o índio na cultura brasileira
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O índio na cultura brasileiraBerta G. Ribeiro
Prefácio: Ana Arruda Callado
América Latina: a pátria grandeDarcy Ribeiro
Prefácio: Eric Nepomuceno
Os Correios, reconhecidos por prestar serviços postais com
qualidade e excelência aos brasileiros, também investem em
açõesquetenhamaculturacomoinstrumentodeinclusãosocial,
pormeiodaconcessãodepatrocínios.Aatuaçãodaempresavisa,
cadavezmais,contribuirparaavalorizaçãodamemóriacultu-
ralbrasileira,ademocratizaçãodoacessoàculturaeofortaleci-
mentodacidadania.
ÉnessesentidoqueosCorreios,presentesemtodooterritório
nacional, apoiam, com grande satisfação, projetos da natureza
desta Biblioteca Básica Brasileira e ratificam seu compromisso
emaproximarosbrasileirosdasdiversas linguagensartísticase
experiênciasculturaisquenascemnasmaisdiferentesregiões
dopaís.
A empresa incentiva o hábito de ler, que é de fundamental
importância para a formação do ser humano. A leitura possibi-
litaenriquecerovocabulário,obterconhecimento,dinamizaro
raciocínioeainterpretação.Assim,osCorreiosseorgulhamem
disponibilizaràsociedadeoacessoalivrosindispensáveisparao
conhecimentodoBrasil.
Correios
Os Correios, reconhecidos por prestar serviços postais com
qualidade e excelência aos brasileiros, também investem em
açõesquetenhamaculturacomoinstrumentodeinclusãosocial,
pormeiodaconcessãodepatrocínios.Aatuaçãodaempresavisa,
cadavezmais,contribuirparaavalorizaçãodamemóriacultu-
ralbrasileira,ademocratizaçãodoacessoàculturaeofortaleci-
mentodacidadania.
ÉnessesentidoqueosCorreios,presentesemtodooterritório
nacional, apoiam, com grande satisfação, projetos da natureza
desta Biblioteca Básica Brasileira e ratificam seu compromisso
emaproximarosbrasileirosdasdiversas linguagensartísticase
experiênciasculturaisquenascemnasmaisdiferentesregiões
dopaís.
A empresa incentiva o hábito de ler, que é de fundamental
importância para a formação do ser humano. A leitura possibi-
litaenriquecerovocabulário,obterconhecimento,dinamizaro
raciocínioeainterpretação.Assim,osCorreiosseorgulhamem
disponibilizaràsociedadeoacessoalivrosindispensáveisparao
conhecimentodoBrasil.
Correios
O livro, essa tecnologia conquistada, já demonstrou ter a
maiorlongevidadeentreosprodutosculturais.Noentanto,mais
queossuportesfísicos,asideiasjádemonstraramsobreviverain-
damelhoraosanos.EsseéocasodaBibliotecaBásicaBrasileira.
EsseprojetoculturalepedagógicoidealizadoporDarcyRibeiro
tevesuassementeslançadasem1963,quandoforampublicados
osprimeirosdezvolumesdeumacoleçãoessencialparaoconhe-
cimentodopaís.SãotítuloscomoRaízesdoBrasil,Casa-grande
&senzala,AformaçãoeconômicadoBrasil,OssertõeseMemóriasde
umsargentodemilícias.
Esse ideal foi retomado com a viabilização da primeira fase
dacoleçãocom50títulos.Aotodo,360milexemplaresserãodis-
tribuídos entre as unidades do Sistema Nacional de Bibliotecas
Públicas,contribuindoparaaformaçãodeacervoeparaoacesso
públicoegratuitoemcercade6.000bibliotecas.Trata-sedeuma
iniciativaousadaàqualaPetrobrasvemjuntarsuasforças,cola-
borandoparaacompreensãodaformaçãodopaís,deseuimagi-
nário e de seus ideais, especialmente num momento de grande
otimismoeprojeçãointernacional.
Petrobras-PetróleoBrasileiroS.A.
O livro, essa tecnologia conquistada, já demonstrou ter a
maiorlongevidadeentreosprodutosculturais.Noentanto,mais
queossuportesfísicos,asideiasjádemonstraramsobreviverain-
damelhoraosanos.EsseéocasodaBibliotecaBásicaBrasileira.
EsseprojetoculturalepedagógicoidealizadoporDarcyRibeiro
tevesuassementeslançadasem1963,quandoforampublicados
osprimeirosdezvolumesdeumacoleçãoessencialparaoconhe-
cimentodopaís.SãotítuloscomoRaízesdoBrasil,Casa-grande
&senzala,AformaçãoeconômicadoBrasil,OssertõeseMemóriasde
umsargentodemilícias.
Esse ideal foi retomado com a viabilização da primeira fase
dacoleçãocom50títulos.Aotodo,360milexemplaresserãodis-
tribuídos entre as unidades do Sistema Nacional de Bibliotecas
Públicas,contribuindoparaaformaçãodeacervoeparaoacesso
públicoegratuitoemcercade6.000bibliotecas.Trata-sedeuma
iniciativaousadaàqualaPetrobrasvemjuntarsuasforças,cola-
borandoparaacompreensãodaformaçãodopaís,deseuimagi-
nário e de seus ideais, especialmente num momento de grande
otimismoeprojeçãointernacional.
Petrobras-PetróleoBrasileiroS.A.
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o ix
sumário
Apresentação xi
Prefácio–AnaArrudaCallado xiii
Prefáciodaautora 3
Parte I – O saber indígena I Anaturezahumanizada.Osaberetnobotânico 9
Introdução 9
1. Ousodosolo 11
2. Técnicasagrícolas 14
3. “Aagriculturanômade” 21
4. Remanejamentodecapoeiras 23
5. Seleçõesgenéticasdeplantas 29
6. Repertóriodeplantascultivadas 35
a)Grãos,tuberosasefeijões 35
b)Fruteiras 41
7. Plantasestimulantes,medicinaiseindustriais 45
a)Principaisprodutoscultivados 47
b)Principaisprodutosdecoleta 51
c)Farmacopeiaindígena 56
II Anaturezadomada.Osaberetnozoológico 63
Introdução 63
1. Capturadeproteínaanimal 66
2. Estratégiasdecaça 76
3. Capturadeproteínavegetal 80
4. Tabusalimentareseconservacionismo 87
Conclusões:ecologiaculturalversus depredação 92
Parte II – A cultura indígena no Brasil moderno III Subculturas,técnicas,saboresaber 99
Introdução 99
1. Subculturas 101
a)Culturacrioula 107
b)Culturasertaneja 108
c)Culturacabocla 110
d)Culturacaipiraeculturacaiçara 113
e)Culturagaúcha 115
2. Oequipamentodetrabalhoeconforto 116
Introdução 116
a)Casaeabrigoprovisório 118
b)Aredededormir 124
c)Caçaepesca 128
d)Culináriaindígenanadietapopular 134
3. Medicinapopularemagia.Língua.Arte 141
Introdução 141
a)Rezasemezinhas 142
b)Crençaseassombrações 150
c)Alínguaboa 155
d)Arteindígenaeartepopular 161
Conclusões:Aquestãoindígenaeo problemadaterra 174
a � � r i c a l at i n a – a �át r i a g r a n d e | d a r c � r i b e i r o xi
apresentação
AFundaçãoDarcyRibeirorealiza,depoisde50anos,osonho
sonhado pelo professor Darcy Ribeiro, de publicar a Coleção
BibliotecaBásicaBrasileira–aBBB.
A BBB foi formulada em 1962, quando Darcy tornou-se o
primeiroreitordaUniversidadedeBrasília–UnB.Foiconcebida
comoobjetivodeproporcionaraosbrasileirosumconhecimento
maisprofundodesuahistóriaecultura.
Darcy reuniu um brilhante grupo de intelectuais e profes-
sorespara, juntos,criaremoqueseriaauniversidadedofuturo.
Eraosonhodeumageraçãoqueconfiavaemsi,quereivindicava
–comoDarcyfezaolongodavida–odireitodetomarodestino
emsuasmãos.DessaentregagenerosanasceuaUniversidadede
Brasíliae,comela,muitosoutrossonhoseprojetos,comoaBBB.
Em1963,quandoministrodaEducação,DarcyRibeiroviabili-
zouapublicaçãodosprimeiros10volumesdaBBB,comtiragem
de15.000coleções,ouseja,150millivros.
A proposta previa a publicação de 9 outras edições com 10
volumescada,poisaBibliotecaBásicaBrasileiraseriacomposta
por100títulos.AcontinuidadedoprogramadeediçõespelaUnB
foiinviabilizadadevidoàtruculênciapolíticadoregimemilitar.
Comamissãodemantervivosopensamentoeaobradeseu
instituidore,sobretudo,comprometidaemdarprosseguimento
àssuaslutas,aFundaçãoDarcyRibeiroretomouapropostaea
atualizou,configurando,assim,umanovaBBB.
Aliada aos parceiros Fundação Biblioteca Nacional e Editora
UnB, a Fundação Darcy Ribeiro constituiu um comitê editorial
que redesenhou o projeto. Com a inclusão de 50 novos títulos,
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o xia � � r i c a l at i n a – a �át r i a g r a n d e | d a r c � r i b e i r o xi
apresentação
AFundaçãoDarcyRibeirorealiza,depoisde50anos,osonho
sonhado pelo professor Darcy Ribeiro, de publicar a Coleção
BibliotecaBásicaBrasileira–aBBB.
A BBB foi formulada em 1962, quando Darcy tornou-se o
primeiroreitordaUniversidadedeBrasília–UnB.Foiconcebida
comoobjetivodeproporcionaraosbrasileirosumconhecimento
maisprofundodesuahistóriaecultura.
Darcy reuniu um brilhante grupo de intelectuais e profes-
sorespara, juntos,criaremoqueseriaauniversidadedofuturo.
Eraosonhodeumageraçãoqueconfiavaemsi,quereivindicava
–comoDarcyfezaolongodavida–odireitodetomarodestino
emsuasmãos.DessaentregagenerosanasceuaUniversidadede
Brasíliae,comela,muitosoutrossonhoseprojetos,comoaBBB.
Em1963,quandoministrodaEducação,DarcyRibeiroviabili-
zouapublicaçãodosprimeiros10volumesdaBBB,comtiragem
de15.000coleções,ouseja,150millivros.
A proposta previa a publicação de 9 outras edições com 10
volumescada,poisaBibliotecaBásicaBrasileiraseriacomposta
por100títulos.AcontinuidadedoprogramadeediçõespelaUnB
foiinviabilizadadevidoàtruculênciapolíticadoregimemilitar.
Comamissãodemantervivosopensamentoeaobradeseu
instituidore,sobretudo,comprometidaemdarprosseguimento
àssuaslutas,aFundaçãoDarcyRibeiroretomouapropostaea
atualizou,configurando,assim,umanovaBBB.
Aliada aos parceiros Fundação Biblioteca Nacional e Editora
UnB, a Fundação Darcy Ribeiro constituiu um comitê editorial
que redesenhou o projeto. Com a inclusão de 50 novos títulos,
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r oxii b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r oxii
a Coleção atualmente apresenta 150 obras, totalizando 18 mil
coleções, o que perfaz um total de 2.700.000 exemplares, cuja
distribuiçãoserágratuitaparatodasasbibliotecasqueintegram
oSistemaNacionaldeBibliotecasPúblicas,eocorreráaolongo
detrêsanos.
A BBB tem como base os temas gerais definidos por Darcy
Ribeiro: O Brasil e os brasileiros; Os cronistas da edificação;
Culturapopulareculturaerudita;EstudosbrasileiroseCriação
literária.
Impulsionados pelas utopias do professor Darcy, apresenta-
mos ao Brasil e aos brasileiros, com o apoio dos Correios e da
Petrobras, no âmbito da Lei Rouanet, um valioso trabalho de
pesquisa,comodesejodequenosreconheçamoscomoaNova
Roma, porém melhor, porque lavada em sangue negro, sangue
índio, tropical.ANaçãoMestiçaqueserevelaaomundocomo
uma civilização vocacionada para a alegria, a tolerância e a
solidariedade.
PaulodeF.RibeiroPresidente
FundaçãoDarcyRibeiro
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o xiii
prefácio – ana arruda callado
A nada simples Berta G. Ribeiro
Nãoseassusteoleitorque,emvezdecomeçarolivrojáusu-
fruindodasabedoriadeBerta,passarporeste(quaseiaescreven-
dosimples)prefácio.Bertanãoescrevecomplicado,nãodificulta
a vida de nenhum leitor. Ela é culta, mas também didática,
professora.
Otítuloescolhidopormiméumreparoatrevidoquefaçoà
grande antropólogaManuelaCarneirodaCunha,autora da in-
troduçãoaestetrabalhoemsuaprimeiraedição,de1987,portan-
toaindaemvidadeBerta.
“Éumlivropreciosoquerevelatrabalho,seriedadeesimplici-
dade:asmesmasvirtudescardeaisqueadmiroemBertaRibeiro”,
escreveuManuelaentão.
Meu reparo a este resumo inteligente é o fato de que, ao
debruçar-me sobre a pessoa e o trabalho de Berta Ribeiro para
traçar-lhe um perfil biográfico, deparei-me com uma persona-
lidade complexa, misteriosa até. Educada, suave, quase sempre
fechada–nadasimples.
Menina judia romena, Berta aos 11 anos perdeu a família e
ficouvivendoemlaresemprestados,emumpaísestranho.Aos
21anosencontrouDarcyRibeiro,comquemficoucasadapor20
anos.Ajudou-onaorganizaçãodemuitosdeseusmaisimportan-
testrabalhos.Acompanhou-onopoderenoexílio.Ficoutãoou
maisbrasileiraqueomarido.
Separadadele, tornou-senãosóumaconhecedoraprofunda
da cultura dos primitivos habitantes do Brasil, como por eles
seapaixonou.Dedicou-sedecorpoealmaaeles,nãocomoum
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r oxii
a Coleção atualmente apresenta 150 obras, totalizando 18 mil
coleções, o que perfaz um total de 2.700.000 exemplares, cuja
distribuiçãoserágratuitaparatodasasbibliotecasqueintegram
oSistemaNacionaldeBibliotecasPúblicas,eocorreráaolongo
detrêsanos.
A BBB tem como base os temas gerais definidos por Darcy
Ribeiro: O Brasil e os brasileiros; Os cronistas da edificação;
Culturapopulareculturaerudita;EstudosbrasileiroseCriação
literária.
Impulsionados pelas utopias do professor Darcy, apresenta-
mos ao Brasil e aos brasileiros, com o apoio dos Correios e da
Petrobras, no âmbito da Lei Rouanet, um valioso trabalho de
pesquisa,comodesejodequenosreconheçamoscomoaNova
Roma, porém melhor, porque lavada em sangue negro, sangue
índio, tropical.ANaçãoMestiçaqueserevelaaomundocomo
uma civilização vocacionada para a alegria, a tolerância e a
solidariedade.
PaulodeF.RibeiroPresidente
FundaçãoDarcyRibeiro
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r oxiv
cientista que observa seu objeto de estudo sob o microscópio,
como um inseto. Conviveu com eles; dividiu autoria de obras
comeles.Seurostosériosóseabriaemsorrisosemcontatocom
criançasíndias.
Não ficou só nos estudos; foi à luta em defesa deles. E, poli-
tizada, estendeu essa defesa ao meio ambiente, ao hábitat dos
“seus”índios.AmazôniaUrgente,livroeexposição,foiseuúltimo
grandetrabalho.
Nestelivroquevocêstêmemmãos,elademonstraaimpor-
tância da contribuição cultural que diversas nações chamadas
atéhojede“primitivas”fizeramaostambémchamadosatéhoje
“civilizados”.
NoprefácioqueescreveuapresentandoesteOíndionacultura
brasileira,afirma:
...procurou-seenfatizarqueaculturaindígenacontinua
ativa, embora inibida para desenvolver sua criatividade e
potencialidades.Nãoobstante,éumorganismovivo.Muito
sepodeaprendercomela,sevencermosopreconceitoeo
desprezoquesempreselhevotou.
Emtodaasuavastaobra,formadadelivros,artigos,conferên-
ciaseexposições,BertaG.Ribeiro(oGdeGleiser,seunomede
solteira) tomou partido. Foi uma estudiosa meticulosa, perfec-
cionista,aomesmotempoqueumamilitante,dacausaindígena
edacausasocialista.
Embora tenha se destacado especialmente pelo estudo da
cultura material dos índios brasileiros (e de outros países da
América),seustrançadosdepalhaetecidos,nãodeixouescapar
nenhum aspecto de sua cultura – e, para ela, cultura é “a ação
humanasobreanatureza”.
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o xv
Aquioleitorvaiseinteirardastécnicasagrícolas,dafarmaco-
peia,dasestratégiasdecaça,dostabusalimentares,daecologia
cultural de nossos indígenas, e de como algumas dessas práti-
caspassaramafazerpartedodiaadiadegrandescontingentes
populacionaisquecomelestiverammaiscontato.Nasculturas
cabocla,caiçaraesertaneja,elaapontaessaherança,emcrenças,
namedicinacaseira,nosmitosemesmonastécnicasdeplantio
edeconstruçãodehabitações.
VãotambémouviravozlúcidaeindignadadeBertacontraa
políticaindigenistapraticadanopaís,comaeternamenteinjus-
tadistribuiçãodaterra,comodescasooficialquenãoésópara
comosíndios,mascomtodosospobres,osexcluídos.
AnA ArrudA CAllAdo é jornalista e escritora. doutora em comunicação e cultura pela ufrj - universidade federal do rio de janeiro.
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 3
prefácio da autora
O presenteestudoresultadeumacompilaçãodedados
esuaorganizaçãofeitasegundoumesquemaqueleva
emconta,emordemdecrescente,acontribuiçãodoíndioàcultu-
rabrasileira,anívelecológico,tecnológicoeideológico.
Atarefaaqueaautorasepropõeéarrojadaepenosa.Arrojada,
portentarresumiremumacentenadepáginasolegadoindígena
àculturabrasileira.Penosa,porquesetornadifícilpriorizar,sele-
cionareresumirumaherançaqueoeuropeuadventício,aoinvés
depreservarehonrar,sósepreocupouemvilipendiaredestruir.
Apardisso,acarênciadetempoeminhasprópriaslimitaçõesre-
presentaramosóbicesmaiores.Poressesmotivoseumapreferên-
ciapessoal,coloqueiênfasenoquemepareceuolegadodecisivo,
primordialepermanente:orespeito,oamoreahumanizaçãoda
naturezacomofontederecursosàalimentaçãoeaobem-estardo
homemeàcuradesuasenfermidades.
Aocontráriodoquesejulgacomumente,oíndionãoeraleigo
em história natural. Pelo contrário, sua contribuição à biologia
(floraefauna),àagricultura,bemcomoàmedicinaempírica,mal
começaaseravaliada.Comefeito,oaborígineamericanologrou
domesticar centenas de vegetais alimentícios, cultivando-os
cominstrumentossumáriosquenãoagridemoecossistema.Na
verdade, o índio relaciona-se harmonicamente com seu nicho
ecológico, equilibrando a biomassa humana com a fitomassa e
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o4
azoomassa.Desenvolve,conscientementeounão,umapolítica
agrícolaedemogenéticaquedefendeepreservaanatureza,con-
diçãodesuaprópriasobrevivência.
Diante de tantos prodígios da botânica e da agricultura abo-
rígine, eminentes cientistas como Karl F. von Martius e, mais
recentemente, F. C. Hoehne julgaram que as inúmeras espécies
domesticadassópodiamserobradepovoscomculturasuperior,
depois“asselvajados”,queteriamaquivividoantesdosqueforam
encontrados pelos europeus. Ambos admitem, contudo, que o
imigranteadventícioexerceuinfluênciadeletériaeirrecuperável
sobreohabitantenativo.Nãosósobreoqueencontrouvivo,mas
tambémsobreasuahistória.Oquesefazagoraéreconstituí-laa
partirdefragmentosesparsos.
O presente trabalho não tem a pretensão de suprir a lacuna
apontada. Vale assinalar o problema, para o qual este estudo é
umamodestacontribuição.Maisdoqueumelencodetraçoscul-
turaislegadospeloindígenaaobrasileiro,oqueseexpõeaqui,nos
primeiroscapítulos,éuminventáriodosaberindígenaatual,no
quedizrespeitoaoseuecossistema.Maisqueresgataramemória
dopassado,oquesepropõeéreavaliaracontribuiçãoqueoíndio
vivopodedaràculturabrasileiraeuniversal.
Aprimeirapartebaseia-seempesquisasrecentesfeitassoba
perspectiva da antropologia ecológica e etnobiologia, e em mi-
nha própria experiência em estudos de economia indígena. Os
exemplos são quase todos de tribos da Amazônia. Em primeiro
lugar,porquealiserealizam,presentemente,investigaçõessobre
essestemas.Emsegundo,porqueocabocloamazônicoéhojeo
principalherdeirodaadaptaçãomilenardoíndioàflorestatro-
picalúmida.
A segunda parte, dedicada à etnografia da cultura brasileira
noquerevelaexplicitamenteainfluênciadoaborígine,sefunda-
mentatotalmenteemfontesbibliográficasreferentesàsociedade
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 5
ruralbrasileira.Elasseressentemdafaltadedocumentaçãosobre
afrequênciaerepresentatividade,nosentidoqualitativoequanti-
tativo,dasatividadeseconômicasrurícolas(técnicasdeprodução,
equipamentoprodutivo)eaosseusmétodosdecontroleedefesa
de recursos naturais. Devido a isso, não foi possível comparar,
em profundidade, a experiência indígena com as práticas e co-
nhecimentosdaspopulaçõesrurais.Acreditoqueestudoscomo
os referidos, feitos em relação às tribos indígenas, são também
urgentesenecessáriosnoquedizrespeitoàspopulaçõesrurais,
igualmentedescaracterizadascomoavançodatecnologiaindus-
trialnocampo.
Umlivro,comoopresente,emboradirigidoaumpúblicomais
amplo,e,portanto,nãoespecializado,nãodeveriasertrabalhode
umasópessoa,masdeumaequipemultidisciplinarquepudesse
darcontadavariedadeecomplexidadedetemasquelhecaberia
abranger.Orecursodaautorafoiapelarafontessecundárias.As
citações,àsvezesemnúmeroexageradoetamanhoabusado,se
justificam porque condensam o assunto em foco e ao mesmo
tempo o documentam. Ainda assim, inúmeros temas deixaram
deserabordadoseoutrosexigiramumdesenvolvimentomaior.
O que se procurou mostrar, sobretudo, foi que o primitivo
habitante deixou aos que o sucederam um país pujante e belo.
Passados487anosdaconquista,oquevemoséadepredaçãoeo
desrespeitoànaturezaeaoequilíbrioecológico.Oquepresencia-
moséoaumentodafomeedadesnutrição.Oqueseconstataé
a malversação da terra por uma minoria, unicamente para fins
lucrativos.
Procurou-seaclarartambémqueahistóriadaculturaéprinci-
palmenteoregistrodaaçãohumanasobreanatureza.Maiscedo
do que se pensa, chegará a hora de começar de novo: voltar ao
substratodahistóriadatecnologiaprodutivaebuscarnelaosen-
tidoprimáriodacultura.
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o6
Finalmente, procurou-se enfatizar que a cultura indígena
continuaativa,emborainibidaparadesenvolversuacriatividade
e potencialidade. Não obstante, é um organismo vivo. Muito se
podeaprendercomela,sevencermosopreconceitoeodesprezo
quesempreselhevotou.Inversamente,associedadestribais,na
medidaemqueselhesdeemoportunidades,muitotêmaapren-
dercomacivilizaçãouniversal.
Acultura,inclusiveaindígena,nãoéumarealidadeestática.
Adopassadoseencontranosmuseusebibliotecas;adopresente
é recriada a cada dia. Toda ela deve ser vivificada como um pa-
trimôniohumanocomum.Sóassimserádadaatodosospovos,
pormenoresquesejam,afaculdadedeelegerereelaborarosbens
culturaiscomunsquedesejemadotar,semqualquerlaivodede-
pendência,imposiçãoousubalternidade.
ArealizaçãodestetrabalhomuitodeveaoConselhoNacional
deDesenvolvimentoCientíficoeTecnológico(CNPq)que,desde
1976,meconcedeumabolsadepesquisador,quetempermitido
minhadedicaçãoexclusivaaestudosdeculturaindígena.Parao
presentetrabalhorecebiaajudadobibliotecárioMarcoAntônio
Lemos, do Museu Nacional, a quem publicamente agradeço. E
tambémdeJanetChernela,cujaleituracríticadaprimeiraparte
me foi muito útil. E, ainda, de Hamilton Botelho Malhano, por
algumasilustrações.
BertaG.Ribeiro
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 9
ia natureza humanizada.
o saber etnobotânico
Introdução
H ácercadetrêsdécadas,osantropólogoscomeçaram
a interessar-se pelo saber indígena, isto é, procura-
ram avaliar como povos ágrafos classificam seu ambiente na-
turalecultural.Partiamdopressupostodequecadapovopos-
suiumsistemaprópriodeperceber,organizareclassificarsua
realidade ambiental e cultural. Esses sistemas de classificação,
expressos por códigos mentais, estariam mapeados na lingua-
gem.Ouseja,podemserinferidossegundoamaneiracomoas
coisasdoambientesãodesignadaseaformacomoessesnomes
sãoorganizadosemconjuntosmaiores.Namedidaemquetais
classesdefenômenossãoestruturadashierarquicamente,num
processodeinclusãoabrangente,elasformamumataxonomia.
Os sistemas de classificação usados pelas sociedades mais
simples vêm a ser um dos objetos de estudo da etnobiologia.
Compreende a etnobotânica e a etnozoologia que analisam as
taxonomiasdefolk,ouetnotaxonomias.Emoutraspalavras,o
sistema taxonômico de povos iletrados (populações campone-
sas)oudepovossemescrita(populaçõestribais).Comoessesa-
berétransmitidooralmente,oantropólogoeobiólogoutilizam
a própria linguagem e sua semântica como dado a ser exami-
nado.Omodelosemânticoprocuraelucidaralógicainternado
sistema, visto como essencialmente simbólico. Nesse sentido,
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o10
oscomponentessemânticosoferecemuminteresseespecialàs
suasinterpretações.
Àperspectivadaetnobiologia–ou,maisamplamente,daet-
nociência–associa-seaantropologiaecológicaouetnoecologia.
Aqui,oobjetodeestudoéarelaçãodohomemcomoseuambien-
te,noâmbitodassociedadestribais.Algunsmodelosdesenvolvi-
dos pela antropologia ecológica procuravam explicar a origem
de uma prática, como, por exemplo, os tabus alimentares, em
termosdesistemaadaptativoquetendeapreservaroecossiste-
ma.E,emfunçãodisso,contribuirparaasobrevivênciabiológica
do grupo humano, visto como essencialmente dependente dos
três componentes do sistema: o inorgânico, o orgânico (vegetal
eanimal)eoclimático,interpretadospelosistemaideológico,ou
superorgânico.
EmbrilhantecapítulodeOpensamentoselvagem,denominado
“Aciênciadoconcreto”,ClaudeLévi-Strauss(1976:19-55)coloca
emrelevooprodigiosoconhecimentodoambientenaturalpor
partedesociedades tribais.Maisque isso,procuramostrarque
o nativo estuda sem cessar o seu hábitat. Observa e classifica
nãosóosanimaiseplantasnecessáriosàsuaexistência,como
também os que formam os elos da cadeia de um ecossistema,
determinandoseuequilíbrio.Concluique“asespéciesanimais
e vegetais não são conhecidas na medida em que sejam úteis;
elassãoclassificadasúteisouinteressantesporqueprimeirosão
conhecidas”(1976:29).
A riqueza da nomenclatura nas línguas nativas de espécies
vegetais e animais, de sua morfologia e de técnicas para a sua
utilizaçãoetransformaçãolevouinúmerosestudiososdaetnobo-
tânicaeetnozoologiaaadmitirquedificilmenteomeionatural
habitadoporpopulaçõesindígenaspoderáserdesenvolvidosem
aincorporaçãodessesaber.Umdeles,lamentandoodesapareci-
mentodosgrupostribaisemnossopaís,afirma:
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 11
Comaextinçãodecadagrupoindígena,omundoper-demilharesdeanosdeconhecimentoacumuladosobreavidaeaadaptaçãoeecossistemastropicais. (...)Amarchado desenvolvimento não pode esperar muito tempo paradescobriroqueseestáprestesadestruir(Posey1983:877).
Naspáginasqueseseguem,procurareimostraroconhecimen-todoambienteecológico,otipodeadaptaçãoeapercepçãodarelaçãoexistenteentreavidaanimalevegetal,eahumana,porpartedealgumastribosindígenasbrasileiras,comoprincipalle-gadoànossacivilização.Osexemplosselecionadosdizemrespei-toatribosamazônicas,ondevêmsendolevadasacabopesquisassegundoaabordagemdaetnociência.
1. O uso do solo
Vejamos, inicialmente, o conhecimento e a classificação dossolosporpartedosKayapó,dotroncolinguísticoJê,dosuldoPará,edosKuikuro,grupoKaribdonortedeMatoGrosso,segundoosrelatos de Posey (1983), para os primeiros, e de Carneiro (1983),paraosúltimos.
OsKayapósituamsuasaldeiasemáreasdetransição,afimdeque possam tirar vantagem das várias zonas ecológicas do seuecossistema.
Cadazonaéassociadacomplantaseanimaisespecífi-cos.OsKayapótêmumprofundoconhecimentodocom-portamento animal e sabem quais as plantas associadascom determinados animais. Os diversos tipos de plantassão,porsuavez,associadoscomtiposdesolos.Cadazonaecológicaé,portanto,umsistemaintegradodeinteraçõesentre plantas, animais, o solo e, naturalmente, o Kayapó
(Posey1983:880).
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o12
Porsuanomenclatura(nãocitadanatabelaabaixo)verifica-se
queosKayapóreconhecemtrêsgrandeszonasecológicasnoseu
território. Elas são divididas em subzonas e em áreas de transi-
ção interzonais (não especificadas na Tabela I por motivos de
simplificação).
Tabela I Zonas e subzonas ecológicas distinguidas pelos Kayapó
1. Savana 3. Floresta
1.1 savanadepastobaixo 1.2 savanacomárvores
3.1 florestadegaleria (debeira-rio)
1.3 savanacompastoalto 3.2 selvadensa
3.3 florestaalta
2. Montanha 3.4 florestacomclareiras intermitentes
Assubcategoriasdetiposdefloresta(3.1,3.2,3.3)sãosubdivi-
didas,parafinsdecultivo,segundosuasrespostasàsinundações
periódicas,previsíveisounão.Sãopreferidasasterrasdealuvião
maisricas,equecorrespondemàsterraspretas.Tratosde“terra
firme”,nãosujeitosainundações,sãotambémselecionadospara
aagricultura,afimdecompensarosdanosquepossamsercausa-
dosaoscultivosemterrasalagáveis.
Naszonasecológicas(ouecozonas)classificadaspelosKayapó
como “florestas com clareiras intermitentes” – que permitem a
penetraçãodeluzsolar,equivalendoporissoàscapoeirasouro-
çasabandonadas–esses índiosdistinguem“relaçõessistêmicas
quelhespermitemselecionarterrasagricultáveisdetiposvege-
tativos,bemcomoformularestratégiasdecaçaecoletabaseadas
noamadurecimentodefrutosqueatraemanimaisdecaça”(Posey
1983:881).
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 13
Oautorrelacionatrêstiposdesolos–preto,vermelho,amarelo–
naclassificaçãodosKayapó.Emcadaum,ounumacombinação
dedoisoutrês,frutificamárvoresdecujosfrutos,folhaseraízesse
servemdeterminadasespéciesanimais–porcão,paca(brancae/
ouvermelha),cutia(brancae/ouvermelha),jabuti,veado,anta–
eohomem.Ousohumanoinclui:alimentício,medicinal,como
iscaouvenenodepeixe,emanufatureiro(utilizaçãodamadeira).
(Cf.TabelaII,op.cit.)
RetornaremosváriasvezesaPoseynodecorrerdestecapítulo.
Passemos,agora,aoutrocasoilustrativo,paratratardoconheci-
mentoeusodosoloporoutratribo.
Os Kuikuro, estudados por Carneiro (1983), em quem nos
baseamosparaesteresumo,vivemnoCuluene,umdosforma-
doresdorioXingu.Classificamcomumadenominaçãotribalo
quesepresumesejaaflorestaprimária,quecobreamaiorparte
do seu território. A vegetação que cresce nas capoeiras recebe
outro nome. É a floresta secundária. Ela é deixada crescer du-
rantealgumtempoparadesenvolver-se.Avegetaçãoqueainda
nãoatingiuoestágiodeflorestaprimária,masultrapassouode
florestasecundária–adecapoeiras–,édistinguidapordiversos
nomespelosKuikuro.Essasdesignaçõesremetematrêsespécies
deárvorespredominantesemditafloresta.Representamvarian-
teslocaisdeflorestaemtransiçãoregenerativadesecundáriaa
primária.
Asárvoresquenelaspredominam,equejustificamsuadesig-
nação,sãoasquemelhorresistemàqueimaanualdemacegaque
cresceabaixaaltura.Emboraofogoretardeocrescimentodessas
árvores, nas capoeiras, ele enriquece o solo, tornando-o apto ao
cultivo da mandioca. Análises da composição mineral dos dois
tiposdesolo–florestaprimáriaeflorestasecundária,ondepreva-
leceumadastrêsespéciesdeárvoresresistentesaofogo–mostra-
ramqueosegundotipodesolo(florestasecundária)éumpouco
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o14
superior,apresentandoteormaisaltodecomponentesminerais,
ematériaorgânica,bemcomoacidezmenor.
OsKuikurodistinguemoutrotipodesolocomumtermoespe-
cíficoqueremeteàsuacomposiçãoenãoàsárvoresqueformam
acoberturavegetal.Aflorestaprimáriaédesoloarenoso,verme-
lho.Esteoutrotipoédeterrapretae,segundoosKuikuro,produz
tubérculos maiores de mandioca que o anteriormente citado. É
tambémosolopreferidoparaplantarmilho,umavezqueemter-
ravermelhaaproduçãoébemmenor.Amandioca,quenãoexige
nutrientesnamesmaproporçãoqueomilho,éplantadaemsolo
deflorestaprimária,queaindaexisteemabundânciaemredorda
aldeia.
OutrotipodesoloécaracterizadopelosKuikuroporsualoca-
lizaçãoaolongodosrioselagos,Correspondeaoquesecostuma
chamar“florestadegaleria”,cujafertilidadeequivaleàdafloresta
primária.
Como se vê, nesta breve explanação, os Kuikuro levam em
contanaclassificaçãodosolo,parasuautilizaçãoagrícola,omeio
inorgânicoeoorgânico.Percebemaoperatividadedessasduasdi-
visõese,comovimosnoexemploKayapó,asrelaçõesentreplan-
ta/animal/homem,asquaisnãosãovistasisoladamentesenãoem
modelointerativo.
2. Técnicas agrícolas
Numestudopioneiro,hojeclássico,sobreaadaptaçãoindí-
genaàAmazônia,aarqueólogaBettyJ.Meggersafirma:“Opon-
toaseracentuadoaquiéqueaagriculturaitinerantenãocons-
tituiummétododecultivoprimitivoeincipiente,tratando-se,
aocontrário,deumatécnicaespecializadaquesedesenvolveu
emrespostaàscondiçõesespecíficasdeclimaesolotropicais”
(1977:42).
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 15
Asvantagensdachamada“agricultura– dotipoextensivoiti-
nerante”,tambémconhecidacomotécnicadederrubada,queima
ecoivara–reconhecidasportodososestudiososmodernosquese
debruçamsobreotemapodemserassimsumariadas,conforme
selêemMeggers(1977:42/44)ePosey(1983:890):
1) Mantémafertilidadeinorgânicadosolonamedidaem
quenãoerradicaatotalidadedavegetaçãoqueocobre.
Um campo totalmente limpo, como ocorre nas zonas
temperadas,ajudaadestruir,numclimatropical,osnu-
trienteseaestruturadosolo.
2) Odesmatamentodeumpequenolotedeterra,decada
vez,esuautilizaçãotemporária,minimizaotempoem
queasuperfícieéexpostaaocalordosoleafortespan-
cadasdechuva.Ambosendurecemosolo,anulandosua
permeabilidade,volatizamosnutrientes,carreiamohú-
musparaosrioseoslagos,causamerosãoealixiviação
dosolo,impedindoarestauraçãodosnutrientes.
3) O plantio de espécies diversas, de alturas diferentes, a
exemplodoqueocorrenaflorestanatural,reduzoim-
pactodosoledachuvasobreacultura,evitandoapro-
pagaçãodaspragas,comoacontecenasmonoculturas.
4) Ocultivodecertasplantasnativas,asquaisfavorecem
a recaptura de micronutrientes e não competem por
nutrientes essenciais, representa uma adaptação bem-
-sucedida a condições climáticas locais, à baixa fertili-
dadee forteacidezdosolo,bemcomoaoutros fatores
nocivosdostrópicos.
5) Adispersãodoscamposcultivadosminimizaaincidên-
cia de pragas sobre a plantação e de insetos daninhos,
obviandoousodepesticidasque,alémdedispendiosos,
atentamcontraoecossistema.
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o16
6) Areferidadispersãogeográficadoscultivosfazcomque
espécies de vegetais e animais sejam preservadas em
“corredoresnaturais”queseparamasroças,representan-
doimportantesrefúgiosecológicos.
7) Aqueimaempequenaescala,praticadapelo indígena,
e o apodrecimento de galhos e troncos deixados sem
queimar devolvem ao solo nutrientes necessários para
alimentarosbrotos.
8) Ousodaestacadecavarparaasemeaduraépreferívelao
daenxada,doaradooudotrator.Estes,revolvendopro-
fundamenteoterreno,aumentamooxigênio,aceleran-
doadecomposiçãodamatériaorgânicaedanificandoa
estruturadosolo.
Ocultivoitineranteconstitui,portanto,umasoluçãoecoló-
gicaracionalencontradapelohabitantenativo.Suacontraparte
é uma baixa concentração demográfica e uma dispersão dos
agrupamentoshumanos.NocasodoBrasil,elarepresentariaum
benefício,porquepermitiriaaocupaçãototalemaisharmônica
do território. Isso só poderia ser alcançado, no entanto, com a
mudançaradicaldaestruturafundiáriaquenoséimpostadesde
aconquista.Estruturaantinacionaleantipopularqueimpedeo
acesso à propriedade da terra aos que nela labutam, ou àqueles
quequeiramtorná-laprodutivacomoseutrabalho.
Vejamosemdoiscasosespecíficos–índiosKuikuroeKayapó,
ondeforamfeitostrabalhosdecampoecologicamenteorientados
–astécnicasdecultivodealgumasplantasselecionadasporsua
importânciamaiornadietaaborígine.
OsKuikuro,depoisdeescolheremotratodeterraaserplan-
tada, segundo as características anteriormente apontadas, ini-
ciam a limpeza da macega que cresce sob as árvores. As roças
sãotradicionalmentecircularesemedemmenosdeumhectare
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 17
(0,65ha),emmédia.Alimpezadoterrenotemlugargeralmente
doismesesantesdoiníciodaschuvas,istoé,emjunho,noalto
Xingu.Derrubaminicialmenteasárvoresmaisaltas,localizadas
nocentrodoterreno.Suaquedaéorientadadeformaaatingir
outras,menores,ouqueestejampresasàsmaioresporcipóen-
roscadonacopa.Derrubadaamata,édeixadasecarpordoisou
trêsmeses.
OsKuikurosabemquandoéchegadaahora da queimapela
apariçãodaconstelaçãodopatonoladoorientaldocéu,antesdo
raiardosol.Eaindapelapostadeovosdetracajásnaspraiasdo
rioCulene.Aqueimaéfeitaàtarde,quandoaroçaestábemseca,
observando-se a direção do vento. Os Kuikuro colocam várias
tochasdeentrecascanoperímetrodaáreaderrubadanoladode
ondeoventosopra,quedessaformaajudaaespalharachama.A
queimaduracercadeduashoras.
Aoperaçãoseguinteéacoivara.Consisteemempilharetornar
aqueimarospausegalhosnãoconsumidospelofogoanterior.Ao
mesmotempoérecolhidaalenhaparausodoméstico.Quando
terminaaoperação,queduradenoveadezhoras,apenas7a10%
do terreno fica coberto de paus e galhos. Segundo os cálculos
feitosporCarneiro,ascinzasaumentamimediatamenteafertili-
dadedosolo,emalgunscasosdobrandoaquantidadedesaissolú-
veisetriplicandoouquadruplicandoseuteordepotássio,cálcio,
magnésioetc.Comparandoamostrasdeterradeflorestaprimária
comasdeflorestasecundária,apósaqueima,aúnicavantagem
da primeira em relação à segunda é quanto à composição mais
altadepH.Ocarvão,quetambémaumentaafertilidadedosolo,
levamesesparadesfazer-sequímicaemecanicamente.Constitui,
porisso,umareservadenutrientesparaaabsorçãomaislentae
gradualdaplantaemcrescimento.
Acoivaraeasegundaqueimatêmlugar,geralmente,ummês
antesdasprimeiraschuvas,proporcionandoaosKuikurotempo
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o18
suficienteparaprocederaoplantio.Estesefazatravésdaabertura
depequenascovas.Aoserescavada,aterraficamaisfriávelesolta;
asraízessãoremovidaseascinzaseocarvãomisturadosaosolo.
AdistânciaentreascovasnumaroçademandiocadosKuikuro
édecercadedoismetros.Assim,numaroçadetamanhomédio
haverá1.400covas,recebendocadaqualdezmudasdemandioca.
Quandoasmudassãodemaiordiâmetro,plantam-seapenastrês
em cada cova. São necessárias aproximadamente 58 horas para
plantartodaumaroça,oqueé feito individualmenteoucoma
ajudadeparenteseoutrosmembrosdacomunidade.
Carneirorecolheucercade46nomesnativosdecultivaresde
mandiocaentreosKuikuro.Entretanto,apenasquatrooucinco
variedades são plantadas numa única roça. Todas de mandioca
brava (Manihot esculenta). Elas são distinguidas pelos Kuikuro
segundoaalturadaplanta,acordahaste,asfolhasepecíolos,a
distânciaentreas folhase, sobretudo,aquantidadeequalidade
dos seus tubérculos, bem como o tipo de amido que fornecem.
Entretanto, as seis variedades preferidas pelos Kuikuro respon-
dempor95%desuaplantação.
Dependendo dos cuidados que se tenha em cercar e limpar
umaroçaentreosKuikuro,elapodedurardedoisacincoanos.É
deixadanãosódevidoàexaustãodosolo,senãotambémàinva-
sãodamacegadifícildecontrolardepoisdealgumtempo.
OsKayapóplantamnãoapenasnaroça,mastambémformam
pomaresdentrodasaldeias.E,oqueémaisimportante,plantam
nastrilhasqueligamasroçasàsaldeias,noslocaisondeencon-
tramárvorescaídasnomeiodamata,ondederrubamumpaupara
tiraromeleaceradeabelhas,emsítiosemmemóriadeparentes
mortoseem“micronichosespeciais,taiscomonasproximidades
derochasprovenientesdebasalto” (WarwickE.Kerr1986:159).
(VertambémPosey1986a.)SegundoKerr,
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 19
Os Kayapó plantam para assegurar sua subsistência,
parabancodegermoplasma,parafinsmedicinais,práticas
religiosaseparaatrairacaçaadeterminadoslogradouros.
Transferemmudasdamataparaastrilhasouparacantei-
rosnaroça.Visitamfrequentementeascapoeirasinclusive
paracoletarlenha(1986:159).
Oreferidoautorafirmaqueabatata-doceéoprincipalprodu-
to agrícola Kayapó. A mandioca vem ganhando terreno devido
àproduçãodefarinhaparaavenda.Quasetodososagricultores
Kayapóobservamodesenvolvimentodabatata-doceparaefetuar
o plantio das demais culturas. Ao brotar a batata, planta-se o
milho.Depoisqueomilhoalcançadoispalmos,planta-seocará
(Dioscoreasp.),amandioca,amacaxeiraeoariá(Calatheaallouia),
umamarantácea.Umindícioparacomeçaroplantiodabatata-
-doce é o canto de certo pássaro, de uma espécie de cigarra e o
florescimentodobarbatimão,uma leguminosa (Vatairea cf. ma-
crocarpa/Benth/Ducke). Detalhe curioso quanto ao cultivo da
batata-doceéofatodeosKayapóatearemfogoàroçadepoisquea
semeiam.Segundoinformaoautorcujotrabalhovenhoresumin-
do,“étécnicamodernasubmeterasbatatas-docesa48°Cdecalor
durante45a60minutos,afimdedestruirosvírusqueporventura
tenhameobterramasisentasdevírus”(Kerr1986:166).
Outrapráticaéforrarascovascomfolhasdeumarbustopara
evitarpragasnasfolhas(ibidem)eaumentaraprodução.
Abatata-doceassimcomoocarásãoplantadosnasgrandestri-
lhas.Desteúltimo,semeiamduasvariedadesporcova.Observação
importantefeitaporKerréadequeosKayapó
forramacovaabertaparadepositarobulbocompedaçosde
formigueiros(Aztecasp.)oudetermiteirosaéreos;colocam
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o20
outrotantoemcimadobulboefechamacovacomterra.
Plantam sempre duas variedades por cova, obtendo gran-
de produção. Este método promove, efetivamente, uma
constante competição com a correspondente seleção dos
melhorescultivares(Kerr1986:168).
Omilhoéumdosmaisimportantesvegetaiscultivadospelos
Kayapó.Selecionamespigasmaioresparaoreplantio,colocando
cincogrãosporcovaaumadistânciade1,40cmumadaoutrae
acreditamqueasuapolinizaçãoéfeitapelasabelhas.Kerrobser-
vou que antes de os Kayapó plantarem o milho “socam os bul-
bilhos de Costos warmingi (Zingiberaceae) untando as sementes
comessamassa.Asplantasnascemesetornammaisvigorosas
comessetratamento”(1986:161).
Paraexplicararazãopelaqualasmulheresmisturamatinta
depequenasformigasvermelhas(provavelmentePhiedalesp.)ao
urucu(Bixaorellana)napinturaderostoduranteosrituaisdomi-
lho,PoseycitaumfragmentodemitoKayapóeinforma:
O mito começa a tomar sentido quando se entende o
complexo coevolutivo do milho, feijões, mandioca e a
formiga.
A mandioca produz um néctar extrafloral que atrai as
formigasparaaplantaaindajovem.Asformigasusamsuas
mandíbulasparapalmilharocaminhoatéonéctar.Dessa
forma,elascortamahastedafavaqueimpediriaocresci-
mento de planta ainda frágil. (...) O milho pode suportar
semdanootalodafavaeaprópriaplantalheforneceoni-
trogêniodequenecessita.Asformigassãomanipuladoras
naturaisdanaturezaefacilitamasatividadeshorticultoras
dasmulheres(Posey1983:882).
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 21
Oautorconcluiqueaanálisedosmitos–seadequadamente
decodificados–podefornecerinformaçãosobreasrelaçõesecos-
sistêmicaseaacuidadedoconhecimentoecológicodosíndios.
