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INSTITUTO SOCJOAMBIENTAL data ../ ~.! _ cod. <p_3_ 1) ,wie>,ez __ 00 __ Comissão pró Índio de São Paulo São Paulo, 04 de junho de 1997 Prezados Amigos, Vimos, por meio desta, encaminhar ao seu conhecimento o documento "Análise - Decreto Presidencial que Estabelece Procedimentos Administrativos Gerais para a Titulação das Terras Ocupadas pelas Comunidades Remanescentes de Quilombos" produzido pela Comissão Pró-Índio de São Paulo. Através deste documento, apresentamos os motivos que nos levaram a recomendar o re-estudo da minuta do referido decreto. Cordialmente, (/]Wv~ Lúcia/Andrade Rua Ministro Godói, 1484 - Perdizes - CEP 0501 5-900- tel/fax 011 864.1180 - São Paulo - SP - Brasil j ~-----·· -~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

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Page 1: Comissão pró Índio · do artigo 68 do ADCT da Constituição Federal, cuja minuta encontra-se em consideração pela Casa Civil da Presidência da República, desde 07 de maio

INSTITUTO SOCJOAMBIENTAL

data ../ ~.! _ cod. <p_3_ 1) ,wie>,ez __ 00 __ Comissão pró Índio

de São Paulo

São Paulo, 04 de junho de 1997

Prezados Amigos,

Vimos, por meio desta, encaminhar ao seu conhecimento o documento "Análise - Decreto Presidencial que Estabelece Procedimentos Administrativos Gerais para a Titulação das Terras Ocupadas pelas Comunidades Remanescentes de Quilombos" produzido pela Comissão Pró-Índio de São Paulo.

Através deste documento, apresentamos os motivos que nos levaram a recomendar o re-estudo da minuta do referido decreto.

Cordialmente,

(/]Wv~ Lúcia/Andrade

Rua Ministro Godói, 1484 - Perdizes - CEP 0501 5-900- tel/fax 011 864.1180 - São Paulo - SP - Brasil j

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Comissão pró Índio de São Paulo

Análise Decreto Presidencial que Estabelece

Procedimentos Administrativos Gerais para a Titulação das Terras Ocupadas pelas

Comunidades Remanescentes de Quilombos

São Paulo, maio de 1997

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Apresentação

O presente documento tem por objetivo apresentar as razões que levam a Comissão Pró-Índio de São Paulo a recomendar o re-estudo do decreto presidencial que estabelece procedimentos administrativos para o cumprimento do artigo 68 do ADCT da Constituição Federal, cuja minuta encontra-se em consideração pela Casa Civil da Presidência da República, desde 07 de maio de 1997.

Em face dos argumentos expostos a seguir, a Comissão Pró-Índio de São Paulo sugere também a definição de um plano de metas para orientar as iniciativas dos diversos órgãos do governo federal enquanto se desenvolvem os novos estudos.

Ao nosso ver, esta seria uma forma mais prudente de otimizar as ações governamentais dado o estágio ainda inicial em que se encontra nosso conhecimento sobre a matéria. Desta forma, estaríamos nos precavendo do risco de engessar a ação do governo federal num único procedimento administrativo que, no futuro, pode se mostrar pouco eficaz, ou mesmo prejudicial.

1 = Desafios para a Aplicação do Artigo 68

1.1. A minuta parece ter sido concebida a partir do pressuposto que os processos de reconhecimento das terras remanescentes de quilombos não estão tendo andamento adequado exclusivamente, ou principalmente, por falta de clareza quanto aos procedimentos administrativos a serem adotados - lacuna que o decreto pretende sanar.

1.2. Neste sentido, consideramos importante, primeiramente, dismistificar a idéia de que o processo de regularização desta categoria de terras não está tendo evolução. Diversas iniciativas vêm sendo implementadas por diferentes instâncias governamentais, tendo resultado, inclusive, na emissão de títulos de propriedade coletiva para três comunidades quilombolas no Estado do Pará (cf. item 2 a seguir).

