kandarisar. Que pena prosseguiu ela que um homem como Uriano tenha que escolher, para suced-lo, entre um aborto da natureza e um bruto estpido. Com um rugido, Romaric se lanou para cima dela, mas foi interceptado por Toms. Como os dois tinham a mesma fora, a luta foi breve. Vamos, Romaric, vamos continuou gata, balanando a cabea, com um sorriso malicioso. Bater numa menina! Voc, que ambiciona um dia tornar-se Cavaleiro! Eu tambm sou menina resmungou subitamente mbar. E a, o que voc poder dizer disso? Sem que ningum tivesse tempo de reagir, mbar se deslocou, com rapidez surpreendente, e deu um sopapo na menina alta, que ficou paralisada de espanto. Foi esse o momento que Uriano de Trol escolheu para pedir ateno e silncio.

Voc me paga! sibilou gata, apontando o dedo para mbar, que tinha cruzado os braos e exibia um ar satisfeito. Quanto a vocs... No terminou a frase. Dando uma virada brusca, seguida de um Toms desolado, reuniu-se ao crculo de sua famlia, junto ao buf. Minha irm, voc no sabe se vestir, mas para socar, a maioral! reconheceu Corlia, sussurrando. Estou me perguntando se no devamos compor um poema para celebrar esse grande feito murmurou maliciosamente Gontrand a Romaric, enquanto mbar saboreava tranqilamente a vitria. Obrigado. Foi tudo o que Guillemot disse amiga. Seja como for, com vocs nunca nos entediamos! Que bom rev-los! falou Gontrand, feliz da vida, para os amigos. Depois que Uriano de Trol agradeceu aos convidados por terem comparecido, pregou a necessidade de viverem todos em paz uns com os outros e recebeu as felicitaes de praxe por sua boa aparncia, proximidade dos sessenta anos. Todos foram convidados a beber, comer e se divertir. Os msicos da aldeia puseram-se a

tocar cantigas alegres, e as conversas foram retomadas com ainda mais empenho. Guillemot tinha se aproximado do buf com o pequeno grupo. Procurando a me com os olhos, viu o gigante do tio na companhia de um homem em quem no tinha reparado antes. E esse homem o intrigou. Para comear, usava a capa comprida e escura dos Magos e Feiticeiros da Guilda, aquela instituio antiqssima que velava, num nvel mgico, pela segurana do Pas de Ys, assim como a Confraria dos Cavaleiros o fazia no nvel prtico. Era raro se cruzar com um Feiticeiro fora dos monastrios em que viviam, em retiro! Mas havia outra coisa: lhe pareceu que aquele homem o observava... Ei, Guillemot, est sonhando? perguntou-lhe Romaric, puxando-o pela manga. No vai sobrar nada! Ande, d uma mordida neste bolinho! E prove um pouco desta cerveja com mel, est uma delcia! Desviando-se do objeto de sua curiosidade, Guillemot se esforou para fazer honra ao banquete. Como gostaria de se parecer com o primo! Tudo parecia fcil quando estava com ele. No havia dvida alguma de que Romaric um dia entraria para a Confraria dos Cavaleiros, sonho de ambos, desde que tinham nascido, ou quase!

Enquanto que ele, Guillemot... Apesar de sua aparncia frgil, sabia que no era particularmente fraco; mas tambm no era particularmente forte. E era mais ou menos assim em tudo o mais: bom na escola, mas no brilhante; bom msico, mas no bemdotado; bom camarada, mas nem sempre muito engraado. s vezes ficava se perguntando o que que os outros achavam dele, como que podiam apreciar sua companhia! Como se admirar, nessas condies, de que o tio Uriano sempre tenha preferido Romaric? Apesar de sua me o condenar por pensar assim, sabia que nunca tinha sido bem-vindo casa dos Trol. Sentia-se minsculo, de repente. Talvez devesse, para encontrar afinal seu lugar na maioridade, seguir os passos do pai e, apesar do sofrimento que a me teria, tornar-se Desistente. Um burburinho anunciou que alguma coisa estava por acontecer. Vieram uns homens encostar as mesas s paredes e trouxeram de beber em quantidade. No fundo, Valentim subiu numa cadeira e, com as mos em concha, anunciou: Damas, cavalheiros, o baile! Romaric soltou um suspiro. J Corlia, explodiu de alegria.

UM

4FIM DE NOITE MOVIMENTADO

Como mbar havia previsto, uma dezena de meninos, na maior parte adolescentes vindos das melhores famlias de Ys, logo foi fazer a corte a Corlia, que se divertia, classificando-os de acordo com os talentos de bailarinos. No demorou e estava a dar viravoltas nos braos de um rapaz vaidoso como um pavo. Sobre o cho lajeado do salo, uma dezena de casais danava num ritmo endiabrado. Odeio dana! disse Romaric aos amigos, que observavam as evolues dos danarinos. Voc diz isso porque se recusa a aprender falou Gontrand. Eu gosto muito. O nico problema que atraio as feiosas! Como se para lhe dar razo, uma menina que se encaixava perfeitamente nessa definio veio pedir-lhe que fosse seu par na prxima contradana. Gontrand deixou-os, colocando as mos em volta do pescoo, para imitar algum sendo enforcado. A tradio exigia que os meninos

que sabiam danar no recusassem o convite de uma menina. No me convida para danar, Guillemot? perguntou mbar, com um sorriso maldoso. Hein? Sim, sim, claro respondeu o menino, que teria mil vezes preferido ficar com o primo, falando de cavalaria. Estendeu o brao e guiou mbar para o meio do salo. Instantes depois, tendo se reunido ao crculo dos danarinos, dava saltos, do lado da parceira. B! soltou Romaric, falando sozinho e voltando-se para o buf, onde serviu-se de um grande copo de corma, a cerveja tradicional de Ys, qual se acrescentava mel. Ele no sabia danar, mas no era necessrio saber danar para ser Cavaleiro! Bastava ser resistente, hbil nas armas e corajoso. Deu de ombros, chamando-se de imbecil. Est certo, no tinha clima para isso, seus pais no danavam diante dele todas as noites, como os de Gontrand; sua me nunca o obrigou a ter aulas, como a de Guillemot! Por isso... Ser que as festas no ficariam menos entediantes se tentasse? Se tivesse coragem? Principalmente porque as danas de Ys nada tinham a ver com as do Mundo Certo, que apareciam na televiso: aqui se danava todo mundo junto, e havia

sempre algum para lhe ensinar os passos e ningum zombava de voc, caso no fosse jeitoso. As pessoas riam, divertiam-se eram sempre bons momentos. Ao terminar a cerveja do copo, o menino tomou uma deciso: era tempo de reagir! Valentim subiu outra vez na cadeira, chamando a ateno dos convidados. Senhoras e senhores, um intervalo musical! Os danarinos, abanando-se, vieram matar a sede, enquanto os pais de Gontrand armavam os instrumentos musicais um pequeno rgo e uma grande harpa sobre o estrado da orquestra. Depois, comearam a tocar. Sua msica era uma delcia. Todo mundo permaneceu bom tempo sob seu encanto depois que soou a ltima nota. Uma avalanche de palmas saudou a apresentao do casal de Grum e vozes se ergueram, reclamando mais. Sorridente, a senhora de Grum se levantou e cumprimentou a platia. Mil vezes obrigada pelo calor da receptividade! Infelizmente, como vocs todos sabem, a tradio requer que no toquemos mais de uma pea no decorrer da noite... Os protestos aumentaram. A senhora de Grum levantou as mos, pedindo calma.

Um outro membro da famlia, porm, ainda no tocou esta noite. Ser ele, portanto, quem atender amvel expectativa de vocs. Peo que acolham com indulgncia o nosso filho, Gontrand! Guillemot deu uma cotovelada em Gontrand, pasmo com o anncio da me. Nunca tinha sido convidado a tocar oficialmente em pblico! V, Gontrand sussurrou-lhe o amigo , hora de mostrar a eles o seu valor! Mas e se eu no me der bem? gemeu Gontrand, hesitando em juntar-se aos pais, que o encorajavam a subir no palco. Coragem! sussurrou-lhe Romaric. H momentos em que no se pode fugir: so a hora da verdade... acho que este um deles! Obrigado pela presso disse ainda o menino, que, debaixo de aplausos, avanou num andar hesitante em direo aos msicos. A me lhe sorriu quando ele subiu no estrado, o pai lhe estendeu uma citara bojuda, que ele adorava tocar. Obrigado pelo presente! disse Gontrand, fazendo careta. Achamos que voc capaz, querido respondeu sua me.