3. “A agricultura nômade”
Sobessetítulo,Poseyrelataemseuartigo,tantasvezescitado,1
asatividadesagrícolas“nômades”dosKayapó,istoé,foradorecin-
toestritodaroça.
Como vimos, esses índios exploram os recursos de dois am-
bientes ecológicos: o cerrado e a floresta. Têm em comum com
outrosgruposJê(Timbira,Xavante)emacro-Jê(Bororo)aaldeia
circular, a residência matrilocal, a divisão em metades, grupos
de idade, sociedades dos homens, casa dos homens (exceto os
Timbira)eodeslocamentosazonalparaacaçaeacoleta.
ArespeitocomentaJoanBamberger:“Foisemdúvidaporessas
longascaminhadasembuscadeprodutosespecíficos,ouparaou-
trospropósitos,duranteaestaçãoseca,queosKayapó,eosJêem
geral,adquiriramafamadecaçadoresecoletoresseminômades”
(1967:77).
AnalisandoasassertivasdeCarneiro(1973)sobreotamanho
eaestabilidadedasaldeiasdosKuikuro,edosgruposdafloresta
tropical,demodogeral,Bambergerafirmaqueomesmoracio-
cíniopodeseraplicadoaosKayapó(1967:83).Chamaaatenção,
contudo,paraofatodequeadensidadeeaestabilidadedeuma
aldeia não podem ser medidas apenas em função da ecologia,
mas levandoemconta fatoressocioculturais.CitandoTerence
Turner(1966:79/80),afirmaqueaculturaKayapó,devidoàsua
organização social dividida em metades, grupos de idade, não
1 Os temas desse artigo foram reelaborados e ampliados posteriormente (cf.Posey,1986a,1986b).
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o22
pode funcionar sem uma massa crítica que esse autor calcula
em 80 indivíduos. Conclui que “A disparidade entre os tama-
nhosdasaldeiasKayapóeentreestaseasdastribosdafloresta
tropical (por exemplo, os índios não Jê do Xingu) deve ser in-
terpretadacomooresultadodaculturaantesquedaecologia”
(1967:65).
Desenvolve essa tese nos capítulos seguintes, mostrando
queosKayapó“têmumadependênciamenornosprodutosda
roçaqueosKuikuro,dandomaiorênfaseàcaça,pescaecoleta”
(1967:83).
E que “durante o verão, na estação seca, quando fazem suas
andanças, os Kayapó se abastecem quase que cem por cento de
produtos de caça e coleta pelo espaço de três meses, podendo
eventualmenteumgrupovoltaràaldeiapararenovarseuesto-
quedemandiocaebananadasroças”(1967:84).
AsevidênciasencontradasporDarrellA.Posey,biólogoean-
tropólogoquedesde1977estudaosKayapó-Gorotire,trouxeram
elementos novos para a discussão. Diz Posey que, durante suas
expedições de caça, que duram até quatro semanas, os Kayapó
levam poucos mantimentos, abastecendo-se em “ilhas naturais
derecursos”.Mastambémcriam“camposnafloresta”deespécies
semidomesticadasquePosey (1983:886)calculaemcercade54,
muitassemelhantesaostubérculosmonocotiledôneos,nãoiden-
tificados botanicamente, citados por Maybury-Lewis (1967:334)
entreosXavante.Esseautornomeianalínguaxavanteeilustra
graficamente sete dessas raízes, algumas semelhantes a batatas,
outras a abóboras e outras ainda a macaxeiras. Segundo Posey,
essas plantas semidomesticadas crescem nas clareiras naturais
daflorestaondepenetraaluzsolar.SãotidaspelosKayapócomo
equivalentes às capoeiras. “Os transplantes são feitos (...) nas
adjacênciasdosacampamentosquesesituamsempreemzonas
ecológicasdetransição”(Posey1983:887).
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 23
Num mapa feito por Posey, com base em desenho indígena,
pode-severalocalizaçãodosacampamentos,das“ilhasnaturais
de recursos”, dos “campos na floresta”, bem como das trilhas e
acidentesgeográficosencontradosnumaexpediçãodecaçados
Kayapó. São milhares de quilômetros de caminhos – informa
Posey–abertospelosíndiosparainterligaraldeias,roçaseasrefe-
ridasáreasderecursosnaturais.
4. Remanejamento de capoeiras
Aconcepçãodequeaagriculturaitinerante,talcomopratica-
daimemorialmentepelosíndiosdaflorestatropical,éprimitiva,
ineficiente e predatória – porque os campos são abandonados
apósdoisoutrêsanosdecultivo–éatualmenterefutadacomo
uma falácia. Os estudos realizados por Darrell Posey entre os
Kayapómostramqueelescontinuamseservindodas“roçasaban-
donadas”umavezque,emboraoápicedaproduçãodureapenas
dedoisatrêsanos,asroçasarmazenam“batatas-docespor4a5
anos,oinhameeocarádurante5a6anos,mamãopeloespaçode
4a6anos.Algumasvariedadesdebananascontinuamadarfrutos
por15a20anos,ourucupor25anoseocupá(Cissusgongylodes)
por40anos”(Posey1986a:174-5).
Outra vantagem das capoeiras – na qualidade de clareiras
abertasnamatapelaaçãohumana–équeelaspropiciamumre-
florestamentonaturalque,alémdeatrairanimaisdecaça,provê
plantasúteis,aindanãoidentificadasbotanicamente,masqueos
índiosutilizamextensamente.Taissão,segundoPosey,“alimento
emedicamento;iscasparapeixeseaves;sapé;materialparaacon-
dicionamento; tintas, óleos repelentes contra insetos; matérias-
-primasparaaconstrução;fibrasparacordasefios;materiaispara
a higiene pessoal e produtos para o fabrico de artefatos” (Posey
1986a:175).
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o24
OprojetointerdisciplinardeetnobiologiaKayapódirigidopor
Poseycoletou368plantasparaidentificaçãocientífica,dasquais
94%sãodeusomedicinalpelosindígenas.
A afirmação de Daniel Gross (1975: 536) de que as capoeiras
espalhadaspelaflorestapropiciamacapturadeproteínaspelos
índios,porque,aocontráriodamatacerrada,oferecemabundân-
ciadebrotosefolhagemdequemuitasespéciesdafauna–inclu-
siveinvertebrados–sealimentam,éconfirmadapelapesquisade
Posey.Vaimaislongeafirmandoqueadispersãoderoçasantigas,
junto a concentrações populacionais nas aldeias, oferece o que
chama de “fazendas de caça” a seus habitantes (cf. Posey 1986a:
175).Adverte,aomesmotempo,queasatividadesdecaçaimpe-
demqueestaseexpandademasiadamente,ameaçandoaintegri-
dadedoscultivos.
Paraatrairacaça,osKayapóplantamfruteirasnasroçasnovas
cujosfrutosamadurecemaolongodosanos.Poseyacrescentaque:
O cultivo de árvores ilustra o planejamento a longo
prazo e o remanejamento da floresta, uma vez que mui-
tas destas árvores levam décadas até produzirem frutos.
A castanha-do-pará, por exemplo, só produz passados 25
anos.Algumasárvores,plantadasparaatrairafauna,pro-
duzemalimentosapreciadospelosíndios,constituindoum
elemento essencial para a subsistência dos Kayapó. Estas
antigasroçasdeveriamchamar-se,talvez,“hortasdecaça”,
paraenfatizaradiversidadedeseus recursos (op. cit.:175).
(VertambémSmith1977.)
Outraformaderemanejarafloresta–etambémoscerrados–
por parte dos Kayapó é a manipulação do que Posey chama
“plantas semidomesticadas”. Trata-se de transplantes feitos nas
clareiras naturais da mata, a que já me referi, de espécies que
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 25
requerem luz e insolação, e que também se adaptam bem nas
capoeiras.Apardeexpediçõesdecaça,osKayapóempreendem
excursões unicamente para fazer transplantes, utilizando, para
isso,locaisondetenhamderrubadoárvoresparaacoletademel
ouaquelesemqueencontramárvorescaídas,conformereferido,ou
nos locaisdeantigasaldeias.A issooautorchama“agricultura
nômade”,acreditandoquetais“camposnasflorestas”detectados
entreosKayapótambémocorramentreoutrosgrupos.
IssomefazrecordarumaexpediçãoquefizcomíndiosKayabi
paracoletartintadeentrecascadejequitibá(Carinianasp.),afim
de pintar um cesto. A caminhada no meio da mata fechada, de
clareiraseumaredeintrincadadetrilhosdurouduashoras.Em
toda essa área só havia um único jequitibá. Tê-lo-iam plantado,
perguntoagora?Ofatoéquechegaramaolocalevoltaramàal-
deiasemerrarocaminho.Sabiamexatamenteondeselocalizava
aárvorequelhesforneceopigmentoparaacestaria(cf.B.Ribeiro
1979:141-143).
Voltemos aos Kayapó. Registros de Terence Turner (1966)
indicam que eles perambulavam no sentido leste-oeste entre o
TocantinseoAraguaia,eemdireçãonorte-suldoPlanaltoCentral
doBrasil,atéorioAmazonas.
Durante essas longas marchas, os índios não levam
provisões e utensílios, devido a seu volume e peso.
Contudo, a alimentação de 150 a 200 indivíduos não
podeserdeixadaaoacaso.Paraesseefeito,sãocoletadas
etransplantadasplantasjuntoatrilhaseacampamentos,
produzindo-se,artificialmente,“camposnafloresta”.Esses
nichoscolocamàdisposiçãodoscaminhantes,edosque
os sucederem, todo o necessário à vida (...). A existência
de“ilhasnaturaisderecursos”eseussímiles,os“campos
na floresta” construídos pela ação do homem, permitem
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o26
aosKayapóprescindirdosprodutosdaroçadurantesuas
longasviagens(Posey1986a:177).
Comovimos,osKayapócontamcomasplantaçõeslinearesque
fazemaoladodasestradas(deatéquatrometrosdelargura)que
unemaldeiaseroças.Essasestradas(cercade1.500kmdecompri-
mentocomumamédiade2,50mdelargura),queunemasatuais
11aldeiasKayapó,sãoplantadascom“numerosasvariedadesde
inhames,batatas,marantaceae(ariá),Cissus(cupá),Zingiberaceae
eoutrasplantastuberosasnãoidentificadas.Centenasdeplantas
medicinaiseárvoresfrutíferasincrementamadiversidadedaflo-
raplantada”(op.cit.).
AcrescentaPoseyque:
Olevantamentofeitonumatrilhade3km,queuneaal-
deiaGorotireaumaroçapróxima,constatouaexistênciade:
1) 185árvoresplantadas,representandopelomenos15
espéciesdiferentes;
2) aproximadamente 1.500 plantas medicinais perten-
centesaumnúmeroindeterminadodeespécies;
3) cerca de 5.500 plantas alimentícias de um número
igualmentenãoidentificadodeespécies(op.cit.:178).
Roças são abertas e cuidadas por mulheres idosas em ele-
vações. São reservas de alimentos para prevenir a quebra de
colheitasemcasodeinundações.Capoeirasdeoitoadezanos
sãolimpasdemacegaereplantadas.Nessaselevaçõeseantigas
roças são plantados principalmente bananeiras, tubérculos e
marantáceasdegrandevalornutritivoealtamenteapreciados
pelosKayapó.
Nas próprias aldeias, em áreas adjacentes às casas, são plan-
tadas cerca de 86 espécies alimentícias e dezenas de plantas
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 27
medicinais.“AspráticasdecuradosKayapósãoaltamentesofis-
ticadas.Juntoacadacasasãoplantadasespéciesdeusomedici-
nalcorrente,algumasdelasdomesticadasousemidomesticadas”
(Posey1986a:181).
SegundoPosey,
Um dos principais resultados do remanejamento dos
quintaiséaformaçãodesolofértil.Algunsdosmaisricos
eprodutivossolosdaAmazôniasãoosdenominados“terra
pretadosíndios”.Acredita-sequetenhamsidoproduzidos
pela manipulação do solo amazônico, geralmente pobre,
por ação humana, isto é, indígena (ibidem). (Ver também
Smith,1980.)
Essesmétodosindígenasderecuperaçãodeflorestas,transfor-
mados em pomares, e melhoramento dos solos, transformados
em ubérrimas terras pretas, que só agora vêm sendo cientifica-
mente descritos, são um libelo contra o etnocentrismo dos que
formulamnossapolíticafundiáriaeagrária.Háquase500anos,
aclassedominantebrasileira–elatino-americanaemgeral–tei-
maemdesconheceraexperiênciadeadaptaçãoaos trópicosde
populaçãotidascomoprimitivas,incultaseselvagens.Essafoie
continuasendoumajustificativamoralsuficienteparacondená-
-lasaoextermínio.Tendoemmenteesseespantosogenocídioe
etnocídio,aoencerrarseuartigo,Poseyafirma:
Comosevê,aetnobiologiaapontanovosrumosparaa
pesquisanabaciaamazônica,ouondequerquesobrevivam
sociedadesindígenas,caboclasoucaipiras.Éprecisoterem
mente, porém, que as culturas indígenas se extinguem,
poucoapouco,acadadia.Urge,porisso,nãosótrabalhar
comafincoafimderegistrardadosvirtuais,mastambém
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o28
lutarparapreservarasterras,aliberdadeeodireitoàexis-
tênciadospovostribais(1986a:184).
Cabeacrescentarqueoutroestudoemandamento,entreos
índiosBora,doPeru,dirigidoporWilliamM.Denevan,estáche-
gandoàsevidênciasregistradaspeloprojetoKayapóencabeça-
doporWarwickE.KerreDarrellA.Posey.Emnotapreliminar,o
geógrafoJohnTreacy,membrodareferidaequipe,mostraqueos
BorautilizamummétodosemelhanteaodosKayapónomanejo
ereconstituiçãodaflorestasecundáriaemantigascapoeiras.Os
Boratransplantamespéciessilvestresparaváriosfins:alimento,
medicina,madeirasparaconstruçãoeparalenha,matéria-prima
para manufaturas e plantas utilitárias (cipós para amarrilhos,
porexemplo)(Treacy,1982:16).Dentreasfruteiras,oautorcita
as seguintes: palmeira pupunha (Bactris sp.), uvilha (Pourouma
cecropiaefolia),umari(Poraqueibasp.),caimito(Chrysophyllum
caimito), guava (Inga edulis) (op. cit.: 15). Treacy, da mesma
forma de Posey, refuta a ideia de que a agricultura itinerante
utilizaosoloapenasdurantedoisoutrêsanos.Aocontrário,
demonstraqueessapráticaagrícola“evoluinumsistemaagro-
florestalduranteoperíodoposteriordociclodecolheitaedu-
ranteosprimeirosanosdederrubadadafloresta.Emessência,
os estágios progridem de roça de mandioca para roça mista
mandioca-frutasparapomardefrutasresidualeparafloresta
alta”(1982:16).
Tudosedáporqueasfruteirasnãocompetemcomasoutrases-
pécies,decrescimentosecundário,porluminosidadeenutrientes
dosolo.Ocrescimentodemacegaépermitidoparaquedêlugara
novasqueimadas,afimdequeascinzasfertilizematerra.
A erradicação da floresta amazônica que ocorre em nossos
dias,comatotaldestruiçãodomantoflorestalemimensasexten-
sões para ceder espaço a pastagens ou a monoculturas exóticas
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 29
(Gmelina, eucalipto, pínus), tendo um vista a produção de ce-
lulose (a exemplo do tristemente célebre projeto Jari), é social,
econômicaeecologicamentecondenável.Nãolevaemcontaas
necessidadesdapopulaçãolocal–indígenaecabocla–nemasli-
çõesdopassadoquesóagoravêmalume,talvezdemasiadotarde,
considerando-seovultocriminosodadepredação.
5. Seleções genéticas de plantas
Ahistoriografiabrasileiradesconhece,praticamente,aimensa
contribuiçãodoaborígineamericanonoqueserefereapráticas
deconsequênciasgenéticasnadomesticaçãodeplantas.“Aagri-
culturanãopodedispensaroconhecimentodabotânica”,escreve
F. C. Hoehne (1937: 9), companheiro do Marechal Rondon nas
peregrinaçõesdesdepelossertõesdoBrasil,eautordamaisim-
portanteobrasobreosaberagrícolaebotânicodosilvícolabrasi-
leiro.Conformeindicaotítulo–BotânicaeagriculturanoBrasilno
séculoXVI–,oalentadotrabalhodeHoehnecompilaasinforma-
çõesdoscronistasdoséculodadescobertaedosnaturalistasque,
desdePisoeMarcgrave(séculoXVII),classificamasplantascom
orespectivonomeindígenae,apósoséculoXVIII,pelosistema
bináriodesenvolvidoporLineu.
Asformasoriginaiseagrestesdasplantasdomesticadaspelos
índioscontinuamsendopesquisadas.Aesserespeito,dispomos,
entre outros, do trabalho de Carl O. Sauer divulgado há pouco
em português (1986). Com referência a seleções genéticas em
plantasselvagensecultivadas,praticadasaindahoje,contamos
apenascomotrabalhodeWarwickE.KerreCharlesR.Clement
(1980), resultante de estudos feitos junto aos Tukuna, Desana,
Paumari,Cinta-LargaeoutrastribosdaAmazônia.(Vertambém
Kerr1986.)
Essassãonossasprincipaisfontesparaapresentediscussão.
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o30
Mandioca (Manihot esculenta)
Amaisimportanteplantaalimentícialegadaàhumanidade
peloantigohabitantedoneotrópicoéamandioca.2Devetersido
domesticadanaAmazôniaháquatrooucincomilanos(Kerr&
Clement 1980: 252), sendo cultivada hoje, além da América do
Sul, nas Antilhas, na América Central, no México, na Flórida
(EUA) e em extensas áreas tropicais na Ásia, África e Oceania.
Alémdeserumaplantaquedáfacilmenteemterrapobre,como
o podzol do alto rio Negro, de poder permanecer estocada na
própriaterraporperíodosmuitograndes,amandiocatemavan-
tagemdeserumalimentoricoemamidoefornecerumasériede
subprodutos.Comefeito,damandioca-bravaobtém-se,aparda
farinha,datapioca,dobeiju,amanicoera(emlínguageral),que
éoveneno(ácidohidrociânico)transformadoembebidanãofer-
mentadadepoisdesubmetidoàcocção.Atecnologiaalimentar
combasenamandiocainclui,entreosDesanaeTukanodoalto
Uaupés,cincoqualidadesdefarinha,setedebeiju,setebebidas
nãofermentadaseoitofermentadas(B.G.Ribeiro1980ms.:259).
Semembargo,afarinhadamandioca,emboraricaemvitamina
A,calorias (320)eaminoácidos(404mg),épobreemproteínas
(1,7g)(Gross1975:527).
Paracompensar,apresentainúmerasvantagensalémdasassi-
naladas.Seurendimentoébastantegrandeporunidadedeterre-
no,umavezqueasmanivaspodemsercultivadaspróximasumas
dasoutras,àrazãode10milpésporhectare(Schery1947:25),eo
crescimentoérápido.Outravantagemdocultivodetubérculos
comoamandioca,quandocomparadocomgrãos,comoomilho,
équeamandiocaépoucosuscetívelàspragas,cresceemsolos
semiáridoscomoosdoNordeste,temperadoscomoosdoSuldo
2 Alémdealimento,amandiocapodeviraserempregadacomocombustível.
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 31
Brasil e pouco férteis como as terras da Amazônia. Não exige a
queimatotalelimpezadoterreno.Seurendimentoporunidade/
trabalho é unidade/área, bem como seu componente calorífico
émaisaltodoqueodomilho.Este,contudo,contémmaisami-
noácidosqueamandioca:3.820mgcontra404(Gross1975:534e
TabelaI).
Nãoobstanteobaixoteordealimentoproteicoingeridopelas
populações indígenas, que baseiam sua dieta alimentar essen-
cialmentenamandioca,elasestãotãoadaptadasaessadietaque
nãoapresentamnenhumadoençacarencialeexibemgrandevi-
gorfísico.Sendopobreemproteínas,amandiocanãoretirado
solomateriaisnitrógenosnamesmaproporçãoemqueofazem
outrasplantas(Schery1947:25),produzindomaiorquantidade
deamidoutilizávelporhectaredoquequalqueroutracultura
conhecida(ibidem).Nessesentido,pode-seestenderaoutrosgru-
pos“mandioqueiros”oscálculosfeitosporRobertCarneiropara
osKuikuro:80a85%desuadietaprovémdamandioca(1973:98).
ExaminandoaintroduçãoemduasaldeiasTukanodecultiva-
resdemandiocaamarga(ManihotesculentaCranz),nosúltimos50
anos, Janet Chernela (1986) procura demonstrar a importância
depráticassociaisnadistribuiçãoediversificaçãodoscultivares.
Em três anos de trabalho de campo, a pesquisadora conseguiu
obterasdesignaçõesecaracterísticasdomaiornúmerodeculti-
varesdemandiocaemusoporumgrupoindígena:ototalde137.
Atualmente,afirmaChernela,
Botânicos e agrônomos vêm demonstrando crescente
interesse em recuperar a diversidade intraespecífica per-
dida,emvirtudedousodetécnicasmodernasdeseleção
ecruzamento.Amandioca(Manihotesculenta)éumexem-
plopoucocomumdeplantacujaricadiversidadegenética
foipreservadaecontroladapeloshorticultoresindígenas,
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o32
ao longo de milhares de anos de experimentação. Essa
perdaocorreuaofatoderaramentereconhecer-sequeos
sistemas aborígines de cultivo resultam da observação e
doremanejamentocuidadosodadiversidadegenética.(...)
Para obviar esse percalço, procura-se hoje reintroduzir,
mediantearecuperaçãodavariaçãointraespecífica,carac-
terísticasperdidas(Chernela1986:151).
Escusado dizer da importância de informações como as que
Cherneladivulga.Atítulodecomparação,diriaqueKerr (Kerr
&Clement1980:253)encontrouemoutrogrupodamesmaárea,
osíndiosDesana,40cultivaresdemandioca,eRobertoCarneiro,
46variedadesdessetubérculo,conformeassinaleianteriormente.
NaobrasobreogêneroManihot,Rogers&Appanrelacionam98
espéciesdogêneroManihot,váriasdelascomatécincosubespé-
cies(1973:255/256–listanuméricadetaxa).
Kerr&Clementreferem-seaalgumasdas“seleçõesmaisim-
pressionantes feitas pelos índios da Amazônia” (1980: 254), que
tiveram a oportunidade de comprovar. “A variedade selvagem
do abio (Pouteria caimito), ainda encontrada nas matas, possui
frutos que pesam cerca de 30 gramas. No alto Solimões... os ín-
dios (Tukuna) selecionaram variedades que alcançaram até 180
gramasporfruto”(op.cit.:256).
O mapati (purumá, cucura, uvilha) (Pourouma cecropiaefolia)
éconsideradopeloscitadosautorescomopossívelsubstitutoda
uva na Amazônia. A respeito dessa fruta informam que “Os ín-
dios Tukuna melhoraram consideravelmente essa espécie. Nos
arredoresdeLetícia(altoSolimões)estãoosmelhorescultivares,
frutodessaseleção”(ibidem).
OutrafrutaobjetodaseleçãogenéticapelosíndiosTukunaéa
sapota(Quararibeacordata).SegundoKerr&Clement:“Aplanta
selvagemproduzfrutosapenascom9a12cmdecomprimento
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 33
por 3-5 cm de diâmetro. As seleções dos índios Tukuna (alto
Solimões)levaramaárvoresqueproduzemde3.000a8.000frutos,
quase esféricos, de10 a15 cm de diâmetro, pesando400 a1.300
gramas”(ibidem).
Apupunha(Bactrisgasipaes)assumeexcepcionalimportância
para as populações indígenas e caboclas da Amazônia devido
ao elevado teor de proteína e altas taxas de vitaminas A, B e C.
NativanaAmazônia,essapalmeirafoidomesticadapelosíndios.
Vejamosoprocessodeseleçãodesementesedeplantionarrado
aoDr.KerrporTolamanKenhiri,índioDesana,autordeumlivro
demitosdesuatribo.Aseleçãoéfeitasegundo:
1º)númerodecachos;2º)tamanhodosfrutos;3º)devem
sereliminadasasplantasqueproduzemfrutoscomman-
chasourachaspretas,quesecretamumaresinaescura(pa-
recebreu)equeseestragamecheirammal.
No momento do plantio procedem assim: a) põem os
frutos na água (numa vasilha); b) aquecem até mais ou
menos 50°C; c) ao atingir 50°C retiram as sementes de
quantas queiram plantar; d) plantam; e) replantam no
lugardefinitivoquandotêmummínimode10cmeum
máximode60cmdealtura.
Háváriascrendicesassociadasaocultivodapupunha,
entre os Desana. As duas principais são: a) raspando a
sementecomumralo,aplantanãoproduziráespinhos;
b)seamarrarasfolhasnovasemcima,aárvorecrescerá
poucoeproduzirácachosabaixaaltura(Kerr&Clement
1980:258).
ImportanteobservaçãodeVonMartiusconvémserlembrada
nessecontexto.Dizele:
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o34
(...)asvariedadeseraçasaumentamemnúmeronapro-
porçãodonúmerodeanosduranteosquaissetemovege-
talemcultura.Comoprovamaisevidentedofatodeque
estainfluênciaexiste,temosasplantascultivadasdurante
muitotempoemultiplicadaspormeiodeestolhosoure-
bentos, que perdem totalmente a faculdade de produzir
sementes.(...)
Comoespecialmenteimportanteparaestanossaasser-
ção,mencionoapalmeiraGasipáesouPupunha(Gulielma
speciosa), que, na maior parte, nas regiões tropicais da
América,ésempremultiplicadapelosaboríginespormeio
derebentoslaterais,ecujoputâmendurocomopedra,do
tamanho de uma ameixa regular, na cultura sucessiva,
muitasvezesseachatotalmenteatrofiadooutransforma-
doemumasubstânciacartilaginosa.
Quantosséculosnãoteriamsidoprecisosparadesabituar
estaárvoreaproduzirasuasementetãosólidaegrande(K.
F.v.MartiusapudHoene1937:40-41).
Oabacaxi(Ananascomosus)emestadoselvagempesaapenas
de100a200gramasemalalcança12cmdecomprimento.Asse-
leções genéticas feitas pelos índios produziram variedades com
ousemespinhoecomapartecomestívelmeioácidaoumuito
doce, nas tonalidades amarelo-gema, amarelo-claro e branca e
compesoquevariaentre800gramasa15quilos(Kerr&Clement
1980:258-9).
Umdosvegetaisindígenasmaisimportantesepoucoconhe-
cido é o cupá, ou cipó-babão (Cessus gongylodes), uma casta de
mandiocaarbóreaquedevetersidodomesticadahá,nomáximo,
1.000 anos. O cupá cresce rapidamente e é encontrado entre os
grupos Timbira e Kayapó, em estado selvagem e semidomesti-
cado, oferecendo, por isso, interessantes informações sobre o
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 35
processo de seleção genética de plantas, que ainda se processa,
atualmente,entregruposindígenas.Avariedadeselvagemalcan-
ça,nomáximo,1cmdediâmetro,eadomesticadapelosíndios,4
cm.Medraemsolospobres,easmanivassãoconsumidasassadas
oucozidas,tendogostodemacaxeira.Análisesquímicasdocupá
demonstramqueeletemgrandevalornutritivo:77,56%deágua,
1,2%deproteína,1,0%degordurae18,84%decarboidratos,bem
comoaltoteordevitaminas(A,B,B2,C,D2,E).Cemgramasda
plantaoferecem89,2calorias(Kerretalii1978:704).
6. Repertório de plantas cultivadas
No capítulo anterior, oferecemos um pálido exemplo dos
esforçosempreendidospelosíndiosparaobteremumaproduti-
vidademaiorporplantacultivada.Passados486anosdadesco-
berta,oestudodosmétodosporelesempregadosmalseinicia,
quando tantas seleções feitas em tuberosas, cereais e fruteiras
se perderam irremediavelmente. Na Tabela 11 apresentamos
a listagem parcial dos vegetais cultivados pelos aborígines. As
plantasmaisimportantesparaaeconomianacionalemundial,
aexemplodamandioca,jáexaminada,sãodescritasabaixocom
maisdetalhes.
a) Grãos, tuberosas e feijões
Milho (Zea mays)
O milho, da família das gramíneas, figura entre as três mais
importantes plantas que alimentam a humanidade. As outras
duassãootrigo(Triticumsp.)eoarroz(Oryzasativa).Omilhoé
cultivadoatualmenteemtodasasregiõestropicaisesubtropicais
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o36
domundo.Alémdealimentohumano,vemsendoutilizadonas
raçõesdesuínos,caprinos,galináceoseequinos.K.F.vonMartius
encontroudesignaçõesparaessecerealemmaisde60tribos(cf.
Hoehne1937:114).Sauer(1986)temdúvidasdequeomilhomais
primitivoqueseconhece,chamadotunicata,possaserencontra-
do em estado selvagem na bacia do Paraná-Paraguai, território
Guarani, onde, possivelmente, se teria originado. Na América
pré-colombianaeracultivado“atéasúltimasfronteirasagrícolas,
exceto no altiplano andino, excessivamente frio” (Sauer 1986:
61). Não obstante constituir espécie botânica única, fecundada
porcruzamento,aseparaçãogeográficaeaseleçãogenéticafeita
pelos cultivadores contribuíram para a preservação de uma ex-
traordinária variedade de formas: cerca de 250. O estudo dessas
variedades e de sua distribuição geográfica permitirá esclarecer
pontosobscurossobreaprópriaorigemdomilho,ahistóriada
agricultura e as migrações e contatos no Novo Mundo, afirma
Sauer(op.cit.:64).
Omilhoéconsumidopelosíndioscomolegume,istoé,assado,
cozido,ecomocereal,ouseja,reduzidoapófarináceocomquesão
feitosinúmerospratos.Entretanto,seuempregomaisnotávelé
naformadebebidafermentada–ofamosocauimdosTupinambá
–quealimenta,refrescaeembriaga.Veremosadiante,naTabela
IV,queoteordeproteínadomilhoultrapassaodoarroz(9,4para
7,2).Aquantidadedecaloriasdomilho(361)étambémsuperiorà
doarroz(357).Omilhocontémmaisaminoácidosqueamandioca:
3.820mgcontra404(Gross1975:534eTabelaI).Segundoesseautor,
omilhoéplantadopelastribosdaAmazôniacomosuplementoà
culturadamandioca.Issosedápelasseguintesrazões:1)omilhoé
menos produtivo que a mandioca por unidade-área; 2) o milho
exigeterrasmaisférteis,pluviosidaderegularepedemelhorefi-
ciêncianopreparodoscamposdecultivo;3)ostubérculos,como
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 37
amandiocaeasbatatas,quemadurammaislentamente,retiram,
nomesmoritmo,osnutrientesdeixadosnasuperfíciepelaquei-
ma;4)omilhotemquesercolhidoassimqueamadurece,aopasso
queamandiocapodeserarmazenadanaterraporváriosanosou
entãonaformadefarinha,durantemeses(ibidem).
Batata-doce (Ipomoea batatas)
Nas áreas em que grãos, como o milho, não se adaptavam
facilmente, tubérculos ricos em amido foram domesticados. É
ocasodabatata-doce,introduzidanaEspanhaem1526,apartir
deCuba.GabrielSoaresdeSouza,ograndetratadistadasplantas
indígenasbrasileirasnoséculoXVI,relacionouoitovariedades
caracterizadaspelacorepelopaladar.Paramuitastribos,dentre
astuberculíferas,depoisdoaipimedamandiocavemabatata-
-doce.OsAsurini,grupotupidomédioXingu,relacionaram20
nomesdecultivaresdebatatas.Jánãocultivavamtodosporque,
emsuasfugas,perderamasramasdametadedeles(cf.B.Ribeiro
1982:37).
Abatata-docetemumadistribuiçãomaiorqueamandiocana
América.Paraonorte,poucoultrapassouotrópicoeparaooeste–
avançandonazonatemperadadoaltiplano–alcançouoPacífico,
multiplicando-se por divisão (Sauer 1986: 71). Identificações
botânicas admitem a existência de centenas de espécies, sendo
a Ipomoea fastigiata uma espécie silvestre da América tropical
(ibidem).
A batata-doce era o alimento básico dos grupos Jê, família
linguística que inclui, entre outros, os Kayapó, os Timbira e os
Xavante.KerrePosey(1984)encontraramnasroçasdosKayapó-
-Gorotirebatatas-docescomatéquatroanosdeplantadas,distin-
guindoporinformaçãodessesíndios22cultivares.(VerTabelaII.)
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o38
Cará (Dioscorea sp.)
“Háoutrasraízescomobatatas,carás,mangarás”,escreveJosé
de Anchieta em 1570, passados 17 anos de sua permanência no
Brasil.Acrescentaque“estassecomemassadasoucozidas,sãode
bomgosto,servemdepãoaquemnãotemoutro”(apudHoehne
1937:105).Ocaráé frequentementeconfundidocomoinhame,
trazidodasilhasdeCaboVerdeedeS.Tomé,eaquiaclimatado.
Trata-sedaespécieAlocasiamacrorhiza,segundoHoehne(ibidem).
Aos“carazes”serefereaindaGabrielSoaresdeSouzacomgrande
riqueza de detalhes, confirmando sua distinção dos inhames. E
tambémaos“mangarazes”–taiobaoutaro(Xanthosomasp.)–,dos
quais seconsomemas folhaseas raízes, do tamanho de “nozes
e avelãs”, colhendo-se “duas novidades no ano” (Hoehne 1937:
208/9). Sauer (1986: 72) inclui no gênero Dioscorea os inhames
introduzidosdoVelhoMundo.Afirma,todavia,quenaAmérica
existem variedades silvestres desse gênero, distinguindo-se inú-
meras tuberosas comestíveis no Nordeste do Brasil (op. cit.: 72).
“UmaDioscoreaamericana,a‘yampee’(D.trifida,tambémreferida
como D. brasiliensis), pode ser uma planta verdadeiramente do-
mesticada”(ibidem).
Ariá (Calathea allouia)
Amarantáceamaiscomumedemelhorpaladar,domestica-
daportribosamazônicas,é,segundoKerr(1986:168),aCalathea
allouia.OsKayapóreconhecemcincovariedades.Trêsdelas“pro-
duzemdobulbodereservasdaraizeasduasrestantesbrotam
dabatata,oqueindicaumaseleçãocompletamentediferentena
históriadesuadomesticação”(op.cit.:169).Sãoconsumidasassa-
daseamassadascomfarinha.OsDesanapossuemdoiscultivares.
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 39
A análise química do ariá demonstrou que ele contém 66% de
proteínae13a15%deamido(pesoseco)(ibidem).
Feijões (Phaseolus sp.)
De grande importância alimentar são os feijões, da famí-
lia das leguminosas, devido ao seu alto conteúdo de proteína.
Comecemos pelo amendoim, que se destaca por seu teor de
gorduraeexcelentesabor.“Oamendoim(Arachishypogaea)”,diz
Sauer(1986:64),éumadasrarasplantascultivadasatribuídasao
Brasil; sua espécie selvagem mais próxima se encontra desde a
BahiaatéoRiodeJaneiro.”Consideraextraordináriasuadissemi-
naçãopré-colombiana.NaAméricaéregistradadesdeolitoraldo
BrasilatéoPeruenoaltiplanoperuano,oqueindicauma“ligação
cultural de considerável antiguidade entre o Brasil oriental e o
Peruocidental,litorâneo”(op.cit.:65).Emboranãotenhaatingido
grandeimportâncianoMéxico,apesardoclimapropício,Sauer
aventa a possibilidade de pertencer o amendoim “ao complexo
deculturadamandioca(amargaedoce)nasuadistribuiçãopelo
NovoMundo”(ibidem).
AexpansãodoamendoimnomardaChinaeaooceanoÍndico,
enãoàAméricanoNortecontinental,levaoreferidoautorapre-
sumirumadisseminaçãopré-colombianatrans-Pacífico,através
daqualoamendoimchegouàÁfrica(Sauer1986:65).
JosédeAnchieta,GabrielSoaresdeSouza,JeandeLeryeou-
troscronistassereferemafavasefeijõescultivadosnasroçasdos
TupidacostadoBrasil:Trata-sedeespéciesdogêneroPhaselous
que Soares descreve como sendo brancos, pretos, vermelhos e
outros pintados de branco e preto (cf. Hoehne 1937: 213). (Ver
TabelaII.)
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o40
Tabela IIPlantas indígenas cultivadas
Número de cultivares segundo a taxonomia tribal
nome designação científica tribo fonte nº cultivares
Mandiocaemacaxeira
ManihotesculentaManihotdulcis Kayapó Kerr&Posey1984 21
Mandioca Manihotesculenta Tukano Chenela1986 134
Batata-doce Ipomoeabatatas Kayapó Kerr&Posey1984 22
Batata-doce Ipomoeabatatas Asurini B.Ribeiro1982:37 20
Cará Dioscoreasp. Kayapó Kerr&Posey1984 21
Cará Dioscoreasp. Asurini B.Ribeiro1982:37 8
Milho Zeamays Kayapó Kerr&Posey1984 11
Milho Zeamays Asurini B.Ribeiro1982:37 9
Banana Musaparadisiaca,M.sapientum Kayapó Kerr&Posey1984 14
Banana Musaparadisiaca,M.sapientum Asurini B.Ribeiro1982:37 11
Banana Musaparadisiaca,M.sapientum Yanomami Lizot1980:31 11
Cupá Cissusgongylodes Kayapó Posey1983:884 4
Feijão Phaseolusvulgaris Kayapó Posey1983:884 4
Feijão Phaseolussp. Asurini B.Ribeiro1982:37 8
Feijão Phaseolussp. Kayabi B.Ribeiro1979:120 5
Amendoim Arachishypogaea Kayabi B.Ribeiro1979:120 6
Mangaritooutaioba
Xanthosomasp.Xanthosomasagittifolium
KayabiYanomami
B.Ribeiro1979:121Lizot1980:21
57
Ariá Calatheaallouia Desana Kerr&Clement1982:259
2
Pimenta Capsicumsp. Desana B.Ribeiro1980ms 14
Mamão Caricapapaya Kayapó Posey1983:884 4
Pupunha Guilielmagasipaes Yanomami Lizot1984:34 4
Pupunha Bactrisgasipaes Desana Kerr&Clement1980:258
1
Sapota Quararibeacordata Tukuna Kerr&Clement1980:256
1
Abacate(*) Perseaamericana Yanomami Lizot1980:29 1
Abacaxi(*) Ananasparguazensis Yanomami Lizot1980:22 1
Caju Anacardiumsp. Kayabi B.Ribeiro1979:121 1
Maracujá Passiflorasp. Kayabi B.Ribeiro1979:121 1
Abiu Pouteriacaimito Desana B.Ribeiro1980ms 1
Biribá Rolliniamucosa Desana B.Ribeiro1980ms 1
Cacau Theobromasp. Desana B.Ribeiro1980ms 1
Cucuraoumapati Pouroumacecropiaefolia Desana B.Ribeiro1980ms 2
Goiaba Psidiumsp. Desana B.Ribeiro1980ms 2
Graviola Annonasp. Desana B.Ribeiro1980ms 1
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 41
nome designação científica tribo fonte nº cultivares
Toá Gnetumsp. Desana B.Ribeiro1980ms 3
Umari Geoffroyasp. Desana B.Ribeiro1980ms 3
Ingá Ingáedulis;I.cinnamomea Desana B.Ribeiro1980ms 1
Miriti Mauritiaflexuosa Desana B.Ribeiro1980ms 1
Pequi Caryocarspp. Trumai Murphy&Quain1975:100
1
Tabaco Nicotianatabacum Kayapó Posey1983:884 3
Urucu Bixaorellana Kayapó Posey1983:885 6
Algodão Gossypiumarboreum Kayapó Posey1983:884 4
Caroá Neoglazioviavariegata Araweté B.Ribeiro1984 3
Flecha Marantaarundinacea Kayapó Posey1983:884 6
Cabaça Lagenariasiceraria;L.vulgaris Yanomami Lizot1980:23 7
Junco(**) Cyperus corymbosus; C. distants;C.articulatus Yanomami Lizot1980:23
Lizot1980:2415
Barbasco(***) Phyllantuspiscatorum Yanomami Lizot1980:26 1
Paricá(**) Anadenantheraperegrina Yanomami Lizot1980:29 1
Cambará(****) Lantanatryphylla Yanomami Lizot1980:38 1
Coca Erytrhoxylumcaractarum Desana B.Ribeiro1980ms 1
(*) AbacateeabacaxisãotambémcultivadospelosWanana(informaçãopessoaldeJanetChernela).Aindicaçãodeumúnicocultivarsignificaamençãodaplantanabibliografiasemespecificaçãodecultivares.(**)Plantadeusomágico-ritual.(***)Venenoparapeixe.(****)Plantaodorífera.
b) Fruteiras
Poucosbrasileirosestãofamiliarizadoscomaimensariqueza
defrutasnativas,silvestresoucultivadas,ignorandoque,nocaso
dessasúltimas,séculosdeexperimentaçãoeseleçãogenéticade-
corremafimdetornarpossívelsuaretiradadanaturezaparaas
roçasindígenase,depois,nacionaiseinternacionais.Aotratardas
seleçõesgenéticasdeplantas,fizreferênciaaoabacaxieàpupu-
nha.Tratareiagoraapenasdabanana,domaracujáedocaju,para
nãoalongaremdemasiaadiscussão.
Ocaju(Anacardiumspp.)éamplamenteconsumidoemestado
selvagem e domesticado pelos índios no Brasil. A seu respeito,
escrevePauloCavalcante:
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o42
Reforçaahipótesedesuaorigembrasileiraofatodeque,
das22espéciesdescritasparaogêneroAnacardium,apenas
duasoutrêssãonativasdoBrasil.Maisdametadedases-
pécies conhecidas são citadas como nativas da Amazônia
brasileiraeáreaslimítrofes,tambémbrasileiras,dadosesses
quepermitemadmitirqueocajueiroteriaseuindigenato
naAmazônia,deondeirradiousuaculturaparaorestodo
mundotropical(1972:13).
OfrutocontémaltoteordevitaminaC,eacastanhaéricaem
proteína,aminoácidosegorduras.
Originário provavelmente do Brasil é ainda o maracujá
(Passifloraspp.).Impressionadocomseuaromaeabelezadasflo-
res,assimodescreveFreiVicentedeSalvador,em1627:
Maracujáéoutraplanta,quetrepapelosmatos,etam-
bémacultivamepõememlatadasnospátiosequintais;dá
frutodequatrooucincosortes,unsmaiores,outrosmeno-
res,unsamarelos,outrosroxos,todosmuicheirososegos-
tosos,eoquemaissepodenotaréaflor,porque,alémde
serformosaedeváriascores,émisteriosa...(apudHoehne
1937:319).
Hoehnefaladomaracujá-melão(P.macrocarpa),quedáfrutos
atédoisquilosemeio (ibidem).P. Cavalcante (1974:43) informa
queogêneroPassiflora,com400espécies,estáatualmentedifun-
didopelamaiorpartedaAméricatropicale,emmenornúmero,
naÁsiaeAustrália.
A palmeira açaí (Euterpe oleracea), de cujo bago violáceo,
que dá em cachos, se faz um vinho característico do cardápio
do Pará, é de enorme importância na alimentação indígena e
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 43
cabocla da Amazônia. A seguinte citação (Chaves & Perchnik
1945:6),tomadadeCavalcante(1973:34-35),informasobreoseu
valornutritivo:
alimentoessencialmenteenergético,comumvalorcalóri-
cosuperioraodoleiteeumteordelipídiosduplodeste.A
riqueza em protídios não é muito elevada como também
nãooéapercentagemdeglicídios.Todaviaoaçaícomoé
consumidohabitualmenteadicionadodeaçúcareseamilá-
ceospodeserconsideradocomoumalimentoricodegran-
devalorcalórico.Oteordeminerais,cálcio,fósforoeferro
apresentainteresse.
A banana (Musa paradisiaca; M. sapientum) é uma das mais
antigasplantascultivadaspelohomem,origináriadaÁsia.Apa-
coba,noentanto,écitadanoséculoXVIporAndréThevetepor
JeandeLery,noRiodeJaneiro,eporGabrielSoaresdeSouzana
Bahia.Esteteveocuidadodedistinguirasbananeirasdaspaco-
beirasedeixarclaroque“Pacobaéumafrutanaturaldestaterra”
(cf.Hoehne1937:120-121,150-152,221-224).Atualmente,tantoas
variedadesnativascomoasintroduzidastêmgrandeimportância
nadietaalimentardeinúmerosgruposindígenas(verTabelaII).
NocasodosYanomami,elarespondepor70%dascalorias(Smole
1976:117).Foiencontradaemaldeiasisoladasdessesíndios.
Devemos a Paulo B. Cavalcante (1972,1974,1979) um catálo-
go em três volumes de frutas indígenas (cultivadas e silvestres)
e aclimatadas da Amazônia, com a respectiva classificação e
ilustraçãobotânica.Otrabalhofoiescritocombaseempesquisa
feitaemmercadosdeBelémdoParáecidadesdo interiordesse
estado,bemcomoemfontesbibliográficas,durantequatroanos
consecutivos (Cavalcante 1972: 7). O autor assinala no segundo
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o44
volume(1974)queumestudocompletodemandariamuitomais
tempo e admite que: “É bem expressivo o número de espécies
silvestresquedãofrutoscomestíveis,utilizadosemlargaescala
pelossilvícolas,emsuaalimentação,equenamaioriadoscasos
sãointeiramentedesconhecidosdocivilizado”(1974:7).
Noterceirovolume,oautorreúneoutrameiacentenadeespé-
ciesedeixadedescrevercercadeumadezenaporfaltademate-
rialadequadoparaaidentificaçãoeilustração.
Tiveocuidadodesomarototalpublicadonostrêsvolumes,
verificandocompreendernoconjunto168espéciespertencentes
a 40 famílias botânicas. Se considerarmos que dessas 40 famí-
liasapenastrês–aRutácea(comoitoespéciesdogêneroCitrus,
ouseja, laranjae limão),aCucurbitácea(melanciaemelão)ea
Flacourtiácea (ameixa-de-madagascar) – são comprovadamente
forâneas, podemos avaliar a quanto monta a herança indígena
somente no que se refere a fruteiras de consumo humano da
Amazônia.