1.3. Em segundo lugar, esclarecemos que as dificuldades para a aplicação do artigo 68 advém do caráter inovador desta matéria constitucional que impõe ao Poder Público a concepção e a aplicação de novos caminhos. Assim, os obstáculos não resultam de uma simples falta de definição de competências, ou de ausência de coordenação de ações entre os órgãos governamentais.

Ao introduzir uma inovação na tradição da legislação agrária brasileira, este preceito constitucional coloca a necessidade de revisão de procedimentos técnicos e jurídicos dos órgãos afetos à questão do ordenamento fundiário agrário, territorial e ambiental para reconhecer e incorporar as diferenças étnicas e culturais (ln: ''O Direito de Propriedade dos Remanescentes das Comunidades de Quilombos no Estado de São Paulo", Relatório Final do Grupo de Trabalho criado pelo Decreto nº 40. 723 de 21.03.96, São Paulo, 1997: 17).

Neste sentido, é preciso contextualizar a "questão quilombola" no debate agrário mais amplo. Este tema específico vem somar-se a uma discussão já em curso que tem procurado chamar a atenção do Poder Público para as diferentes formas de apropriação e utilização da terra e de seus recursos naturais pelas chamadas

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"populações tradicionais" - formas que estão a demandar um reconhecimento oficial.

Finalmente, observamos que outro fator que vem, na prática, comprometendo a plena aplicabilidade do artigo 68 é a necessidade, em inúmeras situações, de desapropriação de áreas particulares e de revisão de limites de áreas de proteção ambiental - pontos críticos que, como procuraremos demonstrar, não foram enfrentados de forma adequada na minuta proposta e que, portanto, persistirão mesmo com a assinatura do decreto (cf. item 3 abaixo).

2. Diversidade de Iniciativas em Curso

2.1. Destacamos que, ao lado das medidas concretizadas no âmbito do Ministério da Cultura, muitas outras ações têm sido efetivadas visando o cumprimento do artigo 68 tanto por órgãos do governo federal quanto estaduais - isto sem mencionar as ações de organizações não-governamentais e do Ministério Público Federal.

Estas iniciativas pontuais produziram um acúmulo que deve, sem dúvida, ser considerado no momento de se fixar procedimentos administrativos de caráter genérico. Infelizmente, a leitura da minuta indica que tais experiências não foram devidamente contempladas na elaboração do decreto.

Isto se depreende, por exemplo, do fato da minuta instituir um procedimento para a regularização das terras quilombolas totalmente diverso daquele que permitiu as três únicas titulações já levadas a cabo pelo governo. A minuta ignora o fato destes três precedentes terem já delineado um procedimento ágil para o reconhecimento de áreas quilombolas situadas em terras devolutas da União. procedimento que vem norteando a ação do INCRA desde 1995.

Também não foram devidamente consideradas as iniciativas dos governos estaduais. O decreto vizualiza um procedimento de mão única do governo federal para o estadual (e municipal).

Do nosso ponto de vista, a minuta subestima a importância das ações que estão sendo implementadas pelos governos do Estado de São Paulo, Maranhão e Pará para o reconhecimento de áreas quilombolas situadas em terras devolutas do estado - uma via que pode possibilitar a descentralização e a agilização da condução dos processos (cf. item 4 adiante).

2.2. Entre as iniciativas objetivando a aplicação do artigo 68, ressaltamos, em primeiro lugar, os três títulos de propriedade já outorgados pelo INCRA às Comunidades Remanescentes de Quilombos Boa Vista (em 1995), Água Fria e Pacoval ( em 1996 ), localizadas no Estado do Pará.

Na continuidade deste trabalho pioneiro, uma equipe de técnicos do INCRA e do Instituto de Terras do Pará encontra-se, neste exato momento, no Município de Orixirninã, realizando os levantamentos de campo para a titulação de mais cinco áreas quilombolas. A entrega do título de propriedade para estas comunidades está prevista para novembro deste ano.

