o índio na cultura brasileira

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O índio na cultura brasileira Berta G. Ribeiro

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O índio na cultura brasileiraBerta G. Ribeiro

América Latina: a pátria grandeDarcy Ribeiro

Prefácio: Eric Nepomuceno

O índio na cultura brasileiraBerta G. Ribeiro

Prefácio: Ana Arruda Callado

América Latina: a pátria grandeDarcy Ribeiro

Prefácio: Eric Nepomuceno

Os Correios, reconhecidos por prestar serviços postais com

qualidade e excelência aos brasileiros, também investem em

açõesquetenhamaculturacomoinstrumentodeinclusãosocial,

pormeiodaconcessãodepatrocínios.Aatuaçãodaempresavisa,

cadavezmais,contribuirparaavalorizaçãodamemóriacultu-

ralbrasileira,ademocratizaçãodoacessoàculturaeofortaleci-

mentodacidadania.

ÉnessesentidoqueosCorreios,presentesemtodooterritório

nacional, apoiam, com grande satisfação, projetos da natureza

desta Biblioteca Básica Brasileira e ratificam seu compromisso

emaproximarosbrasileirosdasdiversas linguagensartísticase

experiênciasculturaisquenascemnasmaisdiferentesregiões

dopaís.

A empresa incentiva o hábito de ler, que é de fundamental

importância para a formação do ser humano. A leitura possibi-

litaenriquecerovocabulário,obterconhecimento,dinamizaro

raciocínioeainterpretação.Assim,osCorreiosseorgulhamem

disponibilizaràsociedadeoacessoalivrosindispensáveisparao

conhecimentodoBrasil.

Correios

Os Correios, reconhecidos por prestar serviços postais com

qualidade e excelência aos brasileiros, também investem em

açõesquetenhamaculturacomoinstrumentodeinclusãosocial,

pormeiodaconcessãodepatrocínios.Aatuaçãodaempresavisa,

cadavezmais,contribuirparaavalorizaçãodamemóriacultu-

ralbrasileira,ademocratizaçãodoacessoàculturaeofortaleci-

mentodacidadania.

ÉnessesentidoqueosCorreios,presentesemtodooterritório

nacional, apoiam, com grande satisfação, projetos da natureza

desta Biblioteca Básica Brasileira e ratificam seu compromisso

emaproximarosbrasileirosdasdiversas linguagensartísticase

experiênciasculturaisquenascemnasmaisdiferentesregiões

dopaís.

A empresa incentiva o hábito de ler, que é de fundamental

importância para a formação do ser humano. A leitura possibi-

litaenriquecerovocabulário,obterconhecimento,dinamizaro

raciocínioeainterpretação.Assim,osCorreiosseorgulhamem

disponibilizaràsociedadeoacessoalivrosindispensáveisparao

conhecimentodoBrasil.

Correios

O livro, essa tecnologia conquistada, já demonstrou ter a

maiorlongevidadeentreosprodutosculturais.Noentanto,mais

queossuportesfísicos,asideiasjádemonstraramsobreviverain-

damelhoraosanos.EsseéocasodaBibliotecaBásicaBrasileira.

EsseprojetoculturalepedagógicoidealizadoporDarcyRibeiro

tevesuassementeslançadasem1963,quandoforampublicados

osprimeirosdezvolumesdeumacoleçãoessencialparaoconhe-

cimentodopaís.SãotítuloscomoRaízesdoBrasil,Casa-grande

&senzala,AformaçãoeconômicadoBrasil,OssertõeseMemóriasde

umsargentodemilícias.

Esse ideal foi retomado com a viabilização da primeira fase

dacoleçãocom50títulos.Aotodo,360milexemplaresserãodis-

tribuídos entre as unidades do Sistema Nacional de Bibliotecas

Públicas,contribuindoparaaformaçãodeacervoeparaoacesso

públicoegratuitoemcercade6.000bibliotecas.Trata-sedeuma

iniciativaousadaàqualaPetrobrasvemjuntarsuasforças,cola-

borandoparaacompreensãodaformaçãodopaís,deseuimagi-

nário e de seus ideais, especialmente num momento de grande

otimismoeprojeçãointernacional.

Petrobras-PetróleoBrasileiroS.A.

O livro, essa tecnologia conquistada, já demonstrou ter a

maiorlongevidadeentreosprodutosculturais.Noentanto,mais

queossuportesfísicos,asideiasjádemonstraramsobreviverain-

damelhoraosanos.EsseéocasodaBibliotecaBásicaBrasileira.

EsseprojetoculturalepedagógicoidealizadoporDarcyRibeiro

tevesuassementeslançadasem1963,quandoforampublicados

osprimeirosdezvolumesdeumacoleçãoessencialparaoconhe-

cimentodopaís.SãotítuloscomoRaízesdoBrasil,Casa-grande

&senzala,AformaçãoeconômicadoBrasil,OssertõeseMemóriasde

umsargentodemilícias.

Esse ideal foi retomado com a viabilização da primeira fase

dacoleçãocom50títulos.Aotodo,360milexemplaresserãodis-

tribuídos entre as unidades do Sistema Nacional de Bibliotecas

Públicas,contribuindoparaaformaçãodeacervoeparaoacesso

públicoegratuitoemcercade6.000bibliotecas.Trata-sedeuma

iniciativaousadaàqualaPetrobrasvemjuntarsuasforças,cola-

borandoparaacompreensãodaformaçãodopaís,deseuimagi-

nário e de seus ideais, especialmente num momento de grande

otimismoeprojeçãointernacional.

Petrobras-PetróleoBrasileiroS.A.

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o ix

sumário

Apresentação xi

Prefácio–AnaArrudaCallado xiii

Prefáciodaautora 3

Parte I – O saber indígena I Anaturezahumanizada.Osaberetnobotânico 9

Introdução 9

1. Ousodosolo 11

2. Técnicasagrícolas 14

3. “Aagriculturanômade” 21

4. Remanejamentodecapoeiras 23

5. Seleçõesgenéticasdeplantas 29

6. Repertóriodeplantascultivadas 35

a)Grãos,tuberosasefeijões 35

b)Fruteiras 41

7. Plantasestimulantes,medicinaiseindustriais 45

a)Principaisprodutoscultivados 47

b)Principaisprodutosdecoleta 51

c)Farmacopeiaindígena 56

II Anaturezadomada.Osaberetnozoológico 63

Introdução 63

1. Capturadeproteínaanimal 66

2. Estratégiasdecaça 76

3. Capturadeproteínavegetal 80

4. Tabusalimentareseconservacionismo 87

Conclusões:ecologiaculturalversus depredação 92

Parte II – A cultura indígena no Brasil moderno III Subculturas,técnicas,saboresaber 99

Introdução 99

1. Subculturas 101

a)Culturacrioula 107

b)Culturasertaneja 108

c)Culturacabocla 110

d)Culturacaipiraeculturacaiçara 113

e)Culturagaúcha 115

2. Oequipamentodetrabalhoeconforto 116

Introdução 116

a)Casaeabrigoprovisório 118

b)Aredededormir 124

c)Caçaepesca 128

d)Culináriaindígenanadietapopular 134

3. Medicinapopularemagia.Língua.Arte 141

Introdução 141

a)Rezasemezinhas 142

b)Crençaseassombrações 150

c)Alínguaboa 155

d)Arteindígenaeartepopular 161

Conclusões:Aquestãoindígenaeo problemadaterra 174

a � � r i c a l at i n a – a �át r i a g r a n d e | d a r c � r i b e i r o xi

apresentação

AFundaçãoDarcyRibeirorealiza,depoisde50anos,osonho

sonhado pelo professor Darcy Ribeiro, de publicar a Coleção

BibliotecaBásicaBrasileira–aBBB.

A BBB foi formulada em 1962, quando Darcy tornou-se o

primeiroreitordaUniversidadedeBrasília–UnB.Foiconcebida

comoobjetivodeproporcionaraosbrasileirosumconhecimento

maisprofundodesuahistóriaecultura.

Darcy reuniu um brilhante grupo de intelectuais e profes-

sorespara, juntos,criaremoqueseriaauniversidadedofuturo.

Eraosonhodeumageraçãoqueconfiavaemsi,quereivindicava

–comoDarcyfezaolongodavida–odireitodetomarodestino

emsuasmãos.DessaentregagenerosanasceuaUniversidadede

Brasíliae,comela,muitosoutrossonhoseprojetos,comoaBBB.

Em1963,quandoministrodaEducação,DarcyRibeiroviabili-

zouapublicaçãodosprimeiros10volumesdaBBB,comtiragem

de15.000coleções,ouseja,150millivros.

A proposta previa a publicação de 9 outras edições com 10

volumescada,poisaBibliotecaBásicaBrasileiraseriacomposta

por100títulos.AcontinuidadedoprogramadeediçõespelaUnB

foiinviabilizadadevidoàtruculênciapolíticadoregimemilitar.

Comamissãodemantervivosopensamentoeaobradeseu

instituidore,sobretudo,comprometidaemdarprosseguimento

àssuaslutas,aFundaçãoDarcyRibeiroretomouapropostaea

atualizou,configurando,assim,umanovaBBB.

Aliada aos parceiros Fundação Biblioteca Nacional e Editora

UnB, a Fundação Darcy Ribeiro constituiu um comitê editorial

que redesenhou o projeto. Com a inclusão de 50 novos títulos,

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o xia � � r i c a l at i n a – a �át r i a g r a n d e | d a r c � r i b e i r o xi

apresentação

AFundaçãoDarcyRibeirorealiza,depoisde50anos,osonho

sonhado pelo professor Darcy Ribeiro, de publicar a Coleção

BibliotecaBásicaBrasileira–aBBB.

A BBB foi formulada em 1962, quando Darcy tornou-se o

primeiroreitordaUniversidadedeBrasília–UnB.Foiconcebida

comoobjetivodeproporcionaraosbrasileirosumconhecimento

maisprofundodesuahistóriaecultura.

Darcy reuniu um brilhante grupo de intelectuais e profes-

sorespara, juntos,criaremoqueseriaauniversidadedofuturo.

Eraosonhodeumageraçãoqueconfiavaemsi,quereivindicava

–comoDarcyfezaolongodavida–odireitodetomarodestino

emsuasmãos.DessaentregagenerosanasceuaUniversidadede

Brasíliae,comela,muitosoutrossonhoseprojetos,comoaBBB.

Em1963,quandoministrodaEducação,DarcyRibeiroviabili-

zouapublicaçãodosprimeiros10volumesdaBBB,comtiragem

de15.000coleções,ouseja,150millivros.

A proposta previa a publicação de 9 outras edições com 10

volumescada,poisaBibliotecaBásicaBrasileiraseriacomposta

por100títulos.AcontinuidadedoprogramadeediçõespelaUnB

foiinviabilizadadevidoàtruculênciapolíticadoregimemilitar.

Comamissãodemantervivosopensamentoeaobradeseu

instituidore,sobretudo,comprometidaemdarprosseguimento

àssuaslutas,aFundaçãoDarcyRibeiroretomouapropostaea

atualizou,configurando,assim,umanovaBBB.

Aliada aos parceiros Fundação Biblioteca Nacional e Editora

UnB, a Fundação Darcy Ribeiro constituiu um comitê editorial

que redesenhou o projeto. Com a inclusão de 50 novos títulos,

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r oxii b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r oxii

a Coleção atualmente apresenta 150 obras, totalizando 18 mil

coleções, o que perfaz um total de 2.700.000 exemplares, cuja

distribuiçãoserágratuitaparatodasasbibliotecasqueintegram

oSistemaNacionaldeBibliotecasPúblicas,eocorreráaolongo

detrêsanos.

A BBB tem como base os temas gerais definidos por Darcy

Ribeiro: O Brasil e os brasileiros; Os cronistas da edificação;

Culturapopulareculturaerudita;EstudosbrasileiroseCriação

literária.

Impulsionados pelas utopias do professor Darcy, apresenta-

mos ao Brasil e aos brasileiros, com o apoio dos Correios e da

Petrobras, no âmbito da Lei Rouanet, um valioso trabalho de

pesquisa,comodesejodequenosreconheçamoscomoaNova

Roma, porém melhor, porque lavada em sangue negro, sangue

índio, tropical.ANaçãoMestiçaqueserevelaaomundocomo

uma civilização vocacionada para a alegria, a tolerância e a

solidariedade.

PaulodeF.RibeiroPresidente

FundaçãoDarcyRibeiro

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o xiii

prefácio – ana arruda callado

A nada simples Berta G. Ribeiro

Nãoseassusteoleitorque,emvezdecomeçarolivrojáusu-

fruindodasabedoriadeBerta,passarporeste(quaseiaescreven-

dosimples)prefácio.Bertanãoescrevecomplicado,nãodificulta

a vida de nenhum leitor. Ela é culta, mas também didática,

professora.

Otítuloescolhidopormiméumreparoatrevidoquefaçoà

grande antropólogaManuelaCarneirodaCunha,autora da in-

troduçãoaestetrabalhoemsuaprimeiraedição,de1987,portan-

toaindaemvidadeBerta.

“Éumlivropreciosoquerevelatrabalho,seriedadeesimplici-

dade:asmesmasvirtudescardeaisqueadmiroemBertaRibeiro”,

escreveuManuelaentão.

Meu reparo a este resumo inteligente é o fato de que, ao

debruçar-me sobre a pessoa e o trabalho de Berta Ribeiro para

traçar-lhe um perfil biográfico, deparei-me com uma persona-

lidade complexa, misteriosa até. Educada, suave, quase sempre

fechada–nadasimples.

Menina judia romena, Berta aos 11 anos perdeu a família e

ficouvivendoemlaresemprestados,emumpaísestranho.Aos

21anosencontrouDarcyRibeiro,comquemficoucasadapor20

anos.Ajudou-onaorganizaçãodemuitosdeseusmaisimportan-

testrabalhos.Acompanhou-onopoderenoexílio.Ficoutãoou

maisbrasileiraqueomarido.

Separadadele, tornou-senãosóumaconhecedoraprofunda

da cultura dos primitivos habitantes do Brasil, como por eles

seapaixonou.Dedicou-sedecorpoealmaaeles,nãocomoum

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r oxii

a Coleção atualmente apresenta 150 obras, totalizando 18 mil

coleções, o que perfaz um total de 2.700.000 exemplares, cuja

distribuiçãoserágratuitaparatodasasbibliotecasqueintegram

oSistemaNacionaldeBibliotecasPúblicas,eocorreráaolongo

detrêsanos.

A BBB tem como base os temas gerais definidos por Darcy

Ribeiro: O Brasil e os brasileiros; Os cronistas da edificação;

Culturapopulareculturaerudita;EstudosbrasileiroseCriação

literária.

Impulsionados pelas utopias do professor Darcy, apresenta-

mos ao Brasil e aos brasileiros, com o apoio dos Correios e da

Petrobras, no âmbito da Lei Rouanet, um valioso trabalho de

pesquisa,comodesejodequenosreconheçamoscomoaNova

Roma, porém melhor, porque lavada em sangue negro, sangue

índio, tropical.ANaçãoMestiçaqueserevelaaomundocomo

uma civilização vocacionada para a alegria, a tolerância e a

solidariedade.

PaulodeF.RibeiroPresidente

FundaçãoDarcyRibeiro

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r oxiv

cientista que observa seu objeto de estudo sob o microscópio,

como um inseto. Conviveu com eles; dividiu autoria de obras

comeles.Seurostosériosóseabriaemsorrisosemcontatocom

criançasíndias.

Não ficou só nos estudos; foi à luta em defesa deles. E, poli-

tizada, estendeu essa defesa ao meio ambiente, ao hábitat dos

“seus”índios.AmazôniaUrgente,livroeexposição,foiseuúltimo

grandetrabalho.

Nestelivroquevocêstêmemmãos,elademonstraaimpor-

tância da contribuição cultural que diversas nações chamadas

atéhojede“primitivas”fizeramaostambémchamadosatéhoje

“civilizados”.

NoprefácioqueescreveuapresentandoesteOíndionacultura

brasileira,afirma:

...procurou-seenfatizarqueaculturaindígenacontinua

ativa, embora inibida para desenvolver sua criatividade e

potencialidades.Nãoobstante,éumorganismovivo.Muito

sepodeaprendercomela,sevencermosopreconceitoeo

desprezoquesempreselhevotou.

Emtodaasuavastaobra,formadadelivros,artigos,conferên-

ciaseexposições,BertaG.Ribeiro(oGdeGleiser,seunomede

solteira) tomou partido. Foi uma estudiosa meticulosa, perfec-

cionista,aomesmotempoqueumamilitante,dacausaindígena

edacausasocialista.

Embora tenha se destacado especialmente pelo estudo da

cultura material dos índios brasileiros (e de outros países da

América),seustrançadosdepalhaetecidos,nãodeixouescapar

nenhum aspecto de sua cultura – e, para ela, cultura é “a ação

humanasobreanatureza”.

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o xv

Aquioleitorvaiseinteirardastécnicasagrícolas,dafarmaco-

peia,dasestratégiasdecaça,dostabusalimentares,daecologia

cultural de nossos indígenas, e de como algumas dessas práti-

caspassaramafazerpartedodiaadiadegrandescontingentes

populacionaisquecomelestiverammaiscontato.Nasculturas

cabocla,caiçaraesertaneja,elaapontaessaherança,emcrenças,

namedicinacaseira,nosmitosemesmonastécnicasdeplantio

edeconstruçãodehabitações.

VãotambémouviravozlúcidaeindignadadeBertacontraa

políticaindigenistapraticadanopaís,comaeternamenteinjus-

tadistribuiçãodaterra,comodescasooficialquenãoésópara

comosíndios,mascomtodosospobres,osexcluídos.

AnA ArrudA CAllAdo é jornalista e escritora. doutora em comunicação e cultura pela ufrj - universidade federal do rio de janeiro.

O índio na cultura brasileiraBerta G. Ribeiro

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 3

prefácio da autora

O presenteestudoresultadeumacompilaçãodedados

esuaorganizaçãofeitasegundoumesquemaqueleva

emconta,emordemdecrescente,acontribuiçãodoíndioàcultu-

rabrasileira,anívelecológico,tecnológicoeideológico.

Atarefaaqueaautorasepropõeéarrojadaepenosa.Arrojada,

portentarresumiremumacentenadepáginasolegadoindígena

àculturabrasileira.Penosa,porquesetornadifícilpriorizar,sele-

cionareresumirumaherançaqueoeuropeuadventício,aoinvés

depreservarehonrar,sósepreocupouemvilipendiaredestruir.

Apardisso,acarênciadetempoeminhasprópriaslimitaçõesre-

presentaramosóbicesmaiores.Poressesmotivoseumapreferên-

ciapessoal,coloqueiênfasenoquemepareceuolegadodecisivo,

primordialepermanente:orespeito,oamoreahumanizaçãoda

naturezacomofontederecursosàalimentaçãoeaobem-estardo

homemeàcuradesuasenfermidades.

Aocontráriodoquesejulgacomumente,oíndionãoeraleigo

em história natural. Pelo contrário, sua contribuição à biologia

(floraefauna),àagricultura,bemcomoàmedicinaempírica,mal

começaaseravaliada.Comefeito,oaborígineamericanologrou

domesticar centenas de vegetais alimentícios, cultivando-os

cominstrumentossumáriosquenãoagridemoecossistema.Na

verdade, o índio relaciona-se harmonicamente com seu nicho

ecológico, equilibrando a biomassa humana com a fitomassa e

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o4

azoomassa.Desenvolve,conscientementeounão,umapolítica

agrícolaedemogenéticaquedefendeepreservaanatureza,con-

diçãodesuaprópriasobrevivência.

Diante de tantos prodígios da botânica e da agricultura abo-

rígine, eminentes cientistas como Karl F. von Martius e, mais

recentemente, F. C. Hoehne julgaram que as inúmeras espécies

domesticadassópodiamserobradepovoscomculturasuperior,

depois“asselvajados”,queteriamaquivividoantesdosqueforam

encontrados pelos europeus. Ambos admitem, contudo, que o

imigranteadventícioexerceuinfluênciadeletériaeirrecuperável

sobreohabitantenativo.Nãosósobreoqueencontrouvivo,mas

tambémsobreasuahistória.Oquesefazagoraéreconstituí-laa

partirdefragmentosesparsos.

O presente trabalho não tem a pretensão de suprir a lacuna

apontada. Vale assinalar o problema, para o qual este estudo é

umamodestacontribuição.Maisdoqueumelencodetraçoscul-

turaislegadospeloindígenaaobrasileiro,oqueseexpõeaqui,nos

primeiroscapítulos,éuminventáriodosaberindígenaatual,no

quedizrespeitoaoseuecossistema.Maisqueresgataramemória

dopassado,oquesepropõeéreavaliaracontribuiçãoqueoíndio

vivopodedaràculturabrasileiraeuniversal.

Aprimeirapartebaseia-seempesquisasrecentesfeitassoba

perspectiva da antropologia ecológica e etnobiologia, e em mi-

nha própria experiência em estudos de economia indígena. Os

exemplos são quase todos de tribos da Amazônia. Em primeiro

lugar,porquealiserealizam,presentemente,investigaçõessobre

essestemas.Emsegundo,porqueocabocloamazônicoéhojeo

principalherdeirodaadaptaçãomilenardoíndioàflorestatro-

picalúmida.

A segunda parte, dedicada à etnografia da cultura brasileira

noquerevelaexplicitamenteainfluênciadoaborígine,sefunda-

mentatotalmenteemfontesbibliográficasreferentesàsociedade

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 5

ruralbrasileira.Elasseressentemdafaltadedocumentaçãosobre

afrequênciaerepresentatividade,nosentidoqualitativoequanti-

tativo,dasatividadeseconômicasrurícolas(técnicasdeprodução,

equipamentoprodutivo)eaosseusmétodosdecontroleedefesa

de recursos naturais. Devido a isso, não foi possível comparar,

em profundidade, a experiência indígena com as práticas e co-

nhecimentosdaspopulaçõesrurais.Acreditoqueestudoscomo

os referidos, feitos em relação às tribos indígenas, são também

urgentesenecessáriosnoquedizrespeitoàspopulaçõesrurais,

igualmentedescaracterizadascomoavançodatecnologiaindus-

trialnocampo.

Umlivro,comoopresente,emboradirigidoaumpúblicomais

amplo,e,portanto,nãoespecializado,nãodeveriasertrabalhode

umasópessoa,masdeumaequipemultidisciplinarquepudesse

darcontadavariedadeecomplexidadedetemasquelhecaberia

abranger.Orecursodaautorafoiapelarafontessecundárias.As

citações,àsvezesemnúmeroexageradoetamanhoabusado,se

justificam porque condensam o assunto em foco e ao mesmo

tempo o documentam. Ainda assim, inúmeros temas deixaram

deserabordadoseoutrosexigiramumdesenvolvimentomaior.

O que se procurou mostrar, sobretudo, foi que o primitivo

habitante deixou aos que o sucederam um país pujante e belo.

Passados487anosdaconquista,oquevemoséadepredaçãoeo

desrespeitoànaturezaeaoequilíbrioecológico.Oquepresencia-

moséoaumentodafomeedadesnutrição.Oqueseconstataé

a malversação da terra por uma minoria, unicamente para fins

lucrativos.

Procurou-seaclarartambémqueahistóriadaculturaéprinci-

palmenteoregistrodaaçãohumanasobreanatureza.Maiscedo

do que se pensa, chegará a hora de começar de novo: voltar ao

substratodahistóriadatecnologiaprodutivaebuscarnelaosen-

tidoprimáriodacultura.

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o6

Finalmente, procurou-se enfatizar que a cultura indígena

continuaativa,emborainibidaparadesenvolversuacriatividade

e potencialidade. Não obstante, é um organismo vivo. Muito se

podeaprendercomela,sevencermosopreconceitoeodesprezo

quesempreselhevotou.Inversamente,associedadestribais,na

medidaemqueselhesdeemoportunidades,muitotêmaapren-

dercomacivilizaçãouniversal.

Acultura,inclusiveaindígena,nãoéumarealidadeestática.

Adopassadoseencontranosmuseusebibliotecas;adopresente

é recriada a cada dia. Toda ela deve ser vivificada como um pa-

trimôniohumanocomum.Sóassimserádadaatodosospovos,

pormenoresquesejam,afaculdadedeelegerereelaborarosbens

culturaiscomunsquedesejemadotar,semqualquerlaivodede-

pendência,imposiçãoousubalternidade.

ArealizaçãodestetrabalhomuitodeveaoConselhoNacional

deDesenvolvimentoCientíficoeTecnológico(CNPq)que,desde

1976,meconcedeumabolsadepesquisador,quetempermitido

minhadedicaçãoexclusivaaestudosdeculturaindígena.Parao

presentetrabalhorecebiaajudadobibliotecárioMarcoAntônio

Lemos, do Museu Nacional, a quem publicamente agradeço. E

tambémdeJanetChernela,cujaleituracríticadaprimeiraparte

me foi muito útil. E, ainda, de Hamilton Botelho Malhano, por

algumasilustrações.

BertaG.Ribeiro

PARTE IO SABER INDÍGENA

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 9

ia natureza humanizada.

o saber etnobotânico

Introdução

H ácercadetrêsdécadas,osantropólogoscomeçaram

a interessar-se pelo saber indígena, isto é, procura-

ram avaliar como povos ágrafos classificam seu ambiente na-

turalecultural.Partiamdopressupostodequecadapovopos-

suiumsistemaprópriodeperceber,organizareclassificarsua

realidade ambiental e cultural. Esses sistemas de classificação,

expressos por códigos mentais, estariam mapeados na lingua-

gem.Ouseja,podemserinferidossegundoamaneiracomoas

coisasdoambientesãodesignadaseaformacomoessesnomes

sãoorganizadosemconjuntosmaiores.Namedidaemquetais

classesdefenômenossãoestruturadashierarquicamente,num

processodeinclusãoabrangente,elasformamumataxonomia.

Os sistemas de classificação usados pelas sociedades mais

simples vêm a ser um dos objetos de estudo da etnobiologia.

Compreende a etnobotânica e a etnozoologia que analisam as

taxonomiasdefolk,ouetnotaxonomias.Emoutraspalavras,o

sistema taxonômico de povos iletrados (populações campone-

sas)oudepovossemescrita(populaçõestribais).Comoessesa-

berétransmitidooralmente,oantropólogoeobiólogoutilizam

a própria linguagem e sua semântica como dado a ser exami-

nado.Omodelosemânticoprocuraelucidaralógicainternado

sistema, visto como essencialmente simbólico. Nesse sentido,

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o10

oscomponentessemânticosoferecemuminteresseespecialàs

suasinterpretações.

Àperspectivadaetnobiologia–ou,maisamplamente,daet-

nociência–associa-seaantropologiaecológicaouetnoecologia.

Aqui,oobjetodeestudoéarelaçãodohomemcomoseuambien-

te,noâmbitodassociedadestribais.Algunsmodelosdesenvolvi-

dos pela antropologia ecológica procuravam explicar a origem

de uma prática, como, por exemplo, os tabus alimentares, em

termosdesistemaadaptativoquetendeapreservaroecossiste-

ma.E,emfunçãodisso,contribuirparaasobrevivênciabiológica

do grupo humano, visto como essencialmente dependente dos

três componentes do sistema: o inorgânico, o orgânico (vegetal

eanimal)eoclimático,interpretadospelosistemaideológico,ou

superorgânico.

EmbrilhantecapítulodeOpensamentoselvagem,denominado

“Aciênciadoconcreto”,ClaudeLévi-Strauss(1976:19-55)coloca

emrelevooprodigiosoconhecimentodoambientenaturalpor

partedesociedades tribais.Maisque isso,procuramostrarque

o nativo estuda sem cessar o seu hábitat. Observa e classifica

nãosóosanimaiseplantasnecessáriosàsuaexistência,como

também os que formam os elos da cadeia de um ecossistema,

determinandoseuequilíbrio.Concluique“asespéciesanimais

e vegetais não são conhecidas na medida em que sejam úteis;

elassãoclassificadasúteisouinteressantesporqueprimeirosão

conhecidas”(1976:29).

A riqueza da nomenclatura nas línguas nativas de espécies

vegetais e animais, de sua morfologia e de técnicas para a sua

utilizaçãoetransformaçãolevouinúmerosestudiososdaetnobo-

tânicaeetnozoologiaaadmitirquedificilmenteomeionatural

habitadoporpopulaçõesindígenaspoderáserdesenvolvidosem

aincorporaçãodessesaber.Umdeles,lamentandoodesapareci-

mentodosgrupostribaisemnossopaís,afirma:

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 11

Comaextinçãodecadagrupoindígena,omundoper-demilharesdeanosdeconhecimentoacumuladosobreavidaeaadaptaçãoeecossistemastropicais. (...)Amarchado desenvolvimento não pode esperar muito tempo paradescobriroqueseestáprestesadestruir(Posey1983:877).

Naspáginasqueseseguem,procurareimostraroconhecimen-todoambienteecológico,otipodeadaptaçãoeapercepçãodarelaçãoexistenteentreavidaanimalevegetal,eahumana,porpartedealgumastribosindígenasbrasileiras,comoprincipalle-gadoànossacivilização.Osexemplosselecionadosdizemrespei-toatribosamazônicas,ondevêmsendolevadasacabopesquisassegundoaabordagemdaetnociência.

1. O uso do solo

Vejamos, inicialmente, o conhecimento e a classificação dossolosporpartedosKayapó,dotroncolinguísticoJê,dosuldoPará,edosKuikuro,grupoKaribdonortedeMatoGrosso,segundoosrelatos de Posey (1983), para os primeiros, e de Carneiro (1983),paraosúltimos.

OsKayapósituamsuasaldeiasemáreasdetransição,afimdeque possam tirar vantagem das várias zonas ecológicas do seuecossistema.

Cadazonaéassociadacomplantaseanimaisespecífi-cos.OsKayapótêmumprofundoconhecimentodocom-portamento animal e sabem quais as plantas associadascom determinados animais. Os diversos tipos de plantassão,porsuavez,associadoscomtiposdesolos.Cadazonaecológicaé,portanto,umsistemaintegradodeinteraçõesentre plantas, animais, o solo e, naturalmente, o Kayapó

(Posey1983:880).

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o12

Porsuanomenclatura(nãocitadanatabelaabaixo)verifica-se

queosKayapóreconhecemtrêsgrandeszonasecológicasnoseu

território. Elas são divididas em subzonas e em áreas de transi-

ção interzonais (não especificadas na Tabela I por motivos de

simplificação).

Tabela I Zonas e subzonas ecológicas distinguidas pelos Kayapó

1. Savana 3. Floresta

1.1 savanadepastobaixo 1.2 savanacomárvores

3.1 florestadegaleria (debeira-rio)

1.3 savanacompastoalto 3.2 selvadensa

3.3 florestaalta

2. Montanha 3.4 florestacomclareiras intermitentes

Assubcategoriasdetiposdefloresta(3.1,3.2,3.3)sãosubdivi-

didas,parafinsdecultivo,segundosuasrespostasàsinundações

periódicas,previsíveisounão.Sãopreferidasasterrasdealuvião

maisricas,equecorrespondemàsterraspretas.Tratosde“terra

firme”,nãosujeitosainundações,sãotambémselecionadospara

aagricultura,afimdecompensarosdanosquepossamsercausa-

dosaoscultivosemterrasalagáveis.

Naszonasecológicas(ouecozonas)classificadaspelosKayapó

como “florestas com clareiras intermitentes” – que permitem a

penetraçãodeluzsolar,equivalendoporissoàscapoeirasouro-

çasabandonadas–esses índiosdistinguem“relaçõessistêmicas

quelhespermitemselecionarterrasagricultáveisdetiposvege-

tativos,bemcomoformularestratégiasdecaçaecoletabaseadas

noamadurecimentodefrutosqueatraemanimaisdecaça”(Posey

1983:881).

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 13

Oautorrelacionatrêstiposdesolos–preto,vermelho,amarelo–

naclassificaçãodosKayapó.Emcadaum,ounumacombinação

dedoisoutrês,frutificamárvoresdecujosfrutos,folhaseraízesse

servemdeterminadasespéciesanimais–porcão,paca(brancae/

ouvermelha),cutia(brancae/ouvermelha),jabuti,veado,anta–

eohomem.Ousohumanoinclui:alimentício,medicinal,como

iscaouvenenodepeixe,emanufatureiro(utilizaçãodamadeira).

(Cf.TabelaII,op.cit.)

RetornaremosváriasvezesaPoseynodecorrerdestecapítulo.

Passemos,agora,aoutrocasoilustrativo,paratratardoconheci-

mentoeusodosoloporoutratribo.

Os Kuikuro, estudados por Carneiro (1983), em quem nos

baseamosparaesteresumo,vivemnoCuluene,umdosforma-

doresdorioXingu.Classificamcomumadenominaçãotribalo

quesepresumesejaaflorestaprimária,quecobreamaiorparte

do seu território. A vegetação que cresce nas capoeiras recebe

outro nome. É a floresta secundária. Ela é deixada crescer du-

rantealgumtempoparadesenvolver-se.Avegetaçãoqueainda

nãoatingiuoestágiodeflorestaprimária,masultrapassouode

florestasecundária–adecapoeiras–,édistinguidapordiversos

nomespelosKuikuro.Essasdesignaçõesremetematrêsespécies

deárvorespredominantesemditafloresta.Representamvarian-

teslocaisdeflorestaemtransiçãoregenerativadesecundáriaa

primária.

Asárvoresquenelaspredominam,equejustificamsuadesig-

nação,sãoasquemelhorresistemàqueimaanualdemacegaque

cresceabaixaaltura.Emboraofogoretardeocrescimentodessas

árvores, nas capoeiras, ele enriquece o solo, tornando-o apto ao

cultivo da mandioca. Análises da composição mineral dos dois

tiposdesolo–florestaprimáriaeflorestasecundária,ondepreva-

leceumadastrêsespéciesdeárvoresresistentesaofogo–mostra-

ramqueosegundotipodesolo(florestasecundária)éumpouco

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o14

superior,apresentandoteormaisaltodecomponentesminerais,

ematériaorgânica,bemcomoacidezmenor.

OsKuikurodistinguemoutrotipodesolocomumtermoespe-

cíficoqueremeteàsuacomposiçãoenãoàsárvoresqueformam

acoberturavegetal.Aflorestaprimáriaédesoloarenoso,verme-

lho.Esteoutrotipoédeterrapretae,segundoosKuikuro,produz

tubérculos maiores de mandioca que o anteriormente citado. É

tambémosolopreferidoparaplantarmilho,umavezqueemter-

ravermelhaaproduçãoébemmenor.Amandioca,quenãoexige

nutrientesnamesmaproporçãoqueomilho,éplantadaemsolo

deflorestaprimária,queaindaexisteemabundânciaemredorda

aldeia.

OutrotipodesoloécaracterizadopelosKuikuroporsualoca-

lizaçãoaolongodosrioselagos,Correspondeaoquesecostuma

chamar“florestadegaleria”,cujafertilidadeequivaleàdafloresta

primária.

Como se vê, nesta breve explanação, os Kuikuro levam em

contanaclassificaçãodosolo,parasuautilizaçãoagrícola,omeio

inorgânicoeoorgânico.Percebemaoperatividadedessasduasdi-

visõese,comovimosnoexemploKayapó,asrelaçõesentreplan-

ta/animal/homem,asquaisnãosãovistasisoladamentesenãoem

modelointerativo.

2. Técnicas agrícolas

Numestudopioneiro,hojeclássico,sobreaadaptaçãoindí-

genaàAmazônia,aarqueólogaBettyJ.Meggersafirma:“Opon-

toaseracentuadoaquiéqueaagriculturaitinerantenãocons-

tituiummétododecultivoprimitivoeincipiente,tratando-se,

aocontrário,deumatécnicaespecializadaquesedesenvolveu

emrespostaàscondiçõesespecíficasdeclimaesolotropicais”

(1977:42).

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 15

Asvantagensdachamada“agricultura– dotipoextensivoiti-

nerante”,tambémconhecidacomotécnicadederrubada,queima

ecoivara–reconhecidasportodososestudiososmodernosquese

debruçamsobreotemapodemserassimsumariadas,conforme

selêemMeggers(1977:42/44)ePosey(1983:890):

1) Mantémafertilidadeinorgânicadosolonamedidaem

quenãoerradicaatotalidadedavegetaçãoqueocobre.

Um campo totalmente limpo, como ocorre nas zonas

temperadas,ajudaadestruir,numclimatropical,osnu-

trienteseaestruturadosolo.

2) Odesmatamentodeumpequenolotedeterra,decada

vez,esuautilizaçãotemporária,minimizaotempoem

queasuperfícieéexpostaaocalordosoleafortespan-

cadasdechuva.Ambosendurecemosolo,anulandosua

permeabilidade,volatizamosnutrientes,carreiamohú-

musparaosrioseoslagos,causamerosãoealixiviação

dosolo,impedindoarestauraçãodosnutrientes.

3) O plantio de espécies diversas, de alturas diferentes, a

exemplodoqueocorrenaflorestanatural,reduzoim-

pactodosoledachuvasobreacultura,evitandoapro-

pagaçãodaspragas,comoacontecenasmonoculturas.

4) Ocultivodecertasplantasnativas,asquaisfavorecem

a recaptura de micronutrientes e não competem por

nutrientes essenciais, representa uma adaptação bem-

-sucedida a condições climáticas locais, à baixa fertili-

dadee forteacidezdosolo,bemcomoaoutros fatores

nocivosdostrópicos.

5) Adispersãodoscamposcultivadosminimizaaincidên-

cia de pragas sobre a plantação e de insetos daninhos,

obviandoousodepesticidasque,alémdedispendiosos,

atentamcontraoecossistema.

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o16

6) Areferidadispersãogeográficadoscultivosfazcomque

espécies de vegetais e animais sejam preservadas em

“corredoresnaturais”queseparamasroças,representan-

doimportantesrefúgiosecológicos.

7) Aqueimaempequenaescala,praticadapelo indígena,

e o apodrecimento de galhos e troncos deixados sem

queimar devolvem ao solo nutrientes necessários para

alimentarosbrotos.

8) Ousodaestacadecavarparaasemeaduraépreferívelao

daenxada,doaradooudotrator.Estes,revolvendopro-

fundamenteoterreno,aumentamooxigênio,aceleran-

doadecomposiçãodamatériaorgânicaedanificandoa

estruturadosolo.

Ocultivoitineranteconstitui,portanto,umasoluçãoecoló-

gicaracionalencontradapelohabitantenativo.Suacontraparte

é uma baixa concentração demográfica e uma dispersão dos

agrupamentoshumanos.NocasodoBrasil,elarepresentariaum

benefício,porquepermitiriaaocupaçãototalemaisharmônica

do território. Isso só poderia ser alcançado, no entanto, com a

mudançaradicaldaestruturafundiáriaquenoséimpostadesde

aconquista.Estruturaantinacionaleantipopularqueimpedeo

acesso à propriedade da terra aos que nela labutam, ou àqueles

quequeiramtorná-laprodutivacomoseutrabalho.

Vejamosemdoiscasosespecíficos–índiosKuikuroeKayapó,

ondeforamfeitostrabalhosdecampoecologicamenteorientados

–astécnicasdecultivodealgumasplantasselecionadasporsua

importânciamaiornadietaaborígine.

OsKuikuro,depoisdeescolheremotratodeterraaserplan-

tada, segundo as características anteriormente apontadas, ini-

ciam a limpeza da macega que cresce sob as árvores. As roças

sãotradicionalmentecircularesemedemmenosdeumhectare

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 17

(0,65ha),emmédia.Alimpezadoterrenotemlugargeralmente

doismesesantesdoiníciodaschuvas,istoé,emjunho,noalto

Xingu.Derrubaminicialmenteasárvoresmaisaltas,localizadas

nocentrodoterreno.Suaquedaéorientadadeformaaatingir

outras,menores,ouqueestejampresasàsmaioresporcipóen-

roscadonacopa.Derrubadaamata,édeixadasecarpordoisou

trêsmeses.

OsKuikurosabemquandoéchegadaahora da queimapela

apariçãodaconstelaçãodopatonoladoorientaldocéu,antesdo

raiardosol.Eaindapelapostadeovosdetracajásnaspraiasdo

rioCulene.Aqueimaéfeitaàtarde,quandoaroçaestábemseca,

observando-se a direção do vento. Os Kuikuro colocam várias

tochasdeentrecascanoperímetrodaáreaderrubadanoladode

ondeoventosopra,quedessaformaajudaaespalharachama.A

queimaduracercadeduashoras.

Aoperaçãoseguinteéacoivara.Consisteemempilharetornar

aqueimarospausegalhosnãoconsumidospelofogoanterior.Ao

mesmotempoérecolhidaalenhaparausodoméstico.Quando

terminaaoperação,queduradenoveadezhoras,apenas7a10%

do terreno fica coberto de paus e galhos. Segundo os cálculos

feitosporCarneiro,ascinzasaumentamimediatamenteafertili-

dadedosolo,emalgunscasosdobrandoaquantidadedesaissolú-

veisetriplicandoouquadruplicandoseuteordepotássio,cálcio,

magnésioetc.Comparandoamostrasdeterradeflorestaprimária

comasdeflorestasecundária,apósaqueima,aúnicavantagem

da primeira em relação à segunda é quanto à composição mais

altadepH.Ocarvão,quetambémaumentaafertilidadedosolo,

levamesesparadesfazer-sequímicaemecanicamente.Constitui,

porisso,umareservadenutrientesparaaabsorçãomaislentae

gradualdaplantaemcrescimento.

Acoivaraeasegundaqueimatêmlugar,geralmente,ummês

antesdasprimeiraschuvas,proporcionandoaosKuikurotempo

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o18

suficienteparaprocederaoplantio.Estesefazatravésdaabertura

depequenascovas.Aoserescavada,aterraficamaisfriávelesolta;

asraízessãoremovidaseascinzaseocarvãomisturadosaosolo.

AdistânciaentreascovasnumaroçademandiocadosKuikuro

édecercadedoismetros.Assim,numaroçadetamanhomédio

haverá1.400covas,recebendocadaqualdezmudasdemandioca.

Quandoasmudassãodemaiordiâmetro,plantam-seapenastrês

em cada cova. São necessárias aproximadamente 58 horas para

plantartodaumaroça,oqueé feito individualmenteoucoma

ajudadeparenteseoutrosmembrosdacomunidade.

Carneirorecolheucercade46nomesnativosdecultivaresde

mandiocaentreosKuikuro.Entretanto,apenasquatrooucinco

variedades são plantadas numa única roça. Todas de mandioca

brava (Manihot esculenta). Elas são distinguidas pelos Kuikuro

segundoaalturadaplanta,acordahaste,asfolhasepecíolos,a

distânciaentreas folhase, sobretudo,aquantidadeequalidade

dos seus tubérculos, bem como o tipo de amido que fornecem.

Entretanto, as seis variedades preferidas pelos Kuikuro respon-

dempor95%desuaplantação.

Dependendo dos cuidados que se tenha em cercar e limpar

umaroçaentreosKuikuro,elapodedurardedoisacincoanos.É

deixadanãosódevidoàexaustãodosolo,senãotambémàinva-

sãodamacegadifícildecontrolardepoisdealgumtempo.

OsKayapóplantamnãoapenasnaroça,mastambémformam

pomaresdentrodasaldeias.E,oqueémaisimportante,plantam

nastrilhasqueligamasroçasàsaldeias,noslocaisondeencon-

tramárvorescaídasnomeiodamata,ondederrubamumpaupara

tiraromeleaceradeabelhas,emsítiosemmemóriadeparentes

mortoseem“micronichosespeciais,taiscomonasproximidades

derochasprovenientesdebasalto” (WarwickE.Kerr1986:159).

(VertambémPosey1986a.)SegundoKerr,

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 19

Os Kayapó plantam para assegurar sua subsistência,

parabancodegermoplasma,parafinsmedicinais,práticas

religiosaseparaatrairacaçaadeterminadoslogradouros.

Transferemmudasdamataparaastrilhasouparacantei-

rosnaroça.Visitamfrequentementeascapoeirasinclusive

paracoletarlenha(1986:159).

Oreferidoautorafirmaqueabatata-doceéoprincipalprodu-

to agrícola Kayapó. A mandioca vem ganhando terreno devido

àproduçãodefarinhaparaavenda.Quasetodososagricultores

Kayapóobservamodesenvolvimentodabatata-doceparaefetuar

o plantio das demais culturas. Ao brotar a batata, planta-se o

milho.Depoisqueomilhoalcançadoispalmos,planta-seocará

(Dioscoreasp.),amandioca,amacaxeiraeoariá(Calatheaallouia),

umamarantácea.Umindícioparacomeçaroplantiodabatata-

-doce é o canto de certo pássaro, de uma espécie de cigarra e o

florescimentodobarbatimão,uma leguminosa (Vatairea cf. ma-

crocarpa/Benth/Ducke). Detalhe curioso quanto ao cultivo da

batata-doceéofatodeosKayapóatearemfogoàroçadepoisquea

semeiam.Segundoinformaoautorcujotrabalhovenhoresumin-

do,“étécnicamodernasubmeterasbatatas-docesa48°Cdecalor

durante45a60minutos,afimdedestruirosvírusqueporventura

tenhameobterramasisentasdevírus”(Kerr1986:166).

Outrapráticaéforrarascovascomfolhasdeumarbustopara

evitarpragasnasfolhas(ibidem)eaumentaraprodução.

Abatata-doceassimcomoocarásãoplantadosnasgrandestri-

lhas.Desteúltimo,semeiamduasvariedadesporcova.Observação

importantefeitaporKerréadequeosKayapó

forramacovaabertaparadepositarobulbocompedaçosde

formigueiros(Aztecasp.)oudetermiteirosaéreos;colocam

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o20

outrotantoemcimadobulboefechamacovacomterra.

Plantam sempre duas variedades por cova, obtendo gran-

de produção. Este método promove, efetivamente, uma

constante competição com a correspondente seleção dos

melhorescultivares(Kerr1986:168).

Omilhoéumdosmaisimportantesvegetaiscultivadospelos

Kayapó.Selecionamespigasmaioresparaoreplantio,colocando

cincogrãosporcovaaumadistânciade1,40cmumadaoutrae

acreditamqueasuapolinizaçãoéfeitapelasabelhas.Kerrobser-

vou que antes de os Kayapó plantarem o milho “socam os bul-

bilhos de Costos warmingi (Zingiberaceae) untando as sementes

comessamassa.Asplantasnascemesetornammaisvigorosas

comessetratamento”(1986:161).

Paraexplicararazãopelaqualasmulheresmisturamatinta

depequenasformigasvermelhas(provavelmentePhiedalesp.)ao

urucu(Bixaorellana)napinturaderostoduranteosrituaisdomi-

lho,PoseycitaumfragmentodemitoKayapóeinforma:

O mito começa a tomar sentido quando se entende o

complexo coevolutivo do milho, feijões, mandioca e a

formiga.

A mandioca produz um néctar extrafloral que atrai as

formigasparaaplantaaindajovem.Asformigasusamsuas

mandíbulasparapalmilharocaminhoatéonéctar.Dessa

forma,elascortamahastedafavaqueimpediriaocresci-

mento de planta ainda frágil. (...) O milho pode suportar

semdanootalodafavaeaprópriaplantalheforneceoni-

trogêniodequenecessita.Asformigassãomanipuladoras

naturaisdanaturezaefacilitamasatividadeshorticultoras

dasmulheres(Posey1983:882).