Realizeiomesmoexercícionoíndicedeespéciesvegetaisrefe-
ridasnolivrodeF.C.Hoehne.Trata-se,aqui,comofoidito,deum
levantamentodasplantasnativasconhecidaspelosíndiossegun-
do crônica dos autores seiscentistas e setecentistas. O cômputo
acusouareferênciaa91famíliasbotânicase353espéciesdeplan-
tas.Constata-se,poroutrolado,queasplantas“exóticas”–ouseja,
europeias–encontradasnasroçasindígenasenasfazendas,nos
doisprimeirosséculos,somamapenas59espéciespertencentesa
24famíliasbotânicas.Valeapenaenumerá-lasparaconstatarque,
exceto a cana-de-açúcar, o trigo, os cítricos e os temperos, esses
produtos não têm, até hoje, real importância na alimentação e
naeconomiadosbrasileiros.Algunssãopoucoconhecidos,por
issoosidentificocomasdesignaçõescientíficas.Alistacompleta
inclui:uva,“borragem”(Borragoofficinalis),cravo,cravina,beterra-
ba,espinafre,alface,“cardo”(Onopordonacanthium),nabo,“rabão”
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 45
(Brassica napus), couve, couve-tronchuda, couve murciana, me-
lancia, melão, pepino, abóbora, castanha de Portugal (Castanea
vulgaris),“cana-do-reino”(Arundodonax),cevada,cana-de-açúcar,
centeio, trigo, hortelã, “poejo” (Mentha oulegium), alfavaca, “se-
gurelha” (Satureia hortensis), canela-de-cheiro, guandu (Cajamus
flavus), “canafístula” (Cassia fistula), “fava-de-cavalo” (Dolichos
lablab), “granvanços” (Lathyrus sativus), lentilha, ervilha, cebola,
alho,“líriobranco”(Liliumlongiflorum),quiabo,lúpulo(Humulus
lupulus),“junco”(Calamusrotang),tamareira,romeira(Punicagra-
natum),“ervabesteira”(Helleborusfoetidus),marmeleiro,laranja,li-
mão,sândalo(SantalumalbumeS.Freycinetum),jiló(Solanumgilo),
berinjela, batata-inglesa (Solanum tuberosum), incenso (Aquilaria
agallochumeA.malacensis),“endro”(Anethumgraveolens),coentro
(Coryandrumsativum),cenoura,“funcho”(Foeniculumvulgare),sal-
sa(Petroseliumsativum)(cf.Hoehne1937:339-357).
Dalistaacimapode-sedizeraindaquealgumasespécies,como
ocravo,acanela,aabóbora,têmsimilaresnativos.Poroutrolado,
aassimchamadabatata-inglesaéorigináriadaAmérica.Foileva-
daaoVelhoMundodepoisdaconquista,vindoaconstituirum
dos principais alimentos dos europeus, da mesma forma que o
tomate(Lycopersicumsp.),origináriodoMéxico.Quantoaoarroz,
Hoehne sustenta uma alentada argumentação para provar que
eraconhecidopelaspopulaçõesindígenasdoBrasilantesdache-
gadadePedroÁlvaresCabral(cf.Hoehne,1937:34,36,38,66,187).
7. Plantas estimulantes, medicinais e industriais
(cultivadasousilvestres)
Numestudosobreoconhecimentoeusodasárvoresdaselva
tropical,RobertL.Caneiro(1986)fezumlevantamentodaclassi-
ficaçãoflorestalfeitapelosKuikuro.Numaáreade1,6acre(=0,65
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o46
hectare),seusinformantesidentificaram187espécies,distribuin-
do-as por nomes específicos. Nos seus critérios de classificação
eramlevadosemcontaotronco,afolhagem,osgalhos,asflores
efrutosqueacasotivessem,acascaeaentrecasca,olenhoeare-
sina,segundoacor,ocheiroeogostodosdoisúltimos.Amesma
experiênciafoifeitacomarbustosemacega,igualmenteidentifi-
cados,eatémesmocomfolhassoltas(1986:50-51).
Alémdoseuconhecimentodasárvores,emqueCarneirocal-
cula estarem incluídas 45 espécies, os Kuikuro lhe forneceram
osusosaquesedestinamequepodemserassimresumidos:a)
parafazerartefatos;b)parapintaroudecorarocorpo;c)parauso
cerimonial,xamanísticooumágico;d)parausomedicinal;e)fru-
tosounozesalimentícias; f)para lenha;g)plantasquecrescem
nasroças;h)paraconstruçãodecasas,discriminadosostroncos
demadeiraparaesteio,caibros, ripasetc.; i)paraamarrilhosou
fibras; j)árvoresquefiguramnamitologia;k)paraornamentos;
l)paraprovervenenos;m)paraextraçãodelátexouresina;n)fo-
lhasusadasparapolimento,forração,limpezaetc.;o)paraimple-
mentosdetransporteporágua,inclusiveparacalafetá-los;p)para
fazersabão;q)parafazersal(Carneiro1986:52).Muitasseprestam
amaisdeumadessasfinalidades.Alémdisso,osíndiospodiam
nomearoutrasárvoresúteisquecresciamforadoseuterritório.
Deve-serecordarqueesseelencorepresentaapenasumaamostra
tomadaemumaárealimitada.
Orepertórioqueaseguirseexaminalongeestáderepresentar
atotalidadedoconhecimentodaflorapeloaboríginebrasileiro.
Aslacunasmaioresdizemrespeitoàfarmacopeiaindígenaprati-
camentedesconhecidaeàsplantasmanufatureirasutilizadasna
construçãodascasas,dosmeiosdetransporteedosutensíliose
ataviospessoais.Essarelação–queampliaapublicadaanterior-
mente(B.Ribeiro1983:96-100)–foisistematizadasegundouma
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 47
ordemquerefleteaimportânciaeconômicarelativadasplantas
paraasociedadenacionaleparatodaahumanidade.Umalista
completaconteriamaisdeumacentenadeitens.Mencionam-se,
emprimeirolugar,asprincipaisplantascultivadase,emseguida,
assilvestres,todasusadasparafinsespecíficos.
a) Principais produtos cultivados3
1) Tabaco(Nicotianatabacum).Plantadeorigemedomesti-
caçãoamericanas.EstavaporquasetodaaAméricana
épocadaconquistaeerausadaprincipalmenteparaefei-
tosmágicos,comoterapêuticamedicinaleestimulante.
IntroduzidanaEuropanoséculoXVI, foi rapidamente
aceitaemsuasváriasformas:comocigarro,charuto,ca-
chimbo,rapéparacheirarefumoparamascar.Curiosoé
ofatodequetenhaatingidooextremonortedaAmérica
apenasnoséculoXVII, jápor influênciadoseuropeus.
Aindústriadotabacoé,atualmente,umadasmaisprós-
peras do mundo. Experimentos recentes indicam que
constituiexcelenteforragemparagado.
2) Algodão (Gossipium sp.). Os indígenas americanos cul-
tivavam o algodão (duas espécies: G. Barbadense e G.
hirsutum) antes da chegada de Colombo. Não obstante
serconhecidodelongadatanaEuropaenoOriente,oal-
godãoamericanosubstituiu,comvantagens,odoVelho
Mundo. Alguns autores localizam seu hábitat original
novaledorioCauca,outrosadmitemodesenvolvimen-
to da variedade brasiliense na floresta úmida do nosso
país.NoséculoXIX,oBrasilchegouaserumdosmaiores
exportadoresdealgodãodomundo.
3 Excluem-seosanteriormentecitados.
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o48
3) Caroá (Neoglaziovia variegata). Espécie de bromeliácea
plantada, segundo observamos, pelas tribos de língua
karibdoaltoXingu,pelosArawté(tupi),utilizadapara
fazerfio,cordadearco,bolsadecarregaredeapanhar
peixesconhecidacomopuçá,empequenosriachos.
4) Erva-mate (Ilex paraguariensis). Tudo indica que esta
planta tenha sido desenvolvida pelos índios Guarani,
queautilizamfresca,parafinsmedicinais,eseca,para
fazercháechimarrão,difundindo-senoSuldoBrasil,em
todaaregiãoplatina,naBolíviaenoPeru.Atualmente
o chá-mate está penetrando nos mercados mundiais,
comosucedâneodochá-pretoedocafé.
5) Guaraná(Paulliniacupana).Oguaranáerapoucodifun-
didonaAmérica.As fontesmaisantigasregistramsua
presençaentreosíndiosMawéeAndirá,doTapajós(os
últimosextintosnoséculoXVII), entre algumas tribos
do rio Negro e da Venezuela. A partir de meados do
século XIX, os Mawé constituíram, praticamente, um
monopóliodesseprodutoeocomerciavamlargamente.
Oguaranáéumarbustosarmentoso,decujassementes
trituradasapilão,misturadasàágua,aocacaueàman-
dioca(facultativamenteosdoisúltimos)preparam-seos
bastões.Abebida,degostoamargo,éobtidaraspando-se
obastãoeadicionando-seágua.Éumestimulantenotá-
vel,contendopequenoteordecafeína.Hojeoseuplan-
tioestádifundidoporváriasregiões–oJapão,inclusive
–,eoseuusoégeneralizado.
Outrasplantascultivadaspelosíndioseadotadaspeloscivi-
lizadossão:ourucu(Bixaorellana),usadocomocondimentona
culináriaepinturadecorpopelosíndios;váriasfibrasextraídas
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 49
defolhasdepalmeiras,comodotucum(Astrocaryumsp.)quedão
excelentefioparacordaseredesdedormir;asfibrasdapiaçaba
(Leopoldinapiassaba)sãoempregadasparamúltiplosfins(entre
outros,comomatéria-primaparavassouras,exportadaemlarga
escala),domesmomodoqueasdapalmeiracarnaúba(Copernicia
cerifera)eburiti(Mauritiasp.).Essasespéciessãomaisimportan-
tes, para as populações aborígines e civilizadas da Amazônia,
aopassoqueosíndiosdoChascoedoSuldoBrasilutilizam,de
preferência,fibrasextraídasdebromeliáceascomoocaraguatá
e gravatá (Bromelia fastuosa e B. serra). Plantadas eram também
cabaças(Lagenariavulgaris)paracarregarágua;cuias(Crescentia
cujete) também utilizadas como vasilhames de variados fins;
taquaras para flechas (Gynerium sachroides, Guadua sp.), contas
paracolarese inúmerasoutrasplantascultivadasnasroçasou
juntodascasas.
Nosúltimosanos,aatençãodosbotânicos–RichardSchultes,
entre outros – tem sido atraída para plantas qualificadas como
alucinógenas ou estimulantes, cultivadas ou coletadas por gru-
posindígenasdaAmazônia.Umadasmaisconhecidaséacocaou
ipadu(emlínguageral)(Erythroxilumcoca),deusoritual,pelosín-
dios.ÉplantadapelosTukanoeMaku,doaltorioNegro,alémde
outros.GhilleanT.Prance(1972:228-229)observouseuusonesta
últimatribo,informandoqueépreparadaeingeridadiariamente
com farinha de mandioca ou tapioca. O modo mais comum de
consumi-laéchuparaboladefolhastostadasemisturadascom
cinzadefolhadebananeira.Pranceagregaqueoseuefeitoéapla-
carafome,umavezqueoseuingredienteativoéacocaína.Acin-
zaquelheéadicionadaativaonarcóticoaoproverumalcaloide
(op.cit.:229).Oprocedimentodaplantapelosíndiosnãochegaaté
oseuusocomotóxico,ouseja,acocaína.
EntreosWaiká,subgrupoYanomami,Pranceobservououso
de dois rapés aspirados pelas narinas com efeito alucinógeno.
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o50
Um deles é composto de duas plantas: Virola theiodora e Justicia
pectoralis. A base do alucinógeno é a Virola. As folhas secas da
Justicia pectoralis são adicionadas optativamente devido ao seu
aroma.OoutroalucinógenocontémPiptadeniaperegrina,planta
conhecidanabibliografiaetnológicasobonomedeparicá,ede
efeitostóxicosbemmaioresqueaVirola.Destaplantautiliza-se
asemente,torradaepulverizada.Opóéaspiradopelosorifícios
nasais.Aparentemente,estaplantanãoécultivada(Prance1973:
236).Outroalucinógenocomprincípiosativossemelhantesaos
doparicá–Anadenantheraperegrina–éplantadonasroçasejunto
às casas pelos Yanomami. É consumido também por aspiração,
misturando-se o pó da semente torrada com cinza de uma cor-
tiça(Elizabethaprinceps)(Lizot1980:29-30).OgêneroJusticiaque,
como vimos, é adicionado à Virola, é também objeto de cultivo
pelos Yanomami, da mesma forma que outra planta odorífera
(Acanthaceasp.).Estaúltimaéusadacomoadornopelasmulheres
(cf.Lizot1980:20).
Da família das Ciperáceas, os Yanomami plantam 15 espé-
cies (C.corymbosus,C.distanseC.articulatus)poucoconhecidas.
SegundoLizot,
Seus usos são múltiplos. Em sua maioria estas plantas
servemcomofeitiçoparacaçar(fixadasnapontadaflecha
asseguram o alvo); umas são para caçar pássaro pequeno,
tatu,mutum,antaetc.Outrasprovocamamorte,aenfer-
midade,acura;sãoafrodisíacas;fazemcomqueoshomens
maisvalentesseassustem;permitemtrabalharsemdescan-
sonaroça;(...)ajudamnocrescimentodascrianças;infun-
demcoragemnumabriga...(1980:24).
Lizotaissoagrega:
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 51
Oestudobotânicodasciperáceasedasplantasdogêne-
roJusticiadeveriamotivarosespecialistas:estasplantassão
poucoconhecidasemuitodiversificadas.Suadistribuição
naAméricadoSulpoderiaproporcionarinformaçõesinte-
ressantessobremigraçõeseempréstimosculturais(ibidem).
b) Principais produtos de coleta
Inúmerasespéciesvegetais,objetodecoletaporpartedosín-
dios,foramdepoisadotadaspeloscolonizadores,passandoaser
cultivadas, algumas em larga escala, desempenhando hoje rele-
vantepapelnaeconomiamundial.
Borracha(Heveabrasiliensis).Conhecidapelosíndiosqueauti-
lizavam para fazer bolas, seringas e impermeabilizar objetos, a
borrachasófoirealmente“descoberta”pelacivilizaçãoocidental
nasegundametadedoséculoXIX.Naquelaépoca,aAmazôniaera
aúnicaregiãoprodutoraemtodoomundo,eimensasfortunas
surgiram da noite para o dia, embora o rush da borracha tenha
ceifado,pelasfebreseavitaminosesepelabrutalidadedapenetra-
ção,milharesdevidasdeíndiosesertanejos.Em1876,iniciou-se
oplantiodaHeveabrasiliensisnaIndonésia,começandoaquebra
domonopóliodetidopornossopaísdurantequasemeioséculo.
Outraplantadamaiorimportânciaéocacau(Theobromacacao),
dequeseextraiochocolate.Eracultivadonohemisférionorte,
nasterrastemperadasdacostadoPacífico,antesdeColombo.Na
costaatlântica,tinhatambémampladistribuição,masoseucul-
tivoeramenosgeneralizadoedemenorimportância.NoBrasil,
eraobjetodecoleta,passandoagoraasercultivado,aexemplodo
quefazemosDesana(verTabelaII).
Dignas de menção são, ainda, as seguintes: maracujá
(Passiflora sp.),aquejánosreferimos,utilizadotantoemestado
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o52
selvagemcomocultivado;guabiroba(Myrtusmucronata);guavira
(Campomanesia); umbu (Spondias tuberosa); mangaba (Hancornia
speciosa),importantíssimaparaastribosdasregiõesdesavanaque,
nasestaçõesemqueamadurece,empreendemgrandescaminha-
das para coletá-la; jabuticaba (Mouriria pusa); piquia (Macoubea
guaianensis) e bacuri (Piatonia insignis), também cultivadas; abio
(Lucuma caimito) e ingá (Ingá spp.), extensamente cultivados
no alto rio Negro; maçaranduba (Mimusops excelsa); cupuaçu
(Theobroma grandiflorum); jacaratiá (Jaracatia dodecaphylla); mu-
cajá (Acrocomia sclerocarpa); guarajá (Chrysophyllum excelsum);
pitomba (Eugenia litescens); pitanga (várias Myrtacea); fruta-de-
-conde(diversasRolliniaeAnona);araticum(AnonaMontana);mu-
rici (Byrsonima sericea); cajá (Spondias lutea); araçá ou goiabinha
(Psidiumguayava);junipapo(Genipaamericana),dequeosíndios
utilizavam de preferência o sumo para a pintura do corpo e de
artefatosdoqueofrutomaduro,queécomestíveledoqualsefaz
excelentelicor;jatobá(Hymenaeacourbaril)eoutras.Todasessas
frutasestãohojeintegradasnadietaalimentardopovobrasileiro,
sobretudodoNorte,NordesteedoBrasilcentral,queéohábitat
natural de sua maioria. Inúmeras são aproveitadas industrial-
mentenaformadecompotas,sucoselicores.Édeseesperarque,
no futuro, se imponhamnomercadomundial,comodádivada
florabrasileiraaoacervouniversaldeespéciesúteisenutritivas.
Diversasespéciesdepalmeirasrepresentamsubstancialfonte
alimentardosaborígines, sejao frutocomoacastanha,daqual
fazemaindaazeiteparacomidaeparailuminação;aspalmasser-
vemparacoberturadecasas,paratrancarcestos,esteiraseoutros
utensílios; a madeira se presta para diversos fins; e o palmito é
consumidocru,assadooucozido.
Obabaçuoupindoba(Orbignyaspeciosa),cujascastanhasen-
cerramquase70%degordura,seprestaatodososfinscitados.Da
palmeira mucaia ou bocaiuva (Acrocomia), bem como do buriti
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 53
(Mauritiavinifera),émuitoapreciadaapartecarnosa,degrande
valorvitamínicoemuitonutritiva.
De outras palmeiras, como o açaí (Euterpe oleracea), prepara-
-se uma bebida chamada vinho de açaí, de grande consumo no
Pará,comomencionei.Domesmomodo,sãopreparadosrefres-
cos dos frutos da palmeira inajá (Maximiliana regia) e outras.
Frequentementeochibéétemperadocomessessucos.
Entre as amêndoas oleaginosas, merece especial destaque a
castanha-do-pará(Bertholletiaexcelsa),cujaárvore,deportemag-
nífico, alcança50 metros de altura por4 de diâmetro. A coleta
da castanha-do-pará ocupa boa parte da população amazônica,
constituindo-se em importante artigo de exportação. É origi-
nária do Brasil e representa papel exponencial na alimentação
indígena.
Ospinhões(Araucariaangustifolia)constituíamabasealimen-
tardosíndiosKaingangeGuarani,duranteváriosmesesdoano,
sendoatéhojemuitopopularesnaregiãoSuldoBrasil.
A castanha sapucaia (Lecythis paraensis) e a castanha-do-ma-
ranhão(Bombaxinsigne)sãotambémmuitoprocuradas,embora
nãotenhamalcançadooapreçoquegranjeouacastanha-do-pará
nomundotodo.
Outrosprodutosvegetais,utilizadospelosíndios,sãooscipós
e enviras, para trançar peneiras, amarrar vigas nas casas, fazer
cordasrústicas;folhasepalmasparacoberturadascasaseemba-
lagens,paratrançarcestas,esteiras,fazerbarragensemigarapés
emúltiplosoutrosusos;madeirasparaesteios,vigaseripasdas
casas, para a fabricação de inúmeros instrumentos e utensílios
e para fins ignígeros; resinas, látex, óleos, unguentos, plantas
saponáceas,plantascondimentareseoleíferascomoabaunilha
(Vanilla sp.) e uma variedade de madeiras perfumadas. Enfim,
toda uma gama de conhecimentos botânicos foi incorporada à
culturabrasileira,atravésdaherançaancestraldoíndio.
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o54
Dentre os venenos para caça, principalmente de macacos e
aves, alcançou fama universal e emprego cirúrgico o curare. É
usadopelosgruposnorte-amazônicosparauntarassetasdeuma
armaquefuncionaporcompressãodear,asarabatana.Curaree
sarabatana foram registrados entre nativos da Indonésia. Tudo
leva a crer, porém, que se trata de invenções independentes. O
curare indígena é extraído da casca de cipós (Strichnos toxifera).
Sóéletalquandoentranacirculaçãosanguínea,paralisandoos
músculosdocoração.Acurarina,alcaloideencontradonocurare,
é empregada em delicadas intervenções cirúrgicas que exigem
relaxantemuscular.
Os índios utilizam as raízes tóxicas do barbasco, conhecido
comotimbósacaca(Tephrosiatoxicaria),paraenvenenarospeixes
porsufocação,queassimvêmàtonaesãofacilmentecapturados
atravésdaflechaoumesmocomamão.OscaboclosdoNortedo
Brasiltambémcostumamtinguijarpeixesporesseprocesso.Do
timbó,extrai-searotenona,utilizadacomoinseticidanamedici-
nasanitáriaenaagricultura.
Dentre os contraceptivos, Ghillean Prance (1986: 124) acre-
ditaqueesseefeitoéobtidoporumamenispermácea(Curarea
tecunarum)tomadaemformadebebidadepoisdoparto,duran-
te algumas semanas, pelo marido e a parturiente. Segundo os
informantes Deni, grupo indígena do rio Juruá, recentemente
contatado, o efeito da beberagem se prolonga por dois anos.
Missionáriosquevivemjuntoaessatriboobservaramumgran-
deespaçamentoentreosfilhosdeumcasalequeapenasuma
mulherficagrávidadecadavez,nogrupo.Pranceaindanãodi-
vulgouosresultadosdaanálisequímicadaplanta,chamandoa
atençãoparaofatodetratar-sedogêneroutilizadoparaveneno
deflechas:ocurare.
AsmulheresKaapor(grupotupidoMaranhão)tomamumchá
feito da raiz de um arbusto silvestre (Strychnos sp.) – do gênero
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 55
utilizadopelosgruposamazônicosnafabricaçãodocurare–con-
tradoresmenstruais,queétidotambémcomoabortivo(W.Balé
1984ms:236).
Num estudo sobre a nomenclatura e classificação das plan-
tas silvestres, segundo o sistema taxonômico indígena, Emílio
Fuentes (1980: 5-137) desbasta o mundo vegetal dos Yanomami.
Embora tenha obtido designações para 600 plantas silvestres e
cultivadasporessesíndios,abuscadeequivalentesnataxonomia
científicaresultouinfrutífera(Fuentesop.cit.:12).Nadenomina-
ção das plantas pelos Yanomami, escreve Fuentes, não se pode
vislumbrarregrasdesistematização.Nelas
características morfológicas se mesclam a semelhanças
zoológicas,àpoesiaeaohumor.Aclassificaçãoéassistemá-
tica,fundamentadaemseiscategoriasgerais(árvore,cipó,
palmeira, fungo, erva e feto) e numa particularização de
cadaplantamedianteaatribuiçãodeumnomeespecífico
(op.cit.:81).
Quantoaoníveldeconhecimentodomundovegetal,verifica-
-sequenoconjuntode184plantas,cujautilizaçãoeidentificação
botânica foram determinadas por Fuentes, 56 têm emprego no
campodatecnologia(construçãodecasas,meiosdetransporte,
utensíliosdomésticosedetrabalho);77sãousadasnaalimenta-
ção;23destinam-seacoranteseàornamentação;15sãoclassifi-
cadasporFuentescomovenenosedrogas;e13parausomágico
ejogos.
Estudo anterior, na mesma linha, é o de Thekla Hartmann
(1967)denominadoNomenclaturabotânicadosBororo.Empesquisa
decampojuntoaessegrupoindígenadonortedeMatoGrosso,
a autora recolheu 200 espécimes de plantas, que, juntamente
com os 400 levantados na bibliografia, perfazem o equivalente
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o56
aorepertórioobtidoporFuentesentreosYanomami.Noentan-
to,“alistaestálongedeesgotar-se”,afirmaHartmann(1967:12).
Analisandoaetimologiadasdesignaçõesdessasplantas,aauto-
ra constata “a existência de um conceito de gênero entre estes
índios.Essaconstataçãoparececontráriaàvelhaideiadequeo
homemdeculturatribalparticularizavaseuconhecimento,sem
subordiná-loaconceitosinclusivoseabstratos”(op.cit.:10).
Outraevidênciaalcançadanessetrabalhoéadequeomaior
númerodeétimosbotânicosserefereanomes“zoológicos”.Com
efeito, num total de 224 nomes, 102 remetem a essa categoria,
sendoosdemaisdivididosem14outras,relacionadasacaracte-
rísticas morfológicas do vegetal, seu emprego etc. O mesmo se
verifica em relação à nomenclatura botânica dos Guarani (108
nomeszoológicose233deoutras24categorias),segundoestudos
deLeonCadogan(cf.Hartmann1967:39).
c) Farmacopeia indígena
São praticamente inexistentes estudos específicos sobre esse
tema.OmaisconhecidoéodobotânicoPauloF.Cavalcanteedo
antropólogoProtásioFrikel(1973).Foirealizadojuntoaumgru-
podo tronco linguísticoKarib,daGuianabrasileira–os índios
TiriyódorioParudoOeste–eexemplificaariquezadoconheci-
mentoindígenadafloramedicinal.Emexcursãoefetuadacomal-
gunsíndiosdessatribo,seusautorescoletaram“436espécimesde
plantasemgeral,dasquais,segundoaindicaçãodosinformantes,
328possuemvalormedicinal.Destas,somente171forambotani-
camenteclassificadas...”(1973:5).
As indicações terapêuticas das plantas foram dadas por dois
índiosmaisidosos,umdelespajé.CavalcanteeFrikelcomentam
que a nova geração pouco se interessa em conhecer e aplicar a
medicina tradicional, não porque tenha perdido confiança nela
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 57
enosantigosmétodosdecura,esimporqueprefereosremédios
fornecidos pela Missão, “de efeito mais rápido, provocado pela
concentraçãodoselementosativosemformadedrogas,quiçáde
plantassemelhantesouequivalentes”(op.cit.:6).
AmaneirapelaqualosTiriyódesignamseusremédiosexpres-
sa a forma como são aplicados. Trata-se de vocábulos, segundo
Cavalcante e Frikel (1973: 11-13), que indicam que o remédio é
administradosobaformade:
1.Banhos(decuia)quentesoufriosdesumodefolhasfervi-
dasoudiluídas.
2.Sumoouseivadeplantasparausolocal.
3.Remédiosaplicadosemfricçõesoumassagens.
4.Remédiosparausointerno,aplicadosporviaoral.
5.Plantasmedicinaisaplicadasemformadevapores.
6.Plantascarbonizadaseaplicadas.
Outra categoria de nomenclatura indica os “efeitos produzi-
dospelaaplicaçãodosremédios”,taiscomoremédioparaaborto,
partorápidoouparafazercrescerosseiosdasadolescentes.Um
terceirogrupoindicaadoençapropriamentedita:remédiopara
queimaduras,parapicadadecobra,contraflechasenvenenadase
comoantídotodocurare.Umaquartacategoriaremeteaoórgão
afetado pela doença: remédios para dor de dentes, de ouvidos,
olhos,cabeçaetc.Finalmente,umacategoriadetermoséusada
demodoambíguo,afavoroucontra,comoporexemplo:“remé-
dioparacriança”,paraamenstruação,paraabarriga.Noprimeiro
caso pode tratar-se de um remédio para tratar febre infantil ou
paraabortar;nosegundo,estancarosanguemenstrualouprovo-
cá-lo. No terceiro, para combater cólicas intestinais e de outros
órgãosinternos(rins,fígado).
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o58
As171amostrasbotanicamenteidentificadasforamdescritas
emfichascontendoasseguintesinformações:I.Naparteetnofar-
macológica:denominaçãoindígena(Tiriyó)dasplantasmedici-
nais,tipodevegetal,utilidadeclínica,materialaproveitado,ob-
tençãoemanipulaçãodovegetal,maneiradeprepararoremédio,
mododeusar,efeitos,origemétnicadousomedicinal,processos
depreparaçãodosremédios.II.Napartebotânica:nomecientífi-
codaplanta,denominaçãopopular,descriçãobotânica,localde
coletaenúmeroderegistrodoherbáriodoMuseuGoeldi(Belém
doPará)paraondefoilevada(cf.Cavalcante&Frikel,1973:21).
Tabulando o material vegetal, os autores verificaram o apro-
veitamentonamedicinaTiriyóde:
Arbustosearbustivos 71
Árvores 34
Cipós 26
Ervaseherbáceas 25
Gramíneas 12
Trepadeiras 3
Total 171
Desses espécimes são aproveitados folhas (70 casos), sumos
(39),hastes(25),raízes(14),talas(10),frutas(9),cascas(8),madei-
ras(2),flores(1),tudo(41).
Quantoàmaneirade“isolarouextrairoselementosativosdas
plantasmedicinais”,Cavalcante&Frikel(op.cit.:137)verificaram
queelaoperaatravésdacocção(101casos),infusão(24),carboni-
zação (9),aplicaçãoaonatural (37),ouaplicaçãoquenteoupor
vapores(4)(ibidem).Dototaldeaplicações,41eramdeusointerno
e168,deusoexterno.
Asaplicações terapêuticasdasplantasmedicinaisdosTiriyó
demonstram que as doenças mais frequentes que os índios
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 59
enfrentameparaasquaisseempenharamemencontrarremédios,
autonomamente,emsuafloramedicinal,são,resumidamente:
101 remédiosparafebres
42 remédiosparaferidas
17 remédiosparaestadosanêmicos
14 remédiosparareumatismo
14 remédiosparaamarelidão
13 remédiosparadoresdecabeça
12 remédiosparacólicasintestinais
12 remédiosparaantídotoscontracurare
11 remédiosparadoresdedente
Emboradeclarandoque“somenteumaanálisedelaboratório
poderáesclarecerovalor,aeficiênciaouocarátermedicinaldas
alegadasplantas”(1973:139),osautoresobtiverambonsresulta-
dosemalgunsexperimentos.Aomesmotempoverificaramque
“àmesmaplantasãoatribuídosváriosefeitos,emborasemelhan-
tes”(ibidem).Emordemdefrequência,Cavalcante&Frikeldedu-
ziramque,numtotalde292aplicaçõesdas171plantasmedicinais
classificadas,obtinham-se34prováveisefeitos,conformediscri-
minaçãoabaixo:
1. Antitérmicos ...................... 52casos
2. Analgésicos ........................ 44casos
3. Sedativos........................... 21casos
4. Antiflogísticos ..................... 21casos
5. Antissépticos ....................... 20casos
6. Tônicos,energéticos ............... 19casos
7. Cicatrizantes ....................... 18casos
8. Antiespasmódicos ................. 15casos
9. Anti-inflamatórios ................. 15casos
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o60
10. Antianêmicos ...................... 7casos
11. Antidínicos ........................ 6casos
12. Béquicos ........................... 6casos
13. Antitóxicos,antídotos ............. 5casos
14. Catárticos .......................... 5casos
15. Antifisséticos ...................... 5casos
16. Tônicoscapilares,anticaspas....... 5casos
17. Diuréticos .......................... 3casos
18. Anti-infecciosos .................... 3casos
19. Tranquilizantes .................... 3casos
20. Ocitócitos .......................... 2casos
21. Antimicóticos ...................... 2casos
22. Estimulantesparaocrescimento ... 2casos
23. Anti-helmínticos ................... 2casos
24. Emético ............................ 1caso
25. Antiemético ........................ 1caso
26. Atenuante .......................... 1caso
27. Antienurético ...................... 1caso
28. Anti-hemorrágico .................. 1caso
29. Abortivo ........................... 1caso
30. Antiasmático ....................... 1caso
31. Anticatarral ........................ 1caso
32. Expectorante ....................... 1caso
33. Mucolítico ......................... 1caso
34. Antiparasitário .................... 1caso
Total ................... 292casos
OestudodeCavalcante&Frikelmostra,finalmente,que,das
171 plantas classificadas, 87 são do campo e 84 da mata, o que
revela a origem dos Tiriyó: dois grupos ancestrais originários,
respectivamente,docampoedafloresta.Eaindaque155espécies
botânicas pertencem à tradição tribal, nove provêm dos negros
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 61
do Suriname e sete são de origem duvidosa. Destas, uma única
espécieorigina-sedasociedadenacional.Oestudocomprova,ain-
da,que,emvirtudedocontatocompopulaçõesnegrasecaboclas
vizinhas, os Tiriyó adquiriram enfermidades antes desconheci-
das,dentreasquaissedestacamasmoléstiasdasviasrespirató-
rias(gripe,catarro,tosse)easdoençasvenéreas,emparticulara
gonorreia. Para curá-la utilizam remédios de quatro plantas. Os
autoresconcluemque
Os civilizados, entretanto, contribuíram muito pouco
paraamedicinacaseiradosTiriyó.Aplantamaisencontra-
daegeralmenteaceitafoiomastruz(Chenopodiumambro-
sioides),empregadocontrafebresemgerale,especialmente,
contraamaláriaqueosTiriyó,significativamente,denomi-
nam“pananakirikói”,ouseja,“febredosbrancos”,istoé,dos
estrangeiros,holandesesetc.(op.cit.:143).
Comosevê,osbrancos“contribuíram”antescomdoençasdo
que com remédios, ao passo que a medicina indígena e a paje-
lançasão,aindahoje,emtodososrincõesdointeriordoBrasil,o
únicoalívioparainúmerosmales.Quantoàfarmacopeiaindíge-
na, é quase ignorada pela cultura ocidental. Vejamos os poucos
exemplos, de que temos conhecimento, de plantas medicinais
americanasincorporadasànossacivilização.
Ipecacuana (Cephaelis ipecacuana). Originária do Brasil, era
usadapelosíndiosparafinsmedicinais,especificamentecontra
diarreiassanguinolentas.Delaseextraiocloridratodeemetina.
LevadassuasraízesparaaEuropa,difundiram-sesuasproprieda-
des,sendoempregadaatéhojenafarmacopeiamundial.
Jaborandi (Pilocarpus pennatifolius). Assinala-se sua utilização
pelosíndiosbrasileiroscomosudoríficoedepurativo.Sónosécu-
loXIXdifundiram-sesuaspropriedadesnaEuropa.
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o62
Copaíba (diversas espécies do gênero Copaifera). Utilizada
pelosTupi-Guaraniparacurarferidaseoutrasenfermidades.Só
noséculoXVIII,generalizou-seoseuusocontraafecçõesdasvias
urinárias.
Quina(dogêneroCinchona).Árvoreorigináriadaregiãoandi-
na, cuja cortiça macerada na água dava uma beberagem com a
qualosíndiostratavamafebreterçã.Delaseextraemváriosal-
caloides,sobretudooquinino,empregadoparaacuradamalária.
Oesforçocoordenadodeetnólogos,farmacólogos,químicose
fisiólogoselucidou,recentemente,aestruturaquímicadevene-
nos vegetais como o curare. Substâncias curarizantes sintéticas
sãoempregadas,atualmente,emdelicadascirurgiasqueexigema
paralisaçãomomentâneadosmúsculoscardíacos.4
4 Sobrefarmacopeiaindígena,vertambémE.Elisabetski(1986).
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 63
iia natureza domada.
o saber etnozoológico
Introdução
O indígenabrasileirodesenvolveuestratégiasetécnicas
paraautilizaçãoracionalderecursosnaturaisdoseu
ambiente.Nocapítuloanterioranaliseiosreferentesàflora,em
sua interação com a fauna e o substrato inorgânico. Vejamos,
agora,emquemedidaosgrupostribaisidentificaramosrecursos
faunísticosdeseuhábitatedesenvolverammétodosadequados
ao seu manejo, visando a sua preservação. Tratarei de aspectos
relativos às técnicas utilizadas para a caça de mamíferos, aves,
coletadeinsetoselarvascomestíveis.E,finalmente,ostabusali-
mentareseosaspectosmágicosrelativosàcaça,quecontribuem
paraasuamultiplicação.
AsmonografiasetnográficassobreíndiosdoBrasildescrevem
sempre as técnicas de caça e pesca, enaltecendo o seu papel na
dietaalimentarindígena.Entretanto,sóemanosrecentes,botâ-
nicosezoólogosincorporaram-seàpesquisaedocumentaçãodo
saber milenar do seu ecossistema. Todos estão convencidos de
queascomplexasrelaçõesqueasculturasditas“primitivas”man-
têmcomseuambienteassumirãocrescenteimportânciaparaa
formulaçãodeumapolíticaadequadadepreservaçãodeimensos
ecossistemasameaçados,comooamazônico.
Poroutrolado,antropólogosdedicadosàetnociência,emco-
laboração com biólogos, procuraram explorar as dimensões se-
mânticasdosistemanativodeclassificação,contrastando-ocom
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o64
ataxonomiacientífica.Verificaram,comenormeadmiração,que
eleseassemelhaaosistemabinominalcomquetrabalhouLineu
noséculoXVIII.ApropósitodizLévi-Strauss:“Asclassificaçõesin-
dígenasnãosãoapenasmetódicasebaseadasnumsaberteórico
solidamenteconstituído.Acontecetambémseremcomparáveis,
sobumpontodevistaformal,àquelasqueazoologiaeabotânica
continuamausar”(1976:65).
Paraumarápidaanálisedafauna,tomeicomomarcoahileia
amazônica.Costumava-sedividiroambienteecológicodabacia
amazônicaemtrêsmacrotipos:asterrasdevárzeaoualuvionais,
queanualmenterenovam,comasenchentesevazantes,afertili-
dadedosoloedaságuas.Sãoporissopassíveisdemantermaiores
concentraçõespopulacionais.Apresentamtambémmaiorabun-
dânciadefaunaherbívora,principalmenteaquática.Essasáreas
permitiram o desenvolvimento de culturas mais complexas,
comoadosOmáguaeTapajó,encontradosemterrasdealuvião
do rio Amazonas no primeiro e segundo séculos da conquista.
Possuíam sistemas sociais complexos, uma aparente estratifica-
ção social, cultos e artesãos especialistas. Podiam organizar um
bomnúmerodeguerreirosparacampanhasmilitaresemdefesa
doseuterritório.
O segundo tipo de hábitat caracteriza-se por terras altas co-
bertasdedensomantoflorestal,masmuitomaispobresemnu-
trientesecomaltograudeacidez.As“terrasfirmes”interfluviais,
istoé,afastadasdosgrandesrios,carecemporissoderecursosde
faunaaquática.
Finalmente,oterceirotipoéoquecaracterizaaáreadoscer-
radosdoBrasilcentral,entrecortadapor“florestasdegaleria”ao
longo dos cursos d’água. Nessa área, a caça é mais abundante.
Osgruposindígenasqueahabitampraticamahorticulturanas
florestasdegaleriaeacaçaeacoleta,nasavana.Adispersãode
unidadesdomésticas,duranteaestaçãoseca,esuaaglomeração
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 65
emgrandesaldeias(deaté1.200habitantes)nosperíodosquese
seguemàcolheitapodemserresponsáveisporsuacomplexaor-
ganizaçãosocial.EssaéaopiniãodeGross:
As plantas circulares das aldeias, as metades permeá-
veis, os elaborados sistemas de transmissão de nomes, os
gruposdeidadeeoseventoscerimoniaiseesportivos,que
tornaram famosas essas sociedades, podem ter servido de
mecanismos culturais para integrar unidades andantes
semiautônomasemaldeiasunitárias,anualmentereconsti-
tuídas,prevenindoconflitosentreosgrupos,propiciandoa
distribuiçãodoprodutodasroçasatravésdaaldeia,emobi-
lizandoosguerreirosparadefesaeataque(1975:538).
Existeunanimidadeentreosautoresquantoàdispersãoera-
refaçãodafaunaarbóreaeterrestrenaflorestatropical(Gilmore
1986:196),daqualdependemosgruposdaterrafirmeparacom-
pletarasnecessidadesdeproteínaanimalemsuadietaalimentar.
Aspráticasdecaçasãoparacertosgruposinterioranos,comoos
Maku,maisimportantesqueasagrícolas.Entretanto,osestudio-
sos da cultura da floresta tropical demonstram que ela é antes
umaadaptaçãoàvidaribeirinhadoqueàfloresta(Latharp1973:
89). Em função disso, desenvolveu-se uma tecnologia de nave-
gação fluvial em canoas monóxilas e de cascas de árvores, bem
como uma tecnologia pesqueira que, ao longo dos grandes rios
ejuntoàssuasmargensalagáveis,soubecaptarumaprodigiosa
faunapesqueira,demamíferoserépteisaquáticos;edepescame-
nosabundantenosriosquebanhamaterrafirme,emextensão
infinitamentemaior,mastambéminfinitamentemaispobre.
Dentreafaunaaquáticadavárzea,emqueseassinalampeixes
notáveispelotamanhoevariedade,comoapiraíba(2,3me140
quilosdepeso),opirarucu(1,80me80quilosdepeso),mamíferos
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o66
comoopeixe-boi(3 me1.500quilosdepeso),destacam-seastar-
tarugas(1me25e35quilosdepeso),nãosóporsuacarnecomo
tambémpelaquantidadedeovos(100a150numacova)quedei-
xamnumasópostura.Ourosanimaisdeporte,comoacapivara,
sãosemiaquáticosepodemsercaçados emcanoas. Alémdisso,
grande parte da fauna avícola comestível vive à beira-rio (cf.
Meggers1977:52-53).
A fauna silvícola propriamente dita, entretanto, é pequena
empopulaçãoeemespécie.Adispersãodasplantascomestíveis
acarretaigualdistribuiçãodeanimaisque,comexceçãodosban-
dos de porcos-do-mato (Tayassu tajacu), de queixadas (T. pecari)
e de macacos, vivem solitários. Entre os principais contam-se a
paca,acutiaeotatu(0,60mdecomprimento),osveadoseaanta,
quechegaaatingir2meéomaiormamíferotropicalterrestre
(Meggers1977:43-44).Destaqueespecialdeveserdadoaosquelô-
nios, jabutietracajá,principalmenteaoprimeiro,queconstitui
umareservadealimento,damaiorimportânciaparaosíndiose
oscaboclos.
1. Captura de proteína animal
Em 1975, Daniel Gross publica um artigo que se tornou fa-
moso,noqualargumentaqueaescassezdeproteínaanimal,na
bacia amazônica, é a principal responsável pela pequena den-
sidade populacional, pelo tamanho e estabilidade das comuni-
dadesaborígines.Mostraqueexisterelativaunanimidadeentre
osantropólogosdequeaslimitaçõestecnológicaseambientais
impediramoincrementodaspopulaçõesnativasnaAmazôniae
odesenvolvimentodeformasmaiscomplexasdeestruturasso-
cioculturais.Equeatéentãoapenasaspotencialidadesagrícolas
eramlevadasemconta,fazendo-seaabstraçãodasnecessidades
deproteínaanimalnometabolismohumano.Concordacoma
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 67
interpretaçãodeBettyMeggersdequesociedadesmaiscomple-
xas,comoamarajoara,intrusanaáreaequelogoentrouemde-
clínioedesaparecimento,aparentementenãopoderiammanter-
-senaflorestatropical(Gross1975:526).Mencionaotrabalhode
Carneiro (1973),oqualestimaqueaspotencialidadesagrícolas
dos Kuikuro, centradas em torno da cultura da mandioca, po-
deriam manter aldeias sedentárias de até 2.000 membros, sem
degradar o ambiente e sem substancial acréscimo de trabalho.
Grossprocurademonstrarqueamaiorpartedoscultivosérica
emcalorias,maspobreemproteínas.OsKuikuro,porexemplo,
segundoCarneiro(1973:98),dependemem80a85%damandioca
eoutrasplantas,comoomilho(menosde5%).Os10a15%res-
tantessãoprovidosporumadietabaseadaquaseexclusivamente
nopeixe,umavezquetabusalimentaresinibemoconsumode
animaisdepelo,excetoomacaco.Umavezqueoteordeproteína
na mandioca, além de baixo, tem pequeno valor biológico, os
Kuikuro, para alcançarem o hipotético montante de 2.000 pes-
soas,teriamdeingerircoletivamente“100kgdeproteínapordia
paraobteraraçãode50g/pessoa/diadeproteínadealtaqualida-
de”(Gross1975:528).
IssoseriaimpraticávelparaosKuikuro,masnãoparagrupos
quevivemjuntoarios,comooAmazonaseoAraguaia,observa
Gross,ondeabiomassaanimalébemmaior.
Numasériedeexemplos,Gross invocaotestemunhodean-
tropólogos,ecólogosenaturalistassobreaescassezdeproteína
animal nos trópicos. O autor indaga por que razão os índios
nãorecorreramatécnicasdedomesticação,principalmentedo
porco-do-mato,ounãotrataramdeaumentarsuadietaproteica
comousodeplantascommaisaltoteordeproteína,taiscomo
sementes,oumesmoomilho.Opróprioautorjustificaaprefe-
rênciapelamandiocasobreomilhocomargumentoscomoos
que expus anteriormente. E admite que em nenhum lugar se
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o68
constatarammoléstiascarenciaisentregruposindígenasdevido
àdeficiênciadeproteínas.
Tanto Meggers (1977: 120-148) como Gross explicitaram os
mecanismosculturaisquetendemamaximizarorendimentoda
alimentação.VejamososenumeradosporGross:
1) Manutenção de pequenos estabelecimentos que mini-
mizamoimpactodapredaçãohumanadepeixesecaça
dentrodaáreaacessível.Algunsdostraçosculturaisque
favorecemamanutençãodecomunidadesdetamanho
menorsãoaausênciadefortesliderançaspolíticas,adis-
putapormulheres,acusaçõesdefeitiçariaedispersões
sazonais, as quais, conjuntamente, levam à fissão dos
aldeamentos.
2) Dispersãoaoinvésdeamontoamentodascomunidades,
paraevitarasuperposiçãodeáreasdeexploração. Isso
é favorecido pelas hostilidades e guerras em que uma
constanteameaçadeataquesefazsentir.
3) Manutençãodeuma“terradeninguém”entreasáreas
ocupadas,queconstituem“reservas”paraareprodução
de espécies de rapina livres da predação humana. Isso
tambémsedáemfunçãodasatividadesguerreiras.
4) Mobilidadefrequentedasaldeiasparaobstarasuperex-
ploração.Elaéfavorecidapelaguerra,afissãoeaprática
daagriculturaitinerante.
5) Pequenataxadeincrementopopulacionalquefacilitao
nãoincrementodapressãosobreosrecursos.Ostraços
quepropugnamumabaixanatalidadesão:infanticídio,
particularmente feminino, que diminui o número de
reprodutores,aborto,contraconcepçãoetabusdeinter-
cursosexual(Gross1975:535).
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 69
TomandooexemplodosYanomami–umdosúltimosgrupos
indígenasrelativamenteisoladoenumeroso,quevivenoBrasil
enaVenezuela–,Grossmostraqueapoligamiaeoinfanticídio
femininoresultamemescassezdemulheres,dandolugaradispu-
tasqueterminamnafissãodealdeias,guerrasedeslocamentos.
Ostabusdeabstinênciasexualpós-partoealactaçãoprolongada
favorecem não só o espaçamento entre os nascimentos como
tambémumadisponibilidademaiordeproteínaparaascrianças.
Contribuição importantedeGross,anteriormentecitada,éa
referenteaopapeldascapoeirascomorefúgioeatraçãodecaça,
inclusivedeinvertebrados.
Espécimesterrestresherbívoras,comooporco-do-mato
ou o veado, encontram folhagem mais tenra e mesmo
tubérculos em uma roça abandonada. Isso não ocorre na
florestamaduraondeamaiorpartedabiomassaconsiste
emfolhasnospatamaresmaisaltoseemgalhoslenhosos
(ibidem).
AscolocaçõesdeGrossforamaceitaspelacomunidadecientí-
fica,porémcomrestrições.Arespostamaiscontundentefoiade
StephenBeckerman(1979),queresumireiaseguir.Retomandoo
argumentodeGrossquantoàescassezdeproteínadisponívelaos
Kuikuro,equedeterminariaoreduzidotamanhodacomunidade,
Beckerman, utilizando cômputos numéricos, mostra que, num
dia de viagem, um índio Kuikuro poderia percorrer a distância
exigida para a captura da quantidade de peixe necessária à sua
dietadeproteína.Demaisamais,opeixeémóvele,emcertaépo-
cadoano,aproxima-sedoconsumidor.