E, acima de tudo acrescentou o pai, srio , j tempo de passar por essa prova. Gontrand respirou fundo. Percebeu, no final do salo, Guillemot, mbar, Corlia e Romaric, fazendo gestos grandiosos de estmulo. Prova? Est certo! Ento vo ver quer dizer, vo ouvir!, disse a si mesmo. Damas, cavalheiros anunciou, em voz alta, depois de limpar a garganta , esta noite no vou tocar uma ria do repertrio clssico, mas uma cano composta por mim. Murmrios de assombro percorreram a platia. Fazia anos que msico algum tinha a audcia de propor uma criao sua, tanto era a gente de Ys famosa por sua dureza em relao a novidades. O silncio, at ali circunstancial, transformou-se em expectativa curiosa. Gontrand comeou a tocar. A msica era agradvel, tinha suas audcias. O arrebatamento impaciente substitua bastante bem a falta de experincia. Depois, o menino se ps a cantar. A doura de sua voz, aliada s queixas ingnuas dos versos que evocavam as belezas de sua cidade Bunic , conquistou os ouvintes. At o Feiticeiro da Guilda sorria, com a cabea inclinada, observando. Um grande

aplauso saudou sua apresentao, e o pai, emocionado e feliz, o abraou. Bravo, Gontrand! gritou Romaric quando o amigo conseguiu desvencilhar-se da me, corada de orgulho, e de Uriano de Trol, que o foi felicitar. Ai, no pude dar o melhor de mim respondeu Gontrand, com uma expresso de falsa modstia, alisando o cabelo. E o que lhe impediu? perguntou Corlia, curiosa. Um bando de idiotas que gesticulava no fundo, para me desconcentrar ironizou o menino. O bando o bombardeou com bolinhas de miolo de po. Vocs observaram o Feiticeiro enquanto Gontrand tocava? perguntou Guillemot aos outros. No responderam, surpresos. O que foi que ele fez? Bem, nada... foi s o que Guillemot encontrou para dizer. S parecia estar apreciando. E desde quando voc se interessa por feiticeiros? alfinetou-o mbar, que viu a um terreno favorvel para implicar com ele. Desde... Nunca. No tenho interesse particular por feiticeiros! Enfim...

Deixe para l esse pessoal que usa capa socorreu-o Romaria Em vez disso, vamos danar! acrescentou, diante dos outros, que no acreditavam no que estavam ouvindo. verdade, a msica recomeou, ora! Mas ento, pra j falou Corlia, tomando a iniciativa. Quero ser a parceira do grande evento! Foram os dois para a pista, onde ela tentou ensinar-lhe o passo de uma bourre. Um pouco mais tarde, Romaric voltou, sozinho. Parece que no me sa to mal sussurrou. Mas no tive sorte. A bourre uma dana difcil! prosseguiu mbar minha irm abandonou voc em troca de um bonito mais bem-dotado! Psiu! Calem a boca! interrompeu Guillemot. Olhem, vai ter problema perto da lareira. Com efeito, dois homens tinham se colocado parte, insultavam-se e logo comearam a brigar. papai exclamou mbar, estupefata. Com o pai da gata! acrescentou Gontrand, consternado. A briga recrudesceu. Uriano de Trol, com a ajuda de Valentim e mais alguns

homens, em vo tentava separ-los. Ouviase, em meio ao alarido causado pelo enfrentamento, a voz forte do senhor de Trol gritando: Senhores! Senhores!, sem surtir efeito. De repente os dois homens sacaram as espadas e se encararam. mbar empalideceu e mordeu o lbio. Foi ento que o homem da capa escura, o Feiticeiro da Guilda, interveio, erguendo os braos e pronunciando algumas palavras numa voz sibilina. Logo, logo, as duas espadas caam no p. O Feiticeiro se voltou em seguida para os convidados, estupefatos, e se dirigiu ao salo: Povo de Ys! Vocs nada aprenderam com os malfeitos da Treva? O Pas de Ys um pas frgil, ao qual no faltam inimigos. Mais do que nunca necessrio viver unidos, ao invs de divididos, e esquecer nossas pequenas disputas! O ardor belicoso dos combatentes desapareceu ao mesmo tempo que as espadas, deixando os senhores de Krakal e de Balangru embaraados, no meio do crculo que se tinha formado em torno deles. O incidente est terminado! disse Uriano de Trol em altura tonitruante. Que as danas recomecem! Foi preciso um tempo para que o clima de festa se restaurasse, cada um a

comentar com animao a interveno do Feiticeiro, que tinha ousado, aparentemente sem qualquer dificuldade, evocar a Treva, aquela criatura misteriosa e aterradora que, por diversas vezes, vinda do Mundo Incerto, trouxera desgraa ao Pas de Ys... O cl Balangru deixou precipitadamente o salo e, em seguida, o castelo. mbar e Corlia se jogaram nos braos do pai, que tentava confortar a todos, minimizando o objeto do conflito e usando como pretexto o efeito da bebida. Tio Uriano conversava com o homem da Guilda, agradecendo-lhe a ajuda. Foi a que Romaric berrou: Guillemot! Olhem para Guillemot! Por cima do buf, os olhos revirados, Guillemot flutuava no ar, inconsciente.

UMA

5ESTRANHA VISITA

Bom-dia, meu querido, como est se sentindo hoje? perguntou Alicia ao filho, colocando sobre a mesinha-de-cabeceira um farto caf da manh. No to mal respondeu Guillemot, acomodando-se sobre o travesseiro. Fiz os sanduches como voc gosta acrescentou ela, puxando as cortinas com manteiga e muito Nutella! Hum! Genial! No sei como voc come isto... confessou Alicia, sentando-se na cama, ao lado do filho. fcil explicou ele, mordendo o pedao de po. Olhe, mame: abro a boca, ponho o sanduche dentro e mastigo. Deixe de ser bobo! respondeu a me, arrepiando ternamente os cabelos dele. Em seguida, levantando-se, ela ps-se a arrumar o quarto. Guillemot tomou o caf gulosamente, enquanto a me botava ordem nos livros e jogos espalhados em volta da cama.

H trs dias o menino no saa do quarto. Quando o trouxeram da casa do tio Uriano, mergulhado num estado de coma, Alicia de Trol ficou louca de aflio. Felizmente, Guillemot se recuperou rapidamente, logo sentindo-se em plena forma. A me, no entanto, insistiu em que ele permanecesse na cama por algum tempo e o mdico chegou a assinar um atestado para o colgio. Guillemot no ops qualquer resistncia: trs dias sem escola era sempre uma coisa boa! A me voltou para perto dele e ps a mo em sua testa, para verificar a temperatura. O doutor disse que voc pode voltar para o colgio amanh anunciou, satisfeita. Genial gritou Guillemot, fazendo careta. Nesse instante, algum bateu na porta, em baixo. Bom, vou deixar voc disse Alicia. No fique tempo demais jogando no computador. Em vez disso, tente descansar, meu querido... Ela desceu a escada apressadamente. Guillemot soltou um suspiro. Devia ter encostado a testa no aquecedor quando a me virou de costas. Assim, talvez tivesse escapado das aulas (e de gata!) todo o resto da semana... Mas aquilo no era

soluo, ele sabia. Recapitulou: hoje tinha perdido matemtica e esgrima; ia se recuperar naquele final de semana. Mas ontem e anteontem tinha sido pior: natao (trataria de ir nadar amanh noite, para no se atrasar em relao ao programa), korrigani (a lngua dos Korrigs: ele detestava), francs (no se lembrava mais se era gramtica ou explicao de texto), fsica e qumica (naquele momento estavam aprendendo o mapa complicado dos ventos no Pas de Ys) e ska (a lngua usada no Mundo Incerto, que lhes era ensinada como cultura geral, do mesmo modo que o latim no Mundo Certo: mais para o fcil). Deu outro suspiro, mas mais profundo. No seria naquela semana que iria poder flanar na sada da escola! Um rangido na escada o desviou dos seus pensamentos. Mame? Quem era, a embaixo? Ningum respondeu. Do lado de fora, os passos pararam. Mame? voc? O corao de Guillemot se ps a bater mais depressa. Algo esquisito estava acontecendo. Ficou de ouvido atento. Barulho algum subia do trreo. A escada recomeou a ranger. Mame?

Resposta alguma. Aquilo estava ficando inquietante. Guillemot pulou fora da cama. Sem perder tempo para trocar de roupa, correu, de pijama azul claro, em direo ao armrio. Pegou a espada que usava para treinar em casa os passos de esgrima aprendidos na escola e foi postar-se atrs da porta que dava para o corredor. A maaneta virou devagar: ia entrar algum! Algum que, sem dvida, achava que o ia surpreender e que poderia ter feito alguma maldade com sua me, l em baixo! Diante desse pensamento, Guillemot apertou com mais fora a arma. Uma silhueta deslizou sem rudo para dentro do quarto. O menino s teve tempo de ver que se tratava de um homem vestindo uma capa escura comprida: brandindo a espada e gritando, lanou-se sobre o intruso. Este fez meia-volta, segurou o brao de Guillemot e o desarmou. A ao no durou mais que o tempo de um relmpago. Ol, meu menino! Que forma engraada de acolher um visitante! Ainda espantado de ter sido dominado to rapidamente, Guillemot parou um instante at reconhecer seu adversrio. O Feiticeiro! O Feiticeiro da outra noite! murmurou. Mal conseguia acreditar no que via.