2.3. Outro exemplo de ação efetiva e sistemática vem do governo de São Paulo. Sua intervenção neste campo teve início no ano de 1996 com a criação de um grupo de trabalho destinado a definir medidas para garantir a plena aplicabilidade do artigo 68 em território paulista (Decreto Estadual nº 40. 723 de

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21.03.96). Este grupo de trabalho contou com a participação de diversos órgãos do governo estadual e representantes da sociedade civil.

No ano passado, o grupo de trabalho viabilizou a identificação e o levantamento fundiário de oito áreas remanescentes de quilombos, através do Instituto de Terras de São Paulo.

Avançando na sua atuação, o governo estadual instituiu em, 13 de maio último, um programa de cooperação e ação conjunta de diversas secretarias para "identificafão, discriminação e legitimação de terras devolutas do Estado de São Paulo e sua regularização fttndiária ocupadas por remanescentes das comunidades de qttilombos, implantando medidas sâcio-econõmicas, ambientais e culrurais" (Decreto Estadual nº 41.774, de 13 de maio de 1997).

Ainda com relação a esta matéria, o governo de São Paulo está preparando um projeto de lei, a ser encaminhado para Assembléia Legislativa, que dispõe sobre a legitimação de posse aos remanescentes de quilombos. Tal reconhecimento seria instituído no estado como uma primeira etapa para o processo de titulação.

2.4. Também no Estado do Maranhão constatamos a atuação do governo estadual, através de uma parceria do Instituto de Terras do Maranhão com a Coordenação Estadual dos Quilombos Maranhenses, a Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos e o Centro de Cultura Negra do Maranhão. Trata-se do "Projeto Terras de Quilombo" que, desde janeiro de 1997, vem procedendo o levantamento de 46 povoados negros.

A etapa de levantamento deve ser concluída em junho deste ano quando se passará para a fase de titulação das áreas incidentes em terras devolutas do estado.

2.5. Observamos ainda que o Governo do Estado do Pará, além de atuar em parceria com o INCRA, na identificação, demarcação e titulação de áreas quilombolas no Município de Oriximiná, está ultimando providências para a criação de um grupo de trabalho nos moldes daquele instituído pelo governo de São Paulo.

Entre as atividades previstas para este grupo está um censo das comunidades remanescentes de quilombos do Estado do Pará para subsidiar futuras ações de regularização fundiária pelo governo estadual.

2.6. Chamamos ainda a atenção para o fato de que várias das ações em curso não se restringem à regularização fundiária, mas buscam garantir uma assistência diferenciada a estes grupos - questão que não é enfocada na minuta em análise.

Organismos governamentais vêm tomando iniciativas que ampliam o direito assegurado na Constituição - que se refere especificamente à propriedade da terra - procurando oferecer assistência técnica para a exploração agronômica e extrativista, acesso a créditos rurais, capacitação técnico-agrária, programas culturais e assistência educacional.

Assim, em 1995, o INCRA estabeleceu uma categoria especial de projeto de assentamento, o Projeto Especial Quilombola, para garantir um apoio ao desenvolvimento sócio-econômico destes grupos, respeitadas as suas parciculariedades culturais. Já foram criados três desces projetos especiais quilombolas nas comunidades cujas áreas foram tituladas pelo INCRA em 1995 e 1996.

Ainda na esfera federal, mencionamos as ações do IBAMA, visando o apoio ao desenvolvimento sustentado das comunidades quilombolas. Este instituto desenvolve programas com comunidades remanescentes de quilombos da região de

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Oriximiná, no Pará, que se encontram em terras sobrepostas e vizinhas à Reserva Biológica do Trombetas e a Floresta Nacional Saracá-Taquera.

O IBAMA atua ainda junto a Comunidade do Quilombo do Frexal, no Maranhão, uma vez que a área ocupada por este grupo foi transformada em reserva extrativista no ano de 1992.

. Nesta mesma direção, temos a já referida iniciativa do governo do Estado de São Paulo que, neste mês de maio, criou um "programa de cooperação técnica e ação conjunta" para a implantação de medidas sócio-econômicas, ambientais e culturais para as comunidades quilombolas do estado (Decreto Estadual nº 41. 774 de 13.05.97).