Quanto aos mamíferos, retomando o argumento do próprio
Gross,Beckermanassinalaaimportânciadascapoeirasparaatrair
caça,afirmandoque:
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o70
A força centrífuga das caçadas em afugentar a popula-
çãoanimaldeveserequilibradacomaforçacentrípetada
modificaçãoagrícoladavegetação,atraindoeaumentando
apopulaçãoanimaldecaça,emumaestratégiadesubsis-
tênciaaboríginebemintegrada(1979:537).
AopeixeeàcaçacomofontesdeproteínaBeckermanacres-
centa outras, meramente citadas por Gross, sem maior elabora-
ção.Umadelasprovémdaclassedosrépteis(jacarésequelônios,
tartarugaseseusovos).Noqueserefereàstartarugas,Beckerman
evoca a informação de Orellana, que, em sua viagem em 1542
peloAmazonas,pôdeaplacarafomedosseusmarinheiroscom
tartarugas. Orellana informava, àquela época, que encontrou
pelomenosmiltartarugasemcurraisàbeira-rionasaldeiaspor
ondepassou.Essainformaçãofoicorroboradacemanosmaistar-
de,em1641,porCristobald’Acuña.CitandoSmith(1974:93-95),
Beckermandizque:
Apopulaçãodetartarugaseracapazdetolerarumaco-
lheitaanualdemaisde12milhõesdeovos,oprodutode
100mila150milfêmeasadultas,durantequaseumséculo,
antesqueapopulaçãoentrasseemsériodeclínio.Naverda-
de,acolheitamontavaoquádruplodaquelacifraem1860.
Estesnúmerosreferem-seapenasaosovos.Smith(1974:94)
assinalatambémquemaisde50miltartarugaseramleva-
dasemcurraisdoestadoaBarcelos,norioNegro,entre1780
e1785(1979:537).
As tartarugas herbívoras eram certamente mais numero-
sas que os jacarés carnívoros. Entretanto, registros do século
XIX e estudos recentes dão conta de grandes quantidades de-
les nos rios e lagos amazônicos. Um mamífero herbívoro de
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 71
maiorimportânciafoi,antesdesuatotalextinção,omanatiou
peixe-boi.
A entomofagia (consumo de invertebrados) representou e
ainda representa, segundo testemunhos recentes, importante
fatordecapturadeproteínaanimalpeloaborígine.Insetossão
consumidos tanto em forma larval como madura. Falando dos
Yanomami,Lizot (1977:509)afirmaqueelesrepresentamentre
2,5 a4,5%, em peso, a quantidade de carne consumida por esse
grupo.AutoresqueestudaramosíndiosdoUaupés,afluentedo
rio Negro, oferecem farta documentação sobre a importância
alimentíciaeoapreçoquantoaopaladardetérmitaseformigas,
larvas de borboletas, cabas, coleópteros. Segundo Bruzzi (1962:
221-2),arainhadeumaespéciedecupimamarelo(maniuara,em
língua geral) é das mais apreciadas. É coletada em abundância
quandocriaasasecomidavivaouassada.Damesmaforma,co-
mem as tanajuras e outras espécies de formigas, como a saúva
(Attasp.).
IguariamuitoapreciadapelosíndiosdoaltorioNegroéalarva
deborboletacomodojapurá(Erismajapura)edocunuri(Cunuria
spruceana).Umalarvaquesenutredasfolhasdoingá(Ingaedulis),
dafamíliadasmimosáceas,éigualmenteapreciada.Dentreastér-
mitas,consomemaindaváriasespéciesdemarimbondo(caba,em
línguageral)esuaslarvas.Dentreoscoleópteros,preferemcertas
espéciesdegafanhotosedebesourosqueàsvezesaparecemem
grandeabundância.Bruzzicomentaque“Quiçáàriquezadevi-
taminasA,hauridadaingestãodetãovariadosinsetoselarvas,o
índioédevedordaadmirávelvisibilidadenoturnadequedesfru-
ta”(1962:222).
Oamadurecimentodessesinsetoscomestíveis–assimcomo
amigraçãoperiódicadecardumesdepeixesparaadesova–éas-
sociado,pelosíndiosDesana(rioTiquié,altorioNegro),aociclo
constelar.Este,porsuavez,determinaaintermitênciadechuvas
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o72
eestiagens,e,consequentemente,ocicloeconômicoanual(B.G.
RibeiroeT.Kenhiri1987).
Smole(1976:163)consideraosinsetosumimportanteaporteà
dietaalimentardosYanomami,daVenezuela.Oquadroseguinte,
adaptado desse autor (op. cit.: 164-165), mostra os componentes
nutritivos de alguns invertebrados consumidos por essa tribo,
comparadoscombifedevaca:
Tabela III Índios Yanomami. Consumo de insetos
inseto quantidade de água
gordura proteína carboidratos minerais calorias
TérmitasGafanhoto 44,5 28,3 23,2 – – 347
NomadacrisSeptemfasciata
70,6 4,1 18,7 – – –
Locusta
Locustamigratoroides
10,5 9,6 46,1 – – –
Lagarta(larvade) 15,7 13,7 – 13,9 – 258
Bicho-da-seda 60,7 14,2 23,1 – 1,5 207
Bifedevaca 75,2 6,6 16,9 – – 127
Oaproveitamentodetantosrecursosnaturaisparaacaptura
deproteínaexigeumacuradoconhecimentodoshábitosdosbi-
chos.Apropósitodautilizaçãodeinvertebrados,DarrellA.Posey
defende a hipótese de tratar-se de “animais semidomesticados”
ou talvez “espécies manipuladas”. Com essas expressões, Posey
deseja enfatizar o manejo intencional, por parte dos índios, do
comportamentoanimal,comonocasodeseisespéciesdeabelhas
queoautorqualificacomosendo“criadas”pelosKayapó.Dadaa
importânciadainformação,cito-aintegralmente:
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 73
Aslarvasdeescaravelhos(ScarabaeidaeeBuprestidae),
porexemplo,sãoutilizadasporváriastribosnostrópicos...
O escaravelho adulto põe ovos no refugo de bananeiras
mortas ou velhas palmeiras. Intencionalmente, os índios
empilham restos de bananeiras e palmeiras próximos às
suasaldeias,roçaseacampamentosparaatrairosescarave-
lhosadultos.Depoisdealgunsmeses(dependendodases-
péciesedaregião,bemcomodaestaçãodoano),osovosse
desenvolvememformadelarvas(...)alimentíciasenutriti-
vas.Conhecendoociclodevidadosescaravelhos,osíndios
podempreverquandosedevecoletaraslarvasmaduras.
OsKayapóreconhecem54espéciesfolkdeabelhassem
ferrãodafamíliadasMeliponidaeeduasespéciesdeabelhas
comferrão(ambassubespéciesdeApismellifera).Todaselas
são classificadas segundo os distintos tipos de mel e cera
queproduzem.Omeléumalimentoaltamentevalorizado,
enquantoaceraéusadaparacurardoenças,tratarqueima-
duras,desinfetarferidasecomoadesivoparaartefatos.
Seisespéciesdeabelhassemaquilhãosãocriadaspelos
Kayapó.Osíndiossabemqueseumaporçãodofavodemel
comaabelharainhaédevolvidaàárvore,depoisderetirado
omel,certasespéciesdeabelhasvoltarãoarestabelecera
colônia.Assimsendo,colmeiasdestasseisespéciespodem
sersistematicamentecoletadasacadaestação.
Colmeiasdeoutrasespéciessãocoletadasnaflorestae
trazidascomoenxamecompletodeabelhasparaaaldeia.
Elassãoentãomontadasnacumeeiradacasaeguardadas
atéqueosíndiosconsideramterchegadootempoapropria-
doparatiraromel.
OsKayapóconhecemtambémduasespéciesdeabelhas
(TrigonacilipeseScruralongula)quegostamdeformarsuas
colmeiasemtorassecasemáreasabertas.Frequentemente
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o74
essasespécies fazemsuascolôniasemmadeirassecasdas
casasKayapóeseusninhossãodeixadossemdisturbaraté
queaproduçãodemelchegueaoápice.
Duas outras espécies sem ferrão são intencionalmente
atraídasparaoscamposdosKayapó.Umadelas(Trigonaflu-
viventrisquinae)prefereaninharemparededeterra;aoutra
(Trigonafuscipennis)fazseusninhosemmadeirapodre.Os
Kayapócavamumburaconaroça–ouaproveitamoque
tenhasidocavadoporumtatu–colocandonelepausdete-
riorados.Dessaforma,asabelhassãoatraídasaoscampos
decultivoesãoassociadascomoaumentodorendimento
dasplantações(Posey1983:888).(VertambémPosey1986b:
251-272.)
EstudosdamicrorregiãodoaltorioNegrotêmmostradouma
estratégiadeadaptaçãoextremamenteelaboradadosgruposda
áreaaumhábitatpobreemcaçaepesca.Osriosdeáguaspretas,
banhandoterrasdotipopodzole latosol,extremamenteácidas,
pobresemsaissolúveiseoutrosnutrientes,alimentamsuafau-
na de fontes externas. Segundo G. Marlier, “Muitas espécies se
alimentam diretamente de folhas, sementes, frutos ou insetos
terrestresououtrosinvertebradosquetiramsuasubsistênciada
vegetaçãoripária”(1967:6).
Os referidos hábitos alimentares dos peixes, que incluem,
alémdospredatórios,oconsumodesubstânciasorgânicascaídas
naágua,“deorganismosmortosedoprodutodesuadecomposi-
ção”(Fittkau1967:102),determinamacolocaçãodearmadilhas
entreaspedrasdacachoeira,nasmargensdosrios,lagos,igapós
eigarapése,ainda,apescacomanzol,arpãoearcoeflecha,além
dotimbó(venenodepeixe)noslocaisemquenãohágrandemo-
vimentaçãodeáguasduranteaestaçãoseca.
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 75
O regime bianual de enchentes na região do Uaupés tam-
bémpropiciaoaumentodadietadafaunaaquáticaque,nessas
oportunidades, se espalha pelos igapós, nutrindo-se da floresta
(Chernela 1986: 238, 241). A autora reconhece três hábitats (ou
biotipos)principaisnoUaupés:igapós(áreasperiodicamenteala-
gadaspelasenchentesdosriosnaestaçãochuvosa),cachoeirase
terrafirme.Das41espéciesdefruteiras(porelaidentificadascom
a ajuda dos índios Wanana) que crescem à margem dos rios de
cujosfrutosospeixessealimentam,27crescemapenasnosigapós
e14emterrafirme,dasquaisdeztambémnosigapós.Poroutro
lado, as achoeiras abrigam algas e outras plantas aquáticas que
atraeminsetos.Éporissoolócusdepeixesadaptadosauma“vida
sedentária”queencontramproteçãoenutrientesnessesnichos,
apresentandomaiordensidadepopulacionaldoquenosespaços
aquáticosabertos(Chernela1983:98/101).
Essaautoraconcluidizendoque:“OsmétodosdosWananade
capturadepeixeslevamemconsideraçãoosciclosreprodutivos,
migratóriosedenutriçãodospeixes,resultantesdepronunciadas
flutuaçõessazonaisnaecologiadosistemadorio”(op.cit.:102).
Em outro trabalho, Chernela esclarece que, ao contrário dos
ocupantesnãoíndiosdaárea,osWananapreservamacobertura
florestaldasmargensdosrios,conscientesdequeéaúnicama-
neira de sustentarem sua população pesqueira. Esclarece que,
“Enquanto os cientistas apenas recentemente reconhecem a
importânciadamataadjacenteparaasubsistênciadospeixes,os
Wananajamaispermitiramsuaderrubada,paraevitarjustamen-
teodeclíniodafaunapesqueira(Chernela1986:241).
Apardisso,osíndiosdorio(Tukano,Wananaeoutros)estabe-
leceramumsistemadesimbiosehierárquicaededependênciare-
cíprocacomosgruposdafloresta,osMaku.Estesúltimostrocam
produtosflorestais,carnedecaçaeserviçosporpeixeefarinhade
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o76
mandioca,bemcomoartefatosemquecadaumadessastribosse
especializa(cf.B.G.Ribeiro1980ms.).
Entre os índios Asurini e Araweté, grupos Tupi do médio
Xingu,observeiaimportânciadojabuti(Testudotabulata)como
fonte de proteína diária. É coletado junto às árvores de cujos
frutossealimenta,emantidoemcasapendurado,duranteme-
ses sem alimento nem água, para ser utilizado na medida das
necessidades. Em apenas cinco dias, um único índio Asurini
conseguiu30jabutisqueforamconsumidosnumfestimgastro-
nômicoportodaacomunidadede53 índios.Ovalordojabuti
tambéméressaltadopelaquantidadededesenhosdecorativos
docorpoedosartefatosemqueéfigurado.Noverão(agosto,se-
tembro),osAsuriniconsomemovosdetracajáeaprópriatarta-
ruguinha(Podocnemisunifilis).Nosbrejoscoletamocaranguejo
(do gênero Trochodactylus), com o qual preparam um prato sa-
borosoenutritivo,misturando-oàpolpadoinajá(Maximiliana
regia)(cf.B.Ribeiro1982:35,53).
2. Estratégias de caça
Existem poucas informações sobre a estratégia de caça dos
índios.Mas todos os indíciosapontam paraacuidadedo saber
indígena sobre os hábitos dos animais. Exemplifica esse sa-
ber o testemunho de Carneiro sobre os métodos de caça dos
Amahuaca,quehabitamadensaflorestaentreosriosUcaialieo
altoJuruáePurus,nolestedoPeru.Carneiroenfatizaqueoque
fazdoAmahuacaumbomcaçadornãoétantosuahabilidade
dearqueiro,massuacapacidadedeseguirpacientementeacaça,
reconhecendosuaspegadaseconhecendosuastocaserefúgios.
Informaque:
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 77
Cadadetalhesignificativodoshábitosdevidadosani-
maisfazpartedosaberdeumcaçadorAmahuaca.Conhece
osomdeseusuivos,acomidaquecomem,eoaspectodos
seus excrementos. Pode detectar a presença de porcos-do-
-mato ou dos macacos (Ateles sp.), e pode identificar os
macacos-aranha pelo barulho que fazem ao comer frutas
nasárvores.Observandoasmarcasdosdentesnumafruta,
ocaçadorpodedizerqualoanimalqueaandoumordendo
e,aproximadamente,quandoadeixou(1974:126).
Quantoaorastejamentodaspegadasdecaça,Carneirooferece
tambéminformaçõespreciosas:
Aspegadasdevirtualmentequalqueranimaldecaçasão
prontamentedistinguidas.Numaexpediçãoemqueacom-
panheidoiscaçadoresforam-memostradososrastosdeum
tatu,umveado,umacutia,paca,tatugigante,lontra,antae
jacaré.
Casoosrastosestejamvelhos,ousenãosetornamfacil-
mentevisíveisporqueatrilhaédura,ocaçadorpodeainda
assimdetectarapresençadacaça.Eleescrutinaochãoda
floresta procurando restos de frutas mordidas ou excre-
mentofresco,eestudaodeslocamentodosgalhosedasfo-
lhas.Daquantidadedeexudaçãodeumgalhopartido,por
exemplo,ocaçadorpodeavaliarháquantotempooanimal
passouporaquelelugar(1974:127).
Oautorfalatambémdomimetismodocaçadorporsuacapa-
cidadedeimitaroberrodomacaco–quegeralmenteresponde
–ouosilvodeumaanta.Dessaforma,elefixasualocalizaçãoo
maispróximopossíveldoalvo,afimdenãoperderotiro.Àsvezes
lograaprisionarofilhoteparaatrairamãe.
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o78
Como outros grupos humanos, os Amahuaca cercam suas
atividades de caça de encantamentos mágicos, por ser justa-
mente uma atividade azarosa. Não fazem o mesmo em relação
àsatividadesagrícolas,umavezquesuaprodutividadepodeser
facilmenteprevista.Nãotêmritospropiciatóriosparaoaumento
dacaça.Simplesmentetransferemaaldeiaquandoelacomeçaa
exaurir-se.Comotodososgruposindígenasbrasileiros,abstêm-
-sedecomeranimaiscarnívoros–comoaonça–devidoaosseus
hábitosalimentares.Asmágicasdecaça–todaselaspositivase
nãonegativas–sãoorientadasparaocaçadoresuasarmaspara
ajudá-lo a encontrar os animais preferidos e a não errar o alvo
quandoatingi-los.
Outros estudos, como o citado, demonstram que, tal como a
agricultura,aestratégiadecaçaéigualmente“itinerante”.Nocaso
dosíndiosKaapor,grupotupidoMaranhão,Balée(1984ms.:211)
sugerequeoabandonodeumazonadecaçasefazindefectivel-
menteantesqueestejaexaurida.Aszonasdecaçaidentificadasna
florestadeterrafirmeporesseeoutrosautoressãodefinidaspelas
seguintescaracterísticas:arbóreas,altaoubaixaaltitude,bordade
rio,florestapantanosa, terrenopermanentementesecoousazo-
nalmente inundado. Contudo, para compreender os padrões de
caçadosKaaporénecessário,segundoBalée,levaremcontaduas
variáveis:aflorestapropriamenteditaeosváriosestágiosdepro-
dutividadedasroças(op.cit.:212).Baléeendossa,decertaforma,
com o exemplo Kaapor, a asserção de Olga Linhares (1976), por
elecitada,dequeacaçadeanimaisatraídospelasroçasfoiuma
espéciede“substituição”dadomesticaçãodeanimaisnaAmérica
tropical(op.cit.:213).Dependendodaidadedaroça,elaatraidi-
versasespéciesdafauna.Roçasdemaisdeumanoatraemveados,
roedores(paca,cutia),aves,preguiçaseatémesmoaanta,devido
àmaturaçãodosfrutosaíplantados.Roçasprimáriasatraemta-
tus,porcos-do-matoeroedoresquesealimentamdetubérculos
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 79
e seus brotos e folhas. Devido a isso, o índio anda sempre com
suasarmasquandovaitrabalharnaroça.Tendoemvistaosdanos
causadosporanimaispredadores,sobretudoosnoturnos,como
ocaititu(Tayassutajacu),queandaembandosdedezoumais,os
Kaaporplantammaismandioca,batata-doceeoutrosprodutosdo
quepodemconsumirduranteumano(op.cit.:217).Aocontrário
dosKuikuro,quenãocomemcaçaterrícola,osKaapornãocer-
camsuasroças,comoqueoferecendo-asàcaça(Balée1984:218).
O cômputo de caça obtida em três meses, durante a estação
seca,pelosKaapor,mostrouque29,3%dototalprovinhadacaça
capturadanasroças.Considerando-seoespaçoreduzidodestas,a
porcentageméextraordinária.Osdoissítiosutilizadosparaesse
cálculosomam176hectares.Dividindo-seaáreapelopesodacar-
nedecaçaeosdiascobertospelaamostra,obtém-seumamédia
de6,4kg/km²/diadebiomassaanimalobtidaemterrenoderoças
novaseantigas(cf.Balée1984ms.:225).MasosKaaporcaçammais
naflorestadoquenassuasroçasparapouparacaçaeevitarasua
exaustão.
William Balée aponta mecanismos ritualmente prescritos
paraoperaresseequilíbrio.Taissãoostabusalimentaresprescri-
tosparaamulhermenstruada,cujadieta,nessasoportunidades,
como a do homem em couvade, ou da jovem, no resguardo da
menarca, se restringe a jabuti-branco (Geochelone denticulata).
Essa espécie é superexplorada porque se trata de animal lento,
que não oferece resistência à captura, embora não se encontre
nasroçasesimagrandesdistânciasdaaldeia,devido,justamen-
te, à grande procura. Os quelônios são facilmente rastejados,
pelasmarcasdaspegadas,dosexcrementos,edasquedeixamao
morder frutose folhascaídos.Aexaustãodo jabuti-branconas
áreaspróximasdaaldeiaobrigaocaçador–quetemdeprover
essacaçaàmulhermenstruada–apercorrergrandesdistâncias,
familiarizando-secommicro-hábitatsdafloresta,ondeencontra
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o80
certamenteoutrosanimais.Dessaforma,abuscadojabutiforça-o
a poupar tanto a área das roças quanto a da própria floresta,
permitindoarecuperaçãodabiomassaanimalnasmesmas. “O
desaparecimentodojabutiservecomoummecanismoecológico
queprevineocaçadordequedevefazerumrodíziodaszonasde
caça”(Balée1984ms.:238).
Quandoojabutirareiaouseexaurenumraiode15quilôme-
trosaoredordaaldeia,aprópriaaldeiadeveserrelocadajuntodas
novasroças,situadasaessadistância,aproximadamente.
Comosevê,certostiposdecomportamentos–taiscomotabus
alimentares,fundamentadosnamitologia,comoneste(cf.Balée
op.cit.:246-248)eeminúmerosoutroscasos–seexplicamporsuas
consequênciasecológicas.
Tratarei em detalhes desse tema, adiante. Antes, procurarei
mostrar que as populações indígenas obtêm proteína de outras
fontes, isto é, vegetais, coletadas e cultivadas. É preciso que se
diga,noentanto,queacaçaeapescanãosãoapenasatividades
econômicas,mastambémrecreativaserituais.Umbomcaçador
eumbompescadorauferemprestígiodessacondição.Diversos
autoresenfatizamqueatéparaobterfavoresfemininosextrasou
maritaiséprecisocaçarbem(cf.Gross1975:533).
3. Captura de proteína vegetal
Como vimos, B. Meggers (1977) e, com mais ênfase, D. Gross
(1975)tentaramprovarqueodesenvolvimentoculturaldosgru-
posindígenasquehabitamaAmazônia–principalmenteaterra
firme,quecorrespondeàmaiorpartedaárea–ficouconstringido
devido à falta de proteína. A resposta ecológica, segundo esses
autores,foialimitaçãonotamanhoenadensidadedosestabele-
cimentos,seuconstantedeslocamento,aausênciadechefiaspo-
líticascentralizadas,arteeculturamaterialpobresparaquenão
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 81
servissemdeentravesàmigraçõeseumsistemadetrocasentre
gruposribeirinhose interioranos.Aspopulações localizadasao
longodosgrandesrios(Amazonas,Tapajós)dispunhamnãoape-
nasdebiomassaanimalemabundância,mastambémdeterras
chamadas várzeas, anualmente fertilizadas pelo aluvião proce-
dentedacordilheiraandina.Emfunçãodisso,suasaldeiaseram
maioreseosistemasocialmaiscomplexoeespecializado(Gross
1975:537;Meggers,1977:182).
Concordando, embora, com Gross quanto ao fator proteína
comolimitadordocrescimentodapopulaçãoeformaçãodeso-
ciedadesmaiscomplexas,Beckerman(1979)discordadelequanto
àsconsequências.Seusargumentossão:
1) A carne (ou protocarne de embriões tais como ovos)
contém proteína de alta qualidade mais que qualquer
outroalimento.(...)Talvezporestarazãoelatemmelhor
paladar. Havendo bastante carne para alimentar uma
população,osensobiológicolevaaconcentrar-senela.
2) Nafaltadecarne,acombinaçãodeaminoácidosnecessá-
riaparafornecerproteínaadequadaaohomempodeser
supridapelasproteínasvegetais,nãoraroseparadamen-
te,embora,nomaisdasvezes,deformacombinada.(...)
Contudo,elaexigegrandemassadetrabalhodoméstico
eeconômico,bemcomosensobiológicoparapassar,se
possível, das fontes de proteína animal para a vegetal.
Alémdisso,caçarepescarsãousualmenteumaativida-
delúdica,aopassoqueaagriculturaétrabalho.
3) Osvegetaisconstituemumpasso(àsvezesmaisdeum)
emdireçãoàscadeiasdealimentosdeprocedênciaani-
mal. Eles podem, portanto, sustentar uma população
consideravelmentemaiorporunidade-área.Setomamos
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o82
acifragenéricade10%paraeficiênciaecológicaenergéti-
ca(...)podemos,comoprimeiraaproximação,preverque
apopulaçãoquevivedeproteínavegetalserá10vezes
maisdensadoqueaquesubsistedeproteínaanimalna
mesmacadeiadealimentos,considerando-se iguaisto-
dasasoutrascoisas(Beckerman1979:553).
Através desse raciocínio, Beckerman chega à conclusão de
que “povos com sensibilidade biológica concentrarão (sua ali-
mentação) em proteína vegetal quando suas populações são
densaseadotarãoproteínaanimalse forempequenaseespar-
sas”(ibidem).
Nessesentido,defendeumpontodevistaaparentementeopos-
toaodeGross,sustentandoqueaspopulaçõesaboríginesatuais
daAmazônia,cujoesforçoalimentarparaacapturadeproteínase
concentranacarne,nãoagiamdessaformanopassado.Portanto,
a população indígena atual não pode servir de parâmetro à an-
tiga.Chegaaessaconclusãomostrandoquehouvequatrofocos
dedoençasepidêmicasconvergindosobreaAmazôniaantesde
haveravaliaçõesdeprimeiramão,comoasdeCarvajal,em1541,
sobreseumontantepopulacional.E,ainda,notíciassobrecinco
epidemiasqueincidiramsobreosíndiosdacostadoBrasil,dadas
pelosjesuítas,nos15anosapóssuachegada,em1549.
OutraevidênciaqueBeckermanacolheemfavordesuatese
sãoascaracterísticasdachamadaterrapretadoíndio.Osestudos
arespeitomalcomeçaram,tantonoqueserefereàarqueologia
comoàpedologia.Oquesesabe,semdúvida,équeostratoscircu-
laresdeterrapreta,ondeexistegrandequantidadedecacosdece-
râmica,constituemreminiscênciadeantigaocupaçãoaborígine.
SegundoFalesi,citadoporBeckerman,“Éopiniãohojequeaterra
pretadoíndio,játendosidaestudadarazoavelmentedopontode
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 83
vistaquímicoemorfológico,temorigemmista,istoé,geológicae
antropogênica”(1974:213).
Sóquandosesouberaextensãoefrequênciadasterraspretas
daAmazônia,apósomapeamentodosolo,deestudosarqueoló-
gicosededemografiahistórica,poder-se-áatinarsobreonívele
adensidadedeculturaepopulaçãodosseusantigoshabitantes.
Vejamos,finalmente,emquemedidaessa“civilizaçãovegetal”
queBeckermaninsinuahaverexistido,antesdachegadadobran-
coàsAméricas,obtinhaproteínadafloresta.Parafinsdidáticos,
Beckerman divide as plantas em nativas e cultivadas, dando os
respectivosteoresdeproteína.Asinformaçõesqueseseguemfo-
ramtomadasdesseautoredasfontesporelecompulsadas.
Entreasplantas“nãocultivadas”–algumasnarealidadeosão–
Beckermanrelaciona,emprimeiroligar,aspalmeirasdosgêneros
Guilielma,Mauritia,Bactris,Oenocarpus,Jessenia,EuterpeeScheelie,
que aparecem de forma mais recorrente na literatura como de
utilizaçãoindígenaepopularnaAmazônia.Sobreasproprieda-
desdessasplantasfalamosanteriormente.Mencionaremos,para
efeitosdestadiscussão,oseuvalornutritivo,sobretudonoquese
refereàquantidadedeproteínaquecontêm,segundoasinforma-
çõesdisponíveis,muitopoucas,infelizmente.
Opericarpodasfrutasdoaçaí(EuterpeprecatoriaeE.oleracea,
quesãoasespéciesmaisdifundidasparapopulaçãoderefrescos)
contém3,38%deproteínanafrutafrescae5,73%nopesomaduro.
Adiferençanasporcentagensdeproteínasecadosdois
produtossedeve,aparentemente,àconversãodeaçúcares
por fermentação durante o preparo e a armazenagem. O
açúcar representa 12% do pericarpo (que contém 41% de
água)massomente1%dorefrescodeaçaí(quecontém85%
deágua)(Beckerman1979:543).
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o84
NumoutroestudocitadoporBeckermanemqueforamtoma-
dasamostrasdeapenasEuterpeoleracea,verificou-sequeemdez
delas a média de proteína do pericarpo era de 2,52% (6,25% no
frutoseco)enasoutrasseisamostrasamédiaencontradafoide
2,37%e18,37%,respectivamentenopericarpoenofrutoseco.A
percentagemdeáguafoide59,7%nopericarpoe87,1%nabebida.
Atítulodecomparação,escreveBeckerman:
Oleitefrescodevaca,quetambémcontém87%deágua,
temumconteúdodeproteínadecercade3,69%.Ovultodo
conteúdo de proteína do açaí é dessa ordem, devendo ser
seriamenteconsideradocomoumafontedeproteína,ades-
peitodoseuelevadoconteúdodeágua.(...)Poressarazão,
todasasdiscussõesdoconteúdodeproteínanosalimentos
devem permitir a computação dos índices realmente sig-
nificativos:aquantidadedeproteínaporunidadedepeso
seco.Paracompletaressadiscussãonecessita-sedeinforma-
çõessobreopesodeaminoácidodoaçaí,informaçãoessa
faltante(Beckerman1979:543).
Outra palmeira que oferece frutos comestíveis é o miriti
(Mauritiaflexuosa).Apartecarnosaoupolpasecatemaseguinte
composição:5,2%deproteína,26,2%degordura,38,2%deamido
eaçúcar,2,9%decinzae27,5%decelulose.Comosevê,oteorde
proteína é considerável no fruto seco e aumenta quando passa
peloprocessodefermentação.
Oquadroabaixo,adaptadodeBeckerman(1979:546),resume
asinformaçõesqueoautorencontrouarespeitodacomposição
químicadefrutosenozesindígenos.Atítulodecomparaçãosão
oferecidososmesmosdadosreferentesaleite,ovodegalinha,mi-
lhosecoearrozàvendanocomércio.
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 85
ATabelaIVmostraqueosfrutosdaspalmeirasseaproximam
e, no caso do miriti, superam o teor de proteína do arroz e do
milho (este último, planta indígena). Como se sabe, muitas po-
pulaçõessobrevivemprincipalmenteàbasedearroz.Igualmente
surpreendente é o teor de proteína dos palmitos, conforme se
podevernareferidatabela,damesmaformaqueodoamendoim,
dacastanha-do-paráedacastanha-de-caju.O frutodestaúltima
contémumdosmaisaltosteoresdevitaminaCconhecidos.
Desconhece-se o teor de proteína do pequi (Caryocar spp.),
plantado no Xingu e provavelmente também por índios de ou-
trasáreasdocerrado.Dentreaspalmeirascultivadas,destaca-se
apupunhaquantoàfarturadesseteor;Testesfeitosnacostado
PacíficodaColômbiamostraramapresençade5,1a6,3%napolpa
frescaede9,9%a12,8%nopesoseco.Aprodutividadedeplanta-
çõesdepupunhafeitasnaCostaRicarevelouqueelaécompará-
velàdomilho(Beckermanop.cit.:551).WarwickE.KerreLigia
Kerr(comunicaçãopessoal)prepararamumlivrocom60receitas
depratosdepupunhadeorigemindígenaepopularamazônica.
Oamendoim,queteveenormeimportâncianaeconomiados
gruposTupi,éumadasmaisimportantesfontesdeproteínacon-
centradaeaminoácidosqueseconhece.Omesmosepodedizer
doabacate(Perseaamericana),comumataxade2%nofrutofresco
e7%napolpaseca(Beckerman,ibidem).Doamendoimosíndios
Kayabi fazemumaespéciedepão,misturando-ocomamidode
mandiocaetapioca.Éusadocomoingredientedeinúmerosou-
trospratosàbasedemandioca,milho,peixeecarnedecaça.Os
Kayabiplantamsetevariedades(B.Ribeiro1979:120,130).
Os feijões indígenas (Phaseolus spp.), como se pode ver na
Tabela IV, representam também importante papel na alimenta-
çãocomocondutoresdeproteínaseaminoácidos.EntreosKayabi
encontreicincovariedadesdefeijõesefavas(B.Ribeiro1979:120).
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o86
Tabela IVAlimentos amazônicos e comparações
composição em termos de 100 g de porção fresca comestível
alimento h2o proteína carboi-dratos gordura fibra cinza calorias
proteína como % de peso seco
Ovofresco(inteiro) 75,3 11,3 2,7 9,8 0,0 0,9 148 45,7
Leitedevacafresco 87,4 3,5 5,5 3,0 0,0 0,6 61 27,8
Milhoseco(Zeamays) 10,6 9,4 74,4 4,3 1,8 1,3 361 10,5
Arrozintegral(Oryzasativa)
13,0 7,2 77,6 1,5 0,8 0,7 357 8,3
Feijões:
(Phaseolusvulgaris) 12,0 22,0 60,8 1,6 4,3 3,6 337 25,0
(Phaseoluslunatus) 12,0 20,7 62,4 1,2 4,9 3,7 336 23,5
(Canavaliaensiformis) 12,0 25,4 57,1 1,3 4,9 4,2 331 28,9
Amendoim(Arachishypogaea)
6,9 25,5 21,3 44,0 4,3 2,3 543 27,4
Castanhas:
Castanha-do-pará(Bertholletiaexcelsa)
2,6 13,2 20,5 60,3 1,2 3,4 640 13,6
Castanha-de-caju(Annacardiumoccidentale)
2,7 15,2 42,0 37,0 1,4 3,1 533 15,6
Frutos de palmeiras:
Açaí(Euterpeoleracea)
41,0 3,4 42,2 12,2 18,0 1,2 265 5,8
Miriti(Mauritiavinifera)
72,8 3,0 12,5 10,5 11,4 1,2 265 11,0
Pupunha(Bactrisminor)
79,6 1,2 17,8 0,2 2,1 1,2 70 5,9
Pupunha(Bactrisgasipaes)
50,5 2,6 41,7 4,4 1,0 0,8 196 5,2
Tucum(Astrocaryumstandleyanum)
71,9 1,7 24,3 0,7 5,7 1,4 99 6,0
Palmitosdepalmeiras:
Geonomaadulis 88,2 3,2 7,0 0,3 1,5 1,4 35 27,1
Acromiamexicana 87,6 2,4 8,4 0,4 0,7 1,2 39 19,4
Euterpelongipetiolata 91,0 2,2 5,2 0,2 0,6 1,4 26 24,4
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 87
Beckerman acrescenta aos referidos produtos um dado im-
portantíssimo: a produção de bebidas fermentadas obtidas com
amaioriadeles,especialmentemandiocaemilho.Sãoasfamosas
chichas,cauins,oucaxirisdequefalaabundantementealiteratu-
raetnológica.BettyMeggers(1977:121)édeopiniãodequeocon-
sumo de bebidas fermentadas, mais apetitosas, aumenta o teor
deáguanoorganismosedentodevidoàtranspiraçãodosclimas
cálidoseúmidos.Osfungos,eoutrosmicro-organismosobtidos
pelafermentação,aumentamoteorproteicodasbebidas.
Por todas essas formas o aborígine americano conseguiu os
nutrientesessenciaisàvidasemcolocaremriscooecossistema.
Umexamecuidadosodostabusalimentaresedeoutraspráticas
culturaisdesvelaassoluçõesencontradasparaevitaraexplora-
çãoexcessivadecertosrecursos.Éoqueexaminareinaspáginas
seguintes.
4. Tabus alimentares e conservacionismo
Numtrabalhofartamentedocumentado,Ross(1978)procura
demonstrar que as populações indígenas da hileia amazônica
obtêm sua dieta proteica de pequenos animais ao invés dos
grandes.Nãosóporseremmaisabundantesnoecossistematro-
pical, como também por se reproduzirem mais rapidamente e
seremmaisfáceisdecaçar.Aanta,oveado,acapivara,apregui-
çatêmhábitosnoturnos,solitários,sãofurtivos,e,osdoisúlti-
mos,semiaquáticos.Dentreacaçagrande,sóoporco-do-matoe
aqueixadaandamembandos,massãodificilmentelocalizáveis,
exigindocaçadascoletivasparapegaromaiornúmero.Dentre
as810espéciesmamíferasdoneotrópico,menosde3%sãorepre-
sentadaspelosungulados(anta,porcoseveados),enquantoos
roedores(cutia,paca)sãomaisdametade(Ross1978:5).Porisso
asespéciesmaisexploradasparaaalimentaçãosãoosmacacos,
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o88
quelônios, aves e roedores (exceto a capivara, objeto de tabus
alimentares)(op.cit.:4).
A população de macacos pode declinar, se excessivamente
explorada.Entretanto,asavescomestíveiseosroedoressãoatraí-
dosàsroçascultivadas.Assim,ainteraçãohomem/naturezacria
micro-hábitats propícios a certas variedades de fauna. O veado,
atraído pela vegetação rasteira, permite o desenvolvimento de
árvoresdecujosfrutosespéciesmenoressealimentam.Oexcre-
mentodapreguiçarepresentafontedenutrientesedeminerais
paraafloresta.“Umavezqueprimatascomoosmacacos(Ateles
sp.eAlouattasp.)explorammuitasdasárvoresqueaspreguiças
tambémcomem,apreservaçãodestasúltimasfavorecetambém
essasespéciespredadoras”(Ross1978:10).
Numquadrocomparativoentreovultodecaçadeumapopu-
laçãomestiça(21famílias)daselvaperuanaeoutraindígena(sub-
grupoJívaro),Rossmostraque,emboraambasdependamparaa
própriasubsistênciaem87%deanimaisdepequenoporte,osmes-
tiçoscaçamtambémantas,preguiças,capivaras,veados–queos
Jívaroseabstêmdematar–destinandosuacarneàvendanacida-
dedeIquitos(Ross1978:12).Poroutrolado,Rossprocuramostrar
queexisteumarelaçãoconstanteentretamanhodacomunidade,
mobilidadedapopulaçãoecaçaaanimaisdemaiorporte.Assim,
osYanomamiquecaçamanta,veadoetc.têmumadensidadede
0,5pessoapor2.590km²(oumilhaquadrada),aopassoqueuma
concentraçãomaiorporaldeia,comoadosJívaro,doPeru–1,0
pessoapormilhaquadrada–,subsisteprimordialmentedecaça
menor.Aomesmotempo,amobilidadedoscaçadoresdegrandes
mamíferos é bem maior que a dos outros, justamente devido à
rápidaexaustãodacaça.UmexemploextremoéodoaltoXingu,
emqueosgruposindígenassubsistemquaseexclusivamentede
peixe, caçando apenas certas espécies de macacos e certas aves.
Essacircunstância–emborajustificadaculturalmenteportabus
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 89
eemtermossimbólicospelacosmologia–sedeveàexcepcional
abundânciapesqueiradaárea,principalmenteduranteaestação
seca(Ross1978:13),oquetambémpermiteumaconsiderávelse-
dentarizaçãodosgrupos.
Comosevê,aprodutividadedacaçanãoéabsoluta.Épresi-
didaporumasériede fatores: recursosambientais,distribuição
dapopulação,característicascomportamentaisdasespéciesase-
remexploradasetecnologia(Ross1978:15).Ousodeespingardas
criamaiorimpactosobreoecossistema,semquesealcanceuma
produtividadesubstancialmentemaiornoconsumodebiomassa
animal.Pelocontrário,oaumentodaexploraçãoconduzàexaus-
tão,principalmentedasespéciesmaiores,maisrarefeitasequese
reproduzemmaislentamente.Emrazãodisso,osgruposmaisse-
dentáriosepopulacionalmentemaisdensosexpressamdesgosto
ideológicoporelas,tornando-astabusalimentares(op.cit.:16).
Comparandodoisecossistemas–odeflorestatropicalúmida
exemplificadopelaAmazôniaeodasavanadoplanaltodoBrasil
central–DavidMcDonald(1977)indagaseostabusalimentares
têmefeitossemelhantessobreosrecursosfaunísticosdeambos.
Admitindo-se que os tabus dietéticos se destinam à conserva-
ção de recursos da fauna escassos, como as das terras firmes da
Amazônia, eles deveriam ser mais fortes e frequentes entre as
tribosadaptadasaesseecossistema,enãoàsavana,ondeacaçaé
maisabundante(op.cit.:736).Comessapreocupaçãoemmente,o
autorinvestigadadosdisponíveiscomrespeitoa11tribos,entre
silvícolasecampestres,doBrasilepaíseslimítrofes.
McDonald define tabus alimentares como sendo “uma regra
proibindooconsumodepartedeanimal,detodooanimaloude
umasériedeles,oudequalqueroutroalimento.Ostabusalimen-
tares podem aplicar-se a toda a população. Entretanto, a maior
parte deles incide sobre segmentos da população” (McDonald
1977:737).
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o90
O levantamento efetuado por McDonald mostrou que, em
muitoscasos,essestabusserestringiramàmulhergrávidaeaos
paisdenascituros.E,secundariamente,ajovensemreclusãoda
puberdade.Emfunçãodisso,propõe-severificaraexpressãonu-
méricadessessegmentospopulacionais,eareduçãodoconsumo
de carne devida às evitações. Verifica que os tabus alimentares
reduzemnãosóoconsumodecarne,comotambémasatividades
decaça,asquais,demodogeral,selimitama10ou12diasdurante
omês.Entreastribossilvícolas,oshábitosalimentares,devidoa
tabus,restringemoconsumodecaçaa10%menosqueovigente
entreosgruposdasavana.Nocaso,havendoabundânciamaior,
ostabussãomenosrigorosos.
Por outro lado, as práticas conservacionistas incidem antes
sobreanimaisdegrandeporte,representadospormenornúmero
deindivíduoseumataxamaislentadereprodução.Nãoobstante
a falta de dados suficientes para uma avaliação mais precisa, o
autoracreditaqueaausênciadetabusalimentarescomrespeito
a espécies com ciclo reprodutivo mais longo teria determinado
suaextinção.
Outro exemplo nos é oferecido pelos estudos de G. Reichel-
-DolmatoffentreosTukanodoaltoUaupés,Colômbia.Adoença,
no conceito desses índios, é causada pela negligência em obe-
decerregrasculturais.Decorrede: “1)avingançadeanimaisde
caça;2)amávontadedeoutraspessoas;3)amalevolênciadeseres
sobrenaturais,taiscomooDonodosAnimaiseoutrosespíritos”
(Reichel-Dolmatoff1975:324).
Airadecorredatransgressãodecertostabusalimentares,ou
da matança de grande número de bichos da mesma espécie. O
xamãfazodiagnósticodadoençaatravésdossonhosemqueo
enfermoaparecenafiguradoanimalofendido(op.cit.315).
Omesmoseaplicaaocontroledamanipulaçãodeoutrosre-
cursosnaturais,comoacoletademelefrutossilvestres,apescae
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 91
atémesmoautilizaçãoexcessivadematéria-primamanufaturei-
ra.Quandoissoocorre,osguardiõesdanaturezatêmdeserexor-
cizadospeloxamã,paraaplacarsuairaerestabeleceroequilíbrio
entrerecursosnaturaiseexploraçãohumana.Ocódigometafóri-
codosrelatosmíticosedaspráticasrituaisdeterminaocompor-
tamentohodiernoeserefereessencialmenteaoequilíbrioecoló-
gico.Dentrodessaperspectivaoperaocontroledemogenéticoda
população,atravésdaabstinênciasexual,dosmétodoscontracep-
tivoseabortivosedasregrasexogâmicas.Nessesentido,aevita-
çãodecertosalimentosearepressãoaoapetitesexualcorremem
linhasparalelas(op.cit.:312).
Finalmente, Reichel-Dolmatoff pontualiza que os mitos cos-
mológicosdosTukanonãoexpressamoquesepoderiachamar“a
harmonia(dohomem)comanatureza”.Aocontrário,
O homem é tido como parte de um conjunto de siste-
massupraindividuais,osquais–sejamelesbiológicosou
culturais–transcendemnossasvidas.Asobrevivênciaea
preservação de certa qualidade de vida só se tornam pos-
síveis,noâmbitodessessistemas,sesepermiteevoluir,de
acordocomsuasnecessidadesespecíficas,todasasformas
devida(op.cit.:318).
Na segunda parte deste livro examinei a maneira como a
populaçãoruralbrasileiraseposicionafrenteàfauna.Veremos
que desenvolveu justificativas, também no plano ideológico
e simbólico, para poupá-la, hauridas no saber indígena. Tanto
no pensamento do índio como no do caboclo, não há apenas
racionalização.Asrespostasadaptativasacondiçõesecológicas
não explicam tudo. Existem resíduos culturais e crenças má-
gicasarraigadasatrásdecertaspráticasquedevemserlevadas
em conta como fatores e variantes. Ao fim e ao cabo, eles não
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o92
sãoincompatíveiscomosecológicosesimcomplementares.A
ideologia,naverdade,nemsempreéfuncionalouracional,mas
simplesmenteideológica.
Conclusões: ecologia cultural versus depredação
Esta discussão sobre ecologia cultural poderá parecer exces-
siva a muitos leitores, tratando-se de um livro que versa sobre
a contribuição indígena à cultura brasileira. Entretanto, dada a
crescente preocupação do grande público com relação à defesa
domeioambienteedadasasreiteradasadvertênciasarespeitoda
nãorenovaçãodosrecursosdaflorestaúmida(cf.Meggers1977;
Goodland & Irwin 1975), ela me parece a mais pertinente. Por
outrolado,éprecisolevaremcontaqueadestruiçãodeumelo
nacadeiadeumecossistemacolocaemriscootodo,ameaçando
regiõesdaimensidãodaAmazônia–56%doterritórionacional–
deumdesastreecológicodeproporçõesinimagináveis.
Segundo Warwick E. Kerr (1975), os atentados à natureza do
Brasilpodemresumir-seemquatropontos:
1) Destruiçãodasflorestas.Oscincotiposdeflorestas(ama-
zônica, atlântica, araucária, campos cerrados, caatin-
gas) estão sendo destruídos. Dados de 1973 indicam
que24%daflorestaamazônica(de3.574.000km²restam
2.731.000km²)foidesmatadaepartetransformadaem
pastagens. As outras florestas têm sido parcialmente
reflorestadascomEucalyptusePinus,bosquesdosilên-
cio, porque não oferecem frutos para animal algum.
Ascausasdadestruiçãosãoaganância,aformaçãode
fazendasquelimpamoscamposdegenteparaentregá-
-losaogado.“Noentantoésabidoqueogadonãoéo
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 93
melhortransformadordeproteínavegetalemanimal,
sendomuitoinferioràsaveseestasinferioresaospei-
xes.Alémdisso,aeficiênciadocrescimentodosroedo-
res torna-os economicamente mais aceitáveis” (Kerr
1975:95).
Acrescenta Kerr: “Além dos aspectos de destruição da
natureza, o desenvolvimento diminui a retenção de
água,aumentaaerosão,provocaoaçoreamentodosrios
e, consequentemente, alagações em lugares antes não
sujeitosaosefeitosdascheias.Háindícios,também,da
mudançadeprecipitaçõespluviométricas”(ibidem).
2) Construçãodeestradas.Eliminaterrasquepoderiamser
entreguesàproduçãodealimentos.Atentacontraain-
tegridadefísicaeaautonomiadosgrupostribaisrefugia-
dosnasregiõesmaisermasdopaís.
3) Uso indiscriminadode inseticidas, fungicidasedesfolhantes.