Exatamente, meu menino confirmou o visitante, fixando-o com um olhar bondoso. O homem era mais para alto, bem constitudo; seus cabelos cortados muito curtos, o rosto quadrado e os olhos de um azul de ao lhe davam um aspecto duro, que contrastava com a voz e o sorriso cheios de doura. Era difcil atribuir-lhe uma idade, mas era, sem dvida, menos velho do que aparentava. Debaixo da capa escura, que anunciava que pertencia Guilda, usava as roupas resistentes e confortveis que costumam usar os viajantes. E lhe pendia do ombro uma sacola de lona gasta. Fazendo Guillemot sentar-se na beira da cama, sentou-se a seu lado. No lhe falta coragem, pequeno. Mas o seu ataque foi lento demais. O que fez o senhor com a minha me? interrompeu-o agressivamente o menino, que no estava gostando da maneira como aquele homem zombava dele. Sua me? Acho que est fazendo um ch para mim, na cozinha... Est mentindo! gritou Guillemot, que sentia as lgrimas lhe subirem aos olhos. Vamos, meu menino, calma! verdade que eu deveria ter batido antes de

entrar; lamento ter assustado voc. Mas asseguro que sua me est bem. No mesmo instante, eles ouviram um rudo de passos na escada e, algum tempo depois, Alicia de Trol entrou no quarto carregando, numa bandeja, uma xcara e um bule de ch fumegante. Guillemot lanou-lhe um olhar interrogativo. Tudo bem, mame? Tudo bem, meu querido. Por qu? Guillemot de repente se sentiu muito idiota. Por nada, no... Bem, vou deixar vocs anunciou alegremente Alicia, tendo depositado a bandeja sobre a cama. Mestre Qadehar, se o senhor precisar de mim, estou na cozinha. A jovem mulher deixou o quarto, fechando a porta. Guillemot compreendeu que tinha se enganado: o Feiticeiro era apenas uma visita que sua me, aparentemente, conhecia, e que, de errado, s tinha feito aparecer por demais silenciosamente! Demonstrou interesse pelo motivo daquela visita. O que queria com ele aquele homem estranho e por que a me tanto se preocupou em deixar os dois a ss? Conteve a curiosidade e aguardou que o Feiticeiro, que terminava de beber seu ch, explicasse.

O homem estalou a lngua de satisfao, pousou a xcara na bandeja e voltou-se para o menino. E a rapaz, aquele desmaio? Alguma coisa na voz do Feiticeiro deu confiana a Guillemot. Ah, j est esquecido, senhor. O doutor disse que no estou mais doente e posso voltar escola amanh. O homem riu. Sua risada, calorosa, deixou o menino ainda mais vontade. Eu me chamo Qadehar, Mestre Qadehar. Quanto ao seu doutor, um imbecil! Guillemot ficou sem saber o que dizer. O Feiticeiro continuou: um imbecil porque voc nunca esteve doente. J ouviu falar em efeito Tarquin? Guillemot sacudiu a cabea. Em que srie voc est, meu rapaz? Na quinta, sen... isto , Mestre Qadehar. Certo... o normal prosseguiu o Feiticeiro. Os cursos de histria da Guilda e da Confraria s comeam na quarta... Bem, Tarquin foi um jovem que viveu em Ys h trezentos anos. Um menino completamente normal. Um dia, quando assistia a um duelo de Feiticeiros, duelos

freqentes na poca, desmaiou e subiu nos ares. Exatamente como voc! E da? apressou-o Guillemot, impaciente. Tarquin se recuperou dois dias depois e o incidente foi esquecido. Mais tarde, entrou na Guilda como aprendiz, manifestando aptides incomuns no exerccio da magia. Tanto que se tornou o Grande Mestre da Guilda antes da idade que habitualmente se requer e abriu novos caminhos para a nossa feitiaria. Membros experientes da Guilda fizeram a ligao de seu desmaio na juventude com suas qualidades de Feiticeiro. Desde ento chamamos de efeito Tarquin a reao que manifestam certas crianas s prticas mgicas. Fez-se silncio. Os pensamentos se acotovelavam na cabea de Guillemot. Qadehar ficou apenas a observ-lo, sorrindo. E... bem... comigo aconteceu o mesmo que com Tarquin? Quero dizer atrapalhou-se o menino , tive uma reao magia? Sim, rapaz confirmou o Feiticeiro. Foi quando eu invoquei as foras mgicas para transformar as espadas em p que voc se ergueu do cho, desmaiado. E... agora? perguntou Guillemot inquieto. O que que vai acontecer?

O homem o acalmou. No vai acontecer nada, meu filho! Voc no est doente. E pode continuar levando a sua vida como antes! Porm... O Feiticeiro o olhou com ateno. Porm o qu, Mestre Qadehar? instou o menino, com a voz meio incerta. Calma, meu menino continuou Mestre Qadehar. Garanto que est tudo bem! Eu apenas estava dizendo que, como Tarquin e outros antes de voc, voc possui, sem dvida, alguma aptido para a magia. E como penso em permanecer algum tempo na regio, imaginei que voc talvez aceitasse ser meu Aprendiz. Guillemot estava atnito. O desmaio, aquele homem que lhe propunha nada mais nada menos que ser Feiticeiro... No era demais, em to pouco tempo? Por que nunca o deixavam em paz? No tinha problemas que chegassem? Quando no era o bando de gata, era um suposto efeito Tarquin! O que mais viria amanh? E depois, acima de tudo, acima de tudo... Sentiu o desespero tomar conta dele. Sabia que certas crianas, em torno dos seus treze anos, tornam-se Feiticeiros Aprendizes. Mas ele jamais havia se interrogado a respeito de como isso se dava, pelo simples motivo de que aspirava, ele prprio, ser Cavaleiro! Mais dia menos dia, enfim,

seria um Escudeiro. O problema estava em que um Escudeiro no podia tornar-se Feiticeiro, do mesmo modo que um Aprendiz no podia tornar-se Cavaleiro. Intrigado por seu silncio, Qadehar perguntou: Alguma coisa lhe perturba? Se est pensando na sua me ou no seu tio, farei tudo para obter a concordncia deles! Se por causa dos estudos, no se preocupe, trabalharemos somente algumas noites, na quarta-feira e no sbado tarde, de modo que o domingo... No Guillemot tentou explicar, sentindo um n na garganta, ... a Confraria. O meu sonho tornar-me Cavaleiro do Vento! Qadehar ficou srio. Compreendo. Pense bem, meu rapaz. E pese sua deciso; pois como voc deve saber, se aceitar seguir meus ensinamentos, no poder jamais entrar na Confraria. A lei essa: Feiticeiros e Cavaleiros trabalham em conjunto, mas no se misturam nunca... Guillemot sentiu-se desamparado. O que deveria fazer? Se aceitasse, perdia a oportunidade de um dia usar a armadura turquesa dos Cavaleiros, cujas aventuras o entusiasmavam desde que teve idade para ouvir histrias! Por outro lado, o universo da

Guilda e dos Feiticeiros lhe tinha sempre parecido estranho, at mesmo assustador. O que iria encontrar l? O que dissimulavam aqueles homens na sombra de suas capas? Continuaria ignorando, se recusasse a oferta. Uma frase de Romaric lhe veio memria com toda clareza. Seu primo tinha dito a Gontrand, pouco antes de sua consagrao: h momentos em que no se pode fugir: so a hora da verdade... acho que este um deles! Talvez aquela fosse a sua hora da verdade. Ele decidiu confiar no instinto. Fixando os olhos frios do Feiticeiro, perguntou: O senhor acha realmente que devo aceitar? Sim, Guillemot, acho respondeu Qadehar sem hesitar. O menino fez cara de quem refletia, depois sacudiu a cabea, com ar de convencido. De acordo. Vou aceitar disse Guillemot afinal, mergulhando fundo. Mas caber ao senhor convencer minha me e meu tio! Com um sorriso satisfeito, Qadehar se levantou da cama em que tinha estado sentado.

Vou tratar disso. Mas antes de qualquer outra coisa, preciso formalizar o nosso acordo. Procurando na bolsa, tirou um pedao de carvo. carvo de teixo, rvore mgica por excelncia. Aproximou-se de Guillemot, pegou sua mo direita e fez dentro dela um desenho com o carvo. o signo da obedincia, indispensvel a quem est aprendendo. Desenhou tambm uma coisa qualquer na palma da prpria mo. O signo da pacincia, indispensvel a quem ensina. Agora, repita comigo: eu, Guillemot, aceito aprender a magia e tomo Qadehar como Mestre. Guillemot repetiu, com um inexprimvel sentimento de alvio. Qadehar, por sua vez, declarou: Eu, Qadehar, Feiticeiro da Guilda, aceito ensinar a magia e tomar Guillemot como Aprendiz. Depois, apertaram as mos um do outro, misturando, assim, os riscos de carvo. Voc no vai se arrepender, Guillemot. Confie em mim... Era o que Guillemot desejava com todas as foras, pois estava tarde demais para voltar atrs.

