o feiticeiro

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O FEITICEIRO Lucas Zanella

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Entertainment & Humor


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Page 1: O Feiticeiro

O FEITICEIRO

Lucas Zanella

Page 2: O Feiticeiro

Fraga chegou na cidade às treze e dezessete; o dia

estava bonito, ensolarado e as nuvens muito bem

dispersas no céu azul de Cármenes. Era uma quarta-

feira e todos se sentavam em suas varandas,

balançando-se em suas cadeiras.

O velho Jacir estava mascando um palito de

dente, por alguma razão achava aquilo bom, mas

ninguém realmente compreendia o porquê dele

fazer essas coisas malucas que faz. Era viúvo, a

mulher havia morrido três anos atrás, nunca tiveram

filhos. Vivia sozinho e todos achavam que ele já não

batia muito bem das ideias.

Não é a toa que um dos médicos da cidade

grande, ao passar por lá quando ficou perdido na

rua asfaltada, recomendou que ele tomasse um

remédio que o próprio Jacir nem se lembrava o–

nome. Na verdade, não se lembrava nem mesmo da

conversa com o médico. Possuía setenta e quatro

anos e a memória já começava a falhar, mesmo tão

cedo.

Page 3: O Feiticeiro

A casa do outro lado da rua era habitada por

Carolina e Jacobá, eram os mais novos na cidade,

mudaram-se havia sete anos. Ninguém realmente

sabia da existência da cidade, ela já não aparecia

mais nos novos mapas. Alguns diriam que era uma

cidade-fantasma, mas ela não poderia estar mais

viva.

- Você viu o garoto novo, Antônio? - Guides

perguntou para um freguês enquanto limpava sua

mesa com um pano encharcado de álcool.

O bar não estava muito movimentado. Nunca

era movimentado nas quartas-feiras. Nas segundas e

terças, bebiam porque era o início da semana. Nas

quintas e sextas, bebiam porque era quase o fim de

semana. Nos sábados e domingos, bebiam porque

era o final de semana. Mas as quartas eram calmas,

como se fosse o único dia da semana em que tudo

era zen, o único dia em que todos aceitavam que a

semana havia começado e já estava para acabar,

portanto ninguém bebia.

Page 4: O Feiticeiro

Todos haviam de ficar sóbrios por pelo menos

24 horas na semana. E ficavam.

E foi justamente num dia zen que Fraga

chegou em Cármenes, como se soubesse que o dia

estava calmo e aquilo o aborrecesse. Precisava

mudar essa coisa maluca que todos chamavam de

tranquilidade .“ ”

- Que garoto novo? - Antônio demorou para

responder. Primeiro esperou Guides limpar sua

mesa, enquanto segurava o copo de cerveja no ar,

depois o pousou, limpou a garganta e bebeu um

gole.

- Ora, como não o viu chegar? Se me perdeu

a cena que Jacir fez, isso me faz pensar o que mais

não perdeu enquanto esteve aqui - Guides

respondeu enquanto começava a limpar o balcão.

Estudiosos diriam que ela possui um

transtorno obsessivo-compulsivo e que sente a

necessidade de limpar tudo a todo momento. Uma

terrível doença para alguém que trabalha num bar

Page 5: O Feiticeiro

ter. Antônio apenas diria que ela é uma mulher“

para casar , pois estava sempre limpando as mesas,”

as louças e o chão do bar.

Antônio era o xerife da cidade, e não havia

muita coisa que um xerife fazia lá. Basicamente, ele

apenas ficava sentado em sua cadeira, atrás da sua

escrivaninha, com os pés cruzados sobre a mesa e o

chapéu preto de caubói caído no rosto, como se

estivesse tentando esconder o fato de que estava

dormindo.

Durante toda a história da cidade, apenas uma

pessoa foi presa, um garoto de vinte e tantos anos

que foi preso porque roubou a casa da Dona

Carmen. O xerife estava, como sempre, dormindo

em sua cadeira. O garoto deu um jeito de escapar

da sua cela - pra falar a verdade, as celas não eram

nem mesmo boas o suficiente para prender alguém

dentro delas - e fugir da cidade. Nunca mais foi

visto, provavelmente partiu para uma cidade grande

e está agora mesmo roubando de outras casas.

Page 6: O Feiticeiro

- Por falar nisso - Guides começou. Não

haviam falado nisso , mas ela sempre inicia uma“ ”

segunda parte de uma conversa dessa maneira -, o

senhor não deveria estar no xerifério?

Por alguma razão que ninguém sabia, a

atendente do bar-hotel chamava a delegacia da

cidade de xerifério.

- Por falar nisso outra coisa - o xerife disse e

depois percebeu que não entendeu o que havia dito.

- Como a senhorita ficou sabendo da chegada dele?

- Bom, eu tenho a única pousada da cidade -

falou com um sotaque caipira que não lhe caía bem

-, então ele se hospedou aqui!

- E o que você estava falando sobre a briga

dele com o velho Jacir? - perguntou o xerife.

Guides o contou tudo nos mínimos detalhes,

embora, como se não pudesse evitar, aumentou um

ponto ou outro. Tal como aconteceu com todos os

outros que começavam a contar o que havia

acontecido para seus maridos, esposas e

Page 7: O Feiticeiro

companheiros. A própria Guides deixou algumas

partes de fora, mas não por má intenção, e sim

porque não acompanhou a discussão toda.

Ninguém havia acompanhado, mas todos saíram de

suas casas quando perceberam que os gritos não

parariam tão cedo. Eis aqui o relato do que

aconteceu, tal qual aconteceu.

Fraga parou no início da cidade, logo após fazer a

curva na estrada principal, que era a única asfaltada.

Ele andou como se fosse o mais novo caubói da

cidade e parou de repente, pondo as mãos no cinto.

Jacir estava sentado na varanda de sua casa,

mascando seu palito de dente, como faz todos os

dias. Aquele dia não era como outro qualquer. O

velho olhou para o lado e viu o homem em pé

olhando para a cidade, como se fosse eu protetor ou

destruidor. Fez um barulho com a garganta e cuspiu

no chão.

- Você não deveria estar aqui - gritou com

Page 8: O Feiticeiro

sua voz rouca e um pouco fina de velho. Fraga não

pareceu se importar. - Essa cidade não é sua para

destruir!

- Cale a boca, velho! -- Fraga disse enquanto

começava a andar até a frente da varanda da casa de

Jacir.

Os outros moradores começaram a sair de

suas casas, um por um. Jacir os viu e decidiu deixá-

los informados do que estava acontecendo.

- Foi ele quem matou o pessoal de Ravéra -

gritou para os vizinhos mais próximos. - Precisamos

fazer algo, ele vai acabar matando nóis também!

- Povo de Cármenes, não temam minha

chegada. Por favor ignorem o velho aqui, nós nos

conhecemos anos atrás e, por conta de um mal-

entendido, ele passou a me odiar, nada que valha a

pena ocupar espaço em suas memórias. Voltem para

as suas casas, não se incomodem.

E todos pareceram acreditar, pois começavam

a entrar nas suas casas.