Paratornarmaisrápidoebaratoodesmatamentoepara
combater as pragas que incidem sobre monoculturas,
têm sido introduzidos no Brasil agrotóxicos (neantina,
D.D.T., fosforados e “agente laranja”) que têm causado
grandeperdadevidashumanasedestruiçãodanatureza.
4) Poluiçãoindustrial.Olixoindustrialatiradoaosrioseao
marestáesterilizandoosrioseacostadoBrasil.
ODr.Kerrencerrasuasconsideraçõesapresentandopropos-
tasparaobviaressasituaçãocalamitosaaquenossopaíschegou
notocanteàecologia.5Desejaria,entretanto,terminarestecapí-
tulotranscrevendoaspropostasdeDarrellA.Posey,hauridasnas
liçõesqueassociedadesindígenas,emboradizimadas,podemdar
5 Argumentosigualmenteincontestáveisdeque,talcomoamataatlântica,aflorestaamazônicapodeacabar,emváriosestados,antesdoano2000,foramoferecidosporP.M.Fearnside(1983: 42-57).
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o94
aoBrasileaomundo.Poseypropõeque,juntoàstribosremanes-
centes,seefetueoestudode:
1.Conceitualizaçãodezoneamentoecológicoepercep-
çãoderecursosdentrodecadazonaecológica.
2.Conhecimentodocomportamentoanimaledarelação
planta-animal-homem em várias zonas ecológicas.
3.Usodecategoriastransicionaisdedivisõesecológicas
naturais.
4.Classificaçãoedescriçãodeespéciesdeplantasdo-
mesticadas.
5.Classificaçãoedescriçãodeespéciesdeplantassilves-
tresesemidomesticadas,camposdeflorestaetodoo
sistemadeagriculturanômade.
6.Manipulaçãodeespéciesanimaissilvestresesemido-
mesticadas como parte integrante de manejo eco-
lógico.
7.Adaptaçãodaagriculturadecoivaraetodaagamade
variaçõesdosistemanaAmazônia.
8.Estratégiasdeexploraçãoemanejoalongotermode
capoeiraseflorestassecundárias(Posey1983:891).
Comosevê,estaspropostasdeestudo,objetivandooaprovei-
tamentoracionaldaflorestatropical,vêmaoencontrodospropó-
sitosdestetrabalho.Taissão:mostrarnãosóolegadodoíndioà
culturabrasileira,masomuitoqueaindatemosaaprendercom
ele.Ouseja,aimensariquezadeensinamentosque,porinsídia,
etnocentrismoeignorância,deixamosdeabsorver.Cabeassinalar
queorespeitoànaturezanãoseconsegueapenascommedidas
educativasousançõespenais.Éprecisoproveraspopulaçõesque
depredamafloraeafaunapormotivoseconômicosdecondições
de subsistência que inibam essas práticas. Isso só será possível
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 95
atravésdeumapolíticafundiáriavoltadaparaasnecessidadesdo
povobrasileiroenãodeumaminoriadeproprietárioseempresas
multinacionaisquefazemdaterraumbomnegócio,atendendo
interessesantinacionaiseprivatistas.
Importantefatoraserlevadoemcontaéqueaexpansãodaso-
ciedadenacionaldeterminouumdecréscimoradicalnonúmero
detribosenocontingentedemográficodasquesobreviveramao
impacto.Comoterritórioreduzidoecercadoportodososlados
pelapopulaçãoregional,osgrupostribaisremanescentestiveram
de alterar drasticamente suas relações com o ecossistema e, in-
clusive,migrar,mudandosucessivamentesuaadaptaçãodeum
ecossistema ao outro. Ainda quando permaneceram no mesmo
território, tiveram de explorá-lo mais intensivamente, com uso
de uma tecnologia aparentemente mais eficiente, como os im-
plementosdeferroparaasfainasagrícolaseasespingardaspara
acaça,resultando,emalgunscasos,numdeclíniodeprodutivi-
dade.Estamudançaobedeceuaimperativosdoprocessodeacul-
turação:anecessidadedeproduçãodeexcedentesparaadquirir
bensindustriais,tornadosindispensáveis.Eaprópriaimposição
daeconomianacionalemqueosgruposindígenasforamsendo
engajados:demaiorexploraçãodosrecursosnaturais(borracha,
castanha, plantações de mandioca para a produção de farinha
paraavenda,exploraçãodoartesanatoparaavendaetc.).Dessa
formafoisendocoibidaaautonomiapolíticadeinúmerastribos,
afetando dramaticamente sua autonomia cultural. (A respeito
de alterações no ecossistema em função de aculturação, ver A.
Seeger1982.)
As considerações feitas baseiam-se em estudos realizados
principalmente entre grupos indígenas da hileia amazônica,
onde se refugiam, atualmente, as tribos que mais resistem ao
rolo compressor da sociedade nacional e dos países limítrofes.
NaregiãoNorteseconcentra,hoje,60%dapopulaçãoindígena
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o96
remanescente no Brasil. Ela foi reduzida de cerca de5 milhões
antes da descoberta a menos de 200 mil. É ainda no Norte que
seconservamaisvivaaherançaindígena,emnossosdias.Aela
dedicaremos,porisso,atençãomaiornaspáginasqueseseguem.
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 99
iiisubculturas, técnicas, sabor e saber
Introdução
O títulodestasegundaparte–AculturaindígenanoBrasil
moderno–colocaalgumasindagações:primeiro,oque
entendemosporcultura?Segundo,persistemnaculturabrasileira
influênciasdaculturaindígena?Preliminarmente,cabeesclare-
cerqueoconceitodeculturaéaquiutilizadonosentidoantropo-
lógico:osmodos(brasileiros)deproduzir,interagir,pensaresim-
bolizardesenvolvidosouadotadosparasatisfazerasnecessidades
humanas. Cultura não significa, portanto, apenas ilustração ou
progresso,esim,ideias,comportamentose,sobretudo,fórmulas
deaçãosobreanaturezaparaoprovimentodasubsistência,que
vêmdosprimórdiosdaformaçãodanacionalidade.Significa“um
processosocialdeprodução”(Canclini1983:30),ou“umproduto
coletivodavidahumana”(...)(que)“nãopodeserentendidosem
referênciaàrealidadesocialdequefazparte,àhistóriadesuaso-
ciedade”(Santos1983:45,47).
Issonosremeteaoprimitivoconceitodeculturaquevemdo
latim:colo-cultum-colere.Significacultivar,habitare,porextensão,
viver.Nomododecultivar,naformademorarenojeitodeviver
équeiremosencontrarosvestígiosdeumadasmatrizesforma-
dorasdoBrasil-nação:aindígena.Ouseja,noníveladaptativo,o
quevinculaopresentecapítuloaosprecedentes.Pesesernosso
intuito valorizar as tradições da vertente indígena que, por sua
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o100
funcionalidadeoupeloisolamentodaspopulaçõesqueasculti-
vam,resistematéhoje,adiscussãosuscitará,inevitavelmente,a
ideia de arcaísmos, de sobrevivências, com toda a carga de pre-
conceitosqueencerra.
É de se perguntar: em que medida essa raiz da identidade
nacional está presente ao nível da consciência dos brasileiros?
Muitoseescreveu,decertoedeerrado,aesserespeito.Ocaráter
nacionalbrasileirocomeçouaserdiscutidodesdeosprimórdios
dacolonização.Temsidoobjetodepreocupaçãoagudadospolí-
ticos,historiadores,ensaístas,homensdeletrase,sóapósadéca-
da de 30, dos cientistas sociais. Todos procuram inferir a forma
pelaqualosbrasileirosseconcebem.Essepropósitoultrapassaas
ambições do presente estudo. O que nos interessa são as mani-
festaçõesexplícitasquerevelamainfluênciaindígenanacultura
nacional.Elasestãocontidasnaculturarústica,sendotantomais
fortesàmedidaquenosafastamosdasáreasurbanasametropoli-
tanas,ondeaculturademassaspenetrouemgraumaiselevado.
Encontramosasevidênciasquebuscávamosnaliteraturahistó-
rica e etnológica, embora estejam formuladas – de forma mais
vigorosa,talvez–nasobrasliterárias.
Inicialmente,trataremosdaformaçãohistóricadassubcultu-
ras regionais e da presença indígena, maior ou menor, em cada
umdelas.Focalizaremos,aseguir,osmodosdeproduçãoeatrans-
ferênciadetécnicasadaptativasindígenasatravésdocontatoin-
terétnicoedamiscigenação.Nessecontextoincluem-semodosde
fazereinstituiçõesque,emboraextremamentesimples,nãosão
demodoalgumirracionais.Entreoutros,agamadeconhecimen-
tos que compõem o processo econômico, conhecimentos estes
relacionadosaoequipamentoprodutivo,àhabitaçãoeconforto
doméstico,acrençasecrendicesvinculadasàconservaçãodana-
turezaeaoconvíviosocial.
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 101
1. Subculturas
No século da descoberta, os portugueses só tiveram contato
comosíndiosquehabitavamacosta,pertencentesaotroncolin-
guísticoTupi-Guarani,eesporadicamentecomosqueviviamum
poucoadentradosnointerioreaolongodacalhadorioAmazonas.
Noséculoseguinte,teminícioodevassamentodointerioratravés
depenetraçõesporterraepelasgrandesartériasfluviais.
Sãomuitocontrovertidasasavaliaçõesdapopulaçãoaborígi-
ne em 1500. Os cálculos mais conservadores a estimam em um
milhãodeíndios.Estudosmaisrecentes,quelevamemcontao
vultodadepopulaçãoeaextinçãodeinúmerastribosporforça
daescravidãoedatransmissãodedoençasantesdesconhecidas,
permitemelevaraoquíntuploessemontante.Considerando-seo
contingenteindígenaatual–cercade200mil–,verifica-sequeo
descensofoinaordemde25:1,dosmaiselevadosqueahistória
registra.6
Os primeiros brasileiros surgem da miscigenação genética e
culturaldocolonizadorluso-europeucomoindígenadolitoral,
plasmada nas quatro primeiras décadas após a descoberta. Essa
protocéluladanaçãobrasileiraémoldada,principalmente,pelo
patrimôniomilenardeadaptaçãoàfloresta tropicaldosgrupos
Tupi-Guarani. Ocupando praticamente toda a costa, desde o
AmazonasatéoRioGrandedoSul,essastribostiverampapelpre-
ponderantenaunidadenãosóculturalcomotambémgeográfica
doqueviriaaconstituiroBrasil.
A incorporação do índio à cultura brasileira se dá, entretan-
to,atravésdofilhododominadorportuguêsgeradoemmulhe-
resdesgarradasdonúcleotribal.Essapopulaçãodemamelucos
6 Referênciasbibliográficassobreavaliaçõesdapopulaçãoindígenapré-cabrali-naencontram-seemB.Ribeiro1983b.
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o102
– criados pela mãe, dominados pelo pai – se multiplica rapida-
mente.Aprenderafalaralínguamaterna,umdialetotupi-guarani
onheengatu(quesignifica“alínguaboa”),sistematizadoedifundi-
dopelosjesuítas,quepassaaseralínguafrancaou“línguageral”
dacolôniadurantemaisdetrêsséculos.Deextraçãotupi-guarani
foi,portanto,acontribuiçãogenéticaeculturaldoscontingentes
que sucederam os grupos litorâneos, prontamente subjugados,
escorraçadosouexterminados.
A“protocélulaBrasil”seplasmoueespraiouantesdachegada
do negro africano, em 1538, provavelmente (D. Ribeiro 1974ms:
3-4).EngajadocomoescravonaempresaaçucareiradoNordeste,
dorecôncavobaianoe,emmuitomenorescala,deSãoPaulo,one-
grocontribuiuparaaformaçãodaquelaprotocélula.Incorporou-
-se a ela, aprendendo a alimentar-se com os produtos da terra,
reconhecê-losechamá-lospelosnomesnativos,damesmaforma
queocolonizadorluso.
A ordenação social e econômica, no entanto, foi regida com
mãodeferropelobrancoeuropeu.Omododeproduçãoagrário,
monocultor e escravista imprimiu-lhe as características essen-
ciais.Todaaimplantaçãocolonialestavavoltadaàexploraçãoda
terraedotrabalhoindígenaeafricanoparaaproduçãodeaçúcar,
primeiro,deouro,dealgodão,degadooudecafédestinadosàex-
portação.Nesseprocessogerou-seumcontingentemestiçoíndio-
-branco-negroqueviriaaconstituiropovobrasileiro.
Noplanoideológicopredominouaortodoxiacatólica,religião
dodominador,masimpregnadadetradiçõesecrençasindígenas
e africanas. De modelo europeu-colonial é ainda a organização
político-administrativa que presidiu as atividades produtivas
paraextrairamais-valiacomqueseconstituíramascidades,as
igrejas,ospalácios,secustearamasguerraseaopulênciadosrei-
nóisdePortugal.
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 103
Essa ordenação socioeconômica e cultural se expandiu dos
primeirosnúcleosaçucareirosdoNordesteparaoscamposnatu-
raisdecriaçãodegadodorioSãoFrancisco,paraasminerações
deouroediamantedeMinasGerais,paraaflorestaamazônica,
paraasregiõespastorisdoextremosul.Otipodeexploraçãoeco-
nômicadecadaumadessasáreasesuaspeculiaridadesecológico-
-regionais determinaram os vários modos de ser dos brasileiros
estabelecendovariantesculturaisqueexaminaremosresumida-
menteaseguir,noquetêmdeherançaindígena.
Essas variantes conformaram, no Brasil rural, o que foi cha-
madoporDarcyRibeiro(1974ms:8-9)deculturacrioula,desen-
volvida na faixa de massapé do Nordeste, sob a égide do enge-
nho açucareiro; cultura caipira constituída pelo cruzamento do
portuguêscomoindígenaequeproduziuomamelucopaulista,
preadordeíndios,depois“sitiantetradicional”dasáreasdemi-
neração e de expansão do café; cultura sertaneja difundida pelo
sertãonordestinoatéocerradodoBrasilcentralpelacriaçãode
gado;culturacabocladaspopulaçõesamazônicas,afetasàindús-
tria extrativista; e cultura gaúcha de pastoreio nas campinas do
Sul.
Oconjuntodessassubculturasruraisconformaoquesecos-
tumachamardeculturarústicabrasileira.Seusportadoressãoa
massacamponesaque,segundoMariaIsauraPereiradeQueiroz,
sempre existiu no Brasil, mesmo ao tempo da escravidão. Na
opiniãodessaautora,elacoexistiu“tantocomasfazendasmono-
cultoras,quantocomasfazendasdecriaçãodegado,tendoaseu
cargoaproduçãodeabastecimentoparaestasempresaseparaos
povoados”(1976:26).
O gênero de vida dessas populações, genericamente falando,
éodasmassascamponesasdeoutrospaísesdaAméricadoSul.
Queirozassimocaracteriza:
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o104
Praticamapoliculturaeacriaçãoempequenasescala;
sãoiletrados;suatecnologiaépré-industrial:cultivampe-
quenasáreas,consagrandoumaporçãosignificativadaco-
lheitaparasuasubsistência;utilizammãodeobrafamiliar
emsuasplantaçõeseocasionalmentepoderãoutilizartam-
bémalgumtrabalhadorexterioràfamília,remunerando-o
devariadamaneira(1976:25).
Emborarelativamenteautônomos,quantoaoprópriosusten-
to,os“sitiantestradicionais”mantinhamemantêm,deumafor-
maoudeoutra,umarelaçãodedependênciacomapequenacida-
de,osgrandesproprietárioseoschefeteslocais.Acategoriainclui
meeiros,parceiros,posseiros,pequenosproprietáriosque,coma
penetraçãocapitalistanocampo,tendeasererradicada.Issopor-
que, primeiro, é obrigada a plantar excedentes ao seu consumo
para adquirir produtos industriais a que se vai habituando. Em
segundolugar,porqueasterrasqueocupasevalorizam,passando
asercobiçadaspelosgrandesfazendeiros.E,finalmente,porque
a implantação de infraestrutura (estradas, hidrelétricas) para a
pecuária,aagroindústria,aexploraçãomadeireiraeamineração
quebrasuarelativaautonomia,forçandosuaincorporação,como
umestratosocialsubalterno,àeconomiacapitalista.Talprocesso
severificaemrelaçãoàscomunidadesindígenas,mesmoasque
sobrevivemnasregiõesmaisermasdopaís.
Nosprimeirosanos,poucasforamasfamíliascompletasvin-
das de Portugal. O colonizador europeu, na falta de mulheres
brancas, amancebou-se com índias, em uniões poligâmicas que
indignaramosjesuítas.
Através destes cruzamentos – escreve Darcy Ribeiro
(1974ms)–multiplicavam-seosmamelucosque,alémdas
funçõespreferidasporelesdebandeirantespredadoresde
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 105
índiossilvícolasoumissioneiros,dehomensdearmaspara
a defesa das vilas e para a perseguição de negros fugidos,
exerciamváriosofícios.Mais tardeforamelesquesefize-
ramosartesãosespecializadosdosengenhos;osvaqueiros
das zonas pastoris, os carreiros, tropeiros, remeiros dos
transportesterrestresefluviais;osagregadosemeeiroseos
artesãosqueproduziamparaasfeirascomotrabalhadores
livres,situadosnosinterstíciosdeumasociedadecadavez
mais escravocrata. De certo modo foram eles que viabili-
zaramavidasocialpeloexercíciodemúltiplasatividades
indispensáveis que não podiam ser entregues a escravos
(D.Ribeiroop.cit.28).
Ossetoresmaisprósperosdaeconomiaéquesepodiamdarao
luxodeimportaremanteroescravonegro,cincoaseisvezesmais
caro que o índio. Em Piratininga e São Vicente, por exemplo, o
colonotevedecontentar-secomoescravonativo,acujainfluên-
cia se deve, certamente, a vocação desbravadora do mameluco
paulista,acimareferida.
Apopulaçãodiretamenteengajadanoempreendimentocolo-
nialatingiria,em1600,acifrade200milhabitantes (D.Ribeiro
1974ms:33).Arendageradapeloaçúcareraextraordinariamente
alta,emboramaldistribuída.CelsoFurtadocalculaque,àépoca,
funcionavam120engenhosdeaçúcareorebanhobovinoalcan-
çava680milcabeças(apusD.Ribeiroibidem:35).
AdescobertadoouroedodiamanteemMinasGerais,noco-
meço do século XVIII, quando a indústria açucareira começava
adeclinar,revigoraaeconomia,atraindoparaointeriordopaís
populações crescentes e incorporando os territórios de Minas,
GoiáseMatoGrossoaoprojetocolonial,jánãoagrário,massim
minerador,sempreexportador.
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o106
“Em 1800, a população neobrasileira recupera seu montante
originaldecincomilhões”,escreveD.Ribeiro,e“todososnúcleos
seintegramnumúnicomercado,eestepassaasermaisimpor-
tantequeoexterno”(op.cit.:36,38).Àépoca,opolomaisdinâmico
daeconomiaseconcentranoMaranhão,tornadocentroexporta-
dordealgodão.Mascomeçaasurgirumnovoproduto,ocafé,que
rearticulaoBrasilaomercadomundial,massemalteraroregime
depossedaterra.
OpovoamentoeaocupaçãodoBrasilsefizeram,segundoM.
DieguesJr.,
combasenapropriedadedaterra,especialmenteagran-
depropriedade,a“fazenda”,qualquerquefosseotipode
exploração econômica. O desenvolvimento da ocupação
humana se estabilizou através da formação de proprie-
dadesrurais,querepresentavamosesteiosdafixaçãodos
grupos.Nasceuassimumacivilizaçãoderaízesruraiseca-
racterísticadessacivilização,agrandepropriedade(1959:
25).
A propriedade da terra, na forma de latifúndio, de grande
plantação, e fazenda de gado, foi a instituição irremovível e a
que menos abalos sofreu em 486 anos de história do Brasil. Ela
foiimpostaasociedadessocialmenteigualitárias,emqueaterra
erapossuídapelosqueaamainavam,cujaseconomiasatendiam
nãosóàsnecessidadesimediatasdeaquisiçãodosustento,como
tambémàproduçãodeexcedentesparatrocacomfinssociais,ru-
raiserecreativos.Reminiscênciasdosistemaagrário-exportador
eescravistapersistemnasregiõesinterioranas.Prevalecemtam-
bémresíduosdeumsaberindígenaqueajudaasobrevivênciade
populaçõesespoliadaseesquecidas.
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 107
a) Cultura crioula
Tidacomoumadasobrasbásicassobrea“formaçãodafamília
brasileira sob o regime de economia patriarcal”, Casa-grande &
senzala(1933,1ªedição)inovapelametodologiautilizada.Analisa
asrelaçõesculturaisentreostrêscomponentesbásicosdanacio-
nalidade:obranco,oíndioeonegro.Éumretratodaformação
dasociedadeagrário-monocultoraepatriarcalbrasileira.Ofator
explicativodamiscigenaçãoé,segundoFreyre,oencantamento
doportuguêspelamulhermorena,sejaelamoura,negraouíndia.
Pode-se contra-argumentar, entretanto, que uniões semelhantes
ocorreramemoutras latitudesondeocolonizadoreuropeumi-
grousozinho.Mesmonosséculosseguintesàdescoberta,emque
eramenoraescassezdemulheresbrancas,aalegadapreferência
pelanegraeamulatasedeu,emgrandeparte,devidoàatitude
submissa e subalterna, mesmo da mulher branca, na sociedade
escravocrata.
Gilberto Freyre destaca o papel da mulher indígena “não só
comoabasefísicadafamíliabrasileira(...)senãotambémcomo
elementodecultura,aomenosmaterial” (1973:94).Disso trata-
remosmaistarde.UmpontoasalientaréqueFreyre,aomesmo
tempo que enaltece o papel da mulher indígena como amante
sensual, desdenha a sua importância como agricultora. Afirma
que: “AcolonizaçãoagrárianoBrasilsóaproveitoudoindígena
oprocessodecoivaraque,desgraçadamente,viriaadominarpor
completoaagriculturadoBrasil”(1973:95-96).
Contra essa convicção, que ainda prevalece, argumentamos
copiosamentenaprimeirapartedestetrabalho.
A cultura crioula desenvolveu-se, segundo D. Ribeiro
(1974ms: 73-103), de quem tomamos essa designação, na faixa
litorânea do Nordeste, de Pernambuco à Bahia, em torno da
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o108
economia açucareira. Das matrizes formadoras – indígenas e
negra–absorveuoselementosculturaisefísicosqueserviriam
às exigências de produção de açúcar exportável. Esse modelo
econômico deu lugar a desníveis extremos, contrastados na
casa-grandeenasenzala.Criouumpatriciadocompoderesde
vidaemortesobreapopulaçãoquevegetavaemseusdomínios.
Tornou-seautárquicaeautossuficiente,excetonoqueserefere
ao mercado externo a que destinava seu produto, ao escravo
negro que o propiciava e aos insumos de gozo e luxo que ali-
mentavam a aristocracia açucareira. Além do negro refugiado
noquilombo,outrocontingentedestacou-sedosistema:amas-
sa de brancos pobres e mestiços livres que vivia à margem da
plantation.Dedicava-sealavourasdesubsistênciaeaocultivode
tabacoparaexportação,àpescaemjangada,àcriaçãodegado,
aosofíciosartesanaisurbanos,àburocraciaeaocomércio.Sua
resistênciafoimuitodébil,entretanto,diantedahegemoniada
ordem oligárquica. Nunca conseguiu o acesso à terra e veio a
engrossarapopulaçãomarginaldascidades.
b) Cultura sertaneja
Outra subárea é destacada pelo autor que vimos citando:
“Começa pela orla descontínua ainda úmida do agreste e pros-
seguecomasenormesextensõessemiáridasdas caatingas.Mais
além,penetrandojáoBrasilcentral,seelevaemplanaltocomo
camposcerrados,queseestendempormilharesdeléguasquadra-
das”(D.Ribeiro1974ms:104).
Nessaregiãodesenvolveu-se,noséculoXVII,oqueCapistrano
de Abreu (1976a: 127) chamou de “Civilização do Couro”: o
grande ciclo econômico de criação de gado. Originariamente,
essaeconomiapastorilesteveassociadaàproduçãoaçucareira
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 109
àqualforneciacarne,couroeboisdeserviço.Nessaárea,escre-
veD.Ribeiro,
Conformou-se um tipo particular de população com
uma subcultura própria, a sertaneja, marcada por sua es-
pecializaçãoaopastoreio,porsuadispersãoespecialepor
traços característicos identificáveis no modo de vida, na
organizaçãodafamília,navestimentatípica,nosfolguedos
estacionais, na dieta, na culinária, na visão do mundo e
numareligiosidadepropensaaomessianismo(op.cit.:105).
Apobrezadospastosnaturaiseararefaçãodasaguadasfizeram
comqueoscurraissedispersassemporenormesextensõesconce-
didasemsesmariaspelaCoroaportuguesa.Oregimedetrabalho
nãosefundavanaescravidão,masnopagamentodegênerosali-
mentícios,desalecriasderebanho.Esseregimeatraiuomestiço
livre, branco-indígena, cujo fenótipo está marcado no vaqueiro
nordestino,baianoegoiano.Estámarcadotambémnodramade
Canudos,imortalizadoemOssertõesdeEuclidesdaCunha.
Comogadocresciaapopulação,desnecessáriaàsatividades
de pastoreio. Desenvolveram-se atividades paralelas, como as
plantaçõesdefumoedeumalgodãoarbóreo,omocó,nasterras
estrumadaspelogado.Estabelece-seentãooregimedeparceria,
aplicadotambémàlavouracomercialnazonadoagresteeàex-
ploraçãodoscarnaubais.Masoqueefetivamenteproduzosertão
sãoexcedenteshumanosque,expulsospeloflagelodasecaedo
latifúndio,dirigem-separaaAmazônia,quandodoboomdabor-
racha,eparaoSul,paraondecarreiamtraçosdaculturasertane-
ja.Osquealipermaneceramengrossaramocangaçoeamiséria
nordestina.
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o110
c) Cultura cabocla
Aculturacabocla7desenvolve-senabaciaamazônicaocupada
originalmenteportriboscomadaptaçãoespecializadaàfloresta
tropical.Dominavamtécnicasagrícolassemelhantesàspraticadas
pelosTupilitorâneos.Emalgumasáreas,comonailhadeMarajó
enabocadoTapajós,floresceramculturasdeníveltecnológicoe
artístico comparáveis às da região circum-Caribe. A dominação
portuguesaeamigraçãonordestinanãoalteraramatecnologia
adaptativadocabocloamazônico,basicamenteindígena.
EduardoGalvão(1979:257-271)distinguetrêsépocasnahistó-
riadasrelaçõesenteíndiosebrancosnaAmazônia.Aprimeira,
daconquistaterritorialesubjugaçãodoíndio,vaide1600a1759,
ano da expulsão dos jesuítas do Brasil. O período seguinte, de
1759a1840,émarcadopelasubstituiçãodasmissõespeloregime
de Diretorias de Índios, no governo temporal das aldeias. Entre
1840e1920,ocorreafasedaexploraçãodegomaselásticas,prin-
cipalmentedaborracha(1879-1910),quedizimainúmerastribos
edestribalizaoutrotanto.Omesmohaviaocorridonosperíodos
anteriores,emqueoíndioeracompulsoriamenteengajadonaco-
letadedrogasdamata:cacaunativo,cravo,canela,baunilha,pu-
xuri,urucu,salsaparrilha,quina,óleos,resinas,raízesemadeiras
aromáticas.Essasespeciariassubstituíram,nomercadomundial,
asquePortugalobtinhadasÍndias.Arrebanhadoatravésdosdes-
cimentosfeitosportropasderesgateque,acompanhadasdemissio-
nários,subiamosrios,oíndioeraconscritoaotrabalhoescravo
esemiescravo.Homensemulhereseramempregadosnasfainas
danavegação,dacaçaepesca,noserviçodoméstico,notrabalho
7 O termo caboclo tem várias acepções, segundo a região e a época, ensinaPlínioAyrosa(1935: 65-70).Aetimologiadapalavraé,noentanto,aquelhefoidadaporT.Sampaio(1928: 174):Vemdecaá-boc,dotupi,significando“tiradoouprocedentedomato”.
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 111
extrativista.Aelesestavaafeto,também,“...oserviçoobrigatório
dasobraspúblicas–construçãodefortificações,portos,edifícios
administrativos, casas senhoriais – bem como das lavouras de
subsistênciadosprópriosaldeamentosedaedificaçãodeigrejase
conventos”(D.Ribeiro1974ms:132).
AtupinizaçãodoindígenanaAmazôniasedeunosaldeamen-
tos jesuíticos. Aí, integrantes de distintas tribos eram homoge-
neizados linguística e culturalmente, passando a comunicar-se
através da “língua geral”. Aí se fazia a clivagem para separar
trabalhadorespostosaserviçodosbrancos.Ouseja,osíndiosjá
“domesticados”ou“tapuios,índiosgenéricos”.Formavamagran-
demassaque,segundoC.A.MoreiraNeto(1971ms:14), “davaà
região o seu inconfundível aspecto de sociedade dual, onde os
homensseopunham,aomesmotempo,porcritériosdeorigem
étnicaesocioeconômica”.
Dessa massa saíram os combatentes da Cabanagem (1835-
-1840),definidaporMoreiraNetocomoasublevaçãodos“tapuios”
eoutrosmestiços
socialeetnicamente,equeprocuravamescaparaosduros
moldesdasociedadecolonialporumarebeliãoque,ades-
peito de seus aspectos políticos mais aparentes e explíci-
tos,tinhaumconteúdodemudançasocialextremamente
revolucionário para as condições locais. Seu símile mais
próximo deve ser buscado fora das fronteiras do Brasil,
nas ‘Guerras de Castas’ do Yucatán, que tiveram início na
mesmaépocaeseprolongaramporquasetodooséculoXIX
(1971ms:14-15).
Assim se “gastou” a população indígena da Amazônia, gasto
estequeoPadreAntônioVieira,noséculoXVII,calculou–segun-
doalguns,comcertoexagero–emdoismilhõesdeíndios.
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o112
AfórmuladeadaptaçãoàAmazôniaprevaleceuecontinua
vigenteporqueéaúnicadesenvolvidaatéhojeparaesseecossis-
tema.AelaseadaptaramossertanejosquevieramdoNordeste,
noaugedaextraçãodaseringa,dessaformaacaboclando-se.A
elaseadaptamhojepopulaçõesvindasdoSul,doCentro-oeste,
tangidasdesuasregiõesdeorigempelaimpossibilidadedeaces-
soàterra.
Omododevidadocabocloamazônicoquevegetanossítios–
pequenaspropriedadesnãolegalizadas,entreguesàeconomiade
subsistência–foiretratado,atraçoslargosesegundoosprecon-
ceitoscorrentesàépoca,porJoséVeríssimo(1887):
É ao visitar uma destas habitações que o observador
podeavaliara incúriaeamisériadagentequeashabita.
Nada ali é vindo de estranhas terras, tudo, com exceção
apenasdaparcaroupaquemallhescobreanudez,proveio,
semquasenenhumesforço,danaturezaaoredor.Omadei-
rameparaacasa,ocipóquefazasvezesdepregos,apalha
dasparedesedoteto,é fornecidopelamatavizinha,que
lhesdá,ainda,nariquíssimavariedadedefibrastêxteisde
suanumerosafamíliadepalmeirasebromeliáceas, todas
ascordasdequehãomister,amatériadotipiti,daurupema,
donaturá,douru,dobalaioquelhesservedebaú,dotupé
quelhesservedetapetesobarede,àqualtambémforne-
cem,umasvezes,amatéria-primaesempreascordasque
asuspendem.(...)Amatafornece-lhesaindaacaça,orio,
opeixe,aterra,frutos,commãopródiga,e,comtudoisso,
queprofundaquenãoéasuamiséria!(1887:371).
Cerca de cinquenta anos mais tarde, Charles Wagley (1957),
emUmacomunidadeamazônica,reproduzumquadrosemelhante.
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 113
d) Cultura caipira e cultura caiçara
A cultura caipira conserva a fisionomia e as características,predominantemente indígenas, dos primeiros paulistas ou ma-melucos. Elas são reconhecidas por inúmeros historiadores, aprincipiar por Sérgio Buarque de Holanda (1975). Entre outras,destacam-seofalarogeral;oandarapédescalçooucomsimplesalpercatas,percorrendoenormesdistâncias;ocomerdecócoras;otomarbanhotododia;oembalar-senarede;oapreciarasigua-rias do bugre. Paulista foi, durante os dois primeiros séculos dacolonização, sinônimo de mameluco, bandeirante, predador eescravizadordeíndio,desmanteladordasreduçõesjesuíticasdoSul,descobridordoourodeMinasGerais,GoiáseMatoGrosso.E,porfim,desbravadordosertãoepovoadordosconfinsdoBrasil,quandoterminaociclodamineração.AindanoséculoXVIII,opaulistaforneceumcontingenteponderávelparaacolonizaçãodoRioGrandedoSul.Atodasessasáreascarreiaaculturadapro-tocélula,formadanosprimeirosanosdevidacolonial.
Oquesechamaculturacaipira,segundoDarcyRibeiro,
é uma variante da cultura brasileira rústica. É um novomododevidaquesedifunde,paulatinamente,apartirdasantigasáreasdemineraçãoedosnúcleosancilaresdepro-dução artesanal e de mantimentos que a supriam de ma-nufaturas,deanimaisdeserviçoeoutrosbens.Acabaporesparramar-seportodaaáreaflorestalecamposnaturaisdocentro-suldopaís,desdeSãoPaulo,EspíritoSantoeestadodoRiodeJaneiro,nacosta,atéMinasGerais,GoiáseMatoGrosso,estendendo-seaindasobreáreasvizinhasdoParaná(D.Ribeiro1974ms:168).
Essesnúcleosisolados,definidoscomo“bairrosrurais”ouna-
çõezinhas (MeloeSouza1964apudRibeiro,op.cit.:169),seunem
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o114
paratarefascoletivasatravésdomutirão.Apequenaroçaeoarte-
sanatodomésticosatisfazemsuasparcasnecessidadesegarantem
suaindependênciapeloacessoaterrasdevolutas.Tal liberdade,
porém,durapouco.Areativação,emmeadosdoséculoXIX,da
lavouraparaexportaçãodealgodão,tabaco,maistarde,docafée,
maisrecentemente,dogadoedasoja–reincorporaaterraeseus
ocupantesaosistemadefazendas.Deixaaocaipira,quandomui-
to,aalternativadaparceria,comomeeiroeterceiro,e,nasúltimas
décadas,comoboia-friaoumarginalurbano.
Aexpansãodocafé,queconstringeoescravonegro,liquida,já
nasprimeirasdécadasdopresenteséculo,gruposindígenasdoin-
teriordeSãoPaulo,ParanáeSantaCatarina.Adocacau,àmesma
época,repeteoprocessonasselvasdaflorestaatlânticadosulda
BahiaedoEspíritoSanto.
Domododevidaarcaicoelivredocaipirarestahojeocaiçara,
ambosostermos,talcomocaboclo,deraiztupi.8Geograficamente,
ocaiçaraselocalizanafaixacosteira,nosinterstíciosdasgrandes
cidadesouempontossegregadosdolitoral,“áreasdedeserção”não
atingidas ou já abandonadas pelas frentes pioneiras da grande
lavoura(G.Mussolini1980:219-220).Ogênerodevidadocaiça-
ratemmuitodeindígena,algodeportuguêsenadadeafricano
(idem: 230). Combina a agricultura de subsistência, baseada na
mandioca, com a pesca. Sobre a primeira, escreve Mussolini,
queé“aproduçãoquase ‘obrigatória’donossolitoral,podendo-
-seafirmar,semexagero,que,denorteasul,ondeháhomemhá
mandioca”(op.cit.:224).
Quanto à pesca, a aparelhagem, a começar pela “canoa de
voga”, “escavada a machado, enxó e mesmo a fogo é herança
8 Caí-pyra,oenvergonhado,otímido.Caa-içara,aestacada,otapume,ocercado,atrincheira(T.Sampaio1928: 176).Otermocaiçararemeteàspaliçadasquefaziamocercodaaldeiaparadefendê-lacontrainvestidasguerreiras.
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 115
indígena”(Mussolini1980:224).Éocasoaindadajangada,vista
porLéry,em1556,semvelaemovidaaremo,quepredominano
litoral nordestino (do estado da Bahia ao Ceará) (op. cit.:228). A
autoramencionaoutrassobrevivênciasdeorigemaborígine,tais
comoousodotimbóparaatordoarospeixes,detapagens,redese
armadilhasdepesca(ibidem:227-230).
e) Cultura gaúcha
AáreaculturaldoextremoSuleotipohumanoaquedeulu-
gar,antesdachegadamaciçadoimigranteeuropeu,têmtambém
fortecomponenteindígena.Osgaúchosbrasileiros,talcomoos
platinos,
surgem da transfiguração étnica das populações mestiças
devarõesespanhóiselusitanoscommulheresGuarani.(...)
Oprincipalcontingentefoi formadonaprópriaregiãode
Tapesporíndiosmissioneiros.(...)Outrafontefoionúcleo
neoguarani de paraguaios de Assunção. (...) Uma terceira
fontefoiaproledosportuguesesinstaladosnaColôniade
Sacramento(1680)noriodaPrata(D.Ribeiro1974ms:194).
Essapopulaçãoespecializa-senacriaçãodegadotrazidopelos
jesuítasparaasreduçõesmissioneiras,equesemultiplicaprodi-
giosamente nas pradarias do Rio Grande do Sul e nas “Vacarias
delMar”,oUruguaidehoje.Atoponímialocal,adocumentação
histórica,alínguadopovo,correntenoParaguai,sãoindíciosde
queosgaúchosfalavamumguaranimodificadopelosjesuítas,tal
comoospaulistas,nosséculosXVIeXVII(Holanda1975:108-118).
Progressivamente se especializam na criação de muares, como
montariaecargaparaasminas,decavalos,boisdeserviçoena
exploraçãodocouro.Aessapopulaçãojuntaram-seosaçorianos
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paramarcarapresençaportuguesafrenteàespanholanessafron-
teiramóvel.Paulatinamente,aapropriaçãodaterratransformaas
vacariasemestâncias.Aexploraçãopredatóriadocouro,depois
do charque, valoriza o gado que parecia inesgotável. O gaúcho
campeirosetransformaempeãodeumestanceiro,maispatrão
quecaudilho(D.Ribeiro1974ms:198-202).
Daantigaculturagaúcho-guaranificaramaboleadeiracomo
laçoparapegararês,comoantesaemaouoveado;apalhoçae
ocostumedetomarmateechimarrãoemcuiadequesefalará
adiante.
2. O equipamento de trabalho e conforto
Introdução
NoprefácioàsuaobraCaminhosefronteiras,oeminentehisto-
riadorSérgioBuarquedeHolandaassimjustificaamençãoape-
nasde“utensíliosetécnicas”indígenasadotadospela“população
adventícia”:
Aacentuaçãomaiordosaspectosdavidamaterialnãose
funda,aqui,empreferênciasparticularesdoautorporesses
aspectos,masemsuaconvicçãodequenelesocolonoeseu
descendente direto se mostraram muito mais acessíveis a
manifestaçõesdivergentesdatradiçãoeuropeiadoque,por
exemplo,noqueserefereàsinstituiçõese,sobretudo,àvida
social e familiar em que procuravam reter, tanto quanto
possível,seulegadoancestral(1975:7).
Emoutrapassagem,informaomesmoautor:
O machado, a foice, a enxada importados ajudaram a
fazer mais eficazes, por isso, em geral, mais desastrosos
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 117
aquelesmétodos(delavoura),afeiçoando-seaelesesubsti-
tuindoosantigosinstrumentosdepauepedra,assimcomo
oanzoldeferrovieraasubstituir,napescaria,osespinhos
tortosaquesereferiraGabrielSoaresdeSouzaemseutra-
tadoquinhentista(S.B.Holanda1975:185).
A tecnologia ligada à agricultura (conhecimentos botânicos
eagronômicos)continuasendoopratofortedaculturarurícola
herdada do aborígine. Acredito que esse tema assume enorme
interesse, atual e histórico. Atual, porque serve para contrastar
oacertodamilenartradiçãoindígena,suasrefinadastécnicasde
usodosolo,semdestruí-lo,comasquenestemomentoseprati-
cam,porexemplo,naAmazônia.Histórico,porqueresgataadí-
vidaqueoBrasileomundotêmparacomohabitanteaborígine
das Américas, que dele recebeu as principais plantas de que se
alimentaahumanidade.
Astécnicasagrícolasdorurícolabrasileiro,herdadasdoíndio,
continuam sendo relativamente simples. Os instrumentos usa-
dossãoomachado,omachete,aenxadaeofogo.Ascinzasdos
vegetais queimados são o único adubo. Animais de tração para
arado são praticamente desconhecidos. Na agricultura rotativa,
a terraérotada,emvezdasespéciesdeplantas.Oscultivossão
feitos,principalmente,deformavegetativa,comcortesderaízes
edehastesdetubérculos,oqueeliminavirtualmenteapossibili-
dadedefertilizaçãocruzadaearesultantehibridação.
Éigualmentesubstancialoaportedotoolmaker,doHomofaber
nativo,noaparelhamentodemeiosdetrabalhoparaodomínio
danatureza,paraoconfortoeolazer.Issosedeveàinventiva,à
admirávelhabilidademanual,aogostopelaperfeiçãoebomaca-
bamentodosartefatos,pormaistriviaisquesejam.
O principal “instrumento de trabalho” do índio, transmitido
aocaboclo,aosertanejo,aocaipira,éofogo.Oscamposdecultivo
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são clareados a fogo, como vimos. O fogo está na base do cozi-
mentoeconservaçãodacarneepesca,frutos,tubérculosegrãos.
Etambémdoendurecimentodacerâmica,doaquecimentoeda
iluminação. O lume arde na casa indígena e na casa sertaneja
independentementedehaveralimentosassandooucozinhando.
Fogoapagado,casaabandonada.
Detradiçãoindígenaéousodomoquém,palavradeorigem
tupiflexionadanoverbomoquear,noadjetivomoqueado.Éum
“gradeadodevarassobrebrasasparaassarcaçaoupeixe”nade-
finição de Theodoro Sampaio. Etimologicamente significa “faz
queseque,secador,assador”(1928:269).Oalimentomoqueadoou
lentamentedefumadodurameses.Dispensaosaleogeloparaa
conservação.
a) Casa e abrigo provisório
Do indígena, o rurícola herdou, em grande parte, a matéria-
-primautilizadaparaacoberturadascasas,quandodoinícioda
colonização. A casa portuguesa dos primeiros tempos e a casa
indígenadiferem,entretanto,comodoismodosdevidadistintos
queeram.
Vejamosadescriçãoquefazdaoca–casatupinambádoséculo
XVI–ojesuítaFernãoCardim:
Moravam os índios antes da sua conversão em aldeias
em umas ocas ou casas mui compridas, de duzentos, tre-
zentosouquatrocentospalmosecinquentadelargo,pouco
maisoumenos.(...)Cadacasadestastemdoisoutrêsbura-
cossemportasnemfecho.Dentrodelasvivemlogocento
ouduzentaspessoas,cadacasalemseurancho,semreparti-
mentoalgum,emoramdumaparteeoutra,ficandogrande
largura no meio, e todos ficam como em comunidade, e
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 119
entrandonacasasevêquantonelaestá,porqueestãotodos
àvistaunsdosoutrossemrepartimentonemdivisão. (...)
Pareceacasauminfernooulabirinto,unscantam,outros
choram,outroscomem,outrosfazemfarinhaevinhos,etc...
(...)Porémétantaaconformidadeentreelesqueemtodoo
ano não há uma peleja, e, como não terem nada fechado,
nãoháfurtos(1939:271-2).
Contrastando com a habitação indígena, vivenda coletiva,
aomesmotempounidadedomésticaedetrabalho,ondeapro-
priedadeficavaaoalcancedetodose,adespeitodisso,nãohavia
furtos,asprimeirasconstruçõesportuguesasforamfeitasàprova
de roubo e, sobretudo, das flechas do gentio. Assim as descreve
GabrielSoaresdeSouza,citadoporCastroFaria(1951:45-46):
Tomada essa resoluçãosepôs em ordem paraeste edi-
fício, fazendo primeiro um cercado forte de pau a pique,
para os trabalhadores e soldados poderem estar seguros
dogentio;ecomofoiacabada,arrumouacidadedelapara
dentro,arrumando-aporboaordemcomascasascobertas
depalmaaomododogentio(...)
A técnica de taipa, também chamada pau a pique, barrea-
da, de sebe (caniços engradados, calafetados com barro batido
à mão) ou de pilão, é de origem portuguesa. A cobertura, por
outrolado,éàmaneiraecommaterialnativo.Comefeito,aca-
banaindígenaconstruídatotalmentedematerialvegetalevolui
paraocasebredetaipa,adobe,tijolo,pedraecal.Masconserva
eminúmerasregiõesdoBrasilacoberturadesapéoudepalmas
entrançadas.
NasaldeiasJurunavicoberturasdequatroáguasidênticasàs
que Castro Faria fotografou no rio Machado, em Mato Grosso,
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na área rural, designada regionalmente tacaniça (cf. C. Faria
1951).Nomesmopasso,oaposentoúnico,alto,espaçoso,ven-
tilado, que poderia abrigar até 200 pessoas, se compartimenta,
dividindoaspessoas:filhosdospais,senhoresdeescravos,pro-
prietáriosdecriados.Oameríndionãoabrejanelasnascasas.A
penumbraodefendedosinsetos.Quandomuito,afastaapalha
dacoberturadotetooudasparteslateraisdascasasparadeixar
entrarumaréstiadeluz.Ajanelaéumaintroduçãoeuropeiana
América.
Comparando-seacasa indígenacomahabitaçãoruralbrasi-
leira,pode-sedizerque,tantodopontodevistadesuafuncionali-
dadecomodebelezaarquitetônica,houveumaperdadaprimeira
emrelaçãoàsegunda.ComacertodizCastroFaria(1951:48):
Asnossaspopulaçõesruraisvivemnumadependência
estreita do meio e, por conseguinte, da paisagem rural. O
rudimentarismodassuasrelaçõesecobióticasficaeviden-
ciado na sujeição à natureza circundante, o que de certo
modoconstituiumfatordediferenciação.Oúnicofatorde
uniformidade,geraleirreconhecível,éamisériaeconômi-
cadominante.
Acrescenta,maisadianta,:“Doistermosdefinemtodososnos-
sostiposdehabitaçãopopular:variedadeecológica,contingência
econômica”(idem:49).