2.7. O relato acima demonstra que, no esforço de se garantir a titulação das terras quilombolas, tem-se percorrido caminhos diversos. Estamos, por assim dizer, num estágio inicial de experimentação. Muitas destas experiências ainda estão em fase de implementação e sua eficácia está por ser avaliada.

É por essa razão que a Comissão Pró-Índio de São Paulo opina que ainda não se tem acúmulo suficiente para definir qual dos caminhos é o mais adequado e recomenda prudência antes de se estreitar as possibilidades de intervenção.

De outro lado, é preciso lembrar da imensa diversidade que existe por de trás das "terras quilombolas", São mais de 600 grupos distribuídos por dezessete estados. Diferem as comunidades, a forma de explorarem suas terras, a situação fundiária das áreas, os conflitos, os agentes governamentais envolvidos, as legislações fundiárias de cada estado. Enfim, nos parece precipitado já afunilar o processo num único caminho, pois o que pode ser convinience numa situação pode se mostrar pouco eficaz em outra realidade.

3. Os Direitos Territoriais das Comunidades Remanescentes de Quilombos e a Questão Fundiária

3.1. Outro pressuposto da minuta que nos parece equivocado é de o conceber a regularização desta categoria de terras como uma questão prioritariamente cultural - o que leva o decreto a destinar a um órgão do Ministério da Cultura a tarefa de gerenciar o processo de titulação destas cerras e de zelar por sua proteção.

Nos parece uma distorção confundir esta missão com a preservação do patrimônio cultural brasileiro ou de "valores culturais".

O que está em jogo é defesa da cidadania de grupos étnicos de origem afro-brasileira, cuja a identidade e a sobrevivência física e cultural está diretamente vinculada a garantia de um território específico.

O artigo 68 inova e avança reconhecendo direitos territoriais deste segmento da Sociedade Brasileira. Neste sentido estamos diante de uma problemática fundiária. É neste contexto que a "questão quilombola" precisa ser compreendida e equacionada.

E, assim sendo, a concretização deste direito depende diretamente da construção de uma política agrária que possibilice o reconhecimento das diversas formas de ocupação do campo decorrente das diferenças sócio-culturais e étnicas.

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3.2. Por outro lado, é muito importante que o Poder Público compreenda que o cumprimento do artigo 68, além de atender ao direito de um segmento específico de nossa sociedade - garantindo sua sustentação física e cultural e resgatando uma divida histórica - representa também um passo na democratização da estrutura agrária do País.

Os inúmeros casos de conflitos opondo remanescentes de quilombos a fazendeiros, grileiros, madeireiros e mineradoras demonstram que existe uma disputa em curso e que a execução do artigo 68 contribuirá com a democratização do acesso à terra.

A aplicação deste preceito terá, portanto, um impacto sobre a estrutura agrária que ainda está por ser avaliado, mas, que certamente, é maior do que se imaginava em 1988, quando a Constituição foi promulgada.

3.3. Assim, observamos que o maior desafio para a aplicação do artigo 68 é justamente encontrar uma forma de titular as áreas de comunidades quilombolas incidentes em domínios particulares.

A Constituição reconhece às comunidades remanescentes de quilombos o direito de propriedade, mas não declara a nulidade dos títulos anteriores - como faz, por exemplo, no caso das terras indígenas.

Existe entre os juristas a compreensão de que, na eventualidade de uma incidência em domínios particulares, prevalece o que está na Constituição, ou seja, a propriedade da comunidade remanescente de quilombo.

Porém, faz-se necessário encontrar a melhor maneira para, na prática, reconhecer o domínio à comunidade quilornbola e garantir a desintrusão de suas terras. Aí reside outro ponto problemático da minuta em análise.

3.4. No caso da existência de títulos legítimos de propriedade em áreas quilombolas, a minuta determina a desapropriação por interesse social.