Page 9: O Feiticeiro

O velho, com sua cara enrugada e suas costas

doídas, levantou-se da cadeira e ela pareceu soltar

um grito estridente enquanto continuava a se

balançar de trás para frente, como se o espírito

invisível de uma garotinha estivesse nela se

balançando.

O velho Jacir pegou um rolo de papel que

pousava numa mesinha de madeira ao lado da

cadeira e balançou para o público que lhe restava.

- Não acreditem nesse feiticeiro filho da mãe

- gritou o mais alto que pode até começar a tossir -

leiam o jornal, ele é procurado pela região toda e

está se refugiando na nossa cidade.

- Cale a boca, velho! - gritou pela primeira

vez. - Pode não gostar de mim, mas exijo que pare

de espalhar mentiras por todo lado. Isso não é coisa

de gente decente.

- E quem é você para falar de gente decente?

- o velho Jacir desceu as escadas da sacada da casa e

ficou cara a cara com Fraga, um homem alto,

Page 10: O Feiticeiro

vestindo um casaco preto, com botas e calças

marrons e uma barba curta no rosto.

- Eu sou um habitante de Meléas e mereço

respeito disse Fraga.–

- Tu não é habitante de Meléas coisa alguma

- o velho tornou a gritar, alguns vizinhos

continuavam do lado de fora apreciavam o show

que Jacir dispunha. - É um cultivador do senhor das

trevas, isso sim. É um habitante de seu reino de

fogo e nada mais que isso.

Meléas era o nome do estado onde viviam, e

era um estado de respeito. Era verdade que muitos

cultos adoravam o senhor das trevas, mas ninguém

realmente ligava para eles, sendo que nenhum

desses grupos de adoradores fazia algo além de se

reunir para cantar músicas esquisitas que falavam

sobre mortes e sacrifícios.

Mas Fraga não estava em culto algum ou

cantava aquelas cantigas satânicas que apenas o

faziam rir. Ele era melhor que isso.

Page 11: O Feiticeiro

Sentia que não precisava fazer essas coisas

ridículas para ser adorado pelo seu senhor. E por

isso pensava que nada nem ninguém conseguia o

derrotar.

- Jacir, deixe o bom homem em paz - gritou

um dos vizinhos, que tomava um mate amargo

enquanto assistia a briga; o que era, para ele, o

equivalente a um bom filme e um balde de pipoca.

- Ele não é bom, Clemente! - gritou Jacir

olhando para o vizinho no segundo andar da casa à

frente da sua.

Fraga, enquanto isso, saía de lá e entrava no

bar. Guides, que agora já havia começado a

acompanhar a briga, o olhou torto enquanto

entrava, apenas porque sabia que Jacir não era

mentiroso. Mas também, depois quando olhou o

jornal, viu que não havia notícia alguma sobre

procurado algum.

É por isso que ela disse "sim" quando ele

perguntou:

Page 12: O Feiticeiro

- Você possui algum quarto vago? -

perguntou batendo a caneca agora cheia apenas

com espuma na mesa, ele viu o aviso na parede, que

falava sobre a hospedaria que funcionava no

segundo andar do bar.

- Sim, vai querer? - indagou Guides.

- Por favor - respondeu e pagou logo de

imediato, mostrando sua carteira cheia de deneres,

mas não comentou sobre sua riqueza ou sobre

como a conseguira. Tampouco explicou a razão de

ter ido para uma cidade pequena quando, com todo

aquele dinheiro, poderia estar num local grandioso

como a Cidade dos Anjos.

Guides o levou para o segundo andar, disse

seu clássico "cuidado onde pisa" enquanto subiam a

escada quebradiça e abriu a porta do quarto com a

chave mestra. Entregou para o homem uma chave

pequena que era a do quarto de número 3. Haviam

três quartos em toda a pousada, e eles nunca

estavam todos cheios ao mesmo tempo.

Page 13: O Feiticeiro

Não era muita gente que visitava a cidade,

apenas aqueles que se perdiam no meio do caminho

à Cidade dos Anjos ou aqueles que possuíam o

carro quebrado no meio da pista e precisavam de

um mecânico urgentemente. Ted era o único

mecânico da cidade, e ele cobrava caro.

Mas afinal, como não cobrar? Ninguém

dentro da cidade possuía carro e era, talvez, uma vez

por ano que alguém parava para ter seu carro

concertado ou checado a fim de ver se estava tudo

em ordem. Além de mecânico, também era

encanador, a profissão que mais lhe dava dinheiro,

porque os canos das casas não funcionavam direito -

parte porque ele os arrumava com uma data de“

validade . Sendo que era o único encanador, era”

certo que tornariam a contratá-lo quando o cano

estourasse novamente. E iria estourar.

Não era fácil trabalhar em Cármenes. As

únicas pessoas que ganhavam dinheiro de verdade

eram os agricultores, que vendiam seus produtos

Page 14: O Feiticeiro

para os outros habitantes e para a cidade grande –

onde ninguém sabia produzir merda alguma e

compravam do pessoal do campo e também–

Guides, que possuía o único bar da cidade, onde os

agricultores iam para beber algo depois de um

longo dia de trabalho debaixo do sol ardente.

Guides ganhava cerca de vinte e sete deneres

por dia, os agricultores ganhavam quarenta e nove

deneres por mês. Ted cobrava, para consertar os

canos, dez deneres, e trabalhava talvez uma ou duas

vezes por mês. Logo, Guides era a mulher mais rica

da cidade, embora a menos letrada. Mas certamente

não tão rica quanto Fraga, visto que mesmo ela

ficou surpresa ao ver toda aquela grana.

- Pacote completo? - perguntou Guides

enquanto contava o dinheiro.

- Hã... claro - aceitou mesmo sem saber o que

o pacote incluía ou quanto custava.

Guides o devolveu uma pequena parte do

punhado de deneres e guardou o restante no sutiã,

Page 15: O Feiticeiro

depois deu duas palmadinhas como se isso fizesse ele

ficar mais seguro.

Mais tarde, naquele mesmo dia, Fraga estava

sentado em sua cama, encarando o nada, como se

estivesse fazendo uma oração. Apenas observava a

parede com fascínio e não sabia nem mesmo a razão

de tamanho encanto. Levantou-se e abriu a janela,

o dia estava acabando, já era de noitinha.

Ele se escorou na janela e ficou observando

todos abaixo dele. O velho Jacir, que ficava na casa

ao lado, já não podia ser visto, pois provavelmente

estava dormindo. Mas certamente começaria a

incomodá-lo novamente. Fraga precisava dar um

jeito no velho, mas não ainda. Agora precisava

dormir para recuperar suas energias, depois poderia

começar a fazer com aquela cidade o que fez com a

anterior.

Ouviu batidas na porta enquanto botava sua

roupa de dormir, que era apenas uma longa blusa

branca rasgada, não usava nada por baixo. Andou

Page 16: O Feiticeiro

até a porta ajustando a blusa e girou o trinco,

observando o corredor e a visita através de uma

fresta.

- Olá, sinhô - uma moça jovem falou com

sotaque carregado e logo empurrou a porta e se

aconchegou na cama.