ALCIA

6DE

TROL

Sentado em sua poltrona de carvalho macio de Tantreval, na qual adorava meditar quando se aproximava a noite, Uriano de Trol contemplava as chamas que danavam na lareira. No silncio do salo soava o crepitar das achas de castanheira. Ao lado dele, sobre um tamborete, Valentim, com as pernas compridas esticadas, estendia ao calor do fogo as palmas da mo. Uma tora rolou para a lareira e o mordomo a reps no lugar com pesadas pinas. Em nome do sagrado! gemeu Uriano. Fazer isso comigo! Utigern e aquele imbecil de Balangru podem se vangloriar de terem estragado minha noite de aniversrio! Vamos, Uriano Valentim tentou acalm-lo , o que est feito est feito. E no foi to grave assim, afinal. No foi grave? rugiu o colosso, agarrando os braos da grande cadeira. Se Qadehar no estivesse presente, aqueles dois miserveis seriam capazes de se espetar!

Justamente, Qadehar apressou-se o mordomo a dizer, para desviar o rumo da conversa. No sobre ele que Alcia vem falar esta noite? Uriano fez uma expresso contrariada e se afundou na poltrona. Espantado com o silncio que se seguiu sua pergunta, Valentim continuou: O que que est acontecendo? No parece que... De repente, compreendeu que o mau humor de Uriano no tinha a ver com o infeliz episdio da outra noite, mas que um acontecimento mais grave o atormentava. Esperou pacientemente pelas confidencias do senhor de Trol. Imagine voc anunciou o colosso, com a voz sombria que Qadehar convidou Guillemot para ser seu Aprendiz. Valentim ficou imobilizado. Seu rosto denotava a surpresa. Mas, mas... No possvel! Uriano levantou-se de repente e ps-se a andar de um lado para o outro, diante da lareira, tomado por pensamentos agitados. No, com certeza, no possvel acabou por anunciar. isso o que vou dizer minha irm. Ela ter que me ouvir. Eu sou o chefe da famlia...

Em algum ponto do grande edifcio, bateu uma porta e o rudo de passos soou pelos corredores. ela antecipou Valentim. Quer que eu saia? Faa o que tiver vontade resmungou Uriano. O que temos a esconder, meu velho companheiro? Os dois homens trocaram um olhar de profunda cumplicidade. Depois se voltaram, com a entrada de Alcia. Como de hbito, Alcia de Trol estava vestida de preto; aquele preto que fazia com que se destacasse a brancura dos braos, que ela gostava de deixar nus, e o azul lmpido dos olhos grandes. Acabava de fazer trinta e um anos e era uma mulher de grande beleza, que teria suscitado muito mais ateno da parte dos homens sem aquele ar de dureza, aquela impresso de tristeza imensa que levava no rosto. Aproximou-se do fogo. Brrr... Est bem melhor aqui. Tem uma corrente horrvel de ar gelado que acompanha a gente por toda a subida at o castelo. Como vai, Uriano? E Valentim? Muito bem, senhora, obrigado respondeu o mordomo. Posso lhe propor um ch, para reaquec-la? Chocolate?

Que seja um ch, Valentim, obrigada! disse a jovem, com um sorriso. E voc, meu irmo, no respondeu continuou ela, enquanto o mordomo se afastava, em direo s cozinhas. Tudo indo, tudo indo rosnou o gigante, cofiando a barba. No parece respondeu Alcia, fixando nele os grandes olhos. No, na verdade, nada vai bem! explodiu Uriano de Trol. Que histria essa de Guillemot e feitiaria? Alcia demonstrou espanto um momento. Depois, retomou a fala, esforando-se para manter a calma. Essa histria, como diz voc, talvez seja uma bela histria. Mestre Qadehar, Feiticeiro da Guilda... Eu conheo Qadehar! interrompeu-a Uriano. um homem direito, em quem nada tenho a censurar. Mas, ento deixou-se levar Alcia, por sua vez qual o problema? Hein? Voc, que no pra de dizer a quem quiser escutar que o meu filho no presta para nada! Que no tem lugar para ele em Ys! Eis que se apresenta um Feiticeiro, anuncia que Guillemot tem tudo para se tornar um bom Aprendiz e voc, voc, ergue as sobrancelhas e diz...

Digo que no! berrou ele. No, no e no! Esse menino no vai chegar perto da Guilda! Est ouvindo? Eu probo! Alcia calou o irmo com uma expresso de desprezo. Quando penso que sempre defendi voc perante o meu filho, enquanto voc sempre o detestou e ele sempre sentiu isso... Ela se aproximou de Uriano de Trol, cuja clera tinha esfriado diante do tom incomumente glacial da irm. Escute bem, Uriano... Seu olhar estava duro como o metal de uma espada. a segunda vez na vida que voc me probe alguma coisa. A primeira vez, eu cedi, para infelicidade minha. Hoje, vou enfrentar voc, pela felicidade do meu filho! No hora de falar do passado, mas... tentou intervir Uriano. Cale-se. No terminei! Eis o que vai acontecer: vou confiar Guillemot a esse Feiticeiro, como Aprendiz, e em troca da sua anuncia, vou esquecer a conversa que tivemos esta noite. A fim de que, em meu corao, voc possa continuar sendo meu irmo querido. Alcia lanou a Uriano um ltimo olhar que o fez estremecer da cabea aos ps e

depois, virando-lhe as costas, afastou-se num passo rpido. Ela foi embora? perguntou Valentim, colocando uma bandeja sobre a mesa baixa prxima poltrona em que Uriano de Trol tinha tornado a se sentar. Foi. E a? A, nada. Estou ficando velho, Valentim. Estou me sentindo cansado. O mordomo sorriu, pousando a mo nas costas do amigo. verdade que no somos mais aqueles jovenzinhos! Vai longe o tempo em que ramos intrpidos cavaleiros, lutando pela honra e pela paz em Ys! Tem razo. Vai longe esse tempo suspirou o colosso. Sempre me recusei a pensar nisso, porque, para mim, refugiar-se no passado uma forma de fugir do futuro. Mas que futuro h para ns, meu querido amigo? Nossa vida j no ficou para trs? Vamos, voc est dramatizando disse Valentim, que comeava a ficar emocionado, tentando confort-lo. Calaram-se, mergulhando na contemplao das chamas. Santa boa mulher, a sua irm, apesar de tudo deixou escapar Valentim, ao cabo de um instante. Sim, mesmo uma Trol.

Guillemot tambm, Uriano. Guillemot tambm. No estar na hora de... ? O olhar cortante do senhor de Trol o impediu de continuar. Valentim soltou um suspiro. Levantou-se, ps uma acha de novo no fogo e levou de volta o ch morno para a cozinha, abandonando Uriano a seus pensamentos sombrios.

UM

7GRANDE DIA

Eu senti, sim... senti uma coisa qualquer... uma coisa forte... uma coisa que eu esperava h muito, muito tempo... Quando penso que procurei pelo menino neste Mundo... este tempo todo... e no achei... Mestre, Mestre? Tudo bem? O jovem de cabea raspada, vestindo uma tnica branca, aproximou-se hesitante do vulto que se encontrava na penumbra, no fundo do cmodo de paredes de pedra cinza. O lugar estava cheio de mveis cobertos por uma incrvel confuso de instrumentos e papis. Sim, sim, vai tudo bem... Muito bem mesmo... O jovem ficou imvel. Os murmrios poderosos, cavernosos, daquele que tinha chamado de Mestre, comeavam a lhe gelar o sangue. Traga-me de beber. preciso festejar isto. Hoje um grande dia! O jovem precipitou-se pela escada em caracol abaixo sem sequer fechar a porta.