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 21

Oautorconcluiqueaanálisedosmitos–seadequadamente

decodificados–podefornecerinformaçãosobreasrelaçõesecos-

sistêmicaseaacuidadedoconhecimentoecológicodosíndios.

3. “A agricultura nômade”

Sobessetítulo,Poseyrelataemseuartigo,tantasvezescitado,1

asatividadesagrícolas“nômades”dosKayapó,istoé,foradorecin-

toestritodaroça.

Como vimos, esses índios exploram os recursos de dois am-

bientes ecológicos: o cerrado e a floresta. Têm em comum com

outrosgruposJê(Timbira,Xavante)emacro-Jê(Bororo)aaldeia

circular, a residência matrilocal, a divisão em metades, grupos

de idade, sociedades dos homens, casa dos homens (exceto os

Timbira)eodeslocamentosazonalparaacaçaeacoleta.

ArespeitocomentaJoanBamberger:“Foisemdúvidaporessas

longascaminhadasembuscadeprodutosespecíficos,ouparaou-

trospropósitos,duranteaestaçãoseca,queosKayapó,eosJêem

geral,adquiriramafamadecaçadoresecoletoresseminômades”

(1967:77).

AnalisandoasassertivasdeCarneiro(1973)sobreotamanho

eaestabilidadedasaldeiasdosKuikuro,edosgruposdafloresta

tropical,demodogeral,Bambergerafirmaqueomesmoracio-

cíniopodeseraplicadoaosKayapó(1967:83).Chamaaatenção,

contudo,paraofatodequeadensidadeeaestabilidadedeuma

aldeia não podem ser medidas apenas em função da ecologia,

mas levandoemconta fatoressocioculturais.CitandoTerence

Turner(1966:79/80),afirmaqueaculturaKayapó,devidoàsua

organização social dividida em metades, grupos de idade, não

1 Os temas desse artigo foram reelaborados e ampliados posteriormente (cf.Posey,1986a,1986b).

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o22

pode funcionar sem uma massa crítica que esse autor calcula

em 80 indivíduos. Conclui que “A disparidade entre os tama-

nhosdasaldeiasKayapóeentreestaseasdastribosdafloresta

tropical (por exemplo, os índios não Jê do Xingu) deve ser in-

terpretadacomooresultadodaculturaantesquedaecologia”

(1967:65).

Desenvolve essa tese nos capítulos seguintes, mostrando

queosKayapó“têmumadependênciamenornosprodutosda

roçaqueosKuikuro,dandomaiorênfaseàcaça,pescaecoleta”

(1967:83).

E que “durante o verão, na estação seca, quando fazem suas

andanças, os Kayapó se abastecem quase que cem por cento de

produtos de caça e coleta pelo espaço de três meses, podendo

eventualmenteumgrupovoltaràaldeiapararenovarseuesto-

quedemandiocaebananadasroças”(1967:84).

AsevidênciasencontradasporDarrellA.Posey,biólogoean-

tropólogoquedesde1977estudaosKayapó-Gorotire,trouxeram

elementos novos para a discussão. Diz Posey que, durante suas

expedições de caça, que duram até quatro semanas, os Kayapó

levam poucos mantimentos, abastecendo-se em “ilhas naturais

derecursos”.Mastambémcriam“camposnafloresta”deespécies

semidomesticadasquePosey (1983:886)calculaemcercade54,

muitassemelhantesaostubérculosmonocotiledôneos,nãoiden-

tificados botanicamente, citados por Maybury-Lewis (1967:334)

entreosXavante.Esseautornomeianalínguaxavanteeilustra

graficamente sete dessas raízes, algumas semelhantes a batatas,

outras a abóboras e outras ainda a macaxeiras. Segundo Posey,

essas plantas semidomesticadas crescem nas clareiras naturais

daflorestaondepenetraaluzsolar.SãotidaspelosKayapócomo

equivalentes às capoeiras. “Os transplantes são feitos (...) nas

adjacênciasdosacampamentosquesesituamsempreemzonas

ecológicasdetransição”(Posey1983:887).

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 23

Num mapa feito por Posey, com base em desenho indígena,

pode-severalocalizaçãodosacampamentos,das“ilhasnaturais

de recursos”, dos “campos na floresta”, bem como das trilhas e

acidentesgeográficosencontradosnumaexpediçãodecaçados

Kayapó. São milhares de quilômetros de caminhos – informa

Posey–abertospelosíndiosparainterligaraldeias,roçaseasrefe-

ridasáreasderecursosnaturais.

4. Remanejamento de capoeiras

Aconcepçãodequeaagriculturaitinerante,talcomopratica-

daimemorialmentepelosíndiosdaflorestatropical,éprimitiva,

ineficiente e predatória – porque os campos são abandonados

apósdoisoutrêsanosdecultivo–éatualmenterefutadacomo

uma falácia. Os estudos realizados por Darrell Posey entre os

Kayapómostramqueelescontinuamseservindodas“roçasaban-

donadas”umavezque,emboraoápicedaproduçãodureapenas

dedoisatrêsanos,asroçasarmazenam“batatas-docespor4a5

anos,oinhameeocarádurante5a6anos,mamãopeloespaçode

4a6anos.Algumasvariedadesdebananascontinuamadarfrutos

por15a20anos,ourucupor25anoseocupá(Cissusgongylodes)

por40anos”(Posey1986a:174-5).

Outra vantagem das capoeiras – na qualidade de clareiras

abertasnamatapelaaçãohumana–équeelaspropiciamumre-

florestamentonaturalque,alémdeatrairanimaisdecaça,provê

plantasúteis,aindanãoidentificadasbotanicamente,masqueos

índiosutilizamextensamente.Taissão,segundoPosey,“alimento

emedicamento;iscasparapeixeseaves;sapé;materialparaacon-

dicionamento; tintas, óleos repelentes contra insetos; matérias-

-primasparaaconstrução;fibrasparacordasefios;materiaispara

a higiene pessoal e produtos para o fabrico de artefatos” (Posey

1986a:175).

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o24

OprojetointerdisciplinardeetnobiologiaKayapódirigidopor

Poseycoletou368plantasparaidentificaçãocientífica,dasquais

94%sãodeusomedicinalpelosindígenas.

A afirmação de Daniel Gross (1975: 536) de que as capoeiras

espalhadaspelaflorestapropiciamacapturadeproteínaspelos

índios,porque,aocontráriodamatacerrada,oferecemabundân-

ciadebrotosefolhagemdequemuitasespéciesdafauna–inclu-

siveinvertebrados–sealimentam,éconfirmadapelapesquisade

Posey.Vaimaislongeafirmandoqueadispersãoderoçasantigas,

junto a concentrações populacionais nas aldeias, oferece o que

chama de “fazendas de caça” a seus habitantes (cf. Posey 1986a:

175).Adverte,aomesmotempo,queasatividadesdecaçaimpe-

demqueestaseexpandademasiadamente,ameaçandoaintegri-

dadedoscultivos.

Paraatrairacaça,osKayapóplantamfruteirasnasroçasnovas

cujosfrutosamadurecemaolongodosanos.Poseyacrescentaque:

O cultivo de árvores ilustra o planejamento a longo

prazo e o remanejamento da floresta, uma vez que mui-

tas destas árvores levam décadas até produzirem frutos.

A castanha-do-pará, por exemplo, só produz passados 25

anos.Algumasárvores,plantadasparaatrairafauna,pro-

duzemalimentosapreciadospelosíndios,constituindoum

elemento essencial para a subsistência dos Kayapó. Estas

antigasroçasdeveriamchamar-se,talvez,“hortasdecaça”,

paraenfatizaradiversidadedeseus recursos (op. cit.:175).

(VertambémSmith1977.)

Outraformaderemanejarafloresta–etambémoscerrados–

por parte dos Kayapó é a manipulação do que Posey chama

“plantas semidomesticadas”. Trata-se de transplantes feitos nas

clareiras naturais da mata, a que já me referi, de espécies que

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 25

requerem luz e insolação, e que também se adaptam bem nas

capoeiras.Apardeexpediçõesdecaça,osKayapóempreendem

excursões unicamente para fazer transplantes, utilizando, para

isso,locaisondetenhamderrubadoárvoresparaacoletademel

ouaquelesemqueencontramárvorescaídas,conformereferido,ou

nos locaisdeantigasaldeias.A issooautorchama“agricultura

nômade”,acreditandoquetais“camposnasflorestas”detectados

entreosKayapótambémocorramentreoutrosgrupos.

IssomefazrecordarumaexpediçãoquefizcomíndiosKayabi

paracoletartintadeentrecascadejequitibá(Carinianasp.),afim

de pintar um cesto. A caminhada no meio da mata fechada, de

clareiraseumaredeintrincadadetrilhosdurouduashoras.Em

toda essa área só havia um único jequitibá. Tê-lo-iam plantado,

perguntoagora?Ofatoéquechegaramaolocalevoltaramàal-

deiasemerrarocaminho.Sabiamexatamenteondeselocalizava

aárvorequelhesforneceopigmentoparaacestaria(cf.B.Ribeiro

1979:141-143).

Voltemos aos Kayapó. Registros de Terence Turner (1966)

indicam que eles perambulavam no sentido leste-oeste entre o

TocantinseoAraguaia,eemdireçãonorte-suldoPlanaltoCentral

doBrasil,atéorioAmazonas.

Durante essas longas marchas, os índios não levam

provisões e utensílios, devido a seu volume e peso.

Contudo, a alimentação de 150 a 200 indivíduos não

podeserdeixadaaoacaso.Paraesseefeito,sãocoletadas

etransplantadasplantasjuntoatrilhaseacampamentos,

produzindo-se,artificialmente,“camposnafloresta”.Esses

nichoscolocamàdisposiçãodoscaminhantes,edosque

os sucederem, todo o necessário à vida (...). A existência

de“ilhasnaturaisderecursos”eseussímiles,os“campos

na floresta” construídos pela ação do homem, permitem

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o26

aosKayapóprescindirdosprodutosdaroçadurantesuas

longasviagens(Posey1986a:177).

Comovimos,osKayapócontamcomasplantaçõeslinearesque

fazemaoladodasestradas(deatéquatrometrosdelargura)que

unemaldeiaseroças.Essasestradas(cercade1.500kmdecompri-

mentocomumamédiade2,50mdelargura),queunemasatuais

11aldeiasKayapó,sãoplantadascom“numerosasvariedadesde

inhames,batatas,marantaceae(ariá),Cissus(cupá),Zingiberaceae

eoutrasplantastuberosasnãoidentificadas.Centenasdeplantas

medicinaiseárvoresfrutíferasincrementamadiversidadedaflo-

raplantada”(op.cit.).

AcrescentaPoseyque:

Olevantamentofeitonumatrilhade3km,queuneaal-

deiaGorotireaumaroçapróxima,constatouaexistênciade:

1) 185árvoresplantadas,representandopelomenos15

espéciesdiferentes;

2) aproximadamente 1.500 plantas medicinais perten-

centesaumnúmeroindeterminadodeespécies;

3) cerca de 5.500 plantas alimentícias de um número

igualmentenãoidentificadodeespécies(op.cit.:178).

Roças são abertas e cuidadas por mulheres idosas em ele-

vações. São reservas de alimentos para prevenir a quebra de

colheitasemcasodeinundações.Capoeirasdeoitoadezanos

sãolimpasdemacegaereplantadas.Nessaselevaçõeseantigas

roças são plantados principalmente bananeiras, tubérculos e

marantáceasdegrandevalornutritivoealtamenteapreciados

pelosKayapó.

Nas próprias aldeias, em áreas adjacentes às casas, são plan-

tadas cerca de 86 espécies alimentícias e dezenas de plantas

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 27

medicinais.“AspráticasdecuradosKayapósãoaltamentesofis-

ticadas.Juntoacadacasasãoplantadasespéciesdeusomedici-

nalcorrente,algumasdelasdomesticadasousemidomesticadas”

(Posey1986a:181).

SegundoPosey,

Um dos principais resultados do remanejamento dos

quintaiséaformaçãodesolofértil.Algunsdosmaisricos

eprodutivossolosdaAmazôniasãoosdenominados“terra

pretadosíndios”.Acredita-sequetenhamsidoproduzidos

pela manipulação do solo amazônico, geralmente pobre,

por ação humana, isto é, indígena (ibidem). (Ver também

Smith,1980.)

Essesmétodosindígenasderecuperaçãodeflorestas,transfor-

mados em pomares, e melhoramento dos solos, transformados

em ubérrimas terras pretas, que só agora vêm sendo cientifica-

mente descritos, são um libelo contra o etnocentrismo dos que

formulamnossapolíticafundiáriaeagrária.Háquase500anos,

aclassedominantebrasileira–elatino-americanaemgeral–tei-

maemdesconheceraexperiênciadeadaptaçãoaos trópicosde

populaçãotidascomoprimitivas,incultaseselvagens.Essafoie

continuasendoumajustificativamoralsuficienteparacondená-

-lasaoextermínio.Tendoemmenteesseespantosogenocídioe

etnocídio,aoencerrarseuartigo,Poseyafirma:

Comosevê,aetnobiologiaapontanovosrumosparaa

pesquisanabaciaamazônica,ouondequerquesobrevivam

sociedadesindígenas,caboclasoucaipiras.Éprecisoterem

mente, porém, que as culturas indígenas se extinguem,

poucoapouco,acadadia.Urge,porisso,nãosótrabalhar

comafincoafimderegistrardadosvirtuais,mastambém

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o28

lutarparapreservarasterras,aliberdadeeodireitoàexis-

tênciadospovostribais(1986a:184).

Cabeacrescentarqueoutroestudoemandamento,entreos

índiosBora,doPeru,dirigidoporWilliamM.Denevan,estáche-

gandoàsevidênciasregistradaspeloprojetoKayapóencabeça-

doporWarwickE.KerreDarrellA.Posey.Emnotapreliminar,o

geógrafoJohnTreacy,membrodareferidaequipe,mostraqueos

BorautilizamummétodosemelhanteaodosKayapónomanejo

ereconstituiçãodaflorestasecundáriaemantigascapoeiras.Os

Boratransplantamespéciessilvestresparaváriosfins:alimento,

medicina,madeirasparaconstruçãoeparalenha,matéria-prima

para manufaturas e plantas utilitárias (cipós para amarrilhos,

porexemplo)(Treacy,1982:16).Dentreasfruteiras,oautorcita

as seguintes: palmeira pupunha (Bactris sp.), uvilha (Pourouma

cecropiaefolia),umari(Poraqueibasp.),caimito(Chrysophyllum

caimito), guava (Inga edulis) (op. cit.: 15). Treacy, da mesma

forma de Posey, refuta a ideia de que a agricultura itinerante

utilizaosoloapenasdurantedoisoutrêsanos.Aocontrário,

demonstraqueessapráticaagrícola“evoluinumsistemaagro-

florestalduranteoperíodoposteriordociclodecolheitaedu-

ranteosprimeirosanosdederrubadadafloresta.Emessência,

os estágios progridem de roça de mandioca para roça mista

mandioca-frutasparapomardefrutasresidualeparafloresta

alta”(1982:16).

Tudosedáporqueasfruteirasnãocompetemcomasoutrases-

pécies,decrescimentosecundário,porluminosidadeenutrientes

dosolo.Ocrescimentodemacegaépermitidoparaquedêlugara

novasqueimadas,afimdequeascinzasfertilizematerra.

A erradicação da floresta amazônica que ocorre em nossos

dias,comatotaldestruiçãodomantoflorestalemimensasexten-

sões para ceder espaço a pastagens ou a monoculturas exóticas

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 29

(Gmelina, eucalipto, pínus), tendo um vista a produção de ce-

lulose (a exemplo do tristemente célebre projeto Jari), é social,

econômicaeecologicamentecondenável.Nãolevaemcontaas

necessidadesdapopulaçãolocal–indígenaecabocla–nemasli-

çõesdopassadoquesóagoravêmalume,talvezdemasiadotarde,

considerando-seovultocriminosodadepredação.

5. Seleções genéticas de plantas

Ahistoriografiabrasileiradesconhece,praticamente,aimensa

contribuiçãodoaborígineamericanonoqueserefereapráticas

deconsequênciasgenéticasnadomesticaçãodeplantas.“Aagri-

culturanãopodedispensaroconhecimentodabotânica”,escreve

F. C. Hoehne (1937: 9), companheiro do Marechal Rondon nas

peregrinaçõesdesdepelossertõesdoBrasil,eautordamaisim-

portanteobrasobreosaberagrícolaebotânicodosilvícolabrasi-

leiro.Conformeindicaotítulo–BotânicaeagriculturanoBrasilno

séculoXVI–,oalentadotrabalhodeHoehnecompilaasinforma-

çõesdoscronistasdoséculodadescobertaedosnaturalistasque,

desdePisoeMarcgrave(séculoXVII),classificamasplantascom

orespectivonomeindígenae,apósoséculoXVIII,pelosistema

bináriodesenvolvidoporLineu.

Asformasoriginaiseagrestesdasplantasdomesticadaspelos

índioscontinuamsendopesquisadas.Aesserespeito,dispomos,

entre outros, do trabalho de Carl O. Sauer divulgado há pouco

em português (1986). Com referência a seleções genéticas em

plantasselvagensecultivadas,praticadasaindahoje,contamos

apenascomotrabalhodeWarwickE.KerreCharlesR.Clement

(1980), resultante de estudos feitos junto aos Tukuna, Desana,

Paumari,Cinta-LargaeoutrastribosdaAmazônia.(Vertambém

Kerr1986.)

Essassãonossasprincipaisfontesparaapresentediscussão.

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o30

Mandioca (Manihot esculenta)

Amaisimportanteplantaalimentícialegadaàhumanidade

peloantigohabitantedoneotrópicoéamandioca.2Devetersido

domesticadanaAmazôniaháquatrooucincomilanos(Kerr&

Clement 1980: 252), sendo cultivada hoje, além da América do

Sul, nas Antilhas, na América Central, no México, na Flórida

(EUA) e em extensas áreas tropicais na Ásia, África e Oceania.

Alémdeserumaplantaquedáfacilmenteemterrapobre,como

o podzol do alto rio Negro, de poder permanecer estocada na

própriaterraporperíodosmuitograndes,amandiocatemavan-

tagemdeserumalimentoricoemamidoefornecerumasériede

subprodutos.Comefeito,damandioca-bravaobtém-se,aparda

farinha,datapioca,dobeiju,amanicoera(emlínguageral),que

éoveneno(ácidohidrociânico)transformadoembebidanãofer-

mentadadepoisdesubmetidoàcocção.Atecnologiaalimentar

combasenamandiocainclui,entreosDesanaeTukanodoalto

Uaupés,cincoqualidadesdefarinha,setedebeiju,setebebidas

nãofermentadaseoitofermentadas(B.G.Ribeiro1980ms.:259).

Semembargo,afarinhadamandioca,emboraricaemvitamina

A,calorias (320)eaminoácidos(404mg),épobreemproteínas

(1,7g)(Gross1975:527).

Paracompensar,apresentainúmerasvantagensalémdasassi-

naladas.Seurendimentoébastantegrandeporunidadedeterre-

no,umavezqueasmanivaspodemsercultivadaspróximasumas

dasoutras,àrazãode10milpésporhectare(Schery1947:25),eo

crescimentoérápido.Outravantagemdocultivodetubérculos

comoamandioca,quandocomparadocomgrãos,comoomilho,

équeamandiocaépoucosuscetívelàspragas,cresceemsolos

semiáridoscomoosdoNordeste,temperadoscomoosdoSuldo

2 Alémdealimento,amandiocapodeviraserempregadacomocombustível.

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 31

Brasil e pouco férteis como as terras da Amazônia. Não exige a

queimatotalelimpezadoterreno.Seurendimentoporunidade/

trabalho é unidade/área, bem como seu componente calorífico

émaisaltodoqueodomilho.Este,contudo,contémmaisami-

noácidosqueamandioca:3.820mgcontra404(Gross1975:534e

TabelaI).

Nãoobstanteobaixoteordealimentoproteicoingeridopelas

populações indígenas, que baseiam sua dieta alimentar essen-

cialmentenamandioca,elasestãotãoadaptadasaessadietaque

nãoapresentamnenhumadoençacarencialeexibemgrandevi-

gorfísico.Sendopobreemproteínas,amandiocanãoretirado

solomateriaisnitrógenosnamesmaproporçãoemqueofazem

outrasplantas(Schery1947:25),produzindomaiorquantidade

deamidoutilizávelporhectaredoquequalqueroutracultura

conhecida(ibidem).Nessesentido,pode-seestenderaoutrosgru-

pos“mandioqueiros”oscálculosfeitosporRobertCarneiropara

osKuikuro:80a85%desuadietaprovémdamandioca(1973:98).

ExaminandoaintroduçãoemduasaldeiasTukanodecultiva-

resdemandiocaamarga(ManihotesculentaCranz),nosúltimos50

anos, Janet Chernela (1986) procura demonstrar a importância

depráticassociaisnadistribuiçãoediversificaçãodoscultivares.

Em três anos de trabalho de campo, a pesquisadora conseguiu

obterasdesignaçõesecaracterísticasdomaiornúmerodeculti-

varesdemandiocaemusoporumgrupoindígena:ototalde137.

Atualmente,afirmaChernela,

Botânicos e agrônomos vêm demonstrando crescente

interesse em recuperar a diversidade intraespecífica per-

dida,emvirtudedousodetécnicasmodernasdeseleção

ecruzamento.Amandioca(Manihotesculenta)éumexem-

plopoucocomumdeplantacujaricadiversidadegenética

foipreservadaecontroladapeloshorticultoresindígenas,

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o32

ao longo de milhares de anos de experimentação. Essa

perdaocorreuaofatoderaramentereconhecer-sequeos

sistemas aborígines de cultivo resultam da observação e

doremanejamentocuidadosodadiversidadegenética.(...)

Para obviar esse percalço, procura-se hoje reintroduzir,

mediantearecuperaçãodavariaçãointraespecífica,carac-

terísticasperdidas(Chernela1986:151).

Escusado dizer da importância de informações como as que

Cherneladivulga.Atítulodecomparação,diriaqueKerr (Kerr

&Clement1980:253)encontrouemoutrogrupodamesmaárea,

osíndiosDesana,40cultivaresdemandioca,eRobertoCarneiro,

46variedadesdessetubérculo,conformeassinaleianteriormente.

NaobrasobreogêneroManihot,Rogers&Appanrelacionam98

espéciesdogêneroManihot,váriasdelascomatécincosubespé-

cies(1973:255/256–listanuméricadetaxa).

Kerr&Clementreferem-seaalgumasdas“seleçõesmaisim-

pressionantes feitas pelos índios da Amazônia” (1980: 254), que

tiveram a oportunidade de comprovar. “A variedade selvagem

do abio (Pouteria caimito), ainda encontrada nas matas, possui

frutos que pesam cerca de 30 gramas. No alto Solimões... os ín-

dios (Tukuna) selecionaram variedades que alcançaram até 180

gramasporfruto”(op.cit.:256).

O mapati (purumá, cucura, uvilha) (Pourouma cecropiaefolia)

éconsideradopeloscitadosautorescomopossívelsubstitutoda

uva na Amazônia. A respeito dessa fruta informam que “Os ín-

dios Tukuna melhoraram consideravelmente essa espécie. Nos

arredoresdeLetícia(altoSolimões)estãoosmelhorescultivares,

frutodessaseleção”(ibidem).

OutrafrutaobjetodaseleçãogenéticapelosíndiosTukunaéa

sapota(Quararibeacordata).SegundoKerr&Clement:“Aplanta

selvagemproduzfrutosapenascom9a12cmdecomprimento

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 33

por 3-5 cm de diâmetro. As seleções dos índios Tukuna (alto

Solimões)levaramaárvoresqueproduzemde3.000a8.000frutos,

quase esféricos, de10 a15 cm de diâmetro, pesando400 a1.300

gramas”(ibidem).

Apupunha(Bactrisgasipaes)assumeexcepcionalimportância

para as populações indígenas e caboclas da Amazônia devido

ao elevado teor de proteína e altas taxas de vitaminas A, B e C.

NativanaAmazônia,essapalmeirafoidomesticadapelosíndios.

Vejamosoprocessodeseleçãodesementesedeplantionarrado

aoDr.KerrporTolamanKenhiri,índioDesana,autordeumlivro

demitosdesuatribo.Aseleçãoéfeitasegundo:

1º)númerodecachos;2º)tamanhodosfrutos;3º)devem

sereliminadasasplantasqueproduzemfrutoscomman-

chasourachaspretas,quesecretamumaresinaescura(pa-

recebreu)equeseestragamecheirammal.

No momento do plantio procedem assim: a) põem os

frutos na água (numa vasilha); b) aquecem até mais ou

menos 50°C; c) ao atingir 50°C retiram as sementes de

quantas queiram plantar; d) plantam; e) replantam no

lugardefinitivoquandotêmummínimode10cmeum

máximode60cmdealtura.

Háváriascrendicesassociadasaocultivodapupunha,

entre os Desana. As duas principais são: a) raspando a

sementecomumralo,aplantanãoproduziráespinhos;

b)seamarrarasfolhasnovasemcima,aárvorecrescerá

poucoeproduzirácachosabaixaaltura(Kerr&Clement

1980:258).

ImportanteobservaçãodeVonMartiusconvémserlembrada

nessecontexto.Dizele:

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o34

(...)asvariedadeseraçasaumentamemnúmeronapro-

porçãodonúmerodeanosduranteosquaissetemovege-

talemcultura.Comoprovamaisevidentedofatodeque

estainfluênciaexiste,temosasplantascultivadasdurante

muitotempoemultiplicadaspormeiodeestolhosoure-

bentos, que perdem totalmente a faculdade de produzir

sementes.(...)

Comoespecialmenteimportanteparaestanossaasser-

ção,mencionoapalmeiraGasipáesouPupunha(Gulielma

speciosa), que, na maior parte, nas regiões tropicais da

América,ésempremultiplicadapelosaboríginespormeio

derebentoslaterais,ecujoputâmendurocomopedra,do

tamanho de uma ameixa regular, na cultura sucessiva,

muitasvezesseachatotalmenteatrofiadooutransforma-

doemumasubstânciacartilaginosa.

Quantosséculosnãoteriamsidoprecisosparadesabituar

estaárvoreaproduzirasuasementetãosólidaegrande(K.

F.v.MartiusapudHoene1937:40-41).

Oabacaxi(Ananascomosus)emestadoselvagempesaapenas

de100a200gramasemalalcança12cmdecomprimento.Asse-

leções genéticas feitas pelos índios produziram variedades com

ousemespinhoecomapartecomestívelmeioácidaoumuito

doce, nas tonalidades amarelo-gema, amarelo-claro e branca e

compesoquevariaentre800gramasa15quilos(Kerr&Clement

1980:258-9).

Umdosvegetaisindígenasmaisimportantesepoucoconhe-

cido é o cupá, ou cipó-babão (Cessus gongylodes), uma casta de

mandiocaarbóreaquedevetersidodomesticadahá,nomáximo,

1.000 anos. O cupá cresce rapidamente e é encontrado entre os

grupos Timbira e Kayapó, em estado selvagem e semidomesti-

cado, oferecendo, por isso, interessantes informações sobre o

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 35

processo de seleção genética de plantas, que ainda se processa,

atualmente,entregruposindígenas.Avariedadeselvagemalcan-

ça,nomáximo,1cmdediâmetro,eadomesticadapelosíndios,4

cm.Medraemsolospobres,easmanivassãoconsumidasassadas

oucozidas,tendogostodemacaxeira.Análisesquímicasdocupá

demonstramqueeletemgrandevalornutritivo:77,56%deágua,

1,2%deproteína,1,0%degordurae18,84%decarboidratos,bem

comoaltoteordevitaminas(A,B,B2,C,D2,E).Cemgramasda

plantaoferecem89,2calorias(Kerretalii1978:704).

6. Repertório de plantas cultivadas

No capítulo anterior, oferecemos um pálido exemplo dos

esforçosempreendidospelosíndiosparaobteremumaproduti-

vidademaiorporplantacultivada.Passados486anosdadesco-

berta,oestudodosmétodosporelesempregadosmalseinicia,

quando tantas seleções feitas em tuberosas, cereais e fruteiras

se perderam irremediavelmente. Na Tabela 11 apresentamos

a listagem parcial dos vegetais cultivados pelos aborígines. As

plantasmaisimportantesparaaeconomianacionalemundial,

aexemplodamandioca,jáexaminada,sãodescritasabaixocom

maisdetalhes.

a) Grãos, tuberosas e feijões

Milho (Zea mays)

O milho, da família das gramíneas, figura entre as três mais

importantes plantas que alimentam a humanidade. As outras

duassãootrigo(Triticumsp.)eoarroz(Oryzasativa).Omilhoé

cultivadoatualmenteemtodasasregiõestropicaisesubtropicais

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o36

domundo.Alémdealimentohumano,vemsendoutilizadonas

raçõesdesuínos,caprinos,galináceoseequinos.K.F.vonMartius

encontroudesignaçõesparaessecerealemmaisde60tribos(cf.

Hoehne1937:114).Sauer(1986)temdúvidasdequeomilhomais

primitivoqueseconhece,chamadotunicata,possaserencontra-

do em estado selvagem na bacia do Paraná-Paraguai, território

Guarani, onde, possivelmente, se teria originado. Na América

pré-colombianaeracultivado“atéasúltimasfronteirasagrícolas,

exceto no altiplano andino, excessivamente frio” (Sauer 1986:

61). Não obstante constituir espécie botânica única, fecundada

porcruzamento,aseparaçãogeográficaeaseleçãogenéticafeita

pelos cultivadores contribuíram para a preservação de uma ex-

traordinária variedade de formas: cerca de 250. O estudo dessas

variedades e de sua distribuição geográfica permitirá esclarecer

pontosobscurossobreaprópriaorigemdomilho,ahistóriada

agricultura e as migrações e contatos no Novo Mundo, afirma

Sauer(op.cit.:64).

Omilhoéconsumidopelosíndioscomolegume,istoé,assado,

cozido,ecomocereal,ouseja,reduzidoapófarináceocomquesão

feitosinúmerospratos.Entretanto,seuempregomaisnotávelé

naformadebebidafermentada–ofamosocauimdosTupinambá

–quealimenta,refrescaeembriaga.Veremosadiante,naTabela

IV,queoteordeproteínadomilhoultrapassaodoarroz(9,4para

7,2).Aquantidadedecaloriasdomilho(361)étambémsuperiorà

doarroz(357).Omilhocontémmaisaminoácidosqueamandioca:

3.820mgcontra404(Gross1975:534eTabelaI).Segundoesseautor,

omilhoéplantadopelastribosdaAmazôniacomosuplementoà

culturadamandioca.Issosedápelasseguintesrazões:1)omilhoé

menos produtivo que a mandioca por unidade-área; 2) o milho

exigeterrasmaisférteis,pluviosidaderegularepedemelhorefi-

ciêncianopreparodoscamposdecultivo;3)ostubérculos,como

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 37

amandiocaeasbatatas,quemadurammaislentamente,retiram,

nomesmoritmo,osnutrientesdeixadosnasuperfíciepelaquei-

ma;4)omilhotemquesercolhidoassimqueamadurece,aopasso

queamandiocapodeserarmazenadanaterraporváriosanosou

entãonaformadefarinha,durantemeses(ibidem).

Batata-doce (Ipomoea batatas)

Nas áreas em que grãos, como o milho, não se adaptavam

facilmente, tubérculos ricos em amido foram domesticados. É

ocasodabatata-doce,introduzidanaEspanhaem1526,apartir

deCuba.GabrielSoaresdeSouza,ograndetratadistadasplantas

indígenasbrasileirasnoséculoXVI,relacionouoitovariedades

caracterizadaspelacorepelopaladar.Paramuitastribos,dentre

astuberculíferas,depoisdoaipimedamandiocavemabatata-

-doce.OsAsurini,grupotupidomédioXingu,relacionaram20

nomesdecultivaresdebatatas.Jánãocultivavamtodosporque,

emsuasfugas,perderamasramasdametadedeles(cf.B.Ribeiro

1982:37).

Abatata-docetemumadistribuiçãomaiorqueamandiocana

América.Paraonorte,poucoultrapassouotrópicoeparaooeste–

avançandonazonatemperadadoaltiplano–alcançouoPacífico,

multiplicando-se por divisão (Sauer 1986: 71). Identificações

botânicas admitem a existência de centenas de espécies, sendo

a Ipomoea fastigiata uma espécie silvestre da América tropical

(ibidem).

A batata-doce era o alimento básico dos grupos Jê, família

linguística que inclui, entre outros, os Kayapó, os Timbira e os

Xavante.KerrePosey(1984)encontraramnasroçasdosKayapó-

-Gorotirebatatas-docescomatéquatroanosdeplantadas,distin-

guindoporinformaçãodessesíndios22cultivares.(VerTabelaII.)

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o38

Cará (Dioscorea sp.)

“Háoutrasraízescomobatatas,carás,mangarás”,escreveJosé

de Anchieta em 1570, passados 17 anos de sua permanência no

Brasil.Acrescentaque“estassecomemassadasoucozidas,sãode

bomgosto,servemdepãoaquemnãotemoutro”(apudHoehne

1937:105).Ocaráé frequentementeconfundidocomoinhame,

trazidodasilhasdeCaboVerdeedeS.Tomé,eaquiaclimatado.

Trata-sedaespécieAlocasiamacrorhiza,segundoHoehne(ibidem).

Aos“carazes”serefereaindaGabrielSoaresdeSouzacomgrande

riqueza de detalhes, confirmando sua distinção dos inhames. E

tambémaos“mangarazes”–taiobaoutaro(Xanthosomasp.)–,dos

quais seconsomemas folhaseas raízes, do tamanho de “nozes

e avelãs”, colhendo-se “duas novidades no ano” (Hoehne 1937:

208/9). Sauer (1986: 72) inclui no gênero Dioscorea os inhames

introduzidosdoVelhoMundo.Afirma,todavia,quenaAmérica

existem variedades silvestres desse gênero, distinguindo-se inú-

meras tuberosas comestíveis no Nordeste do Brasil (op. cit.: 72).

“UmaDioscoreaamericana,a‘yampee’(D.trifida,tambémreferida

como D. brasiliensis), pode ser uma planta verdadeiramente do-

mesticada”(ibidem).

Ariá (Calathea allouia)

Amarantáceamaiscomumedemelhorpaladar,domestica-

daportribosamazônicas,é,segundoKerr(1986:168),aCalathea

allouia.OsKayapóreconhecemcincovariedades.Trêsdelas“pro-

duzemdobulbodereservasdaraizeasduasrestantesbrotam

dabatata,oqueindicaumaseleçãocompletamentediferentena

históriadesuadomesticação”(op.cit.:169).Sãoconsumidasassa-

daseamassadascomfarinha.OsDesanapossuemdoiscultivares.

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 39

A análise química do ariá demonstrou que ele contém 66% de

proteínae13a15%deamido(pesoseco)(ibidem).

Feijões (Phaseolus sp.)

De grande importância alimentar são os feijões, da famí-

lia das leguminosas, devido ao seu alto conteúdo de proteína.

Comecemos pelo amendoim, que se destaca por seu teor de

gorduraeexcelentesabor.“Oamendoim(Arachishypogaea)”,diz

Sauer(1986:64),éumadasrarasplantascultivadasatribuídasao

Brasil; sua espécie selvagem mais próxima se encontra desde a

BahiaatéoRiodeJaneiro.”Consideraextraordináriasuadissemi-

naçãopré-colombiana.NaAméricaéregistradadesdeolitoraldo

BrasilatéoPeruenoaltiplanoperuano,oqueindicauma“ligação

cultural de considerável antiguidade entre o Brasil oriental e o

Peruocidental,litorâneo”(op.cit.:65).Emboranãotenhaatingido

grandeimportâncianoMéxico,apesardoclimapropício,Sauer

aventa a possibilidade de pertencer o amendoim “ao complexo

deculturadamandioca(amargaedoce)nasuadistribuiçãopelo

NovoMundo”(ibidem).

AexpansãodoamendoimnomardaChinaeaooceanoÍndico,

enãoàAméricanoNortecontinental,levaoreferidoautorapre-

sumirumadisseminaçãopré-colombianatrans-Pacífico,através

daqualoamendoimchegouàÁfrica(Sauer1986:65).

JosédeAnchieta,GabrielSoaresdeSouza,JeandeLeryeou-

troscronistassereferemafavasefeijõescultivadosnasroçasdos

TupidacostadoBrasil:Trata-sedeespéciesdogêneroPhaselous

que Soares descreve como sendo brancos, pretos, vermelhos e

outros pintados de branco e preto (cf. Hoehne 1937: 213). (Ver

TabelaII.)

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o40

Tabela IIPlantas indígenas cultivadas

Número de cultivares segundo a taxonomia tribal

nome designação científica tribo fonte nº cultivares

Mandiocaemacaxeira

ManihotesculentaManihotdulcis Kayapó Kerr&Posey1984 21

Mandioca Manihotesculenta Tukano Chenela1986 134

Batata-doce Ipomoeabatatas Kayapó Kerr&Posey1984 22

Batata-doce Ipomoeabatatas Asurini B.Ribeiro1982:37 20

Cará Dioscoreasp. Kayapó Kerr&Posey1984 21

Cará Dioscoreasp. Asurini B.Ribeiro1982:37 8

Milho Zeamays Kayapó Kerr&Posey1984 11

Milho Zeamays Asurini B.Ribeiro1982:37 9

Banana Musaparadisiaca,M.sapientum Kayapó Kerr&Posey1984 14

Banana Musaparadisiaca,M.sapientum Asurini B.Ribeiro1982:37 11

Banana Musaparadisiaca,M.sapientum Yanomami Lizot1980:31 11

Cupá Cissusgongylodes Kayapó Posey1983:884 4

Feijão Phaseolusvulgaris Kayapó Posey1983:884 4

Feijão Phaseolussp. Asurini B.Ribeiro1982:37 8

Feijão Phaseolussp. Kayabi B.Ribeiro1979:120 5

Amendoim Arachishypogaea Kayabi B.Ribeiro1979:120 6

Mangaritooutaioba

Xanthosomasp.Xanthosomasagittifolium

KayabiYanomami

B.Ribeiro1979:121Lizot1980:21

57

Ariá Calatheaallouia Desana Kerr&Clement1982:259

2

Pimenta Capsicumsp. Desana B.Ribeiro1980ms 14

Mamão Caricapapaya Kayapó Posey1983:884 4

Pupunha Guilielmagasipaes Yanomami Lizot1984:34 4

Pupunha Bactrisgasipaes Desana Kerr&Clement1980:258

1

Sapota Quararibeacordata Tukuna Kerr&Clement1980:256

1

Abacate(*) Perseaamericana Yanomami Lizot1980:29 1

Abacaxi(*) Ananasparguazensis Yanomami Lizot1980:22 1

Caju Anacardiumsp. Kayabi B.Ribeiro1979:121 1

Maracujá Passiflorasp. Kayabi B.Ribeiro1979:121 1

Abiu Pouteriacaimito Desana B.Ribeiro1980ms 1

Biribá Rolliniamucosa Desana B.Ribeiro1980ms 1

Cacau Theobromasp. Desana B.Ribeiro1980ms 1

Cucuraoumapati Pouroumacecropiaefolia Desana B.Ribeiro1980ms 2

Goiaba Psidiumsp. Desana B.Ribeiro1980ms 2

Graviola Annonasp. Desana B.Ribeiro1980ms 1

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 41

nome designação científica tribo fonte nº cultivares

Toá Gnetumsp. Desana B.Ribeiro1980ms 3

Umari Geoffroyasp. Desana B.Ribeiro1980ms 3

Ingá Ingáedulis;I.cinnamomea Desana B.Ribeiro1980ms 1

Miriti Mauritiaflexuosa Desana B.Ribeiro1980ms 1

Pequi Caryocarspp. Trumai Murphy&Quain1975:100

1

Tabaco Nicotianatabacum Kayapó Posey1983:884 3

Urucu Bixaorellana Kayapó Posey1983:885 6

Algodão Gossypiumarboreum Kayapó Posey1983:884 4

Caroá Neoglazioviavariegata Araweté B.Ribeiro1984 3

Flecha Marantaarundinacea Kayapó Posey1983:884 6

Cabaça Lagenariasiceraria;L.vulgaris Yanomami Lizot1980:23 7

Junco(**) Cyperus corymbosus; C. distants;C.articulatus Yanomami Lizot1980:23

Lizot1980:2415

Barbasco(***) Phyllantuspiscatorum Yanomami Lizot1980:26 1

Paricá(**) Anadenantheraperegrina Yanomami Lizot1980:29 1

Cambará(****) Lantanatryphylla Yanomami Lizot1980:38 1

Coca Erytrhoxylumcaractarum Desana B.Ribeiro1980ms 1

(*) AbacateeabacaxisãotambémcultivadospelosWanana(informaçãopessoaldeJanetChernela).Aindicaçãodeumúnicocultivarsignificaamençãodaplantanabibliografiasemespecificaçãodecultivares.(**)Plantadeusomágico-ritual.(***)Venenoparapeixe.(****)Plantaodorífera.

b) Fruteiras

Poucosbrasileirosestãofamiliarizadoscomaimensariqueza

defrutasnativas,silvestresoucultivadas,ignorandoque,nocaso

dessasúltimas,séculosdeexperimentaçãoeseleçãogenéticade-

corremafimdetornarpossívelsuaretiradadanaturezaparaas

roçasindígenase,depois,nacionaiseinternacionais.Aotratardas

seleçõesgenéticasdeplantas,fizreferênciaaoabacaxieàpupu-

nha.Tratareiagoraapenasdabanana,domaracujáedocaju,para

nãoalongaremdemasiaadiscussão.

Ocaju(Anacardiumspp.)éamplamenteconsumidoemestado

selvagem e domesticado pelos índios no Brasil. A seu respeito,

escrevePauloCavalcante:

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o42

Reforçaahipótesedesuaorigembrasileiraofatodeque,

das22espéciesdescritasparaogêneroAnacardium,apenas

duasoutrêssãonativasdoBrasil.Maisdametadedases-

pécies conhecidas são citadas como nativas da Amazônia

brasileiraeáreaslimítrofes,tambémbrasileiras,dadosesses

quepermitemadmitirqueocajueiroteriaseuindigenato

naAmazônia,deondeirradiousuaculturaparaorestodo

mundotropical(1972:13).

OfrutocontémaltoteordevitaminaC,eacastanhaéricaem

proteína,aminoácidosegorduras.

Originário provavelmente do Brasil é ainda o maracujá

(Passifloraspp.).Impressionadocomseuaromaeabelezadasflo-

res,assimodescreveFreiVicentedeSalvador,em1627:

Maracujáéoutraplanta,quetrepapelosmatos,etam-

bémacultivamepõememlatadasnospátiosequintais;dá

frutodequatrooucincosortes,unsmaiores,outrosmeno-

res,unsamarelos,outrosroxos,todosmuicheirososegos-

tosos,eoquemaissepodenotaréaflor,porque,alémde

serformosaedeváriascores,émisteriosa...(apudHoehne

1937:319).

Hoehnefaladomaracujá-melão(P.macrocarpa),quedáfrutos

atédoisquilosemeio (ibidem).P. Cavalcante (1974:43) informa

queogêneroPassiflora,com400espécies,estáatualmentedifun-

didopelamaiorpartedaAméricatropicale,emmenornúmero,

naÁsiaeAustrália.

A palmeira açaí (Euterpe oleracea), de cujo bago violáceo,

que dá em cachos, se faz um vinho característico do cardápio

do Pará, é de enorme importância na alimentação indígena e

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 43

cabocla da Amazônia. A seguinte citação (Chaves & Perchnik

1945:6),tomadadeCavalcante(1973:34-35),informasobreoseu

valornutritivo:

alimentoessencialmenteenergético,comumvalorcalóri-

cosuperioraodoleiteeumteordelipídiosduplodeste.A

riqueza em protídios não é muito elevada como também

nãooéapercentagemdeglicídios.Todaviaoaçaícomoé

consumidohabitualmenteadicionadodeaçúcareseamilá-

ceospodeserconsideradocomoumalimentoricodegran-

devalorcalórico.Oteordeminerais,cálcio,fósforoeferro

apresentainteresse.

A banana (Musa paradisiaca; M. sapientum) é uma das mais

antigasplantascultivadaspelohomem,origináriadaÁsia.Apa-

coba,noentanto,écitadanoséculoXVIporAndréThevetepor

JeandeLery,noRiodeJaneiro,eporGabrielSoaresdeSouzana

Bahia.Esteteveocuidadodedistinguirasbananeirasdaspaco-

beirasedeixarclaroque“Pacobaéumafrutanaturaldestaterra”

(cf.Hoehne1937:120-121,150-152,221-224).Atualmente,tantoas

variedadesnativascomoasintroduzidastêmgrandeimportância

nadietaalimentardeinúmerosgruposindígenas(verTabelaII).

NocasodosYanomami,elarespondepor70%dascalorias(Smole

1976:117).Foiencontradaemaldeiasisoladasdessesíndios.

Devemos a Paulo B. Cavalcante (1972,1974,1979) um catálo-

go em três volumes de frutas indígenas (cultivadas e silvestres)

e aclimatadas da Amazônia, com a respectiva classificação e

ilustraçãobotânica.Otrabalhofoiescritocombaseempesquisa

feitaemmercadosdeBelémdoParáecidadesdo interiordesse

estado,bemcomoemfontesbibliográficas,durantequatroanos

consecutivos (Cavalcante 1972: 7). O autor assinala no segundo

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o44

volume(1974)queumestudocompletodemandariamuitomais

tempo e admite que: “É bem expressivo o número de espécies

silvestresquedãofrutoscomestíveis,utilizadosemlargaescala

pelossilvícolas,emsuaalimentação,equenamaioriadoscasos

sãointeiramentedesconhecidosdocivilizado”(1974:7).

Noterceirovolume,oautorreúneoutrameiacentenadeespé-

ciesedeixadedescrevercercadeumadezenaporfaltademate-

rialadequadoparaaidentificaçãoeilustração.

Tiveocuidadodesomarototalpublicadonostrêsvolumes,

verificandocompreendernoconjunto168espéciespertencentes

a 40 famílias botânicas. Se considerarmos que dessas 40 famí-

liasapenastrês–aRutácea(comoitoespéciesdogêneroCitrus,

ouseja, laranjae limão),aCucurbitácea(melanciaemelão)ea

Flacourtiácea (ameixa-de-madagascar) – são comprovadamente

forâneas, podemos avaliar a quanto monta a herança indígena

somente no que se refere a fruteiras de consumo humano da

Amazônia.