- Que perturbação é essa? - ele perguntou

ficando um pouco enfezado por conta da falta de

privacidade.

- O sinhô pediu o pacote completo - a moça

puxou a coberta da cama para o lado e fez um gesto

para que Fraga a acompanhasse.

- Se eu soubesse o que o pacote completo

continha, não o teria pedido - Fraga agarrou a

garota pelo braço e ela reclamou da dor, ele a

arrastou até fora do quarto.

- Por favor, sinhô, se eu não fazê isso num

ganho minha parte do dinheiro - o que soou como

partinheiro vindo de sua boca. Ela se pôs para

dentro do quarto novamente.

Page 17: O Feiticeiro

- Eu não ligo. Saia agora, antes que acabe

sobrando para você!

A garota vestia uma camisola branca curta,

um pouco mais bem cuidada do que a blusa rasgada

de Fraga, mas que também mostrava ter alguns anos

de uso. A garota apenas balançou a cabeça em

negação; Fraga não a queria ali, não estava na

cidade para aquelas coisas, estava a trabalho, apenas

iria conseguir vítimas para seu chefe, saquear as

casas, matar aqueles que resistissem e então partir

para a próxima.

- Eu estou mandando! - agarrou a garota

novamente pelo braço e a empurrou para fora do

quarto novamente.

- Não, por favor, eu preciso do dinheiro para

minha mãe! - gritou a moça.

Fraga pareceu se interessar de repente,

largando o braço da moça e a deixando entrar no

quarto. A moça entrou calmamente e Fraga a

seguiu muito interessado no assunto.

Page 18: O Feiticeiro

- Ah. Por que não falou antes? O que há de

errado com a sua mãe?

- Ela tá duente, sinhô, preciso de dinheiro pra

levar ela pra Cidade dos Anjos onde tem médicos

bom.

- Talvez isso nem mesmo seja necessário - ele

falou com uma voz calma. - O que você estaria

disposta a ceder pela vida de sua mãe?

- Tudo, sinhô, tudo!

- E que tal a sua própria? - perguntou

gentilmente. A garota se afastou um pouco, estava

sentada na cama e Fraga sentava também. - Sabe...

eu faço negócios por um homem amigo meu, e

posso garantir que ele fará a sua mãe ficar bem... por

um preço. Ele virá buscar você em alguns anos, e

você terá de ir com ele, ou então sua mãe morre,

mas se fazer tudo como ele disser, ela viverá!

Deu um sorriso esquisito e torto. A moça já

não sabia o que responder.

Page 19: O Feiticeiro

- Táááá... - respondeu desconfiada.

- Excelente - o homem comemorou. -

Apenas vou precisar que assine um contrato com o

meu mestre!

- Ô senhor Fraga! - Guides gritou à porta do

homem.

- Não há razão para gritar, minha cara; é ou

não é um bom dia hoje? - ele perguntou ao abrir a

porta.

Guides pôs a cabeça para dentro do quarto e

notou Eloá deitada na cama do hóspede.

- Vejo que gostou do que o pacote inclui -

Guides sorriu para ele.

- Ah, sim - Fraga olhou para a moça em sua

cama e voltou seus olhos para Guides. - Posso dizer

que achei... de matar!

Sorriu para a mulher e fechou a porta, saindo

Page 20: O Feiticeiro

do quarto e acompanhando Guides enquanto

desciam as escadas.

- O café está servido, senhor. Se quiser pode

sentar à mesa e juntar-se aos outros que vieram.

- Claro, eu adoraria - Fraga disse.

O bar estava cheio, afinal, era quase fim de

semana, quinta-feira. Fraga olhou para o relógio e

notou que era sete e meia da manhã. Havia uma

mesa onde o café fora servido, uma xícara com café

preto, uma jarra de leite gelado ao lado, junto de

pão, presunto, queijo e manteiga. Não havia muita

variedade do que comer, e por isso Fraga comeu o

que viu.

Tomou o café preto para acordar e logo pediu

outro, então colocou leite e preparou um sanduíche

com o pão, o presunto e a manteiga sobre a mesa.

Desprezava queijo. Para ele, era algo do... ser cujo

nome não deve ser pronunciado, porque seu patrão

não gosta. O metre de Fraga sempre retira um

pouco de dinheiro do pagamento do funcionário

Page 21: O Feiticeiro

quando ele diz o nome Dele.

O dia aparentava estar calmo, pelo menos tão

calmo quanto todos os outros dias da semana.

Todos bebiam e gargalhavam enquanto contavam

histórias uns para os outros. Você pensaria que, por

ser uma cidade pequena onde nada nunca acontece,

alguma hora não teriam mais histórias para contar,

mas não. Eles sempre arranjavam um novo causo.

Guides limpava as mesas daqueles que saíam e

a caixa de som que ficava sobre o balcão gritava

feito louca as músicas que tocavam na rádio da

cidade grande - que não dava para ouvir muito bem

porque o sinal era péssimo, mas todos pareciam

gostar. Jacir entrou no bar dando socos na porta e

viu que o cara que ele chamara de feiticeiro ainda

estava na cidade. Isso o enfureceu tanto que não

aguentou e preciso falar algo.

- O que vocês tão fazendo? - ele gritou e

girou em torno de si mesmo de maneira cômica,

mas ninguém riu na hora. Estava a ponto de chorar.

Page 22: O Feiticeiro

- O que foi agora, Jacir? - perguntou um

homem de cabelo longo que ia até os ombros. Era

um cabelo dourado, como sua barba bem arrumada.

O homem certamente havia visto a cena que

o velho fizera no dia anterior. Fraga já sabia que o

assunto era com ele e não estava nem um pouco a

fim de enfrentar aquele velho. Desafio mesmo foi o

rei de Florrika, que possuía uma multidão de

guardas; Jacir seria apenas uma pequena medalha

para colocar no fundo de sua estante de troféus. O

velho era um nada, e Fraga não queria desperdiçar

sua tão conquistada energia com alguém daquela

laia.

- Ele ainda está aqui - Jacir disse, o que soou

como istáh. - Eu pensava que vocês fossem criar

juízo e expulsar ele da cidade, mas parece que sou o

único que realmente entende o que é que se deve

fazer.

- Jacir, deixe ele em paz, o que foi que o cara

te fez? - o mesmo homem perguntou.

Page 23: O Feiticeiro

- Ora, Maninho, ele não me fez nada comigo,

ele fez algo é com a outra cidade - gritou de volta

Jacir.

- É isso o que você diz - gritou um homem

de voz grossa e cavanhaque preto do fundo do bar,

era um pouco mais letrado e sua pronúncia quase

tão correta quanto a de Fraga -, mas quando fui

olhar o jornal não vi nada disso, não, Jacir.

E é claro que não viu, não deu tempo. Jacir

apenas viu a notícia porque havia lido o jornal antes

de Fraga chegar e mudar a notícia para algo sobre

um sequestro de irmãos na Cidade dos Anjos.

A notícia de Fraga era a única que o jornal

publicara que não falava sobre a Cidade, a única que

dava importância às cidades menores. Portanto, não

ver algo no jornal sobre um caso que aconteceu

numa cidade menor não seria surpreendente.