A solução adotada pela minuta gera preocupação uma vez que este tipo de desapropriação exige o pagamento em dinheiro - o que, sem dúvida, constitui grave fator limitador para a sua implementação.

Se considerarmos: (i) que os dados preliminares já indicam a existência de mais de seiscentas comunidades quilombolas e que se calcula que elas possam chegar a mil; (ii) que a grande maioria dos casos está incidente em domínios particulares; (iii) e os altos valores das indenizações de terra e benfeitorias, não é difícil avaliar a imensa dificuldade a ser enfrentada pelo Poder Público para levar a cabo tais desapropriações.

3.5. Preocupados justamente com a questão da sobreposição de áreas quilombolas com domínios particulares, a Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, o Fórum Estadual de Entidades Negras de São Paulo e a Comissão Pró-Índio de São Paulo, organizaram, no dia 01 de abril de 1997, uma reunião técnica para debater possíveis soluções.

Entre as alternativas levantadas pelos especialistas, estavam a desapropriação para fins de reforma agrária e a compra de terras para fins de reforma agrária. Estas duas possibilidades foram aventadas em função de se poder utilizar Títulos da Dívida Agrária para a execução do pagamento, o que pode favorecer em muito a agilização do processo.

Este debate está ainda num estágio embrionário, mas com sua evolução, acredita-se que há possibilidade da regularização das terras quilombolas ser

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comprendida dentro do âmbito da reforma agrária. Isto é possível uma vez se trata de uma medida que contribui com a democratização da terra, com a resolução de conflitos agrários e com a promoção do homem do campo.

Assim, foi lembrada a experiência do INCRA de desapropriar para fins de reforma agrária as terras da Comunidade Remanescente de Quilombo Rio das Rãs, na Bahia, e também as dificuldades enfrentadas para transferir a dominialidade ao grupo.

Destacamos que nenhum dos especialistas presentes neste encontro - que reuniu juristas, integrantes do INCRA, da Fundação Cultural Palmares, do Instituto de Terras de São Paulo, do Instituto de Terras do Pará, da Procuradoria Geral da República, da Procuradoria do Estado de São Paulo, entre outros - arriscou-se a apresentar a solução ideal para a questão, preferindo indicar possíveis alternativas para aprofundamento.

3.6. A reunião citada foi mais uma demonstração de que o conhecimento que se dispõe sobre esta matéria encontra-se ainda em estágio inicial, não possibilitando, neste momento, a definição da fórmula mais adequada para enfrentar tais situações. É por este motivo que consideramos a opção por uma única via, como é feito na minuta, precipitada e extremamente perigosa.

Lembramos, mais uma vez, que as alternativas estão sendo buscadas e implementadas caso a caso. O Poder Público não está parado em função da ausência de normatização, A avaliação dos resultados destas primeiras experiências e o aprofundamento teórico da matéria é que vão possibilitar a definição da norma mais adequada.

3.7. Com relação a regularização de áreas quilombolas situadas em terras devolutas da União, estranhamos que a minuta tenha ignorado as lições das titulações já realizadas.

Como já mencionamos, estes processos pioneiros instituíram um procedimento eficaz para o reconhecimento de áreas quilombolas incidentes em terras devolutas da União que se encontra em plena aplicação pelo INCRA.

Foi tal procedimento que possibilitou ao INCRA o reconhecimento de uma área quilombola em 1995, duas áreas em 1996 e que vem orientando a condução do processo de mais cinco comunidades, cujas terras devem ser tituladas em 1997.

Lamentamos que a minuta desconheça este trâmite, substituindo-o por outro. E, mais ainda, alertamos que esta decisão pode implicar no atraso da conclusão dos processos ora em tramitação no INCRA (cinco áreas quilombolas no Município de Oriximiná) prevista para novembro de 1997. Este temor baseia-se no fato do decreto determinar que todos os processos que se encontrem em órgãos da Administração Pública Federal sejam transferidos para a Fundação Cultural Palmares (artigo 14).