Emtrabalhorecente,MariaHeloísaFénelonCostaeHamilton
B.Malhado(1986:27-92)elaboraramumatipologiamorfológica
daaldeiaedahabitaçãoindígenaquemostraavariedadedesuas
formas.Quantoàsaldeias,dividem-seem:1)circulares;2)retan-
gulares;3)lineares.Asprimeirasapresentamasmoradascircun-
dandoumapraçacentralemqueseencontra,emalgunscasos,a
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 121
casadoshomens.Nessacasa,bemcomonoespaçoqueacircun-
da,desenrolam-seasatividadespúblicase rituais.Nosegundo
tipo, enquadram-se as aldeias Tupinambá e de outros grupos
Tupi.Nasaldeiaslineares,ascasassesituamparalelamenteao
rio, como é o caso dos Karajá. Quanto à morfologia das casas,
dividem-naosreferidosautoresem:plantabaixacircularelípti-
ca,retangular,comcoberturaeparedescontíguaseplantabaixa
poligonal.Destaqueespecialédadoaoquechamamcasa-aldeia,
queabrigaumgrupo localnumaúnicavivendadedimensões
avantajadas, caso dos grupos exogâmicos Tukano, Mayoruna
e Yanomami. As coberturas podem ser em abóbada de berço,
comoasdascasasTupinambá;emconetruncadocomabertu-
racentralparaapenetraçãodaluzsolarnopátio(Yanomami);
coberturadeseçãoretaemogiva,aexemplodasantigascasas
Karajá,modificadasparacoberturasdequatroáguas;cobertura
deduaságuasetambémemformadecúpulaouzimbório,sem
distinção entre parede e teto (Tiriyó); e, finalmente, cobertura
cônica,comoadosMakuxi.
Emboraaconstruçãodeumacasaindígenapossalevaroito
meses–aexemplodadosíndiosAsurini–,ocupandonessata-
refa cinco ou seis homens (B. Ribeiro, 1982), ela é abandonada
ou incendiada passados cinco a dez anos, por vários motivos.
Emprimeirolugar,quandotodaaaldeiadeveserdeslocadapor
razõesecológicas:evitaraexaustãodosolo,dacaçaepesca.Em
segundo,quandoéinvadidaporbarataseoutrosinsetos.
NocasodegruposcaçadoresecoletorescomoosAmahuaca,
a mobilidade é bem maior e mais frequente. Suas casas podem
serconstruídasemtrêsdias.Eaodecidiremmudarseuestabeleci-
mento,“elesnãoenfrentamainérciacomquesedefrontariauma
sociedadequevivenumagrandealdeia,quetemcasassólidase
umaautoridadepolíticacentralizada”(Caneiro1974:16).
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O apego do índio não é propriamente à casa e sim a todo o
territóriotribal.Amorfologiadacasaedaaldeiarefleteperfeita
adaptaçãoàssuasatividadeseconômicaseàestruturasocial.
Nocasodorurícola,despossuídodeterra,acasaéigualmente
provisóriaeprecária,refletindomisériaeinsegurança.Doponto
de vista sanitário, leva uma desvantagem gritante em relação à
casaindígena:nasfrestasdataipa,semreboco,sealojaobarbei-
ro,insetohemíptero,dafamíliadosreduvíldeos,transmissorda
doençadeChagas.Éconhecido,porisso,também,comobichode
parede.
Arusticidadedacasado“sitiantetradicional”–“queaabando-
nasemsaudades”–sedeve,emparte,àrotatividadedasroças.Só
assimeleconseguemanterafertilidadedosolo,quelhepermite
umníveldevidasuportável(M.I.P.deQueiroz1976:52).
Aocontráriodacasaindígenaedahabitaçãorural,oedifício
modernonãotemcaráterecológicolocalenacional.Podesituar-
-seemqualquerlugardomundo.Nãoétípico,nãoéhistórico.É
umacriaçãoautárquica.Dentrodahabitaçãooespaçosecompar-
timentaeseespecializa.Foradelaestabelece-senítidadistinção
entre“casa,unidadedoméstica,eolocaldetrabalho,unidadede
produção”(Novaes1983:6).Nesseúltimolocal,oindivíduodes-
pendeumterçodoseutempoeoutroperíodoconsiderávelpara
atingi-lo.Especializadoéigualmenteoespaçoreservadoaoculto,
aolazer,àaprendizagem.
Na sociedade indígena, sobretudo na que se verifica a estru-
tura casa-aldeia (grupos Tukano, Yanomami, Pano), uma única
unidadearquitetônicaacumulaasfunçõesacimareferidas.Nela
existem espaços definidos, porém não compartimentados: o es-
paçofemininoparaatividadesdomésticas;oespaçojuntoàspa-
redesreservadoparadormitórioelazerdecadafamílianuclear;
e o retângulo central, amplo e limpo, destinado às cerimônias
decongraçamentosocialeaosrituais.Assimavidaprofanaea
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 123
vidareligiosasedesenrolamnagrandemaloca.Naconcepçãodos
Tukano,éoúterodoclãeocosmos.Devidoaessamultiplicidade
defunções,avivendacoletivaindígenaéprimorosamentecons-
truídaeartisticamentedecorada.
Oaviltamentodamalocaamazônicapodeseraquilatadopelo
retratoqueJoséVeríssimofazda“palhoça”docaboclo:
Asuacasa–acomeçarporela–temaformasimplesda
habitaçãoprimitiva.Équasesempre,senãoinvariavelmen-
te,umparalelogramoretangular,construídageralmentede
palha,ouapenascomasparedesprincipaisdebarro,eoteto
equaisquerdivisõesinteriores,aliásraras,daquelamatéria.
(...)Erguemdochãoumcertonúmerodeesteios,semne-
nhumpreparodecarpintaria,esobreelesvãoligandocom
cipós as palmas adrede preparadas até o teto, formando
umavigaapoiadacomocumeeirasobreosdoisesteiosmais
altos.Essavigaservedeassentoaosfrechais,toscoscomo
oresto,sobreosquaisiráapalhadacobertura.Amaioria
das vezes, esta compõe-se de um único compartimento,
onde vive, na promiscuidade mais imoral, toda a família,
nãoraronumerosa.Tambémnãotemmuitasjanelas;oar
entraparcamente,apenaspelasbaixasaberturasafingirem
portas,fechadascomumaespéciedeesteiradepalha,aque
chamamjapá.Asabasdotetochegam,decostume,atéuma
aduasbraçasaquémdasparedeseformam,sustentadaspor
esteios e vigas transversais, um alpendre ou varanda cha-
madacopiar,ouemtodaaredondezaousomenteemparte
dacasa.Quandofaltaesseapêndice,ecarecemdecômodos
para os indispensáveis utensílios da vida, levantam junto
dacasaumrancholigeiramentefeito,apenascoberto,sobo
qualconstroemofornodefarinhaeoutrosempregadosnos
seusmisteres(1887:369-370).
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o124
A casa indígena, embora utilizando materiais vegetais idên-
ticos, não é igual em toda a parte. Possui fisionomia própria,
do ponto de vista arquitetônico e simbólico. Em função disso,
identificaaetnia.Éoqueocorre,deresto,comtodoouniverso
daculturamaterial,nocontextoindígena.Poroutrolado,nesse
contexto,oespaçodacasanãopodeserdesvinculadodoespaço
daaldeiaedosdemaisespaços“humanizados”:oscaminhosque
levamàroça,aorio,àsáreasdecaçaecoleta,ouseja,aoterritório
modificadopelaaçãohumana.Comtodoesseconjuntooíndio
se identifica.Nelereconheceseus lugaressagrados,nãoraroas-
sinaladosporinscriçõesrupestresouacidentesgeográficos.Isso
explicaograndeapegoàterraporpartedosgrupostribais,não
obstanteatãoapregoadamobilidadeeinstabilidade.
b) A rede de dormir
Osindígenasamericanoscultivavamoalgodão9 antesdache-
gada de Colombo. Entre dois grupos Tupo, os Juruna e Kayabi,
encontrei algodão de duas cores: branco-amanteigado e cor de
caramelo.NumestudosobretecelagemdomésticaemCandeias,
MinasGerais,LorenaGuaraciabafalade“...umavariedadedeal-
godãodefibraescura,corderapé,aquechamamalgodão‘ganga’
oualgodão‘macaco’,oqualdispensa,porsernaturalmentemar-
rom,qualquerartifíciotintorial”(1942:398).
AtéhojeastecedeirasdonortedeMinasocultivamparamar-
chetarseuslavores.Épossívelquesejaoriginalmenteindígena.
Nordenskiold (1931: 496) considera a rede uma invenção do
ameríndiodaregiãoAmazonas-Orinoco,suaáreadeconcentração.
9 As espécies conhecidas são: Gossypium barbadense, originário das Antilhas,G. hirsutum, da América Central. Outras espécies eram cultivadas no VelhoMundo(LeCointe1947: 24-25).
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 125
Nãoéencontradanasáreasandinaechaquenha,nementrealgu-
mastriboscampestresdoBrasilcentral,ondepredominavamos
gruposdasfamíliaslinguísticasjêemacrojê.Aredeeoalgodão
devemter-sepropagadoàAméricadoSulatravésdasmigrações
dosgruposdefalaKaribeTupi-Guarani(op.cit.:493).Nasuacon-
fecção são empregadas outras fibras têxteis, como o tucum, o
buriti,ocarauá.
AredequePeroVazdeCaminhaassimdenominoufoiregistra-
dapeloscronistasde1500comotermotupiini.Apalavra“rede”
adveio do tipo de trama espaçada, que lembra a rede de pescar.
HenryKostler,citadoporCâmaraCascudo(1959:34),escrevendo
em1810,éexplícitoarespeito:
Aredeégeralmentefeitadealgodão,comváriasdimen-
sõesemcoresearranjos.Asusadasnasclassesbaixassãote-
cidasemalgodão,fiadonasmanufaturasdopaís,outrassão
demalhascomváriosfios,deondeprovémonome‘rede’;
outrasaindasãoformadasdeumalongarenda,fixadaatra-
vessadamentecomintervalos.
A rede indígena (hamaca ou maqueira) mais simples e mais
comum é tecida em tear constituído de dois paus fincados no
chãoaumadistânciacorrespondenteaocomprimentoquedeve-
ráter,geralmente,1,80 m.Emtornodessasvaras,aartesã,ajudada
poroutramulher,passaaurdidura.Atramaéformadaporfios
descontínuostorcidosumsobreooutroqueenlaçamosfiosda
urdidura.Aslaçadasemtornodastravesdotearrecebemacorda
desuspensãodarede.AgravuradeHansStaden,de1557,repre-
sentaessetipoderede,omaisdifundidoentregruposindígenas
doBrasil.Entretanto,váriastribostecemredescompactasemtear
vertical.Sãodessetipoasmaqueirasdemanufaturaruralapren-
didacomoaborígine:“Osmétodosdetecelagemdetaisredessão
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o126
osmesmosdequeaindaseservemhojeastecedeirasdosarredo-
resdeSorocabaedeMatoGrosso.Utilizamtearesverticais–enão
horizontaiscomoosde“fazerpano”–etecemdebaixoparacima”
(S.B.Holanda1975:203).
CâmaraCascudo(1959:25)informaque“Depoisdafarinhade
mandioca,aredefoioprimeiroelementodeadaptação,deaco-
modaçãoedeconquistadoportuguês”.
Issosedeve,certamente,aofatodearedededormiradaptar-
-se excepcionalmente bem às características do clima tropical,
quenteeúmido;àsnecessidadesdedeslocamento,porquesetrata
de objeto facilmente transportável; de higiene, porque pode ser
lavadaearejada,ficandosuspensaacertadistânciadochão;ede
disponibilidade de espaço dentro da vivenda, porque durante o
diapodeserlevantadaouretirada,deixandotodaaáreadahabi-
taçãolivreparaosmisteresdomésticos.Éuminventoadmirável,
que satisfaz as condições de existência das comunidades que o
utilizam,porseuvalorpráticoeestético.
A respeito, vale citar o que diz, com eloquência, Câmara
Cascudo:
Aredesetornarainseparáveldoindígena,domameluco,
dosertanejocontemporâneo,andando,aoazardassecas,de
redeàscostas.Arederepresentaomobiliário,opossuído,a
parteessencial,estática,indivisíveldoseudono.Ondeiao
indígenalevavaarede.Aindahojeosertanejonordestino
obedeceaosecularpadrão.Aredefazpartedoseucorpo.É
aderradeiracoisadequesedespojadiantedamisériaabso-
luta(1959:27).
Acrescentaomesmoautor:“Aredeparadescansar,amar,dor-
mir tornou-se também indispensável como viatura. Carregava
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 127
a gente de prol nas ruas e mesmo para o interior das igrejas”
(CâmaraCascudo1959:29-30).
Ainda em nossos dias, pode-se ver, pelas trilhas do sertão,
pessoasenfermasoumuitoidosascarregadasemredes.Oíndio
nasce,viveeéenterradonarede.Oespíritodeimitaçãoevalo-
rização do alienígena contribui para o declínio do uso da rede,
emmeadosdoséculoXIX,principalmentenoSuldopaís.Sobre
oapogeueadecadênciadaredeedasredeiraspaulistasnosdá
contaS.B.deHolanda.Informaque,porvoltade1850,sórestavam
asredesdeSorocaba,outroraprósperocentrodeindústriacaseira
detecelagem.MasemCuiabá,“antigacolôniadesorocabanose
ituanos”(deItu),prosperavaamanufaturaderedes”(1975:301).
Em sua confecção era usado, de preferência, o tear indígena ao
adventício, este último tear horizontal com pedais “para tecer
panos”(idem:302).
Opreparodofiopelas redeirascuiabanasé feito também à
modaindígena:comousodefusos(ibidem:310).Otearcuiabano
éprovidodeliços(argolascorrediças)queseparamosfiospares
dosímparesparaolançamentodatrama,quetambémevocaa
técnicaindígena.Omesmoocorrecomaretençãododesenho
namemória,dequeseorgulhamas tecedeirascuiabanas (op.
cit.:313).
Em Mato Grosso, no Norte e no Nordeste, a rede continua
sendoaverdadeiracamadopovo.Noscentrosurbanos,éencon-
tradanascasasabastadaseremediadas,usadaparaasesta.Foi
cantadaemprosaeversoelouvadanostalgicamente.10Mastam-
bém enxovalhada, como responsável pela “preguiça da raça”,
“deitadaeternamenteemberçoesplêndido”;oucomo“agrande
10 Cf.AntologiapublicadacomoapêndicedaobradeCâmaraCascudo(1959:
161-237).
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o128
inimiga da civilização nordestina”. Nesse texto, publicado na
referida antologia, o autor recomenda à oligarquia nordestina
facilitar aos seus “moradores a confecção de móveis pesados”
para “enraizá-los à terra”. Termina a antiapologia da rede com
estaexplicaçãolarvar:
Onômadenoseuestadoprimitivosempreusoudarede
edeabrigosfáceisedesmontáveis:oamoràcasaeaosmó-
veis,aointerioramigoeconfortável,équetransformouos
bárbarosemcivilizados,ecriouoamoràPátria(Vicentedo
RegoMonteiroinCâmaraCascudo1959:200).
Restariadizerqueculpararedeécomoculparosofánaanedo-
tadomaridotraído.
c) Caça e pesca
Osdocumentosmaisantigos–pinturasrupestresdoPiauí–
indicam que o propulsor de dardos antecedeu o uso de arco
e flechas como arma de caça e guerra. Os índios Kariri ainda o
usavam no século XVII; os do alto Xingu, até hoje, mas apenas
emcompetiçõesdesportivas.Asarabatana–armadesopropara
afaunaarbórea–articuladacomousodosvenenospredomina
naplanícieamazônica.Oarcoeflechasé,noentanto,aarmauni-
versaldo indígena.Mataa longasdistâncias,comoextensãodo
braço,silenciosamente.Ocírculodefogoeosdisfarcesdocaçador
sãotécnicasusadasparaacaçaemcampoaberto.Damesmafor-
maosãoasfundaseboleadeiras–duasatrêsbolasamarradasa
cordas–lançadasparaimobilizaracaçapeloentrelaçamentodas
correiasnaspernasdoanimal.
Sérgio Buarque de Holanda assinala as vantagens do arco e
flecha sobre o arcabuz para as atividades de caça e guerra: “As
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 129
alterações atmosféricas, as chuvas, a umidade não chegam a
causar-lhes estorvo. Seu disparo não produz ruído, ou fogo, ou
fumaça,comquesedenuncieoatirador”(1975:71).
Em 1948, Charles Wagley surpreendeu caboclos de Gurupá,
médioAmazonas,pescandocomarcoeflechas(1957:115).
PortodooBrasilinterioranoutilizam-seatéhojeestratagemas
eciladasdesenvolvidoscomapuropelainventivaindígenapara
atraparacaçaeopeixe.Citaremosasmaiscomuns:omundéu,
aarapuca,aarataca,ofosso,olaço,opari,ojequi,ocovo,astrês
últimasparaapesca.
Nodialetocaipira,mundéué,segundoAmadeuAmaral(1920:
174), armadilha para caça a quadrúpedes. Seus sinônimos são
fojo,precipício: “construçãoqueameaçacair”,Derivademonde,
dotupi.Damesmaforma,guira-pukaque,porcorruptela,sediz
arapuca, é uma cilada para apanhar pássaros (T. Sampaio 1928:
102).Etimologicamente,guira=pássaro;puk=bater.Outrosau-
toresachamqueapalavraderivadeuru=cesto,puc=bater,no
sentidode“cestoquedesaba”.Porextensão,otermoarapucaan-
gariouosignificadodecilada,ouconstruçãomalfeitaqueameaça
ruir.Designa-secomotermoarataca,“oquecolhebatendocom
estrépito”,aarmadilhaparacaçamiúda(T.Sampaioibidem:159).
Omesmoautormencionaoutraarmadilhadecaçacomdesigna-
çãodeorigemtupi:juçana,“laçoarmadoparacolheraves”(idem:
102).Consistenumavaraenterradanochãoporumadasextre-
midades.Daoutra,vergada,pendeumfioqueprendeumaestaca
circular,comisca.Tocando-a,acaçaésuspensa.Ofosso(oufojo)
éumburaconaterradisfarçadoporramagens.
Para a pesca são empregadas armadilhas também de origem
indígena,cujosnomesderivamigualmentedotupi:arede–puçá
(depyçá),ocercado–pari(pary),ocesto–ururuejiki(T.Sampaio
op.cit.:101).
CâmaraCascudodámaisdetalhes:
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o130
Há redes pequeninas, puçá, jereré, mangote (diminuti-
vodetrasmalho),queéredeparacamarões,manejadapor
dois homens andando dentro d’água. Caçoeira de cação,
tubarão.Tarrafa, rede individual,parario, lagoa...Landuá,
parapescariaempoço,retângulodemalhascomdoispaus
laterais.Fecham-nacomoquemdobraumafolha.Jureréde
mangue,hemiesferoidal,de junco,de jererédevoador(...)
raquetetriangular.
AsarmadilhasindígenasnoBrasilsãofeitascomcipó,no
Nordeste mais acentuadamente o cipó imbé (Philodendron
sp.),juncos,varasflexíveisequeresistamaopuxãodopeixe
(1973:47).
Em monografia publicada pela primeira vez em 1895, José
Veríssimo(1970)descreveautilizaçãodessesinstrumentospelo
pescadoramazonense,queabaixoresumimos.Começaafirman-
doque: “Opescadoré,noventaenovevezesemcem,umíndio
semicivilizado, um tapuio, ou um mameluco, mestiço de índio
combranco”(idem:22).
Acanoausadanapescariaéaigarité(deyg-yara=dominaou
flutuanaágua,eité=grande),amontaria,aubá(madeira,pau).
Nopreparodocascousamaindadofogo,comooindí-
genaprimitivo,nãosóparaconsumiraporçãodemadeira
(...)comodepoisdeassimcavadoomadeiro,paraabriredar
aotroncocôncavoaformaejeitoconvenientes”(p.23).Um
companheiro,umfilhomenor(...)vaiaojurumã,istoé,sen-
tadonobancoextremodapopa,dáandamentoedireçãoà
canoa(Veríssimo1970:24).
Sobreapescadopirarucu(Arapaimagigas),omaiorpeixeda
Amazônia, escreve Veríssimo: “Do hábito do pirarucu de vir de
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 131
quandoemquandoàsuperfície,tiramelesensejoparaapescaa
arpão,amaisfrutuosaquelhefazem”(p.26).
Perseguem-noàsvezesemlagos“cobertosdegramíneasenin-
fáceas,nosquaismaiséolodo,otijuco,nalinguagemindígena”
(ibidem:30).
É mais arriscada essa pescaria, uma vez que nesses sítios se
ocultam também os jacarés e as sucurijus (Eunectes murinus).
Assim,“convocam-seereúnem-seemputirum(mutirão),emnú-
meroàsvezescrescido.Põem-seemlinhade frente,umpauna
mãoesquerda,afisgaouoarpãoprontos,nadireita...”(ibidem).
Dopirarucuseaproveita,alémdacarne,salgadaesecacomo
adobacalhau,chamadapiraem(peixeseco),asescamaseapar-
te óssea da língua, como lixas. Esta última “para reduzir a pó o
guaraná, a canela, as diferentes raízes de que as belas e faceiras
mamelucasfazemosperfumescomquesearomatizamocorpoe
asroupas”(Veríssimoop.cit.:22).
Quandoesseautoramazonenseescreviaseuensaio,emfins
doséculopassado,aindahaviamuitopeixe-boi(Manatusinuquis)
noestuáriodorioAmazonas,nosseusprincipaisafluentesela-
gos. O cetáceo – atualmente em extinção – era arpoado e dele
seextraíaacarne(semelhanteàdeporco)paraaalimentaçãoe
agorduraparaacozinhaeailuminação.Quandopescadocom
rede,tapavam-sedeantemãoassaídasdolagocomumacercaou
pari.Em1885e1893,informaVeríssimo(1970:40),exportaram-se
34toneladasdecarnedepeixe-boimoqueada,conservadaemsua
banha.
Astartarugasanfíbias,dasquaisAlexandreRodriguesFerreira
descreveu,em1768,14espécies,sãoapanhadas,emgeral,quando
chegamàmargemparacomerfolhasdeplantasribeirinhas.Em
setembro,àépocadadesova,astartarugasmigramrioacima.Na
proadepequenascanoas
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o132
umsujeito,emgeralumtapuio,dearcoeflechasprontos
namão,depé,acocoradoousentado(...)pareceàespreitade
algumacoisanorio.PortodososriosdaAmazônia,abaixo
dascachoeiras,napartedesimpedidadelas,serepete,àmes-
maépoca,estamesmacena(Veríssimo1970:42).
Ahastedaflecha,desprendidadafisgasoltadeaço(sararaca),
boia, indicando ao pescador o movimento do quelônio. A pro-
pósitodesuacaptura,escreveVeríssimo:“Dofatododesenrolar
automáticodofioeestaarmaonomedesararaca,doverbotupi-
-guaranisará,desataracorda,desprender,soltar”(op.cit.:44).
Emlagoraso,atartarugaécapturadacomrede,depoisdecer-
cadaporumtapume(pari).PertodailhadeMarajóenoestuário
doTocantins,astartarugassãopescadascomanassa.Éumcesto-
-armadilhaafunilado,feitodetimbótitica(Cissus),ondepõema
isca.Aspontasdeumcestomenor,inseridonomaior,impedema
saídadapresa(ibidem:58-59).
A nassa, também conhecida como matapi, designação pro-
veniente da língua geral, é usada na pesca artesanal em todo o
Brasil.Omesmoocorrecomopari–tapagemoucercado–feito
deumtrançadodevarasamarradasentresi,sustentadasporesta-
casfincadasnoleitodorio,lagoouigarapé,queatrapaopeixe.O
cacuri–tambémemnheengatu–éumcurraldepeixe,construí-
docomesteirasouparis.“Emtodoointerior(...),cadasítio,cada
fazenda,cadasituação,temjuntoumatapetagemouumcacuri,
fazendo-lhesumcopiosoedescansadoviveiroaliàmão”,escreve
Veríssimo(1970:80-81).
Diz mais: “Pescam também à noite, com fachos, servindo de
armasaflecha,aazagaiae,sobretudo,afisga”(p.83).
Acrescentaadiante“Nãodevemosesquecero(processodepes-
ca)daintoxicaçãoouantesnarcotizaçãodospeixes,medianteo
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 133
suconarcóticodecertosvegetais.Osquemaiscomumenteofor-
necemsão,emprimeirolugar,otimbó(Paulliniapinnata)edepois
oaçacu(Huracrepitans),otingui(Jacquinai)eocunabi(Bailleria
aspera)(op.cit.:84).
Asraízesecaulesdessasplantassãomacerados,socadosebati-
dosn’água.Tonteadosospeixes,vêmàtona,sendoapanhadospor
homens,mulheresecriançascompuçás,peneiraseàmão.
Como se vê, a influência europeia nos métodos de pesca na
Amazôniaenointeriordopaísémínima.
Quase se resume – escreve Veríssimo (1970:101) – na
transformaçãodaspontasoubicosdesuasarmasdepesca,
primitivamentedeosso,dedentesdeanimais,detaquaru-
çuaguçados,empontasdeferro.(...)Arededearrastãoea
tarrafa, nada obstante o silêncio dos autores, indubitavel-
mentevieramcomoconquistador.
Estas são, justamente, as pescarias predatórias, condenáveis
por todos os títulos, e por isso mesmo proibidas desde 1572 (S.
BuarquedeHolanda1975:83).Sabe-se,entretanto,queessesregu-
lamentosvêmsendo,desdeentão,transgredidos.Holandaadmite
queosmétodosdepescacombarragemouatravésdaintoxicação
(barbasco,trovisco,cocaecal)jáerampraticadospelosportugue-
ses(1975:82-83).Assevera,todavia,que“aquasetotalidadedoster-
mosquenointeriordoBrasildesignamarmadilhasparaacaça–e
tambémparaapesca–sãodeascendênciaindígena”(op.cit.:184).
Wagley,quetratoudotemanumacomunidadeamazônica,na
décadade1950,afirma:
EmboraohabitantemodernodoValecacecomumaes-
pingardaouumacarabinadecalibre44epesquecomum
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o134
anzol de ferro ou uma rede de tipo europeu, exerce essas
atividadescomoconhecimentodafaunalocalquelhefoi
transmitidopelaherançaculturalindígena(1957:111).
Um registro mais recente de métodos de pesca indígena no
Amazonas, ou seja, nas proximidades de Itacoatiara, é devido a
NigelSmith(1979).Dentreoutrosmétodosdetradiçãoaborígine,
oautormencionaoarcoeflechasqueospescadorescompramde
“alguns especialistas do interior” (1979: 57). São empregados na
capturadetucunaré,curimatãs,carauaçuseoutrasseteespécies
em“lagosdeáguasdecantadas,matasdevárzeaecanais”(ibidem).
Smithesclareceque“Atecnologiaédefácilacessoedesimples
manutenção,podendoométodoserutilizadoemconjuntocom
malhadeiras,espinhéisepescadecaniço”(op.cit.:58).
d) Culinária indígena na dieta popular
A mandioca continua mantendo, em proporção maior que
qualquer outro alimento, a população brasileira. A respeito diz
CâmaraCascudo:
Três quartas partes do povo do Brasil consomem dia-
riamente farinha de mandioca. (...) Sem essa farinha não
vivem milhões de sertanejos, resistindo às estiagens e ao
trabalhoexaustivo,povoandoaAmazônia,derramando-se
peloBrasilcentralemeridional,secos,enxutos,infatigáveis,
maravilhosos.EuclidesdaCunhabatizou-os‘rochavivada
nacionalidade’.Quemaguentaa‘rochaviva’éafarinhade
mandioca,amaldiçoadapelosnutricionistas(1973:90-91).
O processamento da mandioca envolve uma tecnologia
complexa, que consome muito tempo e exige o preparo de
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 135
instrumentos adequados. Estes foram transmitidos pelo índio
ao rurícola brasileiro. Num estudo sobre Alimentos preparados à
basedemandioca,M.Y.Monteiroenumeraostermosprópriosde
algunsdessesutensílios:
Assim,aoinvésdepeneiraempregaremosurupema;invés
depote,camotim;nãousareiuioca(casadefarinha)porser
menospopular,masfolgareideusaroutrosverbetescomo
uiquicé (ralo),11uiá (cochoparafermentaçãodebebidasou
depósitodamassadamandioca), caitetuparaoraladorde
dentesdeaço,roda,quicé (facacurtaderasparmandioca),
iapuna (forno grande), itacuruca (fogão de três pedras), ou
sapo-de-pedraetc.(1963:54).
Osvocábulosreferidossãodeorigemtupi,oumelhor,dalín-
guageral.Alémdesses,cabecitaragrandeinvençãoindígenaque
éotipiti.Éumtubotrançadodetalosdopecíolodafolhadepal-
meiraou,maiscomumente,dahastedemarantáceas,noqualse
introduzapolparaladadamandiocabravaafimde,estirando-o,
eliminaroveneno(ácidoprússicoouhidrociânico).
“Nofabricodemandioca(...)oúnicoprogressosensívelintro-
duzidofoioempregodaprensadelagaraoladodotipitidepa-
lha”,escreveS.B.Holanda(1975:205).Outrosutensíliosligadosao
complexodamandiocacontinuamemvoganascasasdosroceiros
detodoopaís:atalhaparaágua(ygaçaba),oalguidar,aspanelas
(nhaem),otachodecerâmicaparatorrarafarinha.EmOTupina
geografianacional,TheodoroSampaiocomentaque: “Muitossão
osnomesdelocalidades,noBrasil,querecordamosutensíliose
11 “Ralo rústico de madeira incrustado de fragmentos de quartzo” de origemindígena,segundoMonteiro(1963: 53).Oautoracrescentaque“osralosacio-nadosamotorelétricotêmpoucapenetração”devidoàausênciadeenergiaelétricanointeriordopaís(1963: 54).
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o136
objetosdeusodomésticoentreosselvagens:Moquém,emGoiás;
Camucim no Ceará; Itanhaém, alguidar de pedra ou tacho, em S.
Paulo,sãoexemplosassaznotórios”(T.Sampaio1928:108).
A importância da mandioca na alimentação no século XVI
podeseraquilatadaporeste trechodeGabrielSoaresdeSouza,
citadoporMonteiro(1963:39):
Destafarinhadeguerra12usamosportuguesesquenão
têmroças,eosqueestãoforadelasnacidade,comquesus-
tentamseuscriadoseescravos,enosengenhosseprovêm
delaparasustentaremagenteemtermodenecessidade,e
osnavios,quevêmdoBrasilparaestesreinos,nãotêmou-
troremédiodematalotagem,parasesustentaragenteaté
Portugal,senãoodafarinhadeguerra;eumalqueiredelada
medidadaBahia,quetemdoisdePortugal,sedáderegraa
cadahomemparaummês,aqualfarinhadeguerraémuito
sadiaedesenfastiada,emolhadanocaldodacarneoudo
peixeficabrandaetãosaborosacomocuscuz.
Damandiocaamargaoubravaextraem-sebebidas,fermenta-
das ou não, beijus e farinhas que oferecem uma multiplicidade
depratos.M.YpirangaMonteiro(1963:55-75)descreve149recei-
tasdebebidas,pratos,beijus,vinhos,angus,farinhas,moquecas,
paçocas,molhos(tucupi,quinhapira),bolos,bolinhos,biscoitos,
broas, croquetes, farofas, geleias, mingaus, pudins, purê, roscas,
sequilhosetc.
Vejamosalguns.Afarinhademandiocamisturadaàfarinha
depeixebemseco(piracuí),socadosnopilão,éofarneldovia-
jante.Durameses.Misturadaafarinhaaocaldodepeixefaz-se
o pirão, iguaria conhecida como peixe à brasileira. Da tapioca
12 Éafarinhamaisgrossa,queresistemaistempoàdeterioração.
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 137
(typy-oca=osedimento,oresíduodosumodamandioca)sãofei-
toscremes,papas,bolos,biscoitos.Opratonacionalbrasileiro,o
feijão com arroz, não dispensa o acompanhamento da farinha,
sejaaonatural,sejaemformadefarofa,oumisturadaaofeijão
paraopreparodotutu.Orecheiodeavesecarnestambémsefaz
comfarofa,temperadadediversasmaneiras.Quantoàfeijoada,
“éumasoluçãoeuropeiaelaboradanoBrasil.Técnicaportuguesa
comomaterialbrasileiro”,ensinaMestreCâmaraCascudo(1968:
108). Planta também indígena, como vimos anteriormente, o
feijão(cumaná)popularizou-seentreosíndioscomavindados
portugueses.
Domilho,aciênciadomésticaensinaafazerváriasmodalida-
desdepratos,quesatisfazemaopaladarmaisexigente:farinhas,
bolos,broas,sopas,pães,cremes,canjicas,pamonhas,cuscuzes.A
etimologiarevelasuaorigem:
Com o milho preparavam a canjica (acanjic), grão co-
zido;afarinha,abatiuy,apamunaoupamonha;pipocaquer
dizer epiderme estalada... À carne ou peixe pilado e mistu-
radocomfarinhadavamonomedepoçoka,quequerdizer
piladoàmãoouesmigalhadoàmão.(...)Ocauimeraoseu
vinhomaisestimadoefeitodesucodocaju,dondelhevem
onome:acayú-y(T.Sampaio1928:107).
PratotradicionaldoParáéotacacá.Compõe-se“degomade
tapioca,molhodetucupi,jambu,camarãoseco,molhodepimen-
tadecheiro,sal”(Menezes1977:69).Etambémopatonotucupi,
“tipicamenteamazônico(...)”,masqueadmiteapresençada“co-
zinhaindígenaeafricana”(ibidem:64).
Acozinhabaiana,ouafro-brasileira,incorporouingredientes
indígenas taiscomooamendoim,dequese fazpédemoleque;
acastanha-de-caju,indispensávelnovatapá;ocuscuzdetapioca
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o138
inchadaedemilhoverdecomleitedecoco;pamonhasdemilho
edecarimã,canjicasdemilho;beijucommanteigaequeijo,ai-
pimcozido,batata-docecozidaparaocafédamanhã.E,ainda,o
bobódecamarãocommacaxeira,leitedecocoeazeitededendê,
o doboró “feito com milho pilado (chamado munguzá) cebola,
camarãoseco,azeitededendê”(Viana1977:43).
Milhoemandiocaentramtambémnacomidagoiana:coste-
linhadeporcocommandioca(entrecosto),mandiocapicadinha
(quibege), mandioca frita com queijo, pamonha frita, assada,
curau,canjicada(canjicacomamendoim).Etambémnaculinária
paulista(viradodefeijãocomfarinhademilhooudemandioca).
Opequi(Caryocarcoriaceum)écomponentedadietaalimen-
tardaspopulaçõespobres(etambémdasremediadas)deGoiás,
Minas,Maranhão,NordesteeCentro-oestedoBrasil,aotempoda
safra.Éofrutoprediletodaspopulaçõesindígenasdocerrado,do
Brasilcentral,dostabuleirosechapadasdoNordeste.Apolpaea
amêndoasãomuitonutritivas,decujoazeitesãofeitosremédios
caseiros.Opratomaisconhecidoéoarrozdepequi,eabebida,o
licordepequi.
O umbu (Spondia tuberosa) produz um fruto de polpa suma-
renta agridoce de que se faz no sertão nordestino a umbuzada,
adicionando ao sumo da fruta leite quente e açúcar mascavo.
Cada umbuzeiro pode produzir duas a três centenas de umbus.
Da raiz, pouco penetrante, nascem tubérculos coletores d’água,
dotamanhodemelancias,dequesesocorremohomemeogado
nasgrandesestiagens.Dessaqualidadelhevemonome:y-mb-u=
árvorequedádebeber,emlínguageral.Éumadasplantasaque
recorreonordestino–“acomidabraba,orecursododesespero”–
nascalamidadesdaseca(CâmaraCascudo1968:451-452).
Osviajantes-naturalistasdoséculoXIX(VonMartius,Wallace,
Bates,Saint-Hilaire)registraramoconsumodeformigastanajuras,
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 139
portodasasprovínciasdopaís,vendidasfritas,semoabdômen,nomercadodeSãoPaulo, segundoSaint-Hilaire.Quantoàs lar-vas,escreveCâmaraCascudo:
As larvas de certas palmeiras foram, não alimentos re-gulares,masgulodicesfavoritasemgrandeáreadoBrasil,deMinasGeraiseS.PauloaoPará-Amazonas,consumidassemoposiçãoemesmofornecendorecursosculináriosparaportuguesesebrasileirosdealgumaabastânciaeconômica(1968:20).
Vimos, na primeira parte deste estudo, a importância quetêmlarvaseinsetosnadietaindígena.Sãoconsumidoscompi-mentabrasileira(Capsicumspp.)queavivaosabordecadapratoe contribui para a sua conservação. Entretanto, a influência daculináriaafricanamodificounãosóacozinhaportuguesa,comoenriqueceu a indígena, tornando ambas mais saborosas. Ela foimaisintensanaBahiaenoNordeste,paraondeafluíramnegrosdeprocedênciasudanesa.
Comoemtudoomais,oportuguêsestavaemmelhorescon-diçõesparaimporseudomínio.Issoocorreutambémnoterrenoculinário.TrouxeespeciariasdoOriente,temperosdaEuropaedaÁfrica.Suacontribuiçãoseinferepelosnomesdados
àculinária,à faunaterrestre,marítima,fluviale lacustre,àflora utilizável, em larga percentagem, aos utensílios dacozinha,àsprovisões(farinha,milho,feijão,arroz),àstéc-nicas(assado,cozido,guisado,refogado,grelhado,pilado),à maioria decisiva dos condimentos vegetais (CâmaraCascudo1968:205).
Para encerrar este capítulo, resta falar de algumas bebidasindígenas de largo consumo pelas populações rurais e urbanas
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o140
do Brasil e até de outros países. Já nos referimos ao refresco do
açaí. É tão apreciado no Pará que tornou provérbio o dito po-
pular: “Chegou ao Pará, parou; tomou açaí, ficou.” As bebidas
indígenas fermentadas não parecem ter merecido igual apreço.
Deu-sepreferênciaàsdestiladas.Bebidarefrescanteeenergética
éochibédaAmazônia,chamadojacubanorestodoBrasil:água
comfarinhadeixadatufar,àsvezestemperadacomalgumsuco
defruta.Estimulantenotável,tônicoereconstituinteéoguaraná
(Paullinia cupana). Cultivado pelos índios Mawé, do Pará, é hoje
amplamenteconsumido.Oguaranáparaocomércioépreparado
em bastões misturado com cacau ou mandioca e ralado com a
línguadepirarucuparareduzi-loapó.
A erva-mate (Ilex paraguaiensis), cujas propriedades tônicas
ealimentíciassãouniversalmentereconhecidas,foiaprincípio
cognominada“ervadodiabo”pelosjesuítas,porquepossuidora,
segundoeles,depropriedadesafrodisíacasquelevavamaodes-
respeitoàsleisdeDeus.Chamadacaa,pelosíndiosGuarani,em
cujo território (Uruguai, Brasil, Paraguai, Argentina) medrava
abundantemente,erausadaeminfusãodasfolhascontraadiar-
reiae,comoemplastro,contraoutrosmales(Lessa1953:369).No
séculoXVII,essabebidasedifundiuportodooestuáriodosrios
daPrata,ParaguaieUruguai,porobradosjesuítasdasreduções
guaraníticas que passaram à história como República Guarani
(1610/1768).Aexportaçãodaerva-matetornou-seumdosnegó-
ciosmaisrendososdosinacianosedos“encomendados”,alcan-
çandoPotosí,naBolívia,eoChile.Osjesuítaspassaramapreferi-
-laàsbebidasdestiladasaqueosíndios,sobsuatutela,sehaviam
afeiçoado.
Finalmente,osmissionários-botânicoslograramdomesticá-la,
e,dessaforma,plantaçõesdeerva-matecobriramimensoscampos
deSetePovosaGuaíra.Desenvolveramtambémnovamaneirade
prepararaerva,naformadeumpógrosso(caamini)quepassou
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 141
avalermaisqueaervacomum.OsencomenderosdeAssunçãoe
BuenosAires,quenãoconseguiamdescobrirosegredodospadres
paraoplantiodaerva,proibiram-nosdeexportá-la.
Em1638,ainvasãodasreduçõesjesuíticaspelosbandeirantes
fezcomqueaerva-matefosseintroduzidaemS.Vicente.Passou-
-se a explorar os ervais nativos do Paraná, de Santa Catarina e,
mais tarde, do sul de Mato Grosso. A classificação botânica e a
denominação científica da planta se devem ao naturalista fran-
cês,AugusteSaint-Hilaire,que,noiníciodoséculoXIX,percorreu
aárea.Suaimportânciaeconômicacrescia,e,emfinsdoséculo
passado, a erva-mate nativa era o segundo produto na lista das
exportaçõesdoBrasil,destinadaàsnaçõesdoriodaPrata(Lessa
1953:379).
3. Medicina popular e magia. Língua. Arte
Introdução
Nestecapítulotratareideaspectosideológicosdaculturain-
dígenaedeseusreflexosnaculturapopular.Nascrençaseprá-
ticas mágico-religiosas populares, apesar da preponderância da
religiãocatólica,encontram-sevestígiosdainfluênciaindígena,
quesãoaquiabreviadamenteexpostos.Convémacentuarque,ao
contráriodabeatitudecristã,quepregaahumildadeeoconfor-
mismo, as crenças e os heróis míticos do autóctone reforçam a
etnicidade, o orgulho tribal e, em consequência, a resistência a
todasasformasdeopressãoétnicaeclassista.
Nãoobstanteseremaspopulaçõesdeorigemindígena,africa-
naemestiçamajoritárias,prevaleceram,comoseacentuouvárias
vezes,asinstituições,alíngua,oscostumeseosmecanismosde
ordenação socioeconômica do dominador. Por isso, no forjar o
caráternacionalbrasileiro,ofatorétnico–autóctone,africanoou
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o142
mestiço – influiu muito pouco. Os contingentes escravizados e
subjugados nada puderam fazer para alterar a ordenação social
aseufavor.Elaerapraticadaemnomedeumacivilizaçãocom
incontestávelsuperioridadetecnológicaemrelaçãoaospovostri-
baisdaAméricaedaÁfrica,semqueseusfrutoseumaautêntica
justiçasocialatingissemamassadapopulação.
Adivisãodotrabalho,segundoaqualtodasastarefasproduti-
vasrecaíamsobreosombrosdoscontingentesdominados;adis-
tribuiçãodariqueza,queobrigavaoescravo,ocolono,otrabalha-
dorbraçalacumprirsuasnecessidadesdeconsumoaoslimitesda
subsistência;omonopóliodosaber,queimpediuaescolarização
deamplascamadaspopulares;amiopiadaclassedominanteque
geriuosdestinosdanaçãounicamenteemproveitopróprio;tudo
issocontribuiuparaatrofiaroorganismosociale depauperar a
criatividadedopovo.
Analisando algumas dessas “funções morais”, Capistrano de
Abreu,aoreferir-seàscrençasreligiosas,escreve:“Porestesmoti-
vos,areligiãodasclassesinferioresépurofetichismo;areligião
dasclassessuperioresépuraconvenção”(1976b:21).
Alémdeumabrevediscussãosobreareligiosidadeindígenae
popular,inclui-senestecapítuloumtextosobrealínguageral(ou
nheengatu), falada em todo o Brasil nos três primeiros séculos,
atéfinsdoséculoXIXnaAmazônia,e,emnossosdias,poralguns
setoresdapopulaçãocabocladoaltorioNegro.Outrotextoversa
sobre arte indígena e arte popular, que finalmente começam a
ocuparespaçonaculturanacionaleinspiramhojeasartesplásti-
cas,aliteraturaeamúsica.
a) Rezas e mezinhas
NumensaiobibliográficosobreamedicinapopularnoBrasil,
Marcos de Souza Queiroz (1980a) divide os respectivos estudos
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 143
segundo as seguintes aproximações ao tema: 1) as abordagens
“folcloristas”, que se restringem a um “inventário em forma de
dicionário,absolutamentedespojadodequalquerintençãoexpli-
cativa”;2)osestudosde“representantesdamedicinaoficialsobre
as terapêuticas populares”; 3) os trabalhos de cientistas sociais
realizados“sobumcertocontroledeumacomunidadecientífica”
(Queiroz1980a:241).
O autor acentua a carga de preconceitos e de etnocentrismo
emalgumadessasobras.Nelasédadamaiorênfaseaoexotismo.
O curandeiro e o rezador são tratados como “gente perniciosa”,
atrasadaeobscurantista,quepraticaumamedicinailegal,aten-
tatória à vida humana. A expansão desse tipo de terapêutica
nasperiferiasdascidades,entreasclassesmenosfavorecidasda
população e mesmo entre as camadas médias urbanas, se deve,
segundoesseraciocínio,àsmigraçõesinternas.
Paraosautoresfolcloristas,amedicinarústicabrasileiraseria
uma sobrevivência das artes de curar indígena, negra e ibérica,
queteriamsemescladosincreticamente,cabendoaopesquisador
encontrarasorigensdecadauma,ouseja,dosrespectivostraços
culturais.
Segundoessesautores,amedicinapopularteriaaspectosreli-
giosos(benzeduras,orações,rezas),mágicos(usodeamuletos)e
empíricos,queseriamostratamentosatravésdafitoterapia(be-
beragem,abluçõesetc.).Amaiorpartedessesestudosocupa-seda
descriçãodessaspráticas,buscandoencontraremcadaumadelas,
comodissemos,vestígiosdainfluênciadasmatrizesformadoras
danacionalidadebrasileira(Queiroz1980a:247).
Osprofissionaisdamedicinaqueestudaramessesmesmosmé-
todosdecuraprocurarammostrarquepartedelesnãotinhavalor
científico,masmeramentemágicoesimbólico.Aoutraparte,po-
rém,qualseja,ousodeervasealimentosselecionados,resultava
àsvezeseficientenotratamentodedeterminadasmoléstias.
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o144
Oterceirogrupo,finalmente,procurasepararaspectosreligio-
sosdaspráticascomconteúdomágico,eambosdosaspectosem-
píricos. Acentua a prevalência de hábitos alimentares baseados
na classificação de “quente” e “frio”, “forte” e “fraco”, “reimoso”
e “descarregado”.A lógicadessaclassificaçãonão foisuficiente-
menteestudadaemnossomeio,segundoQueiroz(1980a:249).
OpróprioQueirozestudouumacomunidadecaiçaranolitoral
paulista,aaldeiadeIcapara,constatandoqueosseushabitantes
acreditamproviremalgumasdoenças“desentimentosnegativos
oriundosdopróprioindivíduo(inveja,vontadeinsatisfeita,susto)
edeoutros indivíduos (inveja, mau-olhado, quebranto, feitiço)”
(1980b:131)
Classificação semelhante foi feita por Napoleão Figueiredo
(1979)quantoàscausasdaincidênciademoléstiasemBelémdo
ParáeporHeraldoMaués(1977)nointeriordomesmoestado.Ou
seja,basicamente,ascausasdasdoençaspoderiamsernaturaise
nãonaturais.
Entreessasúltimas,Queirozapontaascausadasporquebranto,
mau-olhado,feitiçariaeoutrossentimentosnegativos.Enquanto
o quebranto (curado com benzeduras) provém do “excesso de
amor”oude“amorcaduco”noâmbitofamiliar,o“mau-olhado”
e a “feitiçaria” se explicam pela ação de um agente externo ao
estreitocírculofamiliar.Osdoisprimeirosmalesincidemprinci-
palmentenascrianças.Oúltimo,empessoasadultas.Sãocurados
comrezas,simpatias,ouseja,gestos,comportamentosritualiza-
dos,“passesparafecharocorpo”,ervasmedicinais,banhosere-
médiosdefarmácia,deusocomum.