- O problema é que ele já está velho, não vê

mais coisa com coisa - um homem à frente do com

cavanhaque disse baixinho para ele.

- Velho coisa nenhuma – véicoisniuma. –

Page 24: O Feiticeiro

Romero, não era você quem anteontem mesmo foi

à minha casa me perguntar como trocar uma

fechadura? Como me confiaria numa coisa dessas se

eu fosse um velho que não sabe de nada?

- É um bom argumento - Cavanhaque falou

para Romero e Fraga virou a cabeça, já pensando

que iria dar merda se todos começassem a ouvir o

que o velho Jacir falava.

- E você, Britinho, alguma vez eu já falei

alguma mentira? Você me conhece desde que se

mudou pra cidade, eu mesmo te arranjei uma casa

aqui e agora tá dizendo que fiquei maluco? - Jacir

gritou para um outro conhecido.

Britinho, um homem de trinta e poucos anos,

escondeu a cara, como se não quisesse dizer o que

realmente pensava ou então estava com vergonha

por ter se questionado sobre aquilo. Como poderia

pensar que o amigo estava maluco? Pessoas que

pensam isso não são amigas, tão mais pra inimigas.

Bom, isso saiu de controle rapidamente! , pensou“ ”

Page 25: O Feiticeiro

Fraga enquanto era empurrado para a parede. Ele

estava sobre o mini-palco onde bandas se

apresentariam no bar caso houvessem bandas na

cidade. Todos preferiam ouvir as músicas em má

qualidade que passavam pelo rádio do que ouvir

Antônio ou Guides cantarem com suas vozes de

taquara rachada, e olha que isso é elogio.

Jacir havia começado a falar de todos os

favores que realizou para todos os que estavam no

bar e, tal como dizem que de pouco em pouco a

galinha enche o papo, de conversa em conversa,

todos começaram a acreditar no que o velho dizia.

Fraga tentou escapar antes que a vaca fosse para o

brejo e começasse a montar acampamento, mas

quando notou que não estava mais com a vantagem

da briga já era tarde demais. Dois homens o

agarraram pelos braços e o arrastaram para o centro

do bar.

Guides também não possuía controle da

situação. Mas estava mais preocupada em continuar

a receber o dinheiro por hospedar o homem do que

Page 26: O Feiticeiro

realmente salvá-lo do que quer que pudesse

acontecer com o pobre coitado.

- A gente precisa é tirar ele daqui! - gritou

um homem no fim da grande bola de pessoas que

circulava Fraga.

- Bora jogar ele na estrada principal pra ir pra

Cidade dos Anjos, aqui não é lugar pra esse

feiticeiro.

Malditos redatores xingou Fraga. Não“ ”

gostava de ser chamado de feiticeiro, a palavra

parecia diminuir suas habilidades. Um feiticeiro não

seria capaz de falar com os mortos ou produzir todo

tipo de maldição, um feiticeiro é capaz de fazer um

Wingardium Leviosa e olhe lá. Mas os redatores de

jornais pareciam insistir em chamá-lo de feiticeiro,

mesmo sem sequer o conhecer.

- Senhores, por favor - Fraga falou pela

primeira vez. - Vocês realmente vão logo de cara ir

julgando um homem que pouco conhecem?

Perguntem à moça que ontem chegou em meu

quarto, enviada por Guides. Eu a ajudei com seu

Page 27: O Feiticeiro

problema familiar, sou um mau homem? Mereço

ser expulso desta pequena cidade que mal me

conhece e logo me joga para fora?

Os homens pareceram parar para pensar nas

suas ações pela primeira vez em todas as suas vidas.

- Se há alguém - continuou - que merece seu

desprezo é este que está lhes jogando mentiras, o

homem que, por conta de um desentendido por ele

causado agora quer me ver longe. Um homem que

engana o outro para seu próprio deleite é nada

senão um charlatão. É por isso que eu vos digo pela

primeira e última vez: não é comigo que devem se

preocupar, é com ele - apontou para Jacir. - Pois se

um homem pode enganar seu próximo com tanta

facilidade, ele não é um homem confiável, ele é um

homem que manipula a verdade a seu bem

entender. Se há alguém que merece ser expulso ou

preso é ele, meus senhores, e não eu.

Todos voltaram seus olhares para Jacir, que

começava a lentamente andar para trás enquanto

protestava com não acreditem nele s e vocês me“ “ “

Page 28: O Feiticeiro

conhecem s. Nenhum dos homens pareceu o ouvir,”

como se estivessem hipnotizados.

- Não deixem que ele lhes enganem, pois são

espertos. São inteligentes e sabem ver o que é certo

e o que é errado - Fraga recuperava o poder e logo

o calor do medo que antes sentia se tornava num

frio prazer de controle. - Me conhecem há tão

pouco tempo e já sabem que estou dos seus lados,

nunca faria nada para lhes fazer mal, não sou um

feiticeiro. ELE É!

- Sim - responderam em uníssono.

- Ele é o feiticeiro que conhecem, o homem

que... George, não se lembra? Ele matou seu filho

para que pudesse realizar um ritual satânico!

Queimem esse anticristo filho da puta antes que ele

queime vocês com o fogo do inferno sendo jogado

em suas caras - gritava como um pastor numa

missa.

- Meu filhinho - o homem que se chamava

George chorava com desprezo por Jacir. - Por que

fez isso com ele?

Page 29: O Feiticeiro

- Eu não fiz, nada George, eu não fiz nada,

por favor! - implorou Jacir.

- Cale a boca, feiticeiro - gritou Fraga

fazendo gestos como se estivesse livrando Jacir de

um demônio que estava preso em seu corpo, como

se jogasse água benta sobre a pele velha do homem.

- Em nome do nosso Pai e nosso Senhor,

você será condenado e sofrerá por toda a

eternidade.

- Amém - todos os homens gritaram

Fraga riu baixinho. Todos os homens, como

zumbis na busca por cérebros, andavam lentamente

atrás de Jacir, que não corria, tanto por conta da

idade quanto pelo fato de que pensava ainda ser

possível convencer seus amigos de que Fraga era o

malfeitor, e não ele.

Mas Fraga possuía o dom da oratória,

conseguia convencer qualquer pessoa de qualquer

coisa. É por isso que tinha o chefe que tinha. Suas

argumentações eram dignas daquele trabalho.

Parecia um feiticeiro, com o perdão da palavra, pois

Page 30: O Feiticeiro

sua voz enganava todos aqueles que o ouviam.

Como a sereia Iara, que enganava os pescadores por

meio do seu canto, Fraga enganava os cultos e os

estúpidos por meio de seu discurso. Um verdadeiro

político.

Não continuou a falar, pois já não era mais

necessário. Os homens estavam cegos à razão e

levavam Jacir à delegacia. Antônio, que estava

dormindo em sua mesa, ficou surpreso ao ver todos

os trabalhadores da cidade invadirem seu local de

trabalho e descanso.

- Posso saber qual o motivo dessa bagunça? -

gritou para o povo enquanto ficava com sua mão

pousada no coldre.

- Jacir está nos enganando, xerife, ele deve di

ficar preso! - falou um dos homens.