Realizeiomesmoexercícionoíndicedeespéciesvegetaisrefe-

ridasnolivrodeF.C.Hoehne.Trata-se,aqui,comofoidito,deum

levantamentodasplantasnativasconhecidaspelosíndiossegun-

do crônica dos autores seiscentistas e setecentistas. O cômputo

acusouareferênciaa91famíliasbotânicase353espéciesdeplan-

tas.Constata-se,poroutrolado,queasplantas“exóticas”–ouseja,

europeias–encontradasnasroçasindígenasenasfazendas,nos

doisprimeirosséculos,somamapenas59espéciespertencentesa

24famíliasbotânicas.Valeapenaenumerá-lasparaconstatarque,

exceto a cana-de-açúcar, o trigo, os cítricos e os temperos, esses

produtos não têm, até hoje, real importância na alimentação e

naeconomiadosbrasileiros.Algunssãopoucoconhecidos,por

issoosidentificocomasdesignaçõescientíficas.Alistacompleta

inclui:uva,“borragem”(Borragoofficinalis),cravo,cravina,beterra-

ba,espinafre,alface,“cardo”(Onopordonacanthium),nabo,“rabão”

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 45

(Brassica napus), couve, couve-tronchuda, couve murciana, me-

lancia, melão, pepino, abóbora, castanha de Portugal (Castanea

vulgaris),“cana-do-reino”(Arundodonax),cevada,cana-de-açúcar,

centeio, trigo, hortelã, “poejo” (Mentha oulegium), alfavaca, “se-

gurelha” (Satureia hortensis), canela-de-cheiro, guandu (Cajamus

flavus), “canafístula” (Cassia fistula), “fava-de-cavalo” (Dolichos

lablab), “granvanços” (Lathyrus sativus), lentilha, ervilha, cebola,

alho,“líriobranco”(Liliumlongiflorum),quiabo,lúpulo(Humulus

lupulus),“junco”(Calamusrotang),tamareira,romeira(Punicagra-

natum),“ervabesteira”(Helleborusfoetidus),marmeleiro,laranja,li-

mão,sândalo(SantalumalbumeS.Freycinetum),jiló(Solanumgilo),

berinjela, batata-inglesa (Solanum tuberosum), incenso (Aquilaria

agallochumeA.malacensis),“endro”(Anethumgraveolens),coentro

(Coryandrumsativum),cenoura,“funcho”(Foeniculumvulgare),sal-

sa(Petroseliumsativum)(cf.Hoehne1937:339-357).

Dalistaacimapode-sedizeraindaquealgumasespécies,como

ocravo,acanela,aabóbora,têmsimilaresnativos.Poroutrolado,

aassimchamadabatata-inglesaéorigináriadaAmérica.Foileva-

daaoVelhoMundodepoisdaconquista,vindoaconstituirum

dos principais alimentos dos europeus, da mesma forma que o

tomate(Lycopersicumsp.),origináriodoMéxico.Quantoaoarroz,

Hoehne sustenta uma alentada argumentação para provar que

eraconhecidopelaspopulaçõesindígenasdoBrasilantesdache-

gadadePedroÁlvaresCabral(cf.Hoehne,1937:34,36,38,66,187).

7. Plantas estimulantes, medicinais e industriais

(cultivadasousilvestres)

Numestudosobreoconhecimentoeusodasárvoresdaselva

tropical,RobertL.Caneiro(1986)fezumlevantamentodaclassi-

ficaçãoflorestalfeitapelosKuikuro.Numaáreade1,6acre(=0,65

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o46

hectare),seusinformantesidentificaram187espécies,distribuin-

do-as por nomes específicos. Nos seus critérios de classificação

eramlevadosemcontaotronco,afolhagem,osgalhos,asflores

efrutosqueacasotivessem,acascaeaentrecasca,olenhoeare-

sina,segundoacor,ocheiroeogostodosdoisúltimos.Amesma

experiênciafoifeitacomarbustosemacega,igualmenteidentifi-

cados,eatémesmocomfolhassoltas(1986:50-51).

Alémdoseuconhecimentodasárvores,emqueCarneirocal-

cula estarem incluídas 45 espécies, os Kuikuro lhe forneceram

osusosaquesedestinamequepodemserassimresumidos:a)

parafazerartefatos;b)parapintaroudecorarocorpo;c)parauso

cerimonial,xamanísticooumágico;d)parausomedicinal;e)fru-

tosounozesalimentícias; f)para lenha;g)plantasquecrescem

nasroças;h)paraconstruçãodecasas,discriminadosostroncos

demadeiraparaesteio,caibros, ripasetc.; i)paraamarrilhosou

fibras; j)árvoresquefiguramnamitologia;k)paraornamentos;

l)paraprovervenenos;m)paraextraçãodelátexouresina;n)fo-

lhasusadasparapolimento,forração,limpezaetc.;o)paraimple-

mentosdetransporteporágua,inclusiveparacalafetá-los;p)para

fazersabão;q)parafazersal(Carneiro1986:52).Muitasseprestam

amaisdeumadessasfinalidades.Alémdisso,osíndiospodiam

nomearoutrasárvoresúteisquecresciamforadoseuterritório.

Deve-serecordarqueesseelencorepresentaapenasumaamostra

tomadaemumaárealimitada.

Orepertórioqueaseguirseexaminalongeestáderepresentar

atotalidadedoconhecimentodaflorapeloaboríginebrasileiro.

Aslacunasmaioresdizemrespeitoàfarmacopeiaindígenaprati-

camentedesconhecidaeàsplantasmanufatureirasutilizadasna

construçãodascasas,dosmeiosdetransporteedosutensíliose

ataviospessoais.Essarelação–queampliaapublicadaanterior-

mente(B.Ribeiro1983:96-100)–foisistematizadasegundouma

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 47

ordemquerefleteaimportânciaeconômicarelativadasplantas

paraasociedadenacionaleparatodaahumanidade.Umalista

completaconteriamaisdeumacentenadeitens.Mencionam-se,

emprimeirolugar,asprincipaisplantascultivadase,emseguida,

assilvestres,todasusadasparafinsespecíficos.

a) Principais produtos cultivados3

1) Tabaco(Nicotianatabacum).Plantadeorigemedomesti-

caçãoamericanas.EstavaporquasetodaaAméricana

épocadaconquistaeerausadaprincipalmenteparaefei-

tosmágicos,comoterapêuticamedicinaleestimulante.

IntroduzidanaEuropanoséculoXVI, foi rapidamente

aceitaemsuasváriasformas:comocigarro,charuto,ca-

chimbo,rapéparacheirarefumoparamascar.Curiosoé

ofatodequetenhaatingidooextremonortedaAmérica

apenasnoséculoXVII, jápor influênciadoseuropeus.

Aindústriadotabacoé,atualmente,umadasmaisprós-

peras do mundo. Experimentos recentes indicam que

constituiexcelenteforragemparagado.

2) Algodão (Gossipium sp.). Os indígenas americanos cul-

tivavam o algodão (duas espécies: G. Barbadense e G.

hirsutum) antes da chegada de Colombo. Não obstante

serconhecidodelongadatanaEuropaenoOriente,oal-

godãoamericanosubstituiu,comvantagens,odoVelho

Mundo. Alguns autores localizam seu hábitat original

novaledorioCauca,outrosadmitemodesenvolvimen-

to da variedade brasiliense na floresta úmida do nosso

país.NoséculoXIX,oBrasilchegouaserumdosmaiores

exportadoresdealgodãodomundo.

3 Excluem-seosanteriormentecitados.

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o48

3) Caroá (Neoglaziovia variegata). Espécie de bromeliácea

plantada, segundo observamos, pelas tribos de língua

karibdoaltoXingu,pelosArawté(tupi),utilizadapara

fazerfio,cordadearco,bolsadecarregaredeapanhar

peixesconhecidacomopuçá,empequenosriachos.

4) Erva-mate (Ilex paraguariensis). Tudo indica que esta

planta tenha sido desenvolvida pelos índios Guarani,

queautilizamfresca,parafinsmedicinais,eseca,para

fazercháechimarrão,difundindo-senoSuldoBrasil,em

todaaregiãoplatina,naBolíviaenoPeru.Atualmente

o chá-mate está penetrando nos mercados mundiais,

comosucedâneodochá-pretoedocafé.

5) Guaraná(Paulliniacupana).Oguaranáerapoucodifun-

didonaAmérica.As fontesmaisantigasregistramsua

presençaentreosíndiosMawéeAndirá,doTapajós(os

últimosextintosnoséculoXVII), entre algumas tribos

do rio Negro e da Venezuela. A partir de meados do

século XIX, os Mawé constituíram, praticamente, um

monopóliodesseprodutoeocomerciavamlargamente.

Oguaranáéumarbustosarmentoso,decujassementes

trituradasapilão,misturadasàágua,aocacaueàman-

dioca(facultativamenteosdoisúltimos)preparam-seos

bastões.Abebida,degostoamargo,éobtidaraspando-se

obastãoeadicionando-seágua.Éumestimulantenotá-

vel,contendopequenoteordecafeína.Hojeoseuplan-

tioestádifundidoporváriasregiões–oJapão,inclusive

–,eoseuusoégeneralizado.

Outrasplantascultivadaspelosíndioseadotadaspeloscivi-

lizadossão:ourucu(Bixaorellana),usadocomocondimentona

culináriaepinturadecorpopelosíndios;váriasfibrasextraídas

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 49

defolhasdepalmeiras,comodotucum(Astrocaryumsp.)quedão

excelentefioparacordaseredesdedormir;asfibrasdapiaçaba

(Leopoldinapiassaba)sãoempregadasparamúltiplosfins(entre

outros,comomatéria-primaparavassouras,exportadaemlarga

escala),domesmomodoqueasdapalmeiracarnaúba(Copernicia

cerifera)eburiti(Mauritiasp.).Essasespéciessãomaisimportan-

tes, para as populações aborígines e civilizadas da Amazônia,

aopassoqueosíndiosdoChascoedoSuldoBrasilutilizam,de

preferência,fibrasextraídasdebromeliáceascomoocaraguatá

e gravatá (Bromelia fastuosa e B. serra). Plantadas eram também

cabaças(Lagenariavulgaris)paracarregarágua;cuias(Crescentia

cujete) também utilizadas como vasilhames de variados fins;

taquaras para flechas (Gynerium sachroides, Guadua sp.), contas

paracolarese inúmerasoutrasplantascultivadasnasroçasou

juntodascasas.

Nosúltimosanos,aatençãodosbotânicos–RichardSchultes,

entre outros – tem sido atraída para plantas qualificadas como

alucinógenas ou estimulantes, cultivadas ou coletadas por gru-

posindígenasdaAmazônia.Umadasmaisconhecidaséacocaou

ipadu(emlínguageral)(Erythroxilumcoca),deusoritual,pelosín-

dios.ÉplantadapelosTukanoeMaku,doaltorioNegro,alémde

outros.GhilleanT.Prance(1972:228-229)observouseuusonesta

últimatribo,informandoqueépreparadaeingeridadiariamente

com farinha de mandioca ou tapioca. O modo mais comum de

consumi-laéchuparaboladefolhastostadasemisturadascom

cinzadefolhadebananeira.Pranceagregaqueoseuefeitoéapla-

carafome,umavezqueoseuingredienteativoéacocaína.Acin-

zaquelheéadicionadaativaonarcóticoaoproverumalcaloide

(op.cit.:229).Oprocedimentodaplantapelosíndiosnãochegaaté

oseuusocomotóxico,ouseja,acocaína.

EntreosWaiká,subgrupoYanomami,Pranceobservououso

de dois rapés aspirados pelas narinas com efeito alucinógeno.

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o50

Um deles é composto de duas plantas: Virola theiodora e Justicia

pectoralis. A base do alucinógeno é a Virola. As folhas secas da

Justicia pectoralis são adicionadas optativamente devido ao seu

aroma.OoutroalucinógenocontémPiptadeniaperegrina,planta

conhecidanabibliografiaetnológicasobonomedeparicá,ede

efeitostóxicosbemmaioresqueaVirola.Destaplantautiliza-se

asemente,torradaepulverizada.Opóéaspiradopelosorifícios

nasais.Aparentemente,estaplantanãoécultivada(Prance1973:

236).Outroalucinógenocomprincípiosativossemelhantesaos

doparicá–Anadenantheraperegrina–éplantadonasroçasejunto

às casas pelos Yanomami. É consumido também por aspiração,

misturando-se o pó da semente torrada com cinza de uma cor-

tiça(Elizabethaprinceps)(Lizot1980:29-30).OgêneroJusticiaque,

como vimos, é adicionado à Virola, é também objeto de cultivo

pelos Yanomami, da mesma forma que outra planta odorífera

(Acanthaceasp.).Estaúltimaéusadacomoadornopelasmulheres

(cf.Lizot1980:20).

Da família das Ciperáceas, os Yanomami plantam 15 espé-

cies (C.corymbosus,C.distanseC.articulatus)poucoconhecidas.

SegundoLizot,

Seus usos são múltiplos. Em sua maioria estas plantas

servemcomofeitiçoparacaçar(fixadasnapontadaflecha

asseguram o alvo); umas são para caçar pássaro pequeno,

tatu,mutum,antaetc.Outrasprovocamamorte,aenfer-

midade,acura;sãoafrodisíacas;fazemcomqueoshomens

maisvalentesseassustem;permitemtrabalharsemdescan-

sonaroça;(...)ajudamnocrescimentodascrianças;infun-

demcoragemnumabriga...(1980:24).

Lizotaissoagrega:

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 51

Oestudobotânicodasciperáceasedasplantasdogêne-

roJusticiadeveriamotivarosespecialistas:estasplantassão

poucoconhecidasemuitodiversificadas.Suadistribuição

naAméricadoSulpoderiaproporcionarinformaçõesinte-

ressantessobremigraçõeseempréstimosculturais(ibidem).

b) Principais produtos de coleta

Inúmerasespéciesvegetais,objetodecoletaporpartedosín-

dios,foramdepoisadotadaspeloscolonizadores,passandoaser

cultivadas, algumas em larga escala, desempenhando hoje rele-

vantepapelnaeconomiamundial.

Borracha(Heveabrasiliensis).Conhecidapelosíndiosqueauti-

lizavam para fazer bolas, seringas e impermeabilizar objetos, a

borrachasófoirealmente“descoberta”pelacivilizaçãoocidental

nasegundametadedoséculoXIX.Naquelaépoca,aAmazôniaera

aúnicaregiãoprodutoraemtodoomundo,eimensasfortunas

surgiram da noite para o dia, embora o rush da borracha tenha

ceifado,pelasfebreseavitaminosesepelabrutalidadedapenetra-

ção,milharesdevidasdeíndiosesertanejos.Em1876,iniciou-se

oplantiodaHeveabrasiliensisnaIndonésia,começandoaquebra

domonopóliodetidopornossopaísdurantequasemeioséculo.

Outraplantadamaiorimportânciaéocacau(Theobromacacao),

dequeseextraiochocolate.Eracultivadonohemisférionorte,

nasterrastemperadasdacostadoPacífico,antesdeColombo.Na

costaatlântica,tinhatambémampladistribuição,masoseucul-

tivoeramenosgeneralizadoedemenorimportância.NoBrasil,

eraobjetodecoleta,passandoagoraasercultivado,aexemplodo

quefazemosDesana(verTabelaII).

Dignas de menção são, ainda, as seguintes: maracujá

(Passiflora sp.),aquejánosreferimos,utilizadotantoemestado

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o52

selvagemcomocultivado;guabiroba(Myrtusmucronata);guavira

(Campomanesia); umbu (Spondias tuberosa); mangaba (Hancornia

speciosa),importantíssimaparaastribosdasregiõesdesavanaque,

nasestaçõesemqueamadurece,empreendemgrandescaminha-

das para coletá-la; jabuticaba (Mouriria pusa); piquia (Macoubea

guaianensis) e bacuri (Piatonia insignis), também cultivadas; abio

(Lucuma caimito) e ingá (Ingá spp.), extensamente cultivados

no alto rio Negro; maçaranduba (Mimusops excelsa); cupuaçu

(Theobroma grandiflorum); jacaratiá (Jaracatia dodecaphylla); mu-

cajá (Acrocomia sclerocarpa); guarajá (Chrysophyllum excelsum);

pitomba (Eugenia litescens); pitanga (várias Myrtacea); fruta-de-

-conde(diversasRolliniaeAnona);araticum(AnonaMontana);mu-

rici (Byrsonima sericea); cajá (Spondias lutea); araçá ou goiabinha

(Psidiumguayava);junipapo(Genipaamericana),dequeosíndios

utilizavam de preferência o sumo para a pintura do corpo e de

artefatosdoqueofrutomaduro,queécomestíveledoqualsefaz

excelentelicor;jatobá(Hymenaeacourbaril)eoutras.Todasessas

frutasestãohojeintegradasnadietaalimentardopovobrasileiro,

sobretudodoNorte,NordesteedoBrasilcentral,queéohábitat

natural de sua maioria. Inúmeras são aproveitadas industrial-

mentenaformadecompotas,sucoselicores.Édeseesperarque,

no futuro, se imponhamnomercadomundial,comodádivada

florabrasileiraaoacervouniversaldeespéciesúteisenutritivas.

Diversasespéciesdepalmeirasrepresentamsubstancialfonte

alimentardosaborígines, sejao frutocomoacastanha,daqual

fazemaindaazeiteparacomidaeparailuminação;aspalmasser-

vemparacoberturadecasas,paratrancarcestos,esteiraseoutros

utensílios; a madeira se presta para diversos fins; e o palmito é

consumidocru,assadooucozido.

Obabaçuoupindoba(Orbignyaspeciosa),cujascastanhasen-

cerramquase70%degordura,seprestaatodososfinscitados.Da

palmeira mucaia ou bocaiuva (Acrocomia), bem como do buriti

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 53

(Mauritiavinifera),émuitoapreciadaapartecarnosa,degrande

valorvitamínicoemuitonutritiva.

De outras palmeiras, como o açaí (Euterpe oleracea), prepara-

-se uma bebida chamada vinho de açaí, de grande consumo no

Pará,comomencionei.Domesmomodo,sãopreparadosrefres-

cos dos frutos da palmeira inajá (Maximiliana regia) e outras.

Frequentementeochibéétemperadocomessessucos.

Entre as amêndoas oleaginosas, merece especial destaque a

castanha-do-pará(Bertholletiaexcelsa),cujaárvore,deportemag-

nífico, alcança50 metros de altura por4 de diâmetro. A coleta

da castanha-do-pará ocupa boa parte da população amazônica,

constituindo-se em importante artigo de exportação. É origi-

nária do Brasil e representa papel exponencial na alimentação

indígena.

Ospinhões(Araucariaangustifolia)constituíamabasealimen-

tardosíndiosKaingangeGuarani,duranteváriosmesesdoano,

sendoatéhojemuitopopularesnaregiãoSuldoBrasil.

A castanha sapucaia (Lecythis paraensis) e a castanha-do-ma-

ranhão(Bombaxinsigne)sãotambémmuitoprocuradas,embora

nãotenhamalcançadooapreçoquegranjeouacastanha-do-pará

nomundotodo.

Outrosprodutosvegetais,utilizadospelosíndios,sãooscipós

e enviras, para trançar peneiras, amarrar vigas nas casas, fazer

cordasrústicas;folhasepalmasparacoberturadascasaseemba-

lagens,paratrançarcestas,esteiras,fazerbarragensemigarapés

emúltiplosoutrosusos;madeirasparaesteios,vigaseripasdas

casas, para a fabricação de inúmeros instrumentos e utensílios

e para fins ignígeros; resinas, látex, óleos, unguentos, plantas

saponáceas,plantascondimentareseoleíferascomoabaunilha

(Vanilla sp.) e uma variedade de madeiras perfumadas. Enfim,

toda uma gama de conhecimentos botânicos foi incorporada à

culturabrasileira,atravésdaherançaancestraldoíndio.

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o54

Dentre os venenos para caça, principalmente de macacos e

aves, alcançou fama universal e emprego cirúrgico o curare. É

usadopelosgruposnorte-amazônicosparauntarassetasdeuma

armaquefuncionaporcompressãodear,asarabatana.Curaree

sarabatana foram registrados entre nativos da Indonésia. Tudo

leva a crer, porém, que se trata de invenções independentes. O

curare indígena é extraído da casca de cipós (Strichnos toxifera).

Sóéletalquandoentranacirculaçãosanguínea,paralisandoos

músculosdocoração.Acurarina,alcaloideencontradonocurare,

é empregada em delicadas intervenções cirúrgicas que exigem

relaxantemuscular.

Os índios utilizam as raízes tóxicas do barbasco, conhecido

comotimbósacaca(Tephrosiatoxicaria),paraenvenenarospeixes

porsufocação,queassimvêmàtonaesãofacilmentecapturados

atravésdaflechaoumesmocomamão.OscaboclosdoNortedo

Brasiltambémcostumamtinguijarpeixesporesseprocesso.Do

timbó,extrai-searotenona,utilizadacomoinseticidanamedici-

nasanitáriaenaagricultura.

Dentre os contraceptivos, Ghillean Prance (1986: 124) acre-

ditaqueesseefeitoéobtidoporumamenispermácea(Curarea

tecunarum)tomadaemformadebebidadepoisdoparto,duran-

te algumas semanas, pelo marido e a parturiente. Segundo os

informantes Deni, grupo indígena do rio Juruá, recentemente

contatado, o efeito da beberagem se prolonga por dois anos.

Missionáriosquevivemjuntoaessatriboobservaramumgran-

deespaçamentoentreosfilhosdeumcasalequeapenasuma

mulherficagrávidadecadavez,nogrupo.Pranceaindanãodi-

vulgouosresultadosdaanálisequímicadaplanta,chamandoa

atençãoparaofatodetratar-sedogêneroutilizadoparaveneno

deflechas:ocurare.

AsmulheresKaapor(grupotupidoMaranhão)tomamumchá

feito da raiz de um arbusto silvestre (Strychnos sp.) – do gênero

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 55

utilizadopelosgruposamazônicosnafabricaçãodocurare–con-

tradoresmenstruais,queétidotambémcomoabortivo(W.Balé

1984ms:236).

Num estudo sobre a nomenclatura e classificação das plan-

tas silvestres, segundo o sistema taxonômico indígena, Emílio

Fuentes (1980: 5-137) desbasta o mundo vegetal dos Yanomami.

Embora tenha obtido designações para 600 plantas silvestres e

cultivadasporessesíndios,abuscadeequivalentesnataxonomia

científicaresultouinfrutífera(Fuentesop.cit.:12).Nadenomina-

ção das plantas pelos Yanomami, escreve Fuentes, não se pode

vislumbrarregrasdesistematização.Nelas

características morfológicas se mesclam a semelhanças

zoológicas,àpoesiaeaohumor.Aclassificaçãoéassistemá-

tica,fundamentadaemseiscategoriasgerais(árvore,cipó,

palmeira, fungo, erva e feto) e numa particularização de

cadaplantamedianteaatribuiçãodeumnomeespecífico

(op.cit.:81).

Quantoaoníveldeconhecimentodomundovegetal,verifica-

-sequenoconjuntode184plantas,cujautilizaçãoeidentificação

botânica foram determinadas por Fuentes, 56 têm emprego no

campodatecnologia(construçãodecasas,meiosdetransporte,

utensíliosdomésticosedetrabalho);77sãousadasnaalimenta-

ção;23destinam-seacoranteseàornamentação;15sãoclassifi-

cadasporFuentescomovenenosedrogas;e13parausomágico

ejogos.

Estudo anterior, na mesma linha, é o de Thekla Hartmann

(1967)denominadoNomenclaturabotânicadosBororo.Empesquisa

decampojuntoaessegrupoindígenadonortedeMatoGrosso,

a autora recolheu 200 espécimes de plantas, que, juntamente

com os 400 levantados na bibliografia, perfazem o equivalente

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o56

aorepertórioobtidoporFuentesentreosYanomami.Noentan-

to,“alistaestálongedeesgotar-se”,afirmaHartmann(1967:12).

Analisandoaetimologiadasdesignaçõesdessasplantas,aauto-

ra constata “a existência de um conceito de gênero entre estes

índios.Essaconstataçãoparececontráriaàvelhaideiadequeo

homemdeculturatribalparticularizavaseuconhecimento,sem

subordiná-loaconceitosinclusivoseabstratos”(op.cit.:10).

Outraevidênciaalcançadanessetrabalhoéadequeomaior

númerodeétimosbotânicosserefereanomes“zoológicos”.Com

efeito, num total de 224 nomes, 102 remetem a essa categoria,

sendoosdemaisdivididosem14outras,relacionadasacaracte-

rísticas morfológicas do vegetal, seu emprego etc. O mesmo se

verifica em relação à nomenclatura botânica dos Guarani (108

nomeszoológicose233deoutras24categorias),segundoestudos

deLeonCadogan(cf.Hartmann1967:39).

c) Farmacopeia indígena

São praticamente inexistentes estudos específicos sobre esse

tema.OmaisconhecidoéodobotânicoPauloF.Cavalcanteedo

antropólogoProtásioFrikel(1973).Foirealizadojuntoaumgru-

podo tronco linguísticoKarib,daGuianabrasileira–os índios

TiriyódorioParudoOeste–eexemplificaariquezadoconheci-

mentoindígenadafloramedicinal.Emexcursãoefetuadacomal-

gunsíndiosdessatribo,seusautorescoletaram“436espécimesde

plantasemgeral,dasquais,segundoaindicaçãodosinformantes,

328possuemvalormedicinal.Destas,somente171forambotani-

camenteclassificadas...”(1973:5).

As indicações terapêuticas das plantas foram dadas por dois

índiosmaisidosos,umdelespajé.CavalcanteeFrikelcomentam

que a nova geração pouco se interessa em conhecer e aplicar a

medicina tradicional, não porque tenha perdido confiança nela

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 57

enosantigosmétodosdecura,esimporqueprefereosremédios

fornecidos pela Missão, “de efeito mais rápido, provocado pela

concentraçãodoselementosativosemformadedrogas,quiçáde

plantassemelhantesouequivalentes”(op.cit.:6).

AmaneirapelaqualosTiriyódesignamseusremédiosexpres-

sa a forma como são aplicados. Trata-se de vocábulos, segundo

Cavalcante e Frikel (1973: 11-13), que indicam que o remédio é

administradosobaformade:

1.Banhos(decuia)quentesoufriosdesumodefolhasfervi-

dasoudiluídas.

2.Sumoouseivadeplantasparausolocal.

3.Remédiosaplicadosemfricçõesoumassagens.

4.Remédiosparausointerno,aplicadosporviaoral.

5.Plantasmedicinaisaplicadasemformadevapores.

6.Plantascarbonizadaseaplicadas.

Outra categoria de nomenclatura indica os “efeitos produzi-

dospelaaplicaçãodosremédios”,taiscomoremédioparaaborto,

partorápidoouparafazercrescerosseiosdasadolescentes.Um

terceirogrupoindicaadoençapropriamentedita:remédiopara

queimaduras,parapicadadecobra,contraflechasenvenenadase

comoantídotodocurare.Umaquartacategoriaremeteaoórgão

afetado pela doença: remédios para dor de dentes, de ouvidos,

olhos,cabeçaetc.Finalmente,umacategoriadetermoséusada

demodoambíguo,afavoroucontra,comoporexemplo:“remé-

dioparacriança”,paraamenstruação,paraabarriga.Noprimeiro

caso pode tratar-se de um remédio para tratar febre infantil ou

paraabortar;nosegundo,estancarosanguemenstrualouprovo-

cá-lo. No terceiro, para combater cólicas intestinais e de outros

órgãosinternos(rins,fígado).

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o58

As171amostrasbotanicamenteidentificadasforamdescritas

emfichascontendoasseguintesinformações:I.Naparteetnofar-

macológica:denominaçãoindígena(Tiriyó)dasplantasmedici-

nais,tipodevegetal,utilidadeclínica,materialaproveitado,ob-

tençãoemanipulaçãodovegetal,maneiradeprepararoremédio,

mododeusar,efeitos,origemétnicadousomedicinal,processos

depreparaçãodosremédios.II.Napartebotânica:nomecientífi-

codaplanta,denominaçãopopular,descriçãobotânica,localde

coletaenúmeroderegistrodoherbáriodoMuseuGoeldi(Belém

doPará)paraondefoilevada(cf.Cavalcante&Frikel,1973:21).

Tabulando o material vegetal, os autores verificaram o apro-

veitamentonamedicinaTiriyóde:

Arbustosearbustivos 71

Árvores 34

Cipós 26

Ervaseherbáceas 25

Gramíneas 12

Trepadeiras 3

Total 171

Desses espécimes são aproveitados folhas (70 casos), sumos

(39),hastes(25),raízes(14),talas(10),frutas(9),cascas(8),madei-

ras(2),flores(1),tudo(41).

Quantoàmaneirade“isolarouextrairoselementosativosdas

plantasmedicinais”,Cavalcante&Frikel(op.cit.:137)verificaram

queelaoperaatravésdacocção(101casos),infusão(24),carboni-

zação (9),aplicaçãoaonatural (37),ouaplicaçãoquenteoupor

vapores(4)(ibidem).Dototaldeaplicações,41eramdeusointerno

e168,deusoexterno.

Asaplicações terapêuticasdasplantasmedicinaisdosTiriyó

demonstram que as doenças mais frequentes que os índios

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 59

enfrentameparaasquaisseempenharamemencontrarremédios,

autonomamente,emsuafloramedicinal,são,resumidamente:

101 remédiosparafebres

42 remédiosparaferidas

17 remédiosparaestadosanêmicos

14 remédiosparareumatismo

14 remédiosparaamarelidão

13 remédiosparadoresdecabeça

12 remédiosparacólicasintestinais

12 remédiosparaantídotoscontracurare

11 remédiosparadoresdedente

Emboradeclarandoque“somenteumaanálisedelaboratório

poderáesclarecerovalor,aeficiênciaouocarátermedicinaldas

alegadasplantas”(1973:139),osautoresobtiverambonsresulta-

dosemalgunsexperimentos.Aomesmotempoverificaramque

“àmesmaplantasãoatribuídosváriosefeitos,emborasemelhan-

tes”(ibidem).Emordemdefrequência,Cavalcante&Frikeldedu-

ziramque,numtotalde292aplicaçõesdas171plantasmedicinais

classificadas,obtinham-se34prováveisefeitos,conformediscri-

minaçãoabaixo:

1. Antitérmicos ...................... 52casos

2. Analgésicos ........................ 44casos

3. Sedativos........................... 21casos

4. Antiflogísticos ..................... 21casos

5. Antissépticos ....................... 20casos

6. Tônicos,energéticos ............... 19casos

7. Cicatrizantes ....................... 18casos

8. Antiespasmódicos ................. 15casos

9. Anti-inflamatórios ................. 15casos

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o60

10. Antianêmicos ...................... 7casos

11. Antidínicos ........................ 6casos

12. Béquicos ........................... 6casos

13. Antitóxicos,antídotos ............. 5casos

14. Catárticos .......................... 5casos

15. Antifisséticos ...................... 5casos

16. Tônicoscapilares,anticaspas....... 5casos

17. Diuréticos .......................... 3casos

18. Anti-infecciosos .................... 3casos

19. Tranquilizantes .................... 3casos

20. Ocitócitos .......................... 2casos

21. Antimicóticos ...................... 2casos

22. Estimulantesparaocrescimento ... 2casos

23. Anti-helmínticos ................... 2casos

24. Emético ............................ 1caso

25. Antiemético ........................ 1caso

26. Atenuante .......................... 1caso

27. Antienurético ...................... 1caso

28. Anti-hemorrágico .................. 1caso

29. Abortivo ........................... 1caso

30. Antiasmático ....................... 1caso

31. Anticatarral ........................ 1caso

32. Expectorante ....................... 1caso

33. Mucolítico ......................... 1caso

34. Antiparasitário .................... 1caso

Total ................... 292casos

OestudodeCavalcante&Frikelmostra,finalmente,que,das

171 plantas classificadas, 87 são do campo e 84 da mata, o que

revela a origem dos Tiriyó: dois grupos ancestrais originários,

respectivamente,docampoedafloresta.Eaindaque155espécies

botânicas pertencem à tradição tribal, nove provêm dos negros

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 61

do Suriname e sete são de origem duvidosa. Destas, uma única

espécieorigina-sedasociedadenacional.Oestudocomprova,ain-

da,que,emvirtudedocontatocompopulaçõesnegrasecaboclas

vizinhas, os Tiriyó adquiriram enfermidades antes desconheci-

das,dentreasquaissedestacamasmoléstiasdasviasrespirató-

rias(gripe,catarro,tosse)easdoençasvenéreas,emparticulara

gonorreia. Para curá-la utilizam remédios de quatro plantas. Os

autoresconcluemque

Os civilizados, entretanto, contribuíram muito pouco

paraamedicinacaseiradosTiriyó.Aplantamaisencontra-

daegeralmenteaceitafoiomastruz(Chenopodiumambro-

sioides),empregadocontrafebresemgerale,especialmente,

contraamaláriaqueosTiriyó,significativamente,denomi-

nam“pananakirikói”,ouseja,“febredosbrancos”,istoé,dos

estrangeiros,holandesesetc.(op.cit.:143).

Comosevê,osbrancos“contribuíram”antescomdoençasdo

que com remédios, ao passo que a medicina indígena e a paje-

lançasão,aindahoje,emtodososrincõesdointeriordoBrasil,o

únicoalívioparainúmerosmales.Quantoàfarmacopeiaindíge-

na, é quase ignorada pela cultura ocidental. Vejamos os poucos

exemplos, de que temos conhecimento, de plantas medicinais

americanasincorporadasànossacivilização.

Ipecacuana (Cephaelis ipecacuana). Originária do Brasil, era

usadapelosíndiosparafinsmedicinais,especificamentecontra

diarreiassanguinolentas.Delaseextraiocloridratodeemetina.

LevadassuasraízesparaaEuropa,difundiram-sesuasproprieda-

des,sendoempregadaatéhojenafarmacopeiamundial.

Jaborandi (Pilocarpus pennatifolius). Assinala-se sua utilização

pelosíndiosbrasileiroscomosudoríficoedepurativo.Sónosécu-

loXIXdifundiram-sesuaspropriedadesnaEuropa.

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o62

Copaíba (diversas espécies do gênero Copaifera). Utilizada

pelosTupi-Guaraniparacurarferidaseoutrasenfermidades.Só

noséculoXVIII,generalizou-seoseuusocontraafecçõesdasvias

urinárias.

Quina(dogêneroCinchona).Árvoreorigináriadaregiãoandi-

na, cuja cortiça macerada na água dava uma beberagem com a

qualosíndiostratavamafebreterçã.Delaseextraemváriosal-

caloides,sobretudooquinino,empregadoparaacuradamalária.

Oesforçocoordenadodeetnólogos,farmacólogos,químicose

fisiólogoselucidou,recentemente,aestruturaquímicadevene-

nos vegetais como o curare. Substâncias curarizantes sintéticas

sãoempregadas,atualmente,emdelicadascirurgiasqueexigema

paralisaçãomomentâneadosmúsculoscardíacos.4

4 Sobrefarmacopeiaindígena,vertambémE.Elisabetski(1986).

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 63

iia natureza domada.

o saber etnozoológico

Introdução

O indígenabrasileirodesenvolveuestratégiasetécnicas

paraautilizaçãoracionalderecursosnaturaisdoseu

ambiente.Nocapítuloanterioranaliseiosreferentesàflora,em

sua interação com a fauna e o substrato inorgânico. Vejamos,

agora,emquemedidaosgrupostribaisidentificaramosrecursos

faunísticosdeseuhábitatedesenvolverammétodosadequados

ao seu manejo, visando a sua preservação. Tratarei de aspectos

relativos às técnicas utilizadas para a caça de mamíferos, aves,

coletadeinsetoselarvascomestíveis.E,finalmente,ostabusali-

mentareseosaspectosmágicosrelativosàcaça,quecontribuem

paraasuamultiplicação.

AsmonografiasetnográficassobreíndiosdoBrasildescrevem

sempre as técnicas de caça e pesca, enaltecendo o seu papel na

dietaalimentarindígena.Entretanto,sóemanosrecentes,botâ-

nicosezoólogosincorporaram-seàpesquisaedocumentaçãodo

saber milenar do seu ecossistema. Todos estão convencidos de

queascomplexasrelaçõesqueasculturasditas“primitivas”man-

têmcomseuambienteassumirãocrescenteimportânciaparaa

formulaçãodeumapolíticaadequadadepreservaçãodeimensos

ecossistemasameaçados,comooamazônico.

Poroutrolado,antropólogosdedicadosàetnociência,emco-

laboração com biólogos, procuraram explorar as dimensões se-

mânticasdosistemanativodeclassificação,contrastando-ocom

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o64

ataxonomiacientífica.Verificaram,comenormeadmiração,que

eleseassemelhaaosistemabinominalcomquetrabalhouLineu

noséculoXVIII.ApropósitodizLévi-Strauss:“Asclassificaçõesin-

dígenasnãosãoapenasmetódicasebaseadasnumsaberteórico

solidamenteconstituído.Acontecetambémseremcomparáveis,

sobumpontodevistaformal,àquelasqueazoologiaeabotânica

continuamausar”(1976:65).

Paraumarápidaanálisedafauna,tomeicomomarcoahileia

amazônica.Costumava-sedividiroambienteecológicodabacia

amazônicaemtrêsmacrotipos:asterrasdevárzeaoualuvionais,

queanualmenterenovam,comasenchentesevazantes,afertili-

dadedosoloedaságuas.Sãoporissopassíveisdemantermaiores

concentraçõespopulacionais.Apresentamtambémmaiorabun-

dânciadefaunaherbívora,principalmenteaquática.Essasáreas

permitiram o desenvolvimento de culturas mais complexas,

comoadosOmáguaeTapajó,encontradosemterrasdealuvião

do rio Amazonas no primeiro e segundo séculos da conquista.

Possuíam sistemas sociais complexos, uma aparente estratifica-

ção social, cultos e artesãos especialistas. Podiam organizar um

bomnúmerodeguerreirosparacampanhasmilitaresemdefesa

doseuterritório.

O segundo tipo de hábitat caracteriza-se por terras altas co-

bertasdedensomantoflorestal,masmuitomaispobresemnu-

trientesecomaltograudeacidez.As“terrasfirmes”interfluviais,

istoé,afastadasdosgrandesrios,carecemporissoderecursosde

faunaaquática.

Finalmente,oterceirotipoéoquecaracterizaaáreadoscer-

radosdoBrasilcentral,entrecortadapor“florestasdegaleria”ao

longo dos cursos d’água. Nessa área, a caça é mais abundante.

Osgruposindígenasqueahabitampraticamahorticulturanas

florestasdegaleriaeacaçaeacoleta,nasavana.Adispersãode

unidadesdomésticas,duranteaestaçãoseca,esuaaglomeração

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 65

emgrandesaldeias(deaté1.200habitantes)nosperíodosquese

seguemàcolheitapodemserresponsáveisporsuacomplexaor-

ganizaçãosocial.EssaéaopiniãodeGross:

As plantas circulares das aldeias, as metades permeá-

veis, os elaborados sistemas de transmissão de nomes, os

gruposdeidadeeoseventoscerimoniaiseesportivos,que

tornaram famosas essas sociedades, podem ter servido de

mecanismos culturais para integrar unidades andantes

semiautônomasemaldeiasunitárias,anualmentereconsti-

tuídas,prevenindoconflitosentreosgrupos,propiciandoa

distribuiçãodoprodutodasroçasatravésdaaldeia,emobi-

lizandoosguerreirosparadefesaeataque(1975:538).

Existeunanimidadeentreosautoresquantoàdispersãoera-

refaçãodafaunaarbóreaeterrestrenaflorestatropical(Gilmore

1986:196),daqualdependemosgruposdaterrafirmeparacom-

pletarasnecessidadesdeproteínaanimalemsuadietaalimentar.

Aspráticasdecaçasãoparacertosgruposinterioranos,comoos

Maku,maisimportantesqueasagrícolas.Entretanto,osestudio-

sos da cultura da floresta tropical demonstram que ela é antes

umaadaptaçãoàvidaribeirinhadoqueàfloresta(Latharp1973:

89). Em função disso, desenvolveu-se uma tecnologia de nave-

gação fluvial em canoas monóxilas e de cascas de árvores, bem

como uma tecnologia pesqueira que, ao longo dos grandes rios

ejuntoàssuasmargensalagáveis,soubecaptarumaprodigiosa

faunapesqueira,demamíferoserépteisaquáticos;edepescame-

nosabundantenosriosquebanhamaterrafirme,emextensão

infinitamentemaior,mastambéminfinitamentemaispobre.

Dentreafaunaaquáticadavárzea,emqueseassinalampeixes

notáveispelotamanhoevariedade,comoapiraíba(2,3me140

quilosdepeso),opirarucu(1,80me80quilosdepeso),mamíferos

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o66

comoopeixe-boi(3 me1.500quilosdepeso),destacam-seastar-

tarugas(1me25e35quilosdepeso),nãosóporsuacarnecomo

tambémpelaquantidadedeovos(100a150numacova)quedei-

xamnumasópostura.Ourosanimaisdeporte,comoacapivara,

sãosemiaquáticosepodemsercaçados emcanoas. Alémdisso,

grande parte da fauna avícola comestível vive à beira-rio (cf.

Meggers1977:52-53).

A fauna silvícola propriamente dita, entretanto, é pequena

empopulaçãoeemespécie.Adispersãodasplantascomestíveis

acarretaigualdistribuiçãodeanimaisque,comexceçãodosban-

dos de porcos-do-mato (Tayassu tajacu), de queixadas (T. pecari)

e de macacos, vivem solitários. Entre os principais contam-se a

paca,acutiaeotatu(0,60mdecomprimento),osveadoseaanta,

quechegaaatingir2meéomaiormamíferotropicalterrestre

(Meggers1977:43-44).Destaqueespecialdeveserdadoaosquelô-

nios, jabutietracajá,principalmenteaoprimeiro,queconstitui

umareservadealimento,damaiorimportânciaparaosíndiose

oscaboclos.

1. Captura de proteína animal

Em 1975, Daniel Gross publica um artigo que se tornou fa-

moso,noqualargumentaqueaescassezdeproteínaanimal,na

bacia amazônica, é a principal responsável pela pequena den-

sidade populacional, pelo tamanho e estabilidade das comuni-

dadesaborígines.Mostraqueexisterelativaunanimidadeentre

osantropólogosdequeaslimitaçõestecnológicaseambientais

impediramoincrementodaspopulaçõesnativasnaAmazôniae

odesenvolvimentodeformasmaiscomplexasdeestruturasso-

cioculturais.Equeatéentãoapenasaspotencialidadesagrícolas

eramlevadasemconta,fazendo-seaabstraçãodasnecessidades

deproteínaanimalnometabolismohumano.Concordacoma

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 67

interpretaçãodeBettyMeggersdequesociedadesmaiscomple-

xas,comoamarajoara,intrusanaáreaequelogoentrouemde-

clínioedesaparecimento,aparentementenãopoderiammanter-

-senaflorestatropical(Gross1975:526).Mencionaotrabalhode

Carneiro (1973),oqualestimaqueaspotencialidadesagrícolas

dos Kuikuro, centradas em torno da cultura da mandioca, po-

deriam manter aldeias sedentárias de até 2.000 membros, sem

degradar o ambiente e sem substancial acréscimo de trabalho.

Grossprocurademonstrarqueamaiorpartedoscultivosérica

emcalorias,maspobreemproteínas.OsKuikuro,porexemplo,

segundoCarneiro(1973:98),dependemem80a85%damandioca

eoutrasplantas,comoomilho(menosde5%).Os10a15%res-

tantessãoprovidosporumadietabaseadaquaseexclusivamente

nopeixe,umavezquetabusalimentaresinibemoconsumode

animaisdepelo,excetoomacaco.Umavezqueoteordeproteína

na mandioca, além de baixo, tem pequeno valor biológico, os

Kuikuro, para alcançarem o hipotético montante de 2.000 pes-

soas,teriamdeingerircoletivamente“100kgdeproteínapordia

paraobteraraçãode50g/pessoa/diadeproteínadealtaqualida-

de”(Gross1975:528).

IssoseriaimpraticávelparaosKuikuro,masnãoparagrupos

quevivemjuntoarios,comooAmazonaseoAraguaia,observa

Gross,ondeabiomassaanimalébemmaior.

Numasériedeexemplos,Gross invocaotestemunhodean-

tropólogos,ecólogosenaturalistassobreaescassezdeproteína

animal nos trópicos. O autor indaga por que razão os índios

nãorecorreramatécnicasdedomesticação,principalmentedo

porco-do-mato,ounãotrataramdeaumentarsuadietaproteica

comousodeplantascommaisaltoteordeproteína,taiscomo

sementes,oumesmoomilho.Opróprioautorjustificaaprefe-

rênciapelamandiocasobreomilhocomargumentoscomoos

que expus anteriormente. E admite que em nenhum lugar se

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o68

constatarammoléstiascarenciaisentregruposindígenasdevido

àdeficiênciadeproteínas.

Tanto Meggers (1977: 120-148) como Gross explicitaram os

mecanismosculturaisquetendemamaximizarorendimentoda

alimentação.VejamososenumeradosporGross:

1) Manutenção de pequenos estabelecimentos que mini-

mizamoimpactodapredaçãohumanadepeixesecaça

dentrodaáreaacessível.Algunsdostraçosculturaisque

favorecemamanutençãodecomunidadesdetamanho

menorsãoaausênciadefortesliderançaspolíticas,adis-

putapormulheres,acusaçõesdefeitiçariaedispersões

sazonais, as quais, conjuntamente, levam à fissão dos

aldeamentos.

2) Dispersãoaoinvésdeamontoamentodascomunidades,

paraevitarasuperposiçãodeáreasdeexploração. Isso

é favorecido pelas hostilidades e guerras em que uma

constanteameaçadeataquesefazsentir.

3) Manutençãodeuma“terradeninguém”entreasáreas

ocupadas,queconstituem“reservas”paraareprodução

de espécies de rapina livres da predação humana. Isso

tambémsedáemfunçãodasatividadesguerreiras.

4) Mobilidadefrequentedasaldeiasparaobstarasuperex-

ploração.Elaéfavorecidapelaguerra,afissãoeaprática

daagriculturaitinerante.

5) Pequenataxadeincrementopopulacionalquefacilitao

nãoincrementodapressãosobreosrecursos.Ostraços

quepropugnamumabaixanatalidadesão:infanticídio,

particularmente feminino, que diminui o número de

reprodutores,aborto,contraconcepçãoetabusdeinter-

cursosexual(Gross1975:535).

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 69

TomandooexemplodosYanomami–umdosúltimosgrupos

indígenasrelativamenteisoladoenumeroso,quevivenoBrasil

enaVenezuela–,Grossmostraqueapoligamiaeoinfanticídio

femininoresultamemescassezdemulheres,dandolugaradispu-

tasqueterminamnafissãodealdeias,guerrasedeslocamentos.

Ostabusdeabstinênciasexualpós-partoealactaçãoprolongada

favorecem não só o espaçamento entre os nascimentos como

tambémumadisponibilidademaiordeproteínaparaascrianças.

Contribuição importantedeGross,anteriormentecitada,éa

referenteaopapeldascapoeirascomorefúgioeatraçãodecaça,

inclusivedeinvertebrados.

Espécimesterrestresherbívoras,comooporco-do-mato

ou o veado, encontram folhagem mais tenra e mesmo

tubérculos em uma roça abandonada. Isso não ocorre na

florestamaduraondeamaiorpartedabiomassaconsiste

emfolhasnospatamaresmaisaltoseemgalhoslenhosos

(ibidem).