ParaoshabitantesdeIcapara,omalcausadoporessaspráticas
ouaçõesnãopodesercuradopelamedicinacomum,mas“pela
mesmaforçaqueoengendrou,ouseja,pormeiodeumcontra-
feitiçoaprendidoemlivro,oupormeiodosserviçosoferecidos
peloscurandeirosespiritistas”(Queiroz1980b:140).
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 145
OautorafirmaqueapopulaçãodeIcaparageralmenterecorre
aessesúltimos.Ofeitiço,nessecontexto,étambémresponsável
poracidentes,máfortuna,distúrbiospsicológicosouproblemas
deordemsocial.
O “curandeiro espiritista” não convive com a comunidade
comooxamãnatriboindígenaounaaldeiaafricana.Entretanto,
tememcomumcomeleaatribuiçãodeumpoderdecuraromal
etambémdecausá-lo.E,ainda,ofatodesóserconsultadoquando
esgotadostodososrecursosdamedicinatradicionalqueacomu-
nidadedomina.
AlceuMaynardAraújo(1961),numalentadotrabalhoemque
expõeosresultadosdeumapesquisasobremedicinarústicarea-
lizadanumalocalidadealagoanaàsmargensdorioSãoFrancisco,
define-acomo“oconjuntodetécnicas,defórmulas,deremédios,
depráticas,degestosdequeomoradordaregiãoestudadalança
mãoparaorestabelecimentodesuasaúdeouprevençãodedoen-
ças”(Araújo1961:57).
Oautorencontraentresuaspráticasotoréindígena(equipara-
doàpajelança,nocasodaAmazônia)eocandombléafro-brasilei-
ro.Araújoqualifica,comopráticamágica,oprimeiroe“religiosa”,
osegundo(op.cit.:56).Entreaspráticasdamedicinamágicarela-
ciona:benzedura,simpatia,profilaxiamágica,toré(adivinhação,
defumação, uso de ervas) e catolicismo de folk. As da medicina
designada como religiosa incluem o candomblé (adivinhação
simbólica, procura da divindade ofendida para homenageá-la e
terapêutica ritual). Na medicina empírica são constatadas pelo
mesmoautorafitoterapia,dieta,balneoterapia,sangriaepirótica
(Araújo 1961: 58-59). Quanto à fitoterapia, considera-a em parte
herançaindígena,umavezqueanomenclaturadasplantaspro-
vém,emsuamaioria,desuafarmacopeia(op.cit.:141).
Napajelança–fenômenotalvezconcentradonaAmazônia–é
quesefazsentircommaisforçaainfluênciaindígena.Opajénão
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o146
éapenasobenzedor.Émaisqueisso.Adivinhaospensamentos,
osacontecimentos,previne-oseoscombate.Osprocessosdecura
dopajéaproximam-sedoxamanismotupi:apardaintroduçãoda
cachaça,registra-seousodocigarro,domaracá,derezas–“ora-
ções católicas que funcionamcomofórmulasmágicas” (Galvão
1976:98).Opajécabocloexorciza–comooameríndio–osseus
sobrenaturaisfamiliares:espíritosdaágua,chamadoscompanhei-
rosdofundo.Umobjetomalignointroduzidonocorpodopaciente
porumsobrenaturalouumfeiticeiroéocausadordadoençae
porissodeveserextraído.
Ospajéssãotambémosúnicoshabilitadosacurarpanemaou
o assombrado de bicho (ver adiante). Às práticas mágicas acima
referidas, o pajé associa, contudo, conhecimentos empíricos de
ervasqueaplicanasuaaçãocurativa.
Tanto no terreno da fitoterapia, do remédio caseiro, como
no dos procedimentos mágicos e rituais sobressai a influência
indígena. Vimos que a farmacopeia dos índios Tiriyó oferece
quantidade considerável de ervas, raízes e cascas usadas como
beberagens,banhosoudefumaçõesparaacuradeinúmerasen-
fermidades.Essasplantasououtrassemelhantessãovendidasnas
feirasemercadosdacidadedeBelém.Figueiredo(1979:28-66)fez
olevantamentode177plantascurativas(puçangas,cujasamos-
trasforamrecolhidasaoerváriodaUniversidadeFederaldoPará),
receitadasparaasdoenças“docorpo”edo“espírito”, fabricadas
jáemlinhaindustrialeàvendanosmercadosefeirasdeBelém.
Alémdaservas,foramincorporadosinsetosàmedicinarústica
devidoàspropriedadescurativasousimplesmentemágicasque
lhes são atribuídas. Do exaustivo levantamento feito por Karel
LenkoeNelsonPapavero(1979),selecioneialgunsexemplosnos
quaisémencionadaainfluênciaindígena.
Segundo o Padre Alcionílio Bruzzi – citado por Lenko &
Papavero (1979: 80) – os índios Tukano empregam as cinzas da
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 147
casadocupim(térmita)paracurarferidas.Osíndiosalegamque
“...domesmomodocomooscupinsrefazemperfeitamenteoseu
ninho,quandorebentado,ascinzasdoninhooperamomesmo
resultadonasferidashumanas”.Agregue-seque,deacordocom
Lenko & Papavero, em várias regiões do Brasil, a população ru-
ral utiliza o “chá do cupim” ou o “chá dos túneis pretos que se
encontramdentrodoscupinzeiros”paracurardoençasdasvias
respiratórias,hemorragias,mordidadecachorro,bócioeoutros
males.NaÁfrica,omesmoremédioéempregadocontrapicadas
de cobras e escorpiões, bem como para fins gastronômicos. No
nossopaís,sãoapreciadasespecialmenteasfêmeasovadas,cujo
valorcalóricofoiavaliadoem560por100gramascomumapro-
porçãode36%deproteína(op.cit.:91-94).
Asvespasoucabas(vocábulotupi-guarani)oumarimbondos
(termo africano) são familiares aos etnólogos que estudam os
gruposdotroncolinguísticojê.Éque,nosritosdepassagem,os
adolescentessãosubmetidosàpicadadeenxamesdemarimbon-
dosparainfundir-lhescoragem,resistênciaàdoreatitudesguer-
reiras.EntreosKayapó,omarimbondo-caçador,depoisdeassado,
trituradoemisturadoaourucu,éesfregadonofocinhoecorpo
docachorroparaapurar-lheofaro.Amesmapráticaéregistrada
nointeriordeSãoPauloeMinasGerais.NoRioGrandedoNorte,
esseinsetoéempregadoparaoutrosfins:“colocadonacomidade
crianças ‘desconfiadas’, isto é, atacadas de lombrigas” (Lenko &
Papavero1979:196). Vários grupos indígenas, por outro lado, se
alimentamdomeledaslarvasdasvespasdogêneroBachygastra
(idem: 173), enquanto os sertanejos e caboclos recomendam o
ninho do marimbondo do gênero Trypoxylon (conhecido como
minguita),preparadodeváriasformas,paraacuradeinúmeras
doençasetambémcomoafrodisíaco.
InsetosdafamíliadasMutillidae,conhecidoscomoformigas-
-feiticeiras, são também empregados pelo homem do interior
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o148
na magia amorosa e, ainda, na cura do alcoolismo, da bronqui-
te etc. Comparecem também no folclore dos Tapirapé, Paresi e
Nambikuara(ibidem:216-219).
Éconhecidaasuperstiçãopopulardequeaformiga(ouoácido
fórmicoquelibera)fazbemàvista.Entrealgumastribosatribui-
-se valor curativo à picada de formigas, crença partilhada pelos
caiçarasdeSãoPaulo(Lenko&Papavero1979:239-40).
Asaúva,tanajuraouiçá(dotupi-guarani)(Attasp.),cujoabdô-
menovadodafêmeaeratidocomoiguariapelosantigospaulis-
tas,ficouigualmentecélebrecomoflagelo,conformeoaforisma
divulgado por Auguste Saint-Hilaire: “ou o Brasil acaba com a
saúva,ouasaúvaacabacomoBrasil”.Alémdepetisco,asaúvaé
empregadacontra“doençasdopeito”(tuberculose),doresdegar-
gantaereumatismo.InformamLenko&Papaveroqueumafirma
americana“enlataevendeformigasfritasemóleocomestívele
recobertasdechocolate”,provindasdaColômbia,comoumaes-
péciede“caviaramericano”(op.cit.:283).
Outroempregocuriosodasaúvaéocirúrgico,istoé,parasutu-
rarferidasabertassemdeixarcicatrizes.Éreportadoentreíndios,
hindus e outros povos. “Fazem os insetos morder as bordas (de
umaferida)eentãoretiramotóraxeoabdômen,deixandoape-
nasacabeça”(Lenko&Papavero1979:286-287).
Omeleaceradeabelhas,a luzdovaga-lume,acarapaçado
besouro,astransparenteseiridescentesasasdasmariposasebor-
boletassãoaindamotivospoéticosdocancioneiroedofabulário
de índios e rurícolas, como magistralmente registram Lenko &
Papavero.
A persistência dessas crenças e práticas médicas se explica,
por um lado, por responderem a uma tradição pré-científica. E,
poroutrolado,porquesãoefetivamenteeficazesecumpremuma
função social de controle do incontrolável. Isso ocorre no que
diz respeito tanto ao receituário como aos hábitos alimentares,
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 149
emqueosdoentessãoinstadosaevitaralimentos“reimosos”ou
quentes,cujalógicaaindanãofoidevidamenteestudada.
Portudoisso,damedicinapopularpode-sedizeroqueMaria
IsauraPereiradeQueirozatribuiaofatofolclóricodeummodo
geral:
Muito embora sua origem se perca no passado, o fato
folclórico permanece vivo, na medida em que homens e
mulherescontinuamaexercê-loemsuavidacotidiana,na
medidaemquedesempenhaumafunçãodentrodosgrupos
demédiaepequenaenvergadura,dentrodosquaissurgiue
continuaasurgir(1976:125-126).
Acrescentaque“fatosfolclóricos”surgemtambémemsocieda-
desaltamenteindustrializadas,umavezqueofolcloreéa“ciência
da‘criatividadecoletiva’,nãodevendoseuestudorestringir-seàs
sociedadestradicionais”(Queiroz1976:134-135).
Namedidaemqueadoençaedoentessãovistoscomocatego-
riassociais,cadasociedadelhesatribuidiagnósticoserepresenta-
çõespróprias.Oconjuntosdascrençasepráticasligadasàdoença
eaoutrosfatoresincontroláveisrevigoraosvalorestradicionais
da comunidade, contribuindo para reforçar a coesão e a ordem
social.Ocontroledefatoresanômicos–comosãoadoença,oazar
e o infortúnio – apresenta, nesse sentido, importância política
comoválvuladeescapeparaprevenirconflitosetensões.
Afunçãodoscuradoresnãoésomenteprotegerodoente,mas
todaacomunidade,istoé,resguardá-lacontraforçasimponderá-
veisqueaameaçam.Emmuitoscasos,os“remédios”sãosimples
sugestõesousímbolosqueincutemconfiançaderecuperaçãoao
doenteeàsociedade.Essarelaçãodecausaeefeitoéquepropicia
a cura. Nesse sentido, a medicina popular se aproxima do que
conhecemoscomo“ciênciamédica”,emborasesituenopolodo
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o150
folclórico,entendidocomo“espontâneo,vulgar,anônimoecole-
tivo”(M.I.PereiradeQueiroz1976:125).
b) Crenças e assombrações
AAmazônia,oslongínquossertõesdoBrasilcentral,oNordeste
sãoaindahojerepositóriosdecrençasepráticasindígenasincor-
poradasaofolclorenacional,naformadetradiçãooral.Entreos
duendeseassombraçõesmaiscorrentes–quenaconcepçãodo
índiocomonadocaboclohabitamofundodosriosouorecôn-
ditodafloresta–avultamosbotos,acobra-grande,oscaaporas,
os curupiras, os anhangas e vários outros. Amalgamadas com
lendas,fábulasemitostransplantadosdaIbériaedaÁfrica,essas
crençascoexistemcomareligiãocatólica,ocultodossantos,o
respeitoeadevoçãoaDeus.“Opajééumbomcatólico”,escreve
GalvãoemSantosevisagens; “elenãomisturasuaspráticascom
aquelasdaIgreja.A‘pajelança’eocultodossantossãodistintose
servemasituaçõesdiferentes”(1976:5).
Observa Galvão que a religiosidade no vale amazônico não
assumeacaracterísticade“sincretismo”,comooscultosafro-bra-
sileiros de outras regiões do Brasil (ibidem). “Os fenômenos que
escapamàalçadadossantos”–aosquaissãoatribuídosadefesae
obem-estardacomunidade–taiscomo“apanema,o‘assombra-
dodebicho’eopodermalignodosbotos”(queincidemsobreo
indivíduo)pertencemàórbitadepoderdospajés.Nestecapítulo,
serádadaênfaseapenasàquelesduendesecrençasque,aparente-
mente, têm uma função ecológica, de conservação da natureza.
Provêm,aoquetudoindica,dofabuláriotupi,ouaomenosforam
difundidosatravésdesseveículodeuniformizaçãodecompreen-
sõescomuns,quefoialínguageral.
Se na literatura oral portuguesa os animais tinham inteli-
gência,sagacidadeeeramdotadosdefala,nasfábulasindígenas
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 151
aparecemcomodoadoresdaculturae,nessaqualidade,sãores-
peitadosetemidos.Essapareceseralógicaeamoraldostemas
ligados aos “donos dos animais”, ou “mães dos bichos”, embora
elestenhamsidoconsideradosporváriosautorescomosimples
fabulaçõesouporanduba(deporo,superlativo,eandu,notíciasem
línguageral).Ouseja,asnarrativasedepoimentosqueoshomens
fazemnaaldeia,aocrepúsculo,pararelataros feitosdodia.De
qualquer forma, essas crenças e mitos são congruentes com o
mododepensareviverdeseuscultoresedeterminamocompor-
tamentoeaaçãosocial.
A função mais generalizada dessas crenças e lendas diz res-
peito à conservação do mundo natural. No capítulo sobre os
tabus alimentares vimos como esse tipo de racionalização está
presente.Nomito,nocontopopularenassuperstiçõesaelesli-
gadosapareceomesmomotivo,àsvezesexpressamente,àsvezes
sub-repticiamente.Apresençadocomponentereligioso–ouso-
brenatural–équeimprimeforça,féecredulidadeaomitoe,em
decorrênciadisso,impulsionaejustificaaconduta.
No lendário indígena e popular amazônico, os guardiões da
caça do campo, da mata, dos peixes e das árvores usam estra-
tagemas de defesa, infligindo terríveis castigos e até mesmo a
morte aos caçadores ou incendiários que transgridem suas leis.
Transcrevo,abaixo,meiapáginadeCâmaraCascudo,queassim
defineosprincipaispersonagens:
AcaçadocampopertenceaAnhanga,veadobrancocom
osolhosdefogo.AcaçadomatoédoCaapora,homenzar-
rãocobertodepelosnegrosportodoocorpo(...),montando
um porco-do-mato de proporções exageradas e dando, de
vezemquando,umgritoparaimpeliravaradoscaititus.
AsortedospeixesépatrimôniodeUauiará,queaparece
transformadoemboto(Delfinida),tornando-sehomemnas
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o152
noitesdefesta,indonamorarasmoçasdasribanceirasque
oapontamcomosendoopaidoprimeirofilho.
Omboitatáprotegiaoscamposcontraosincêndiospro-
positais.Eraumaserpentedefogoouumgrossomadeiro
embrasa,oméuan,fazendomorrerporcombustãooincen-
diáriocriminoso.
CurupiraeraumpequenoTapuiodepésvoltadospara
trásesemosorifíciosparaasexcreções,protetordasflores-
tas(1952:106).
O anhanga (espectro, fantasma, duende, visagem – segundo
Câmara Cascudo 1954: 42) castiga os caçadores que perseguem
certotipodecaça,comoopássaroinhambu-anhangaeoveado
(suasu-anhanga) nos quais se transfigura e, sobretudo, os que
matamumanimalqueamamentaouumpássaroquechocaou
cria.Perseguetambémoscaçadoresquedevastaminutilmentea
caçaoumatamamesmaespécie,diasseguidos.Ocastigoqueo
anhangafazrecairsobreocaçadoréumafebretalquepodelevar
àloucura.
CâmaraCascudocontaocasode:
umvelhocaçadortradicionalnossertõesdoRioGrandedo
Norte,deapelidoMandaí, (que),emboraprofissional,não
caçavanosdiasdesexta-feira,porser,dizia,dacaçaenão
docaçador.Nastardesenoitesdesexta-feira,havendoluar
ocaçadorviaaparecerumveadobrancocomosolhosde
fogo, que mastigaria o cano da espingarda como se fosse
“cana-de-açúcar”(1954:43).
Galvão (1976: 75-76) conta a desventura de um roceiro que,
paraespantarosveadosquefaziamestragosemsuaroça,fezuma
tocaianumaárvoreetodasasnoitesmatavaumdeles.Certafeita,
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 153
esquecidodequeeradiadeS.Bartolomeu,foiàtocaiaeviuchegarumamanadadeveadosgalheiros,“asaspasmuitolongaseaguça-das”eosolhosembrasa.Ficounatocaia,transidodemedo,enãopôdeesboçarumgesto.Maistarde,seusfilhosforamencontrá-loalisemfala.Foiatacadoporumafebreterríveldequesesalvoupor meio de rezas e benzeções. Estavam todos convencidos deque os galheiros-anhangas tinham ido ali vingar os veados quematara.
Ésintomáticoofatodeoanhangatomarcomumenteaformadeumveado,oudeumaanta,justamenteosanimaisobjeto,emgeral,detabusalimentaresporpartedosíndios.
NaAmazônia, fala-secomumentede“assombradodebicho”.Assombrar tem o significado de tirar a sombra, ou seja, a alma,levando o indivíduo à loucura. A “mãe dos bichos” assombra ocaçadorganancioso.Porisso,osmaisexímioscaçadoresoupesca-dores,queseespecializamemdeterminadotipodecaça,preferemperseguirdiferentesoumudarconstantementeolocaldepesca,paraevitarairada“mãedobicho”.Fazerzoadapertodoriooumaltratarumanimaldomésticopodeatrairazangada“mãedosbichos”.Mesmoascoisaseosacidentesgeográficostêm“mãe”,se-gundoaconcepçãodeíndiosecaboclosquefalamfrequentemen-tena“mãe-d’água”ou“mãedorio”,“mãedomato”etc.Trata-sedeumaatitudederespeitoàsobrasdanaturezaeaomesmotempodetemordiantedeseuspoderesinsondáveis.
Acrençaempanema 13éoutraformaderegularasatividadesde subsistência ligadas à caça e à pesca na Amazônia. SegundoGalvão(1976:81),podeserdefinidacomo“másorte,azar,desgra-ça,infelicidade”ouincapacidadedequesãotomadosindivíduosemesmoobjetos,poraçãodeumaforçadesencadeadaporigno-
rânciaouimprevidência.
13 Do tupi: i-panema, que significa “água má, sem peixes” (Câmara Cascudo1954: 469).
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o154
Por um processo de tentativa, acaba-se por descobrir onde
estálocalizadaapanema.Paranãocontraí-lasãorecomendados
certosbanhosdeervas“fedorentasecocentas”,defumaçõescom
alhoepimentaeoutraspráticasmágicas.Écostumeocaçador
eopescadortomaressescuidadoscadasemanaoucadaquinze
dias,comrelaçãoasipróprioeaseusapetrechosparaevitara
panema.
As mulheres grávidas podem, involuntariamente, fazer al-
guém tornar-se panema. A desconfiança ou a inveja também
causampanemaaoinvejado.Amulhermenstruadaquetocaros
implementosdecaçaoupescapoderáempanemá-los.Parapoder
controlar a cura dos caçadores ou pescadores empanemados, as
mulheresgrávidasgeralmentesósealimentamdecaçaepeixes
apanhadospelosprópriosmaridosouparentespróximos.Ouen-
tão,consomemcarnedegadooupeixesecovendidosnosarma-
zéns,sobreosquaisnãorecaiapanema.Essainformação,tomada
deGalvão(1976:83),éoutroindíciodequeapanemadizrespeito
àproteçãodafaunaselvagem.
Numa tentativa de reinterpretação da crença na panema,
Roberto da Matta (1977: 67-96) associa-a à hierarquização da es-
truturasociallocal,àdicotomianatureza/sociedade,àsafinidades
comonossosistemasorte/azareàmaneiraqueocabocloama-
zônico encontrou de transformar “um sistema probabilístico”
(o azar) num “sistema determinístico” (sua causação). O autor
colocaênfasenasituaçãoambíguados“agentescatalisadores”da
panema:amulhermenstruada,grávida,a inveja,adesconfiança
assinaladosporGalvão(1976)eWagley(1957)noestudodeuma
pequenacomunidadedobaixoAmazonas.
Deminhaparte,procureiencontraralógicaouracionalidade
dessa e de outras crenças amazônicas, analisando-as sob uma
perspectivaecológica.Mattaconfirmaessainterpretaçãoquando
escreve:
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 155
Namedidaemqueohomempescamuitooucaçamuito,
oquevaledizer,seumhomempretendeutilizaranatureza
comofontederiqueza,équasecertoqueficaráempanemado.
Istoporque,quantomaispeixeoucaçadistribuir,maiores
sãoaspossibilidadesdeperderocontrolesobreas trocas,
fazendocomqueosprodutoscaiamemclassesambíguas,
catalisadorasdepanema(1977:91-92).
Os dados etnográficos mostram que, consciente ou incons-
cientemente, o caboclo, tanto quanto o índio, procura manter
umaintegraçãoequilibradacomseuecossistema.Ascrençasesu-
perstiçõesqueexaminamos,pormaislógicasquepossamparecer,
exercemafunçãodedefesadosmeiosprimáriosdesubsistência.
Essespadrõesdepensamentoindígenaforamcertamenteincor-
poradosàmentalidadedoscaboclospelousoextensivodalíngua
geral,pelousodasmesmastécnicasdeaçãosobreanatureza,se-
lecionadasporumaexperiênciamilenar.
c) A língua boa
Para se avaliar a influência do indígena na cultura nacional
bastariaconsultarumdicionáriodalínguaportuguesaerecolher
aspalavrasdeorigemaborígine.Seéverdadequealínguacontém
eexpressatodaacultura,oestudoetimológicodosvocábulosdo
portuguêsfaladonoBrasilapontariaocaminhodamina.Muitos
autoresdedicaram-seaessemister,principalmenteaoestudodo
tupi. São tantos os tupinólogos que é uma ousadia citar alguns
emdetrimentodeoutros.Osmaisconhecidos–ErmanoStradelli,
Theodoro Sampaio, Plínio Ayrosa, Carlos Teschauer, Baptista
Caetano,AmadeuAmaral–realizaramessesestudosemregiões
específicas ou se ocuparam de determinados temas, como a
toponímia.
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o156
O conteúdo dos elementos culturais de origem ibérica foi
disseminado às populações nativas e a seus descendentes pe-
los jesuítas. Mas isso foi feito por um veículo – o nheengatu
ou língua geral – derivado de uma língua falada, ao tempo da
conquista,pelosgruposqueocupavamacosta,osTupi-Guarani.
A toponímia, os nomes dos animais, plantas, utensílios, técni-
case,inclusive,deumapráticadeauxíliomútuoexpandidado
campoparaacidade,conhecidacomomutirão(dotupi,moti’rõ),
passaramaoportuguês-brasílicosobaformadepalavrasemlín-
guageral. JulgandoquetambémnaAmazôniatodosos índios
falavam o tupi-guarani, os jesuítas introduziram-no nas mis-
sões,tupinizandofalantesdotukano,bemcomodeváriaslínguas
dostroncosaruakekarib.Comovimos,osmamelucospaulistas
eramtambémnheengatuoulínguageralfalantesedissemina-
ramessalínguafrancaportodoointerior,àmedidaqueoiam
descobrindoedevassando.
Para ajudar a entender e aceitar a religião cristã, os jesuítas
traduziramanoçãodepoderdivino,igualizando-oaTupã,sobre-
natural tupi, representado pelo trovão, e o poder satânico, pelo
sobrenaturaldafloresta,Jurupari.
Arespeitodaampladifusãodotupi,escreveSérgioBuarquede
Holanda:“EmSãoPaulo,porexemplo,enasterrasdescobertase
povoadasporpaulistas(...)atestamnumerososdocumentosaper-
manênciadobilinguismotupi-portuguêsdurantetodooséculo
XVIII”(1975:183-184).
TheodoroSampaioéaindamaisenfático,quandodiz:
Fazia-seaconquista,tendoporveículoapróprialíngua
dos vencidos, que era a língua da multidão. As bandeiras
quasequesófalavamotupi.Eseportodaparte,ondepene-
travam,estendiamosdomíniosdePortugal,nãolhepropa-
gavam,todavia,alíngua,aqual,sómaistarde,seintroduzia
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 157
com o progresso da administração, com o comércio e os
melhoramentos.Recebiam,então,umnometupiasregiões
queiamdescobrindoeoconservavampelotempoadiante,
aindaquenelasjamaistivessehabitadoumatribodaraça
tupi.Eassiméque,noplanaltocentral,ondedominavam
povos de outras raças, as denominações dos vales, rios e
montanhaseatédaspovoaçõessãopelamorpartedalín-
guageral(Sampaio1928:3).
Nas províncias de São Paulo, Rio Grande do Sul, Amazonas
eParáondeosmissionáriostupi-falantesmaisatuaramnaobra
de catequese e na educação, o tupi prevaleceu por mais tempo,
havendoemtodaacolôniaumaproporçãodetrêstupi-falantes
para um português-falante ainda no começo do século XVIII
(TheodoroSampaio1928:3).
Otestemunhodeumviajante,NicolDreys,queescreveusobre
oscostumesnoRioGrandedoSul,em1839,atestaque:
A línguausualdasMissõeséa línguaguarani, sonora,
eufônica e extremamente pitoresca; principia já a ser po-
pulardesdeorioPardoenestaúltimavila fala-semesmo
indiferentemente e quase com a mesma facilidade a lín-
guaportuguesaea línguaindígena,poisapopulaçãodas
Missõesconstapelamorpartedosrestosdanaçãoguarani...
(CitadoporC.Teschauer1929:111).
Aessasevidênciassoma-seadivulgadaporAntônioHouaiss,
deque
os constituintes de 1823 perguntavam-se se se devia ins-
talar uma faculdade de direito em São Paulo, dada a cir-
cunstância de que lá se falava mal a nossa língua, o que
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o158
supunhaquenoutrasáreasdopaísse falavamenosmal,
comoseriaocasodoRecife(ondesecriouuma),sobrecuja
maneiradefalarnossalínguanãoselevantaramobjeções
(1985:7).
Houaissrefere-se,certamente,aoutras“línguasgerais”e“artes
degramática”codificadaspelosjesuítasparaatenderàstarefasde
catequese.Apropósitodas“artesdegramática”informa:
No que se refere às dos séculos XVI, XVII e XVIII (ge-
ralmente impressas muito tempo depois de codificadas,
deixando-nosaimpressãodequetivessemsidoretidasaté
omomentoemqueprovassemserúteispelaexpressãoda
‘língua’emcausa),houveumgrandenúmerode‘artesde
gramática’.Umexemploécaracterístico,odaartedegra-
máticadocariri,quesedestinavaà ‘línguageral’deuma
extensaregião interioranadoNordesteedosertãoseten-
trionaldaBahia:aí,também,agramáticacariri–detron-
cooutroquenãoo‘tupi’–deveriaserumageneralização
recobridora de várias línguas cariris afins (Houaiss 1985:
49-50).
NocasodaAmazônia,emqueotipodeexploração,nafaseco-
lonialedepoisnacional,dependeuquasetotalmentedaforçade
trabalhoedaadaptaçãomilenardoíndioàhileia,umdosmaiores
obstáculos,segundoBessaFreire(1983:59),eraainexistênciade
um meio de comunicação único. Os descimentos de centenas
detribosdosaltosrioseoseuengajamentonoprojetocolonial
ocorriam,porisso,atravésdeum“estágio”nosaldeamentos“de
repartição” jesuíticos, onde membros de distintas tribos eram
“tupinizados”.
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 159
Oprocessodesubstituiçãodas línguasnativasdaAmazônia
pelo nheengatu e depois pelo português é periodizado, a título
provisório,porJoséBessaFreire(1983:40):
a)Fasedeintérpretes(séculoXVI)
b)Etapadeimplantaçãodonheengatu(1616-1686)
c)Expansãodonheengatu(1686-1757)
–comapoiooficial(1686-1727)
–semapoiooficial(1727-1757)
d)Tentativasdeportugalização(1757-1850)
e)Processodehegemoniadalínguaportuguesa
(começaapartirde1850atéosnossosdias).
Oautordáamedidadaviolênciaqueconstituiaimposiçãode
umúnicoidiomaacercade688gruposquefalavamlínguasfilia-
dasaostroncoskarib,aruak,pano,tukano,jêelínguasoufamílias
linguísticasisoladas.Essecálculoébaseadonolevantamentode
CestmirLoukotkade1.492línguasfaladasnaAméricadoSul,das
quais718noterritórioquecorrespondehojeàAmazôniaLegal.
Destas, 130 pertenciam ao tronco tupi, segundo Loukotka (cf.
Freire 1983: 42-3). As línguas não tupi – que os jesuítas se recu-
savam a aprender – eram chamadas “línguas travadas”, ou seja,
difíceisdepronunciar(idem:46).Comisso,osinacianosusavam
umjuízodevalorparajulgarosveículosdeexpressãodecentenas
degrupos,considerandoalgumaslínguassuperiores,ouseja,as
filiadasaotroncotupi,eoutrasinferiores.
Impôs-se,dessaforma,alínguadodominador–alínguageral–
queamaioriadoscolonosemissionárioschegadosàAmazônia
dominava (p. 49). Por outro lado, nos aldeamentos “de reparti-
ção” ou “domésticos”, o nheengatu passou a ser o instrumento
decomunicaçãoentreindivíduosprovenientesdediferentestri-
bos. Nessas condições, as crianças trazidas para os aldeamentos
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o160
jesuíticos se tornavam monolíngues. Em fins do século XVII, o
nheengatutorna-selínguaoficialnaAmazônia:“ACartaRégiade
1689”,escreveBessaFreire,“determinouqueosmissionáriosde-
viamensiná-lanãoapenasaosíndios,mastambémaospróprios
filhos dos portugueses concentrados nos embriões de núcleos
urbanosqueseformavamnaregião”(1983:51).
Essaatitudeportuguesaseexplica,segundoBessa,pelofatode
onheengatuviabilizara“rentabilidadedacolônia”.
Em 1720, havia apenas no Pará – não incluindo o
Maranhão–63aldeiascom54.264índiosaldeadosque,de-
pendendodaeficiênciamissionária,dominavamemmaior
oumenorgraua“línguageral”,queeratambémusadapela
quase totalidade dos mil portugueses e pelos mestiços e
ainda pelos índios ‘livres’ e escravos do Maranhão (Bessa
Freire1983:52).
Dessa forma se extinguiram centenas de línguas, não só por
esseverdadeiro “colonialismocultural”,massobretudopelaex-
tinçãofísicadessespovos.
Ocorreentãonovaimposição.Acomunicaçãocomosíndiose
mestiçosdaAmazôniaporpartedosadministradoresportugue-
sestinhaquepassarporumaintermediação:ajesuítica.Issodava
aosmissionáriosumcontroletotaldeladoalado.Em1727,orei
dePortugalproíbepordecretoousodalínguageralatémesmo
nasaldeiasindígenas(Freireop.cit.:56).Eratardedemais;onheen-
gatu havia se expandido por toda a Amazônia. Até os escravos
africanosfalavamogeral.
Comoadventodaerapombalina,aescravidãoindígenaéabo-
lida–noplanogeral,nãonoreal–eosjesuítassãoexpulsosdo
Brasil.Arepressãoquesefizeraantesàsinúmeraslínguasnativas
daAmazôniapassaasermovidaaonheengatu.Entretanto,como
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 161
assinalaFreire,muitomaistarde,nomovimentodaCabanagem
(1834-1840),osrevoltosostinhamemcomum,“alémdasituação
deopressão,ofatodefalaremonheengatu”(1983:65).
A restauração administrativa que se segue à Cabanagem co-
locaênfaseaoaportuguesamentocompulsóriodaAmazônia.O
nheengatupassaaserconsiderado“línguapobre”,damesmafor-
maqueas“línguastravadas”ohaviamsido.Nasescolasensina-
-sesomenteemportuguêsaalunosquefalavamapenasalíngua
geral.OaportuguesamentodaAmazôniasedá,contudo,como
boomdaborracha,quandoafluemàregiãocentenasdemilhares
denordestinos,muitostragadospelaprecariedadedascondições
devidanosseringaiseàsuainadaptaçãoàflorestaamazônica.
EmSãoGabrieldaCachoeira,nomédiorioNegro,aindaouvi
falaronheengatu,em1978,depreferênciaaoportuguêsporpes-
soasidosasnaturaisdolocal.
d) Arte indígena e arte popular
São muito antigas e controvertidas as discussões sobre a ca-
racterizaçãodaarte:erudita,popular,primitiva,indígena,negra,
pré-colombiana,orientaletc.Algunsespecialistasopinamqueo
conceitonãopodeseradjetivado.14Entretanto,comonemtodas
asmanifestaçõesestéticasdegruposétnicos–apinturacorporal,
porexemplo,nocasodoíndiobrasileiro–podemserenglobadas
nocamposemânticodoquesechamaartesanatooufolclore,o
títulomepareceválidonopresentecontexto.Trata-sedeformas
deexpressãodaculturaindígenaedaculturapopular, frutode
experiências acumuladas por gerações nesse campo específico
do conhecimento e da prática social. Elas entranham procedi-
14 Aessepropósito,remetooleitoraumadiscussãooferecidaporNestorGarciaCanclini(1983).
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o162
mentosecaracterísticasquesingularizamumaproduçãoestéti-
ca,nãoapenasporsuaconcepçãoformalmastambémpeloseu
significadointrínseco.
Num depoimento sobre etnologia e estética, Lévi-Strauss
(1982)afirmanãocrerque,noâmbitotribal,
a arte ocorra como um fenômeno completamente sepa-
rado como ele costuma ser em nossa sociedade. Nessa
sociedadetudotendeaseseparar:aciênciasedesligada
religião,areligiãosedesligadahistória,eaartesedesliga
detodooresto.Nassociedadesestudadaspelosetnólogos,
evidentemente, tudo isso se encontra unificado (C. Lévi-
-Strauss1982:24).
EmoutrotrechodessaentrevistadadaaMódulo,Lévi-Strauss
menciona os preços “extraordinariamente elevados” que alcan-
çamadornosplumáriosdeíndiosdoBrasilcentralnosleilõesde
Parisedeoutrascapitais,lamentando,aomesmotempo,osaldo
irrisórioquecontemplaosprodutoresnessetipodemercantili-
zação. Refere-se, também, ao novo sentido – “arte de expressão
moderna”–queassumiuadosíndiosdoCanadáparaosquais“se
organizamexposiçõesnasgaleriasdearte”(ibidem).
Estudosrecentesdearteindígenaeartepopulartêmdadorele-
votantoà“expressão”quantoao“conteúdo”dessasmanifestações
estéticas, caracterizando ambas como veículos de comunicação
da identidade cultural dos grupos humanos que as cultivam.15
Essa nova abordagem promete uma combinação fecunda entre
forma e significado, entre “textos visuais” e “textos verbais”, na
conceituação de Nancy Munn (1973: xx). Mormente no que se
15 UmaanálisecríticadessesestudospodeserencontradaemB.Ribeiro(1986:
15-28)arespeitodaarteindígenaeemLéliaGontijoSoares(1984)comrefe-rênciaàartepopular.
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 163
refereàartegráfica,noâmbitodesociedadesindígenas,osistema
derepresentaçõesadquireocaráterdelinguagemvisual.Arela-
çãoentrearepresentaçãoeoseureferente,entretanto,nãopode
serarbitrária,esimicônica.Issocaracterizaosistemacomouma
iconografia.
Nessesentido,oquepodeparecer“geométrico”ou“abstrato”
é na verdade “figurativo”, porque dotado de conteúdo semân-
tico. Por outro lado, essas representações iconográficas têm um
carátermnemônicoeestãoprofundamenteenraizadasnavivên-
cia e nos enredos míticos tribais. Com efeito, as manifestações
mágico-religiosas e a rede de relações sociais dos povos ágrafos
seexpressamatravésdaarte.Poressavia,comunicam-seideiase
comportamentos,cujadecodificaçãosósetornapossívelatravés
doprofundoconhecimentodaorganizaçãosocial,dacosmologia
edeoutrosaspectosdaculturaaosquaisaarteintimamentese
vincula.
Oestudodaartetribal,dentrodessesparâmetros,vemdemons-
trandoafantasiaeariquezademotivosmíticosexpressosatravés
dos símbolos. O suporte físico em que esse ato de expressão se
manifestaé,namaiorpartedasvezes,oprópriocorpo.Representa
uma segunda pele, “a pele social” que categoriza o indivíduo
comopessoa(T.Turner1980).
Analisandoosignificadodegrandevariedadedeornamentos
corporaisentreosXikrin,grupoKayapósetentrionaldafamília
linguísticajê,TerenceTurnerafirma:
Osadornoslabiais,auriculares,oestojopeniano,ocorte
de cabeleira, as faixas tecidas de algodão para as pernas e
osbraçoseapinturacorporalconformamumalinguagem
simbólicaqueexpressaumaamplavariedadedeinforma-
çõessobreostatussocial,aidadeeosexo.Comolinguagem,
noentanto,elatransmitenãomeramenteumainformação
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o164
deumaoutroindivíduo,senãoque,numnívelmaispro-
fundo,estabeleceumcanaldecomunicaçãodentrodoindi-
víduo,entreosaspectossociaisebiológicosdesuapersona-
lidade(Turner1969:59).
O mesmo raciocínio se aplica à sociedade ocidental, como
mostraCanclini(1983:30):“Ascaracterísticasdaroupaoudocar-
rocomunicamalgodenossainserçãosocial,oudolugaraoqual
aspiramos,doquequeremostransmitiraosoutrosaousá-los.”
Contraditoriamente,apechade“selvagem”queincidesobreo
índiobrasileiroprovém,emgrandeparte,desuanudezedeseus
ornamentos corporais. A América tropical não pede agasalho,
reclamonaturaldosclimastemperadosefrios.Tampoucomove
aohabitantenativoqualquerresquíciodepudor,dequedecorre
anecessidadedeohomemvestir-se.Emvezdisso,oindígenadas
regiões tropicaisornamentaocorpocomtintas,arabescos,ade-
reçoseplumas.Apinturadocorpotemporobjetivoembelezá-lo
eprotegê-locontrapicadasdemosquitoseforteinsolação.E,so-
bretudo,comovimos,parasimbolizarnaprópriapeleoemblema
étnico, a insígnia de participação tribal ou clânica ou, ainda, a
condiçãosocial,sexualeetária.
A cândida nudez do índio, registrada pelos cronistas desde
1500,paradoxalmentetambémfoiobjetodeencômiospelosfiló-
sofos seiscentistase dos séculos posterioresque viam nela e na
paisagemedênicaarevelaçãodabondadenatural,da inocência
original,doparaísoperdido.16
Nocampodasexpressõesgráficaseplásticas,acriatividadeesté-
ticadoíndiobrasileiroseestende,alémdocorpo,àornamentação
16 Sobreessetema,aidealizaçãodoíndio,ver,entreoutros:Oíndioearevolu-çãofrancesa,deAffonsoArinosdeMelloFranco(1937)eVisãodoparaíso,deSérgioBuarquedeHollanda(1969).
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 165
davivendaedosobjetos.Trata-sedeumareiteraçãodemotivos
e significados semânticos aplicados ao embelezamento da casa,
dacerâmica,àestruturadostecidosetrançados,àpirogravurada
superfíciedascuias,àpinturadosutensíliosdemadeiraedosim-
plementosdetrabalho.Essaiconografiaconferehomogeneidade
visual ao universo tribal que milita em favor da singularização
étnica.
Referindo-seàFrança,AndréMalrauxafirmou,certavez,que
“não existe mais arte popular, porque não há povo”. Percebe-se
que Malraux procurou distinguir “povo” de “massa”, ou seja, a
populaçãodasgrandescidadesdescaracterizadapeloscanaisde
comunicação – rádio, televisão, cinema – e, por esses veículos,
pelocolonialismocultural.Todavia,nasvastasregiõesinteriores
doBrasilsubsistemmodosdevidaquetêmpermitidoasalvaguar-
dadofrescoredaespontaneidadedasartespopulares.
Não há como discordar, porém, de Capistrano de Abreu
quandoacentuaquenuncachegouahavernoBrasilumaarte
nacional, como“expressãoconscientedopovo”.Escrevendohá
maisdeumséculo,em1876,argumenta:“Enãosendoexpressão
conscientedopovo,nãopodiaexercerinfluênciasobreele,nem
deseucontágioreceberacolaboraçãofecundante”(C.deAbreu
1976b:22).
Umséculodepois,DarcyRibeiro (1978)classificaasculturas
como
maisoumenosintegradas,conformeograudecongruência
interna de seus componentes; culturas autênticas, porque
seu conteúdo corresponde aos interesses de desenvol-
vimento autônomo das sociedades que as detêm. E por
oposição(fala)deculturasespúrias,quandointegram,nas
compreensõescoparticipadas,elementosdejustificaçãodo
domínio exógeno ou de deformação da própria imagem.
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o166
E,ainda,desituaçõesdemarginalidadecultural,quandoos
modosdeparticipaçãonaculturadecertosestamentosda
sociedadesãotãodiferenciadosecontrapostoscomrespei-
to aos do grupo dominante que sua consciência social é
altamentediferenciadaeseuprópriomododesertorna-se
objetodediscriminaçãopelosdemais,ocasionandotensões
efrustrações(D.Ribeiro1978:130).
As populações aborígines e africanas eram portadoras, ori-
ginalmente, de culturas autênticas e integradas, tal como aci-
ma definidas. Mas, ao serem submetidas ao rolo compressor da
escravidão e da opressão colonial, foram deculturadas, processo
queantecedeuodeaculturaçãoanovasformasdevida,valores
ecostumesqueforamcompelidasaadotar(op.cit.:131).Aetnia
embrionária,resultantedesseamálgama,quedepoisamadurece
àcondiçãodeetnianacional,surgecomoumaculturaespúriae
nãointegrada(ibidem:132).NaopiniãodeD.Ribeiro,foiatravés
dacriatividade“dascamadassubalternasecomoculturavulgar”
queasociedadebrasileiraelaborouastécnicasadaptativasneces-
sárias à sobrevivência; as formas de associação para o trabalho
produtivoeoconvívio;oscultossincréticos,areformulaçãode
mitoselendas;eaproduçãoartísticaparaatenderàsnecessidades
defruiçãoespiritualeestéticadasamplasmassasdapopulação
(op.cit.:143).
Paraacamadadominante,brancaeminoritária, impregnada
de preconceitos contra a terra e os povos de cor, nada do que
ostentasse a marca nacional e popular tinha valor. A alienação
intelectualeartísticadeseuestratoeruditolevou-aaimitarea
“transplantarideiasevaloresalheios”,quesemanifestamnaar-
quitetura,nasletraseartes.“Apesardisso,àsvezesexibiatraços
de originalidade, na medida em que se impregnava, contra sua
vontade,deconteúdoslocais”(D.Ribeiro1978:144).
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 167
Só recentemente, as criações artísticas dos chamados “povos
primitivos”edasclassesproletáriasvêmabrindoe,aospoucos,
ganhando o espaço reservado tradicionalmente à arte erudita.
Não raro essas obras são apropriadas sem que se dê crédito ou
compensaçãoaoartistaanônimo.Marchandsnegociampeçasde
artesanatoindígenaepopular,auferindoaltoslucros.Opúblico
consumidordessatouristart,deproveniênciatribaloudascama-
dasruraiseurbanasdebaixarenda,aprecia,porumlado,oexotis-
modessasobrase,poroutro,opoderinventivo,osaboringênuoe
atémesmosuarusticidade.
Essa nova sensibilidade estética pode ser atribuída a vários
fatores:1)éumareaçãoàtendênciauniformizadoraquecontami-
nouacivilizaçãomoderna;2)éumatentativamercadológicade
diversificaraofertadebensdeconsumo,dirigidaprincipalmente
àindústriaturísticaecultural.Nesseprocesso,aproduçãoarte-
sanal se modifica, extravasando as pautas que permitiam antes
“estabelecer sua identidade e seus limites” (Canclini 1983: 51).
Essaquestão,segundoesseautor,“fazpartedeumacrisegeralde
identidadequeexistenassociedadesatuais”(ibidem).
Nesseterreno,aculturaindígenatendeasituar-senomesmo
patamardaculturapopularporqueresultamsersubalternasem
relaçãoàculturahegemônica,emborainterdependentesporque
inseridasnomesmosistemasocial.
Noensaio intituladoCulturaspopularesnocapitalismo,exem-
plificadas com o caso mexicano, que venho citando, Canclini
(1983)focalizaascontradiçõeseconflitosentreasduasvertentes.
Criticaoevolucionismounilinear(1983:19),bemcomoodiscur-
sorelativistaque,emboraseesforceporsuperaroetnocentrismo,
nãoexplicaadesigualdadeentreasculturas(1983:25-26).Uma
diferença substancial entre a cultura indígena e a popular, por
umlado(quenoMéxicoseconfundecomaculturacamponesae,
porisso,Canclinirefere-seaelascomo“culturaspopulares”),ea
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o168
culturahegemônica,poroutro,éque,noprimeirocaso,elasper-
tencemrealmenteatodose,nosegundo,sãoapenasformalmente
oferecidasatodos,sóestandoaoalcancedaquelesque“dispõem
demeiosparadelaapropriar-se”(Canclini1983:38).
O autor alude a uma tipologia vigente em que se distingue
a arte “culta” da arte “de massas”, da arte “popular”. A primeira
corresponderiaaos “interessesegostosda burguesiae dos seto-
res cultivados da pequena burguesia”; a segunda, “aos setores
médioseaoproletariadourbano”;eaterceira,“aoscamponeses”
(Canclini1983:51-52).Comosevê,essatipologiaassociaaarte(e
oartesanato)adistintasclassessociais.Canclinienfatiza,porém,
apermeabilidadeentretodaselas,namedidaemqueentendeas
culturaspopularescomo“oresultadodeumaapropriaçãodesigual
docapitalcultural,(asquais)realizamumaelaboraçãoespecífica
desuascondiçõesdevidaatravésdeumainteraçãoconflitivacom
ossetoreshegemônicos”(1983:34-44).
Essadefiniçãoseafasta,conformeasseveraoautor,das“inter-
pretaçõesimanentes,formuladasnaEuropapelopopulismoro-
mânticoe,naAméricaLatina,pelonacionalismoeindigenismo
conservadore,ainda,dopositivismoque,preocupadocomorigor
científico,esqueceuosentidopolíticodaproduçãosimbólicado
povo”(op.cit.:44).
O empenho de Canclini é, sobretudo, analisar os mecanis-
mos e os defeitos da expropriação dos produtos simbólicos das
populações indígeno-camponesas no México. No que se refere
às políticas estatais de fomento à produção artesanal, o autor
demonstraque,porumlado,elassãooferecidascomosímbolos
deidentificaçãonacionale,poroutro,comoformadegeraruma
complementaçãoderendanocampoparaimpediroêxodorural.