- Pois bem, sob quais acusações, exatamente?

- perguntou, como sendo o bom agente da lei que

era.

- Enganação, perturbação da paz púbica,

xerife - o homem que falou tinha problemas com o

Page 31: O Feiticeiro

L , mas ninguém riu do fato de ele ter dito“ ”

púbica em vez de pública .“ ” “ ”

- Coloquem-no naquela cela ali, depois

resolveremos todo esse caso! - Antônio disse

tentando tomar controle da situação. O xerife

esperou todos os homens passarem para dentro da

delegacia até que viu um que conhecia e confiava.

- Guilherme, você fica de vigia, não dá pra

confiar nessas celas.

- Como quiser, senhor xerife - Guilherme

disse.

Antônio ficou olhando todos jogarem Jacir

para dentro da cela. O velho bateu na parede e caiu

no chão duro e sujo, pois a cela nunca antes fora

limpada. O xerife não fez nada do caso por

enquanto, embora nenhum dos homens realmente

parecesse estar são.

Se estivessem bêbados, provavelmente iriam

depois à delegacia para pedir a Antônio que

libertasse Jacir, então isso poupar-lhe-ia o trabalho

de investigar.

Page 32: O Feiticeiro

Investigar não era para Antônio, apenas leu

sobre investigação uma vez, num parágrafo em um

livro que seu neto lia durante uma visita da filha,

duas semanas após a fuga do marido. Era uma

história de um tal de Parrot, se não lhe falhava a

memória.

Jacir acordou na cela da prisão e, por um segundo,

não entendeu por que estava lá, então se lembrou

do que aconteceu. Olhou para fora da cela e viu que

Guilherme estava lá, em pé, como se fosse um

soldado. O xerife não era visto em lugar algum.

Enquanto isso, Fraga continuava a procurar

mais possíveis clientes. Andou pela cidade e

procurou por todos os lados alguém que estava em

aflitos. Não havia muita gente com problemas, no

mais era a prostituta e ela seria a única cliente que

acharia. Seu chefe não gostaria disso, ele prefere

pelo menos cinco pessoas por cidade - e quando é

cidade grande tem que ser no mínimo vinte. É, não

era fácil a vida de Fraga.

Page 33: O Feiticeiro

Ninguém da cidade o olhava torto, mas

ninguém era simpático com ele. Não porque não

queriam, mas porque o próprio Fraga não queria, e

ele lhes disse isso, embora não nessas palavras exatas.

O homem andava pela cidade como se ela fosse

dele, se sentindo o tal.

Suas botas marrons levantavam poeira por

onde passavam e seu chapéu preto o protegia do

calor escaldante do sol. Decidiu entrar no bar para

beber algo antes de continuar seu trabalho de

escravo.

- Bom dia, senhor Fraga - Guides o

cumprimentou, estava limpando ainda mais mesas,

parecia que nunca parava.

- Bom dia, dona Guides - Fraga

cumprimentou dando uma ajeitada no chapéu.

- Vai querer uma cerveja? - perguntou

quando já estava de volta ao balcão e ele já se

sentava numa mesa limpa.

- Sim, por favor.

Guides pegou um copo grande de trás da

Page 34: O Feiticeiro

bancada e o pôs sob um grande barril, onde girou

uma pequena peça e o líquido amarelado e muito

espumado desceu à caneca. O copo bateu na mesa e

Fraga tomou um gole grande.

- Obrigado - disse depois de pousar

novamente o copo grande na mesa. Fraga olhou

melhor para Guides e notou que ela estava com

uma expressão estranha na cara - Algo aconteceu?

- Não, não é nada! - ela disse inocentemente.

- Por favor, Guides. Posso não ser um

entendido de mulher, mas sei quando uma tá

preocupada com alguma coisa - é geralmente assim

que ganho mais trabalho, ele não acrescentou.

- O problema, Fraga, é que pensei que viria

para a cidade apenas por algum tempo, até me

estabilizar financeiramente e então partiria para a

Cidade dos Anjos, onde poderia abrir um negócio

de verdade, sabe? - falou sonhadora. - Mas agora faz

mais de cinco anos que tô aqui nessa merda e parece

que nunca vou sair.

- Não deve desistir dos seus sonhos, Guides,

Page 35: O Feiticeiro

algum dia eles podem se realizar.

- Mas sonhar é algo tão bobo; você tá sempre

nas alturas, parece que tá querendo que a queda seja

maior ainda.

- Sonhar não é bobo, é apenas... humano!

E de ser humano Fraga entendia. Podia ter

seu chefe que lhe ajudava o máximo que podia

porque Fraga era um bom funcionário, mas que era

humano era. Possuía um corpo de carne e osso

como qualquer um e pode morrer, quer queira,

quer não queira. Claro que, ao morrer, iria para o

lugar onde seu chefe mora. Mas mesmo que fosse

para um bom lugar, viver sempre será melhor.

É na vida onde temos cidades grandes e altas

oportunidades de trabalho - como naquela vez em

que Fraga invadiu um orfanato e conseguiu

diversos trabalhos, pois lá ninguém tinha esperança,

todos faziam qualquer acordo. Eventualmente o

orfanato fechou porque não havia mais crianças lá.

E eventualmente a funerária da cidade já estava

cheia de enterros para realizar.

Page 36: O Feiticeiro

Você pode conseguir o que quer, mas tem de

conseguir por si mesmo, ou então não vive tempo o

suficiente para aproveitar.

- Suponho que ocê tenha razão, Fraga -

Guides concordou por fim, após um bom tempo

refletindo sobre a frase dele enquanto esfregava o

balcão.

Fraga saíra de sua mesa e agora seu copo

pousava no balcão de Guides, o homem estava

sentado num banco alto que lhe possibilitava pousar

os braços na madeira que apoiava seu copo.

- E caso você não consiga isso tão logo

quanto espera, talvez eu possa te ajudar, sabe... eu

tenho uns contatos que podem te dar um avanço

muito grande até o seu sucesso.

- Pois me fale, homem - Guides pareceu se

interessar de repente.

- Não, não. Primeiro você precisa tentar

sozinha, senão não tem o porquê conseguir. Se for

pra pegar um atalho ao topo, melhor nem seguir

por esse caminho.

Page 37: O Feiticeiro

- Suponho que ocê tenha razão - repetiu.

- É claro que tenho. Sabe, eu vou passar na

Cidade em algum tempo, vou dar uma procurada

por você e espero que esteja lá, hein?!

Guides deu um sorrisinho tímido. Não era

bela, mas não era feia. Fraga não se importaria de

aguentar aquela mulher pelo resto da sua vida caso

fosse um simples trabalhador. Mas naquele emprego

possuía dinheiro o suficiente para contratar as

melhores prostitutas das cidades onde passava.

Cármene era a única cidade onde as

prostitutas não eram tão belas quanto o esperado.

Sabia por experiência própria que as das cidades

pequenas são as melhores, pois a cidade é pequena e

elas não são rodadas demais, mas não aquela uma

que foi em seu quarto.