No escuro, o vulto se moveu e se ps a andar a passos largos no fundo do cmodo, mal iluminado por uma lucarna. Ao contrrio, se poderia dizer que ela projetava sombra. Logo, logo, ser a hora da vitria! O servente voltou sem flego, trazendo uma grande taa de metal. Levou um tempo a enxugar com um pedao da tnica o suor que lhe porejava na testa e avanou com cuidado. Sua corma, Mestre. Deixe a... Executada a ordem, deu um passo atrs. O misterioso vulto se aproximou da mesa. O que, de longe, poderia parecer iluso, no era: junto com o vulto, vinha a escurido! E, embora indiscutivelmente humana, mal se via a forma que essa escurido dissimulava. Um vu de sombra pousou sobre a taa de cormo. Ergo meu copo a Tarquin... E a todos aqueles que seu efeito alou luz... O Mestre soltou uma risadinha. O jovem de tnica dirigiu uma orao a Bohor Todo-Poderoso para que seu suplcio logo tivesse fim. Detestava aquela torre, detestava aquela sala, atulhada de objetos estranhos e livros indecifrveis! Alis, ningum gostava de ficar atendendo os

pedidos do Mestre. Os serventes jogavam os dados para ver de quem era a vez. Ele nunca tinha sorte. V buscar Lomgo para mim... E digalhe que traga com que escrever... O servente no esperou que o pedido fosse repetido e, agradecendo mentalmente a Bohor, que tinha se dignado a atender sua orao, de novo desapareceu rapidamente escada abaixo. Pouco tempo depois, outro personagem fez sua apario no cmodo escuro. Alto e magro, a cabea raspada como a do servente, os olhos perfurantes qual os de uma ave de rapina, cujo aspecto, alis, ele tinha, o escriba no se mostrava minimamente assustado com o vulto misterioso. O senhor mandou chamar-me, Mestre? Sim... Sente-se, Lomgo, e anote... Em seguida, voc mesmo vai levar a carta a nosso amigo... Sem esquecer o ouro que sempre vai junto... Uma nova risadinha ressoou na sala. Lomgo esboou um pequeno sorriso. O senhor parece estar de bom humor, Mestre. Estou... de muito bom humor... Faz uma eternidade que no fico assim de to bom humor.

Ter sido algum bom pressgio que o senhor descobriu nas entranhas de um camundongo? Mais que pressgio, Lomgo, mais que pressgio. Uma promessa... A promessa de uma realizao... O escriba franziu as sobrancelhas. No estou compreendendo, Mestre. Pouco importa, pouco importa... Tenho o hbito... Eu compreendo por aqueles que no compreendem... Contentese com escrever, e fazer o que eu mandar. Lomgo apertou os lbios. Tinha-se a si mesmo em alta conta e detestava sentir-se rebaixado. No entanto, esforou-se para sorrir e baixou a cabea. O Mestre era poderoso. Muito poderoso. Talvez demais. Com uma das mos, colocou uma grande folha branca na escrivaninha. Com a outra, na qual faltava um dedo, pegou uma pena, a molhou na tinta e aguardou o ditado. Redigida a carta, Lomgo fez um cumprimento e desapareceu. O vulto envolto nas trevas avanou at a porta, que fechou e aferrolhou, depois veio se postar no centro da sala. A, como se repentinamente tomado pela loucura, ps-se a danar, com gestos largos e, ao mesmo tempo, cantarolar um canto estranho. De sbito, no espao de tempo de um relmpago, o cmodo se iluminou e tudo

desapareceu, vulto e penumbra, como que aspirados pelo nada.

8CONFIDENCIASDEBAIXO DAS ESTRELAS

Mestre Qadehar perguntou Guillemot, enquanto andavam pela beira do mar, numa praia de areia cinza , se o senhor um Feiticeiro da Guilda, Mestre, por que no fica como os outros num monastrio perdido no mato ou nas montanhas? Tinha comeado a iniciao. Estava fazendo um ms que o menino passava todos os seus momentos livres com o Feiticeiro, anotando e tentando reter um nmero incalculvel de coisas, desde os nomes das plantas e das algas at a localizao das grandes ondas telricas esses fluxos de energia invisveis que percorrem o solo moda das correntes no mar e os principais episdios da histria da Guilda. A tarefa parecia desmesurada e Guillemot todas as noites ia dormir extenuado. De vez em quando, permitiamse um intervalo no trabalho e saam sem destino, pelo simples prazer de caminhar. Nesses momentos, a tenso se dissipava, e Guillemot aproveitava para satisfazer sua curiosidade.

Por qu, meu rapaz? respondeu Qadehar, a observar o vo de uma grande gaivota. Porque sou um Perseguidor, s por isso! Guillemot ficou de boca aberta. Perseguidor? Mas por que o senhor nunca me disse isso?

Sem dvida porque voc nunca me perguntou, Guillemot. Os Perseguidores eram Feiticeiros e Cavaleiros que passavam a maior parte de seu tempo no Mundo Incerto, a perseguir e tentar impedir que provocassem prejuzos ou incmodos os indivduos ou outras criaturas que, de um modo ou de outro, ameaavam o Pas de Ys. Os Perseguidores no eram numerosos, e sobre eles corriam muitas histrias, cada uma mais extraordinria que a outra. Guillemot no conseguia se recuperar da surpresa de saber que Mestre Qadehar era um deles! O senhor deve ter visto coisas incrveis, Mestre Qadehar! O Feiticeiro se divertia com a excitao de Guillemot, que o olhava de olhos arregalados. Ah, vi! Coisas demais para poder contar a voc aqui e agora. Mais tarde eu conto, se voc fizer um bom trabalho... Mestre suplicou Guillemot , me conte! Qadehar fez cara de hesitao, mas depois cedeu. Que seja, Guillemot. Mas s o comeo, nada mais. Sentaram-se na areia, de frente para o oceano, que cintilava debaixo dos raios do sol poente. Guillemot se encheu de jbilo. O Feiticeiro comeou:

Eu era jovem, naquele tempo, e orgulhoso. Tinha decidido entrar para a Guilda para me tornar o novo Tarquin, aquele que sacudiria a poeira da velha ordem e a orientaria em direo a um novo destino! Pus-me a estudar com assiduidade e em poucos anos atingi um nvel de feitiaria bastante razovel; sentia-me preparado para usar a capa escura e realizar mil experincias! Mas meu Mestre achava que, embora eu fosse dotado para as coisas da magia, era tambm briguento e indisciplinado demais para dar um bom Feiticeiro... Veja, Guillemot, a calma e o autocontrole so pr-requisitos indispensveis para se praticar uma boa mgica! Em suma, ele no sabia o que fazer comigo, e eu j me via condenado a permanecer Aprendiz at o fim dos meus dias... Foi ento que um Feiticeiro jovem e brilhante, recm-ordenado, desapareceu com a obra mais preciosa da Guilda: O livro das estrelas, que ficava guardado no corao do monastrio de Gifdu. Esse antigo manual para mgicos e feiticeiros, nico, contm segredos que s os Magos, os mais sbios dos Feiticeiros, tm o direito de consultar! Pensaram que o ladro tinha se refugiado no Mundo Incerto. A Guilda, naquela poca, no tinha mais Perseguidores e lhe repudiava pedir ajuda

Confraria dos Cavaleiros, que ainda tinha. Procuraram entre ns voluntrios para ir atrs do renegado Feiticeiro no Mundo Incerto, encontr-lo e recuperar o livro famoso. Eu me ofereci imediatamente, como voc pode imaginar! Aceitaram minha candidatura; o ladro tinha se formado junto comigo, tinha at mesmo sido meu companheiro de estudo. Acharam que o fato de conhec-lo me dava uma vantagem... Eis a o comeo da minha histria, meu rapaz, eis a como me tornei um Perseguidor. Qadehar terminou a frase erguendo-se, para marcar bem o final de seu relato. E depois? perguntou Guillemot, impaciente. Eu disse s o comeo, mais nada. O resto vir mais tarde. Diga apenas, Mestre implorou o menino , quem era esse Feiticeiro que o senhor perseguiu e se conseguiu apanh-lo. Chamava-se Yorwan. E ningum jamais o reencontrou. No me pergunte mais nada sobre isso: chega deste assunto por hoje. Diante do tom seco do Mestre, Guillemot entendeu que de nada adiantaria continuar a fazer perguntas. Decepcionado, chutou uma pedrinha. Qadehar tinha tornado a assumir uma expresso sria.

Meu filho, faz agora quatro semanas que voc trabalha comigo. Seja sincero: est arrependido da sua deciso? No, Mestre Qadehar respondeu Guillemot, olhando-o dentro dos olhos. S que... Vamos, fale, pedi que fosse franco. Ele suspirou, depois tomou coragem: S que s vezes tenho a impresso de que no fui feito para a magia! Confundo os nomes das flores, no consigo sentir as correntes telricas, e os exerccios de concentrao me fazem adormecer. O senhor tem certeza de que tive de fato uma reao de Tarquin? Qadehar riu de novo e segurou Guillemot pelos ombros. normal, Guillemot. Voc meu aluno h apenas um ms! So necessrios trs anos para terminar sua formao de Aprendiz, trs outros anos para alcanar a de Feiticeiro e o resto da vida para tentar merec-la! Na minha opinio, voc est se saindo muito bem. verdade? perguntou o menino, esboando um sorriso. Com certeza, verdade! Lembra-se da minha histria? Que lio voc tira dela? Guillemot refletiu um instante; depois, hesitante, disse:

Que preciso saber esperar... que o destino lhe d um sinal? Muito bem, Guillemot! disse, com orgulho, Qadehar. Que preciso esperar, esperar e trabalhar, enquanto no chega a hora! Tomaram o caminho de volta. A noite comeava a cair. Como esto sua me e seu tio? perguntou o Feiticeiro. Bem... respondeu Guillemot, num tom evasivo. Pode parecer estranho, mas minha me, aparentemente, est muito feliz por eu ter me tornado Aprendiz. Tio Uriano, por sua vez, parece menos contente! Mas tudo bem, j estou acostumado: para ele, nada que eu faa bom, nunca. Parece que voc no gosta muito do seu tio, Guillemot. Acho que mais ele quem no gosta de mim. Qadehar sorriu. uma boa resposta! E na escola, vai tudo bem? continuou, para mudar de assunto, sempre andando, as mos nas costas. Mais ou menos. Entre professores que me fazem um interrogatrio depois do outro e uma menina meio maluca que passa o tempo a me perseguir, no o stimo cu! Mas me viro.