Comefeito,10%dapopulaçãomexicana(cercade6milhõesde
pessoas)seocupacomplementarmentedeatividadesartesanais
que,semembargo,representamapenas1%doprodutonacional
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 169
bruto(Canclini1983:61).Nessesentido,atesequedefendeéade
que“O artesanato–bemcomoas festase outrasmanifestações
populares – subsiste e cresce porque desempenha funções na
reproduçãosocialenadivisãodetrabalhonecessáriasparaaex-
pansãodocapitalismo”(1983:61-62).
Nesseprocessoaumentaonúmerodeartesãosqueproduzem
paraocomércioediminuiaproduçãoartesanalparaautoconsu-
mo. Isso se explica, segundo Canclini, por quatro fatores: 1) “as
deficiênciasdaestruturaagrária”;2)“as(novas)necessidades(ou
motivações)deconsumo”;3)“oestímuloturístico”;4)“apromo-
ção estatal” (idem:62). Quanto ao fator turismo, o autor calcula
que,noMéxico,18%dosgastosdecadavisitanteestrangeirosão
feitosparaaaquisiçãodebensartesanais(Canclini1983:68).
Isso denuncia o aspecto híbrido da produção artesanal, de
talmodoqueseuestudonãopodelimitar-se“àpreservaçãodas
formas, técnicas e organização social nas quais a identidade
étnicaestáarraigada”(op.cit.:79).Porumlado,opinaCanclini,
resulta de um desenvolvimento autônomo, com uma tecnolo-
gia e uma iconografia peculiar, isto é, um estilo etnicamente
definido;poroutro,éuminstrumentodeafirmaçãoideológica
eaomesmotempodepromoçãomercantilqueserveaosinte-
ressesdoEstadoedaculturahegemônicaquedeleseapropria.
Emfunçãodisso,Cancliniprevinecontraa“tentaçãofolclorista
deenxergarapenasoaspectoétnico,considerandooartesanato
comoumasobrevivênciacrepusculardeculturasemextinção;
ou,comoumareaçãoaisso,oriscodeisolaraexplicaçãoeconô-
mica,eestudá-locomoqualqueroutroobjetoregidopelalógica
mercantil”(1983:71).
Visto sob essa dupla ótica, o artesanato indígena popular
apresentaasseguintescaracterísticas.Porumlado,constituiuma
barreiraderesistênciadoétnicoemfacedouniversal.Comefeito,
segundo o testemunho de Canclini, “o artesanato teria podido
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o170
resguardarmelhoraidentidadearcaicaqueseevaporavanores-
tantedavidasocial”(1983:75).Poroutrolado,amarcaétnicase
dissolvenamedidaemqueoobjetoartesanal,transfiguradoem
objetoestéticoeemmercadoria,chegaaomercadoconsumidor.
Passaaser“artesanatodeMichoacán”,unidadepolíticaenãoét-
nica e, nos casos extremos, Mexican curious. Ou seja, exalta-se o
exóticoesereduzoétnicoaotípico(Canclini1983:85-86).
Mesmo nas lojas patrocinadas pelo Estado mexicano, “não
seafixanenhumcartazqueasidentifiquenemfichasqueinfor-
memsucintamenteaorigemmaterialeculturaldasuaprodução
e o sentido que elas possuem para a comunidade que as criou”
(Canclini1983:86).Omesmoocorrenocasodeespetáculosfol-
clóricosorganizadosparaturistasemquesetransfiguramasfes-
taspopulares(idem:87).
Comosevê,otrânsitodoartesanatotradicionalpelasfasesde
produção,circulaçãoeconsumo,istoé,doseulugardeorigemao
pontodevendae,daí,àhabitaçãourbana,descontextualizaeal-
teraseusignificado:devalordeusoavalordeconsumo.Oganho
artesanal,emboraprecário,contribuitambémparaocidentalizar
oprodutorindígeno-camponês,namedidaemquelhepermiteo
acessoabensindustriais,igualmentepejadosdesímbolosesig-
nificados:rádios,roupas,utensíliosetc.Dessaforma,apopulação
ruraléincorporadaeconômicaeideologicamenteaomercadona-
cional,apagandopaulatinamenteasdiferençasesingularidades
étnicas.
Oprocessoatuademodoasintonizargostoseinteressescomo
mecanismosdecomplementaridade,afimdeocultarasdisfun-
çõesecontradiçõessociais.Nessesentido,oefeitonãoéapenas
ideológico e mercantil. É também político, conforme acentua
Canclini.Trata-sedeconferirumanovafunçãoaopassado,inter-
conectando-oaopresente.Tendoemvistaaresistênciaétnicaea
incapacidadedasociedadenacionaldeabsorverascomunidades
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 171
arcaicas,oferecendo-lhesumníveldevidadigno,aestratégiada
classe hegemônica é de caráter ambíguo; preservacionista, porum lado, integracionista, por outro. Essa política é claramentevisualizadanaproblemáticaartesanal(Canclini1983:111).
Somentenamedidaemqueosprotagonistasindígeno-campo-nesesseassenhorearemdosmecanismoseespaçosqueenvolvema produção, a circulação e o consumo de seus produtos, afirmaCanclini, “teremosumaculturapopular:umaculturaquesurjademocraticamentedareconstruçãocríticadaexperiênciavivida”(ibidem). Issonãosignifica idealutópicoouvisãomessiânica.Oqueseanelaéoesforçodacoesãoedaidentidadeétnicaafimdealcançaraautossuficiênciaeconômicaeaconduçãodoprocessoculturale,emconsequência,alibertaçãodaopressão.
TomeioexemplomexicanoparailustraropapeldoartesãoedoartesanatotradicionalnaAméricaLatina,porqueeleoferecemaiornúmerodeexplicações,comoasenfeixadasnotrabalhodeNestorGarciaCanclini,eporqueoMéxicoéopaísquemaisinveste nesse setor. E, ainda, porque, no caso do Brasil, ocorreouocorreráamesmatendência.TalcomonoMéxico,aexpan-sãodomercadoartesanalvisaaumpúblicoquebuscaadquirirsímbolosdedistinçãosocialeque,emconsequência,exigeau-tenticidade e perfectibilidade; e, ainda, compradores à cata desuvenires,oqueconduzàmassificaçãodaproduçãoeàquedada qualidade. Nessas condições, perdem-se as constâncias e asreiterações que definem o estilo e permitem identificar os ob-jetos;dá-seasimplificaçãoouestilizaçãodapeçaparatorná-lavendável.
Nessaalturacabeperguntar,comofazCanclini,oqueseenten-deporartesanato.“Serproduzidoporindígenasoucamponeses?Asuaelaboraçãomanualeanônima?Oseucaráterrudimentarouaiconografiatradicional?”(1983:51).Oautorlevanta,também,outraquestãoimportante:oscritériosdeavaliaçãodoqueseen-tende por arte. Tais critérios assinalam, em nossa sociedade, “o
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o172
predomíniodaformasobreafunçãoeaautonomiadosobjetos”
(op.cit.:135).
Trata-se,comosevê,deestereótiposclassistaseeurocêntricos,
namedidaemqueprivilegiamobrasacessíveisapenasàscama-
dasabastadas.Enquantoessesconceitosnãoforemrevistos,afir-
maCanclini,éinócuotentarinserirnosparâmetrosocidentaisos
produtosindígeno-camponeses.Prefere,porisso,falardecultura
e não de arte popular, uma vez que essa última noção é menos
abrangente,restringindo-seàbelezaeàcriatividade.Aopassoque
cultura popular remete à “representatividade sociocultural”, ou
seja,à“interpenetração”entreobjetosesistemassimbólicos”,eao
“processosocialporonde(oobjeto)circuladesdesuaprodução
atéoconsumo”(Canclini1983:134,137).
Isso implica, por um lado, o não congelamento de formas,
técnicasemateriaisatravésdosquais,emalgummomentohis-
tórico, populações indígenas ou camponesas se exprimiram.
Exemplificando com um caso brasileiro, diria que os desenhos
feitos em guache sobre papel por dois artistas indígenas, os
Desana Luiz Lana e Feliciano Lana, são uma forma de transpor
umanarrativamíticaoralparaumalinguagemgráfica.Equees-
sesdesenhos,destinando-seaumpúblicoexterno,sãoafeiçoados
àsuacompreensão,inclusivecomumtextoescrito(cf.B.Ribeiro
1986ms).Implica,poroutrolado,anãointerferênciadatecnocra-
ciaestatalque,comasmelhoresintenções,propõeaalteraçãonos
produtosartesanaisdeacordocomogostodocomprador.
MasopontonevrálgicoseencontranaconclusãodeCanclini
quando afirma: “A crise artesanal não pode ser solucionada de
modo separado do resto da problemática agrária” (1983: 140), a
qualsevinculaaosistemacomoumtodo.
Comovimos,genericamentefalando,ofomentodaprodução
artesanal provém de dois fatores: o ideológico e o mercantil. O
primeiro, que vem sendo chamado “nacionalismo cultural” ou
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 173
“identidadenacional”,utilizaacriatividadedosestamentosmais
pobresdapopulaçãocomoemblemasingularizadordanação.Ou
seja, valoriza os bens culturais de origem indígena ou popular,
porque tradicionais, não estereotipados, com caráter histórico,
regionalelocal.Entretanto,aconduçãoeosbenefíciosprovindos
dessaatividadeescapamaocontroledeseusartífices.Emvirtude
disso, o comércio artesanal tem contribuído muito pouco para
elevaroníveldevidadosseuscultores.Apesardessespercalços,
processa-se uma valorização das artes “não cultas”. O próprio
conceito de arte vem sendo redimensionado para deixar de ser
apanágiodoespíritocriadordaselitescultivadas.17
Essas reformulações também atingem outros campos da
arte,alémdosartesanais,comoaliteratura,amúsicaeadança.
No contexto urbano, surge no Brasil o fenômeno MBP (Música
PopularBrasileira),deinspiraçãonitidamentenacionalepopular.
Aliteraturaabraçaumatemáticavoltadaparaarealidadesocial
eumalinguagemmenosherméticaeformalqueadeoutrora.Os
ritmosedançaspopularesganhampalcoseaudiênciascadavez
maiores,aexemplodosconjuntosdeescolasdesambaenviados
aoexterior.
Trata-se,emtodososcasos,deumaartepoéticaporque,além
daexpressãoplástica, literáriaoumusical,entranhaumsignifi-
cadosocialelírico.Nessesentido,índiosecamadashumildesda
população,desdenhadosdesdesempredevidoaodébildesenvol-
vimentotécnicoeeconômico,passamaseradmiradosporsuas
manifestaçõesartísticas.Nocasodaspopulaçõesindígenas,sen-
doaparcelamaisfrágildasociedadenacional,omaisurgenteé
fortaleceroéthostribalparaquepossamsobreviverfisicamente.
Paraissoévitalsalvaguardarseusdireitosesuasexpressõescul-
turais,dentreasquaisaarte.
17 Arespeitodecomercializaçãodoartesanatoindígena,verB.G.Ribeiro1983c.
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o174
Conclusões: A questão indígena e o problema da terra
Este capítulo conclusivo procura delinear, a largos traços, a
imagemdoíndionaconsciêncianacionaleoseulugarnoBrasil
moderno.Noslimites,necessariamenteestreitos,destaanálise,é
ociosotentarumadenúnciadasiniquidadesperpetradascontra
ospovosindígenasaolongodahistória.Ouhistoriarapolíticaea
legislaçãoindigenistas–atéhojedúbiaseimprecisas–quepresi-
diramasrelaçõesentreíndiosebrancos.Ouainda,aclararostatus
jurídicodoíndiocomocidadão.Cabeenfatizar,contudo,queem
inúmeras instâncias – como ocorre em nossos dias – a questão
indígenaassumiuforosdequestãonacional.Agora,maisdoque
nunca,centradanoproblemadaterra.Aelesedarámaiorrealce,
situando-onoquadrodoarcaicosistemafundiáriovigente.
Vejamos,inicialmente,comoosantropólogosdefinemoíndio:
Indígena é, no Brasil de hoje, essencialmente, aquela
parceladapopulaçãoqueapresentaproblemasdeinadap-
tação à sociedade brasileira, em suas diversas variantes,
motivadospelaconservaçãodecostumes,hábitosoumeras
lealdadesqueavinculamaumatradiçãopré-colombiana.
Ou,aindamaisamplamente:índioétodoindivíduoreco-
nhecido como membro por uma comunidade de origem
pré-colombianaqueseidentificacomoetnicamentediver-
sa da nacional e é considerada indígena pela população
brasileiracomqueestáemcontato(D.Ribeiro1970:254).
Osproblemasdeinadaptaçãoreferidos–aosquaissedeveria
acrescentarodespreparobiológicoparaenfrentarasdoençasda
civilização–podemserassimresumidos:1)Acomunidadeindí-
genasedistingue–geralmente,masnãonecessariamente–por
determinados caracteres somáticos. 2) Compartilha expressões
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 175
culturais–língua,costumes,técnicas,crenças,formasdeorgani-
zaçãosocioeconômica–distintasdasociedadenacional.3)Possui
umterritóriocomum,geralmente isoladoousemi-isolado,cuja
posseeexploraçãoautônomasãocondiçãosinequanonparasua
sobrevivênciacomogrupoétnico.4)Possui liderançaspróprias,
semrepresentaçãoanívelnacional.5)Seusdireitoscomomino-
ria étnica são formalmente reconhecidos pelo Estado, mas, na
prática, desrespeitados sempre que entram em confronto com
interesseslocaisouregionais.
Noquetangeaoproblemadaterra,devemserdestacadosdois
aspectos.Emprimeirolugar,aterraéparaumatriboindígena“o
meiobásicodeprodução”.Emsegundolugar,oterritóriotribalé
o“sustentáculodaidentidadeétnica”(J.P.OliveiraFº1983:3).Em
funçãodisso,oterritóriotribalabrangenãosóaterranecessária
para as atividades agrícolas, de caça, pesca e coleta – designada
geralmenteáreadeperambulaçãodogrupo–,comotambémos
locaisdasantigasaldeiascomosrespectivoscemitérios,osluga-
ressagradosoumíticos,assinalados,emalgunscasos,cominscri-
çõesrupestresouacidentesgeográficos,quesimbolizamoslocais
de origem de seus ancestrais. Esses componentes simbólicos de
sustentação da identidade tribal, a par da adaptação ecológica
–nãoraromilenar–aumterritório, respondempeloapegodo
índioàssuasterraseexplicamsuadispersãoportodooterritório
nacional.
Essa é também a causa dos conflitos de terras com a fron-
teiramóveldasociedadenacionalque,emnossosdias,avança
pela Amazônia e o Centro-oeste. Um levantamento feito por
João Pacheco de Oliveira Filho (1984) informa a existência de
50litígiosdeterra,atingindo45gruposétnicos,dequeresulta-
ramprisões,intimidaçõesemorticíniosdeladoalado.Destes,
segundo Oliveira Filho, 23 conflitos envolvem fazendeiros, 11,
posseiros,nove,atividadesmineradoras,seis,aimplantaçãode
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o176
hidrelétricas e cinco, a construção de estradas que atravessam
territóriosindígenas.
Alegislaçãobrasileira–que,àépocadafundaçãodoServiço
deProteçãoaosÍndios(1910),podiaserconsideradaavançadaem
relaçãoàanterioreàprevalecentenorestodaAméricaLatina–se
consubstancianumartigodaConstituiçãoFederal(nº198)esua
regulamentação (Estatuto do Índio, Lei 6.001 de 1973). Garante-
se,poressaforma,apossedasterrasocupadasporgrupostribais,
independentemente de demarcação. Seu usufruto, entretanto, é
condicionado ao que, eufemisticamente, se chama “segurança
nacional”ou“desenvolvimentonacional”,emnomedosquaisse
podeatétransferirumatribodeumterritórioaoutro,oquevem
ocorrendoconstantemente.
Por outro lado, a legislação diferencia posse de propriedade.
Ouseja,assegura-seapossedosterritóriostribais,cujaexploração
deve reverter em benefício da comunidade indígena a que per-
tencem,ouintegrarofundoda“rendaindígena”gerenciadapela
FundaçãoNacionaldoÍndio(Funai).Oórgãotutelarpodealocá-
-laaoutrasáreasoudestiná-laàmanutençãodeseusservidores.
Emoutraspalavras,aexpectativaédequeaaçãoindigenistaseja
autofinanciável.Poroutrolado,apropriedadedaterra,registrada
emcartório,sópodeserconcedidaaindivíduosisolados(art.33,
Lei6.001);ouseja,aoíndiodesmembradodoseugrupo,emglebas
inferioresa50hectares,depoisdecomprovadosdezanosdeocu-
paçãoefetiva.Porfim,alegislaçãoprevêareversãoaodomínioda
Uniãodosterritóriostribais,porextinçãodogrupoousuainte-
graçãoàsociedadenacional.
Comosevê,aideologiacapitalistadoEstadobrasileiroadmite
aposse,masnãoapropriedadecoletivadaterrapelascomunida-
desindígenas.Etornaclaroqueacondiçãodeíndioétidacomo
etapaprovisóriaqueantecipaaintegração.Nessecaso,cessamos
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 177
dispositivoslegaisdetutela,deassistênciaeproteção,decorren-
tesdas“carências”assinaladas.
Os legisladores não procuraram ocultar esse desiderato. No
artigo1ºdaLei6.001,eleestáexplícito:“Art.1º.EstaLeiregulaa
situaçãojurídicadosíndiosousilvícolasedascomunidadesin-
dígenas,comopropósitodepreservarasuaculturaeintegrá-los,
progressivaeharmoniosamente,àcomunidadenacional.”
OEstatutodoÍndio(Lei6.001),aprovadoem1973,previaade-
marcaçãodetodasasterrasindígenasemcincoanos,istoé,em
1978.Paraqueelaseefetive,exige-seaidentificaçãodoterritório
tribal a ser feita segundo documentos históricos e etnológicos,
bem como o próprio testemunho de seus ocupantes índios; a
colocaçãodemarcosdemadeiradeleiecimento;aaberturade
picadasparaacompanhar as linhassecas;o registrono livrode
patrimôniodaUniãoenolivrodocartórioimobiliáriodacomarca
ondeselocalizamasterrasindígenas.E,porúltimo,ahomologação
pordecretodoPresidentedaRepública(cf.Lei6.001,art.19,§1º).Os
dadoscoligidosporOliveiraFilho(1983:12)indicamque,desde
acriaçãodoServiçodeProteçãoaosÍndios,em1910,apenas32%
dasterrasindígenasidentificadasforamdemarcadas,massomen-
te14,8%tiveramoprocessodehomologaçãoconcluído.
Amaiorpartedas terrasdemarcadas localiza-senasáreasde
alta concentração demográfica, isto é, naquelas de colonização
maisantiga:litoralesuldoBrasil,onde,segundodadosde1960
(R. C. Oliveira 1978: 102), localizava-se apenas 4,8% do total das
tribos(dezem205).Nãoobstanteademarcação,essesterritórios
acham-seemparteinvadidosouarrendadospelaprópriaFunaia
fazendeirosecamponesessemterra.Nessascondições,asreservas
indígenas,ilhadasnasregiõesmaisdesenvolvidasdopaís,cons-
tituem antes reservas de mão de obra do que territórios tribais
(OliveiraFilho1983:15,19).
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o178
Considere-seporúltimoque,segundoosdadosde1960referi-
dos,as169tribos,ou82,4%dototalde205entãoregistrado,que
viviam em zonas de baixa densidade demográfica, passaram a
experimentar,apartirdaqueladécada,enormepressãosobresuas
terras.Elaseintensificacomaabertura,apósaBelém-Brasília,da
Transamazônica, Perimetral Norte e o consequente movimento
migratório. Com efeito, o esgotamento da fronteira agrícola do
Paraná,aelevaçãodocustodaterraeamecanizaçãodasgrandes
lavourasdoSuldopaísdeterminaramumêxodoruralemdire-
çãoaoCentro-oeste,viaMatoGrossodoSuleGoiás,eaoNorte,
via fronteira maranhense, em direção ao Pará, Amazonas, Acre,
Rondônia,AmapáeRoraima.Comotodossabem,aocupaçãovem
sendofeitanãomedianteadistribuiçãodelotesfamiliares,mas
simdegrandeslatifúndios,afortesgruposnacionaisemultina-
cionais,dedicadosàagropecuáriaeàexploraçãomineradoraou
madeireira.Naverdade,trata-sedareservadedomíniodeimensas
extensões de terras, do tamanho de países europeus, para espe-
culaçãoeparaefeitodeincentivose isençõesfiscais(cf. Joséde
SouzaMartins1981).
Expulsosucessivamentedasterrasquevaidesbravando,opos-
seiroavança“sobreterrastribais,queperdedepoisparaocapital,
paraasfazendasegrandesempresas.Ele‘limpa’oterrenodoín-
dioparaaempresaquevirámaistarde.Porissoé,comfrequência,
estimulado por fazendeiros ou funcionários governamentais”
(Martins1981:116).
Comosevê,oproblemadaterracoloca-se,comigualmagnitu-
deedramaticidade,paraoíndioeparaohomemdocampo.Eleé
maissensível,nocasodoíndio,pelosmotivosassinalados:carên-
ciasimanentesàcondiçãosilvícolaeseuapegoaumterritório,
naduplaqualidadedesustentodasobrevivênciaesustentáculo
da identidade tribal. Conclui-se que, como não existe um lugar
paraohomemruralnaestruturafundiáriavigente,anãoserna
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 179
escalamaisbaixadapirâmidesocial,domesmomododeixade
haverumlugarparaoíndio,excetonumacondiçãoigualmente
degradante.
Ditasituação,quevemdosprimórdiosdaformaçãodanacio-
nalidadebrasileira,searrastaatéhoje.Suasuperaçãomalsevis-
lumbranosdiasquecorrem.Aaberturapolíticapermitiuquega-
nhasseespaçonosmeiosdedivulgação,sensibilizandoaopinião
públicaecolocandoemxequeaconsciênciaculposadaNação.Só
assimseexplicaavitóriadealgunsgruposindígenasemdefesada
integridadedoseuterritório.
Édeseperguntar:emquemedidaoíndioéconsideradocida-
dãobrasileiro?Emrecenteartigo,EuniceR.Durhan(1983)coloca
comacertoaquestão.ArgumentaqueoEstadobrasileiro–como
o americano em geral – finge desconhecer as peculiaridades
e os direitos dos povos colonizados, em nome de uma unidade
nacionalnoplanopolítico,culturaleracial.Apropósitoescreve
Durhan(1983:13):“Tambémdopontodevistateórico,aquestão
jamaisfoitratadaadequadamente.Seasociologiaeaciênciapo-
líticadesenvolveramumaformulaçãosobreasrelaçõesdeclasse,
semprerelegaramoproblemadasminoriasétnicasaumaposi-
çãosecundária,ouotrataramcomoepifenômeno.”
Afirma,emcontinuação:“Assim,nosdefrontamoshojecoma
necessidadedeatuaremrelaçãoaoproblemaindígenaederefle-
tirsobreelesemternemosmecanismospolíticosnemoinstru-
mentalteóricoparaguiaraaçãoeareflexão.”
Essevazioteóricoprevaleceuatémesmoentreosantropólo-
gos,afeitosaocontatocomoíndio,e testemunhas,por isso,do
seu empenho desesperado em resistir e permanecer. Não cabe
alongaressadiscussão,maslembrarqueaideiadequeohomem
primitivo era dotado de uma “mentalidade pré-lógica”, levanta-
da por Lucien Levy-Brühl, ganhou numa certa época, aberta ou
veladamente,adeptosnosmeiosacadêmicos. Issosemfalarnos
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o180
antropólogos e sociólogos que, privilegiando reiteradamente o
exótico,odissemelhante,emlugardohumano,docomum,ofe-
receramlastroparaasteoriasracistas.(Ver,porexemplo,Manuel
Bomfim1931:245ess.)
Tudoissocontribuiuparaaformaçãodeumaimagemdoíndio
que,naopiniãodeEuniceDurhan,foi“...exaltadaoudenegrida,
servindo,simultaneamente,comometáforadaliberdadenatural
ecomoprotótipodoatrasoasersuperadonoprocessocivilizató-
riodeconstruçãodanação”(1983:12).
Tantonocampoideológicoquanto,eprincipalmente,nopolí-
tico,abatalhapeloqueseconvencionouchamar“causaindígena”
vemsendotravadadiaadia,passoapasso.Aclassedominante
recusou-sesistematicamenteareconhecerqualquercontribuição
positivadoíndioàculturabrasileira.Essarecusafoiomotorideo-
lógicoemoraldodespotismo,emrelaçãonãosóaoíndiocomo
aonegro.Aacobertá-lo,estavaamísticadademocraciaracial,da
confluênciaharmoniosadastrêsraçasparaaformaçãodopovo
brasileiro.
Namedidaemqueamãodeobraindígenasetornavadesne-
cessáriaparaaimplantaçãodoprojetonacional,oíndiopassoua
servistocomoobstáculoaoprogresso.Ou,maispropriamente,à
expansãodaempresamercantilprimeiro,capitalistadepois.
Emnossosdias,aquestãoindígenalevantaváriasindagações.
Em primeiro lugar uma reflexão sobre a unidade nacional. Em
alguns setores governamentais, sobretudo das Forças Armadas,
chega-seafalardaexistênciade“nações”dentrodanação.Istoé,
comoseamanhãasmicroetniasindígenasremanescentespudes-
semoudesejassemreivindicarodesmembramentodoterritório
nacionalparaestabelecerenclavespoliticamenteautônomos,ou
transferi-loapaísesvizinhos.
Essa visão deturpada da condição indígena, excluída da
nacional, está claramente expressa no projeto “Calha Norte”,
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 181
formulado“porumgrupointerministerial,formadoporsuges-
tãodoConselhodeSegurançaNacionalemjunhode1985”(Cf.
“Calha Norte” Manuela Carneiro da Cunha, Folha de São Paulo,
24-11-1986).
Aparentemente,pretende-semilitarizarecolonizar,comnão
índios,afaixade6.500kmdeextensãoqueseparaoBrasildos
paíseslimítrofes,ocupadamilenarmenteporgrupostribais,al-
guns,comoosYanomami,praticamentevirgensdecontatocom
a sociedade nacional. Entre outras medidas, o projeto propõe
“à Funai redobrar esforços na região Yanomami. Há bastante
tempo”,afirma,“observam-sepressões,tantonacionaiscomode
estrangeiros,visandoconstituir,àcustadoatualterritóriobra-
sileiro e venezuelano, um Estado Yanomami” (Jornal do Brasil,
31-10-1986).
Trata-seumavezmaisdeumsofisma.Nãoobstanteteremas
característicasdenações,nosentidodepossuíremumaorgani-
zação socioeconômica, uma língua e uma cultura com a qual
seidentificam–aculturaAsurini,porexemplo,compartilhada
por53 indivíduosapenas–,é impensávelquegruposdessa,ou
mesmo de maior envergadura populacional – os Tukuna, por
exemplo,comumtotalde18.000 índios–,dotadosderecursos
tecnológicos de baixa energia, possam vir a organizar-se como
estadosautônomos.
Contraditoriamente,alega-sequeosíndiosreivindicamter-
ritórios demasiado grandes em relação ao seu cômputo popu-
lacional.Paraargumentar, recorro,novamente,a JoãoPacheco
deOliveiraFilho.Notrabalhocitado,oautor(1983:19)projeta
a relação hectares/índios para as terras já demarcadas, consta-
tandoamédiade217,1ha/habitante.Poroutrolado,“ovolume
total das terras indígenas” representaria “entre 8,37% e 9,68%
do estoque total de terras dos estabelecimentos produtivos do
país” (op. cit.: 20-21). Fazendo-se uma projeção das tendências
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o182
prevalecentes, esse volume pode ser calculado entre 30,9 e
35,8milhõesdehectares(ibidem).
Considerando-se que essa área seria destinada a 0,12% ou
0,16%dapopulaçãobrasileira–queéaquantomontaapropor-
çãodapopulaçãoindígena(cercade200milalmas)emrelação
àtotal–equeosíndiossãocomprovadamenteconservacionis-
tas, deduz-se que, em relação à extensão territorial brasileira,
essa proporção de reservas naturais é relativamente pequena,
principalmentesecomparadaàáreade40milhõesdehectares,
apropriadapor152empresasnaAmazônia,queempregamtão
somente 313 pessoas e não dispõem de nenhuma cabeça de
gado.Essavastaextensãoaproxima-sedototalde“terrasculti-
vadas com lavouras no Brasil (50 milhões de hectares)” (Ibase
1985:20-22).
Não é somente contra a diversidade cultural indígena, nas
proporçõesemqueelasemanifestanoBrasilatual,queseopõea
ideologiaintegracionistadoEstadobrasileiro.Ouapenascontra
ovultodasterrasocupadasporgrupostribais.Étambémcontra
aformadapropriedadecoletivadaterraque,comovimos,nãoé
reconhecidapelalegislação.Essaterceiraquestãoé,naverdade,a
primeiraemmagnitude.Admite-sequeoíndio,naqualidadede
legítimoeprimitivodonodoterritórionacional,tenhadireitode
usufruí-lo,sobcertascondições.Ouseja,contantoqueessedireito
nãocolidacomos“interessesnacionais”;edentrodaexpectativa
dequeasmesmasterrasretornemaodomíniodaUnião,quando
cessadaacondiçãotribal.Masmesmoessedireitocondicionado
énegadoaonãoíndio,aocidadãocomum.Estesótemacessoà
terra mediante a compra, desde a lei de terras promulgada em
1950(Lei601).Emfunçãodisso,oposseiro,oparceiro,quandoem
contatocomoíndio,sesenteusurpado.E,emlugardeíndiose
camponesesestabeleceremumpactodeaçãocomum,secomba-
temmutuamente.FatoimportanteassinaladoporJosédeSouza
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 183
Martinséque,“Coincidentemente,nomesmoanoemquecessou
otráficodeescravosafricanos–1850–foipromulgadaachamada
LeideTerras,queproíbealivreocupaçãodeterrasdevolutas.(...)
NoBrasil,ofimdocativeirodoescravodácomeçoaocativeiroda
terra”(1982:104).
Dessaforma,concluioautor,oescravorecém-libertoeoimi-
granterecém-chegadoteriamsuaforçadetrabalhoconstringida
aserviçodolatifúndio.Monopolizadaaterra,monopolizara-sea
mãodeobra.
A quarta indagação é questionamento que os índios e as ca-
madasmaisconscientesdasociedadecivilfazemcomrespeitoà
tutela que a legislação prevê em defesa da integridade física do
índioedainviolabilidadedoseuterritório.Naverdade,oqueos
legisladores pedem à Funai é que previna rupturas demasiado
traumáticas,resultantesdocontatoindiscriminadocomasocie-
dadenacional,comoasocorridasatéopresente.Equeapressea
passagemdacondiçãodeíndioisoladoàdeintegrado.Nessemo-
mento,cessariam,nateoriaenaprática,asobrigaçõesprotecio-
nistasdoEstadobrasileiroparacomohabitanteaborígine.
Osideólogosefautoresdessalegislaçãonãocontavam,certa-
mente,comaresistênciadoíndioàincorporação,aqualtermina-
ria,deumavezportodas,como“problema”indígena.E,menos
ainda,comorecrudescimentonoíndiodesuaconsciênciaétnica,
àqualsesomahojeumaconsciênciapolítica,namedidaemque,
nodizerdeE.Durhan,osíndiosdeixamdeseruma“minoriaem
si”parasetornarem“minoriaparasi”(1983:15).
Com efeito, o índio que conhecemos hoje está deixando de
ser o homem da madrugada dos tempos, o grande vencido, o
eternofugitivo,ohumilhadoporderrotassucessivas,faladoade-
saparecer.Háalgunsanosseriainconcebívelimaginarumíndio
XavantenoCongressoNacional,índioqueviuohomembranco,
pelaprimeiravez,quandojáadolescente,umavezquesuatribo
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o184
sófoicontatadaem1946.OdiscursododeputadoMárioJuruna
encontroueconaconsciênciadopovonamedidaemque:1)exte-
riorizavaorgulhoporsuasorigens;2)eradespojadodeverborra-
giaedesofismas;3)confirmavaaimagemdosilvícolaincultoe,
porissomesmo,puroeautêntico,que,deliberadamente,deixava
decensurarseuspensamentos.Dentrodessadimensão,Jurunae
outroslíderesindígenasforam,porumperíodo,avozdosqueja-
maisousaramquestionar,emuitomenoscontestar,aautoridade
constituídaeaordeminstitucionalvigente.
Aimagemdoíndioestáassociada,portanto,àdaliberdade,do
autodicernimento,conformeacentuaEuniceDurhan(1983:18).
IssoevocaasmotivaçõesdosmigrantesrecentesàAmazônia,“do
ponto de vista das pessoas, das famílias, dos pequenos grupos”,
entre as quais Otávio Velho menciona a noção de “liberdade, fa-
zendopareseopondoàdecativeiro”(1984:35,36).SegundoOtávio
Velho, embora possa parecer irracional ou ilógica, a “volta ao
cativeiro”nãoétotalmentedescartadaporessesmigrantes.Uma
dasexplicaçõesouvidaspeloautor,numacidadezinhanosuldo
Pará,foiadeque:“comohoje,esobretudonaAmazônia,pretose
brancosestãomuitomisturados,nãoémaispossíveldistinguir
uns dos outros” (1984:37). Nesse sentido, “a ameaça de um cati-
veiro,sobasmaisdiversasformas,eabuscadeliberdade,mesmo
relativa,provisóriaeameaçada–representada,porexemplo,pelo
chamadotrabalhoautônomo–estão,muitasvezes,presentesna
decisãodemigrar”(ibidem).
Ora,comaprogressivaerradicaçãodopequenositiante–pro-
dutor autônomo – e com a “colonização dirigida” da década de
1970,aquetambémfazreferênciaOtávioVelho(1984:37),oíndio
encarna,tantoparaohomemdocampocomoparaodacidade,
aautodeterminação,aliberdadeeaautonomia,comosistemade
produçãoemododevida,aindaquandoaplenaliberdadedoín-
diopossasertomadacomoarcaísmoouatitudeantissocial.Tanto
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 185
OtávioVelhocomoJosédeSouzaMartinsreferem-seàexpressão
“besta-fera” (do Apocalipse), utilizada pelo posseiro amazônico.
A “besta-fera” é o dinheiro, escreve Martins. É o “mediador dia-
bólico”que“tiradasmãosdaspessoasocontroledesuasopções,
tira a liberdade, fundamentalmente. Ele institui uma forma de
cativeiro...”(Martins1981:132-133).
• • •Procureimostrarnaprimeirapartedestetrabalhoqueasen-
sibilidadebiológicadospovosindígenas–principalmenteosda
Amazônia – levou-o a basear sua subsistência em alimentos de
origemvegetal;ordenoualimitaçãodotamanhodosestabeleci-
mentos, seu constante deslocamento e a consequente simplici-
dadedesuaculturamaterial,facilmentetransportável.Essares-
postaecológica,voltadaàconservaçãodaterraagricultáveleàs
reservasdefaunasilvestreescassa,militoutambémemfavorda
ausência de chefias centralizadas, desnecessárias em sociedades
depequenaenvergadura.
Essa realidade plasmou uma imagem positiva e negativa do
índio.Positiva,nosentidodelibertária,avessaàacumulaçãode
benseàobediênciaachefes;negativa,namedidaemquedifun-
diuaideiadaimprevidênciaeapatiaqueobrasileiroteriaherda-
dodoseuancestralaborígineetambémdonegro,igualmente,de
níveltribal.“Antesdoencontrocomoseuropeus”,escreveGeorge
Zarur(1983),“pode-sedizerquenãohavia‘índios’,categoriageral
dosbrancos.HaviaosXavante,Bororoecentenasdeoutrosno-
mesexóticos,cadatribocomumaidentidadeprópria.”
Acategoriagenéricadeíndioeaconstelaçãodeestereótipos–
forjadospeloeuropeu–ajudamhojeaconstruirumaidentidade,
nãoapenasXavanteouBororo,masétnico-políticaglobalizadora.
Apresençadobrancoque,aprincípioprovocoueincentivouas
guerrasintertribais,pelodeslocamentodetribos,umassobreas
outras,militahojeemfavordesuauniãoeaçãoconjugada.Assim,
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o186
microetniasque,porrazõesecológicas,etnocêntricasetantasou-
tras,tendiamàcissiparidadeouaseguerrearem,tendem,agora,a
ativarumaestratégiadedefesadeinteressescomuns.
Parteintegrantedessaestratégiaéconheceroseuinterlocutor;
é assenhorear-se dos instrumentos que determinaram a supre-
maciadohomembranco,asaber,odomíniodopodermágicoda
escrituraedoacessoàsfontesdopoderdedecisão:amáquinado
Estado.
A manipulação da identidade étnica é, nesse sentido, arma
fundamental.Namedidaemqueelasediluioudesvanece,oíndio
perde a única vantagem que adquiriu, por sua origem, em rela-
çãoaoseuvizinho–peão,posseiroouseringueiro–igualmente
espoliadodeseusdireitosdecidadão.Essavantagem,diga-sede
passagem,foiconquistadaàcustadeumaresistênciaheroicaao
avassalamentoeàescravidão,queosdocumentoshistóricosea
realidadeatualregistramàsaciedade.
Esteéorumoquevemtomandoaquestãoindígenaemnos-
sosdias.Seusaliadosnãosão,ainda,ocampesinatoeasmassas
marginalizadas.Suacausaencontrasolidariedadeentreossetores
maiscultosepolitizadosdascamadasmédiasurbanasnoBrasile
foradele.
A simpatia que desperta a causa da sobrevivência dos rema-
nescentesindígenasemnossopaísprovém,emgrandeparte,de
umautopiadacontracultura:acontestaçãoàcamisadeforçado
progressoquetendeaimporàsnaçõesmodernasumaaltatecno-
logia,aqual,emlugardeerradicarafomeeamiséria,ameaçades-
truiroshomenseanatureza;adefesadaecologiaqueproclama
ousoracionaldosrecursosnaturaisembenefíciodobem-estar
coletivo;aoposiçãoaoautoritarismodoEstado,dasoligarquias
e tecnocracias. Em face dessa realidade, pode-se afirmar, como
fazEuniceDurhan:“Énessesentidoqueaquestãoindígenaad-
quire,verdadeiramente,umadimensãopolíticaquenãopodeser
o í n d i o n a c u lt u r a b r a s i l e i r a | b e r ta g . r i b e i r o 187
menosprezada,poisconstitui,tantooumaisquequalqueroutra,
uma luta pela democratização plena do regime e da sociedade”
(1983:19).
Nãoéminhaintençãoconcluirestetrabalhocomodiscurso
rousseauniano do mito do bom selvagem. Apesar da coerência
interna, as sociedades indígenas sofrem tensões e alimentam
contradições, conforme explicita a vasta literatura etnológica.
Entretanto,tambémnoplanosocialtêmliçõesadar.Desdeaex-
pansãodaEuropamercantil,noséculoXVI,ospovosperiféricos
foramexterminados,dominadosousilenciados.Comissoperde-
ram-semodelosalternativosdeflorescimentosdascivilizações.É
horadeosúltimosseremosprimeiros.Estapodeviraseranova
contribuiçãodoíndioàculturabrasileira. Istoé,namedidaem
queaconsciênciadaexploraçãoétnicadespertaraconsciênciade
classe,e,consequentemente,aconscientizaçãopolítica(Varesse
1981:128).Sóentãopoder-se-áinstitucionalizarapresençaindí-
genananacionalidadecomgozoplenodesuacidadania,mediada
pelacondiçãotribal.
Patrocínio: Realização:
ProduçãoEditora BatelCoordenação editorialCarlos BarbosaProjeto gráfi coSolange Trevisan zc
DiagramaçãoSolange Trevisan zcIlustrarte Design e Produção Editorial
© 2012, Fundação Darcy RibeiroDireitos desta edição pertencentes à Fundação Darcy RibeiroRua Almirante Alexandrino, 199120241-263 - Rio de Janeiro – RJwww.fundar.org.br
1ª Edição. 1ª Impressão. 2014.
Texto estabelecido segundo o Acordo Ortográfi co da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
R369a
Ribeiro, Darcy, 1922-1997 América Lati na: a pátria grande / Darcy Ribeiro. - Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2012. – (Biblioteca básica brasileira). ISBN 978-85-63574-14-5 1. América Lati na – Civilização. 2. América Lati na - Políti ca e governo. I. Fundação Darcy Ribeiro. II. Título. III. Série.
12-6980. CDD: 980 CDU: 94(8) 25.09.12 09.10.12 039335
BIBLIOTECA BÁSICA BRASILEIRA – CULTIVE UM LIVRO
CuradoriaPaulo de F. Ribeiro – Coordenação Geral Godofredo de Oliveira NetoAntonio Edmilson Marti ns Rodrigues
Comitê Editorial Eric Nepomuceno – Fundação Darcy RibeiroOscar Gonçalves – Fundação Biblioteca NacionalNorberto Abreu e Silva Neto – Editora Universidade de BrasíliaAníbal Bragança – Fundação Biblioteca NacionalLucia Pulino – Editora Universidade de Brasília
Tratamento de textos da coleçãoClara DiamentEdmilson CarneiroCerise Gurgel C. da SilveiraCarina LessaLéia Elias CoelhoMaria Edite Freire RochaProjeto de capaLeonardo VianaAssessoria de Comunicação Fundar Laura Murta
Roberta Maria de O. V. da Costa – Bibliotecária CRB7 5587
Impressão e acabamento :
Patrocínio: Realização:
ProduçãoEditora BatelCoordenação editorialCarlos BarbosaProjeto gráfi coSolange Trevisan zc
DiagramaçãoSolange Trevisan zcIlustrarte Design e Produção Editorial
© 2012, Fundação Darcy RibeiroDireitos desta edição pertencentes à Fundação Darcy RibeiroRua Almirante Alexandrino, 199120241-263 - Rio de Janeiro – RJwww.fundar.org.br
1ª Edição. 1ª Impressão. 2014.
Texto estabelecido segundo o Acordo Ortográfi co da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.
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R369a
Ribeiro, Darcy, 1922-1997 América Lati na: a pátria grande / Darcy Ribeiro. - Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2012. – (Biblioteca básica brasileira). ISBN 978-85-63574-14-5 1. América Lati na – Civilização. 2. América Lati na - Políti ca e governo. I. Fundação Darcy Ribeiro. II. Título. III. Série.
12-6980. CDD: 980 CDU: 94(8) 25.09.12 09.10.12 039335
BIBLIOTECA BÁSICA BRASILEIRA – CULTIVE UM LIVRO
CuradoriaPaulo de F. Ribeiro – Coordenação Geral Godofredo de Oliveira NetoAntonio Edmilson Marti ns Rodrigues
Comitê Editorial Eric Nepomuceno – Fundação Darcy RibeiroOscar Gonçalves – Fundação Biblioteca NacionalNorberto Abreu e Silva Neto – Editora Universidade de BrasíliaAníbal Bragança – Fundação Biblioteca NacionalLucia Pulino – Editora Universidade de Brasília
Tratamento de textos da coleçãoClara DiamentEdmilson CarneiroCerise Gurgel C. da SilveiraCarina LessaLéia Elias CoelhoMaria Edite Freire RochaProjeto de capaLeonardo VianaAssessoria de Comunicação Fundar Laura Murta
Roberta Maria de O. V. da Costa – Bibliotecária CRB7 5587
Impressão e acabamento :
DADOS INTERNACIONAIS PARA CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
R484i
Ribeiro, Berta G. (Berta Gleizer), 1924-1997 O índio na cultura brasileira / Berta Ribeiro. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 210 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 22).
ISBN 978-85-635-7435-0
1. Índios da América do Sul – Brasil. 2. Etnobiologia – Brasil. 3. Brasil – Civilização – Influências indígenas. I. Fundação Darcy Ribeiro II. Título. III. Série.
CDD-980.41
Roberta Maria de O. V. da Costa – Bibliotecária CRB7 5587
FUNDAÇÃO DARCY RIBEIRO
Insti tuidorDarcy Ribeiro
Conselho CuradorAlberto Venâncio Filho
Antonio RisérioDaniel Corrêa Homem de Carvalho
Elizabeth Versiani FormagginiEric Nepomuceno
Fernando Otávio de Freitas PeregrinoGisele Jacon de Araújo Moreira
Haroldo CostaHaydée Ribeiro CoelhoIrene Figueira FerrazIsa Grinspum Ferraz
Leonel KazLucia Velloso Maurício
Luzia de Maria Rodrigues ReisMaria de Nazareth Gama e SilvaMaria Elizabeth Brêa Monteiro
Maria José Latgé KwammeMaria Stella Faria de Amorim
Maria Vera Teixeira BrantMércio Pereira Gomes
Paulo de F. RibeiroPaulo Sergio Duarte
Sergio Pereira da SilvaWilson Mirza
Yolanda Lima Lobo Conselho Curador – In Memorian
Antonio CalladoCarlos de Araujo Moreira Neto
Leonel de Moura BrizolaMoacir Werneck de Castro
Oscar NiemeyerTati ana Chagas Memória
Conselho Fiscal Eduardo Chuahy
Lauro Mário Perdigão SchuchTrajano Ricardo Monteiro Ribeiro
Alexandre Gomes Nordskog Diretoria Executi va
Paulo de F. Ribeiro – Presidente Haroldo Costa – Vice-Presidente
Maria José Latgé Kwamme – Diretora Administrati vo-FinanceiraIsa Grinspum Ferraz – Diretora Cultural
Maria Stella Faria de Amorim – Diretora Técnica
FUNDAÇÃO DARCY RIBEIRO
Insti tuidorDarcy Ribeiro
Conselho CuradorAlberto Venâncio Filho
Antonio RisérioDaniel Corrêa Homem de Carvalho
Elizabeth Versiani FormagginiEric Nepomuceno
Fernando Otávio de Freitas PeregrinoGisele Jacon de Araújo Moreira
Haroldo CostaHaydée Ribeiro CoelhoIrene Figueira FerrazIsa Grinspum Ferraz
Leonel KazLucia Velloso Maurício
Luzia de Maria Rodrigues ReisMaria de Nazareth Gama e SilvaMaria Elizabeth Brêa Monteiro
Maria José Latgé KwammeMaria Stella Faria de Amorim
Maria Vera Teixeira BrantMércio Pereira Gomes
Paulo de F. RibeiroPaulo Sergio Duarte
Sergio Pereira da SilvaWilson Mirza
Yolanda Lima Lobo Conselho Curador – In Memorian
Antonio CalladoCarlos de Araujo Moreira Neto
Leonel de Moura BrizolaMoacir Werneck de Castro
Oscar NiemeyerTati ana Chagas Memória
Conselho Fiscal Eduardo Chuahy
Lauro Mário Perdigão SchuchTrajano Ricardo Monteiro Ribeiro
Alexandre Gomes Nordskog Diretoria Executi va
Paulo de F. Ribeiro – Presidente Haroldo Costa – Vice-Presidente
Maria José Latgé Kwamme – Diretora Administrati vo-FinanceiraIsa Grinspum Ferraz – Diretora Cultural
Maria Stella Faria de Amorim – Diretora Técnica