Fraga percebeu que aquela realmente tentava

ajudar sua mãe, o cheiro de pecado era forte. Mas

não era pecado para ele e seu chefe, apenas para o

outro cara; para os dois aquilo era, entre diversas

outras coisas, apenas um outro acaso da vida.

Page 38: O Feiticeiro

- Não chove mais - Guides falou como que

para não deixar a conversa morrer, encarava o chão.

- Perdão? - Fraga perguntou.

- Disse que não chove mais - repetiu, agora

deixando de encarar o além e olhando para Fraga,

então jogando o pano molhado no balcão e

tornando a limpá-lo.

- Por que diz isso?

- Porque a última chuva que aconteceu faz

mais de uma semana, foi terrível. Caiu pedra do

céu.

Fraga pensou por um momento, sem saber o

que ela dizia.

- Ah, granizo! - entendeu.

- Isso mesmo, essas pedras do demônio -

xingou Guides. - Depois daquele dia não choveu

mais, o que é um horror pras plantações, e as pedras

ainda quase destruíram os quartos lá de cima.

Também destruiu um monte de casas.

- Essas chuvas parecem que vêm acontecendo

bastante pela região - disse antes de dar outro gole

Page 39: O Feiticeiro

na caneca com um restinho de cerveja.

Guides não viu o sorriso de Fraga. O homem

sabia do porquê dessas chuvas, era a maneira que o

outro cara achava para avisar o povo de uma região

que o coletor do senhor das trevas está chegando.

Primeiro ocorre a chuva de granizo, para preparar a

população para o pior, então, uma semana depois,

chega Fraga, já escolhendo quais são suas vítimas.

Era incrível, na opinião dele, nenhum jornal

ter percebido que isso sempre acontece antes dele

chegar no local em questão, sendo que as chuvas

estão sendo estudadas há algum tempo já. Elas não

começaram há muito, pois Fraga apenas chegou

naquela região de Meléas há pouco tempo. Menos

de um ano.

Mas as chuvas o acompanhavam, sempre

alertando os habitantes, ou ao menos tentando. Para

Fraga, seria mais prático o outro cara descer dos

céus para avisar sobre a chegada, mas ele não fazia

isso. Não se sabia o porquê.

- Mas logo é verão - Fraga disse. - Deve

Page 40: O Feiticeiro

começar a chover em alguns dias.

Assim que eu sair da cidade, para ser mais

preciso, pensou.

- Deus te ouça - Guides disse e olhou para os

céus, fazendo um gesto de pedido que Fraga não

entendeu, apenas porque, quando faz um pedido,

ele não vai para os céus.

Guides não notou que Fraga a lançara um

olhar assassino ao falar o nome do outro cara. Ele

mesmo é proibido de falar, bom, proibido não, mas

é como se fosse. Passara tanto tempo chamando ele

de outro cara que já começava a estranhar ouvir“ ”

os outros o chamando daquele nome estranho e sem

significado.

O outro cara, é isso o que ele é.

Os dois estavam conversando, o tempo

passava rapidamente. Fraga não bebeu mais,

precisava ficar sóbrio caso uma oportunidade

batesse à sua porta. E uma porta bateu, a do bar.

Uma mulher entrou correndo e logo se

aproximou do balcão, usava um vestido curto

Page 41: O Feiticeiro

vermelho e seu cabelo estava preso em um coque.

Olhava para trás desesperadamente e estava suada,

como se tivesse corrido desde a Cidade dos Anjos

até Cármene.

- Por favor, preciso de ajuda - a mulher falou

para Guides em engasgos.

- O que aconteceu? - Guides perguntou,

embora não a conhecesse.

- Meu marido, ele tá me seguindo. Eu preciso

me esconder em algum lugar!

Guides olhou Fraga como se quisesse uma

ajuda, mas ele não respondeu. O bar era dela, e se a

mulher quisesse ajudar a outra, que ajudasse.

- Entre aqui! - Guides levantou uma parte do

balcão e a mulher entrou.

- Obrigada - agradeceu ela.

Guides a empurrou para baixo e encarou

Fraga por um segundo, como se estivesse assustada

e não soubesse se havia feito a coisa certa. Logo

veio outro tapa na porta, desta vez mais forte. Fraga

virou o pescoço e notou que era o marido, ou então

Page 42: O Feiticeiro

alguém muito furioso com a mulher que se

escondia atrás do balcão.

- Cadê ela? - gritou soltando saliva pelo ar.

- De quem fala? - Fraga perguntou, achou

que era melhor ele lidar com o homem do que a

própria Guides fazer isso.

- Da puta da minha mulher, Georgia, que

estava com o Marciel, estava sim que eu vi! -

pareceu estar defendendo sua causa num tribunal.

- Ninguém está falando que ela não estava -

Fraga tentou acalmá-lo. - Mas não vimos sua

mulher aqui!

Fraga ainda segurava sua caneca de cerveja,

um restinho ainda menor do que antes. Falava

calmamente, pois achava que isso amansaria a fera.

O homem, que parecia estar bêbado, embora

devesse ter bebido em outro bar ou em casa, pois

não aparecera lá pela manhã, começou a revirar o

salão todo atrás da esposa traíra. Jogou mesas e

cadeiras no chão. Fraga deixou sua caneca no balcão

e foi atrás do marido.

Page 43: O Feiticeiro

- Ei, acho melhor você ir embora, pois aquela

mulher lá é a esposa do xerife! - Fraga mentiu

parecendo ser um bom ator, ele apontava para

Guides. O homem acreditou.

- Não importa quem é quem, cadê minha

mulher? - o homem jogou Fraga para o lado e ele

caiu numa montanha de cadeiras, bateu as costas.

O marido andou pisando firme até o balcão e

gritou com Guides, que não respondeu nada

porque estava assustada. Logo o maluco se apoiou

no suporte de madeira e espiou por cima da

bancada, viu sua mulher chorando agachada no

chão duro do bar.

- Achei você, sua vadia - sua voz foi

aumentando de tom.

- Não, por favor! - Georgia gritou em

desespero.

O marido iria agarrá-la e provavelmente a

matar, mas antes que pudesse fazer isso foi agarrado

por trás e jogado para o lado, embora não tivesse

caído. Era Fraga, que havia se levantado e deixava

Page 44: O Feiticeiro

uma mão na coluna numa tentativa fútil de fazer a

dor diminuir.

- Eu disse que era melhor você sair daqui! -

falou e correu para cima do homem.

Fraga o agarrou e jogou para fora do bar, o

marido caiu na estrada de chão e poeira foi jogada

aos céus. O homem o olhou com desespero e

levantou-se aos poucos, então saiu correndo de

perto do bar.

Fraga ficou lá por mais algum tempo, para o

caso do maluco voltar. Pôs a cabeça de volta para

dentro do bar e recebeu um abraço e um

agradecimento de Georgia, que disse que era

perseguida por seu marido durante todos os seus

anos de casados, que ele a via com um Marciel

imaginário e todo dia ela precisava correr para se

esconder do marido maluco. Ele estava sempre

bêbado, embora a mulher não soubesse de onde

vinha a bebida. Ela disse que nunca teve coragem

de contar ao xerife, mas Fraga a afirmou que era

isso o que deveria fazer, e logo.