O Feiticeiro pousou a mo sobre seu ombro outra vez. Voc corajoso, Guillemot. Logo me dei conta disso naquele dia em que voc se lanou sobre mim, de espada na mo, no seu quarto. Isso bom! A coragem, a vontade e a retido so as trs portas que conduzem ao melhor de ns. Depois disso, Qadehar ergueu os olhos. Aqui, olhe... Centenas de estrelas enchiam o cu, de um azul profundo. Voc conhece as estrelas, meu menino? claro! Aprendemos o mapa do cu no ano passado respondeu Guillemot, torcendo o pescoo para tentar localizar a constelao da Ursa Maior: era fcil! Este ano, estudamos o dos ventos, e menos evidente... a est, vejo a Ursa Maior. Todas as outras se posicionam em volta dela. As Pliades... O Delfim... E a Lira... L embaixo, a Coroa! Isso mesmo disse Qadehar. E depois acrescentou, como se estivesse mudando de assunto: Est vendo, Guillemot, O livro das estrelas, que est na origem da Guilda. Esse livro guarda inmeros segredos, a maior parte dos quais permanece incompreensvel, at mesmo para os mais sbios de ns! Mas,

acima de tudo, ele contm o fundamento da nossa mgica. Possuir a cincia das plantas ou conhecer os mapas das foras elementares est ao alcance de todos os que fazem o esforo de aprender. Enquanto que a magia, a possibilidade de agir sobre as coisas, por exemplo, reforar a eficcia de um ch, fazer nascer a bruma ou transformar metal em p, exige um poder! O que O livro das estrelas nos deu foi esse poder... Logo, logo, contarei a voc sobre isso. Quando, Mestre, quando? exclamou Guillemot, sentindo que o Feiticeiro tinha abordado uma questo essencial, de certo modo mais apaixonante que os nomes complicados que o obrigava a colocar nas ervas. De hbito, o Mestre abre ao aluno O livro das estrelas no final do primeiro ano de iniciao. Acho que voc tem um dom, Guillemot; ns vamos abri-lo no final do seu terceiro ms de aprendizagem! Mas, como, Mestre? inquietou-se o menino. O senhor me disse que O livro das estrelas foi roubado por aquele tal de Yorwan... H sculos a Guilda extraiu desse livro tudo o que era capaz de compreender assegurou-lhe Qadehar. Esse conhecimento transmitido h geraes

pelos Feiticeiros a seus Aprendizes! Enquanto esperamos que chegue o seu momento, quero que as plantas das colinas e as foras telricas das vizinhanas de Trol no tenham mais segredos para voc. Guillemot prometeu tudo o que o Feiticeiro queria. As coisas, afinal, comeavam a ficar interessantes!

9ONDESE TRATA DE NOMES DE FLORES...

Caro Guillemot, Recebi direitinho a sua carta. O que voc me conta incrvel! Voc, Aprendiz de Feiticeiro! E no um Feiticeiro qualquer! Mas Qadehar, o Perseguidor! Perguntei a meu pai: uma celebridade no ramo. Dizem que passou a vida a perseguir monstros de todos os tipos e que o nico homem de quem a Treva tem medo de verdade... Guillemot interrompeu a leitura. Estaria Gontrand falando srio? Ento a Treva, a grande ameaa do Mundo Incerto, o inimigo jurado do povo de Ys, impossvel de se capturar, malfica, que tinha devastado o pas diversas vezes, temia o seu Mestre? Aquilo, pelo menos, explicava o fato de, na casa do tio Uriano, o Feiticeiro ter sido capaz de invocar a Treva em pblico, sem parecer minimamente assustado com isso. Mesmo assim, era difcil acreditar naquilo que escrevia o amigo! Retomou a leitura.

...Estranho ele ter se transformado numa bab! Talvez tenha resolvido mudar de vida... Seja como for, espero impacientemente as frias grandes: ser genial nos reencontrarmos todos em Trol! Bem, deixo voc: seu primo est aqui do meu lado, impaciente, querendo acrescentar umas palavrinhas. Assaltado pelas dvidas, Guillemot de novo abandonou a leitura. Por que Qadehar o tinha escolhido? Por que o tinha estimulado a abandonar o sonho da Cavalaria e entrar para o servio da Guilda? Freqentemente se perguntava se tinha feito a escolha certa, sentindo certa inquietude em relao a isso. No seu ntimo, embora desejasse com todas as foras ter encontrado o prprio caminho, estava convencido de que o Feiticeiro tinha se enganado a seu respeito. No tinha aptido particular para a feitiaria. Se era mediano em tudo, por que seria diferente com a magia? Mas no havia mais escolha: jamais seria Cavaleiro. No mximo, teria a liberdade de abandonar seu aprendizado e viver uma vida normal, de cidado de Ys... Essa idia no lhe agradou muito. Preferia pensar que, mesmo que no possusse dons particulares, poderia se tornar Feiticeiro s custas de um trabalho

rduo! At que, como no caso do seu Mestre, o destino lhe desse um sinal. Voltou a mergulhar na leitura. Caro primo, Aproveito a carta deste incrdulo que no se ouve mais, depois que andou arranhando a guitarra, em Trol para lhe dizer que estou muito orgulhoso por voc ter sido o escolhido do grande Qadehar! Meu pai acha que uma besteira, que nosso tio jamais deveria ter dado autorizao. Eu defendi voc, claro! Resultado: nada de cinema no sbado. Tomara que eu venha a ser Cavaleiro para irmos os dois perseguir monstros no Mundo Incerto! Seja como for, at breve: mbar me confirmou, pelo correio, que vir com Corlia passar as frias de vero em Trol. Vai ser genial!... Romaric Guillemot, pensativo, guardou a carta na bolsa. verdade, as frias estavam se aproximando. No terceiro trimestre, tinha redobrado esforos e agora estava certo de passar, na volta escola. Acima de tudo, tinha trabalhado duro com Qadehar. Estava pronto. Naquela noite, o Mestre lhe abriria O livro das estrelas]

Absorto em pensamento, no viu que se aproximavam do banco onde estava sentado, na hora do recreio. E a, Guillemot? Dormindo ou sonhando? Guillemot sobressaltou-se. Diante dele, gata de Balangru e o bando o observavam, com uma mistura de animosidade e curiosidade. No o assuste soltou um menino. Ele pode desmaiar! Todos riram maldosamente. A menina alta fez uma careta e, com um nico gesto, calou-os. verdade, pigmeu? Parece que um Feiticeiro pegou voc para Aprendiz. Guillemot observou gata com ateno e refletiu rapidamente. Apesar de sua expresso de desprezo, no se comportava hoje como de hbito. Poderia... poderia se dizer que estava com medo! Mas medo de qu, e de quem? Dele, claro! Ou melhor, do Aprendiz que ele tinha se tornado. O corao de Guillemot comeou a bater a toda velocidade. Era aquele o momento. Nunca mais teria outra oportunidade! Chance igual quela jamais se repetiria. Levantou-se, esforando-se para manter a aparncia tranqila.