AscolocaçõesdeGrossforamaceitaspelacomunidadecientí-

fica,porémcomrestrições.Arespostamaiscontundentefoiade

StephenBeckerman(1979),queresumireiaseguir.Retomandoo

argumentodeGrossquantoàescassezdeproteínadisponívelaos

Kuikuro,equedeterminariaoreduzidotamanhodacomunidade,

Beckerman, utilizando cômputos numéricos, mostra que, num

dia de viagem, um índio Kuikuro poderia percorrer a distância

exigida para a captura da quantidade de peixe necessária à sua

dietadeproteína.Demaisamais,opeixeémóvele,emcertaépo-

cadoano,aproxima-sedoconsumidor.

Quanto aos mamíferos, retomando o argumento do próprio

Gross,Beckermanassinalaaimportânciadascapoeirasparaatrair

caça,afirmandoque:

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o70

A força centrífuga das caçadas em afugentar a popula-

çãoanimaldeveserequilibradacomaforçacentrípetada

modificaçãoagrícoladavegetação,atraindoeaumentando

apopulaçãoanimaldecaça,emumaestratégiadesubsis-

tênciaaboríginebemintegrada(1979:537).

AopeixeeàcaçacomofontesdeproteínaBeckermanacres-

centa outras, meramente citadas por Gross, sem maior elabora-

ção.Umadelasprovémdaclassedosrépteis(jacarésequelônios,

tartarugaseseusovos).Noqueserefereàstartarugas,Beckerman

evoca a informação de Orellana, que, em sua viagem em 1542

peloAmazonas,pôdeaplacarafomedosseusmarinheiroscom

tartarugas. Orellana informava, àquela época, que encontrou

pelomenosmiltartarugasemcurraisàbeira-rionasaldeiaspor

ondepassou.Essainformaçãofoicorroboradacemanosmaistar-

de,em1641,porCristobald’Acuña.CitandoSmith(1974:93-95),

Beckermandizque:

Apopulaçãodetartarugaseracapazdetolerarumaco-

lheitaanualdemaisde12milhõesdeovos,oprodutode

100mila150milfêmeasadultas,durantequaseumséculo,

antesqueapopulaçãoentrasseemsériodeclínio.Naverda-

de,acolheitamontavaoquádruplodaquelacifraem1860.

Estesnúmerosreferem-seapenasaosovos.Smith(1974:94)

assinalatambémquemaisde50miltartarugaseramleva-

dasemcurraisdoestadoaBarcelos,norioNegro,entre1780

e1785(1979:537).

As tartarugas herbívoras eram certamente mais numero-

sas que os jacarés carnívoros. Entretanto, registros do século

XIX e estudos recentes dão conta de grandes quantidades de-

les nos rios e lagos amazônicos. Um mamífero herbívoro de

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 71

maiorimportânciafoi,antesdesuatotalextinção,omanatiou

peixe-boi.

A entomofagia (consumo de invertebrados) representou e

ainda representa, segundo testemunhos recentes, importante

fatordecapturadeproteínaanimalpeloaborígine.Insetossão

consumidos tanto em forma larval como madura. Falando dos

Yanomami,Lizot (1977:509)afirmaqueelesrepresentamentre

2,5 a4,5%, em peso, a quantidade de carne consumida por esse

grupo.AutoresqueestudaramosíndiosdoUaupés,afluentedo

rio Negro, oferecem farta documentação sobre a importância

alimentíciaeoapreçoquantoaopaladardetérmitaseformigas,

larvas de borboletas, cabas, coleópteros. Segundo Bruzzi (1962:

221-2),arainhadeumaespéciedecupimamarelo(maniuara,em

língua geral) é das mais apreciadas. É coletada em abundância

quandocriaasasecomidavivaouassada.Damesmaforma,co-

mem as tanajuras e outras espécies de formigas, como a saúva

(Attasp.).

IguariamuitoapreciadapelosíndiosdoaltorioNegroéalarva

deborboletacomodojapurá(Erismajapura)edocunuri(Cunuria

spruceana).Umalarvaquesenutredasfolhasdoingá(Ingaedulis),

dafamíliadasmimosáceas,éigualmenteapreciada.Dentreastér-

mitas,consomemaindaváriasespéciesdemarimbondo(caba,em

línguageral)esuaslarvas.Dentreoscoleópteros,preferemcertas

espéciesdegafanhotosedebesourosqueàsvezesaparecemem

grandeabundância.Bruzzicomentaque“Quiçáàriquezadevi-

taminasA,hauridadaingestãodetãovariadosinsetoselarvas,o

índioédevedordaadmirávelvisibilidadenoturnadequedesfru-

ta”(1962:222).

Oamadurecimentodessesinsetoscomestíveis–assimcomo

amigraçãoperiódicadecardumesdepeixesparaadesova–éas-

sociado,pelosíndiosDesana(rioTiquié,altorioNegro),aociclo

constelar.Este,porsuavez,determinaaintermitênciadechuvas

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o72

eestiagens,e,consequentemente,ocicloeconômicoanual(B.G.

RibeiroeT.Kenhiri1987).

Smole(1976:163)consideraosinsetosumimportanteaporteà

dietaalimentardosYanomami,daVenezuela.Oquadroseguinte,

adaptado desse autor (op. cit.: 164-165), mostra os componentes

nutritivos de alguns invertebrados consumidos por essa tribo,

comparadoscombifedevaca:

Tabela III Índios Yanomami. Consumo de insetos

inseto quantidade de água

gordura proteína carboidratos minerais calorias

TérmitasGafanhoto 44,5 28,3 23,2 – – 347

NomadacrisSeptemfasciata

70,6 4,1 18,7 – – –

Locusta

Locustamigratoroides

10,5 9,6 46,1 – – –

Lagarta(larvade) 15,7 13,7 – 13,9 – 258

Bicho-da-seda 60,7 14,2 23,1 – 1,5 207

Bifedevaca 75,2 6,6 16,9 – – 127

Oaproveitamentodetantosrecursosnaturaisparaacaptura

deproteínaexigeumacuradoconhecimentodoshábitosdosbi-

chos.Apropósitodautilizaçãodeinvertebrados,DarrellA.Posey

defende a hipótese de tratar-se de “animais semidomesticados”

ou talvez “espécies manipuladas”. Com essas expressões, Posey

deseja enfatizar o manejo intencional, por parte dos índios, do

comportamentoanimal,comonocasodeseisespéciesdeabelhas

queoautorqualificacomosendo“criadas”pelosKayapó.Dadaa

importânciadainformação,cito-aintegralmente:

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 73

Aslarvasdeescaravelhos(ScarabaeidaeeBuprestidae),

porexemplo,sãoutilizadasporváriastribosnostrópicos...

O escaravelho adulto põe ovos no refugo de bananeiras

mortas ou velhas palmeiras. Intencionalmente, os índios

empilham restos de bananeiras e palmeiras próximos às

suasaldeias,roçaseacampamentosparaatrairosescarave-

lhosadultos.Depoisdealgunsmeses(dependendodases-

péciesedaregião,bemcomodaestaçãodoano),osovosse

desenvolvememformadelarvas(...)alimentíciasenutriti-

vas.Conhecendoociclodevidadosescaravelhos,osíndios

podempreverquandosedevecoletaraslarvasmaduras.

OsKayapóreconhecem54espéciesfolkdeabelhassem

ferrãodafamíliadasMeliponidaeeduasespéciesdeabelhas

comferrão(ambassubespéciesdeApismellifera).Todaselas

são classificadas segundo os distintos tipos de mel e cera

queproduzem.Omeléumalimentoaltamentevalorizado,

enquantoaceraéusadaparacurardoenças,tratarqueima-

duras,desinfetarferidasecomoadesivoparaartefatos.

Seisespéciesdeabelhassemaquilhãosãocriadaspelos

Kayapó.Osíndiossabemqueseumaporçãodofavodemel

comaabelharainhaédevolvidaàárvore,depoisderetirado

omel,certasespéciesdeabelhasvoltarãoarestabelecera

colônia.Assimsendo,colmeiasdestasseisespéciespodem

sersistematicamentecoletadasacadaestação.

Colmeiasdeoutrasespéciessãocoletadasnaflorestae

trazidascomoenxamecompletodeabelhasparaaaldeia.

Elassãoentãomontadasnacumeeiradacasaeguardadas

atéqueosíndiosconsideramterchegadootempoapropria-

doparatiraromel.

OsKayapóconhecemtambémduasespéciesdeabelhas

(TrigonacilipeseScruralongula)quegostamdeformarsuas

colmeiasemtorassecasemáreasabertas.Frequentemente

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o74

essasespécies fazemsuascolôniasemmadeirassecasdas

casasKayapóeseusninhossãodeixadossemdisturbaraté

queaproduçãodemelchegueaoápice.

Duas outras espécies sem ferrão são intencionalmente

atraídasparaoscamposdosKayapó.Umadelas(Trigonaflu-

viventrisquinae)prefereaninharemparededeterra;aoutra

(Trigonafuscipennis)fazseusninhosemmadeirapodre.Os

Kayapócavamumburaconaroça–ouaproveitamoque

tenhasidocavadoporumtatu–colocandonelepausdete-

riorados.Dessaforma,asabelhassãoatraídasaoscampos

decultivoesãoassociadascomoaumentodorendimento

dasplantações(Posey1983:888).(VertambémPosey1986b:

251-272.)

EstudosdamicrorregiãodoaltorioNegrotêmmostradouma

estratégiadeadaptaçãoextremamenteelaboradadosgruposda

áreaaumhábitatpobreemcaçaepesca.Osriosdeáguaspretas,

banhandoterrasdotipopodzole latosol,extremamenteácidas,

pobresemsaissolúveiseoutrosnutrientes,alimentamsuafau-

na de fontes externas. Segundo G. Marlier, “Muitas espécies se

alimentam diretamente de folhas, sementes, frutos ou insetos

terrestresououtrosinvertebradosquetiramsuasubsistênciada

vegetaçãoripária”(1967:6).

Os referidos hábitos alimentares dos peixes, que incluem,

alémdospredatórios,oconsumodesubstânciasorgânicascaídas

naágua,“deorganismosmortosedoprodutodesuadecomposi-

ção”(Fittkau1967:102),determinamacolocaçãodearmadilhas

entreaspedrasdacachoeira,nasmargensdosrios,lagos,igapós

eigarapése,ainda,apescacomanzol,arpãoearcoeflecha,além

dotimbó(venenodepeixe)noslocaisemquenãohágrandemo-

vimentaçãodeáguasduranteaestaçãoseca.

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 75

O regime bianual de enchentes na região do Uaupés tam-

bémpropiciaoaumentodadietadafaunaaquáticaque,nessas

oportunidades, se espalha pelos igapós, nutrindo-se da floresta

(Chernela 1986: 238, 241). A autora reconhece três hábitats (ou

biotipos)principaisnoUaupés:igapós(áreasperiodicamenteala-

gadaspelasenchentesdosriosnaestaçãochuvosa),cachoeirase

terrafirme.Das41espéciesdefruteiras(porelaidentificadascom

a ajuda dos índios Wanana) que crescem à margem dos rios de

cujosfrutosospeixessealimentam,27crescemapenasnosigapós

e14emterrafirme,dasquaisdeztambémnosigapós.Poroutro

lado, as achoeiras abrigam algas e outras plantas aquáticas que

atraeminsetos.Éporissoolócusdepeixesadaptadosauma“vida

sedentária”queencontramproteçãoenutrientesnessesnichos,

apresentandomaiordensidadepopulacionaldoquenosespaços

aquáticosabertos(Chernela1983:98/101).

Essaautoraconcluidizendoque:“OsmétodosdosWananade

capturadepeixeslevamemconsideraçãoosciclosreprodutivos,

migratóriosedenutriçãodospeixes,resultantesdepronunciadas

flutuaçõessazonaisnaecologiadosistemadorio”(op.cit.:102).

Em outro trabalho, Chernela esclarece que, ao contrário dos

ocupantesnãoíndiosdaárea,osWananapreservamacobertura

florestaldasmargensdosrios,conscientesdequeéaúnicama-

neira de sustentarem sua população pesqueira. Esclarece que,

“Enquanto os cientistas apenas recentemente reconhecem a

importânciadamataadjacenteparaasubsistênciadospeixes,os

Wananajamaispermitiramsuaderrubada,paraevitarjustamen-

teodeclíniodafaunapesqueira(Chernela1986:241).

Apardisso,osíndiosdorio(Tukano,Wananaeoutros)estabe-

leceramumsistemadesimbiosehierárquicaededependênciare-

cíprocacomosgruposdafloresta,osMaku.Estesúltimostrocam

produtosflorestais,carnedecaçaeserviçosporpeixeefarinhade

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o76

mandioca,bemcomoartefatosemquecadaumadessastribosse

especializa(cf.B.G.Ribeiro1980ms.).

Entre os índios Asurini e Araweté, grupos Tupi do médio

Xingu,observeiaimportânciadojabuti(Testudotabulata)como

fonte de proteína diária. É coletado junto às árvores de cujos

frutossealimenta,emantidoemcasapendurado,duranteme-

ses sem alimento nem água, para ser utilizado na medida das

necessidades. Em apenas cinco dias, um único índio Asurini

conseguiu30jabutisqueforamconsumidosnumfestimgastro-

nômicoportodaacomunidadede53 índios.Ovalordojabuti

tambéméressaltadopelaquantidadededesenhosdecorativos

docorpoedosartefatosemqueéfigurado.Noverão(agosto,se-

tembro),osAsuriniconsomemovosdetracajáeaprópriatarta-

ruguinha(Podocnemisunifilis).Nosbrejoscoletamocaranguejo

(do gênero Trochodactylus), com o qual preparam um prato sa-

borosoenutritivo,misturando-oàpolpadoinajá(Maximiliana

regia)(cf.B.Ribeiro1982:35,53).

2. Estratégias de caça

Existem poucas informações sobre a estratégia de caça dos

índios.Mas todos os indíciosapontam paraacuidadedo saber

indígena sobre os hábitos dos animais. Exemplifica esse sa-

ber o testemunho de Carneiro sobre os métodos de caça dos

Amahuaca,quehabitamadensaflorestaentreosriosUcaialieo

altoJuruáePurus,nolestedoPeru.Carneiroenfatizaqueoque

fazdoAmahuacaumbomcaçadornãoétantosuahabilidade

dearqueiro,massuacapacidadedeseguirpacientementeacaça,

reconhecendosuaspegadaseconhecendosuastocaserefúgios.

Informaque:

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 77

Cadadetalhesignificativodoshábitosdevidadosani-

maisfazpartedosaberdeumcaçadorAmahuaca.Conhece

osomdeseusuivos,acomidaquecomem,eoaspectodos

seus excrementos. Pode detectar a presença de porcos-do-

-mato ou dos macacos (Ateles sp.), e pode identificar os

macacos-aranha pelo barulho que fazem ao comer frutas

nasárvores.Observandoasmarcasdosdentesnumafruta,

ocaçadorpodedizerqualoanimalqueaandoumordendo

e,aproximadamente,quandoadeixou(1974:126).

Quantoaorastejamentodaspegadasdecaça,Carneirooferece

tambéminformaçõespreciosas:

Aspegadasdevirtualmentequalqueranimaldecaçasão

prontamentedistinguidas.Numaexpediçãoemqueacom-

panheidoiscaçadoresforam-memostradososrastosdeum

tatu,umveado,umacutia,paca,tatugigante,lontra,antae

jacaré.

Casoosrastosestejamvelhos,ousenãosetornamfacil-

mentevisíveisporqueatrilhaédura,ocaçadorpodeainda

assimdetectarapresençadacaça.Eleescrutinaochãoda

floresta procurando restos de frutas mordidas ou excre-

mentofresco,eestudaodeslocamentodosgalhosedasfo-

lhas.Daquantidadedeexudaçãodeumgalhopartido,por

exemplo,ocaçadorpodeavaliarháquantotempooanimal

passouporaquelelugar(1974:127).

Oautorfalatambémdomimetismodocaçadorporsuacapa-

cidadedeimitaroberrodomacaco–quegeralmenteresponde

–ouosilvodeumaanta.Dessaforma,elefixasualocalizaçãoo

maispróximopossíveldoalvo,afimdenãoperderotiro.Àsvezes

lograaprisionarofilhoteparaatrairamãe.

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o78

Como outros grupos humanos, os Amahuaca cercam suas

atividades de caça de encantamentos mágicos, por ser justa-

mente uma atividade azarosa. Não fazem o mesmo em relação

àsatividadesagrícolas,umavezquesuaprodutividadepodeser

facilmenteprevista.Nãotêmritospropiciatóriosparaoaumento

dacaça.Simplesmentetransferemaaldeiaquandoelacomeçaa

exaurir-se.Comotodososgruposindígenasbrasileiros,abstêm-

-sedecomeranimaiscarnívoros–comoaonça–devidoaosseus

hábitosalimentares.Asmágicasdecaça–todaselaspositivase

nãonegativas–sãoorientadasparaocaçadoresuasarmaspara

ajudá-lo a encontrar os animais preferidos e a não errar o alvo

quandoatingi-los.

Outros estudos, como o citado, demonstram que, tal como a

agricultura,aestratégiadecaçaéigualmente“itinerante”.Nocaso

dosíndiosKaapor,grupotupidoMaranhão,Balée(1984ms.:211)

sugerequeoabandonodeumazonadecaçasefazindefectivel-

menteantesqueestejaexaurida.Aszonasdecaçaidentificadasna

florestadeterrafirmeporesseeoutrosautoressãodefinidaspelas

seguintescaracterísticas:arbóreas,altaoubaixaaltitude,bordade

rio,florestapantanosa, terrenopermanentementesecoousazo-

nalmente inundado. Contudo, para compreender os padrões de

caçadosKaaporénecessário,segundoBalée,levaremcontaduas

variáveis:aflorestapropriamenteditaeosváriosestágiosdepro-

dutividadedasroças(op.cit.:212).Baléeendossa,decertaforma,

com o exemplo Kaapor, a asserção de Olga Linhares (1976), por

elecitada,dequeacaçadeanimaisatraídospelasroçasfoiuma

espéciede“substituição”dadomesticaçãodeanimaisnaAmérica

tropical(op.cit.:213).Dependendodaidadedaroça,elaatraidi-

versasespéciesdafauna.Roçasdemaisdeumanoatraemveados,

roedores(paca,cutia),aves,preguiçaseatémesmoaanta,devido

àmaturaçãodosfrutosaíplantados.Roçasprimáriasatraemta-

tus,porcos-do-matoeroedoresquesealimentamdetubérculos

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 79

e seus brotos e folhas. Devido a isso, o índio anda sempre com

suasarmasquandovaitrabalharnaroça.Tendoemvistaosdanos

causadosporanimaispredadores,sobretudoosnoturnos,como

ocaititu(Tayassutajacu),queandaembandosdedezoumais,os

Kaaporplantammaismandioca,batata-doceeoutrosprodutosdo

quepodemconsumirduranteumano(op.cit.:217).Aocontrário

dosKuikuro,quenãocomemcaçaterrícola,osKaapornãocer-

camsuasroças,comoqueoferecendo-asàcaça(Balée1984:218).

O cômputo de caça obtida em três meses, durante a estação

seca,pelosKaapor,mostrouque29,3%dototalprovinhadacaça

capturadanasroças.Considerando-seoespaçoreduzidodestas,a

porcentageméextraordinária.Osdoissítiosutilizadosparaesse

cálculosomam176hectares.Dividindo-seaáreapelopesodacar-

nedecaçaeosdiascobertospelaamostra,obtém-seumamédia

de6,4kg/km²/diadebiomassaanimalobtidaemterrenoderoças

novaseantigas(cf.Balée1984ms.:225).MasosKaaporcaçammais

naflorestadoquenassuasroçasparapouparacaçaeevitarasua

exaustão.

William Balée aponta mecanismos ritualmente prescritos

paraoperaresseequilíbrio.Taissãoostabusalimentaresprescri-

tosparaamulhermenstruada,cujadieta,nessasoportunidades,

como a do homem em couvade, ou da jovem, no resguardo da

menarca, se restringe a jabuti-branco (Geochelone denticulata).

Essa espécie é superexplorada porque se trata de animal lento,

que não oferece resistência à captura, embora não se encontre

nasroçasesimagrandesdistânciasdaaldeia,devido,justamen-

te, à grande procura. Os quelônios são facilmente rastejados,

pelasmarcasdaspegadas,dosexcrementos,edasquedeixamao

morder frutose folhascaídos.Aexaustãodo jabuti-branconas

áreaspróximasdaaldeiaobrigaocaçador–quetemdeprover

essacaçaàmulhermenstruada–apercorrergrandesdistâncias,

familiarizando-secommicro-hábitatsdafloresta,ondeencontra

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o80

certamenteoutrosanimais.Dessaforma,abuscadojabutiforça-o

a poupar tanto a área das roças quanto a da própria floresta,

permitindoarecuperaçãodabiomassaanimalnasmesmas. “O

desaparecimentodojabutiservecomoummecanismoecológico

queprevineocaçadordequedevefazerumrodíziodaszonasde

caça”(Balée1984ms.:238).

Quandoojabutirareiaouseexaurenumraiode15quilôme-

trosaoredordaaldeia,aprópriaaldeiadeveserrelocadajuntodas

novasroças,situadasaessadistância,aproximadamente.

Comosevê,certostiposdecomportamentos–taiscomotabus

alimentares,fundamentadosnamitologia,comoneste(cf.Balée

op.cit.:246-248)eeminúmerosoutroscasos–seexplicamporsuas

consequênciasecológicas.

Tratarei em detalhes desse tema, adiante. Antes, procurarei

mostrar que as populações indígenas obtêm proteína de outras

fontes, isto é, vegetais, coletadas e cultivadas. É preciso que se

diga,noentanto,queacaçaeapescanãosãoapenasatividades

econômicas,mastambémrecreativaserituais.Umbomcaçador

eumbompescadorauferemprestígiodessacondição.Diversos

autoresenfatizamqueatéparaobterfavoresfemininosextrasou

maritaiséprecisocaçarbem(cf.Gross1975:533).

3. Captura de proteína vegetal

Como vimos, B. Meggers (1977) e, com mais ênfase, D. Gross

(1975)tentaramprovarqueodesenvolvimentoculturaldosgru-

posindígenasquehabitamaAmazônia–principalmenteaterra

firme,quecorrespondeàmaiorpartedaárea–ficouconstringido

devido à falta de proteína. A resposta ecológica, segundo esses

autores,foialimitaçãonotamanhoenadensidadedosestabele-

cimentos,seuconstantedeslocamento,aausênciadechefiaspo-

líticascentralizadas,arteeculturamaterialpobresparaquenão

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 81

servissemdeentravesàmigraçõeseumsistemadetrocasentre

gruposribeirinhose interioranos.Aspopulações localizadasao

longodosgrandesrios(Amazonas,Tapajós)dispunhamnãoape-

nasdebiomassaanimalemabundância,mastambémdeterras

chamadas várzeas, anualmente fertilizadas pelo aluvião proce-

dentedacordilheiraandina.Emfunçãodisso,suasaldeiaseram

maioreseosistemasocialmaiscomplexoeespecializado(Gross

1975:537;Meggers,1977:182).

Concordando, embora, com Gross quanto ao fator proteína

comolimitadordocrescimentodapopulaçãoeformaçãodeso-

ciedadesmaiscomplexas,Beckerman(1979)discordadelequanto

àsconsequências.Seusargumentossão:

1) A carne (ou protocarne de embriões tais como ovos)

contém proteína de alta qualidade mais que qualquer

outroalimento.(...)Talvezporestarazãoelatemmelhor

paladar. Havendo bastante carne para alimentar uma

população,osensobiológicolevaaconcentrar-senela.

2) Nafaltadecarne,acombinaçãodeaminoácidosnecessá-

riaparafornecerproteínaadequadaaohomempodeser

supridapelasproteínasvegetais,nãoraroseparadamen-

te,embora,nomaisdasvezes,deformacombinada.(...)

Contudo,elaexigegrandemassadetrabalhodoméstico

eeconômico,bemcomosensobiológicoparapassar,se

possível, das fontes de proteína animal para a vegetal.

Alémdisso,caçarepescarsãousualmenteumaativida-

delúdica,aopassoqueaagriculturaétrabalho.

3) Osvegetaisconstituemumpasso(àsvezesmaisdeum)

emdireçãoàscadeiasdealimentosdeprocedênciaani-

mal. Eles podem, portanto, sustentar uma população

consideravelmentemaiorporunidade-área.Setomamos

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o82

acifragenéricade10%paraeficiênciaecológicaenergéti-

ca(...)podemos,comoprimeiraaproximação,preverque

apopulaçãoquevivedeproteínavegetalserá10vezes

maisdensadoqueaquesubsistedeproteínaanimalna

mesmacadeiadealimentos,considerando-se iguaisto-

dasasoutrascoisas(Beckerman1979:553).

Através desse raciocínio, Beckerman chega à conclusão de

que “povos com sensibilidade biológica concentrarão (sua ali-

mentação) em proteína vegetal quando suas populações são

densaseadotarãoproteínaanimalse forempequenaseespar-

sas”(ibidem).

Nessesentido,defendeumpontodevistaaparentementeopos-

toaodeGross,sustentandoqueaspopulaçõesaboríginesatuais

daAmazônia,cujoesforçoalimentarparaacapturadeproteínase

concentranacarne,nãoagiamdessaformanopassado.Portanto,

a população indígena atual não pode servir de parâmetro à an-

tiga.Chegaaessaconclusãomostrandoquehouvequatrofocos

dedoençasepidêmicasconvergindosobreaAmazôniaantesde

haveravaliaçõesdeprimeiramão,comoasdeCarvajal,em1541,

sobreseumontantepopulacional.E,ainda,notíciassobrecinco

epidemiasqueincidiramsobreosíndiosdacostadoBrasil,dadas

pelosjesuítas,nos15anosapóssuachegada,em1549.

OutraevidênciaqueBeckermanacolheemfavordesuatese

sãoascaracterísticasdachamadaterrapretadoíndio.Osestudos

arespeitomalcomeçaram,tantonoqueserefereàarqueologia

comoàpedologia.Oquesesabe,semdúvida,équeostratoscircu-

laresdeterrapreta,ondeexistegrandequantidadedecacosdece-

râmica,constituemreminiscênciadeantigaocupaçãoaborígine.

SegundoFalesi,citadoporBeckerman,“Éopiniãohojequeaterra

pretadoíndio,játendosidaestudadarazoavelmentedopontode

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 83

vistaquímicoemorfológico,temorigemmista,istoé,geológicae

antropogênica”(1974:213).

Sóquandosesouberaextensãoefrequênciadasterraspretas

daAmazônia,apósomapeamentodosolo,deestudosarqueoló-

gicosededemografiahistórica,poder-se-áatinarsobreonívele

adensidadedeculturaepopulaçãodosseusantigoshabitantes.

Vejamos,finalmente,emquemedidaessa“civilizaçãovegetal”

queBeckermaninsinuahaverexistido,antesdachegadadobran-

coàsAméricas,obtinhaproteínadafloresta.Parafinsdidáticos,

Beckerman divide as plantas em nativas e cultivadas, dando os

respectivosteoresdeproteína.Asinformaçõesqueseseguemfo-

ramtomadasdesseautoredasfontesporelecompulsadas.

Entreasplantas“nãocultivadas”–algumasnarealidadeosão–

Beckermanrelaciona,emprimeiroligar,aspalmeirasdosgêneros

Guilielma,Mauritia,Bactris,Oenocarpus,Jessenia,EuterpeeScheelie,

que aparecem de forma mais recorrente na literatura como de

utilizaçãoindígenaepopularnaAmazônia.Sobreasproprieda-

desdessasplantasfalamosanteriormente.Mencionaremos,para

efeitosdestadiscussão,oseuvalornutritivo,sobretudonoquese

refereàquantidadedeproteínaquecontêm,segundoasinforma-

çõesdisponíveis,muitopoucas,infelizmente.

Opericarpodasfrutasdoaçaí(EuterpeprecatoriaeE.oleracea,

quesãoasespéciesmaisdifundidasparapopulaçãoderefrescos)

contém3,38%deproteínanafrutafrescae5,73%nopesomaduro.

Adiferençanasporcentagensdeproteínasecadosdois

produtossedeve,aparentemente,àconversãodeaçúcares

por fermentação durante o preparo e a armazenagem. O

açúcar representa 12% do pericarpo (que contém 41% de

água)massomente1%dorefrescodeaçaí(quecontém85%

deágua)(Beckerman1979:543).

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o84

NumoutroestudocitadoporBeckermanemqueforamtoma-

dasamostrasdeapenasEuterpeoleracea,verificou-sequeemdez

delas a média de proteína do pericarpo era de 2,52% (6,25% no

frutoseco)enasoutrasseisamostrasamédiaencontradafoide

2,37%e18,37%,respectivamentenopericarpoenofrutoseco.A

percentagemdeáguafoide59,7%nopericarpoe87,1%nabebida.

Atítulodecomparação,escreveBeckerman:

Oleitefrescodevaca,quetambémcontém87%deágua,

temumconteúdodeproteínadecercade3,69%.Ovultodo

conteúdo de proteína do açaí é dessa ordem, devendo ser

seriamenteconsideradocomoumafontedeproteína,ades-

peitodoseuelevadoconteúdodeágua.(...)Poressarazão,

todasasdiscussõesdoconteúdodeproteínanosalimentos

devem permitir a computação dos índices realmente sig-

nificativos:aquantidadedeproteínaporunidadedepeso

seco.Paracompletaressadiscussãonecessita-sedeinforma-

çõessobreopesodeaminoácidodoaçaí,informaçãoessa

faltante(Beckerman1979:543).

Outra palmeira que oferece frutos comestíveis é o miriti

(Mauritiaflexuosa).Apartecarnosaoupolpasecatemaseguinte

composição:5,2%deproteína,26,2%degordura,38,2%deamido

eaçúcar,2,9%decinzae27,5%decelulose.Comosevê,oteorde

proteína é considerável no fruto seco e aumenta quando passa

peloprocessodefermentação.

Oquadroabaixo,adaptadodeBeckerman(1979:546),resume

asinformaçõesqueoautorencontrouarespeitodacomposição

químicadefrutosenozesindígenos.Atítulodecomparaçãosão

oferecidososmesmosdadosreferentesaleite,ovodegalinha,mi-

lhosecoearrozàvendanocomércio.

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 85

ATabelaIVmostraqueosfrutosdaspalmeirasseaproximam

e, no caso do miriti, superam o teor de proteína do arroz e do

milho (este último, planta indígena). Como se sabe, muitas po-

pulaçõessobrevivemprincipalmenteàbasedearroz.Igualmente

surpreendente é o teor de proteína dos palmitos, conforme se

podevernareferidatabela,damesmaformaqueodoamendoim,

dacastanha-do-paráedacastanha-de-caju.O frutodestaúltima

contémumdosmaisaltosteoresdevitaminaCconhecidos.

Desconhece-se o teor de proteína do pequi (Caryocar spp.),

plantado no Xingu e provavelmente também por índios de ou-

trasáreasdocerrado.Dentreaspalmeirascultivadas,destaca-se

apupunhaquantoàfarturadesseteor;Testesfeitosnacostado

PacíficodaColômbiamostraramapresençade5,1a6,3%napolpa

frescaede9,9%a12,8%nopesoseco.Aprodutividadedeplanta-

çõesdepupunhafeitasnaCostaRicarevelouqueelaécompará-

velàdomilho(Beckermanop.cit.:551).WarwickE.KerreLigia

Kerr(comunicaçãopessoal)prepararamumlivrocom60receitas

depratosdepupunhadeorigemindígenaepopularamazônica.

Oamendoim,queteveenormeimportâncianaeconomiados

gruposTupi,éumadasmaisimportantesfontesdeproteínacon-

centradaeaminoácidosqueseconhece.Omesmosepodedizer

doabacate(Perseaamericana),comumataxade2%nofrutofresco

e7%napolpaseca(Beckerman,ibidem).Doamendoimosíndios

Kayabi fazemumaespéciedepão,misturando-ocomamidode

mandiocaetapioca.Éusadocomoingredientedeinúmerosou-

trospratosàbasedemandioca,milho,peixeecarnedecaça.Os

Kayabiplantamsetevariedades(B.Ribeiro1979:120,130).

Os feijões indígenas (Phaseolus spp.), como se pode ver na

Tabela IV, representam também importante papel na alimenta-

çãocomocondutoresdeproteínaseaminoácidos.EntreosKayabi

encontreicincovariedadesdefeijõesefavas(B.Ribeiro1979:120).

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o86

Tabela IVAlimentos amazônicos e comparações

composição em termos de 100 g de porção fresca comestível

alimento h2o proteína carboi-dratos gordura fibra cinza calorias

proteína como % de peso seco

Ovofresco(inteiro) 75,3 11,3 2,7 9,8 0,0 0,9 148 45,7

Leitedevacafresco 87,4 3,5 5,5 3,0 0,0 0,6 61 27,8

Milhoseco(Zeamays) 10,6 9,4 74,4 4,3 1,8 1,3 361 10,5

Arrozintegral(Oryzasativa)

13,0 7,2 77,6 1,5 0,8 0,7 357 8,3

Feijões:

(Phaseolusvulgaris) 12,0 22,0 60,8 1,6 4,3 3,6 337 25,0

(Phaseoluslunatus) 12,0 20,7 62,4 1,2 4,9 3,7 336 23,5

(Canavaliaensiformis) 12,0 25,4 57,1 1,3 4,9 4,2 331 28,9

Amendoim(Arachishypogaea)

6,9 25,5 21,3 44,0 4,3 2,3 543 27,4

Castanhas:

Castanha-do-pará(Bertholletiaexcelsa)

2,6 13,2 20,5 60,3 1,2 3,4 640 13,6

Castanha-de-caju(Annacardiumoccidentale)

2,7 15,2 42,0 37,0 1,4 3,1 533 15,6

Frutos de palmeiras:

Açaí(Euterpeoleracea)

41,0 3,4 42,2 12,2 18,0 1,2 265 5,8

Miriti(Mauritiavinifera)

72,8 3,0 12,5 10,5 11,4 1,2 265 11,0

Pupunha(Bactrisminor)

79,6 1,2 17,8 0,2 2,1 1,2 70 5,9

Pupunha(Bactrisgasipaes)

50,5 2,6 41,7 4,4 1,0 0,8 196 5,2

Tucum(Astrocaryumstandleyanum)

71,9 1,7 24,3 0,7 5,7 1,4 99 6,0

Palmitosdepalmeiras:

Geonomaadulis 88,2 3,2 7,0 0,3 1,5 1,4 35 27,1

Acromiamexicana 87,6 2,4 8,4 0,4 0,7 1,2 39 19,4

Euterpelongipetiolata 91,0 2,2 5,2 0,2 0,6 1,4 26 24,4

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 87

Beckerman acrescenta aos referidos produtos um dado im-

portantíssimo: a produção de bebidas fermentadas obtidas com

amaioriadeles,especialmentemandiocaemilho.Sãoasfamosas

chichas,cauins,oucaxirisdequefalaabundantementealiteratu-

raetnológica.BettyMeggers(1977:121)édeopiniãodequeocon-

sumo de bebidas fermentadas, mais apetitosas, aumenta o teor

deáguanoorganismosedentodevidoàtranspiraçãodosclimas

cálidoseúmidos.Osfungos,eoutrosmicro-organismosobtidos

pelafermentação,aumentamoteorproteicodasbebidas.

Por todas essas formas o aborígine americano conseguiu os

nutrientesessenciaisàvidasemcolocaremriscooecossistema.

Umexamecuidadosodostabusalimentaresedeoutraspráticas

culturaisdesvelaassoluçõesencontradasparaevitaraexplora-

çãoexcessivadecertosrecursos.Éoqueexaminareinaspáginas

seguintes.

4. Tabus alimentares e conservacionismo

Numtrabalhofartamentedocumentado,Ross(1978)procura

demonstrar que as populações indígenas da hileia amazônica

obtêm sua dieta proteica de pequenos animais ao invés dos

grandes.Nãosóporseremmaisabundantesnoecossistematro-

pical, como também por se reproduzirem mais rapidamente e

seremmaisfáceisdecaçar.Aanta,oveado,acapivara,apregui-

çatêmhábitosnoturnos,solitários,sãofurtivos,e,osdoisúlti-

mos,semiaquáticos.Dentreacaçagrande,sóoporco-do-matoe

aqueixadaandamembandos,massãodificilmentelocalizáveis,

exigindocaçadascoletivasparapegaromaiornúmero.Dentre

as810espéciesmamíferasdoneotrópico,menosde3%sãorepre-

sentadaspelosungulados(anta,porcoseveados),enquantoos

roedores(cutia,paca)sãomaisdametade(Ross1978:5).Porisso

asespéciesmaisexploradasparaaalimentaçãosãoosmacacos,

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o88

quelônios, aves e roedores (exceto a capivara, objeto de tabus

alimentares)(op.cit.:4).

A população de macacos pode declinar, se excessivamente

explorada.Entretanto,asavescomestíveiseosroedoressãoatraí-

dosàsroçascultivadas.Assim,ainteraçãohomem/naturezacria

micro-hábitats propícios a certas variedades de fauna. O veado,

atraído pela vegetação rasteira, permite o desenvolvimento de

árvoresdecujosfrutosespéciesmenoressealimentam.Oexcre-

mentodapreguiçarepresentafontedenutrientesedeminerais

paraafloresta.“Umavezqueprimatascomoosmacacos(Ateles

sp.eAlouattasp.)explorammuitasdasárvoresqueaspreguiças

tambémcomem,apreservaçãodestasúltimasfavorecetambém

essasespéciespredadoras”(Ross1978:10).

Numquadrocomparativoentreovultodecaçadeumapopu-

laçãomestiça(21famílias)daselvaperuanaeoutraindígena(sub-

grupoJívaro),Rossmostraque,emboraambasdependamparaa

própriasubsistênciaem87%deanimaisdepequenoporte,osmes-

tiçoscaçamtambémantas,preguiças,capivaras,veados–queos

Jívaroseabstêmdematar–destinandosuacarneàvendanacida-

dedeIquitos(Ross1978:12).Poroutrolado,Rossprocuramostrar

queexisteumarelaçãoconstanteentretamanhodacomunidade,

mobilidadedapopulaçãoecaçaaanimaisdemaiorporte.Assim,

osYanomamiquecaçamanta,veadoetc.têmumadensidadede

0,5pessoapor2.590km²(oumilhaquadrada),aopassoqueuma

concentraçãomaiorporaldeia,comoadosJívaro,doPeru–1,0

pessoapormilhaquadrada–,subsisteprimordialmentedecaça

menor.Aomesmotempo,amobilidadedoscaçadoresdegrandes

mamíferos é bem maior que a dos outros, justamente devido à

rápidaexaustãodacaça.UmexemploextremoéodoaltoXingu,

emqueosgruposindígenassubsistemquaseexclusivamentede

peixe, caçando apenas certas espécies de macacos e certas aves.

Essacircunstância–emborajustificadaculturalmenteportabus

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 89

eemtermossimbólicospelacosmologia–sedeveàexcepcional

abundânciapesqueiradaárea,principalmenteduranteaestação

seca(Ross1978:13),oquetambémpermiteumaconsiderávelse-

dentarizaçãodosgrupos.

Comosevê,aprodutividadedacaçanãoéabsoluta.Épresi-

didaporumasériede fatores: recursosambientais,distribuição

dapopulação,característicascomportamentaisdasespéciesase-

remexploradasetecnologia(Ross1978:15).Ousodeespingardas

criamaiorimpactosobreoecossistema,semquesealcanceuma

produtividadesubstancialmentemaiornoconsumodebiomassa

animal.Pelocontrário,oaumentodaexploraçãoconduzàexaus-

tão,principalmentedasespéciesmaiores,maisrarefeitasequese

reproduzemmaislentamente.Emrazãodisso,osgruposmaisse-

dentáriosepopulacionalmentemaisdensosexpressamdesgosto

ideológicoporelas,tornando-astabusalimentares(op.cit.:16).

Comparandodoisecossistemas–odeflorestatropicalúmida

exemplificadopelaAmazôniaeodasavanadoplanaltodoBrasil

central–DavidMcDonald(1977)indagaseostabusalimentares

têmefeitossemelhantessobreosrecursosfaunísticosdeambos.

Admitindo-se que os tabus dietéticos se destinam à conserva-

ção de recursos da fauna escassos, como as das terras firmes da

Amazônia, eles deveriam ser mais fortes e frequentes entre as

tribosadaptadasaesseecossistema,enãoàsavana,ondeacaçaé

maisabundante(op.cit.:736).Comessapreocupaçãoemmente,o

autorinvestigadadosdisponíveiscomrespeitoa11tribos,entre

silvícolasecampestres,doBrasilepaíseslimítrofes.

McDonald define tabus alimentares como sendo “uma regra

proibindooconsumodepartedeanimal,detodooanimaloude

umasériedeles,oudequalqueroutroalimento.Ostabusalimen-

tares podem aplicar-se a toda a população. Entretanto, a maior

parte deles incide sobre segmentos da população” (McDonald

1977:737).

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o90

O levantamento efetuado por McDonald mostrou que, em

muitoscasos,essestabusserestringiramàmulhergrávidaeaos

paisdenascituros.E,secundariamente,ajovensemreclusãoda

puberdade.Emfunçãodisso,propõe-severificaraexpressãonu-

méricadessessegmentospopulacionais,eareduçãodoconsumo

de carne devida às evitações. Verifica que os tabus alimentares

reduzemnãosóoconsumodecarne,comotambémasatividades

decaça,asquais,demodogeral,selimitama10ou12diasdurante

omês.Entreastribossilvícolas,oshábitosalimentares,devidoa

tabus,restringemoconsumodecaçaa10%menosqueovigente

entreosgruposdasavana.Nocaso,havendoabundânciamaior,

ostabussãomenosrigorosos.

Por outro lado, as práticas conservacionistas incidem antes

sobreanimaisdegrandeporte,representadospormenornúmero

deindivíduoseumataxamaislentadereprodução.Nãoobstante

a falta de dados suficientes para uma avaliação mais precisa, o

autoracreditaqueaausênciadetabusalimentarescomrespeito

a espécies com ciclo reprodutivo mais longo teria determinado

suaextinção.

Outro exemplo nos é oferecido pelos estudos de G. Reichel-

-DolmatoffentreosTukanodoaltoUaupés,Colômbia.Adoença,

no conceito desses índios, é causada pela negligência em obe-

decerregrasculturais.Decorrede: “1)avingançadeanimaisde

caça;2)amávontadedeoutraspessoas;3)amalevolênciadeseres

sobrenaturais,taiscomooDonodosAnimaiseoutrosespíritos”

(Reichel-Dolmatoff1975:324).

Airadecorredatransgressãodecertostabusalimentares,ou

da matança de grande número de bichos da mesma espécie. O

xamãfazodiagnósticodadoençaatravésdossonhosemqueo

enfermoaparecenafiguradoanimalofendido(op.cit.315).

Omesmoseaplicaaocontroledamanipulaçãodeoutrosre-

cursosnaturais,comoacoletademelefrutossilvestres,apescae

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 91

atémesmoautilizaçãoexcessivadematéria-primamanufaturei-

ra.Quandoissoocorre,osguardiõesdanaturezatêmdeserexor-

cizadospeloxamã,paraaplacarsuairaerestabeleceroequilíbrio

entrerecursosnaturaiseexploraçãohumana.Ocódigometafóri-

codosrelatosmíticosedaspráticasrituaisdeterminaocompor-

tamentohodiernoeserefereessencialmenteaoequilíbrioecoló-

gico.Dentrodessaperspectivaoperaocontroledemogenéticoda

população,atravésdaabstinênciasexual,dosmétodoscontracep-

tivoseabortivosedasregrasexogâmicas.Nessesentido,aevita-

çãodecertosalimentosearepressãoaoapetitesexualcorremem

linhasparalelas(op.cit.:312).

Finalmente, Reichel-Dolmatoff pontualiza que os mitos cos-

mológicosdosTukanonãoexpressamoquesepoderiachamar“a

harmonia(dohomem)comanatureza”.Aocontrário,

O homem é tido como parte de um conjunto de siste-

massupraindividuais,osquais–sejamelesbiológicosou

culturais–transcendemnossasvidas.Asobrevivênciaea

preservação de certa qualidade de vida só se tornam pos-

síveis,noâmbitodessessistemas,sesepermiteevoluir,de

acordocomsuasnecessidadesespecíficas,todasasformas

devida(op.cit.:318).

Na segunda parte deste livro examinei a maneira como a

populaçãoruralbrasileiraseposicionafrenteàfauna.Veremos

que desenvolveu justificativas, também no plano ideológico

e simbólico, para poupá-la, hauridas no saber indígena. Tanto

no pensamento do índio como no do caboclo, não há apenas

racionalização.Asrespostasadaptativasacondiçõesecológicas

não explicam tudo. Existem resíduos culturais e crenças má-

gicasarraigadasatrásdecertaspráticasquedevemserlevadas

em conta como fatores e variantes. Ao fim e ao cabo, eles não

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o92

sãoincompatíveiscomosecológicosesimcomplementares.A

ideologia,naverdade,nemsempreéfuncionalouracional,mas

simplesmenteideológica.

Conclusões: ecologia cultural versus depredação

Esta discussão sobre ecologia cultural poderá parecer exces-

siva a muitos leitores, tratando-se de um livro que versa sobre

a contribuição indígena à cultura brasileira. Entretanto, dada a

crescente preocupação do grande público com relação à defesa

domeioambienteedadasasreiteradasadvertênciasarespeitoda

nãorenovaçãodosrecursosdaflorestaúmida(cf.Meggers1977;

Goodland & Irwin 1975), ela me parece a mais pertinente. Por

outrolado,éprecisolevaremcontaqueadestruiçãodeumelo

nacadeiadeumecossistemacolocaemriscootodo,ameaçando

regiõesdaimensidãodaAmazônia–56%doterritórionacional–

deumdesastreecológicodeproporçõesinimagináveis.

Segundo Warwick E. Kerr (1975), os atentados à natureza do

Brasilpodemresumir-seemquatropontos:

1) Destruiçãodasflorestas.Oscincotiposdeflorestas(ama-

zônica, atlântica, araucária, campos cerrados, caatin-

gas) estão sendo destruídos. Dados de 1973 indicam

que24%daflorestaamazônica(de3.574.000km²restam

2.731.000km²)foidesmatadaepartetransformadaem

pastagens. As outras florestas têm sido parcialmente

reflorestadascomEucalyptusePinus,bosquesdosilên-

cio, porque não oferecem frutos para animal algum.

Ascausasdadestruiçãosãoaganância,aformaçãode

fazendasquelimpamoscamposdegenteparaentregá-

-losaogado.“Noentantoésabidoqueogadonãoéo

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 93

melhortransformadordeproteínavegetalemanimal,

sendomuitoinferioràsaveseestasinferioresaospei-

xes.Alémdisso,aeficiênciadocrescimentodosroedo-

res torna-os economicamente mais aceitáveis” (Kerr

1975:95).

Acrescenta Kerr: “Além dos aspectos de destruição da

natureza, o desenvolvimento diminui a retenção de

água,aumentaaerosão,provocaoaçoreamentodosrios

e, consequentemente, alagações em lugares antes não

sujeitosaosefeitosdascheias.Háindícios,também,da

mudançadeprecipitaçõespluviométricas”(ibidem).