Page 45: O Feiticeiro

- Não, eu não posso aceitar - Georgia disse

para Guides.

- Por favor, eu insisto. Não é como se eu

pudesse ficar sem fazer nada depois de ver o que

quase aconteceu aqui. Se não fosse Fraga... Por

favor, aceite.

- Mas eu não tenho nem como te pagar.

- Psst! - brincou Guides. - Não precisa pagar!

Georgia falou com Guides e a mulher, tendo

um bom coração, a ofereceu um dos quartos do

segundo andar, não cobraria nada. Fraga pagou pela

cerveja, apesar da insistência de Guides e saiu do bar

com um aceno com a cabeça.

O feiticeiro parou na frente de uma igreja e

percebeu que havia algo ocorrendo lá dentro, um

sermão, uma missa.

Ele empurrou a porta e, embora tenha feito

um tremendo barulho, ninguém olhou para trás,

estavam focados no padre que parecia falar frases

mais hipnotizantes que o próprio Fraga. Haviam

Page 46: O Feiticeiro

diversas fileiras de bancos marrons, onde diversos

fiéis se sentavam. A igreja estava lotada e Fraga teve

de ficar em pé ao lado da porta, escorado na parede

como se fosse um garoto que só estava lá porque

esperava a missa acabar para tacar fogo no local.

Todos vestiam roupas levemente formais: as

mulheres vestidos claros e os homens ternos, exceto

aqueles que possuíam menos dinheiro que os

demais, esses usavam apenas suas camisetas sujas que

também usavam para o trabalho.

O padre vestia uma longa túnica branca e

balançava muito as mãos, como se o movimento

fosse fazer sua voz ser transmitida com mais

facilidade. O cabelo do homem era curto e preto,

seu rosto um pouco arredondado, embora fosse

magro como um palito, pelo que dava para

perceber por conta da grossura de seus braços.

Fraga continuava a mascar o palito em sua

boca, o padre o olhava de hora em hora, parecia

estar checando se ele não havia tacado fogo na

igreja antes da hora de costume. O homem, em seus

Page 47: O Feiticeiro

trinta ou quarenta anos, ficava muito longe. A

igreja era comprida demais para que ele reparasse

em Fraga, para que realmente percebesse o que

vestia e usava em seu pescoço, o símbolo daquele

ser que o padre não gosta.

- Irmãos - o padre gritou e o grito terminou

num agudo alto. - Não devemos, sob hipótese

alguma, ceder às tentativas que o senhor das trevas

nos dá. Ele promete coisas que nunca irá cumprir, e

tudo isso porque é o rei da mentira. Não confie

nesse homem podre que lhes promete melhoras de

vida, pois ele é egoísta e só pensa em sí próprio.

DEUS é o caminho, a verdade e a vida. Amém.

- Amém - disseram em uníssono. Dessa vez,

Fraga não riu, mas seu rosto demonstrava desprezo.

- Agora, irmãos, vamos rezar a oração que o

Pai nos ensinou - sua voz foi diminuindo até que se

calou, cruzou as mãos à sua frente e todos os fiéis

fizeram o mesmo, começando a olhar para baixo.

- Pai nosso que estais no céu - começaram a

rezar e rezaram duas vezes mais, pois o Diabo está“

Page 48: O Feiticeiro

aqui conosco, eu o sinto, rezemos novamente foi”

dito pelo padre outras duas vezes.

- Ide em paz e que o Senhor vos acompanhe -

o padre sorriu e fez um gesto delicado à porta,

como se estivesse mandando o Senhor junto dos

fiéis que começavam a sair da capela.

- Graças a Deus falaram todos antes de se–

levantarem e sair.

Todos passavam por Fragas, mas ninguém se

importava com sua presença, muitos nem sequer o

conheciam. Os mais fiéis não iam ao bar e não

estavam na hora da discussão do dia anterior porque

estavam na igreja. Há missas quase todos os dias na

cidade.

O último saiu porta afora e o padre desceu do

altar e andou até Fraga, o som de seus passos

circulavam por toda a igreja, o piso era liso. Ele

cruzou os braços antes de chegar, como se estivesse

preparado para ouvir ou estivesse impedindo a

entrada de o que quer que Fraga fosse falar.

- Bom dia, meu filho - o padre falou para

Page 49: O Feiticeiro

Fraga de bom humor.

- Bom dia, seu padre - respondeu.

- O que queres aqui na minha humilde

igreja? Vejo que espera uma resposta ou explicação.

- Nada disso, não, senhor padre, só entrei

aqui porque notei que havia algo acontecendo.

- Entendo. Então não é de ir em igrejas? -

perguntou o padre.

- Digamos que não - Fraga respondeu.

- Pois bem, mas saiba que isso lhe garante um

lugar com o nosso Senhor, lá no paraíso - apontou

para cima como se o paraíso ficasse no teto da

igreja.

- O problema, senhor, é que já tenho outro

lugar marcado para ir! - Fraga respondeu dando um

sorriso de canto de boca, o padre não notou.

O que o bom homem notou, porém, foi

muito pior. Fraga usava, pendurado no pescoço

como um colar, o símbolo do pentagrama

invertido. O colar era de ferro, assim como o

símbolo. O padre deu uma olhada e fez o sinal da

Page 50: O Feiticeiro

cruz, tentando expulsar o demônio de dentro da

casa do Senhor.

- Creio que seja melhor se o senhor se

retirasse - o padre falou educadamente.

- Ah, mas justamente quando recém cheguei?

- Minha igreja é local para pessoas de alma

bondosa e pura, não para pessoas que usam o

símbolo do capeta no pescoço - fez o sinal da cruz

de novo para se livrar do mal-olhado.

- Mas quem disse que eu quero ficar aqui

dentro da sua igreja? - Fraga perguntou em uma

voz fina enquanto, com a mão direta, acariciou o

cabelo do padre.

- Ótimo, então por favor se retire - repetiu.

- O único problema, senhor padre, é que eu

ganho pelas minhas ações, e não apenas pelos meus

negócios - sorriu de maneira assassina.

O padre o olhou esquisito, medrosamente.

Pôs a mão no pescoço e puxou uma corda para

cima, em sua ponta havia um crucifixo e nele o

filho de seu Senhor. Fraga desviou o olhar.

Page 51: O Feiticeiro

O padre agarrou o crucifixo de tal maneira

que sua mão chegava a ficar vermelha. Parecia,

talvez, estar se punindo por ter permitido que um

cultuador do homem de baixo entrasse na casa do

Senhor. Não podia se dar chibatadas porque não era

hora de se fazer isso ainda, então aquela era a única

punição que podia se dar.

Não podia maltratar o adorador porque isso

não era coisa de um homem de puro coração. Só

lhe restava a fé, e embora sua fé fosse forte o

suficiente para mover montanhas, talvez pudesse

não ser o suficiente para parar o ataque de Fraga.

- O Senhor é meu Pastor - o padre repetiu

religiosamente em sussurros, como se os únicos que

pudessem ouvir fossem ele e seu próprio Deus.

- Será que ele é? - perguntou Fraga e logo se

pôs a rir.