Quer nos parecer que tais processos seriam transferidos para FCP para, posteriormente, retornar ao INCRA, já que este é o órgão que tem competência para titular as terras devolutas da União. Assim, temos a impressão que, ao invés de agilizar a execução dos referidos processos, estaria-se burocratizando sua conclusão.

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3.8. Observamos também que a minuta não enfrenta de forma adequada a questão da incidência de terras quilombolas em áreas de proteção ambiental.

A minuta estabelece que "identificadas ocupações de comunidades remanescentes dos quilombos cm terras públicas federais afetadas para outro fim, será respeitado o direito daquelas comunidades ao reconhecimento da propriedade definitiva"(§ 2º, artigo 5º).

Determina também que "tratando-se de terras afetadas para fins ambientais, deverão as entidades envolvidas e as comunidades beneficiárias elaborar projeto de exploração de exploração sustentável, de modo a compatibilizar os interesses das comunidades com a preservação do meio ambiente"(§ 3º, artigo 5°).

Embora concordemos que o direito dos quilombolas deva prevalecer, alertamos que o cumprimento deste decreto é complexo. A extinção de uma área de proteção ambiental ou a mudança de seus limites não depende exclusivamente do Poder Executivo.

A legislação ambiental obriga o governo a submeter propostas desta natureza ao Congresso Nacional. Esta alteração depende da aprovação de um projeto de lei pelo Legislativo. Não se pode diminuir uma área de proteção ambiental com um ato da mesma categoria que o criou.

Esta é uma enorme limitação a ação do Poder Público que visou proteger as reservas ecológicas dos jogos de interesse político, mas que, por outro lado, acabou dificultando a possibilidade de se corrigir distorções. Tal fato é ignorado pela minuta que cria expectativas que não poderão ser atendidas.

A solução para esse impasse também está por ser encontrada. O projeto de lei do SNUC-Sistema Nacional de Unidades de Conservação, em tramitação na Câmara dos Deputados, prevê a possibilidade de revisão de categoria de unidade conservação ou revisão de limites em função da presença de populações tradicionais. Uma iniciativa, talvez, fosse procurar incluir neste projeto uma menção específica às comunidades remanescentes de quilombos.

3.9. Encerrando este item, comentamos o artigo 9º da minuta que determina que a titulação seja feita em nome da comunidade remanescente de quilombo.

Embora concordemos que esta seja a forma mais adequada de se proceder, alertamos que não há parâmetro legal para que se possa determinar que a titulação seja coletiva e não individual. O artigo 68 faculta as duas alternativas.

A solução deverá variar conforme cada caso, uma vez que não há substrato legal para obrigar os remanescentes de quilombos a optarem pela titulação coletiva.

4. Centralização Excessiva de Competência

4.1. Voltando a questão de pressupostos, manifestamos nossa preocupação com perspectiva extremamente centralizadora que norteia a minuta.

Centralizadora porque pressupõe que o processo de regularização desta categoria de terras dar-se-á necessariamente por iniciativa do governo federal. É assim que, no seu artigo 7º, a minuta determina que "constatado que as terras reconhecidas como de comunidades remanescentes dos quilombos incidem em áreas patrimoniais dos Estados, do Distrito Federal ou de Munidpios, a Fundação Cultural Palmares encaminhará o processo à esfera governamental competente, fazendo-se acompanhamento, para os fins do disposto no art. ó8 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias".

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A minuta desconhece ou, pelo menos, não valoriza as ações que estão sendo executadas pelos governos estaduais. O caminho parece ser vizualizado sempre na direção do governo federal para o estadual - e mesmo alcançando esta esfera pressupõe-se um acompanhamento do governo federal.

Na busca da agilização destes processos, nos parece recomendável estimular as iniciativas descentralizadas estaduais, dividindo responsabilidades com os governos dos estados. Sabemos que se o governo estadual não foi previamente sensibilizado para a questão, não participou das etapas iniciais do processo, dificilmente lhe dedicará a devida prioridade.