Sim, verdade. Qadehar, o Perseguidor, est me ensinando a magia. Pronunciou o nome do Mestre com o intuito de impression-los. E foi o que aconteceu. Murmrios elevaram-se no meio do bando. gata os fez calarem-se outra vez, mas agora, visivelmente, hesitava. Guillemot precisava ser rpido, no permitindo que ela recuperasse o controle. Mediu-os a todos com o olhar e anunciou com audcia e voz calma: Mestre Qadehar ontem me ensinou um lance divertido: como encurtar as pernas das pessoas! Vou mostrar a vocs. Guillemot adotou a mesma postura que Qadehar tinha usado para destruir as espadas e pronunciou em voz alta: Taraxacum! Papaver rhoeas! Toms de Kandarisar, to estpido quanto era forte, soltou um berro e pernas para que vos quero, sendo imediatamente seguido por todo o bando. gata lanou ao menino franzino um olhar de dio e depois, por sua vez, fugiu... Com os braos levantados, este invocava as potncias malficas. Guillemot caiu na gargalhada. Tinha acabado de botar para correr o terror do colgio, gritando o nome do dente-de-leo e da papoula! Por aquele instante de feli-

cidade pura, no se arrependeu de ter dito sim a Qadehar! Tinha coisa boa na magia. Como a hora ia avanada, Guillemot deixou o colgio sem ser notado, atravessou a cidade, tomou a estrada de Trol e andou apressado rumo colina onde Qadehar tinha marcado o encontro. No alto erguia-se um dlmen gigantesco, de onde se via longe, ao sul, o mar, e a leste, as montanhas. As crianas gostavam de ir ali brincar, assim como os namorados, quando tinha lua cheia, na primavera. Hoje, Guillemot estava ali para outra coisa totalmente diferente. Qadehar j tinha chegado e esperava por ele, sentado sobre a enorme laje de granito. Com a chegada de Guillemot, levantou-se. Boa-tarde, Guillemot! Boa-tarde, Mestre respondeu o jovem, esbaforido. O ar aqui falou o Mestre, enchendo os pulmes tem um aroma delicioso! No acha? Sim disse Guillemot, hesitante, porque no esperava tal recepo. Amo este lugar! Pode-se dizer que realmente mgico. A forma como o Feiticeiro pronunciou as duas ltimas palavras pedia um

comentrio. Inspirado nele, o Aprendiz respondeu: normal, Mestre: as correntes telricas do solo de Trol aqui se renem s de Dashtikazar. Qadehar lanou-lhe um olhar agudo. O que mesmo uma corrente telrica, Guillemot? perguntou, num tom que j nada tinha de amigvel. Um regato de energia que flui de maneira invisvel no solo, Mestre. De vez em quando, diversos regatos se unem, formando um rio. Os pontos onde se renem so chamados de ns telricos. Sua fora poderosa. Como aqui, Mestre. Guillemot tinha respondido com segurana perfeita. Qadehar pulou do dlmen, curvou-se em meio ao capim e arrancou uma flor, que botou debaixo do nariz de Guillemot. O que ? Hypericum maculatum, hiperico maculado! colhido no vero. Contm um leo que fica vermelho e se usa para cicatrizar feridas. a nica coisa que serve para isso? Guillemot hesitou, mas Qadehar o fulminou com o olhar. Ele balbuciou: Bem, no, no... Ele tem um irmo, o Hipericum perforatum, o hiperico perfurado, que prefere os solos mais secos.

O rosto do Feiticeiro iluminou-se com um grande sorriso. Bom, Guillemot, muito bom! Tornou a subir no dlmen e fez um sinal ao menino aliviado para que viesse at ele. Voc trabalhou muito. Alis, nunca duvidei de voc. Guillemot ficou radiante. O Mestre continuou: Como prometi, vou lhe abrir O livro das estrelas e ensinar o primeiro dos segredos da Guilda. Mas, antes, tenho uma coisa para lhe dar. Tirou do prprio alforje uma sacola de lona tinindo de nova bem como um livro grosso encapado com couro preto. Todo Aprendiz de Feiticeiro possui um saco como este, onde guarda os livros que estuda, as plantas que colhe e... seu caderno de anotaes pessoal, o qual contm o seu prprio caminho, as suas prprias descobertas! Guillemot pegou com o maior cuidado os dois objetos e os examinou, radiante. Jamais verificarei o que voc anota no seu caderno, Guillemot fez questo de frisar Qadehar, divertido com a reao do aluno. Caber a voc julgar o que importante anotar nele.

Agradeo ao senhor, Mestre! So os presentes mais bonitos que j ganhei! Bem, bem disse apenas o Feiticeiro, com a expresso enternecida. Est pronto, ento, para O livro das estrelas! Estou, sim! respondeu Guillemot, os olhos brilhantes. Pronto! Ento, escute e, se alguma coisa no ficar clara para voc, no hesite em me interromper e fazer perguntas.

O

10SEGREDO DA NOITE

Guillemot, meu jovem aluno comeou Qadehar , o primeiro esforo que se tem de fazer para alcanar a compreenso mgica do mundo olh-lo de modo diferente. Est vendo esta pedra prosseguiu, apontando para um rochedo , sinta este vento, faa-o enchendo os pulmes, escute este canto de pssaro: nada de comum entre eles, primeira vista. E, no entanto, alguma coisa liga os trs! O qu, Mestre? questionou Guillemot, determinado a entender tudo do segredo da feitiaria que Qadehar estava a ponto de lhe revelar. Sim, Guillemot, um elo invisvel, que une tudo o que existe, ou seja, os cinco elementos! Voc conhece os cinco elementos, eu espero? que... hesitou Guillemot eu achava que eram quatro: gua, terra, fogo e ar. Voc est esquecendo a carne! falou Qadehar, com ar malicioso. A carne... O senhor quer dizer a carne que a gente come?

Quero dizer os homens, as plantas, os animais... Tudo o que respira, meu rapaz! Entendeu? Posso continuar? Sim, sim, Mestre. Continue! Pois bem, esses cinco elementos so interligados por um elo invisvel e impalpvel, que os antigos chamaram de Wyrd. Lembre-se: Wyrd! Como uma teia de aranha gigantesca, cujos fios fossem ligados a cada coisa. O que voc diz disso? Bem... falou Guillemot, enquanto refletia. Isso quer dizer, por exemplo, que se eu me mover, toda a teia se move, e que, portanto, todo o mundo sente que eu me movi... Impossvel. No, Guillemot respondeu Qadehar, visivelmente contente com a resposta de seu aluno , no impossvel: simplesmente, a teia to vasta que quando voc se movimenta, nada nem ningum sente diretamente, exceto aquilo que est de fato prximo de voc. Os matemticos do Mundo Certo tiveram a intuio do Wyrd e construram em cima disso a teoria do caos. Voc j ouviu falar dela? Bem... o menino hesitou acho que sim. No a histria do bater de asas da borboleta, que provoca uma tempestade na outra ponta do planeta?

Isso mesmo, Guillemot! Essa teoria diz, em forma simplificada, que um nico ato insignificante pode ter repercusses sobre o conjunto de todas as coisas. Agora prosseguiu o Feiticeiro imagine que se seja capaz de controlar essas repercusses! Que se possa realizar um ato sabendo aquilo que ele vai provocar num ponto exato da teia! Isso quereria dizer props, com prudncia, o menino que se teria o poder de influenciar as coisas por intermdio de outras coisas que, primeira vista, nada teriam a ver com elas... Mas, como, Mestre? Qadehar sorriu com a exaltao repentina do rapaz, que comeava a descobrir toda a amplido do segredo da Guilda. Graas s chaves, Guillemot. Chaves que permitem o acesso ao Wyrd, que permitem atingir a estrutura mais ntima daquilo que existe! Chaves? Como as chaves que abrem as portas? avanou timidamente o Aprendiz. Exatamente, meu menino! S que as chaves no so objetos, mas signos. O Feiticeiro alongou o corpo grande e soltou um suspiro, curtindo os ltimos raios de sol. Seu olhar se perdeu um instante na

direo do horizonte. Puxando a manga do manto escuro, Guillemot suplicou: Mestre Qadehar, por favor... Qadehar riu afetuosamente. Est tomando gosto pelos segredos da feitiaria, Guillemot? O senhor estava falando de signos, Mestre implorou o menino. Signos que permitem que se abram portas! Sim prosseguiu o Feiticeiro, divertido, vendo Guillemot anotar com cuidado o que ele dizia no caderno novo em folha. Pense numa espcie de alfabeto, no qual cada uma das letras possusse um significado e um poder particular. Agora, imagine essas letras ligadas umas s outras em palavras e depois, as palavras ligadas a palavras, em frases! A est voc de posse do fluxo de energia necessrio para visualizar, penetrar e modificar o Wyrd! Esse o segredo, Guillemot, o segredo da prtica mgica: estabelecer e controlar um elo entre coisas muito diferentes! Genial! exclamou Guillemot. Isso quer dizer que com os signos se pode controlar o universo! Devagar, devagar reagiu Qadehar, diante do entusiasmo do Aprendiz. No assim to simples! Para comear, a feitiaria no uma cincia exata, mas resultado de tentativas e experincias incessantemente

renovadas. Depois, o Wyrd possui suas prprias leis, que no se pode transgredir, caso em que absolutamente tudo cairia por terra. Enfim, esses signos, que ns, os Feiticeiros, chamamos de Grafemas, so energias neutras, cujo impacto depende unicamente daquele que as utiliza... O que voc pensa disto, Guillemot? Bem... Que preciso ter cuidado? No ir fazendo as coisas de qualquer jeito? Bravo, meu filho! respondeu Qadehar, com cara de satisfeito, dando um tapinha nas costas do menino. Enquanto no se alcana a idade em que a sabedoria se impe ao homem, a prudncia e a humildade devem ser as palavras mestras do Feiticeiro! Fale mais sobre os si... sobre os Grafemas, Mestre! Guillemot, antes, vou falar mais sobre como sero os seus prximos anos de estudo da feitiaria. E, se voc no ficar desanimado, falo mais sobre os Grafemas. Est certo concordou Guillemot, contente. Vai ser preciso que voc estude a fundo matrias que, aparentemente, esto distantes da magia propriamente dita, como geologia, geografia ou histria. Que aprenda o mapa dos ventos, das correntes terrestres e marinhas; a composio das rochas e