- Tu vais para o inferno, e lá serás torturado

por desrespeito ao nosso Senhor, o único Senhor,

aquele que mandou seu filho para que sofresse por

nós, para que pagasse nossos pecados - o padre

Page 52: O Feiticeiro

continuou incansavelmente, Fraga já não parecia

mais se importar com as constantes acusações.

- Se queres falar de meu Senhor desta maneira

- Fraga começou a dizer, usando o mesmo tom do

padre -, ensinar-te-ei a não desrespeitá-lo, pois se o

seu não lhe ajuda, o meu me dá forças para

combater os desprezíveis como vós.

O padre estava a um braço e meio de

distância de Fraga, segurando seu crucifixo e

rezando. Não rezava apenas por ele, rezava também

por Fraga, afinal, era um cristão, e tinha esperanças

de que todos tinham salvação, mesmo aqueles que,

como Fraga, faziam as escolhas erradas.

- Liberte sua alma e permita que veja a sua

luz, meu Deus - o padre falou um pouco mais alto

do que o resto de suas frases.

Fraga estendeu o braço e fechou os olhos,

começou a rezar tão forte quanto o padre. Mas

enquanto o padre rezava pela alma de Fraga, o

próprio rezava por outra coisa, por isso sua prece foi

atendida. A alma do homem já estava podre, além

Page 53: O Feiticeiro

de vendida, não valia nada além de um mísero

centavo que não era da época. Nem mesmo o

Senhor do padre poderia o salvar, mas o Senhor de

Fraga atenderia seu pedido com todo o prazer do

mundo, afinal, é isso o que faz nos tempos livres.

O padre apertava o crucifixo contra o peito e

logo sua respiração ficou pesada. Lentamente seus

órgãos foram parando de funcionar e ele já não

respirava mais, sem deixar de, com seu último

suspiro, pedir pela benção de todos da cidade.

Não morreu, pois voltou logo depois, antes

mesmo de cair no chão. Voltou dando fungadas

fortes para que o ar entrasse em seus pulmões que

brevemente voltaram a funcionar. Estava com suas

mãos nos joelhos, encarando o chão como em uma

oração esquisita. Recuperava seu fôlego e logo o

diafragma prendeu durante a mesma respiração.

A morte é algo a mais para o Senhor de“ ”

Fraga, o bom mesmo é a tortura, tanto que essa é a

premissa de seu local de descanso. A tortura dá, para

o Senhor de Fraga, mais prazer do que a morte, que

Page 54: O Feiticeiro

apenas termina. A vida termina na morte. A tortura

pode durar para sempre.

O padre pôs a mão no abdome e tentava

respirar pela boca, a mantinha aberta para o caso de

o ar resolver ser sorvido novamente. Logo o

diafragma foi solto e o homem se pôs a ofegar

novamente. Não sentiu que voltaria a ter sua

respiração presa então aproveitou o ar puro de

dentro da igreja. Seu estômago rebulhava e sua

cabeça estourava em febre.

- Por que fazes isso? - o padre perguntou

ainda de cabeça vidrada no chão da capela.

Fraga se aproximou até que sua boca estivesse

na altura do ouvido do padre. Molhou os lábios e

pareceu ter pensado durante um segundo no que

falar.

- Diversão - foi o que escolheu responder.

- Você ainda tem salvação, meu filho - o

padre tentou, pela última vez, libertar a alma de

Fraga.

- Não, senhor. VOCÊ ainda tem salvação. É

Page 55: O Feiticeiro

só aceitar meu Senhor como o seu Senhor e estará

ao Seu lado, não sofrerá nem será punido, receberá

luxúrias por toda a eternidade.

- Esse não é o meu Senhor, e não deve ser o

seu também! - o padre disse.

Fraga fechou os olhos e pôs a mão na nuca do

padre, apertando-a com força. O homem reclamou

da dor, mas logo não a sentiu mais. O que acontecia

era pior do que a própria dor.

A lava de um vulcão parecia subir por sua

garganta procurando pela boca, e finalmente a

achou. O padre estava com os olhos abertos

enquanto encarava o chão e viu o líquido vermelho

sair pela boca e cair no piso bege da igreja. Seu

sangue brilhava no soalho liso e inundado por sol.

Sentiu que mais vinha e sentia dor. Seus

pulmões, seus rins, seu diafragma e seu coração

doía. O pequeno músculo que lhe dava vida lutava

para realizar a sístole e diástole de sempre.

Lentamente o coração parou de bater e permaneceu

parado, mas o homem continuava em pé.

Page 56: O Feiticeiro

Nunca é um caso perdido até que o cérebro

também tenha morrido, mas ele morria junto do

resto do corpo. O padre pôs a outra mão na cabeça,

enquanto a direta segurava o diafragma que

apertava sua barriga. O cérebro parecia derreter e a

febre aumentava. Logo o homem sentiu como se

vomitasse o próprio órgão do sistema nervoso pela

boca.

No céu eu estarei ao lado do Senhor, serei“

cuidado pelos anjos que Lhe servem o padre”

pensou, e pensou novamente enquanto vomitava

seu próprio sangue. Tossia e o barulho de sua

agonia só não era ouvido da rua porque parecia

estar isolado apenas na igreja.

- Escolha melhor na próxima vida, filho da

puta - Fraga disse no ouvido do padre antes dele

desmaiar no próprio vômito.

- Eu escolhi o certo. Eu escolhi o certo -

foram suas últimas palavras.

A túnica branca estava encharcada de

vermelho. E ninguém suspeitaria que o assassino

Page 57: O Feiticeiro

fora Fraga, pois ninguém realmente o notou parado

à porta da igreja. Sairia de lá impune e poderia

procurar por mais desesperados para conseguir as

outras quatro pessoas que lhe faltavam. Mesmo que

não conseguisse, sabia que o chefe estaria satisfeito

depois daquela demonstração de seu poder e

crueldade.

Fraga esfregou as mãos nas calças e ajustou o casaco

grande, então deu um peteleco no chapéu e abriu a

porta da igreja para sair de lá. Foi recebido na

cidade por uma pessoa que lhe era conhecida.

O problema com guardas comuns é que eles

dormem, e com as celas sendo fracas, é fácil para um

preso sair de uma delas e aparecer com uma

espingarda nas ruas da cidade. Fora isso o que Jacir

fizera, apenas esperou Guilherme pisar na bola, saiu

da cela e pegou a espingarda do xerife que não

estava lá no momento, pois falava com Guides no

bar.

Jacir apontava a espingarda de cano prata para

Page 58: O Feiticeiro

Fraga, o velho usava uma camisa flanela de xadrez e

calça bege. Seu cabelo era ralo e seus dentes pretos.

- Isso aqui – içaki - não é lugar procê,

feiticeiro filho da puta! - gritou e apertou o gatilho.

A bala foi rápida demais para que Fraga

desviasse. Ela passou direto pela sua testa, saindo do

outro lado e levando o chapéu junto. O homem

caiu de costas no chão duro da igreja e, quando os

outros habitantes chegaram para ver o que

acontecera, notaram padre Francisco caído no chão,

deitado sobre seu próprio sangue.