A descentralização é recomendável também pelo número considerável de terras quilombolas a serem tituladas e sua grande dispersão geográfica, características que podem representar um fator limitante à atuação do governo federal.

4.2. Dentro da esfera do governo federal também é assustadora a concentração de competência determinada pela minuta. Todas as ações referentes ao reconhecimento da propriedade e titulação das terras quilombolas (incluindo as medidas de identificação, delimitação, medição e demarcação topográfica) serão gerenciadas por um único órgão: a Fundação Cultural Palmares.

A minuta, no seu artigo 2º, fala em coordenação das ações administrativas, mas o texto que se segue, na verdade, transforma a FCP no órgão gerenciador de todos os procedimentos referentes à matéria. O decreto acaba por transformar a FCP no único órgão com poder de tomar iniciativas visando a titulação das terras quilombolas. Todos os demais órgãos da administração federal só poderão agir por provocação da FCP.

Tanto assim que a minuta determina que "todos os procedimentos administrativos relativos à identificação das comunidades remanescentes dos quilombos e à titulação das terras por elas ocupadas, bem como os trabalhos de delimitafão, medição e demarcação que se encontrem em órgãos da AdministrafãO Pública F 'ederal deoerão ser transferidos para a Fundaçâo Cultural Palmares"(artigo 14).

Nesta mesma direção, a minuta estabelece que caberá à FCP orçar, provisionar e gerir os recursos destinados às despesas administrativas decorrentes do cumprimento do decreto (artigo 15).

4.3. Uma centralização de tal ordem já fator de preocupação. A apreensão, porém, é ainda maior quando consideramos que o órgão escolhido para tal não tem qualquer tradição na execução de ações fundiárias.

Soma-se a isso o fato da FCP ser, entre os órgãos da administração federal de alguma forma afetos à matéria, o que possui o menor quadro de funcionários e a mais reduzida infra-estrutura.

Por mais boa vontade e disposição que os responsáveis pela gestão da FCP tenham em cumprir a determinação do decreto, será impossível executar com eficiência uma tarefa desta envergadura. E não nos parece que seja o caso de se aparelhar um órgão exclusivamente para esta função.

Pelo contrário, a melhor alternativa seria dividir as responsabilidades com o órgão fundiário do governo federal, o INCRA, bem como com o Serviço de Patrimônio da União, com o IBAMA e outros mais.

É preciso que tais órgãos incluam entre suas prioridades a regularização das terras quilombolas - e isto significa incluir também nos seus orçamentos. E isto não

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se conseguirá como uma postura centralizadora que permite a ação destas instâncias apenas quando provocadas pela FCP.

4.4. Neste sentido, acreditamos que o estabelecimento de um plano de metas pode constituir uma alternativa mais produtiva para impulsionar os processos de regularização das terras quilombolas e as ações visando o apoio nas áreas do desenvolvimento sustentado, assistência médica e educacional, e valorização das tradições culturais destes grupos.

Neste plano, estaria-se indicando os objetivos de curto, médio e longo prazo a serem alcançados (tanto em termos de titulações efetivas, quanto de novos estudos para definição de norrnatização), destacando aqueles que podem ser imediatamente concretizados com os instrumentos legais e jurídicos disponíveis e aqueles que dependerão de inovações a serem introduzidas por decretos presidenciais ou projetos de lei.

Neste plano, ainda, seriam delineadas as responsabilidades dos diferentes órgãos da administração federal, procurando dividir as tarefas conforme as competências legais e técnicas de cada um deles, numa perspectiva de descentralização. E neste sentido, seria importante convocar também outros ministérios, como o da Educação e da Saúde, que ainda não desenvolvem ações específicas com esta população.

Finalmente, o plano de metas definiria os recursos necessanos para a execução das tarefas a serem implementadas, indicando a contribuição de cada um dos organismos envolvidos e também aquele montante que teria que ser levantado junto a outras fontes. Mais uma vez, estaria-se trabalhando na ótica da descentralização, com cada órgão garantindo e gerenciando os recursos necessários à execução de sua tarefa específica.

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