2) Construçãodeestradas.Eliminaterrasquepoderiamser

entreguesàproduçãodealimentos.Atentacontraain-

tegridadefísicaeaautonomiadosgrupostribaisrefugia-

dosnasregiõesmaisermasdopaís.

3) Uso indiscriminadode inseticidas, fungicidasedesfolhantes.

Paratornarmaisrápidoebaratoodesmatamentoepara

combater as pragas que incidem sobre monoculturas,

têm sido introduzidos no Brasil agrotóxicos (neantina,

D.D.T., fosforados e “agente laranja”) que têm causado

grandeperdadevidashumanasedestruiçãodanatureza.

4) Poluiçãoindustrial.Olixoindustrialatiradoaosrioseao

marestáesterilizandoosrioseacostadoBrasil.

ODr.Kerrencerrasuasconsideraçõesapresentandopropos-

tasparaobviaressasituaçãocalamitosaaquenossopaíschegou

notocanteàecologia.5Desejaria,entretanto,terminarestecapí-

tulotranscrevendoaspropostasdeDarrellA.Posey,hauridasnas

liçõesqueassociedadesindígenas,emboradizimadas,podemdar

5 Argumentosigualmenteincontestáveisdeque,talcomoamataatlântica,aflorestaamazônicapodeacabar,emváriosestados,antesdoano2000,foramoferecidosporP.M.Fearnside(1983: 42-57).

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o94

aoBrasileaomundo.Poseypropõeque,juntoàstribosremanes-

centes,seefetueoestudode:

1.Conceitualizaçãodezoneamentoecológicoepercep-

çãoderecursosdentrodecadazonaecológica.

2.Conhecimentodocomportamentoanimaledarelação

planta-animal-homem em várias zonas ecológicas.

3.Usodecategoriastransicionaisdedivisõesecológicas

naturais.

4.Classificaçãoedescriçãodeespéciesdeplantasdo-

mesticadas.

5.Classificaçãoedescriçãodeespéciesdeplantassilves-

tresesemidomesticadas,camposdeflorestaetodoo

sistemadeagriculturanômade.

6.Manipulaçãodeespéciesanimaissilvestresesemido-

mesticadas como parte integrante de manejo eco-

lógico.

7.Adaptaçãodaagriculturadecoivaraetodaagamade

variaçõesdosistemanaAmazônia.

8.Estratégiasdeexploraçãoemanejoalongotermode

capoeiraseflorestassecundárias(Posey1983:891).

Comosevê,estaspropostasdeestudo,objetivandooaprovei-

tamentoracionaldaflorestatropical,vêmaoencontrodospropó-

sitosdestetrabalho.Taissão:mostrarnãosóolegadodoíndioà

culturabrasileira,masomuitoqueaindatemosaaprendercom

ele.Ouseja,aimensariquezadeensinamentosque,porinsídia,

etnocentrismoeignorância,deixamosdeabsorver.Cabeassinalar

queorespeitoànaturezanãoseconsegueapenascommedidas

educativasousançõespenais.Éprecisoproveraspopulaçõesque

depredamafloraeafaunapormotivoseconômicosdecondições

de subsistência que inibam essas práticas. Isso só será possível

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 95

atravésdeumapolíticafundiáriavoltadaparaasnecessidadesdo

povobrasileiroenãodeumaminoriadeproprietárioseempresas

multinacionaisquefazemdaterraumbomnegócio,atendendo

interessesantinacionaiseprivatistas.

Importantefatoraserlevadoemcontaéqueaexpansãodaso-

ciedadenacionaldeterminouumdecréscimoradicalnonúmero

detribosenocontingentedemográficodasquesobreviveramao

impacto.Comoterritórioreduzidoecercadoportodososlados

pelapopulaçãoregional,osgrupostribaisremanescentestiveram

de alterar drasticamente suas relações com o ecossistema e, in-

clusive,migrar,mudandosucessivamentesuaadaptaçãodeum

ecossistema ao outro. Ainda quando permaneceram no mesmo

território, tiveram de explorá-lo mais intensivamente, com uso

de uma tecnologia aparentemente mais eficiente, como os im-

plementosdeferroparaasfainasagrícolaseasespingardaspara

acaça,resultando,emalgunscasos,numdeclíniodeprodutivi-

dade.Estamudançaobedeceuaimperativosdoprocessodeacul-

turação:anecessidadedeproduçãodeexcedentesparaadquirir

bensindustriais,tornadosindispensáveis.Eaprópriaimposição

daeconomianacionalemqueosgruposindígenasforamsendo

engajados:demaiorexploraçãodosrecursosnaturais(borracha,

castanha, plantações de mandioca para a produção de farinha

paraavenda,exploraçãodoartesanatoparaavendaetc.).Dessa

formafoisendocoibidaaautonomiapolíticadeinúmerastribos,

afetando dramaticamente sua autonomia cultural. (A respeito

de alterações no ecossistema em função de aculturação, ver A.

Seeger1982.)

As considerações feitas baseiam-se em estudos realizados

principalmente entre grupos indígenas da hileia amazônica,

onde se refugiam, atualmente, as tribos que mais resistem ao

rolo compressor da sociedade nacional e dos países limítrofes.

NaregiãoNorteseconcentra,hoje,60%dapopulaçãoindígena

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o96

remanescente no Brasil. Ela foi reduzida de cerca de5 milhões

antes da descoberta a menos de 200 mil. É ainda no Norte que

seconservamaisvivaaherançaindígena,emnossosdias.Aela

dedicaremos,porisso,atençãomaiornaspáginasqueseseguem.

PARTE IIA CULTURA INDÍGENA NO BRASIL

MODERNO

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 99

iiisubculturas, técnicas, sabor e saber

Introdução

O títulodestasegundaparte–AculturaindígenanoBrasil

moderno–colocaalgumasindagações:primeiro,oque

entendemosporcultura?Segundo,persistemnaculturabrasileira

influênciasdaculturaindígena?Preliminarmente,cabeesclare-

cerqueoconceitodeculturaéaquiutilizadonosentidoantropo-

lógico:osmodos(brasileiros)deproduzir,interagir,pensaresim-

bolizardesenvolvidosouadotadosparasatisfazerasnecessidades

humanas. Cultura não significa, portanto, apenas ilustração ou

progresso,esim,ideias,comportamentose,sobretudo,fórmulas

deaçãosobreanaturezaparaoprovimentodasubsistência,que

vêmdosprimórdiosdaformaçãodanacionalidade.Significa“um

processosocialdeprodução”(Canclini1983:30),ou“umproduto

coletivodavidahumana”(...)(que)“nãopodeserentendidosem

referênciaàrealidadesocialdequefazparte,àhistóriadesuaso-

ciedade”(Santos1983:45,47).

Issonosremeteaoprimitivoconceitodeculturaquevemdo

latim:colo-cultum-colere.Significacultivar,habitare,porextensão,

viver.Nomododecultivar,naformademorarenojeitodeviver

équeiremosencontrarosvestígiosdeumadasmatrizesforma-

dorasdoBrasil-nação:aindígena.Ouseja,noníveladaptativo,o

quevinculaopresentecapítuloaosprecedentes.Pesesernosso

intuito valorizar as tradições da vertente indígena que, por sua

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o100

funcionalidadeoupeloisolamentodaspopulaçõesqueasculti-

vam,resistematéhoje,adiscussãosuscitará,inevitavelmente,a

ideia de arcaísmos, de sobrevivências, com toda a carga de pre-

conceitosqueencerra.

É de se perguntar: em que medida essa raiz da identidade

nacional está presente ao nível da consciência dos brasileiros?

Muitoseescreveu,decertoedeerrado,aesserespeito.Ocaráter

nacionalbrasileirocomeçouaserdiscutidodesdeosprimórdios

dacolonização.Temsidoobjetodepreocupaçãoagudadospolí-

ticos,historiadores,ensaístas,homensdeletrase,sóapósadéca-

da de 30, dos cientistas sociais. Todos procuram inferir a forma

pelaqualosbrasileirosseconcebem.Essepropósitoultrapassaas

ambições do presente estudo. O que nos interessa são as mani-

festaçõesexplícitasquerevelamainfluênciaindígenanacultura

nacional.Elasestãocontidasnaculturarústica,sendotantomais

fortesàmedidaquenosafastamosdasáreasurbanasametropoli-

tanas,ondeaculturademassaspenetrouemgraumaiselevado.

Encontramosasevidênciasquebuscávamosnaliteraturahistó-

rica e etnológica, embora estejam formuladas – de forma mais

vigorosa,talvez–nasobrasliterárias.

Inicialmente,trataremosdaformaçãohistóricadassubcultu-

ras regionais e da presença indígena, maior ou menor, em cada

umdelas.Focalizaremos,aseguir,osmodosdeproduçãoeatrans-

ferênciadetécnicasadaptativasindígenasatravésdocontatoin-

terétnicoedamiscigenação.Nessecontextoincluem-semodosde

fazereinstituiçõesque,emboraextremamentesimples,nãosão

demodoalgumirracionais.Entreoutros,agamadeconhecimen-

tos que compõem o processo econômico, conhecimentos estes

relacionadosaoequipamentoprodutivo,àhabitaçãoeconforto

doméstico,acrençasecrendicesvinculadasàconservaçãodana-

turezaeaoconvíviosocial.

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 101

1. Subculturas

No século da descoberta, os portugueses só tiveram contato

comosíndiosquehabitavamacosta,pertencentesaotroncolin-

guísticoTupi-Guarani,eesporadicamentecomosqueviviamum

poucoadentradosnointerioreaolongodacalhadorioAmazonas.

Noséculoseguinte,teminícioodevassamentodointerioratravés

depenetraçõesporterraepelasgrandesartériasfluviais.

Sãomuitocontrovertidasasavaliaçõesdapopulaçãoaborígi-

ne em 1500. Os cálculos mais conservadores a estimam em um

milhãodeíndios.Estudosmaisrecentes,quelevamemcontao

vultodadepopulaçãoeaextinçãodeinúmerastribosporforça

daescravidãoedatransmissãodedoençasantesdesconhecidas,

permitemelevaraoquíntuploessemontante.Considerando-seo

contingenteindígenaatual–cercade200mil–,verifica-sequeo

descensofoinaordemde25:1,dosmaiselevadosqueahistória

registra.6

Os primeiros brasileiros surgem da miscigenação genética e

culturaldocolonizadorluso-europeucomoindígenadolitoral,

plasmada nas quatro primeiras décadas após a descoberta. Essa

protocéluladanaçãobrasileiraémoldada,principalmente,pelo

patrimôniomilenardeadaptaçãoàfloresta tropicaldosgrupos

Tupi-Guarani. Ocupando praticamente toda a costa, desde o

AmazonasatéoRioGrandedoSul,essastribostiverampapelpre-

ponderantenaunidadenãosóculturalcomotambémgeográfica

doqueviriaaconstituiroBrasil.

A incorporação do índio à cultura brasileira se dá, entretan-

to,atravésdofilhododominadorportuguêsgeradoemmulhe-

resdesgarradasdonúcleotribal.Essapopulaçãodemamelucos

6 Referênciasbibliográficassobreavaliaçõesdapopulaçãoindígenapré-cabrali-naencontram-seemB.Ribeiro1983b.

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o102

– criados pela mãe, dominados pelo pai – se multiplica rapida-

mente.Aprenderafalaralínguamaterna,umdialetotupi-guarani

onheengatu(quesignifica“alínguaboa”),sistematizadoedifundi-

dopelosjesuítas,quepassaaseralínguafrancaou“línguageral”

dacolôniadurantemaisdetrêsséculos.Deextraçãotupi-guarani

foi,portanto,acontribuiçãogenéticaeculturaldoscontingentes

que sucederam os grupos litorâneos, prontamente subjugados,

escorraçadosouexterminados.

A“protocélulaBrasil”seplasmoueespraiouantesdachegada

do negro africano, em 1538, provavelmente (D. Ribeiro 1974ms:

3-4).EngajadocomoescravonaempresaaçucareiradoNordeste,

dorecôncavobaianoe,emmuitomenorescala,deSãoPaulo,one-

grocontribuiuparaaformaçãodaquelaprotocélula.Incorporou-

-se a ela, aprendendo a alimentar-se com os produtos da terra,

reconhecê-losechamá-lospelosnomesnativos,damesmaforma

queocolonizadorluso.

A ordenação social e econômica, no entanto, foi regida com

mãodeferropelobrancoeuropeu.Omododeproduçãoagrário,

monocultor e escravista imprimiu-lhe as características essen-

ciais.Todaaimplantaçãocolonialestavavoltadaàexploraçãoda

terraedotrabalhoindígenaeafricanoparaaproduçãodeaçúcar,

primeiro,deouro,dealgodão,degadooudecafédestinadosàex-

portação.Nesseprocessogerou-seumcontingentemestiçoíndio-

-branco-negroqueviriaaconstituiropovobrasileiro.

Noplanoideológicopredominouaortodoxiacatólica,religião

dodominador,masimpregnadadetradiçõesecrençasindígenas

e africanas. De modelo europeu-colonial é ainda a organização

político-administrativa que presidiu as atividades produtivas

paraextrairamais-valiacomqueseconstituíramascidades,as

igrejas,ospalácios,secustearamasguerraseaopulênciadosrei-

nóisdePortugal.

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 103

Essa ordenação socioeconômica e cultural se expandiu dos

primeirosnúcleosaçucareirosdoNordesteparaoscamposnatu-

raisdecriaçãodegadodorioSãoFrancisco,paraasminerações

deouroediamantedeMinasGerais,paraaflorestaamazônica,

paraasregiõespastorisdoextremosul.Otipodeexploraçãoeco-

nômicadecadaumadessasáreasesuaspeculiaridadesecológico-

-regionais determinaram os vários modos de ser dos brasileiros

estabelecendovariantesculturaisqueexaminaremosresumida-

menteaseguir,noquetêmdeherançaindígena.

Essas variantes conformaram, no Brasil rural, o que foi cha-

madoporDarcyRibeiro(1974ms:8-9)deculturacrioula,desen-

volvida na faixa de massapé do Nordeste, sob a égide do enge-

nho açucareiro; cultura caipira constituída pelo cruzamento do

portuguêscomoindígenaequeproduziuomamelucopaulista,

preadordeíndios,depois“sitiantetradicional”dasáreasdemi-

neração e de expansão do café; cultura sertaneja difundida pelo

sertãonordestinoatéocerradodoBrasilcentralpelacriaçãode

gado;culturacabocladaspopulaçõesamazônicas,afetasàindús-

tria extrativista; e cultura gaúcha de pastoreio nas campinas do

Sul.

Oconjuntodessassubculturasruraisconformaoquesecos-

tumachamardeculturarústicabrasileira.Seusportadoressãoa

massacamponesaque,segundoMariaIsauraPereiradeQueiroz,

sempre existiu no Brasil, mesmo ao tempo da escravidão. Na

opiniãodessaautora,elacoexistiu“tantocomasfazendasmono-

cultoras,quantocomasfazendasdecriaçãodegado,tendoaseu

cargoaproduçãodeabastecimentoparaestasempresaseparaos

povoados”(1976:26).

O gênero de vida dessas populações, genericamente falando,

éodasmassascamponesasdeoutrospaísesdaAméricadoSul.

Queirozassimocaracteriza:

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o104

Praticamapoliculturaeacriaçãoempequenasescala;

sãoiletrados;suatecnologiaépré-industrial:cultivampe-

quenasáreas,consagrandoumaporçãosignificativadaco-

lheitaparasuasubsistência;utilizammãodeobrafamiliar

emsuasplantaçõeseocasionalmentepoderãoutilizartam-

bémalgumtrabalhadorexterioràfamília,remunerando-o

devariadamaneira(1976:25).

Emborarelativamenteautônomos,quantoaoprópriosusten-

to,os“sitiantestradicionais”mantinhamemantêm,deumafor-

maoudeoutra,umarelaçãodedependênciacomapequenacida-

de,osgrandesproprietárioseoschefeteslocais.Acategoriainclui

meeiros,parceiros,posseiros,pequenosproprietáriosque,coma

penetraçãocapitalistanocampo,tendeasererradicada.Issopor-

que, primeiro, é obrigada a plantar excedentes ao seu consumo

para adquirir produtos industriais a que se vai habituando. Em

segundolugar,porqueasterrasqueocupasevalorizam,passando

asercobiçadaspelosgrandesfazendeiros.E,finalmente,porque

a implantação de infraestrutura (estradas, hidrelétricas) para a

pecuária,aagroindústria,aexploraçãomadeireiraeamineração

quebrasuarelativaautonomia,forçandosuaincorporação,como

umestratosocialsubalterno,àeconomiacapitalista.Talprocesso

severificaemrelaçãoàscomunidadesindígenas,mesmoasque

sobrevivemnasregiõesmaisermasdopaís.

Nosprimeirosanos,poucasforamasfamíliascompletasvin-

das de Portugal. O colonizador europeu, na falta de mulheres

brancas, amancebou-se com índias, em uniões poligâmicas que

indignaramosjesuítas.

Através destes cruzamentos – escreve Darcy Ribeiro

(1974ms)–multiplicavam-seosmamelucosque,alémdas

funçõespreferidasporelesdebandeirantespredadoresde

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 105

índiossilvícolasoumissioneiros,dehomensdearmaspara

a defesa das vilas e para a perseguição de negros fugidos,

exerciamváriosofícios.Mais tardeforamelesquesefize-

ramosartesãosespecializadosdosengenhos;osvaqueiros

das zonas pastoris, os carreiros, tropeiros, remeiros dos

transportesterrestresefluviais;osagregadosemeeiroseos

artesãosqueproduziamparaasfeirascomotrabalhadores

livres,situadosnosinterstíciosdeumasociedadecadavez

mais escravocrata. De certo modo foram eles que viabili-

zaramavidasocialpeloexercíciodemúltiplasatividades

indispensáveis que não podiam ser entregues a escravos

(D.Ribeiroop.cit.28).

Ossetoresmaisprósperosdaeconomiaéquesepodiamdarao

luxodeimportaremanteroescravonegro,cincoaseisvezesmais

caro que o índio. Em Piratininga e São Vicente, por exemplo, o

colonotevedecontentar-secomoescravonativo,acujainfluên-

cia se deve, certamente, a vocação desbravadora do mameluco

paulista,acimareferida.

Apopulaçãodiretamenteengajadanoempreendimentocolo-

nialatingiria,em1600,acifrade200milhabitantes (D.Ribeiro

1974ms:33).Arendageradapeloaçúcareraextraordinariamente

alta,emboramaldistribuída.CelsoFurtadocalculaque,àépoca,

funcionavam120engenhosdeaçúcareorebanhobovinoalcan-

çava680milcabeças(apusD.Ribeiroibidem:35).

AdescobertadoouroedodiamanteemMinasGerais,noco-

meço do século XVIII, quando a indústria açucareira começava

adeclinar,revigoraaeconomia,atraindoparaointeriordopaís

populações crescentes e incorporando os territórios de Minas,

GoiáseMatoGrossoaoprojetocolonial,jánãoagrário,massim

minerador,sempreexportador.

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o106

“Em 1800, a população neobrasileira recupera seu montante

originaldecincomilhões”,escreveD.Ribeiro,e“todososnúcleos

seintegramnumúnicomercado,eestepassaasermaisimpor-

tantequeoexterno”(op.cit.:36,38).Àépoca,opolomaisdinâmico

daeconomiaseconcentranoMaranhão,tornadocentroexporta-

dordealgodão.Mascomeçaasurgirumnovoproduto,ocafé,que

rearticulaoBrasilaomercadomundial,massemalteraroregime

depossedaterra.

OpovoamentoeaocupaçãodoBrasilsefizeram,segundoM.

DieguesJr.,

combasenapropriedadedaterra,especialmenteagran-

depropriedade,a“fazenda”,qualquerquefosseotipode

exploração econômica. O desenvolvimento da ocupação

humana se estabilizou através da formação de proprie-

dadesrurais,querepresentavamosesteiosdafixaçãodos

grupos.Nasceuassimumacivilizaçãoderaízesruraiseca-

racterísticadessacivilização,agrandepropriedade(1959:

25).

A propriedade da terra, na forma de latifúndio, de grande

plantação, e fazenda de gado, foi a instituição irremovível e a

que menos abalos sofreu em 486 anos de história do Brasil. Ela

foiimpostaasociedadessocialmenteigualitárias,emqueaterra

erapossuídapelosqueaamainavam,cujaseconomiasatendiam

nãosóàsnecessidadesimediatasdeaquisiçãodosustento,como

tambémàproduçãodeexcedentesparatrocacomfinssociais,ru-

raiserecreativos.Reminiscênciasdosistemaagrário-exportador

eescravistapersistemnasregiõesinterioranas.Prevalecemtam-

bémresíduosdeumsaberindígenaqueajudaasobrevivênciade

populaçõesespoliadaseesquecidas.

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 107

a) Cultura crioula

Tidacomoumadasobrasbásicassobrea“formaçãodafamília

brasileira sob o regime de economia patriarcal”, Casa-grande &

senzala(1933,1ªedição)inovapelametodologiautilizada.Analisa

asrelaçõesculturaisentreostrêscomponentesbásicosdanacio-

nalidade:obranco,oíndioeonegro.Éumretratodaformação

dasociedadeagrário-monocultoraepatriarcalbrasileira.Ofator

explicativodamiscigenaçãoé,segundoFreyre,oencantamento

doportuguêspelamulhermorena,sejaelamoura,negraouíndia.

Pode-se contra-argumentar, entretanto, que uniões semelhantes

ocorreramemoutras latitudesondeocolonizadoreuropeumi-

grousozinho.Mesmonosséculosseguintesàdescoberta,emque

eramenoraescassezdemulheresbrancas,aalegadapreferência

pelanegraeamulatasedeu,emgrandeparte,devidoàatitude

submissa e subalterna, mesmo da mulher branca, na sociedade

escravocrata.

Gilberto Freyre destaca o papel da mulher indígena “não só

comoabasefísicadafamíliabrasileira(...)senãotambémcomo

elementodecultura,aomenosmaterial” (1973:94).Disso trata-

remosmaistarde.UmpontoasalientaréqueFreyre,aomesmo

tempo que enaltece o papel da mulher indígena como amante

sensual, desdenha a sua importância como agricultora. Afirma

que: “AcolonizaçãoagrárianoBrasilsóaproveitoudoindígena

oprocessodecoivaraque,desgraçadamente,viriaadominarpor

completoaagriculturadoBrasil”(1973:95-96).

Contra essa convicção, que ainda prevalece, argumentamos

copiosamentenaprimeirapartedestetrabalho.

A cultura crioula desenvolveu-se, segundo D. Ribeiro

(1974ms: 73-103), de quem tomamos essa designação, na faixa

litorânea do Nordeste, de Pernambuco à Bahia, em torno da

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o108

economia açucareira. Das matrizes formadoras – indígenas e

negra–absorveuoselementosculturaisefísicosqueserviriam

às exigências de produção de açúcar exportável. Esse modelo

econômico deu lugar a desníveis extremos, contrastados na

casa-grandeenasenzala.Criouumpatriciadocompoderesde

vidaemortesobreapopulaçãoquevegetavaemseusdomínios.

Tornou-seautárquicaeautossuficiente,excetonoqueserefere

ao mercado externo a que destinava seu produto, ao escravo

negro que o propiciava e aos insumos de gozo e luxo que ali-

mentavam a aristocracia açucareira. Além do negro refugiado

noquilombo,outrocontingentedestacou-sedosistema:amas-

sa de brancos pobres e mestiços livres que vivia à margem da

plantation.Dedicava-sealavourasdesubsistênciaeaocultivode

tabacoparaexportação,àpescaemjangada,àcriaçãodegado,

aosofíciosartesanaisurbanos,àburocraciaeaocomércio.Sua

resistênciafoimuitodébil,entretanto,diantedahegemoniada

ordem oligárquica. Nunca conseguiu o acesso à terra e veio a

engrossarapopulaçãomarginaldascidades.

b) Cultura sertaneja

Outra subárea é destacada pelo autor que vimos citando:

“Começa pela orla descontínua ainda úmida do agreste e pros-

seguecomasenormesextensõessemiáridasdas caatingas.Mais

além,penetrandojáoBrasilcentral,seelevaemplanaltocomo

camposcerrados,queseestendempormilharesdeléguasquadra-

das”(D.Ribeiro1974ms:104).

Nessaregiãodesenvolveu-se,noséculoXVII,oqueCapistrano

de Abreu (1976a: 127) chamou de “Civilização do Couro”: o

grande ciclo econômico de criação de gado. Originariamente,

essaeconomiapastorilesteveassociadaàproduçãoaçucareira

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 109

àqualforneciacarne,couroeboisdeserviço.Nessaárea,escre-

veD.Ribeiro,

Conformou-se um tipo particular de população com

uma subcultura própria, a sertaneja, marcada por sua es-

pecializaçãoaopastoreio,porsuadispersãoespecialepor

traços característicos identificáveis no modo de vida, na

organizaçãodafamília,navestimentatípica,nosfolguedos

estacionais, na dieta, na culinária, na visão do mundo e

numareligiosidadepropensaaomessianismo(op.cit.:105).

Apobrezadospastosnaturaiseararefaçãodasaguadasfizeram

comqueoscurraissedispersassemporenormesextensõesconce-

didasemsesmariaspelaCoroaportuguesa.Oregimedetrabalho

nãosefundavanaescravidão,masnopagamentodegênerosali-

mentícios,desalecriasderebanho.Esseregimeatraiuomestiço

livre, branco-indígena, cujo fenótipo está marcado no vaqueiro

nordestino,baianoegoiano.Estámarcadotambémnodramade

Canudos,imortalizadoemOssertõesdeEuclidesdaCunha.

Comogadocresciaapopulação,desnecessáriaàsatividades

de pastoreio. Desenvolveram-se atividades paralelas, como as

plantaçõesdefumoedeumalgodãoarbóreo,omocó,nasterras

estrumadaspelogado.Estabelece-seentãooregimedeparceria,

aplicadotambémàlavouracomercialnazonadoagresteeàex-

ploraçãodoscarnaubais.Masoqueefetivamenteproduzosertão

sãoexcedenteshumanosque,expulsospeloflagelodasecaedo

latifúndio,dirigem-separaaAmazônia,quandodoboomdabor-

racha,eparaoSul,paraondecarreiamtraçosdaculturasertane-

ja.Osquealipermaneceramengrossaramocangaçoeamiséria

nordestina.

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o110

c) Cultura cabocla

Aculturacabocla7desenvolve-senabaciaamazônicaocupada

originalmenteportriboscomadaptaçãoespecializadaàfloresta

tropical.Dominavamtécnicasagrícolassemelhantesàspraticadas

pelosTupilitorâneos.Emalgumasáreas,comonailhadeMarajó

enabocadoTapajós,floresceramculturasdeníveltecnológicoe

artístico comparáveis às da região circum-Caribe. A dominação

portuguesaeamigraçãonordestinanãoalteraramatecnologia

adaptativadocabocloamazônico,basicamenteindígena.

EduardoGalvão(1979:257-271)distinguetrêsépocasnahistó-

riadasrelaçõesenteíndiosebrancosnaAmazônia.Aprimeira,

daconquistaterritorialesubjugaçãodoíndio,vaide1600a1759,

ano da expulsão dos jesuítas do Brasil. O período seguinte, de

1759a1840,émarcadopelasubstituiçãodasmissõespeloregime

de Diretorias de Índios, no governo temporal das aldeias. Entre

1840e1920,ocorreafasedaexploraçãodegomaselásticas,prin-

cipalmentedaborracha(1879-1910),quedizimainúmerastribos

edestribalizaoutrotanto.Omesmohaviaocorridonosperíodos

anteriores,emqueoíndioeracompulsoriamenteengajadonaco-

letadedrogasdamata:cacaunativo,cravo,canela,baunilha,pu-

xuri,urucu,salsaparrilha,quina,óleos,resinas,raízesemadeiras

aromáticas.Essasespeciariassubstituíram,nomercadomundial,

asquePortugalobtinhadasÍndias.Arrebanhadoatravésdosdes-

cimentosfeitosportropasderesgateque,acompanhadasdemissio-

nários,subiamosrios,oíndioeraconscritoaotrabalhoescravo

esemiescravo.Homensemulhereseramempregadosnasfainas

danavegação,dacaçaepesca,noserviçodoméstico,notrabalho

7 O termo caboclo tem várias acepções, segundo a região e a época, ensinaPlínioAyrosa(1935: 65-70).Aetimologiadapalavraé,noentanto,aquelhefoidadaporT.Sampaio(1928: 174):Vemdecaá-boc,dotupi,significando“tiradoouprocedentedomato”.

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 111

extrativista.Aelesestavaafeto,também,“...oserviçoobrigatório

dasobraspúblicas–construçãodefortificações,portos,edifícios

administrativos, casas senhoriais – bem como das lavouras de

subsistênciadosprópriosaldeamentosedaedificaçãodeigrejase

conventos”(D.Ribeiro1974ms:132).

AtupinizaçãodoindígenanaAmazôniasedeunosaldeamen-

tos jesuíticos. Aí, integrantes de distintas tribos eram homoge-

neizados linguística e culturalmente, passando a comunicar-se

através da “língua geral”. Aí se fazia a clivagem para separar

trabalhadorespostosaserviçodosbrancos.Ouseja,osíndiosjá

“domesticados”ou“tapuios,índiosgenéricos”.Formavamagran-

demassaque,segundoC.A.MoreiraNeto(1971ms:14), “davaà

região o seu inconfundível aspecto de sociedade dual, onde os

homensseopunham,aomesmotempo,porcritériosdeorigem

étnicaesocioeconômica”.

Dessa massa saíram os combatentes da Cabanagem (1835-

-1840),definidaporMoreiraNetocomoasublevaçãodos“tapuios”

eoutrosmestiços

socialeetnicamente,equeprocuravamescaparaosduros

moldesdasociedadecolonialporumarebeliãoque,ades-

peito de seus aspectos políticos mais aparentes e explíci-

tos,tinhaumconteúdodemudançasocialextremamente

revolucionário para as condições locais. Seu símile mais

próximo deve ser buscado fora das fronteiras do Brasil,

nas ‘Guerras de Castas’ do Yucatán, que tiveram início na

mesmaépocaeseprolongaramporquasetodooséculoXIX

(1971ms:14-15).

Assim se “gastou” a população indígena da Amazônia, gasto

estequeoPadreAntônioVieira,noséculoXVII,calculou–segun-

doalguns,comcertoexagero–emdoismilhõesdeíndios.

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o112

AfórmuladeadaptaçãoàAmazôniaprevaleceuecontinua

vigenteporqueéaúnicadesenvolvidaatéhojeparaesseecossis-

tema.AelaseadaptaramossertanejosquevieramdoNordeste,

noaugedaextraçãodaseringa,dessaformaacaboclando-se.A

elaseadaptamhojepopulaçõesvindasdoSul,doCentro-oeste,

tangidasdesuasregiõesdeorigempelaimpossibilidadedeaces-

soàterra.

Omododevidadocabocloamazônicoquevegetanossítios–

pequenaspropriedadesnãolegalizadas,entreguesàeconomiade

subsistência–foiretratado,atraçoslargosesegundoosprecon-

ceitoscorrentesàépoca,porJoséVeríssimo(1887):

É ao visitar uma destas habitações que o observador

podeavaliara incúriaeamisériadagentequeashabita.

Nada ali é vindo de estranhas terras, tudo, com exceção

apenasdaparcaroupaquemallhescobreanudez,proveio,

semquasenenhumesforço,danaturezaaoredor.Omadei-

rameparaacasa,ocipóquefazasvezesdepregos,apalha

dasparedesedoteto,é fornecidopelamatavizinha,que

lhesdá,ainda,nariquíssimavariedadedefibrastêxteisde

suanumerosafamíliadepalmeirasebromeliáceas, todas

ascordasdequehãomister,amatériadotipiti,daurupema,

donaturá,douru,dobalaioquelhesservedebaú,dotupé

quelhesservedetapetesobarede,àqualtambémforne-

cem,umasvezes,amatéria-primaesempreascordasque

asuspendem.(...)Amatafornece-lhesaindaacaça,orio,

opeixe,aterra,frutos,commãopródiga,e,comtudoisso,

queprofundaquenãoéasuamiséria!(1887:371).

Cerca de cinquenta anos mais tarde, Charles Wagley (1957),

emUmacomunidadeamazônica,reproduzumquadrosemelhante.

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 113

d) Cultura caipira e cultura caiçara

A cultura caipira conserva a fisionomia e as características,predominantemente indígenas, dos primeiros paulistas ou ma-melucos. Elas são reconhecidas por inúmeros historiadores, aprincipiar por Sérgio Buarque de Holanda (1975). Entre outras,destacam-seofalarogeral;oandarapédescalçooucomsimplesalpercatas,percorrendoenormesdistâncias;ocomerdecócoras;otomarbanhotododia;oembalar-senarede;oapreciarasigua-rias do bugre. Paulista foi, durante os dois primeiros séculos dacolonização, sinônimo de mameluco, bandeirante, predador eescravizadordeíndio,desmanteladordasreduçõesjesuíticasdoSul,descobridordoourodeMinasGerais,GoiáseMatoGrosso.E,porfim,desbravadordosertãoepovoadordosconfinsdoBrasil,quandoterminaociclodamineração.AindanoséculoXVIII,opaulistaforneceumcontingenteponderávelparaacolonizaçãodoRioGrandedoSul.Atodasessasáreascarreiaaculturadapro-tocélula,formadanosprimeirosanosdevidacolonial.

Oquesechamaculturacaipira,segundoDarcyRibeiro,

é uma variante da cultura brasileira rústica. É um novomododevidaquesedifunde,paulatinamente,apartirdasantigasáreasdemineraçãoedosnúcleosancilaresdepro-dução artesanal e de mantimentos que a supriam de ma-nufaturas,deanimaisdeserviçoeoutrosbens.Acabaporesparramar-seportodaaáreaflorestalecamposnaturaisdocentro-suldopaís,desdeSãoPaulo,EspíritoSantoeestadodoRiodeJaneiro,nacosta,atéMinasGerais,GoiáseMatoGrosso,estendendo-seaindasobreáreasvizinhasdoParaná(D.Ribeiro1974ms:168).

Essesnúcleosisolados,definidoscomo“bairrosrurais”ouna-

çõezinhas (MeloeSouza1964apudRibeiro,op.cit.:169),seunem

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o114

paratarefascoletivasatravésdomutirão.Apequenaroçaeoarte-

sanatodomésticosatisfazemsuasparcasnecessidadesegarantem

suaindependênciapeloacessoaterrasdevolutas.Tal liberdade,

porém,durapouco.Areativação,emmeadosdoséculoXIX,da

lavouraparaexportaçãodealgodão,tabaco,maistarde,docafée,

maisrecentemente,dogadoedasoja–reincorporaaterraeseus

ocupantesaosistemadefazendas.Deixaaocaipira,quandomui-

to,aalternativadaparceria,comomeeiroeterceiro,e,nasúltimas

décadas,comoboia-friaoumarginalurbano.

Aexpansãodocafé,queconstringeoescravonegro,liquida,já

nasprimeirasdécadasdopresenteséculo,gruposindígenasdoin-

teriordeSãoPaulo,ParanáeSantaCatarina.Adocacau,àmesma

época,repeteoprocessonasselvasdaflorestaatlânticadosulda

BahiaedoEspíritoSanto.

Domododevidaarcaicoelivredocaipirarestahojeocaiçara,

ambosostermos,talcomocaboclo,deraiztupi.8Geograficamente,

ocaiçaraselocalizanafaixacosteira,nosinterstíciosdasgrandes

cidadesouempontossegregadosdolitoral,“áreasdedeserção”não

atingidas ou já abandonadas pelas frentes pioneiras da grande

lavoura(G.Mussolini1980:219-220).Ogênerodevidadocaiça-

ratemmuitodeindígena,algodeportuguêsenadadeafricano

(idem: 230). Combina a agricultura de subsistência, baseada na

mandioca, com a pesca. Sobre a primeira, escreve Mussolini,

queé“aproduçãoquase ‘obrigatória’donossolitoral,podendo-

-seafirmar,semexagero,que,denorteasul,ondeháhomemhá

mandioca”(op.cit.:224).

Quanto à pesca, a aparelhagem, a começar pela “canoa de

voga”, “escavada a machado, enxó e mesmo a fogo é herança

8 Caí-pyra,oenvergonhado,otímido.Caa-içara,aestacada,otapume,ocercado,atrincheira(T.Sampaio1928: 176).Otermocaiçararemeteàspaliçadasquefaziamocercodaaldeiaparadefendê-lacontrainvestidasguerreiras.

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 115

indígena”(Mussolini1980:224).Éocasoaindadajangada,vista

porLéry,em1556,semvelaemovidaaremo,quepredominano

litoral nordestino (do estado da Bahia ao Ceará) (op. cit.:228). A

autoramencionaoutrassobrevivênciasdeorigemaborígine,tais

comoousodotimbóparaatordoarospeixes,detapagens,redese

armadilhasdepesca(ibidem:227-230).

e) Cultura gaúcha

AáreaculturaldoextremoSuleotipohumanoaquedeulu-

gar,antesdachegadamaciçadoimigranteeuropeu,têmtambém

fortecomponenteindígena.Osgaúchosbrasileiros,talcomoos

platinos,

surgem da transfiguração étnica das populações mestiças

devarõesespanhóiselusitanoscommulheresGuarani.(...)

Oprincipalcontingentefoi formadonaprópriaregiãode

Tapesporíndiosmissioneiros.(...)Outrafontefoionúcleo

neoguarani de paraguaios de Assunção. (...) Uma terceira

fontefoiaproledosportuguesesinstaladosnaColôniade

Sacramento(1680)noriodaPrata(D.Ribeiro1974ms:194).

Essapopulaçãoespecializa-senacriaçãodegadotrazidopelos

jesuítasparaasreduçõesmissioneiras,equesemultiplicaprodi-

giosamente nas pradarias do Rio Grande do Sul e nas “Vacarias

delMar”,oUruguaidehoje.Atoponímialocal,adocumentação

histórica,alínguadopovo,correntenoParaguai,sãoindíciosde

queosgaúchosfalavamumguaranimodificadopelosjesuítas,tal

comoospaulistas,nosséculosXVIeXVII(Holanda1975:108-118).

Progressivamente se especializam na criação de muares, como

montariaecargaparaasminas,decavalos,boisdeserviçoena

exploraçãodocouro.Aessapopulaçãojuntaram-seosaçorianos

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o116

paramarcarapresençaportuguesafrenteàespanholanessafron-

teiramóvel.Paulatinamente,aapropriaçãodaterratransformaas

vacariasemestâncias.Aexploraçãopredatóriadocouro,depois

do charque, valoriza o gado que parecia inesgotável. O gaúcho

campeirosetransformaempeãodeumestanceiro,maispatrão

quecaudilho(D.Ribeiro1974ms:198-202).

Daantigaculturagaúcho-guaranificaramaboleadeiracomo

laçoparapegararês,comoantesaemaouoveado;apalhoçae

ocostumedetomarmateechimarrãoemcuiadequesefalará

adiante.

2. O equipamento de trabalho e conforto

Introdução

NoprefácioàsuaobraCaminhosefronteiras,oeminentehisto-

riadorSérgioBuarquedeHolandaassimjustificaamençãoape-

nasde“utensíliosetécnicas”indígenasadotadospela“população

adventícia”:

Aacentuaçãomaiordosaspectosdavidamaterialnãose

funda,aqui,empreferênciasparticularesdoautorporesses

aspectos,masemsuaconvicçãodequenelesocolonoeseu

descendente direto se mostraram muito mais acessíveis a

manifestaçõesdivergentesdatradiçãoeuropeiadoque,por

exemplo,noqueserefereàsinstituiçõese,sobretudo,àvida

social e familiar em que procuravam reter, tanto quanto

possível,seulegadoancestral(1975:7).

Emoutrapassagem,informaomesmoautor:

O machado, a foice, a enxada importados ajudaram a

fazer mais eficazes, por isso, em geral, mais desastrosos

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 117

aquelesmétodos(delavoura),afeiçoando-seaelesesubsti-

tuindoosantigosinstrumentosdepauepedra,assimcomo

oanzoldeferrovieraasubstituir,napescaria,osespinhos

tortosaquesereferiraGabrielSoaresdeSouzaemseutra-

tadoquinhentista(S.B.Holanda1975:185).

A tecnologia ligada à agricultura (conhecimentos botânicos

eagronômicos)continuasendoopratofortedaculturarurícola

herdada do aborígine. Acredito que esse tema assume enorme

interesse, atual e histórico. Atual, porque serve para contrastar

oacertodamilenartradiçãoindígena,suasrefinadastécnicasde

usodosolo,semdestruí-lo,comasquenestemomentoseprati-

cam,porexemplo,naAmazônia.Histórico,porqueresgataadí-

vidaqueoBrasileomundotêmparacomohabitanteaborígine

das Américas, que dele recebeu as principais plantas de que se

alimentaahumanidade.

Astécnicasagrícolasdorurícolabrasileiro,herdadasdoíndio,

continuam sendo relativamente simples. Os instrumentos usa-

dossãoomachado,omachete,aenxadaeofogo.Ascinzasdos

vegetais queimados são o único adubo. Animais de tração para

arado são praticamente desconhecidos. Na agricultura rotativa,

a terraérotada,emvezdasespéciesdeplantas.Oscultivossão

feitos,principalmente,deformavegetativa,comcortesderaízes

edehastesdetubérculos,oqueeliminavirtualmenteapossibili-

dadedefertilizaçãocruzadaearesultantehibridação.

Éigualmentesubstancialoaportedotoolmaker,doHomofaber

nativo,noaparelhamentodemeiosdetrabalhoparaodomínio

danatureza,paraoconfortoeolazer.Issosedeveàinventiva,à

admirávelhabilidademanual,aogostopelaperfeiçãoebomaca-

bamentodosartefatos,pormaistriviaisquesejam.

O principal “instrumento de trabalho” do índio, transmitido

aocaboclo,aosertanejo,aocaipira,éofogo.Oscamposdecultivo

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o118

são clareados a fogo, como vimos. O fogo está na base do cozi-

mentoeconservaçãodacarneepesca,frutos,tubérculosegrãos.

Etambémdoendurecimentodacerâmica,doaquecimentoeda

iluminação. O lume arde na casa indígena e na casa sertaneja

independentementedehaveralimentosassandooucozinhando.

Fogoapagado,casaabandonada.

Detradiçãoindígenaéousodomoquém,palavradeorigem

tupiflexionadanoverbomoquear,noadjetivomoqueado.Éum

“gradeadodevarassobrebrasasparaassarcaçaoupeixe”nade-

finição de Theodoro Sampaio. Etimologicamente significa “faz

queseque,secador,assador”(1928:269).Oalimentomoqueadoou

lentamentedefumadodurameses.Dispensaosaleogeloparaa

conservação.

a) Casa e abrigo provisório

Do indígena, o rurícola herdou, em grande parte, a matéria-

-primautilizadaparaacoberturadascasas,quandodoinícioda

colonização. A casa portuguesa dos primeiros tempos e a casa

indígenadiferem,entretanto,comodoismodosdevidadistintos

queeram.

Vejamosadescriçãoquefazdaoca–casatupinambádoséculo

XVI–ojesuítaFernãoCardim:

Moravam os índios antes da sua conversão em aldeias

em umas ocas ou casas mui compridas, de duzentos, tre-

zentosouquatrocentospalmosecinquentadelargo,pouco

maisoumenos.(...)Cadacasadestastemdoisoutrêsbura-

cossemportasnemfecho.Dentrodelasvivemlogocento

ouduzentaspessoas,cadacasalemseurancho,semreparti-

mentoalgum,emoramdumaparteeoutra,ficandogrande

largura no meio, e todos ficam como em comunidade, e

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 119

entrandonacasasevêquantonelaestá,porqueestãotodos

àvistaunsdosoutrossemrepartimentonemdivisão. (...)

Pareceacasauminfernooulabirinto,unscantam,outros

choram,outroscomem,outrosfazemfarinhaevinhos,etc...

(...)Porémétantaaconformidadeentreelesqueemtodoo

ano não há uma peleja, e, como não terem nada fechado,

nãoháfurtos(1939:271-2).

Contrastando com a habitação indígena, vivenda coletiva,

aomesmotempounidadedomésticaedetrabalho,ondeapro-

priedadeficavaaoalcancedetodose,adespeitodisso,nãohavia

furtos,asprimeirasconstruçõesportuguesasforamfeitasàprova

de roubo e, sobretudo, das flechas do gentio. Assim as descreve

GabrielSoaresdeSouza,citadoporCastroFaria(1951:45-46):

Tomada essa resoluçãosepôs em ordem paraeste edi-

fício, fazendo primeiro um cercado forte de pau a pique,

para os trabalhadores e soldados poderem estar seguros

dogentio;ecomofoiacabada,arrumouacidadedelapara

dentro,arrumando-aporboaordemcomascasascobertas

depalmaaomododogentio(...)

A técnica de taipa, também chamada pau a pique, barrea-

da, de sebe (caniços engradados, calafetados com barro batido

à mão) ou de pilão, é de origem portuguesa. A cobertura, por

outrolado,éàmaneiraecommaterialnativo.Comefeito,aca-

banaindígenaconstruídatotalmentedematerialvegetalevolui

paraocasebredetaipa,adobe,tijolo,pedraecal.Masconserva

eminúmerasregiõesdoBrasilacoberturadesapéoudepalmas

entrançadas.

NasaldeiasJurunavicoberturasdequatroáguasidênticasàs

que Castro Faria fotografou no rio Machado, em Mato Grosso,

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o120

na área rural, designada regionalmente tacaniça (cf. C. Faria

1951).Nomesmopasso,oaposentoúnico,alto,espaçoso,ven-

tilado, que poderia abrigar até 200 pessoas, se compartimenta,

dividindoaspessoas:filhosdospais,senhoresdeescravos,pro-

prietáriosdecriados.Oameríndionãoabrejanelasnascasas.A

penumbraodefendedosinsetos.Quandomuito,afastaapalha

dacoberturadotetooudasparteslateraisdascasasparadeixar

entrarumaréstiadeluz.Ajanelaéumaintroduçãoeuropeiana

América.

Comparando-seacasa indígenacomahabitaçãoruralbrasi-

leira,pode-sedizerque,tantodopontodevistadesuafuncionali-

dadecomodebelezaarquitetônica,houveumaperdadaprimeira

emrelaçãoàsegunda.ComacertodizCastroFaria(1951:48):

Asnossaspopulaçõesruraisvivemnumadependência

estreita do meio e, por conseguinte, da paisagem rural. O

rudimentarismodassuasrelaçõesecobióticasficaeviden-

ciado na sujeição à natureza circundante, o que de certo

modoconstituiumfatordediferenciação.Oúnicofatorde

uniformidade,geraleirreconhecível,éamisériaeconômi-

cadominante.

Acrescenta,maisadianta,:“Doistermosdefinemtodososnos-

sostiposdehabitaçãopopular:variedadeecológica,contingência

econômica”(idem:49).