metais, o comportamento dos animais, as propriedades das plantas, a psicologia dos homens, em suma, tudo o que diz respeito aos cinco elementos! Pois compreender o mundo indispensvel a quem quer agir sobre o Wyrd. Guillemot soltou um suspiro. De repente, a magia pareceu menos engraada do que tinha imaginado! Mesmo assim, fez que sim com a cabea. Qadehar continuou. Voc vai fortalecer e tornar gil o seu corpo com exerccios: fazer mgica exige fora e resistncia! Vai trabalhar a respirao: a respirao o motor principal da prtica mgica. Nunca negligencie o corpo, Guillemot: ele sua nica fonte de energia. A fora do Feiticeiro, Mestre inquietou-se Guillemot , depende do corpo? Sim e no, meu rapaz. A fora do Feiticeiro reside, antes de mais nada, na maneira como este domina a sua arte. Mas tambm na sua capacidade de utilizar as energias elementares: e canalizar um fluxo telrico exige solidez, acredite! Enfim, certos Feiticeiros possuem em grau mais elevado que outros a fora interior particular que chamamos de nd e que d seu poder nossa mgica. Nasce-se com uma nd possante, como alguns nascem com a

capacidade de correr velozmente ou de saber desenhar! Essa... nd, Mestre... arriscou Guillemot , tem alguma relao com o efeito Tarquin? bem possvel reconheceu Qadehar. Vejo que voc compreende depressa. Devo prosseguir? Guillemot fez que sim vigorosamente. O Feiticeiro retomou a conversa. Ao mesmo tempo que voc vai treinar a sua memria e o seu corpo, vai estudar os Grafemas. No incio, vai tratar de conhec-los bem: o nome, a forma, a ordem dentro do alfabeto, os poderes. Em seguida, ser preciso apropriar-se deles, redescobrilos voc mesmo pela meditao, criar com eles uma intimidade no seu corao e no seu esprito. Uma vez de posse dos Grafemas, vai aprender, com a minha ajuda, a us-los: escrev-los ou grav-los, cantlos, cham-los dentro de si e reproduzi-los. Graas a eles, poder se defender de todas as agresses e dominar no importa que adversrio, ou ainda tornar-se clarividente, e at mesmo interrogar o futuro! O que acha? Guillemot permaneceu em silncio um momento. O que achava era que, fosse como fosse, no tinha opo! que uma parte do programa lhe parecia muito menos apaixonante que a outra... Apesar disso,

esforou-se e mostrou um tom alegre, pensando nos misteriosos Grafemas, que o fascinavam. Genial, Mestre! Muito bem, meu filho. No momento, o que deseja saber? Esses Grafemas... Quem os inventou? No se sabe quem os inventou, Guillemot. Assim como tambm no se sabe quem escreveu O livro das estrelas, nem mesmo h quanto tempo ele est em nosso domnio... Na verdade, foi O livro das estrelas que nos revelou os Grafemas, embora estes sempre tenham estado vista dos homens. Mas onde, Mestre, onde? perguntou Guillemot, olhando em sua volta, para todos os lados. No v, meu garoto? A... falou com doura o Feiticeiro, apontando as estrelas que se instalavam no cu medida em que o crepsculo se acentuava. No segredo da noite. O senhor quer dizer que... Quero dizer apenas que os Grafemas nos vm das estrelas, mais precisamente de certas constelaes, cujas formas reproduzem. por isso que chamamos o nosso arquivo precioso de O livro das estrelas: por causa do cu noturno e do

alfabeto que os astros, refletindo o Wyrd, nele desenham num pontilhado luminoso! Guillemot ficou exultante. O olhar perdido no cu. Parecia ter afinal encontrado seu lugar no mundo: l no alto, na intimidade das estrelas!

11ORAPTO

Guillemot, de olhos fechados, esforava-se para visualizar o terceiro Grafema do alfabeto das estrelas. O desenho, apesar de simples, no lhe vinha com nitidez ao esprito. Fez um ltimo esforo de concentrao e, em seguida, diante do insucesso, deixou para l e abriu os olhos. Bateu as plpebras sob a luz crua do sol de meio-dia que ricocheteava sobre a areia da praia, onde tinha se instalado para trabalhar. Eis que trs semanas se passaram depois de Qadehar, seu Mestre Feiticeiro, ter aberto O livro das estrelas. H trs semanas ele tentava, com muito esforo, gravar os signos, aquelas chaves que abriam as portas da verdadeira magia. Trs semanas passadas inteiras ou quase nos trs primeiros Grafemas aproveitando o relaxamento dos professores, que anunciava a iminncia das frias longas, e abandonando o estudo dos cinco elementos. Para ter que resultados? Trs desenhos infelizes, por cuja apario em seu esprito, quando fechava os olhos, tinha que rezar.

Seu Mestre lhe tinha dado somente a forma e o nome dos vinte e quatro signos, considerando que ele deveria treinar e sentir o poder dos Grafemas antes de se pr a estud-los de verdade... Guillemot foi tomado pela clera. Ele, o Aprendiz dotado, escolhido devido ao efeito Tarquin em pessoa, se acovardava diante de uns desenhos estpidos! Ps o caderno na areia. Em seguida, respirou fundo, tornou a fechar os olhos e procurou o melhor que pde se concentrar. O primeiro Grafema surgiu um pouco enevoado na noite de seu esprito: Fehu, que evocava nele, sem ele saber por que, uma vaca gorda. O segundo veio ter com o primeiro: Uruz, que o fazia pensar na chuva. O terceiro, por fim, fixouse ao lado: Thursaz, que lhe parecia rir como o seu tio, uma gargalhada de gigante. Daquela vez, conseguira! Rejubilou-se. Nesse momento, uma voz o tirou da meditao: Acha que est dormindo? Ei, Guillemot, dorminhoco, est dormindo? Guillemot estremeceu, reconhecendo a voz de Toms de Kandarisar. Abriu os olhos: no era sonho; ali estava o ruivo, sua frente, e ao lado dele, mos nas cadeiras e sorriso mau na cara, gata de Balangru. E ele que pensava ter-se desvencilhado dela e do bando com a falsa frmula mgica!

Precisamos conversar, pigmeu a menina grandona rangeu os dentes, parecendo j no sentir medo dele. Isso mesmo reafirmou Toms. No outro dia voc se deu bem s nossas custas, no foi? No minta, ano continuou gata. Perguntei ao meu pai e ele me disse que Aprendiz no pode fazer mgica. Mgica nenhuma! acrescentou Toms. Ao que consta, so necessrios vrios anos para se ser capaz de tirar a sorte! Por isso resolvemos concluiu a menina, num tom de voz pesado de ameaas verificar isso ns mesmos. Toms, sua vez! Toms se lanou por sobre Guillemot, o qual se ergueu num salto, pronto para sair correndo. S que para isso, teria que abandonar o precioso caderno. De modo que no se moveu e crispou-se, espera do golpe. Mas o golpe no aconteceu. Toms estava imobilizado, paralisado de medo, os olhos esbugalhados voltados para o mar. gata, que olhava na mesma direo, gritou de pavor: surgidos da gua, dois Gommons vinham em direo a eles. Os Gommons, criaturas compactas, de olhos vtreos, cabelos de alga e com a pele

coberta de escamas viscosas, pareciam homens em seu porte, mas eram animais no comportamento, feras selvagens... To vontade na gua quanto na areia ou nos rochedos do litoral, onde ficavam seus covis, no passado tinham demonstrado ser os piores inimigos dos pescadores de Ys. Por causa disso, alguns sculos antes, tinham sido todos exilados para o Mundo Incerto, graas a uma ao conjunta da Guilda e da Confraria! A partir da, em Ys, s se sabia de sua existncia atravs de livros e lendas. S que os Gommons que se precipitavam por sobre eles naquele momento eram, na verdade, diabolicamente reais... Corra! Corra, gata! gritou, por sua vez, Toms, menina alta que, paralisada de terror, parecia incapaz de esboar um gesto. Xingando, o menino a pegou pelo brao e a forou a segui-lo. Guillemot os exortou a irem logo. Puseram-se os trs a correr em direo s dunas onde crescia o capim, que ofereciam um solo mais estvel e, portanto, uma chance de dispersar os Gommons. Guillemot corria o mais depressa que podia, mas j comeava a ofegar. Afundava na areia, e o simples ato de botar um p na frente do outro exigia um esforo exaustivo.

Tinha a desagradvel sensao de que a cada passada ficava um pouco mais para trs! Era como naqueles pesadelos que s vezes a gente tem em que somos perseguidos por uma criatura horrvel enquanto os nossos ps ficam colados ao cho, e no conseguimos avanar! Guillemot no consegu