Emtrabalhorecente,MariaHeloísaFénelonCostaeHamilton

B.Malhado(1986:27-92)elaboraramumatipologiamorfológica

daaldeiaedahabitaçãoindígenaquemostraavariedadedesuas

formas.Quantoàsaldeias,dividem-seem:1)circulares;2)retan-

gulares;3)lineares.Asprimeirasapresentamasmoradascircun-

dandoumapraçacentralemqueseencontra,emalgunscasos,a

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 121

casadoshomens.Nessacasa,bemcomonoespaçoqueacircun-

da,desenrolam-seasatividadespúblicase rituais.Nosegundo

tipo, enquadram-se as aldeias Tupinambá e de outros grupos

Tupi.Nasaldeiaslineares,ascasassesituamparalelamenteao

rio, como é o caso dos Karajá. Quanto à morfologia das casas,

dividem-naosreferidosautoresem:plantabaixacircularelípti-

ca,retangular,comcoberturaeparedescontíguaseplantabaixa

poligonal.Destaqueespecialédadoaoquechamamcasa-aldeia,

queabrigaumgrupo localnumaúnicavivendadedimensões

avantajadas, caso dos grupos exogâmicos Tukano, Mayoruna

e Yanomami. As coberturas podem ser em abóbada de berço,

comoasdascasasTupinambá;emconetruncadocomabertu-

racentralparaapenetraçãodaluzsolarnopátio(Yanomami);

coberturadeseçãoretaemogiva,aexemplodasantigascasas

Karajá,modificadasparacoberturasdequatroáguas;cobertura

deduaságuasetambémemformadecúpulaouzimbório,sem

distinção entre parede e teto (Tiriyó); e, finalmente, cobertura

cônica,comoadosMakuxi.

Emboraaconstruçãodeumacasaindígenapossalevaroito

meses–aexemplodadosíndiosAsurini–,ocupandonessata-

refa cinco ou seis homens (B. Ribeiro, 1982), ela é abandonada

ou incendiada passados cinco a dez anos, por vários motivos.

Emprimeirolugar,quandotodaaaldeiadeveserdeslocadapor

razõesecológicas:evitaraexaustãodosolo,dacaçaepesca.Em

segundo,quandoéinvadidaporbarataseoutrosinsetos.

NocasodegruposcaçadoresecoletorescomoosAmahuaca,

a mobilidade é bem maior e mais frequente. Suas casas podem

serconstruídasemtrêsdias.Eaodecidiremmudarseuestabeleci-

mento,“elesnãoenfrentamainérciacomquesedefrontariauma

sociedadequevivenumagrandealdeia,quetemcasassólidase

umaautoridadepolíticacentralizada”(Caneiro1974:16).

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o122

O apego do índio não é propriamente à casa e sim a todo o

territóriotribal.Amorfologiadacasaedaaldeiarefleteperfeita

adaptaçãoàssuasatividadeseconômicaseàestruturasocial.

Nocasodorurícola,despossuídodeterra,acasaéigualmente

provisóriaeprecária,refletindomisériaeinsegurança.Doponto

de vista sanitário, leva uma desvantagem gritante em relação à

casaindígena:nasfrestasdataipa,semreboco,sealojaobarbei-

ro,insetohemíptero,dafamíliadosreduvíldeos,transmissorda

doençadeChagas.Éconhecido,porisso,também,comobichode

parede.

Arusticidadedacasado“sitiantetradicional”–“queaabando-

nasemsaudades”–sedeve,emparte,àrotatividadedasroças.Só

assimeleconseguemanterafertilidadedosolo,quelhepermite

umníveldevidasuportável(M.I.P.deQueiroz1976:52).

Aocontráriodacasaindígenaedahabitaçãorural,oedifício

modernonãotemcaráterecológicolocalenacional.Podesituar-

-seemqualquerlugardomundo.Nãoétípico,nãoéhistórico.É

umacriaçãoautárquica.Dentrodahabitaçãooespaçosecompar-

timentaeseespecializa.Foradelaestabelece-senítidadistinção

entre“casa,unidadedoméstica,eolocaldetrabalho,unidadede

produção”(Novaes1983:6).Nesseúltimolocal,oindivíduodes-

pendeumterçodoseutempoeoutroperíodoconsiderávelpara

atingi-lo.Especializadoéigualmenteoespaçoreservadoaoculto,

aolazer,àaprendizagem.

Na sociedade indígena, sobretudo na que se verifica a estru-

tura casa-aldeia (grupos Tukano, Yanomami, Pano), uma única

unidadearquitetônicaacumulaasfunçõesacimareferidas.Nela

existem espaços definidos, porém não compartimentados: o es-

paçofemininoparaatividadesdomésticas;oespaçojuntoàspa-

redesreservadoparadormitórioelazerdecadafamílianuclear;

e o retângulo central, amplo e limpo, destinado às cerimônias

decongraçamentosocialeaosrituais.Assimavidaprofanaea

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 123

vidareligiosasedesenrolamnagrandemaloca.Naconcepçãodos

Tukano,éoúterodoclãeocosmos.Devidoaessamultiplicidade

defunções,avivendacoletivaindígenaéprimorosamentecons-

truídaeartisticamentedecorada.

Oaviltamentodamalocaamazônicapodeseraquilatadopelo

retratoqueJoséVeríssimofazda“palhoça”docaboclo:

Asuacasa–acomeçarporela–temaformasimplesda

habitaçãoprimitiva.Équasesempre,senãoinvariavelmen-

te,umparalelogramoretangular,construídageralmentede

palha,ouapenascomasparedesprincipaisdebarro,eoteto

equaisquerdivisõesinteriores,aliásraras,daquelamatéria.

(...)Erguemdochãoumcertonúmerodeesteios,semne-

nhumpreparodecarpintaria,esobreelesvãoligandocom

cipós as palmas adrede preparadas até o teto, formando

umavigaapoiadacomocumeeirasobreosdoisesteiosmais

altos.Essavigaservedeassentoaosfrechais,toscoscomo

oresto,sobreosquaisiráapalhadacobertura.Amaioria

das vezes, esta compõe-se de um único compartimento,

onde vive, na promiscuidade mais imoral, toda a família,

nãoraronumerosa.Tambémnãotemmuitasjanelas;oar

entraparcamente,apenaspelasbaixasaberturasafingirem

portas,fechadascomumaespéciedeesteiradepalha,aque

chamamjapá.Asabasdotetochegam,decostume,atéuma

aduasbraçasaquémdasparedeseformam,sustentadaspor

esteios e vigas transversais, um alpendre ou varanda cha-

madacopiar,ouemtodaaredondezaousomenteemparte

dacasa.Quandofaltaesseapêndice,ecarecemdecômodos

para os indispensáveis utensílios da vida, levantam junto

dacasaumrancholigeiramentefeito,apenascoberto,sobo

qualconstroemofornodefarinhaeoutrosempregadosnos

seusmisteres(1887:369-370).

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o124

A casa indígena, embora utilizando materiais vegetais idên-

ticos, não é igual em toda a parte. Possui fisionomia própria,

do ponto de vista arquitetônico e simbólico. Em função disso,

identificaaetnia.Éoqueocorre,deresto,comtodoouniverso

daculturamaterial,nocontextoindígena.Poroutrolado,nesse

contexto,oespaçodacasanãopodeserdesvinculadodoespaço

daaldeiaedosdemaisespaços“humanizados”:oscaminhosque

levamàroça,aorio,àsáreasdecaçaecoleta,ouseja,aoterritório

modificadopelaaçãohumana.Comtodoesseconjuntooíndio

se identifica.Nelereconheceseus lugaressagrados,nãoraroas-

sinaladosporinscriçõesrupestresouacidentesgeográficos.Isso

explicaograndeapegoàterraporpartedosgrupostribais,não

obstanteatãoapregoadamobilidadeeinstabilidade.

b) A rede de dormir

Osindígenasamericanoscultivavamoalgodão9 antesdache-

gada de Colombo. Entre dois grupos Tupo, os Juruna e Kayabi,

encontrei algodão de duas cores: branco-amanteigado e cor de

caramelo.NumestudosobretecelagemdomésticaemCandeias,

MinasGerais,LorenaGuaraciabafalade“...umavariedadedeal-

godãodefibraescura,corderapé,aquechamamalgodão‘ganga’

oualgodão‘macaco’,oqualdispensa,porsernaturalmentemar-

rom,qualquerartifíciotintorial”(1942:398).

AtéhojeastecedeirasdonortedeMinasocultivamparamar-

chetarseuslavores.Épossívelquesejaoriginalmenteindígena.

Nordenskiold (1931: 496) considera a rede uma invenção do

ameríndiodaregiãoAmazonas-Orinoco,suaáreadeconcentração.

9 As espécies conhecidas são: Gossypium barbadense, originário das Antilhas,G. hirsutum, da América Central. Outras espécies eram cultivadas no VelhoMundo(LeCointe1947: 24-25).

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 125

Nãoéencontradanasáreasandinaechaquenha,nementrealgu-

mastriboscampestresdoBrasilcentral,ondepredominavamos

gruposdasfamíliaslinguísticasjêemacrojê.Aredeeoalgodão

devemter-sepropagadoàAméricadoSulatravésdasmigrações

dosgruposdefalaKaribeTupi-Guarani(op.cit.:493).Nasuacon-

fecção são empregadas outras fibras têxteis, como o tucum, o

buriti,ocarauá.

AredequePeroVazdeCaminhaassimdenominoufoiregistra-

dapeloscronistasde1500comotermotupiini.Apalavra“rede”

adveio do tipo de trama espaçada, que lembra a rede de pescar.

HenryKostler,citadoporCâmaraCascudo(1959:34),escrevendo

em1810,éexplícitoarespeito:

Aredeégeralmentefeitadealgodão,comváriasdimen-

sõesemcoresearranjos.Asusadasnasclassesbaixassãote-

cidasemalgodão,fiadonasmanufaturasdopaís,outrassão

demalhascomváriosfios,deondeprovémonome‘rede’;

outrasaindasãoformadasdeumalongarenda,fixadaatra-

vessadamentecomintervalos.

A rede indígena (hamaca ou maqueira) mais simples e mais

comum é tecida em tear constituído de dois paus fincados no

chãoaumadistânciacorrespondenteaocomprimentoquedeve-

ráter,geralmente,1,80 m.Emtornodessasvaras,aartesã,ajudada

poroutramulher,passaaurdidura.Atramaéformadaporfios

descontínuostorcidosumsobreooutroqueenlaçamosfiosda

urdidura.Aslaçadasemtornodastravesdotearrecebemacorda

desuspensãodarede.AgravuradeHansStaden,de1557,repre-

sentaessetipoderede,omaisdifundidoentregruposindígenas

doBrasil.Entretanto,váriastribostecemredescompactasemtear

vertical.Sãodessetipoasmaqueirasdemanufaturaruralapren-

didacomoaborígine:“Osmétodosdetecelagemdetaisredessão

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o126

osmesmosdequeaindaseservemhojeastecedeirasdosarredo-

resdeSorocabaedeMatoGrosso.Utilizamtearesverticais–enão

horizontaiscomoosde“fazerpano”–etecemdebaixoparacima”

(S.B.Holanda1975:203).

CâmaraCascudo(1959:25)informaque“Depoisdafarinhade

mandioca,aredefoioprimeiroelementodeadaptação,deaco-

modaçãoedeconquistadoportuguês”.

Issosedeve,certamente,aofatodearedededormiradaptar-

-se excepcionalmente bem às características do clima tropical,

quenteeúmido;àsnecessidadesdedeslocamento,porquesetrata

de objeto facilmente transportável; de higiene, porque pode ser

lavadaearejada,ficandosuspensaacertadistânciadochão;ede

disponibilidade de espaço dentro da vivenda, porque durante o

diapodeserlevantadaouretirada,deixandotodaaáreadahabi-

taçãolivreparaosmisteresdomésticos.Éuminventoadmirável,

que satisfaz as condições de existência das comunidades que o

utilizam,porseuvalorpráticoeestético.

A respeito, vale citar o que diz, com eloquência, Câmara

Cascudo:

Aredesetornarainseparáveldoindígena,domameluco,

dosertanejocontemporâneo,andando,aoazardassecas,de

redeàscostas.Arederepresentaomobiliário,opossuído,a

parteessencial,estática,indivisíveldoseudono.Ondeiao

indígenalevavaarede.Aindahojeosertanejonordestino

obedeceaosecularpadrão.Aredefazpartedoseucorpo.É

aderradeiracoisadequesedespojadiantedamisériaabso-

luta(1959:27).

Acrescentaomesmoautor:“Aredeparadescansar,amar,dor-

mir tornou-se também indispensável como viatura. Carregava

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 127

a gente de prol nas ruas e mesmo para o interior das igrejas”

(CâmaraCascudo1959:29-30).

Ainda em nossos dias, pode-se ver, pelas trilhas do sertão,

pessoasenfermasoumuitoidosascarregadasemredes.Oíndio

nasce,viveeéenterradonarede.Oespíritodeimitaçãoevalo-

rização do alienígena contribui para o declínio do uso da rede,

emmeadosdoséculoXIX,principalmentenoSuldopaís.Sobre

oapogeueadecadênciadaredeedasredeiraspaulistasnosdá

contaS.B.deHolanda.Informaque,porvoltade1850,sórestavam

asredesdeSorocaba,outroraprósperocentrodeindústriacaseira

detecelagem.MasemCuiabá,“antigacolôniadesorocabanose

ituanos”(deItu),prosperavaamanufaturaderedes”(1975:301).

Em sua confecção era usado, de preferência, o tear indígena ao

adventício, este último tear horizontal com pedais “para tecer

panos”(idem:302).

Opreparodofiopelas redeirascuiabanasé feito também à

modaindígena:comousodefusos(ibidem:310).Otearcuiabano

éprovidodeliços(argolascorrediças)queseparamosfiospares

dosímparesparaolançamentodatrama,quetambémevocaa

técnicaindígena.Omesmoocorrecomaretençãododesenho

namemória,dequeseorgulhamas tecedeirascuiabanas (op.

cit.:313).

Em Mato Grosso, no Norte e no Nordeste, a rede continua

sendoaverdadeiracamadopovo.Noscentrosurbanos,éencon-

tradanascasasabastadaseremediadas,usadaparaasesta.Foi

cantadaemprosaeversoelouvadanostalgicamente.10Mastam-

bém enxovalhada, como responsável pela “preguiça da raça”,

“deitadaeternamenteemberçoesplêndido”;oucomo“agrande

10 Cf.AntologiapublicadacomoapêndicedaobradeCâmaraCascudo(1959:

161-237).

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o128

inimiga da civilização nordestina”. Nesse texto, publicado na

referida antologia, o autor recomenda à oligarquia nordestina

facilitar aos seus “moradores a confecção de móveis pesados”

para “enraizá-los à terra”. Termina a antiapologia da rede com

estaexplicaçãolarvar:

Onômadenoseuestadoprimitivosempreusoudarede

edeabrigosfáceisedesmontáveis:oamoràcasaeaosmó-

veis,aointerioramigoeconfortável,équetransformouos

bárbarosemcivilizados,ecriouoamoràPátria(Vicentedo

RegoMonteiroinCâmaraCascudo1959:200).

Restariadizerqueculpararedeécomoculparosofánaanedo-

tadomaridotraído.

c) Caça e pesca

Osdocumentosmaisantigos–pinturasrupestresdoPiauí–

indicam que o propulsor de dardos antecedeu o uso de arco

e flechas como arma de caça e guerra. Os índios Kariri ainda o

usavam no século XVII; os do alto Xingu, até hoje, mas apenas

emcompetiçõesdesportivas.Asarabatana–armadesopropara

afaunaarbórea–articuladacomousodosvenenospredomina

naplanícieamazônica.Oarcoeflechasé,noentanto,aarmauni-

versaldo indígena.Mataa longasdistâncias,comoextensãodo

braço,silenciosamente.Ocírculodefogoeosdisfarcesdocaçador

sãotécnicasusadasparaacaçaemcampoaberto.Damesmafor-

maosãoasfundaseboleadeiras–duasatrêsbolasamarradasa

cordas–lançadasparaimobilizaracaçapeloentrelaçamentodas

correiasnaspernasdoanimal.

Sérgio Buarque de Holanda assinala as vantagens do arco e

flecha sobre o arcabuz para as atividades de caça e guerra: “As

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 129

alterações atmosféricas, as chuvas, a umidade não chegam a

causar-lhes estorvo. Seu disparo não produz ruído, ou fogo, ou

fumaça,comquesedenuncieoatirador”(1975:71).

Em 1948, Charles Wagley surpreendeu caboclos de Gurupá,

médioAmazonas,pescandocomarcoeflechas(1957:115).

PortodooBrasilinterioranoutilizam-seatéhojeestratagemas

eciladasdesenvolvidoscomapuropelainventivaindígenapara

atraparacaçaeopeixe.Citaremosasmaiscomuns:omundéu,

aarapuca,aarataca,ofosso,olaço,opari,ojequi,ocovo,astrês

últimasparaapesca.

Nodialetocaipira,mundéué,segundoAmadeuAmaral(1920:

174), armadilha para caça a quadrúpedes. Seus sinônimos são

fojo,precipício: “construçãoqueameaçacair”,Derivademonde,

dotupi.Damesmaforma,guira-pukaque,porcorruptela,sediz

arapuca, é uma cilada para apanhar pássaros (T. Sampaio 1928:

102).Etimologicamente,guira=pássaro;puk=bater.Outrosau-

toresachamqueapalavraderivadeuru=cesto,puc=bater,no

sentidode“cestoquedesaba”.Porextensão,otermoarapucaan-

gariouosignificadodecilada,ouconstruçãomalfeitaqueameaça

ruir.Designa-secomotermoarataca,“oquecolhebatendocom

estrépito”,aarmadilhaparacaçamiúda(T.Sampaioibidem:159).

Omesmoautormencionaoutraarmadilhadecaçacomdesigna-

çãodeorigemtupi:juçana,“laçoarmadoparacolheraves”(idem:

102).Consistenumavaraenterradanochãoporumadasextre-

midades.Daoutra,vergada,pendeumfioqueprendeumaestaca

circular,comisca.Tocando-a,acaçaésuspensa.Ofosso(oufojo)

éumburaconaterradisfarçadoporramagens.

Para a pesca são empregadas armadilhas também de origem

indígena,cujosnomesderivamigualmentedotupi:arede–puçá

(depyçá),ocercado–pari(pary),ocesto–ururuejiki(T.Sampaio

op.cit.:101).

CâmaraCascudodámaisdetalhes:

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o130

Há redes pequeninas, puçá, jereré, mangote (diminuti-

vodetrasmalho),queéredeparacamarões,manejadapor

dois homens andando dentro d’água. Caçoeira de cação,

tubarão.Tarrafa, rede individual,parario, lagoa...Landuá,

parapescariaempoço,retângulodemalhascomdoispaus

laterais.Fecham-nacomoquemdobraumafolha.Jureréde

mangue,hemiesferoidal,de junco,de jererédevoador(...)

raquetetriangular.

AsarmadilhasindígenasnoBrasilsãofeitascomcipó,no

Nordeste mais acentuadamente o cipó imbé (Philodendron

sp.),juncos,varasflexíveisequeresistamaopuxãodopeixe

(1973:47).

Em monografia publicada pela primeira vez em 1895, José

Veríssimo(1970)descreveautilizaçãodessesinstrumentospelo

pescadoramazonense,queabaixoresumimos.Começaafirman-

doque: “Opescadoré,noventaenovevezesemcem,umíndio

semicivilizado, um tapuio, ou um mameluco, mestiço de índio

combranco”(idem:22).

Acanoausadanapescariaéaigarité(deyg-yara=dominaou

flutuanaágua,eité=grande),amontaria,aubá(madeira,pau).

Nopreparodocascousamaindadofogo,comooindí-

genaprimitivo,nãosóparaconsumiraporçãodemadeira

(...)comodepoisdeassimcavadoomadeiro,paraabriredar

aotroncocôncavoaformaejeitoconvenientes”(p.23).Um

companheiro,umfilhomenor(...)vaiaojurumã,istoé,sen-

tadonobancoextremodapopa,dáandamentoedireçãoà

canoa(Veríssimo1970:24).

Sobreapescadopirarucu(Arapaimagigas),omaiorpeixeda

Amazônia, escreve Veríssimo: “Do hábito do pirarucu de vir de

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 131

quandoemquandoàsuperfície,tiramelesensejoparaapescaa

arpão,amaisfrutuosaquelhefazem”(p.26).

Perseguem-noàsvezesemlagos“cobertosdegramíneasenin-

fáceas,nosquaismaiséolodo,otijuco,nalinguagemindígena”

(ibidem:30).

É mais arriscada essa pescaria, uma vez que nesses sítios se

ocultam também os jacarés e as sucurijus (Eunectes murinus).

Assim,“convocam-seereúnem-seemputirum(mutirão),emnú-

meroàsvezescrescido.Põem-seemlinhade frente,umpauna

mãoesquerda,afisgaouoarpãoprontos,nadireita...”(ibidem).

Dopirarucuseaproveita,alémdacarne,salgadaesecacomo

adobacalhau,chamadapiraem(peixeseco),asescamaseapar-

te óssea da língua, como lixas. Esta última “para reduzir a pó o

guaraná, a canela, as diferentes raízes de que as belas e faceiras

mamelucasfazemosperfumescomquesearomatizamocorpoe

asroupas”(Veríssimoop.cit.:22).

Quandoesseautoramazonenseescreviaseuensaio,emfins

doséculopassado,aindahaviamuitopeixe-boi(Manatusinuquis)

noestuáriodorioAmazonas,nosseusprincipaisafluentesela-

gos. O cetáceo – atualmente em extinção – era arpoado e dele

seextraíaacarne(semelhanteàdeporco)paraaalimentaçãoe

agorduraparaacozinhaeailuminação.Quandopescadocom

rede,tapavam-sedeantemãoassaídasdolagocomumacercaou

pari.Em1885e1893,informaVeríssimo(1970:40),exportaram-se

34toneladasdecarnedepeixe-boimoqueada,conservadaemsua

banha.

Astartarugasanfíbias,dasquaisAlexandreRodriguesFerreira

descreveu,em1768,14espécies,sãoapanhadas,emgeral,quando

chegamàmargemparacomerfolhasdeplantasribeirinhas.Em

setembro,àépocadadesova,astartarugasmigramrioacima.Na

proadepequenascanoas

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o132

umsujeito,emgeralumtapuio,dearcoeflechasprontos

namão,depé,acocoradoousentado(...)pareceàespreitade

algumacoisanorio.PortodososriosdaAmazônia,abaixo

dascachoeiras,napartedesimpedidadelas,serepete,àmes-

maépoca,estamesmacena(Veríssimo1970:42).

Ahastedaflecha,desprendidadafisgasoltadeaço(sararaca),

boia, indicando ao pescador o movimento do quelônio. A pro-

pósitodesuacaptura,escreveVeríssimo:“Dofatododesenrolar

automáticodofioeestaarmaonomedesararaca,doverbotupi-

-guaranisará,desataracorda,desprender,soltar”(op.cit.:44).

Emlagoraso,atartarugaécapturadacomrede,depoisdecer-

cadaporumtapume(pari).PertodailhadeMarajóenoestuário

doTocantins,astartarugassãopescadascomanassa.Éumcesto-

-armadilhaafunilado,feitodetimbótitica(Cissus),ondepõema

isca.Aspontasdeumcestomenor,inseridonomaior,impedema

saídadapresa(ibidem:58-59).

A nassa, também conhecida como matapi, designação pro-

veniente da língua geral, é usada na pesca artesanal em todo o

Brasil.Omesmoocorrecomopari–tapagemoucercado–feito

deumtrançadodevarasamarradasentresi,sustentadasporesta-

casfincadasnoleitodorio,lagoouigarapé,queatrapaopeixe.O

cacuri–tambémemnheengatu–éumcurraldepeixe,construí-

docomesteirasouparis.“Emtodoointerior(...),cadasítio,cada

fazenda,cadasituação,temjuntoumatapetagemouumcacuri,

fazendo-lhesumcopiosoedescansadoviveiroaliàmão”,escreve

Veríssimo(1970:80-81).

Diz mais: “Pescam também à noite, com fachos, servindo de

armasaflecha,aazagaiae,sobretudo,afisga”(p.83).

Acrescentaadiante“Nãodevemosesquecero(processodepes-

ca)daintoxicaçãoouantesnarcotizaçãodospeixes,medianteo

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 133

suconarcóticodecertosvegetais.Osquemaiscomumenteofor-

necemsão,emprimeirolugar,otimbó(Paulliniapinnata)edepois

oaçacu(Huracrepitans),otingui(Jacquinai)eocunabi(Bailleria

aspera)(op.cit.:84).

Asraízesecaulesdessasplantassãomacerados,socadosebati-

dosn’água.Tonteadosospeixes,vêmàtona,sendoapanhadospor

homens,mulheresecriançascompuçás,peneiraseàmão.

Como se vê, a influência europeia nos métodos de pesca na

Amazôniaenointeriordopaísémínima.

Quase se resume – escreve Veríssimo (1970:101) – na

transformaçãodaspontasoubicosdesuasarmasdepesca,

primitivamentedeosso,dedentesdeanimais,detaquaru-

çuaguçados,empontasdeferro.(...)Arededearrastãoea

tarrafa, nada obstante o silêncio dos autores, indubitavel-

mentevieramcomoconquistador.

Estas são, justamente, as pescarias predatórias, condenáveis

por todos os títulos, e por isso mesmo proibidas desde 1572 (S.

BuarquedeHolanda1975:83).Sabe-se,entretanto,queessesregu-

lamentosvêmsendo,desdeentão,transgredidos.Holandaadmite

queosmétodosdepescacombarragemouatravésdaintoxicação

(barbasco,trovisco,cocaecal)jáerampraticadospelosportugue-

ses(1975:82-83).Assevera,todavia,que“aquasetotalidadedoster-

mosquenointeriordoBrasildesignamarmadilhasparaacaça–e

tambémparaapesca–sãodeascendênciaindígena”(op.cit.:184).

Wagley,quetratoudotemanumacomunidadeamazônica,na

décadade1950,afirma:

EmboraohabitantemodernodoValecacecomumaes-

pingardaouumacarabinadecalibre44epesquecomum

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o134

anzol de ferro ou uma rede de tipo europeu, exerce essas

atividadescomoconhecimentodafaunalocalquelhefoi

transmitidopelaherançaculturalindígena(1957:111).

Um registro mais recente de métodos de pesca indígena no

Amazonas, ou seja, nas proximidades de Itacoatiara, é devido a

NigelSmith(1979).Dentreoutrosmétodosdetradiçãoaborígine,

oautormencionaoarcoeflechasqueospescadorescompramde

“alguns especialistas do interior” (1979: 57). São empregados na

capturadetucunaré,curimatãs,carauaçuseoutrasseteespécies

em“lagosdeáguasdecantadas,matasdevárzeaecanais”(ibidem).

Smithesclareceque“Atecnologiaédefácilacessoedesimples

manutenção,podendoométodoserutilizadoemconjuntocom

malhadeiras,espinhéisepescadecaniço”(op.cit.:58).

d) Culinária indígena na dieta popular

A mandioca continua mantendo, em proporção maior que

qualquer outro alimento, a população brasileira. A respeito diz

CâmaraCascudo:

Três quartas partes do povo do Brasil consomem dia-

riamente farinha de mandioca. (...) Sem essa farinha não

vivem milhões de sertanejos, resistindo às estiagens e ao

trabalhoexaustivo,povoandoaAmazônia,derramando-se

peloBrasilcentralemeridional,secos,enxutos,infatigáveis,

maravilhosos.EuclidesdaCunhabatizou-os‘rochavivada

nacionalidade’.Quemaguentaa‘rochaviva’éafarinhade

mandioca,amaldiçoadapelosnutricionistas(1973:90-91).

O processamento da mandioca envolve uma tecnologia

complexa, que consome muito tempo e exige o preparo de

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 135

instrumentos adequados. Estes foram transmitidos pelo índio

ao rurícola brasileiro. Num estudo sobre Alimentos preparados à

basedemandioca,M.Y.Monteiroenumeraostermosprópriosde

algunsdessesutensílios:

Assim,aoinvésdepeneiraempregaremosurupema;invés

depote,camotim;nãousareiuioca(casadefarinha)porser

menospopular,masfolgareideusaroutrosverbetescomo

uiquicé (ralo),11uiá (cochoparafermentaçãodebebidasou

depósitodamassadamandioca), caitetuparaoraladorde

dentesdeaço,roda,quicé (facacurtaderasparmandioca),

iapuna (forno grande), itacuruca (fogão de três pedras), ou

sapo-de-pedraetc.(1963:54).

Osvocábulosreferidossãodeorigemtupi,oumelhor,dalín-

guageral.Alémdesses,cabecitaragrandeinvençãoindígenaque

éotipiti.Éumtubotrançadodetalosdopecíolodafolhadepal-

meiraou,maiscomumente,dahastedemarantáceas,noqualse

introduzapolparaladadamandiocabravaafimde,estirando-o,

eliminaroveneno(ácidoprússicoouhidrociânico).

“Nofabricodemandioca(...)oúnicoprogressosensívelintro-

duzidofoioempregodaprensadelagaraoladodotipitidepa-

lha”,escreveS.B.Holanda(1975:205).Outrosutensíliosligadosao

complexodamandiocacontinuamemvoganascasasdosroceiros

detodoopaís:atalhaparaágua(ygaçaba),oalguidar,aspanelas

(nhaem),otachodecerâmicaparatorrarafarinha.EmOTupina

geografianacional,TheodoroSampaiocomentaque: “Muitossão

osnomesdelocalidades,noBrasil,querecordamosutensíliose

11 “Ralo rústico de madeira incrustado de fragmentos de quartzo” de origemindígena,segundoMonteiro(1963: 53).Oautoracrescentaque“osralosacio-nadosamotorelétricotêmpoucapenetração”devidoàausênciadeenergiaelétricanointeriordopaís(1963: 54).

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o136

objetosdeusodomésticoentreosselvagens:Moquém,emGoiás;

Camucim no Ceará; Itanhaém, alguidar de pedra ou tacho, em S.

Paulo,sãoexemplosassaznotórios”(T.Sampaio1928:108).

A importância da mandioca na alimentação no século XVI

podeseraquilatadaporeste trechodeGabrielSoaresdeSouza,

citadoporMonteiro(1963:39):

Destafarinhadeguerra12usamosportuguesesquenão

têmroças,eosqueestãoforadelasnacidade,comquesus-

tentamseuscriadoseescravos,enosengenhosseprovêm

delaparasustentaremagenteemtermodenecessidade,e

osnavios,quevêmdoBrasilparaestesreinos,nãotêmou-

troremédiodematalotagem,parasesustentaragenteaté

Portugal,senãoodafarinhadeguerra;eumalqueiredelada

medidadaBahia,quetemdoisdePortugal,sedáderegraa

cadahomemparaummês,aqualfarinhadeguerraémuito

sadiaedesenfastiada,emolhadanocaldodacarneoudo

peixeficabrandaetãosaborosacomocuscuz.

Damandiocaamargaoubravaextraem-sebebidas,fermenta-

das ou não, beijus e farinhas que oferecem uma multiplicidade

depratos.M.YpirangaMonteiro(1963:55-75)descreve149recei-

tasdebebidas,pratos,beijus,vinhos,angus,farinhas,moquecas,

paçocas,molhos(tucupi,quinhapira),bolos,bolinhos,biscoitos,

broas, croquetes, farofas, geleias, mingaus, pudins, purê, roscas,

sequilhosetc.

Vejamosalguns.Afarinhademandiocamisturadaàfarinha

depeixebemseco(piracuí),socadosnopilão,éofarneldovia-

jante.Durameses.Misturadaafarinhaaocaldodepeixefaz-se

o pirão, iguaria conhecida como peixe à brasileira. Da tapioca

12 Éafarinhamaisgrossa,queresistemaistempoàdeterioração.

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 137

(typy-oca=osedimento,oresíduodosumodamandioca)sãofei-

toscremes,papas,bolos,biscoitos.Opratonacionalbrasileiro,o

feijão com arroz, não dispensa o acompanhamento da farinha,

sejaaonatural,sejaemformadefarofa,oumisturadaaofeijão

paraopreparodotutu.Orecheiodeavesecarnestambémsefaz

comfarofa,temperadadediversasmaneiras.Quantoàfeijoada,

“éumasoluçãoeuropeiaelaboradanoBrasil.Técnicaportuguesa

comomaterialbrasileiro”,ensinaMestreCâmaraCascudo(1968:

108). Planta também indígena, como vimos anteriormente, o

feijão(cumaná)popularizou-seentreosíndioscomavindados

portugueses.

Domilho,aciênciadomésticaensinaafazerváriasmodalida-

desdepratos,quesatisfazemaopaladarmaisexigente:farinhas,

bolos,broas,sopas,pães,cremes,canjicas,pamonhas,cuscuzes.A

etimologiarevelasuaorigem:

Com o milho preparavam a canjica (acanjic), grão co-

zido;afarinha,abatiuy,apamunaoupamonha;pipocaquer

dizer epiderme estalada... À carne ou peixe pilado e mistu-

radocomfarinhadavamonomedepoçoka,quequerdizer

piladoàmãoouesmigalhadoàmão.(...)Ocauimeraoseu

vinhomaisestimadoefeitodesucodocaju,dondelhevem

onome:acayú-y(T.Sampaio1928:107).

PratotradicionaldoParáéotacacá.Compõe-se“degomade

tapioca,molhodetucupi,jambu,camarãoseco,molhodepimen-

tadecheiro,sal”(Menezes1977:69).Etambémopatonotucupi,

“tipicamenteamazônico(...)”,masqueadmiteapresençada“co-

zinhaindígenaeafricana”(ibidem:64).

Acozinhabaiana,ouafro-brasileira,incorporouingredientes

indígenas taiscomooamendoim,dequese fazpédemoleque;

acastanha-de-caju,indispensávelnovatapá;ocuscuzdetapioca

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o138

inchadaedemilhoverdecomleitedecoco;pamonhasdemilho

edecarimã,canjicasdemilho;beijucommanteigaequeijo,ai-

pimcozido,batata-docecozidaparaocafédamanhã.E,ainda,o

bobódecamarãocommacaxeira,leitedecocoeazeitededendê,

o doboró “feito com milho pilado (chamado munguzá) cebola,

camarãoseco,azeitededendê”(Viana1977:43).

Milhoemandiocaentramtambémnacomidagoiana:coste-

linhadeporcocommandioca(entrecosto),mandiocapicadinha

(quibege), mandioca frita com queijo, pamonha frita, assada,

curau,canjicada(canjicacomamendoim).Etambémnaculinária

paulista(viradodefeijãocomfarinhademilhooudemandioca).

Opequi(Caryocarcoriaceum)écomponentedadietaalimen-

tardaspopulaçõespobres(etambémdasremediadas)deGoiás,

Minas,Maranhão,NordesteeCentro-oestedoBrasil,aotempoda

safra.Éofrutoprediletodaspopulaçõesindígenasdocerrado,do

Brasilcentral,dostabuleirosechapadasdoNordeste.Apolpaea

amêndoasãomuitonutritivas,decujoazeitesãofeitosremédios

caseiros.Opratomaisconhecidoéoarrozdepequi,eabebida,o

licordepequi.

O umbu (Spondia tuberosa) produz um fruto de polpa suma-

renta agridoce de que se faz no sertão nordestino a umbuzada,

adicionando ao sumo da fruta leite quente e açúcar mascavo.

Cada umbuzeiro pode produzir duas a três centenas de umbus.

Da raiz, pouco penetrante, nascem tubérculos coletores d’água,

dotamanhodemelancias,dequesesocorremohomemeogado

nasgrandesestiagens.Dessaqualidadelhevemonome:y-mb-u=

árvorequedádebeber,emlínguageral.Éumadasplantasaque

recorreonordestino–“acomidabraba,orecursododesespero”–

nascalamidadesdaseca(CâmaraCascudo1968:451-452).

Osviajantes-naturalistasdoséculoXIX(VonMartius,Wallace,

Bates,Saint-Hilaire)registraramoconsumodeformigastanajuras,

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 139

portodasasprovínciasdopaís,vendidasfritas,semoabdômen,nomercadodeSãoPaulo, segundoSaint-Hilaire.Quantoàs lar-vas,escreveCâmaraCascudo:

As larvas de certas palmeiras foram, não alimentos re-gulares,masgulodicesfavoritasemgrandeáreadoBrasil,deMinasGeraiseS.PauloaoPará-Amazonas,consumidassemoposiçãoemesmofornecendorecursosculináriosparaportuguesesebrasileirosdealgumaabastânciaeconômica(1968:20).

Vimos, na primeira parte deste estudo, a importância quetêmlarvaseinsetosnadietaindígena.Sãoconsumidoscompi-mentabrasileira(Capsicumspp.)queavivaosabordecadapratoe contribui para a sua conservação. Entretanto, a influência daculináriaafricanamodificounãosóacozinhaportuguesa,comoenriqueceu a indígena, tornando ambas mais saborosas. Ela foimaisintensanaBahiaenoNordeste,paraondeafluíramnegrosdeprocedênciasudanesa.

Comoemtudoomais,oportuguêsestavaemmelhorescon-diçõesparaimporseudomínio.Issoocorreutambémnoterrenoculinário.TrouxeespeciariasdoOriente,temperosdaEuropaedaÁfrica.Suacontribuiçãoseinferepelosnomesdados

àculinária,à faunaterrestre,marítima,fluviale lacustre,àflora utilizável, em larga percentagem, aos utensílios dacozinha,àsprovisões(farinha,milho,feijão,arroz),àstéc-nicas(assado,cozido,guisado,refogado,grelhado,pilado),à maioria decisiva dos condimentos vegetais (CâmaraCascudo1968:205).

Para encerrar este capítulo, resta falar de algumas bebidasindígenas de largo consumo pelas populações rurais e urbanas

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o140

do Brasil e até de outros países. Já nos referimos ao refresco do

açaí. É tão apreciado no Pará que tornou provérbio o dito po-

pular: “Chegou ao Pará, parou; tomou açaí, ficou.” As bebidas

indígenas fermentadas não parecem ter merecido igual apreço.

Deu-sepreferênciaàsdestiladas.Bebidarefrescanteeenergética

éochibédaAmazônia,chamadojacubanorestodoBrasil:água

comfarinhadeixadatufar,àsvezestemperadacomalgumsuco

defruta.Estimulantenotável,tônicoereconstituinteéoguaraná

(Paullinia cupana). Cultivado pelos índios Mawé, do Pará, é hoje

amplamenteconsumido.Oguaranáparaocomércioépreparado

em bastões misturado com cacau ou mandioca e ralado com a

línguadepirarucuparareduzi-loapó.

A erva-mate (Ilex paraguaiensis), cujas propriedades tônicas

ealimentíciassãouniversalmentereconhecidas,foiaprincípio

cognominada“ervadodiabo”pelosjesuítas,porquepossuidora,

segundoeles,depropriedadesafrodisíacasquelevavamaodes-

respeitoàsleisdeDeus.Chamadacaa,pelosíndiosGuarani,em

cujo território (Uruguai, Brasil, Paraguai, Argentina) medrava

abundantemente,erausadaeminfusãodasfolhascontraadiar-

reiae,comoemplastro,contraoutrosmales(Lessa1953:369).No

séculoXVII,essabebidasedifundiuportodooestuáriodosrios

daPrata,ParaguaieUruguai,porobradosjesuítasdasreduções

guaraníticas que passaram à história como República Guarani

(1610/1768).Aexportaçãodaerva-matetornou-seumdosnegó-

ciosmaisrendososdosinacianosedos“encomendados”,alcan-

çandoPotosí,naBolívia,eoChile.Osjesuítaspassaramapreferi-

-laàsbebidasdestiladasaqueosíndios,sobsuatutela,sehaviam

afeiçoado.

Finalmente,osmissionários-botânicoslograramdomesticá-la,

e,dessaforma,plantaçõesdeerva-matecobriramimensoscampos

deSetePovosaGuaíra.Desenvolveramtambémnovamaneirade

prepararaerva,naformadeumpógrosso(caamini)quepassou

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 141

avalermaisqueaervacomum.OsencomenderosdeAssunçãoe

BuenosAires,quenãoconseguiamdescobrirosegredodospadres

paraoplantiodaerva,proibiram-nosdeexportá-la.

Em1638,ainvasãodasreduçõesjesuíticaspelosbandeirantes

fezcomqueaerva-matefosseintroduzidaemS.Vicente.Passou-

-se a explorar os ervais nativos do Paraná, de Santa Catarina e,

mais tarde, do sul de Mato Grosso. A classificação botânica e a

denominação científica da planta se devem ao naturalista fran-

cês,AugusteSaint-Hilaire,que,noiníciodoséculoXIX,percorreu

aárea.Suaimportânciaeconômicacrescia,e,emfinsdoséculo

passado, a erva-mate nativa era o segundo produto na lista das

exportaçõesdoBrasil,destinadaàsnaçõesdoriodaPrata(Lessa

1953:379).

3. Medicina popular e magia. Língua. Arte

Introdução

Nestecapítulotratareideaspectosideológicosdaculturain-

dígenaedeseusreflexosnaculturapopular.Nascrençaseprá-

ticas mágico-religiosas populares, apesar da preponderância da

religiãocatólica,encontram-sevestígiosdainfluênciaindígena,

quesãoaquiabreviadamenteexpostos.Convémacentuarque,ao

contráriodabeatitudecristã,quepregaahumildadeeoconfor-

mismo, as crenças e os heróis míticos do autóctone reforçam a

etnicidade, o orgulho tribal e, em consequência, a resistência a

todasasformasdeopressãoétnicaeclassista.

Nãoobstanteseremaspopulaçõesdeorigemindígena,africa-

naemestiçamajoritárias,prevaleceram,comoseacentuouvárias

vezes,asinstituições,alíngua,oscostumeseosmecanismosde

ordenação socioeconômica do dominador. Por isso, no forjar o

caráternacionalbrasileiro,ofatorétnico–autóctone,africanoou

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o142

mestiço – influiu muito pouco. Os contingentes escravizados e

subjugados nada puderam fazer para alterar a ordenação social

aseufavor.Elaerapraticadaemnomedeumacivilizaçãocom

incontestávelsuperioridadetecnológicaemrelaçãoaospovostri-

baisdaAméricaedaÁfrica,semqueseusfrutoseumaautêntica

justiçasocialatingissemamassadapopulação.

Adivisãodotrabalho,segundoaqualtodasastarefasproduti-

vasrecaíamsobreosombrosdoscontingentesdominados;adis-

tribuiçãodariqueza,queobrigavaoescravo,ocolono,otrabalha-

dorbraçalacumprirsuasnecessidadesdeconsumoaoslimitesda

subsistência;omonopóliodosaber,queimpediuaescolarização

deamplascamadaspopulares;amiopiadaclassedominanteque

geriuosdestinosdanaçãounicamenteemproveitopróprio;tudo

issocontribuiuparaatrofiaroorganismosociale depauperar a

criatividadedopovo.

Analisando algumas dessas “funções morais”, Capistrano de

Abreu,aoreferir-seàscrençasreligiosas,escreve:“Porestesmoti-

vos,areligiãodasclassesinferioresépurofetichismo;areligião

dasclassessuperioresépuraconvenção”(1976b:21).

Alémdeumabrevediscussãosobreareligiosidadeindígenae

popular,inclui-senestecapítuloumtextosobrealínguageral(ou

nheengatu), falada em todo o Brasil nos três primeiros séculos,

atéfinsdoséculoXIXnaAmazônia,e,emnossosdias,poralguns

setoresdapopulaçãocabocladoaltorioNegro.Outrotextoversa

sobre arte indígena e arte popular, que finalmente começam a

ocuparespaçonaculturanacionaleinspiramhojeasartesplásti-

cas,aliteraturaeamúsica.

a) Rezas e mezinhas

NumensaiobibliográficosobreamedicinapopularnoBrasil,

Marcos de Souza Queiroz (1980a) divide os respectivos estudos

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 143

segundo as seguintes aproximações ao tema: 1) as abordagens

“folcloristas”, que se restringem a um “inventário em forma de

dicionário,absolutamentedespojadodequalquerintençãoexpli-

cativa”;2)osestudosde“representantesdamedicinaoficialsobre

as terapêuticas populares”; 3) os trabalhos de cientistas sociais

realizados“sobumcertocontroledeumacomunidadecientífica”

(Queiroz1980a:241).

O autor acentua a carga de preconceitos e de etnocentrismo

emalgumadessasobras.Nelasédadamaiorênfaseaoexotismo.

O curandeiro e o rezador são tratados como “gente perniciosa”,

atrasadaeobscurantista,quepraticaumamedicinailegal,aten-

tatória à vida humana. A expansão desse tipo de terapêutica

nasperiferiasdascidades,entreasclassesmenosfavorecidasda

população e mesmo entre as camadas médias urbanas, se deve,

segundoesseraciocínio,àsmigraçõesinternas.

Paraosautoresfolcloristas,amedicinarústicabrasileiraseria

uma sobrevivência das artes de curar indígena, negra e ibérica,

queteriamsemescladosincreticamente,cabendoaopesquisador

encontrarasorigensdecadauma,ouseja,dosrespectivostraços

culturais.

Segundoessesautores,amedicinapopularteriaaspectosreli-

giosos(benzeduras,orações,rezas),mágicos(usodeamuletos)e

empíricos,queseriamostratamentosatravésdafitoterapia(be-

beragem,abluçõesetc.).Amaiorpartedessesestudosocupa-seda

descriçãodessaspráticas,buscandoencontraremcadaumadelas,

comodissemos,vestígiosdainfluênciadasmatrizesformadoras

danacionalidadebrasileira(Queiroz1980a:247).

Osprofissionaisdamedicinaqueestudaramessesmesmosmé-

todosdecuraprocurarammostrarquepartedelesnãotinhavalor

científico,masmeramentemágicoesimbólico.Aoutraparte,po-

rém,qualseja,ousodeervasealimentosselecionados,resultava

àsvezeseficientenotratamentodedeterminadasmoléstias.

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o144

Oterceirogrupo,finalmente,procurasepararaspectosreligio-

sosdaspráticascomconteúdomágico,eambosdosaspectosem-

píricos. Acentua a prevalência de hábitos alimentares baseados

na classificação de “quente” e “frio”, “forte” e “fraco”, “reimoso”

e “descarregado”.A lógicadessaclassificaçãonão foisuficiente-

menteestudadaemnossomeio,segundoQueiroz(1980a:249).

OpróprioQueirozestudouumacomunidadecaiçaranolitoral

paulista,aaldeiadeIcapara,constatandoqueosseushabitantes

acreditamproviremalgumasdoenças“desentimentosnegativos

oriundosdopróprioindivíduo(inveja,vontadeinsatisfeita,susto)

edeoutros indivíduos (inveja, mau-olhado, quebranto, feitiço)”

(1980b:131)

Classificação semelhante foi feita por Napoleão Figueiredo

(1979)quantoàscausasdaincidênciademoléstiasemBelémdo

ParáeporHeraldoMaués(1977)nointeriordomesmoestado.Ou

seja,basicamente,ascausasdasdoençaspoderiamsernaturaise

nãonaturais.

Entreessasúltimas,Queirozapontaascausadasporquebranto,

mau-olhado,feitiçariaeoutrossentimentosnegativos.Enquanto

o quebranto (curado com benzeduras) provém do “excesso de

amor”oude“amorcaduco”noâmbitofamiliar,o“mau-olhado”

e a “feitiçaria” se explicam pela ação de um agente externo ao

estreitocírculofamiliar.Osdoisprimeirosmalesincidemprinci-

palmentenascrianças.Oúltimo,empessoasadultas.Sãocurados

comrezas,simpatias,ouseja,gestos,comportamentosritualiza-

dos,“passesparafecharocorpo”,ervasmedicinais,banhosere-

médiosdefarmácia,deusocomum.

ParaoshabitantesdeIcapara,omalcausadoporessaspráticas

ouaçõesnãopodesercuradopelamedicinacomum,mas“pela

mesmaforçaqueoengendrou,ouseja,pormeiodeumcontra-

feitiçoaprendidoemlivro,oupormeiodosserviçosoferecidos

peloscurandeirosespiritistas”(Queiroz1980b:140).

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 145

OautorafirmaqueapopulaçãodeIcaparageralmenterecorre

aessesúltimos.Ofeitiço,nessecontexto,étambémresponsável

poracidentes,máfortuna,distúrbiospsicológicosouproblemas

deordemsocial.

O “curandeiro espiritista” não convive com a comunidade

comooxamãnatriboindígenaounaaldeiaafricana.Entretanto,

tememcomumcomeleaatribuiçãodeumpoderdecuraromal

etambémdecausá-lo.E,ainda,ofatodesóserconsultadoquando

esgotadostodososrecursosdamedicinatradicionalqueacomu-

nidadedomina.

AlceuMaynardAraújo(1961),numalentadotrabalhoemque

expõeosresultadosdeumapesquisasobremedicinarústicarea-

lizadanumalocalidadealagoanaàsmargensdorioSãoFrancisco,

define-acomo“oconjuntodetécnicas,defórmulas,deremédios,

depráticas,degestosdequeomoradordaregiãoestudadalança

mãoparaorestabelecimentodesuasaúdeouprevençãodedoen-

ças”(Araújo1961:57).

Oautorencontraentresuaspráticasotoréindígena(equipara-

doàpajelança,nocasodaAmazônia)eocandombléafro-brasilei-

ro.Araújoqualifica,comopráticamágica,oprimeiroe“religiosa”,

osegundo(op.cit.:56).Entreaspráticasdamedicinamágicarela-

ciona:benzedura,simpatia,profilaxiamágica,toré(adivinhação,

defumação, uso de ervas) e catolicismo de folk. As da medicina

designada como religiosa incluem o candomblé (adivinhação

simbólica, procura da divindade ofendida para homenageá-la e

terapêutica ritual). Na medicina empírica são constatadas pelo

mesmoautorafitoterapia,dieta,balneoterapia,sangriaepirótica

(Araújo 1961: 58-59). Quanto à fitoterapia, considera-a em parte

herançaindígena,umavezqueanomenclaturadasplantaspro-

vém,emsuamaioria,desuafarmacopeia(op.cit.:141).

Napajelança–fenômenotalvezconcentradonaAmazônia–é

quesefazsentircommaisforçaainfluênciaindígena.Opajénão

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o146

éapenasobenzedor.Émaisqueisso.Adivinhaospensamentos,

osacontecimentos,previne-oseoscombate.Osprocessosdecura

dopajéaproximam-sedoxamanismotupi:apardaintroduçãoda

cachaça,registra-seousodocigarro,domaracá,derezas–“ora-

ções católicas que funcionamcomofórmulasmágicas” (Galvão

1976:98).Opajécabocloexorciza–comooameríndio–osseus

sobrenaturaisfamiliares:espíritosdaágua,chamadoscompanhei-

rosdofundo.Umobjetomalignointroduzidonocorpodopaciente

porumsobrenaturalouumfeiticeiroéocausadordadoençae

porissodeveserextraído.

Ospajéssãotambémosúnicoshabilitadosacurarpanemaou

o assombrado de bicho (ver adiante). Às práticas mágicas acima

referidas, o pajé associa, contudo, conhecimentos empíricos de

ervasqueaplicanasuaaçãocurativa.

Tanto no terreno da fitoterapia, do remédio caseiro, como

no dos procedimentos mágicos e rituais sobressai a influência

indígena. Vimos que a farmacopeia dos índios Tiriyó oferece

quantidade considerável de ervas, raízes e cascas usadas como

beberagens,banhosoudefumaçõesparaacuradeinúmerasen-

fermidades.Essasplantasououtrassemelhantessãovendidasnas

feirasemercadosdacidadedeBelém.Figueiredo(1979:28-66)fez

olevantamentode177plantascurativas(puçangas,cujasamos-

trasforamrecolhidasaoerváriodaUniversidadeFederaldoPará),

receitadasparaasdoenças“docorpo”edo“espírito”, fabricadas

jáemlinhaindustrialeàvendanosmercadosefeirasdeBelém.

Alémdaservas,foramincorporadosinsetosàmedicinarústica

devidoàspropriedadescurativasousimplesmentemágicasque

lhes são atribuídas. Do exaustivo levantamento feito por Karel

LenkoeNelsonPapavero(1979),selecioneialgunsexemplosnos

quaisémencionadaainfluênciaindígena.

Segundo o Padre Alcionílio Bruzzi – citado por Lenko &

Papavero (1979: 80) – os índios Tukano empregam as cinzas da

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 147

casadocupim(térmita)paracurarferidas.Osíndiosalegamque

“...domesmomodocomooscupinsrefazemperfeitamenteoseu

ninho,quandorebentado,ascinzasdoninhooperamomesmo

resultadonasferidashumanas”.Agregue-seque,deacordocom

Lenko & Papavero, em várias regiões do Brasil, a população ru-

ral utiliza o “chá do cupim” ou o “chá dos túneis pretos que se

encontramdentrodoscupinzeiros”paracurardoençasdasvias

respiratórias,hemorragias,mordidadecachorro,bócioeoutros

males.NaÁfrica,omesmoremédioéempregadocontrapicadas

de cobras e escorpiões, bem como para fins gastronômicos. No

nossopaís,sãoapreciadasespecialmenteasfêmeasovadas,cujo

valorcalóricofoiavaliadoem560por100gramascomumapro-

porçãode36%deproteína(op.cit.:91-94).

Asvespasoucabas(vocábulotupi-guarani)oumarimbondos

(termo africano) são familiares aos etnólogos que estudam os

gruposdotroncolinguísticojê.Éque,nosritosdepassagem,os

adolescentessãosubmetidosàpicadadeenxamesdemarimbon-

dosparainfundir-lhescoragem,resistênciaàdoreatitudesguer-

reiras.EntreosKayapó,omarimbondo-caçador,depoisdeassado,

trituradoemisturadoaourucu,éesfregadonofocinhoecorpo

docachorroparaapurar-lheofaro.Amesmapráticaéregistrada

nointeriordeSãoPauloeMinasGerais.NoRioGrandedoNorte,

esseinsetoéempregadoparaoutrosfins:“colocadonacomidade

crianças ‘desconfiadas’, isto é, atacadas de lombrigas” (Lenko &

Papavero1979:196). Vários grupos indígenas, por outro lado, se

alimentamdomeledaslarvasdasvespasdogêneroBachygastra

(idem: 173), enquanto os sertanejos e caboclos recomendam o

ninho do marimbondo do gênero Trypoxylon (conhecido como

minguita),preparadodeváriasformas,paraacuradeinúmeras

doençasetambémcomoafrodisíaco.

InsetosdafamíliadasMutillidae,conhecidoscomoformigas-

-feiticeiras, são também empregados pelo homem do interior

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o148

na magia amorosa e, ainda, na cura do alcoolismo, da bronqui-

te etc. Comparecem também no folclore dos Tapirapé, Paresi e

Nambikuara(ibidem:216-219).

Éconhecidaasuperstiçãopopulardequeaformiga(ouoácido

fórmicoquelibera)fazbemàvista.Entrealgumastribosatribui-

-se valor curativo à picada de formigas, crença partilhada pelos

caiçarasdeSãoPaulo(Lenko&Papavero1979:239-40).

Asaúva,tanajuraouiçá(dotupi-guarani)(Attasp.),cujoabdô-

menovadodafêmeaeratidocomoiguariapelosantigospaulis-

tas,ficouigualmentecélebrecomoflagelo,conformeoaforisma

divulgado por Auguste Saint-Hilaire: “ou o Brasil acaba com a

saúva,ouasaúvaacabacomoBrasil”.Alémdepetisco,asaúvaé

empregadacontra“doençasdopeito”(tuberculose),doresdegar-

gantaereumatismo.InformamLenko&Papaveroqueumafirma

americana“enlataevendeformigasfritasemóleocomestívele

recobertasdechocolate”,provindasdaColômbia,comoumaes-

péciede“caviaramericano”(op.cit.:283).

Outroempregocuriosodasaúvaéocirúrgico,istoé,parasutu-

rarferidasabertassemdeixarcicatrizes.Éreportadoentreíndios,

hindus e outros povos. “Fazem os insetos morder as bordas (de

umaferida)eentãoretiramotóraxeoabdômen,deixandoape-

nasacabeça”(Lenko&Papavero1979:286-287).

Omeleaceradeabelhas,a luzdovaga-lume,acarapaçado

besouro,astransparenteseiridescentesasasdasmariposasebor-

boletassãoaindamotivospoéticosdocancioneiroedofabulário

de índios e rurícolas, como magistralmente registram Lenko &

Papavero.

A persistência dessas crenças e práticas médicas se explica,

por um lado, por responderem a uma tradição pré-científica. E,

poroutrolado,porquesãoefetivamenteeficazesecumpremuma

função social de controle do incontrolável. Isso ocorre no que

diz respeito tanto ao receituário como aos hábitos alimentares,

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 149

emqueosdoentessãoinstadosaevitaralimentos“reimosos”ou

quentes,cujalógicaaindanãofoidevidamenteestudada.

Portudoisso,damedicinapopularpode-sedizeroqueMaria

IsauraPereiradeQueirozatribuiaofatofolclóricodeummodo

geral:

Muito embora sua origem se perca no passado, o fato

folclórico permanece vivo, na medida em que homens e

mulherescontinuamaexercê-loemsuavidacotidiana,na

medidaemquedesempenhaumafunçãodentrodosgrupos

demédiaepequenaenvergadura,dentrodosquaissurgiue

continuaasurgir(1976:125-126).

Acrescentaque“fatosfolclóricos”surgemtambémemsocieda-

desaltamenteindustrializadas,umavezqueofolcloreéa“ciência

da‘criatividadecoletiva’,nãodevendoseuestudorestringir-seàs

sociedadestradicionais”(Queiroz1976:134-135).

Namedidaemqueadoençaedoentessãovistoscomocatego-

riassociais,cadasociedadelhesatribuidiagnósticoserepresenta-

çõespróprias.Oconjuntosdascrençasepráticasligadasàdoença

eaoutrosfatoresincontroláveisrevigoraosvalorestradicionais

da comunidade, contribuindo para reforçar a coesão e a ordem

social.Ocontroledefatoresanômicos–comosãoadoença,oazar

e o infortúnio – apresenta, nesse sentido, importância política

comoválvuladeescapeparaprevenirconflitosetensões.

Afunçãodoscuradoresnãoésomenteprotegerodoente,mas

todaacomunidade,istoé,resguardá-lacontraforçasimponderá-

veisqueaameaçam.Emmuitoscasos,os“remédios”sãosimples

sugestõesousímbolosqueincutemconfiançaderecuperaçãoao

doenteeàsociedade.Essarelaçãodecausaeefeitoéquepropicia

a cura. Nesse sentido, a medicina popular se aproxima do que

conhecemoscomo“ciênciamédica”,emborasesituenopolodo

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o150

folclórico,entendidocomo“espontâneo,vulgar,anônimoecole-

tivo”(M.I.PereiradeQueiroz1976:125).

b) Crenças e assombrações

AAmazônia,oslongínquossertõesdoBrasilcentral,oNordeste

sãoaindahojerepositóriosdecrençasepráticasindígenasincor-

poradasaofolclorenacional,naformadetradiçãooral.Entreos

duendeseassombraçõesmaiscorrentes–quenaconcepçãodo

índiocomonadocaboclohabitamofundodosriosouorecôn-

ditodafloresta–avultamosbotos,acobra-grande,oscaaporas,

os curupiras, os anhangas e vários outros. Amalgamadas com

lendas,fábulasemitostransplantadosdaIbériaedaÁfrica,essas

crençascoexistemcomareligiãocatólica,ocultodossantos,o

respeitoeadevoçãoaDeus.“Opajééumbomcatólico”,escreve

GalvãoemSantosevisagens; “elenãomisturasuaspráticascom

aquelasdaIgreja.A‘pajelança’eocultodossantossãodistintose

servemasituaçõesdiferentes”(1976:5).

Observa Galvão que a religiosidade no vale amazônico não

assumeacaracterísticade“sincretismo”,comooscultosafro-bra-

sileiros de outras regiões do Brasil (ibidem). “Os fenômenos que

escapamàalçadadossantos”–aosquaissãoatribuídosadefesae

obem-estardacomunidade–taiscomo“apanema,o‘assombra-

dodebicho’eopodermalignodosbotos”(queincidemsobreo

indivíduo)pertencemàórbitadepoderdospajés.Nestecapítulo,

serádadaênfaseapenasàquelesduendesecrençasque,aparente-

mente, têm uma função ecológica, de conservação da natureza.

Provêm,aoquetudoindica,dofabuláriotupi,ouaomenosforam

difundidosatravésdesseveículodeuniformizaçãodecompreen-

sõescomuns,quefoialínguageral.

Se na literatura oral portuguesa os animais tinham inteli-

gência,sagacidadeeeramdotadosdefala,nasfábulasindígenas

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 151

aparecemcomodoadoresdaculturae,nessaqualidade,sãores-

peitadosetemidos.Essapareceseralógicaeamoraldostemas

ligados aos “donos dos animais”, ou “mães dos bichos”, embora

elestenhamsidoconsideradosporváriosautorescomosimples

fabulaçõesouporanduba(deporo,superlativo,eandu,notíciasem

línguageral).Ouseja,asnarrativasedepoimentosqueoshomens

fazemnaaldeia,aocrepúsculo,pararelataros feitosdodia.De

qualquer forma, essas crenças e mitos são congruentes com o

mododepensareviverdeseuscultoresedeterminamocompor-

tamentoeaaçãosocial.

A função mais generalizada dessas crenças e lendas diz res-

peito à conservação do mundo natural. No capítulo sobre os

tabus alimentares vimos como esse tipo de racionalização está

presente.Nomito,nocontopopularenassuperstiçõesaelesli-

gadosapareceomesmomotivo,àsvezesexpressamente,àsvezes

sub-repticiamente.Apresençadocomponentereligioso–ouso-

brenatural–équeimprimeforça,féecredulidadeaomitoe,em

decorrênciadisso,impulsionaejustificaaconduta.

No lendário indígena e popular amazônico, os guardiões da

caça do campo, da mata, dos peixes e das árvores usam estra-

tagemas de defesa, infligindo terríveis castigos e até mesmo a

morte aos caçadores ou incendiários que transgridem suas leis.

Transcrevo,abaixo,meiapáginadeCâmaraCascudo,queassim

defineosprincipaispersonagens:

AcaçadocampopertenceaAnhanga,veadobrancocom

osolhosdefogo.AcaçadomatoédoCaapora,homenzar-

rãocobertodepelosnegrosportodoocorpo(...),montando

um porco-do-mato de proporções exageradas e dando, de

vezemquando,umgritoparaimpeliravaradoscaititus.

AsortedospeixesépatrimôniodeUauiará,queaparece

transformadoemboto(Delfinida),tornando-sehomemnas

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o152

noitesdefesta,indonamorarasmoçasdasribanceirasque

oapontamcomosendoopaidoprimeirofilho.

Omboitatáprotegiaoscamposcontraosincêndiospro-

positais.Eraumaserpentedefogoouumgrossomadeiro

embrasa,oméuan,fazendomorrerporcombustãooincen-

diáriocriminoso.

CurupiraeraumpequenoTapuiodepésvoltadospara

trásesemosorifíciosparaasexcreções,protetordasflores-

tas(1952:106).

O anhanga (espectro, fantasma, duende, visagem – segundo

Câmara Cascudo 1954: 42) castiga os caçadores que perseguem

certotipodecaça,comoopássaroinhambu-anhangaeoveado

(suasu-anhanga) nos quais se transfigura e, sobretudo, os que

matamumanimalqueamamentaouumpássaroquechocaou

cria.Perseguetambémoscaçadoresquedevastaminutilmentea

caçaoumatamamesmaespécie,diasseguidos.Ocastigoqueo

anhangafazrecairsobreocaçadoréumafebretalquepodelevar

àloucura.

CâmaraCascudocontaocasode:

umvelhocaçadortradicionalnossertõesdoRioGrandedo

Norte,deapelidoMandaí, (que),emboraprofissional,não

caçavanosdiasdesexta-feira,porser,dizia,dacaçaenão

docaçador.Nastardesenoitesdesexta-feira,havendoluar

ocaçadorviaaparecerumveadobrancocomosolhosde

fogo, que mastigaria o cano da espingarda como se fosse

“cana-de-açúcar”(1954:43).

Galvão (1976: 75-76) conta a desventura de um roceiro que,

paraespantarosveadosquefaziamestragosemsuaroça,fezuma

tocaianumaárvoreetodasasnoitesmatavaumdeles.Certafeita,

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 153

esquecidodequeeradiadeS.Bartolomeu,foiàtocaiaeviuchegarumamanadadeveadosgalheiros,“asaspasmuitolongaseaguça-das”eosolhosembrasa.Ficounatocaia,transidodemedo,enãopôdeesboçarumgesto.Maistarde,seusfilhosforamencontrá-loalisemfala.Foiatacadoporumafebreterríveldequesesalvoupor meio de rezas e benzeções. Estavam todos convencidos deque os galheiros-anhangas tinham ido ali vingar os veados quematara.

Ésintomáticoofatodeoanhangatomarcomumenteaformadeumveado,oudeumaanta,justamenteosanimaisobjeto,emgeral,detabusalimentaresporpartedosíndios.

NaAmazônia, fala-secomumentede“assombradodebicho”.Assombrar tem o significado de tirar a sombra, ou seja, a alma,levando o indivíduo à loucura. A “mãe dos bichos” assombra ocaçadorganancioso.Porisso,osmaisexímioscaçadoresoupesca-dores,queseespecializamemdeterminadotipodecaça,preferemperseguirdiferentesoumudarconstantementeolocaldepesca,paraevitarairada“mãedobicho”.Fazerzoadapertodoriooumaltratarumanimaldomésticopodeatrairazangada“mãedosbichos”.Mesmoascoisaseosacidentesgeográficostêm“mãe”,se-gundoaconcepçãodeíndiosecaboclosquefalamfrequentemen-tena“mãe-d’água”ou“mãedorio”,“mãedomato”etc.Trata-sedeumaatitudederespeitoàsobrasdanaturezaeaomesmotempodetemordiantedeseuspoderesinsondáveis.

Acrençaempanema 13éoutraformaderegularasatividadesde subsistência ligadas à caça e à pesca na Amazônia. SegundoGalvão(1976:81),podeserdefinidacomo“másorte,azar,desgra-ça,infelicidade”ouincapacidadedequesãotomadosindivíduosemesmoobjetos,poraçãodeumaforçadesencadeadaporigno-

rânciaouimprevidência.

13 Do tupi: i-panema, que significa “água má, sem peixes” (Câmara Cascudo1954: 469).

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o154

Por um processo de tentativa, acaba-se por descobrir onde

estálocalizadaapanema.Paranãocontraí-lasãorecomendados

certosbanhosdeervas“fedorentasecocentas”,defumaçõescom

alhoepimentaeoutraspráticasmágicas.Écostumeocaçador

eopescadortomaressescuidadoscadasemanaoucadaquinze

dias,comrelaçãoasipróprioeaseusapetrechosparaevitara

panema.

As mulheres grávidas podem, involuntariamente, fazer al-

guém tornar-se panema. A desconfiança ou a inveja também

causampanemaaoinvejado.Amulhermenstruadaquetocaros

implementosdecaçaoupescapoderáempanemá-los.Parapoder

controlar a cura dos caçadores ou pescadores empanemados, as

mulheresgrávidasgeralmentesósealimentamdecaçaepeixes

apanhadospelosprópriosmaridosouparentespróximos.Ouen-

tão,consomemcarnedegadooupeixesecovendidosnosarma-

zéns,sobreosquaisnãorecaiapanema.Essainformação,tomada

deGalvão(1976:83),éoutroindíciodequeapanemadizrespeito

àproteçãodafaunaselvagem.

Numa tentativa de reinterpretação da crença na panema,

Roberto da Matta (1977: 67-96) associa-a à hierarquização da es-

truturasociallocal,àdicotomianatureza/sociedade,àsafinidades

comonossosistemasorte/azareàmaneiraqueocabocloama-

zônico encontrou de transformar “um sistema probabilístico”

(o azar) num “sistema determinístico” (sua causação). O autor

colocaênfasenasituaçãoambíguados“agentescatalisadores”da

panema:amulhermenstruada,grávida,a inveja,adesconfiança

assinaladosporGalvão(1976)eWagley(1957)noestudodeuma

pequenacomunidadedobaixoAmazonas.

Deminhaparte,procureiencontraralógicaouracionalidade

dessa e de outras crenças amazônicas, analisando-as sob uma

perspectivaecológica.Mattaconfirmaessainterpretaçãoquando

escreve:

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 155

Namedidaemqueohomempescamuitooucaçamuito,

oquevaledizer,seumhomempretendeutilizaranatureza

comofontederiqueza,équasecertoqueficaráempanemado.

Istoporque,quantomaispeixeoucaçadistribuir,maiores

sãoaspossibilidadesdeperderocontrolesobreas trocas,

fazendocomqueosprodutoscaiamemclassesambíguas,

catalisadorasdepanema(1977:91-92).

Os dados etnográficos mostram que, consciente ou incons-

cientemente, o caboclo, tanto quanto o índio, procura manter

umaintegraçãoequilibradacomseuecossistema.Ascrençasesu-

perstiçõesqueexaminamos,pormaislógicasquepossamparecer,

exercemafunçãodedefesadosmeiosprimáriosdesubsistência.

Essespadrõesdepensamentoindígenaforamcertamenteincor-

poradosàmentalidadedoscaboclospelousoextensivodalíngua

geral,pelousodasmesmastécnicasdeaçãosobreanatureza,se-

lecionadasporumaexperiênciamilenar.

c) A língua boa

Para se avaliar a influência do indígena na cultura nacional

bastariaconsultarumdicionáriodalínguaportuguesaerecolher

aspalavrasdeorigemaborígine.Seéverdadequealínguacontém

eexpressatodaacultura,oestudoetimológicodosvocábulosdo

portuguêsfaladonoBrasilapontariaocaminhodamina.Muitos

autoresdedicaram-seaessemister,principalmenteaoestudodo

tupi. São tantos os tupinólogos que é uma ousadia citar alguns

emdetrimentodeoutros.Osmaisconhecidos–ErmanoStradelli,

Theodoro Sampaio, Plínio Ayrosa, Carlos Teschauer, Baptista

Caetano,AmadeuAmaral–realizaramessesestudosemregiões

específicas ou se ocuparam de determinados temas, como a

toponímia.

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o156

O conteúdo dos elementos culturais de origem ibérica foi

disseminado às populações nativas e a seus descendentes pe-

los jesuítas. Mas isso foi feito por um veículo – o nheengatu

ou língua geral – derivado de uma língua falada, ao tempo da

conquista,pelosgruposqueocupavamacosta,osTupi-Guarani.

A toponímia, os nomes dos animais, plantas, utensílios, técni-

case,inclusive,deumapráticadeauxíliomútuoexpandidado

campoparaacidade,conhecidacomomutirão(dotupi,moti’rõ),

passaramaoportuguês-brasílicosobaformadepalavrasemlín-

guageral. JulgandoquetambémnaAmazôniatodosos índios

falavam o tupi-guarani, os jesuítas introduziram-no nas mis-

sões,tupinizandofalantesdotukano,bemcomodeváriaslínguas

dostroncosaruakekarib.Comovimos,osmamelucospaulistas

eramtambémnheengatuoulínguageralfalantesedissemina-

ramessalínguafrancaportodoointerior,àmedidaqueoiam

descobrindoedevassando.

Para ajudar a entender e aceitar a religião cristã, os jesuítas

traduziramanoçãodepoderdivino,igualizando-oaTupã,sobre-

natural tupi, representado pelo trovão, e o poder satânico, pelo

sobrenaturaldafloresta,Jurupari.

Arespeitodaampladifusãodotupi,escreveSérgioBuarquede

Holanda:“EmSãoPaulo,porexemplo,enasterrasdescobertase

povoadasporpaulistas(...)atestamnumerososdocumentosaper-

manênciadobilinguismotupi-portuguêsdurantetodooséculo

XVIII”(1975:183-184).

TheodoroSampaioéaindamaisenfático,quandodiz:

Fazia-seaconquista,tendoporveículoapróprialíngua

dos vencidos, que era a língua da multidão. As bandeiras

quasequesófalavamotupi.Eseportodaparte,ondepene-

travam,estendiamosdomíniosdePortugal,nãolhepropa-

gavam,todavia,alíngua,aqual,sómaistarde,seintroduzia

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 157

com o progresso da administração, com o comércio e os

melhoramentos.Recebiam,então,umnometupiasregiões

queiamdescobrindoeoconservavampelotempoadiante,

aindaquenelasjamaistivessehabitadoumatribodaraça

tupi.Eassiméque,noplanaltocentral,ondedominavam

povos de outras raças, as denominações dos vales, rios e

montanhaseatédaspovoaçõessãopelamorpartedalín-

guageral(Sampaio1928:3).

Nas províncias de São Paulo, Rio Grande do Sul, Amazonas

eParáondeosmissionáriostupi-falantesmaisatuaramnaobra

de catequese e na educação, o tupi prevaleceu por mais tempo,

havendoemtodaacolôniaumaproporçãodetrêstupi-falantes

para um português-falante ainda no começo do século XVIII

(TheodoroSampaio1928:3).

Otestemunhodeumviajante,NicolDreys,queescreveusobre

oscostumesnoRioGrandedoSul,em1839,atestaque:

A línguausualdasMissõeséa línguaguarani, sonora,

eufônica e extremamente pitoresca; principia já a ser po-

pulardesdeorioPardoenestaúltimavila fala-semesmo

indiferentemente e quase com a mesma facilidade a lín-

guaportuguesaea línguaindígena,poisapopulaçãodas

Missõesconstapelamorpartedosrestosdanaçãoguarani...

(CitadoporC.Teschauer1929:111).

Aessasevidênciassoma-seadivulgadaporAntônioHouaiss,

deque

os constituintes de 1823 perguntavam-se se se devia ins-

talar uma faculdade de direito em São Paulo, dada a cir-

cunstância de que lá se falava mal a nossa língua, o que

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o158

supunhaquenoutrasáreasdopaísse falavamenosmal,

comoseriaocasodoRecife(ondesecriouuma),sobrecuja

maneiradefalarnossalínguanãoselevantaramobjeções

(1985:7).

Houaissrefere-se,certamente,aoutras“línguasgerais”e“artes

degramática”codificadaspelosjesuítasparaatenderàstarefasde

catequese.Apropósitodas“artesdegramática”informa:

No que se refere às dos séculos XVI, XVII e XVIII (ge-

ralmente impressas muito tempo depois de codificadas,

deixando-nosaimpressãodequetivessemsidoretidasaté

omomentoemqueprovassemserúteispelaexpressãoda

‘língua’emcausa),houveumgrandenúmerode‘artesde

gramática’.Umexemploécaracterístico,odaartedegra-

máticadocariri,quesedestinavaà ‘línguageral’deuma

extensaregião interioranadoNordesteedosertãoseten-

trionaldaBahia:aí,também,agramáticacariri–detron-

cooutroquenãoo‘tupi’–deveriaserumageneralização

recobridora de várias línguas cariris afins (Houaiss 1985:

49-50).

NocasodaAmazônia,emqueotipodeexploração,nafaseco-

lonialedepoisnacional,dependeuquasetotalmentedaforçade

trabalhoedaadaptaçãomilenardoíndioàhileia,umdosmaiores

obstáculos,segundoBessaFreire(1983:59),eraainexistênciade

um meio de comunicação único. Os descimentos de centenas

detribosdosaltosrioseoseuengajamentonoprojetocolonial

ocorriam,porisso,atravésdeum“estágio”nosaldeamentos“de

repartição” jesuíticos, onde membros de distintas tribos eram

“tupinizados”.

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 159

Oprocessodesubstituiçãodas línguasnativasdaAmazônia

pelo nheengatu e depois pelo português é periodizado, a título

provisório,porJoséBessaFreire(1983:40):

a)Fasedeintérpretes(séculoXVI)

b)Etapadeimplantaçãodonheengatu(1616-1686)

c)Expansãodonheengatu(1686-1757)

–comapoiooficial(1686-1727)

–semapoiooficial(1727-1757)

d)Tentativasdeportugalização(1757-1850)

e)Processodehegemoniadalínguaportuguesa

(começaapartirde1850atéosnossosdias).

Oautordáamedidadaviolênciaqueconstituiaimposiçãode

umúnicoidiomaacercade688gruposquefalavamlínguasfilia-

dasaostroncoskarib,aruak,pano,tukano,jêelínguasoufamílias

linguísticasisoladas.Essecálculoébaseadonolevantamentode

CestmirLoukotkade1.492línguasfaladasnaAméricadoSul,das

quais718noterritórioquecorrespondehojeàAmazôniaLegal.

Destas, 130 pertenciam ao tronco tupi, segundo Loukotka (cf.

Freire 1983: 42-3). As línguas não tupi – que os jesuítas se recu-

savam a aprender – eram chamadas “línguas travadas”, ou seja,

difíceisdepronunciar(idem:46).Comisso,osinacianosusavam

umjuízodevalorparajulgarosveículosdeexpressãodecentenas

degrupos,considerandoalgumaslínguassuperiores,ouseja,as

filiadasaotroncotupi,eoutrasinferiores.

Impôs-se,dessaforma,alínguadodominador–alínguageral–

queamaioriadoscolonosemissionárioschegadosàAmazônia

dominava (p. 49). Por outro lado, nos aldeamentos “de reparti-

ção” ou “domésticos”, o nheengatu passou a ser o instrumento

decomunicaçãoentreindivíduosprovenientesdediferentestri-

bos. Nessas condições, as crianças trazidas para os aldeamentos

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o160

jesuíticos se tornavam monolíngues. Em fins do século XVII, o

nheengatutorna-selínguaoficialnaAmazônia:“ACartaRégiade

1689”,escreveBessaFreire,“determinouqueosmissionáriosde-

viamensiná-lanãoapenasaosíndios,mastambémaospróprios

filhos dos portugueses concentrados nos embriões de núcleos

urbanosqueseformavamnaregião”(1983:51).

Essaatitudeportuguesaseexplica,segundoBessa,pelofatode

onheengatuviabilizara“rentabilidadedacolônia”.

Em 1720, havia apenas no Pará – não incluindo o

Maranhão–63aldeiascom54.264índiosaldeadosque,de-

pendendodaeficiênciamissionária,dominavamemmaior

oumenorgraua“línguageral”,queeratambémusadapela

quase totalidade dos mil portugueses e pelos mestiços e

ainda pelos índios ‘livres’ e escravos do Maranhão (Bessa

Freire1983:52).

Dessa forma se extinguiram centenas de línguas, não só por

esseverdadeiro “colonialismocultural”,massobretudopelaex-

tinçãofísicadessespovos.

Ocorreentãonovaimposição.Acomunicaçãocomosíndiose

mestiçosdaAmazôniaporpartedosadministradoresportugue-

sestinhaquepassarporumaintermediação:ajesuítica.Issodava

aosmissionáriosumcontroletotaldeladoalado.Em1727,orei

dePortugalproíbepordecretoousodalínguageralatémesmo

nasaldeiasindígenas(Freireop.cit.:56).Eratardedemais;onheen-

gatu havia se expandido por toda a Amazônia. Até os escravos

africanosfalavamogeral.

Comoadventodaerapombalina,aescravidãoindígenaéabo-

lida–noplanogeral,nãonoreal–eosjesuítassãoexpulsosdo

Brasil.Arepressãoquesefizeraantesàsinúmeraslínguasnativas

daAmazôniapassaasermovidaaonheengatu.Entretanto,como

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 161

assinalaFreire,muitomaistarde,nomovimentodaCabanagem

(1834-1840),osrevoltosostinhamemcomum,“alémdasituação

deopressão,ofatodefalaremonheengatu”(1983:65).

A restauração administrativa que se segue à Cabanagem co-

locaênfaseaoaportuguesamentocompulsóriodaAmazônia.O

nheengatupassaaserconsiderado“línguapobre”,damesmafor-

maqueas“línguastravadas”ohaviamsido.Nasescolasensina-

-sesomenteemportuguêsaalunosquefalavamapenasalíngua

geral.OaportuguesamentodaAmazôniasedá,contudo,como

boomdaborracha,quandoafluemàregiãocentenasdemilhares

denordestinos,muitostragadospelaprecariedadedascondições

devidanosseringaiseàsuainadaptaçãoàflorestaamazônica.

EmSãoGabrieldaCachoeira,nomédiorioNegro,aindaouvi

falaronheengatu,em1978,depreferênciaaoportuguêsporpes-

soasidosasnaturaisdolocal.

d) Arte indígena e arte popular

São muito antigas e controvertidas as discussões sobre a ca-

racterizaçãodaarte:erudita,popular,primitiva,indígena,negra,

pré-colombiana,orientaletc.Algunsespecialistasopinamqueo

conceitonãopodeseradjetivado.14Entretanto,comonemtodas

asmanifestaçõesestéticasdegruposétnicos–apinturacorporal,

porexemplo,nocasodoíndiobrasileiro–podemserenglobadas

nocamposemânticodoquesechamaartesanatooufolclore,o

títulomepareceválidonopresentecontexto.Trata-sedeformas

deexpressãodaculturaindígenaedaculturapopular, frutode

experiências acumuladas por gerações nesse campo específico

do conhecimento e da prática social. Elas entranham procedi-

14 Aessepropósito,remetooleitoraumadiscussãooferecidaporNestorGarciaCanclini(1983).

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o162

mentosecaracterísticasquesingularizamumaproduçãoestéti-

ca,nãoapenasporsuaconcepçãoformalmastambémpeloseu

significadointrínseco.

Num depoimento sobre etnologia e estética, Lévi-Strauss

(1982)afirmanãocrerque,noâmbitotribal,

a arte ocorra como um fenômeno completamente sepa-

rado como ele costuma ser em nossa sociedade. Nessa

sociedadetudotendeaseseparar:aciênciasedesligada

religião,areligiãosedesligadahistória,eaartesedesliga

detodooresto.Nassociedadesestudadaspelosetnólogos,

evidentemente, tudo isso se encontra unificado (C. Lévi-

-Strauss1982:24).

EmoutrotrechodessaentrevistadadaaMódulo,Lévi-Strauss

menciona os preços “extraordinariamente elevados” que alcan-

çamadornosplumáriosdeíndiosdoBrasilcentralnosleilõesde

Parisedeoutrascapitais,lamentando,aomesmotempo,osaldo

irrisórioquecontemplaosprodutoresnessetipodemercantili-

zação. Refere-se, também, ao novo sentido – “arte de expressão

moderna”–queassumiuadosíndiosdoCanadáparaosquais“se

organizamexposiçõesnasgaleriasdearte”(ibidem).

Estudosrecentesdearteindígenaeartepopulartêmdadorele-

votantoà“expressão”quantoao“conteúdo”dessasmanifestações

estéticas, caracterizando ambas como veículos de comunicação

da identidade cultural dos grupos humanos que as cultivam.15

Essa nova abordagem promete uma combinação fecunda entre

forma e significado, entre “textos visuais” e “textos verbais”, na

conceituação de Nancy Munn (1973: xx). Mormente no que se

15 UmaanálisecríticadessesestudospodeserencontradaemB.Ribeiro(1986:

15-28)arespeitodaarteindígenaeemLéliaGontijoSoares(1984)comrefe-rênciaàartepopular.

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 163

refereàartegráfica,noâmbitodesociedadesindígenas,osistema

derepresentaçõesadquireocaráterdelinguagemvisual.Arela-

çãoentrearepresentaçãoeoseureferente,entretanto,nãopode

serarbitrária,esimicônica.Issocaracterizaosistemacomouma

iconografia.

Nessesentido,oquepodeparecer“geométrico”ou“abstrato”

é na verdade “figurativo”, porque dotado de conteúdo semân-

tico. Por outro lado, essas representações iconográficas têm um

carátermnemônicoeestãoprofundamenteenraizadasnavivên-

cia e nos enredos míticos tribais. Com efeito, as manifestações

mágico-religiosas e a rede de relações sociais dos povos ágrafos

seexpressamatravésdaarte.Poressavia,comunicam-seideiase

comportamentos,cujadecodificaçãosósetornapossívelatravés

doprofundoconhecimentodaorganizaçãosocial,dacosmologia

edeoutrosaspectosdaculturaaosquaisaarteintimamentese

vincula.

Oestudodaartetribal,dentrodessesparâmetros,vemdemons-

trandoafantasiaeariquezademotivosmíticosexpressosatravés

dos símbolos. O suporte físico em que esse ato de expressão se

manifestaé,namaiorpartedasvezes,oprópriocorpo.Representa

uma segunda pele, “a pele social” que categoriza o indivíduo

comopessoa(T.Turner1980).

Analisandoosignificadodegrandevariedadedeornamentos

corporaisentreosXikrin,grupoKayapósetentrionaldafamília

linguísticajê,TerenceTurnerafirma:

Osadornoslabiais,auriculares,oestojopeniano,ocorte

de cabeleira, as faixas tecidas de algodão para as pernas e

osbraçoseapinturacorporalconformamumalinguagem

simbólicaqueexpressaumaamplavariedadedeinforma-

çõessobreostatussocial,aidadeeosexo.Comolinguagem,

noentanto,elatransmitenãomeramenteumainformação

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o164

deumaoutroindivíduo,senãoque,numnívelmaispro-

fundo,estabeleceumcanaldecomunicaçãodentrodoindi-

víduo,entreosaspectossociaisebiológicosdesuapersona-

lidade(Turner1969:59).

O mesmo raciocínio se aplica à sociedade ocidental, como

mostraCanclini(1983:30):“Ascaracterísticasdaroupaoudocar-

rocomunicamalgodenossainserçãosocial,oudolugaraoqual

aspiramos,doquequeremostransmitiraosoutrosaousá-los.”

Contraditoriamente,apechade“selvagem”queincidesobreo

índiobrasileiroprovém,emgrandeparte,desuanudezedeseus

ornamentos corporais. A América tropical não pede agasalho,

reclamonaturaldosclimastemperadosefrios.Tampoucomove

aohabitantenativoqualquerresquíciodepudor,dequedecorre

anecessidadedeohomemvestir-se.Emvezdisso,oindígenadas

regiões tropicaisornamentaocorpocomtintas,arabescos,ade-

reçoseplumas.Apinturadocorpotemporobjetivoembelezá-lo

eprotegê-locontrapicadasdemosquitoseforteinsolação.E,so-

bretudo,comovimos,parasimbolizarnaprópriapeleoemblema

étnico, a insígnia de participação tribal ou clânica ou, ainda, a

condiçãosocial,sexualeetária.

A cândida nudez do índio, registrada pelos cronistas desde

1500,paradoxalmentetambémfoiobjetodeencômiospelosfiló-

sofos seiscentistase dos séculos posterioresque viam nela e na

paisagemedênicaarevelaçãodabondadenatural,da inocência

original,doparaísoperdido.16

Nocampodasexpressõesgráficaseplásticas,acriatividadeesté-

ticadoíndiobrasileiroseestende,alémdocorpo,àornamentação

16 Sobreessetema,aidealizaçãodoíndio,ver,entreoutros:Oíndioearevolu-çãofrancesa,deAffonsoArinosdeMelloFranco(1937)eVisãodoparaíso,deSérgioBuarquedeHollanda(1969).

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 165

davivendaedosobjetos.Trata-sedeumareiteraçãodemotivos

e significados semânticos aplicados ao embelezamento da casa,

dacerâmica,àestruturadostecidosetrançados,àpirogravurada

superfíciedascuias,àpinturadosutensíliosdemadeiraedosim-

plementosdetrabalho.Essaiconografiaconferehomogeneidade

visual ao universo tribal que milita em favor da singularização

étnica.

Referindo-seàFrança,AndréMalrauxafirmou,certavez,que

“não existe mais arte popular, porque não há povo”. Percebe-se

que Malraux procurou distinguir “povo” de “massa”, ou seja, a

populaçãodasgrandescidadesdescaracterizadapeloscanaisde

comunicação – rádio, televisão, cinema – e, por esses veículos,

pelocolonialismocultural.Todavia,nasvastasregiõesinteriores

doBrasilsubsistemmodosdevidaquetêmpermitidoasalvaguar-

dadofrescoredaespontaneidadedasartespopulares.

Não há como discordar, porém, de Capistrano de Abreu

quandoacentuaquenuncachegouahavernoBrasilumaarte

nacional, como“expressãoconscientedopovo”.Escrevendohá

maisdeumséculo,em1876,argumenta:“Enãosendoexpressão

conscientedopovo,nãopodiaexercerinfluênciasobreele,nem

deseucontágioreceberacolaboraçãofecundante”(C.deAbreu

1976b:22).

Umséculodepois,DarcyRibeiro (1978)classificaasculturas

como

maisoumenosintegradas,conformeograudecongruência

interna de seus componentes; culturas autênticas, porque

seu conteúdo corresponde aos interesses de desenvol-

vimento autônomo das sociedades que as detêm. E por

oposição(fala)deculturasespúrias,quandointegram,nas

compreensõescoparticipadas,elementosdejustificaçãodo

domínio exógeno ou de deformação da própria imagem.

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o166

E,ainda,desituaçõesdemarginalidadecultural,quandoos

modosdeparticipaçãonaculturadecertosestamentosda

sociedadesãotãodiferenciadosecontrapostoscomrespei-

to aos do grupo dominante que sua consciência social é

altamentediferenciadaeseuprópriomododesertorna-se

objetodediscriminaçãopelosdemais,ocasionandotensões

efrustrações(D.Ribeiro1978:130).

As populações aborígines e africanas eram portadoras, ori-

ginalmente, de culturas autênticas e integradas, tal como aci-

ma definidas. Mas, ao serem submetidas ao rolo compressor da

escravidão e da opressão colonial, foram deculturadas, processo

queantecedeuodeaculturaçãoanovasformasdevida,valores

ecostumesqueforamcompelidasaadotar(op.cit.:131).Aetnia

embrionária,resultantedesseamálgama,quedepoisamadurece

àcondiçãodeetnianacional,surgecomoumaculturaespúriae

nãointegrada(ibidem:132).NaopiniãodeD.Ribeiro,foiatravés

dacriatividade“dascamadassubalternasecomoculturavulgar”

queasociedadebrasileiraelaborouastécnicasadaptativasneces-

sárias à sobrevivência; as formas de associação para o trabalho

produtivoeoconvívio;oscultossincréticos,areformulaçãode

mitoselendas;eaproduçãoartísticaparaatenderàsnecessidades

defruiçãoespiritualeestéticadasamplasmassasdapopulação

(op.cit.:143).

Paraacamadadominante,brancaeminoritária, impregnada

de preconceitos contra a terra e os povos de cor, nada do que

ostentasse a marca nacional e popular tinha valor. A alienação

intelectualeartísticadeseuestratoeruditolevou-aaimitarea

“transplantarideiasevaloresalheios”,quesemanifestamnaar-

quitetura,nasletraseartes.“Apesardisso,àsvezesexibiatraços

de originalidade, na medida em que se impregnava, contra sua

vontade,deconteúdoslocais”(D.Ribeiro1978:144).

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 167

Só recentemente, as criações artísticas dos chamados “povos

primitivos”edasclassesproletáriasvêmabrindoe,aospoucos,

ganhando o espaço reservado tradicionalmente à arte erudita.

Não raro essas obras são apropriadas sem que se dê crédito ou

compensaçãoaoartistaanônimo.Marchandsnegociampeçasde

artesanatoindígenaepopular,auferindoaltoslucros.Opúblico

consumidordessatouristart,deproveniênciatribaloudascama-

dasruraiseurbanasdebaixarenda,aprecia,porumlado,oexotis-

modessasobrase,poroutro,opoderinventivo,osaboringênuoe

atémesmosuarusticidade.

Essa nova sensibilidade estética pode ser atribuída a vários

fatores:1)éumareaçãoàtendênciauniformizadoraquecontami-

nouacivilizaçãomoderna;2)éumatentativamercadológicade

diversificaraofertadebensdeconsumo,dirigidaprincipalmente

àindústriaturísticaecultural.Nesseprocesso,aproduçãoarte-

sanal se modifica, extravasando as pautas que permitiam antes

“estabelecer sua identidade e seus limites” (Canclini 1983: 51).

Essaquestão,segundoesseautor,“fazpartedeumacrisegeralde

identidadequeexistenassociedadesatuais”(ibidem).

Nesseterreno,aculturaindígenatendeasituar-senomesmo

patamardaculturapopularporqueresultamsersubalternasem

relaçãoàculturahegemônica,emborainterdependentesporque

inseridasnomesmosistemasocial.

Noensaio intituladoCulturaspopularesnocapitalismo,exem-

plificadas com o caso mexicano, que venho citando, Canclini

(1983)focalizaascontradiçõeseconflitosentreasduasvertentes.

Criticaoevolucionismounilinear(1983:19),bemcomoodiscur-

sorelativistaque,emboraseesforceporsuperaroetnocentrismo,

nãoexplicaadesigualdadeentreasculturas(1983:25-26).Uma

diferença substancial entre a cultura indígena e a popular, por

umlado(quenoMéxicoseconfundecomaculturacamponesae,

porisso,Canclinirefere-seaelascomo“culturaspopulares”),ea

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o168

culturahegemônica,poroutro,éque,noprimeirocaso,elasper-

tencemrealmenteatodose,nosegundo,sãoapenasformalmente

oferecidasatodos,sóestandoaoalcancedaquelesque“dispõem

demeiosparadelaapropriar-se”(Canclini1983:38).

O autor alude a uma tipologia vigente em que se distingue

a arte “culta” da arte “de massas”, da arte “popular”. A primeira

corresponderiaaos “interessesegostosda burguesiae dos seto-

res cultivados da pequena burguesia”; a segunda, “aos setores

médioseaoproletariadourbano”;eaterceira,“aoscamponeses”

(Canclini1983:51-52).Comosevê,essatipologiaassociaaarte(e

oartesanato)adistintasclassessociais.Canclinienfatiza,porém,

apermeabilidadeentretodaselas,namedidaemqueentendeas

culturaspopularescomo“oresultadodeumaapropriaçãodesigual

docapitalcultural,(asquais)realizamumaelaboraçãoespecífica

desuascondiçõesdevidaatravésdeumainteraçãoconflitivacom

ossetoreshegemônicos”(1983:34-44).

Essadefiniçãoseafasta,conformeasseveraoautor,das“inter-

pretaçõesimanentes,formuladasnaEuropapelopopulismoro-

mânticoe,naAméricaLatina,pelonacionalismoeindigenismo

conservadore,ainda,dopositivismoque,preocupadocomorigor

científico,esqueceuosentidopolíticodaproduçãosimbólicado

povo”(op.cit.:44).

O empenho de Canclini é, sobretudo, analisar os mecanis-

mos e os defeitos da expropriação dos produtos simbólicos das

populações indígeno-camponesas no México. No que se refere

às políticas estatais de fomento à produção artesanal, o autor

demonstraque,porumlado,elassãooferecidascomosímbolos

deidentificaçãonacionale,poroutro,comoformadegeraruma

complementaçãoderendanocampoparaimpediroêxodorural.

Comefeito,10%dapopulaçãomexicana(cercade6milhõesde

pessoas)seocupacomplementarmentedeatividadesartesanais

que,semembargo,representamapenas1%doprodutonacional

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 169

bruto(Canclini1983:61).Nessesentido,atesequedefendeéade

que“O artesanato–bemcomoas festase outrasmanifestações

populares – subsiste e cresce porque desempenha funções na

reproduçãosocialenadivisãodetrabalhonecessáriasparaaex-

pansãodocapitalismo”(1983:61-62).

Nesseprocessoaumentaonúmerodeartesãosqueproduzem

paraocomércioediminuiaproduçãoartesanalparaautoconsu-

mo. Isso se explica, segundo Canclini, por quatro fatores: 1) “as

deficiênciasdaestruturaagrária”;2)“as(novas)necessidades(ou

motivações)deconsumo”;3)“oestímuloturístico”;4)“apromo-

ção estatal” (idem:62). Quanto ao fator turismo, o autor calcula

que,noMéxico,18%dosgastosdecadavisitanteestrangeirosão

feitosparaaaquisiçãodebensartesanais(Canclini1983:68).

Isso denuncia o aspecto híbrido da produção artesanal, de

talmodoqueseuestudonãopodelimitar-se“àpreservaçãodas

formas, técnicas e organização social nas quais a identidade

étnicaestáarraigada”(op.cit.:79).Porumlado,opinaCanclini,

resulta de um desenvolvimento autônomo, com uma tecnolo-

gia e uma iconografia peculiar, isto é, um estilo etnicamente

definido;poroutro,éuminstrumentodeafirmaçãoideológica

eaomesmotempodepromoçãomercantilqueserveaosinte-

ressesdoEstadoedaculturahegemônicaquedeleseapropria.

Emfunçãodisso,Cancliniprevinecontraa“tentaçãofolclorista

deenxergarapenasoaspectoétnico,considerandooartesanato

comoumasobrevivênciacrepusculardeculturasemextinção;

ou,comoumareaçãoaisso,oriscodeisolaraexplicaçãoeconô-

mica,eestudá-locomoqualqueroutroobjetoregidopelalógica

mercantil”(1983:71).

Visto sob essa dupla ótica, o artesanato indígena popular

apresentaasseguintescaracterísticas.Porumlado,constituiuma

barreiraderesistênciadoétnicoemfacedouniversal.Comefeito,

segundo o testemunho de Canclini, “o artesanato teria podido

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o170

resguardarmelhoraidentidadearcaicaqueseevaporavanores-

tantedavidasocial”(1983:75).Poroutrolado,amarcaétnicase

dissolvenamedidaemqueoobjetoartesanal,transfiguradoem

objetoestéticoeemmercadoria,chegaaomercadoconsumidor.

Passaaser“artesanatodeMichoacán”,unidadepolíticaenãoét-

nica e, nos casos extremos, Mexican curious. Ou seja, exalta-se o

exóticoesereduzoétnicoaotípico(Canclini1983:85-86).

Mesmo nas lojas patrocinadas pelo Estado mexicano, “não

seafixanenhumcartazqueasidentifiquenemfichasqueinfor-

memsucintamenteaorigemmaterialeculturaldasuaprodução

e o sentido que elas possuem para a comunidade que as criou”

(Canclini1983:86).Omesmoocorrenocasodeespetáculosfol-

clóricosorganizadosparaturistasemquesetransfiguramasfes-

taspopulares(idem:87).

Comosevê,otrânsitodoartesanatotradicionalpelasfasesde

produção,circulaçãoeconsumo,istoé,doseulugardeorigemao

pontodevendae,daí,àhabitaçãourbana,descontextualizaeal-

teraseusignificado:devalordeusoavalordeconsumo.Oganho

artesanal,emboraprecário,contribuitambémparaocidentalizar

oprodutorindígeno-camponês,namedidaemquelhepermiteo

acessoabensindustriais,igualmentepejadosdesímbolosesig-

nificados:rádios,roupas,utensíliosetc.Dessaforma,apopulação

ruraléincorporadaeconômicaeideologicamenteaomercadona-

cional,apagandopaulatinamenteasdiferençasesingularidades

étnicas.

Oprocessoatuademodoasintonizargostoseinteressescomo

mecanismosdecomplementaridade,afimdeocultarasdisfun-

çõesecontradiçõessociais.Nessesentido,oefeitonãoéapenas

ideológico e mercantil. É também político, conforme acentua

Canclini.Trata-sedeconferirumanovafunçãoaopassado,inter-

conectando-oaopresente.Tendoemvistaaresistênciaétnicaea

incapacidadedasociedadenacionaldeabsorverascomunidades

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 171

arcaicas,oferecendo-lhesumníveldevidadigno,aestratégiada

classe hegemônica é de caráter ambíguo; preservacionista, porum lado, integracionista, por outro. Essa política é claramentevisualizadanaproblemáticaartesanal(Canclini1983:111).

Somentenamedidaemqueosprotagonistasindígeno-campo-nesesseassenhorearemdosmecanismoseespaçosqueenvolvema produção, a circulação e o consumo de seus produtos, afirmaCanclini, “teremosumaculturapopular:umaculturaquesurjademocraticamentedareconstruçãocríticadaexperiênciavivida”(ibidem). Issonãosignifica idealutópicoouvisãomessiânica.Oqueseanelaéoesforçodacoesãoedaidentidadeétnicaafimdealcançaraautossuficiênciaeconômicaeaconduçãodoprocessoculturale,emconsequência,alibertaçãodaopressão.

TomeioexemplomexicanoparailustraropapeldoartesãoedoartesanatotradicionalnaAméricaLatina,porqueeleoferecemaiornúmerodeexplicações,comoasenfeixadasnotrabalhodeNestorGarciaCanclini,eporqueoMéxicoéopaísquemaisinveste nesse setor. E, ainda, porque, no caso do Brasil, ocorreouocorreráamesmatendência.TalcomonoMéxico,aexpan-sãodomercadoartesanalvisaaumpúblicoquebuscaadquirirsímbolosdedistinçãosocialeque,emconsequência,exigeau-tenticidade e perfectibilidade; e, ainda, compradores à cata desuvenires,oqueconduzàmassificaçãodaproduçãoeàquedada qualidade. Nessas condições, perdem-se as constâncias e asreiterações que definem o estilo e permitem identificar os ob-jetos;dá-seasimplificaçãoouestilizaçãodapeçaparatorná-lavendável.

Nessaalturacabeperguntar,comofazCanclini,oqueseenten-deporartesanato.“Serproduzidoporindígenasoucamponeses?Asuaelaboraçãomanualeanônima?Oseucaráterrudimentarouaiconografiatradicional?”(1983:51).Oautorlevanta,também,outraquestãoimportante:oscritériosdeavaliaçãodoqueseen-tende por arte. Tais critérios assinalam, em nossa sociedade, “o

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o172

predomíniodaformasobreafunçãoeaautonomiadosobjetos”

(op.cit.:135).

Trata-se,comosevê,deestereótiposclassistaseeurocêntricos,

namedidaemqueprivilegiamobrasacessíveisapenasàscama-

dasabastadas.Enquantoessesconceitosnãoforemrevistos,afir-

maCanclini,éinócuotentarinserirnosparâmetrosocidentaisos

produtosindígeno-camponeses.Prefere,porisso,falardecultura

e não de arte popular, uma vez que essa última noção é menos

abrangente,restringindo-seàbelezaeàcriatividade.Aopassoque

cultura popular remete à “representatividade sociocultural”, ou

seja,à“interpenetração”entreobjetosesistemassimbólicos”,eao

“processosocialporonde(oobjeto)circuladesdesuaprodução

atéoconsumo”(Canclini1983:134,137).

Isso implica, por um lado, o não congelamento de formas,

técnicasemateriaisatravésdosquais,emalgummomentohis-

tórico, populações indígenas ou camponesas se exprimiram.

Exemplificando com um caso brasileiro, diria que os desenhos

feitos em guache sobre papel por dois artistas indígenas, os

Desana Luiz Lana e Feliciano Lana, são uma forma de transpor

umanarrativamíticaoralparaumalinguagemgráfica.Equees-

sesdesenhos,destinando-seaumpúblicoexterno,sãoafeiçoados

àsuacompreensão,inclusivecomumtextoescrito(cf.B.Ribeiro

1986ms).Implica,poroutrolado,anãointerferênciadatecnocra-

ciaestatalque,comasmelhoresintenções,propõeaalteraçãonos

produtosartesanaisdeacordocomogostodocomprador.

MasopontonevrálgicoseencontranaconclusãodeCanclini

quando afirma: “A crise artesanal não pode ser solucionada de

modo separado do resto da problemática agrária” (1983: 140), a

qualsevinculaaosistemacomoumtodo.

Comovimos,genericamentefalando,ofomentodaprodução

artesanal provém de dois fatores: o ideológico e o mercantil. O

primeiro, que vem sendo chamado “nacionalismo cultural” ou

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 173

“identidadenacional”,utilizaacriatividadedosestamentosmais

pobresdapopulaçãocomoemblemasingularizadordanação.Ou

seja, valoriza os bens culturais de origem indígena ou popular,

porque tradicionais, não estereotipados, com caráter histórico,

regionalelocal.Entretanto,aconduçãoeosbenefíciosprovindos

dessaatividadeescapamaocontroledeseusartífices.Emvirtude

disso, o comércio artesanal tem contribuído muito pouco para

elevaroníveldevidadosseuscultores.Apesardessespercalços,

processa-se uma valorização das artes “não cultas”. O próprio

conceito de arte vem sendo redimensionado para deixar de ser

apanágiodoespíritocriadordaselitescultivadas.17

Essas reformulações também atingem outros campos da

arte,alémdosartesanais,comoaliteratura,amúsicaeadança.

No contexto urbano, surge no Brasil o fenômeno MBP (Música

PopularBrasileira),deinspiraçãonitidamentenacionalepopular.

Aliteraturaabraçaumatemáticavoltadaparaarealidadesocial

eumalinguagemmenosherméticaeformalqueadeoutrora.Os

ritmosedançaspopularesganhampalcoseaudiênciascadavez

maiores,aexemplodosconjuntosdeescolasdesambaenviados

aoexterior.

Trata-se,emtodososcasos,deumaartepoéticaporque,além

daexpressãoplástica, literáriaoumusical,entranhaumsignifi-

cadosocialelírico.Nessesentido,índiosecamadashumildesda

população,desdenhadosdesdesempredevidoaodébildesenvol-

vimentotécnicoeeconômico,passamaseradmiradosporsuas

manifestaçõesartísticas.Nocasodaspopulaçõesindígenas,sen-

doaparcelamaisfrágildasociedadenacional,omaisurgenteé

fortaleceroéthostribalparaquepossamsobreviverfisicamente.

Paraissoévitalsalvaguardarseusdireitosesuasexpressõescul-

turais,dentreasquaisaarte.

17 Arespeitodecomercializaçãodoartesanatoindígena,verB.G.Ribeiro1983c.

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o174

Conclusões: A questão indígena e o problema da terra

Este capítulo conclusivo procura delinear, a largos traços, a

imagemdoíndionaconsciêncianacionaleoseulugarnoBrasil

moderno.Noslimites,necessariamenteestreitos,destaanálise,é

ociosotentarumadenúnciadasiniquidadesperpetradascontra

ospovosindígenasaolongodahistória.Ouhistoriarapolíticaea

legislaçãoindigenistas–atéhojedúbiaseimprecisas–quepresi-

diramasrelaçõesentreíndiosebrancos.Ouainda,aclararostatus

jurídicodoíndiocomocidadão.Cabeenfatizar,contudo,queem

inúmeras instâncias – como ocorre em nossos dias – a questão

indígenaassumiuforosdequestãonacional.Agora,maisdoque

nunca,centradanoproblemadaterra.Aelesedarámaiorrealce,

situando-onoquadrodoarcaicosistemafundiáriovigente.

Vejamos,inicialmente,comoosantropólogosdefinemoíndio:

Indígena é, no Brasil de hoje, essencialmente, aquela

parceladapopulaçãoqueapresentaproblemasdeinadap-

tação à sociedade brasileira, em suas diversas variantes,

motivadospelaconservaçãodecostumes,hábitosoumeras

lealdadesqueavinculamaumatradiçãopré-colombiana.

Ou,aindamaisamplamente:índioétodoindivíduoreco-

nhecido como membro por uma comunidade de origem

pré-colombianaqueseidentificacomoetnicamentediver-

sa da nacional e é considerada indígena pela população

brasileiracomqueestáemcontato(D.Ribeiro1970:254).

Osproblemasdeinadaptaçãoreferidos–aosquaissedeveria

acrescentarodespreparobiológicoparaenfrentarasdoençasda

civilização–podemserassimresumidos:1)Acomunidadeindí-

genasedistingue–geralmente,masnãonecessariamente–por

determinados caracteres somáticos. 2) Compartilha expressões

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 175

culturais–língua,costumes,técnicas,crenças,formasdeorgani-

zaçãosocioeconômica–distintasdasociedadenacional.3)Possui

umterritóriocomum,geralmente isoladoousemi-isolado,cuja

posseeexploraçãoautônomasãocondiçãosinequanonparasua

sobrevivênciacomogrupoétnico.4)Possui liderançaspróprias,

semrepresentaçãoanívelnacional.5)Seusdireitoscomomino-

ria étnica são formalmente reconhecidos pelo Estado, mas, na

prática, desrespeitados sempre que entram em confronto com

interesseslocaisouregionais.

Noquetangeaoproblemadaterra,devemserdestacadosdois

aspectos.Emprimeirolugar,aterraéparaumatriboindígena“o

meiobásicodeprodução”.Emsegundolugar,oterritóriotribalé

o“sustentáculodaidentidadeétnica”(J.P.OliveiraFº1983:3).Em

funçãodisso,oterritóriotribalabrangenãosóaterranecessária

para as atividades agrícolas, de caça, pesca e coleta – designada

geralmenteáreadeperambulaçãodogrupo–,comotambémos

locaisdasantigasaldeiascomosrespectivoscemitérios,osluga-

ressagradosoumíticos,assinalados,emalgunscasos,cominscri-

çõesrupestresouacidentesgeográficos,quesimbolizamoslocais

de origem de seus ancestrais. Esses componentes simbólicos de

sustentação da identidade tribal, a par da adaptação ecológica

–nãoraromilenar–aumterritório, respondempeloapegodo

índioàssuasterraseexplicamsuadispersãoportodooterritório

nacional.

Essa é também a causa dos conflitos de terras com a fron-

teiramóveldasociedadenacionalque,emnossosdias,avança

pela Amazônia e o Centro-oeste. Um levantamento feito por

João Pacheco de Oliveira Filho (1984) informa a existência de

50litígiosdeterra,atingindo45gruposétnicos,dequeresulta-

ramprisões,intimidaçõesemorticíniosdeladoalado.Destes,

segundo Oliveira Filho, 23 conflitos envolvem fazendeiros, 11,

posseiros,nove,atividadesmineradoras,seis,aimplantaçãode

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o176

hidrelétricas e cinco, a construção de estradas que atravessam

territóriosindígenas.

Alegislaçãobrasileira–que,àépocadafundaçãodoServiço

deProteçãoaosÍndios(1910),podiaserconsideradaavançadaem

relaçãoàanterioreàprevalecentenorestodaAméricaLatina–se

consubstancianumartigodaConstituiçãoFederal(nº198)esua

regulamentação (Estatuto do Índio, Lei 6.001 de 1973). Garante-

se,poressaforma,apossedasterrasocupadasporgrupostribais,

independentemente de demarcação. Seu usufruto, entretanto, é

condicionado ao que, eufemisticamente, se chama “segurança

nacional”ou“desenvolvimentonacional”,emnomedosquaisse

podeatétransferirumatribodeumterritórioaoutro,oquevem

ocorrendoconstantemente.

Por outro lado, a legislação diferencia posse de propriedade.

Ouseja,assegura-seapossedosterritóriostribais,cujaexploração

deve reverter em benefício da comunidade indígena a que per-

tencem,ouintegrarofundoda“rendaindígena”gerenciadapela

FundaçãoNacionaldoÍndio(Funai).Oórgãotutelarpodealocá-

-laaoutrasáreasoudestiná-laàmanutençãodeseusservidores.

Emoutraspalavras,aexpectativaédequeaaçãoindigenistaseja

autofinanciável.Poroutrolado,apropriedadedaterra,registrada

emcartório,sópodeserconcedidaaindivíduosisolados(art.33,

Lei6.001);ouseja,aoíndiodesmembradodoseugrupo,emglebas

inferioresa50hectares,depoisdecomprovadosdezanosdeocu-

paçãoefetiva.Porfim,alegislaçãoprevêareversãoaodomínioda

Uniãodosterritóriostribais,porextinçãodogrupoousuainte-

graçãoàsociedadenacional.

Comosevê,aideologiacapitalistadoEstadobrasileiroadmite

aposse,masnãoapropriedadecoletivadaterrapelascomunida-

desindígenas.Etornaclaroqueacondiçãodeíndioétidacomo

etapaprovisóriaqueantecipaaintegração.Nessecaso,cessamos

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 177

dispositivoslegaisdetutela,deassistênciaeproteção,decorren-

tesdas“carências”assinaladas.

Os legisladores não procuraram ocultar esse desiderato. No

artigo1ºdaLei6.001,eleestáexplícito:“Art.1º.EstaLeiregulaa

situaçãojurídicadosíndiosousilvícolasedascomunidadesin-

dígenas,comopropósitodepreservarasuaculturaeintegrá-los,

progressivaeharmoniosamente,àcomunidadenacional.”

OEstatutodoÍndio(Lei6.001),aprovadoem1973,previaade-

marcaçãodetodasasterrasindígenasemcincoanos,istoé,em

1978.Paraqueelaseefetive,exige-seaidentificaçãodoterritório

tribal a ser feita segundo documentos históricos e etnológicos,

bem como o próprio testemunho de seus ocupantes índios; a

colocaçãodemarcosdemadeiradeleiecimento;aaberturade

picadasparaacompanhar as linhassecas;o registrono livrode

patrimôniodaUniãoenolivrodocartórioimobiliáriodacomarca

ondeselocalizamasterrasindígenas.E,porúltimo,ahomologação

pordecretodoPresidentedaRepública(cf.Lei6.001,art.19,§1º).Os

dadoscoligidosporOliveiraFilho(1983:12)indicamque,desde

acriaçãodoServiçodeProteçãoaosÍndios,em1910,apenas32%

dasterrasindígenasidentificadasforamdemarcadas,massomen-

te14,8%tiveramoprocessodehomologaçãoconcluído.

Amaiorpartedas terrasdemarcadas localiza-senasáreasde

alta concentração demográfica, isto é, naquelas de colonização

maisantiga:litoralesuldoBrasil,onde,segundodadosde1960

(R. C. Oliveira 1978: 102), localizava-se apenas 4,8% do total das

tribos(dezem205).Nãoobstanteademarcação,essesterritórios

acham-seemparteinvadidosouarrendadospelaprópriaFunaia

fazendeirosecamponesessemterra.Nessascondições,asreservas

indígenas,ilhadasnasregiõesmaisdesenvolvidasdopaís,cons-

tituem antes reservas de mão de obra do que territórios tribais

(OliveiraFilho1983:15,19).

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o178

Considere-seporúltimoque,segundoosdadosde1960referi-

dos,as169tribos,ou82,4%dototalde205entãoregistrado,que

viviam em zonas de baixa densidade demográfica, passaram a

experimentar,apartirdaqueladécada,enormepressãosobresuas

terras.Elaseintensificacomaabertura,apósaBelém-Brasília,da

Transamazônica, Perimetral Norte e o consequente movimento

migratório. Com efeito, o esgotamento da fronteira agrícola do

Paraná,aelevaçãodocustodaterraeamecanizaçãodasgrandes

lavourasdoSuldopaísdeterminaramumêxodoruralemdire-

çãoaoCentro-oeste,viaMatoGrossodoSuleGoiás,eaoNorte,

via fronteira maranhense, em direção ao Pará, Amazonas, Acre,

Rondônia,AmapáeRoraima.Comotodossabem,aocupaçãovem

sendofeitanãomedianteadistribuiçãodelotesfamiliares,mas

simdegrandeslatifúndios,afortesgruposnacionaisemultina-

cionais,dedicadosàagropecuáriaeàexploraçãomineradoraou

madeireira.Naverdade,trata-sedareservadedomíniodeimensas

extensões de terras, do tamanho de países europeus, para espe-

culaçãoeparaefeitodeincentivose isençõesfiscais(cf. Joséde

SouzaMartins1981).

Expulsosucessivamentedasterrasquevaidesbravando,opos-

seiroavança“sobreterrastribais,queperdedepoisparaocapital,

paraasfazendasegrandesempresas.Ele‘limpa’oterrenodoín-

dioparaaempresaquevirámaistarde.Porissoé,comfrequência,

estimulado por fazendeiros ou funcionários governamentais”

(Martins1981:116).

Comosevê,oproblemadaterracoloca-se,comigualmagnitu-

deedramaticidade,paraoíndioeparaohomemdocampo.Eleé

maissensível,nocasodoíndio,pelosmotivosassinalados:carên-

ciasimanentesàcondiçãosilvícolaeseuapegoaumterritório,

naduplaqualidadedesustentodasobrevivênciaesustentáculo

da identidade tribal. Conclui-se que, como não existe um lugar

paraohomemruralnaestruturafundiáriavigente,anãoserna

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 179

escalamaisbaixadapirâmidesocial,domesmomododeixade

haverumlugarparaoíndio,excetonumacondiçãoigualmente

degradante.

Ditasituação,quevemdosprimórdiosdaformaçãodanacio-

nalidadebrasileira,searrastaatéhoje.Suasuperaçãomalsevis-

lumbranosdiasquecorrem.Aaberturapolíticapermitiuquega-

nhasseespaçonosmeiosdedivulgação,sensibilizandoaopinião

públicaecolocandoemxequeaconsciênciaculposadaNação.Só

assimseexplicaavitóriadealgunsgruposindígenasemdefesada

integridadedoseuterritório.

Édeseperguntar:emquemedidaoíndioéconsideradocida-

dãobrasileiro?Emrecenteartigo,EuniceR.Durhan(1983)coloca

comacertoaquestão.ArgumentaqueoEstadobrasileiro–como

o americano em geral – finge desconhecer as peculiaridades

e os direitos dos povos colonizados, em nome de uma unidade

nacionalnoplanopolítico,culturaleracial.Apropósitoescreve

Durhan(1983:13):“Tambémdopontodevistateórico,aquestão

jamaisfoitratadaadequadamente.Seasociologiaeaciênciapo-

líticadesenvolveramumaformulaçãosobreasrelaçõesdeclasse,

semprerelegaramoproblemadasminoriasétnicasaumaposi-

çãosecundária,ouotrataramcomoepifenômeno.”

Afirma,emcontinuação:“Assim,nosdefrontamoshojecoma

necessidadedeatuaremrelaçãoaoproblemaindígenaederefle-

tirsobreelesemternemosmecanismospolíticosnemoinstru-

mentalteóricoparaguiaraaçãoeareflexão.”

Essevazioteóricoprevaleceuatémesmoentreosantropólo-

gos,afeitosaocontatocomoíndio,e testemunhas,por isso,do

seu empenho desesperado em resistir e permanecer. Não cabe

alongaressadiscussão,maslembrarqueaideiadequeohomem

primitivo era dotado de uma “mentalidade pré-lógica”, levanta-

da por Lucien Levy-Brühl, ganhou numa certa época, aberta ou

veladamente,adeptosnosmeiosacadêmicos. Issosemfalarnos

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o180

antropólogos e sociólogos que, privilegiando reiteradamente o

exótico,odissemelhante,emlugardohumano,docomum,ofe-

receramlastroparaasteoriasracistas.(Ver,porexemplo,Manuel

Bomfim1931:245ess.)

Tudoissocontribuiuparaaformaçãodeumaimagemdoíndio

que,naopiniãodeEuniceDurhan,foi“...exaltadaoudenegrida,

servindo,simultaneamente,comometáforadaliberdadenatural

ecomoprotótipodoatrasoasersuperadonoprocessocivilizató-

riodeconstruçãodanação”(1983:12).

Tantonocampoideológicoquanto,eprincipalmente,nopolí-

tico,abatalhapeloqueseconvencionouchamar“causaindígena”

vemsendotravadadiaadia,passoapasso.Aclassedominante

recusou-sesistematicamenteareconhecerqualquercontribuição

positivadoíndioàculturabrasileira.Essarecusafoiomotorideo-

lógicoemoraldodespotismo,emrelaçãonãosóaoíndiocomo

aonegro.Aacobertá-lo,estavaamísticadademocraciaracial,da

confluênciaharmoniosadastrêsraçasparaaformaçãodopovo

brasileiro.

Namedidaemqueamãodeobraindígenasetornavadesne-

cessáriaparaaimplantaçãodoprojetonacional,oíndiopassoua

servistocomoobstáculoaoprogresso.Ou,maispropriamente,à

expansãodaempresamercantilprimeiro,capitalistadepois.

Emnossosdias,aquestãoindígenalevantaváriasindagações.

Em primeiro lugar uma reflexão sobre a unidade nacional. Em

alguns setores governamentais, sobretudo das Forças Armadas,

chega-seafalardaexistênciade“nações”dentrodanação.Istoé,

comoseamanhãasmicroetniasindígenasremanescentespudes-

semoudesejassemreivindicarodesmembramentodoterritório

nacionalparaestabelecerenclavespoliticamenteautônomos,ou

transferi-loapaísesvizinhos.

Essa visão deturpada da condição indígena, excluída da

nacional, está claramente expressa no projeto “Calha Norte”,

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 181

formulado“porumgrupointerministerial,formadoporsuges-

tãodoConselhodeSegurançaNacionalemjunhode1985”(Cf.

“Calha Norte” Manuela Carneiro da Cunha, Folha de São Paulo,

24-11-1986).

Aparentemente,pretende-semilitarizarecolonizar,comnão

índios,afaixade6.500kmdeextensãoqueseparaoBrasildos

paíseslimítrofes,ocupadamilenarmenteporgrupostribais,al-

guns,comoosYanomami,praticamentevirgensdecontatocom

a sociedade nacional. Entre outras medidas, o projeto propõe

“à Funai redobrar esforços na região Yanomami. Há bastante

tempo”,afirma,“observam-sepressões,tantonacionaiscomode

estrangeiros,visandoconstituir,àcustadoatualterritóriobra-

sileiro e venezuelano, um Estado Yanomami” (Jornal do Brasil,

31-10-1986).

Trata-seumavezmaisdeumsofisma.Nãoobstanteteremas

característicasdenações,nosentidodepossuíremumaorgani-

zação socioeconômica, uma língua e uma cultura com a qual

seidentificam–aculturaAsurini,porexemplo,compartilhada

por53 indivíduosapenas–,é impensávelquegruposdessa,ou

mesmo de maior envergadura populacional – os Tukuna, por

exemplo,comumtotalde18.000 índios–,dotadosderecursos

tecnológicos de baixa energia, possam vir a organizar-se como

estadosautônomos.

Contraditoriamente,alega-sequeosíndiosreivindicamter-

ritórios demasiado grandes em relação ao seu cômputo popu-

lacional.Paraargumentar, recorro,novamente,a JoãoPacheco

deOliveiraFilho.Notrabalhocitado,oautor(1983:19)projeta

a relação hectares/índios para as terras já demarcadas, consta-

tandoamédiade217,1ha/habitante.Poroutrolado,“ovolume

total das terras indígenas” representaria “entre 8,37% e 9,68%

do estoque total de terras dos estabelecimentos produtivos do

país” (op. cit.: 20-21). Fazendo-se uma projeção das tendências

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o182

prevalecentes, esse volume pode ser calculado entre 30,9 e

35,8milhõesdehectares(ibidem).

Considerando-se que essa área seria destinada a 0,12% ou

0,16%dapopulaçãobrasileira–queéaquantomontaapropor-

çãodapopulaçãoindígena(cercade200milalmas)emrelação

àtotal–equeosíndiossãocomprovadamenteconservacionis-

tas, deduz-se que, em relação à extensão territorial brasileira,

essa proporção de reservas naturais é relativamente pequena,

principalmentesecomparadaàáreade40milhõesdehectares,

apropriadapor152empresasnaAmazônia,queempregamtão

somente 313 pessoas e não dispõem de nenhuma cabeça de

gado.Essavastaextensãoaproxima-sedototalde“terrasculti-

vadas com lavouras no Brasil (50 milhões de hectares)” (Ibase

1985:20-22).

Não é somente contra a diversidade cultural indígena, nas

proporçõesemqueelasemanifestanoBrasilatual,queseopõea

ideologiaintegracionistadoEstadobrasileiro.Ouapenascontra

ovultodasterrasocupadasporgrupostribais.Étambémcontra

aformadapropriedadecoletivadaterraque,comovimos,nãoé

reconhecidapelalegislação.Essaterceiraquestãoé,naverdade,a

primeiraemmagnitude.Admite-sequeoíndio,naqualidadede

legítimoeprimitivodonodoterritórionacional,tenhadireitode

usufruí-lo,sobcertascondições.Ouseja,contantoqueessedireito

nãocolidacomos“interessesnacionais”;edentrodaexpectativa

dequeasmesmasterrasretornemaodomíniodaUnião,quando

cessadaacondiçãotribal.Masmesmoessedireitocondicionado

énegadoaonãoíndio,aocidadãocomum.Estesótemacessoà

terra mediante a compra, desde a lei de terras promulgada em

1950(Lei601).Emfunçãodisso,oposseiro,oparceiro,quandoem

contatocomoíndio,sesenteusurpado.E,emlugardeíndiose

camponesesestabeleceremumpactodeaçãocomum,secomba-

temmutuamente.FatoimportanteassinaladoporJosédeSouza

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 183

Martinséque,“Coincidentemente,nomesmoanoemquecessou

otráficodeescravosafricanos–1850–foipromulgadaachamada

LeideTerras,queproíbealivreocupaçãodeterrasdevolutas.(...)

NoBrasil,ofimdocativeirodoescravodácomeçoaocativeiroda

terra”(1982:104).

Dessaforma,concluioautor,oescravorecém-libertoeoimi-

granterecém-chegadoteriamsuaforçadetrabalhoconstringida

aserviçodolatifúndio.Monopolizadaaterra,monopolizara-sea

mãodeobra.

A quarta indagação é questionamento que os índios e as ca-

madasmaisconscientesdasociedadecivilfazemcomrespeitoà

tutela que a legislação prevê em defesa da integridade física do

índioedainviolabilidadedoseuterritório.Naverdade,oqueos

legisladores pedem à Funai é que previna rupturas demasiado

traumáticas,resultantesdocontatoindiscriminadocomasocie-

dadenacional,comoasocorridasatéopresente.Equeapressea

passagemdacondiçãodeíndioisoladoàdeintegrado.Nessemo-

mento,cessariam,nateoriaenaprática,asobrigaçõesprotecio-

nistasdoEstadobrasileiroparacomohabitanteaborígine.

Osideólogosefautoresdessalegislaçãonãocontavam,certa-

mente,comaresistênciadoíndioàincorporação,aqualtermina-

ria,deumavezportodas,como“problema”indígena.E,menos

ainda,comorecrudescimentonoíndiodesuaconsciênciaétnica,

àqualsesomahojeumaconsciênciapolítica,namedidaemque,

nodizerdeE.Durhan,osíndiosdeixamdeseruma“minoriaem

si”parasetornarem“minoriaparasi”(1983:15).

Com efeito, o índio que conhecemos hoje está deixando de

ser o homem da madrugada dos tempos, o grande vencido, o

eternofugitivo,ohumilhadoporderrotassucessivas,faladoade-

saparecer.Háalgunsanosseriainconcebívelimaginarumíndio

XavantenoCongressoNacional,índioqueviuohomembranco,

pelaprimeiravez,quandojáadolescente,umavezquesuatribo

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o184

sófoicontatadaem1946.OdiscursododeputadoMárioJuruna

encontroueconaconsciênciadopovonamedidaemque:1)exte-

riorizavaorgulhoporsuasorigens;2)eradespojadodeverborra-

giaedesofismas;3)confirmavaaimagemdosilvícolaincultoe,

porissomesmo,puroeautêntico,que,deliberadamente,deixava

decensurarseuspensamentos.Dentrodessadimensão,Jurunae

outroslíderesindígenasforam,porumperíodo,avozdosqueja-

maisousaramquestionar,emuitomenoscontestar,aautoridade

constituídaeaordeminstitucionalvigente.

Aimagemdoíndioestáassociada,portanto,àdaliberdade,do

autodicernimento,conformeacentuaEuniceDurhan(1983:18).

IssoevocaasmotivaçõesdosmigrantesrecentesàAmazônia,“do

ponto de vista das pessoas, das famílias, dos pequenos grupos”,

entre as quais Otávio Velho menciona a noção de “liberdade, fa-

zendopareseopondoàdecativeiro”(1984:35,36).SegundoOtávio

Velho, embora possa parecer irracional ou ilógica, a “volta ao

cativeiro”nãoétotalmentedescartadaporessesmigrantes.Uma

dasexplicaçõesouvidaspeloautor,numacidadezinhanosuldo

Pará,foiadeque:“comohoje,esobretudonaAmazônia,pretose

brancosestãomuitomisturados,nãoémaispossíveldistinguir

uns dos outros” (1984:37). Nesse sentido, “a ameaça de um cati-

veiro,sobasmaisdiversasformas,eabuscadeliberdade,mesmo

relativa,provisóriaeameaçada–representada,porexemplo,pelo

chamadotrabalhoautônomo–estão,muitasvezes,presentesna

decisãodemigrar”(ibidem).

Ora,comaprogressivaerradicaçãodopequenositiante–pro-

dutor autônomo – e com a “colonização dirigida” da década de

1970,aquetambémfazreferênciaOtávioVelho(1984:37),oíndio

encarna,tantoparaohomemdocampocomoparaodacidade,

aautodeterminação,aliberdadeeaautonomia,comosistemade

produçãoemododevida,aindaquandoaplenaliberdadedoín-

diopossasertomadacomoarcaísmoouatitudeantissocial.Tanto

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 185

OtávioVelhocomoJosédeSouzaMartinsreferem-seàexpressão

“besta-fera” (do Apocalipse), utilizada pelo posseiro amazônico.

A “besta-fera” é o dinheiro, escreve Martins. É o “mediador dia-

bólico”que“tiradasmãosdaspessoasocontroledesuasopções,

tira a liberdade, fundamentalmente. Ele institui uma forma de

cativeiro...”(Martins1981:132-133).

• • •Procureimostrarnaprimeirapartedestetrabalhoqueasen-

sibilidadebiológicadospovosindígenas–principalmenteosda

Amazônia – levou-o a basear sua subsistência em alimentos de

origemvegetal;ordenoualimitaçãodotamanhodosestabeleci-

mentos, seu constante deslocamento e a consequente simplici-

dadedesuaculturamaterial,facilmentetransportável.Essares-

postaecológica,voltadaàconservaçãodaterraagricultáveleàs

reservasdefaunasilvestreescassa,militoutambémemfavorda

ausência de chefias centralizadas, desnecessárias em sociedades

depequenaenvergadura.

Essa realidade plasmou uma imagem positiva e negativa do

índio.Positiva,nosentidodelibertária,avessaàacumulaçãode

benseàobediênciaachefes;negativa,namedidaemquedifun-

diuaideiadaimprevidênciaeapatiaqueobrasileiroteriaherda-

dodoseuancestralaborígineetambémdonegro,igualmente,de

níveltribal.“Antesdoencontrocomoseuropeus”,escreveGeorge

Zarur(1983),“pode-sedizerquenãohavia‘índios’,categoriageral

dosbrancos.HaviaosXavante,Bororoecentenasdeoutrosno-

mesexóticos,cadatribocomumaidentidadeprópria.”

Acategoriagenéricadeíndioeaconstelaçãodeestereótipos–

forjadospeloeuropeu–ajudamhojeaconstruirumaidentidade,

nãoapenasXavanteouBororo,masétnico-políticaglobalizadora.

Apresençadobrancoque,aprincípioprovocoueincentivouas

guerrasintertribais,pelodeslocamentodetribos,umassobreas

outras,militahojeemfavordesuauniãoeaçãoconjugada.Assim,

b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o186

microetniasque,porrazõesecológicas,etnocêntricasetantasou-

tras,tendiamàcissiparidadeouaseguerrearem,tendem,agora,a

ativarumaestratégiadedefesadeinteressescomuns.

Parteintegrantedessaestratégiaéconheceroseuinterlocutor;

é assenhorear-se dos instrumentos que determinaram a supre-

maciadohomembranco,asaber,odomíniodopodermágicoda

escrituraedoacessoàsfontesdopoderdedecisão:amáquinado

Estado.

A manipulação da identidade étnica é, nesse sentido, arma

fundamental.Namedidaemqueelasediluioudesvanece,oíndio

perde a única vantagem que adquiriu, por sua origem, em rela-

çãoaoseuvizinho–peão,posseiroouseringueiro–igualmente

espoliadodeseusdireitosdecidadão.Essavantagem,diga-sede

passagem,foiconquistadaàcustadeumaresistênciaheroicaao

avassalamentoeàescravidão,queosdocumentoshistóricosea

realidadeatualregistramàsaciedade.

Esteéorumoquevemtomandoaquestãoindígenaemnos-

sosdias.Seusaliadosnãosão,ainda,ocampesinatoeasmassas

marginalizadas.Suacausaencontrasolidariedadeentreossetores

maiscultosepolitizadosdascamadasmédiasurbanasnoBrasile

foradele.

A simpatia que desperta a causa da sobrevivência dos rema-

nescentesindígenasemnossopaísprovém,emgrandeparte,de

umautopiadacontracultura:acontestaçãoàcamisadeforçado

progressoquetendeaimporàsnaçõesmodernasumaaltatecno-

logia,aqual,emlugardeerradicarafomeeamiséria,ameaçades-

truiroshomenseanatureza;adefesadaecologiaqueproclama

ousoracionaldosrecursosnaturaisembenefíciodobem-estar

coletivo;aoposiçãoaoautoritarismodoEstado,dasoligarquias

e tecnocracias. Em face dessa realidade, pode-se afirmar, como

fazEuniceDurhan:“Énessesentidoqueaquestãoindígenaad-

quire,verdadeiramente,umadimensãopolíticaquenãopodeser

o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 187

menosprezada,poisconstitui,tantooumaisquequalqueroutra,

uma luta pela democratização plena do regime e da sociedade”

(1983:19).

Nãoéminhaintençãoconcluirestetrabalhocomodiscurso

rousseauniano do mito do bom selvagem. Apesar da coerência

interna, as sociedades indígenas sofrem tensões e alimentam

contradições, conforme explicita a vasta literatura etnológica.

Entretanto,tambémnoplanosocialtêmliçõesadar.Desdeaex-

pansãodaEuropamercantil,noséculoXVI,ospovosperiféricos

foramexterminados,dominadosousilenciados.Comissoperde-

ram-semodelosalternativosdeflorescimentosdascivilizações.É

horadeosúltimosseremosprimeiros.Estapodeviraseranova

contribuiçãodoíndioàculturabrasileira. Istoé,namedidaem

queaconsciênciadaexploraçãoétnicadespertaraconsciênciade

classe,e,consequentemente,aconscientizaçãopolítica(Varesse

1981:128).Sóentãopoder-se-áinstitucionalizarapresençaindí-

genananacionalidadecomgozoplenodesuacidadania,mediada

pelacondiçãotribal.

Patrocínio: Realização:

ProduçãoEditora BatelCoordenação editorialCarlos BarbosaProjeto gráfi coSolange Trevisan zc

DiagramaçãoSolange Trevisan zcIlustrarte Design e Produção Editorial

© 2012, Fundação Darcy RibeiroDireitos desta edição pertencentes à Fundação Darcy RibeiroRua Almirante Alexandrino, 199120241-263 - Rio de Janeiro – RJwww.fundar.org.br

1ª Edição. 1ª Impressão. 2014.

Texto estabelecido segundo o Acordo Ortográfi co da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

R369a

Ribeiro, Darcy, 1922-1997 América Lati na: a pátria grande / Darcy Ribeiro. - Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2012. – (Biblioteca básica brasileira). ISBN 978-85-63574-14-5 1. América Lati na – Civilização. 2. América Lati na - Políti ca e governo. I. Fundação Darcy Ribeiro. II. Título. III. Série.

12-6980. CDD: 980 CDU: 94(8) 25.09.12 09.10.12 039335

BIBLIOTECA BÁSICA BRASILEIRA – CULTIVE UM LIVRO

CuradoriaPaulo de F. Ribeiro – Coordenação Geral Godofredo de Oliveira NetoAntonio Edmilson Marti ns Rodrigues

Comitê Editorial Eric Nepomuceno – Fundação Darcy RibeiroOscar Gonçalves – Fundação Biblioteca NacionalNorberto Abreu e Silva Neto – Editora Universidade de BrasíliaAníbal Bragança – Fundação Biblioteca NacionalLucia Pulino – Editora Universidade de Brasília

Tratamento de textos da coleçãoClara DiamentEdmilson CarneiroCerise Gurgel C. da SilveiraCarina LessaLéia Elias CoelhoMaria Edite Freire RochaProjeto de capaLeonardo VianaAssessoria de Comunicação Fundar Laura Murta

Roberta Maria de O. V. da Costa – Bibliotecária CRB7 5587

Impressão e acabamento :

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ProduçãoEditora BatelCoordenação editorialCarlos BarbosaProjeto gráfi coSolange Trevisan zc

DiagramaçãoSolange Trevisan zcIlustrarte Design e Produção Editorial

© 2012, Fundação Darcy RibeiroDireitos desta edição pertencentes à Fundação Darcy RibeiroRua Almirante Alexandrino, 199120241-263 - Rio de Janeiro – RJwww.fundar.org.br

1ª Edição. 1ª Impressão. 2014.

Texto estabelecido segundo o Acordo Ortográfi co da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.

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R369a

Ribeiro, Darcy, 1922-1997 América Lati na: a pátria grande / Darcy Ribeiro. - Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2012. – (Biblioteca básica brasileira). ISBN 978-85-63574-14-5 1. América Lati na – Civilização. 2. América Lati na - Políti ca e governo. I. Fundação Darcy Ribeiro. II. Título. III. Série.

12-6980. CDD: 980 CDU: 94(8) 25.09.12 09.10.12 039335

BIBLIOTECA BÁSICA BRASILEIRA – CULTIVE UM LIVRO

CuradoriaPaulo de F. Ribeiro – Coordenação Geral Godofredo de Oliveira NetoAntonio Edmilson Marti ns Rodrigues

Comitê Editorial Eric Nepomuceno – Fundação Darcy RibeiroOscar Gonçalves – Fundação Biblioteca NacionalNorberto Abreu e Silva Neto – Editora Universidade de BrasíliaAníbal Bragança – Fundação Biblioteca NacionalLucia Pulino – Editora Universidade de Brasília

Tratamento de textos da coleçãoClara DiamentEdmilson CarneiroCerise Gurgel C. da SilveiraCarina LessaLéia Elias CoelhoMaria Edite Freire RochaProjeto de capaLeonardo VianaAssessoria de Comunicação Fundar Laura Murta

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Impressão e acabamento :

DADOS INTERNACIONAIS PARA CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

R484i

Ribeiro, Berta G. (Berta Gleizer), 1924-1997 O índio na cultura brasileira / Berta Ribeiro. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 210 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 22).

ISBN 978-85-635-7435-0

1. Índios da América do Sul – Brasil. 2. Etnobiologia – Brasil. 3. Brasil – Civilização – Influências indígenas. I. Fundação Darcy Ribeiro II. Título. III. Série.

CDD-980.41

Roberta Maria de O. V. da Costa – Bibliotecária CRB7 5587

FUNDAÇÃO DARCY RIBEIRO

Insti tuidorDarcy Ribeiro

Conselho CuradorAlberto Venâncio Filho

Antonio RisérioDaniel Corrêa Homem de Carvalho

Elizabeth Versiani FormagginiEric Nepomuceno

Fernando Otávio de Freitas PeregrinoGisele Jacon de Araújo Moreira

Haroldo CostaHaydée Ribeiro CoelhoIrene Figueira FerrazIsa Grinspum Ferraz

Leonel KazLucia Velloso Maurício

Luzia de Maria Rodrigues ReisMaria de Nazareth Gama e SilvaMaria Elizabeth Brêa Monteiro

Maria José Latgé KwammeMaria Stella Faria de Amorim

Maria Vera Teixeira BrantMércio Pereira Gomes

Paulo de F. RibeiroPaulo Sergio Duarte

Sergio Pereira da SilvaWilson Mirza

Yolanda Lima Lobo Conselho Curador – In Memorian

Antonio CalladoCarlos de Araujo Moreira Neto

Leonel de Moura BrizolaMoacir Werneck de Castro

Oscar NiemeyerTati ana Chagas Memória

Conselho Fiscal Eduardo Chuahy

Lauro Mário Perdigão SchuchTrajano Ricardo Monteiro Ribeiro

Alexandre Gomes Nordskog Diretoria Executi va

Paulo de F. Ribeiro – Presidente Haroldo Costa – Vice-Presidente

Maria José Latgé Kwamme – Diretora Administrati vo-FinanceiraIsa Grinspum Ferraz – Diretora Cultural

Maria Stella Faria de Amorim – Diretora Técnica

FUNDAÇÃO DARCY RIBEIRO

Insti tuidorDarcy Ribeiro

Conselho CuradorAlberto Venâncio Filho

Antonio RisérioDaniel Corrêa Homem de Carvalho

Elizabeth Versiani FormagginiEric Nepomuceno

Fernando Otávio de Freitas PeregrinoGisele Jacon de Araújo Moreira

Haroldo CostaHaydée Ribeiro CoelhoIrene Figueira FerrazIsa Grinspum Ferraz

Leonel KazLucia Velloso Maurício

Luzia de Maria Rodrigues ReisMaria de Nazareth Gama e SilvaMaria Elizabeth Brêa Monteiro

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Maria Vera Teixeira BrantMércio Pereira Gomes

Paulo de F. RibeiroPaulo Sergio Duarte

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Yolanda Lima Lobo Conselho Curador – In Memorian

Antonio CalladoCarlos de Araujo Moreira Neto

Leonel de Moura BrizolaMoacir Werneck de Castro

Oscar NiemeyerTati ana Chagas Memória

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Maria Stella Faria de Amorim – Diretora Técnica